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ANIQUILAR

no vazio, parou a poucos centímetros da superfície e começou a girar no sentido anti-


horário, ainda flutuando um pouco acima da parede; o exercício lhe deu imenso alívio.
Parado em uma ponte que atravessava o riacho seco, um jovem com uma expressão
tensa, visivelmente em busca de uma revelação, o observava com uma cara de
respeitosa admiração. Paul então se levantava, explicava da melhor maneira possível
o mecanismo da rotação sem peso, mas teve que deixá-lo para trás logo em seguida e
se dirigir a uma casa de vidro, onde estava concentrada a maior parte da futilidade das
férias. Tratava-se de um pavilhão situado no centro de um jardim à francesa, muito
bem cuidado, que tinha uma curiosa propriedade: lá dentro só havia turistas atléticos,
barulhentos e vulgares; mas assim que saíam de lá eles se transformavam em
cachorrinhos brancos e felizes.”

p. 123 – “... ou então vivendo uma espécie de momento sartreano só que aplicado às
picas, "uma pica feita de todas as outras e que equivale a todas e a qualquer outra
pica", portanto bastava ser o homem presente na hora para aproveitar a sorte
inesperada.”

p. 129 – 130 – 131 – “Nada parecido aconteceu na estação Mâcon-Loché: seu irmão,
sua cunhada e o filho eram os únicos viajantes a desembarcar do trem de Paris. Mas
de qualquer maneira Paul reconheceria Aurélien sem a menor dificuldade, não tinha
mudado nada; havia algo de hesitante, indeciso em seu rosto fino e bastante
harmonioso que dava uma impressão de fragilidade; e ele continuava tentando, sem
muito sucesso, torná-lo mais viril deixando crescer uma barba permanentemente rala.
Indy era dez anos mais velha que ele, e isso estava começando a ficar muito evidente,
Paul não pôde deixar de notar: tinha envelhecido bocado, e isso não devia torná-la
mais simpática. O filho era alto para a sua idade – nove anos?, não lembrava
exatamente. Esse filho era a pior parte da história, Paul não suportava aquele menino,
Cécile também não. Não se tratava de um caso de racismo, ele nunca sentiu repulsa
nem atração particular por pessoas de pele negra; mas nesse que caso, sem dúvida,
havia algo errado. Que Indy tivesse decidido apelar para a reprodução assistida porque
seu marido era estéril, claro ele podia entender; que além disso tivesse escolhido
recorrer a uma barriga de aluguel já era uma coisa mais questionável, pelo menos a
seu ver, mas talvez ele estivesse sendo vítima de concepções morais ultrapassadas, a
mercantilização da gravidez talvez fosse uma coisa legítima atualmente, na verdade
não acreditava nisso, mas evitava pensar muito sobre esses assuntos. Que ela fosse à
Califórnia fazer todas essas operações, perfeito, era a melhor opção do ponto de vista
tecnológico, e também a mais cara – mas Indy parecia ter meios, aliás ele se
perguntava de onde poderia vir seu dinheiro, certamente não foi o salário de "cronista
social" que lhe permitiu fazer essa extravagância, e mesmo que fosse uma "jornalista
top", como se diz, aquilo estaria fora do seu alcance. Provavelmente foram os pais que
pagaram tudo, ela própria era um tanto sovina, do tipo que viaja para a Bélgica ou para
a Ucrânia. Até aí tudo bem, pode-se admitir, mas o que será que deu nela, no meio do
imenso catálogo de homens que a empresa de biotecnologia californiana deve ter
colocado à sua disposição, para escolher um progenitor de raça negra? Na certa o
desejo de afirmar sua independência de espírito, seu anticonformismo, e ao mesmo
tempo seu antirracismo. Tinha usado o filho como uma espécie de cartaz publicitário,
como uma forma de exibir a imagem que queria passar de si mesma – calorosa, aberta,
cidadã do mundo –, enquanto ele a conhecia como bastante egoísta, avarenta e, acima
de tudo, conformista em grau máximo.”

p. 139 – “Paul é uma estrela mundialmente famosa, mas não sabe em que área. Com
sua esposa e seu agente, está andando por uma rua lamacenta no Quinto
Arrondissement de Paris.”

p. 142 – “... as mulheres são tão corajosas, pensou, as mulheres têm uma coragem
quase inacreditável.”

p. 147 – “... atingido uma idade em que você não quer mais tirar fotos, quer dizer, fotos
de si mesmo, e captar testemunhos da passagem do tempo, mas ainda tem vontade
de viver, talvez mais do que nunca.”

p. 170 – “Ainda não era o momento certo, ele sentia, de dar um passo à frente com
Prudence. Melhor esperar um pouco mais, deixar uma corrente de esperança fluir
entre eles – como o sangue voltando a circular em um órgão machucado. E então talvez
pudesse acontecer algo bom, algo que acompanharia o fim das suas vidas, e eles
viveriam anos doces de novo, talvez até muitos anos.”

p. 181 – “Assim, mantemos as duas casas legislativas, mas o poder do parlamento


ficará ainda mais reduzido. É uma espécie de pós-democracia, se você quiser, mas todo
mundo está fazendo isso agora, é só o que funciona, a democracia está morta como
sistema, é tudo muito lento, muito pesado.”

p. 202 – “Para Paul, o mundo humano parecia composto de umas bolinhas de merda
egoístas, não ligadas entre si, e às vezes essas bolas se agitavam e copulavam à sua
maneira, cada qual em seu próprio registro, e passavam a existir novas bolas de merda,
essas bem pequenas. Como lhe acontecia às vezes, foi tomado por um nojo repentino
pela religião da irmã: como um deus podia ter escolhido renascer em forma de uma
bola de merda? Para piorar as coisas, existiam cânticos que celebravam esse
acontecimento. "Nasceu a criança divina", como isso poderia ser traduzido para o
alemão? "Es ist geboren, das göttliche Kind", voltou de repente à sua memória, foi
bom ter estudado, pensou, assim se adquire um certo nível. Nos últimos anos, é
verdade, as bolas de merda copulavam menos, pareciam ter aprendido a se rejeitar,
sentiam o fedor mútuo e se afastavam umas das outras com nojo, a extinção da espécie
humana parecia possível a médio prazo.”

p. 217 – “... quem sabe pudessem ter um novo impulso lá, um novo começo, dar início
a uma nova vida; em todo caso, ele precisava ter essa expectativa.”

p. 238 – 239 – “Decididamente eles tinham errado, pensou, tinham errado


coletivamente em algum ponto. De que adiantava ter 5G se ninguém conseguia mais
entrar em contato com os outros e fazer os gestos essenciais, aqueles que permitem
que a espécie humana se reproduza, aqueles que às vezes também permitem que as
pessoas sejam felizes?”

p. 244 – “– Em relação a isso, não concordo. Já existe gente mais extremista que ele.
Alguns ideólogos da deep ecology defendem a extinção da humanidade, porque
acham que a espécie humana é definitivamente irrecuperável e perigosa para a
sobrevivência do planeta. É o caso de movimentos como Church of Euthanasia, Gaia
Liberation Front e Voluntary Human Extinction Movement. Zerzan, por seu lado, não
quer destruir a humanidade, quer reeducá-la. Quando fala dos homens, ele os
descreve como primatas simpáticos, com boa formação, mas que desde o Neolítico
estão na direção errada. Suas teses são muito semelhantes às do rousseaunismo
clássico: o homem nasce bom, é a sociedade que o perverte etc, etc. E pessoas como
Rousseau são capazes de ter uma influência enorme; podemos até dizer que Rousseau
deu origem sozinho à Revolução Francesa. Os mitos do comunismo primitivo, da Idade
de Ouro, sempre tiveram um poder de mobilização incrível, e atualmente isso é ainda
mais verdadeiro, com todos os programas sobre a sabedoria das civilizações
tradicionais, a caçada de renas pelos inuítes etc. Além do mais, o interessante, no caso
de Zerzan, é que um dos seus seguidores partiu para a ação. Você se lembra do
Unabomber?”

p. 246 – “Em 1996, a Church of Euthanasia, um dos movimentos mais provocativos da


ecologia profunda – eles gostam de proclamar que os quatro pilares do seu movimento
são o suicídio, o aborto, o canibalismo e a sodomia”

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