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J. M.

Coetzee

CONFISSÃO E PENSAMENTOS DUPLOS


TOLSTÓI, ROUSSEAU E DOSTOIEVSKI

Colóquio/letras
lisboa
No Livro II das suas Confissões, santo agostinho narra a história de como,
quando jovem, ele e um grupo de amigos roubaram uma enorme quanti-
dade de peras do jardim de um vizinho, e não porque quisessem comê-las
(de facto, atiraram-nas aos porcos), mas pelo simples prazer de cometer um
acto proibido. estavam a ser «maus sem motivo, e a causa da maldade não
[era] senão a maldade, […] não desejando alguma coisa por indecência, mas a
própria indecência [tendo] pudor de não ser impudente[s]»1.
No tempo passado de que as Confissões nos falam, o roubo traz vergonha
ao coração do jovem agostinho. Mas o desejo do coração do rapaz (recorda
o homem maduro) era esse mesmo sentimento de vergonha. e o seu coração
não é envergonhado (castigado) pelo reconhecimento de que procura conhe-
cer a vergonha: pelo contrário, o conhecimento do seu próprio desejo como
vergonhoso satisfaz simultaneamente o desejo da experiência de vergonha e
estimula um sentido de vergonha. e este sentido de vergonha é experienciado
com satisfação e reconhecido — se for reconhecido —, através de uma busca
autoconsciente, como uma nova fonte de vergonha; e assim por diante, infi-
nitamente.
Nas «planícies da minha memória, nos antros e cavernas inumeráveis
e inumeravelmente cheias» (X.xvii, 475), a vergonha continua a viver no
homem maduro. «quem desenvencilhará este nó tão retorcido e enredadís-
simo? É feio. Não quero fixá-lo, não quero vê-lo» (ii.x, 77). a situação de
agostinho é verdadeiramente abismal. ele quer saber o que reside no início
do novelo da vergonha recordada, qual é a origem de que parte, mas o novelo
é interminável, os estádios de auscultação de si mesmo requeridos para alcan-
çar esse princípio são infinitos. Porém, até que a fonte de onde brotou o acto
vergonhoso seja confrontada, o eu não pode ter descanso.
a confissão é um elemento numa sequência composta por transgressão,
confissão, penitência e absolvição. a absolvição significa o final do episódio, o
fecho do capítulo, a libertação da opressão da memória. a absolvição é, neste
sentido, a meta indispensável de qualquer confissão, sacramental ou secular.
Por contraste, a transgressão não é uma componente fundamental. Na história

5
de agostinho, o roubo das peras é a transgressão, mas aquilo que requer con-
fissão é algo que subjaz ao próprio furto, uma verdade sobre si próprio que ele
ainda não conhece. a sua história sobre as peras é, por isso, uma dupla confis-
são de algo que ele conhece (o acto) e de algo que não conhece: «Confessarei,
pois, o que sei de mim; confessarei também o que de mim ignoro […] o que
de mim ignoro não o sei, enquanto as minhas trevas se não tornarem como o
meio-dia na tua presença» (X.v, 447). a verdade sobre o eu, que porá fim à
busca pela fonte daquilo que está errado em si, afirma agostinho, permanecerá
inacessível à introspecção.

Neste ensaio sigo os rumos de um certo número de confissões seculares,


ficcionais e autobiográficas, à medida que os seus autores confrontam ou evi-
tam o problema de como conhecer a verdade sobre o eu sem nos deixarmos
iludir, e de como pôr um fim à confissão dentro do espírito do que quer que
tomem como um equivalente secular da absolvição. um certo relaxamento
é inevitável quando se transpõe o termo confissão do contexto religioso para
um contexto secular. ainda assim, podemos demarcar um modo de escrita
autobiográfica a que chamemos «confissão», como distinto da «memória»
e da «apologia», com base no motivo subjacente de contar uma verdade
essencial sobre si próprio2. É um modo praticado em certos momentos por
Montaigne3, mas definido essencialmente pelas Confissões de rousseau.
quanto à confissão ficcional, este modo é praticado já por Defoe nas confis-
sões fabricadas de pecadores como Moll Flanders e roxana; nos dias de hoje,
as ficções confessionais chegam a constituir um subgénero do romance em
que os problemas da veracidade e do reconhecimento do eu, da ilusão e do
modo como nos iludimos a nós próprios assumem um papel preponderante4.
Duas das ficções que discuto neste ensaio, os Cadernos do Subterrâneo de
Dostoievski e A sonata de Kreutzer de tolstói, podem ser consideradas, em
sentido estrito, «confissões ficcionais», porquanto consistem, na sua maior
parte, na representação de confissões de actos abomináveis cometidos pelos
respectivos narradores. a «explicação» de ippolit terentiév em O Idiota é
uma apologia no leito de morte, que rapidamente se envolve nos problemas
de verdade e autoconhecimento que caracterizam a confissão. Finalmente, a
confissão de stávrogin em Os Demónios levanta a questão, deixada em suspenso
desde o tempo de Montaigne, de saber se a confissão secular, para a qual há
uma audiência, ficcional ou real, mas nenhum confessor com poder de absol-
vição, pode alguma vez conduzir a esse fim de capítulo cuja consecução é o
objectivo da confissão5.

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Tolstói
É a segunda noite de uma longa viagem de comboio. a conversa entre os
passageiros incide agora sobre casamento, adultério, divórcio. um homem
grisalho fala cinicamente sobre o amor. revela o seu nome: Pózdnichev, homi-
cida conjugal condenado. os outros passageiros afastam-se, deixando-o a sós
com o narrador anónimo, ao qual se propõe agora «começar do princípio».
a confissão de Pózdnichev, tal como repetida pelo narrador, constitui o corpo
d’A Sonata de Kreutzer de tolstói6.
a história de Pózdnichev é a de um homem que viveu toda a vida num
«equívoco abissal» relativamente às relações com as mulheres e que, final-
mente, sofre um «episódio» de ciúme patológico durante o qual mata a
mulher. só mais tarde, depois de ter sido preso, acontece que «os meus olhos
se abriram e passei a ver tudo a uma luz muito diferente. tudo virado do
avesso, tudo!…» (24). o momento em que tudo se vira do avesso (navyvorot,
virado ao contrário) é o momento de iluminação que lhe abre os olhos para a
verdade e torna a verdadeira confissão possível. a confissão em que embarca
durante a viagem de comboio tem, assim, dois lados: os factos do «episódio»,
já expostos durante o julgamento, claro, e a verdade sobre si mesmo para a qual
os seus olhos desde então se abriram. a revelação desta verdade, por sua vez,
está estreitamente ligada à denúncia do erro, um estado de erro no qual, na sua
opinião, toda a classe de que provém ainda vive.
Com o seu ar agitado, o som peculiar que emite (um misto de tosse e riso
entrecortado), as estranhas ideias sobre sexo e a história de violência que tem
atrás de si, Pózdnichev é manifestamente um personagem bizarro, e não nos
surpreenderíamos se a verdade que conta contrariasse a verdade tal como foi
entendida pelo ouvinte calmo e sóbrio que mais tarde a transmite ao leitor. Por
outras palavras, não nos surpreenderíamos de estar perante um desses livros
em que o narrador acredita relatar uma verdade, enquanto emerge lentamente
em nós a ideia de que, de alguma forma, outra verdade está a ser contada —
um livro como Pale Fire de Nabokov, em que o narrador pensa estar a falar por
si próprio, mas conseguimos facilmente lê-lo contra si próprio.
seja-me permitido começar por resumir a verdade tal como Pózdnichev
a vê, deixando-o falar com a sua própria voz.

A verdade de Pózdnichev
Como qualquer jovem da minha classe, recebi a minha iniciação sexual
num bordel. a experiência com prostitutas estragou a minha relação com
as mulheres para sempre. Mas mesmo «com centenas dos mais hediondos
crimes contra as mulheres a pesar[-me] na alma», fui recebido nas casas dos
meus pares e autorizado a dançar com as suas esposas e filhas (29).

7
Fiquei noivo de uma jovem. era um tempo de promessas sensuais,
marcado por modas sedutoras, pela boa comida e a falta de exercício físico.
a nossa lua-de-mel trouxe a desilusão e a vida conjugal transformou-se numa
alternância entre acessos de animosidade e de sensualidade. o que não enten-
díamos era que a animosidade que sentíamos um pelo outro era um protesto
da «natureza humana», em nós, contra a submissão à nossa «natureza ani-
mal» (35). a sociedade, através dos seus padres e médicos, sanciona práticas
antinaturais: relações sexuais durante a gravidez e a lactância, a contracepção.
a contracepção foi «a circunstância […] que acabaria por desembocar no que
finalmente aconteceu», já que permitiu à minha mulher movimentar-se entre
outros homens «na força dos seus trinta anos, cheia e excitada, [sem dar] à
luz» (77, 78).
um homem chamado trukachévski, um violinista, surge em cena.
levado por «uma força incompreensível, fatal», encorajei a sua amizade com
a minha mulher, e um «jogo de aldrabice mútua» começou. ele e a minha
mulher tocavam duetos, eu fervia de ciúmes, mas mantinha um rosto risonho,
a minha mulher excitava-se com o meu ciúme, enquanto uma «corrente eléc-
trica» fluía entre eles os dois (87, 88). retrospectivamente, vejo que o tocar
música em conjunto, como o dançar juntos, como a proximidade entre os
escultores e as suas modelos ou entre os médicos e as suas pacientes, são vias
que a sociedade mantém abertas para encorajar ligações ilícitas.
Parti em viagem, mas não conseguia deixar de me lembrar do que o irmão
de trukachévski me dissera certa vez: ele dormia apenas com mulheres casa-
das, por serem «seguras»: com elas não apanharia uma infecção. Possuído por
uma fúria ciumenta, corri para casa. trukachévski e a minha mulher estavam
a tocar duetos. avancei para eles com um punhal. trukachévski escapou.
a minha mulher clamou, «Não há nada, nada… Juro!» (117). apunhalei-a.
Na prisão deu-se em mim uma «viragem moral» e compreendi como o
meu destino tinha sido determinado. «se tivesse sabido o que sei agora, tudo
teria sido diferente […]. Jamais me teria casado.»7

A verdade de Tolstói
em 1890, em resposta a cartas de leitores que lhe perguntavam «o que
quis dizer» n’A Sonata de Kreutzer, tolstói publica um «Posfácio» em que
especifica o que «quis dizer» como uma série de injunções. É errado que
as pessoas solteiras tenham relações sexuais. as pessoas deveriam aprender
a viver naturalmente e a comer com moderação; dessa forma a abstinência
sexual ser-lhes-ia mais fácil. alguém deveria ensinar-lhes que o amor sexual
é «um estado animal degradante para o ser humano». a contracepção e as
relações sexuais durante a lactância deveriam cessar. a castidade é um estado
preferível ao casamento8.

8
A outra verdade «de» Pózdnichev
Porém, se relermos a história de Pózdnichev destacando outros elementos
que não aqueles que ele e o próprio tolstói do «Posfácio» escolhem destacar,
chegaremos a uma outra verdade. eu poderia deixar esta verdade alternativa
«de» Pózdnichev falar pela sua própria voz, a partir do seu próprio «eu».
Mas, se assim fosse, poderiam acusar-me de fazer um pré-juízo sobre o caso,
ao reivindicar para esta segunda voz a mesma autoridade da primeira, a voz
que Pózdnichev acredita ser a sua. Permitam-me então que escreva essa outra
verdade simplesmente como algo postulado «a» ou «sobre» Pózdnichev,
algo extraído das suas elocuções, mas não a verdade que ele atribui à sua pró-
pria pessoa.
Nas salas e salões da classe a que Pózdnichev pertence reina uma con-
venção: ninguém deve olhar para além das aparências «cuidadosamente
barbeadas, perfumadas» dos homens jovens e vê-los nos seus abjectos
deboches nocturnos com prostitutas. outra convenção diz que há dois tipos
de mulheres, as mulheres decentes e as prostitutas, ainda que em certas oca-
siões as mulheres decentes se vistam como prostitutas, com «a mesma nudez
dos braços, dos ombros e dos peitos, os mesmos vestidos justos no traseiro
espetado». De facto, as mulheres vestem-se para matar. Pózdnichev: «estou
literalmente aterrorizado […] tenho vontade de chamar a polícia, de ter uma
protecção contra o perigo» (29, 34, 40).
Pózdnichev casa-se e parte em lua-de-mel. a experiência desilude-o:
compara-a a pagar para entrar numa barraca de feira, apenas para descobrir
que foi enganado, mas ficando demasiado envergonhado da sua própria inge-
nuidade para prevenir outros espectadores da fraude. Pensa particularmente
num espectáculo de feira que visitara em Paris, anunciando uma mulher com
barba (45). quanto às relações sexuais, conduzem ao ódio e, em última ins-
tância, ao assassínio. o assassínio está sempre presente. «estão todos a matar,
todos, todos…» e mesmo quando a mulher está grávida, quando o «grande
acontecimento» se desenvolve dentro dela, ela permite a entrada do membro
masculino (56, 57).
e então chega trukhatchévski, com o seu «traseiro desenvolvido como
o de uma mulher», «o seu andar saltitante de pássaro», o «chapéu encos-
tado à coxa fremente». ainda que Pózdnichev não goste de trukhatchévski,
«uma força incompreensível, fatal, impelia-me a não o rejeitar, a não o afas-
tar, pelo contrário, a aproximá-lo de nós». trukhatchévski oferece os «seus
préstimos» à esposa de Pózdnichev, e Pózdnichev aceita, pedindo-lhe para
«trazer o violino para tocar [igrat’] com a minha mulher». «Desde o pri-
meiro instante em que os olhos dele e dela se cruzaram, vi que o animal que
havia em ambos […] perguntou: ‘posso?’, e respondeu: ‘oh, sim, à vontade’»
(81, 87, 88, 89).

9
Correndo a casa para apanhar o casal em flagrante, exacerba a paixão
ciumenta imaginando como trukhatchévski vê a sua mulher: «ela já não é
muito jovem, falta-lhe um dente de lado e é um pouco flácida», mas pelo
menos não terá nenhuma doença venérea. a grande angústia de Pózdnichev é
«reconhecer os meus plenos e incontestáveis poderes sobre o corpo dela […]
e ao mesmo tempo sentir que não podia ser proprietário daquele corpo, que
não era meu e que ela podia dispor do seu corpo como entendesse; ora, ela
entendia dispor dele de uma forma diferente da que eu desejava» (107, 109).
subindo furtivamente ao quarto de onde a música provém, Pózdnichev
teme apenas que «consigam despedir-se» antes de ele lá chegar e o privem da
«evidência da prova» do seu crime. quando está prestes a esfaquear a mulher,
ela grita que «não há nada». «eu ainda poderia hesitar, mas as suas últimas
palavras convenceram-me do contrário, convenceram-me de que houvera
tudo, e suscitaram a minha resposta», e mata-a (113, 117).
a colagem de extractos que retirei do texto de Pózdnichev conta lite-
ralmente uma história diferente daquela que ele conta. a história é a de um
homem que vê o falo em toda a parte, espreitando zombeteiramente ou
sobressaindo de forma ameaçadora dos corpos dos homens e mulheres à sua
volta. Casa-se na esperança de aprender o segredo sexual (a barba da mulher),
mas fica desapontado. imagina o contacto sexual como uma perseguição
do falo vingativo à vida da criança por nascer, com a qual se identifica, no
interior da mãe. Face à ideia de que o corpo da mulher/mãe não lhe pertence
exclusivamente, sente a angústia da criança no período edipiano. tenta resol-
ver o problema entregando-a ao rival ameaçador (a quem vê como um falo
ambulante), retendo assim um controlo mágico sobre o par; quando eles não
desempenham o papel que lhes prescreveu, ele perde o controlo e cai numa
raiva assassina.
ouvimos Pózdnichev contar esta «outra» verdade sobre si mesmo se
sublinharmos uma certa sucessão de elementos do seu texto e ignorarmos
aqueles a que quer que atendamos — as visitas a prostitutas, a dieta de carne,
etc. o mesmo método permitir-nos-ia sem dúvida extrair do texto terceiras
e quartas verdades. Mas o meu não é um argumento radical envolvendo
uma infinidade de interpretações. o meu argumento sugere apenas que
Pózdnichev e o interlocutor de Pózdnichev, bem como tolstói e o público
de tolstói, operam dentro de uma economia que possibilita uma segunda
leitura, uma leitura que perscruta os recantos do discurso de Pózdnichev em
busca de instâncias em que a verdade, a verdade «inconsciente», é revelada
por estranhas associações, falsas racionalizações, omissões, contradições. se
a verdade «inconsciente» de Pózdnichev se aproxima daquela que esbocei,
então a sua confissão torna-se uma dessas confissões «irónicas» em que o
orador crê estar a dizer uma coisa, mas está «na verdade» a dizer algo muito

10
diferente. em particular, Pózdnichev acredita que desde o «episódio» os seus
olhos se «abriram» e alcançou um certo conhecimento de si, quer enquanto
indivíduo quer enquanto representante de uma classe social, que o habilita a
dizer o que está «errado» consigo e errado com a sua própria classe (cujos
representantes, exceptuando um, se recusam a ouvir o diagnóstico e mudam de
carruagem). Mas a verdadeira verdade «de» Pózdnichev é que ele sabe muito
pouco sobre si próprio. em particular, apesar de saber que «se tivesse sabido o
que sei agora, tudo teria sido diferente […] Jamais me teria casado», não sabe
por que razão não deveria ter-se casado ou porque matou a mulher. e ainda
assim, o mais peculiar é que é a este diagnosticador incompetente que tolstói,
como autor, dá explícito apoio no «Posfácio»: o que Pózdnichev acredita
estar errado com a sociedade, diz-nos tolstói, é de facto aquilo que está errado.
até ao momento, pouco do que eu disse sobre A Sonata de Kreutzer é
novo. «as convenções que a governam são confusas», escreve Donald Davie.
«o leitor não sabe ‘como entendê-las’. e, tanto quanto podemos ver, esta
ambiguidade também não foi deliberada pelo autor. É, portanto, uma obra
flagrantemente imperfeita.»9 «Decrépita», segundo o veredicto de t. G. s.
Cain: uma «narrativa magnificamente conduzida sobre o declínio moral de
um casamento […] introduzida por, e parcialmente entrelaçada com, uma série
de generalizações obsessivamente limitadas e simplistas […] enunciadas por
Pózdnichev mas […] sem dúvida subscritas por tolstói»10. tanto os comen-
tários de Davie e Cain como os meus próprios comentários apontam para
um problema de mediação. uma confissão que incorpora uma patentemente
inadequada autoanálise é mediada por um narrador que não dá qualquer
sinal de questionar essa análise, a qual é depois reafirmada (como «aquilo que
eu quis dizer») pelo autor num texto exterior à ficção. estes mediadores de
Pózdnichev contentam-se com pouco, pensamos: é demasiado fácil ler outra
verdade, «mais profunda», na confissão de Pózdnichev. Porém, quando olha-
mos para o próprio Pózdnichev, em busca de provas de perturbação provocada
pelo esforço de dar voz a uma verdade («conscientemente»), enquanto outra
verdade emerge «inconscientemente», não encontramos senão o sintoma
críptico pré-verbal de um misto de tosse e riso, que tanto pode significar tensão
como desprezo; quando procuramos no narrador sinais de uma atitude interro-
gativa, encontramos apenas silêncio; e quando nos concentramos em tolstói,
deparamos com um apoio agressivamente simplista à verdade de Pózdnichev.
em todos os níveis da apresentação, portanto, há uma falta de reflexividade.
A Sonata de Kreutzer apresenta uma narrativa, afirma a sua interpretação (a sua
verdade) e assevera ainda que não há problemas de interpretação.
o desejo de acreditar que as coisas são de uma maneira quando são de
outra é uma forma de nos iludirmos a nós próprios. saber se Pózdnichev é um
homem dominado pelas suas ilusões e se o narrador se deixa também iludir

11
são perguntas que o texto deixa sem resposta. Porque a pergunta «será que
Pózdnichev se deixou dominar pelas suas ilusões?» pode apenas significar
«será que Pózdnichev é a representação de um homem dominado pelas suas
ilusões?», e o texto não reflecte sobre este ponto. Não temos meio de saber
se o narrador se deixou ou não iludir por Pózdnichev, já que ele permanece
em silêncio. Mas faz sentido perguntar se o próprio tolstói, como escritor
e crítico arguto da sua obra, não estará, na melhor das hipóteses, dominado
pelas suas próprias ilusões quando, ao afirmar que Pózdnichev é um crítico
fiável da sociedade, está a implicar que este compreende a sua história e que
podemos por isso confiar que a sua confissão significa aquilo que ele diz que
significa. em primeiro lugar, há numerosas provas biográficas de que o hábito
de manter um diário, nas circunstâncias peculiares da família tolstói, o levava
a confrontar-se literalmente todos os dias com a tentação de iludir os outros
e com o problema da falta de sinceridade e da tendência para nos iludirmos
a nós próprios inerentes ao género diarístico e às formas confessionais em
geral11. e, em segundo lugar, o foco psicológico nos romances do período
intermédio de tolstói não incide menos nos mecanismos de auto-ilusão do
que em outros tópicos.
o que deve surpreender-nos, tendo em conta este pano de fundo, é que
tolstói tenha escrito uma peça tão vazia como A Sonata de Kreutzer sobre as
ambivalências do impulso confessional e as deformações da verdade produzi-
das pela situação confessional, em que há sempre alguém a quem algo é con-
fessado, mesmo se, como nos diários privados, a natureza deste outro possa
permanecer indefinida, em suspenso. Nem em torno da confissão dentro da
confissão (a apresentação que Pózdnichev faz à noiva dos seus diários), nem
na confissão de Pózdnichev ao narrador há qualquer tipo de questionamento.
assim como, para Pózdnichev, um dos efeitos de «ver a luz» é permitir-lhe
descartar o seu eu anterior, olhando-o sem simpatia, seria igualmente de espe-
rar que o efeito deste «conhecimento da verdade» tornasse fácil para o tolstói
de 1889 virar costas ao seu eu anterior — que tinha considerado a obtenção
da verdade como perigosamente envolvida em ilusão e complacência — e ver
as problemáticas da narração da verdade como triviais quando comparadas
com a própria verdade. Dir-se-ia que A Sonata de Kreutzer não apenas se
presta a segundas e terceiras leituras, como o faz de modo descuidado, como
se tolstói fosse indiferente a potenciais jogos de reinterpretação por parte de
leitores com tempo de sobra para gastar. A Sonata de Kreutzer parece assim
assinalar, da parte de tolstói, uma rejeição de um talento cuja característica
distintiva era a capacidade «de se conhecer», como diz rilke, «até ao seu
próprio sangue»12.
a vida de Pózdnichev divide-se entre um antes e um depois, sendo o
antes «um abismo de erro» e o depois um tempo em que «tudo se vira do

12
avesso». o seu posicionamento temporal no depois dá-lhe, a seus olhos, esse
pleno autoconhecimento que William C. spengemann considera caracterís-
tico do «narrador convertido», cujo eu sabedor, que conta a sua história, se
posiciona invisivelmente ao lado do eu que experimenta e age e sobre o qual
nos fala13. relativamente à experiência da conversão de Pózdnichev, o texto
guarda silêncio, excepto quando refere que a consciência desperta depois de ter
sofrido «tormentos» (25). ainda assim, e na medida em que continuemos a ler
A Sonata de Kreutzer como a expressão de um eu convertido, e não como um
quadro para o agendamento de sentenças («abstém-te de prostitutas, abstém-
-te de carne…»), podemos continuar a procurar no texto indícios desse sentido
de se ser portador da verdade que o narrador convertido alcança ao obter aquilo
que acredita ser a compreensão plena do passado.
Para confirmar que o sentido de verdade encarnada no sujeito — e o pró-
prio processo da experiência de conversão — constitui um vivo interesse para
tolstói, podemos voltar-nos não só para Anna Karénina, mas também para
um documento escrito dez anos antes d’A Sonata de Kreutzer. Confissão é, no
essencial, a análise de uma crise vivida por tolstói em 1874, quando a razão o
persuadiu de que a vida não tinha sentido, deixando-o à beira do suicídio, até
que uma força dentro de si, a que chama «consciência de vida», rejeitou as
conclusões da razão e o salvou14.
Vale apena examinar em detalhe a linguagem com que tolstói estabelece
este jogo de forças. ainda que associada ao raciocínio, a condição mental que
o leva a «retirar uma corda […] para que não me enforcasse […] e desisti[r]
de levar comigo uma espingarda» é descrita como um estado passivo, «um
experienciar [de] momentos de aturdimento; a minha vida chegava a uma
paragem» (41, 35). em contrapartida, o impulso para se salvar não é uma
mera força física associada ao corpo, mas participa do intelecto: é uma «vaga
consciência de que as minhas ideias estavam erradas», um sentido de que
«cometi um erro algures»; são «dúvidas» (80, 84, 85). e embora o impulso
seja finalmente referido como uma «consciência de vida», é acompanhado
por «um sentimento tortuoso. só consigo descrever [retrospectivamente]
este sentimento como sendo uma busca por Deus» (116). a oposição não é,
pois, entre uma consciência clara e esmagadora de que a vida é absurda e uma
animal pulsão de vida baseada no instinto: o erro, a pulsão de morte, é um
estado de crescente abulia, como um esgotamento da própria vida, enquanto a
verdade salvadora brota de um poder intelectual instintivo que obscuramente
desconfia da razão. a segunda força não colide com a primeira, derrotando-a.
em rigor, não há conflito. em vez disso, estão presentes dois estados de espírito
em simultâneo: uma paralisação mortal da vida que simplesmente acontece (na
menya stali naxodit’ minuty snačala nedoumeniya, ostanovki žizni: «algo muito
estranho começou a acontecer-me […]. Comecei a experimentar momentos de

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aturdimento; a minha vida chegava a uma paragem»); e uma desconfiança,
uma precaução. e, por razões que a razão não pode penetrar, a corrente
inverte-se, o segundo sobrevém lentamente, o primeiro começa a dissipar-se.
Não seria errado detectar um certo escrúpulo filosófico neste relato.
tolstói poderia ter resvalado para um tipo de linguagem convencional quando
descreve esta experiência de conversão, uma linguagem em que o eu escolhe,
de forma egoísta, seguir a voz da razão, mas é então resgatado do erro por uma
outra voz que fala do coração. tal linguagem seria a do falso eu e do eu verda-
deiro, sendo o falso eu racional e socialmente condicionado, e o eu verdadeiro
instintivo e individual. em tolstói não há este dualismo simples de um eu ver-
dadeiro e um eu falso. em vez disso, o eu é um lugar onde a vontade se processa
de formas apenas obscuramente acessíveis à introspecção. Não é o eu, ou um
eu, que determina aproximar-se de Deus. Mais propriamente, o eu experimenta
uma aproximação (iskaniem Boga, «uma busca por Deus»). Não é que o eu
mude (no sentido da voz média de «mudar-se a si mesmo»); acontece antes
uma mudança no lugar em que o eu reside: «quando e como essa mudança
ocorreu [soveršilsya vo mne etot perevorot], não consigo afirmar» (121).
enquanto resposta à questão de saber qual é a condição de sinceridade,
Confissão afirma que esta surge de uma atenção e receptividade a um impulso
interior a que tolstói chama um impulso para Deus. a condição de sinceridade
não é, pois, o autoconhecimento perfeito mas a orientação para a verdade,
aquilo a que o camponês em Anna Karénina chama «viver para a sua própria
alma» — palavras que levin receberá como uma iluminação ofuscante15. No
seu cepticismo sobre o autoconhecimento racional, na sua convicção de que os
homens agem de acordo com forças interiores das quais não são conscientes,
tolstói está próximo de schopenhauer16; onde se afasta de schopenhauer é na
identificação do impulso para Deus como uma dessas forças.
toda a escrita de tolstói, ficcional e não-ficcional, se preocupa com a ver-
dade; nos últimos escritos essa preocupação supera todas as outras. a impaci-
ência inquieta com as verdades recebidas, os esforços para descobrir os funda-
mentos de um estado de sinceridade no eu, comuns tanto nas secções de levin
em Anna Karénina, como nos escritos autobiográficos tardios, deixaram nos
sucessivos leitores a impressão de «perfeita sinceridade» que Matthew arnold
regista17. Presente quer na autobiográfica Confissão quer em histórias tardias
como A Morte de Ivan Ilitch, a crise (a confrontação com a própria morte)
provoca uma iluminação na vida da personagem central, tornando absurdo
para ela permanecer num modo de existência dominado pela ilusão de si
mesma. Daí em diante, ela poderá ou não viver como testemunha (limitada)
da verdade. o sentido de urgência que a crise suscita, a implacabilidade do
processo em que o eu é despojado das suas ficções reconfortantes, a obstinação
da procura da verdade: todas estas qualidades compõem o termo sinceridade.

14
Poderíamos então esperar que a ficção em forma confessional desse a
tolstói um veículo conveniente e adequado para a literatura da verdade que
ele queria escrever — ou seja, uma ficção centrada numa crise de iluminação,
retrospectivamente narrada por um orador (agora um portador da verdade)
sobre o seu eu anterior (auto-)iludido. Mas, em vez disso, o que encontramos
n’A Sonata de Kreutzer é uma falta de interesse no potencial da forma con-
fessional em favor de outra noção — dogmática — do que significa dizer a
verdade. Como consequência, ocorrem dois silêncios paralisantes no texto.
o primeiro é o silêncio sobre a experiência da conversão, uma experiência
durante a qual, como a própria Confissão de tolstói nos mostra, a experiência
íntima de se ser um portador da verdade é sentida mais intensamente por
contraste com o anterior modo de existência auto-iludido. o silêncio sobre
essa experiência implica, pois, uma falha de dramatização. o segundo e mais
sério silêncio é o do narrador. uma vez que a confissão de Pózdnichev é um
monólogo narrativo caracterizado pela recentemente encontrada certeza em
si próprio, a função de rever e escrutinar a sinceridade da verdade enunciada
por Pózdnichev tem, faute de mieux, de recair sobre o seu ouvinte. o ouvinte,
porém, não desempenha tal função, apoiando implicitamente a noção de
verdade que tolstói apresenta no «Posfácio»: que a verdade é o que é, que
há coisas mais importantes a fazer do que escrutinar as maquinações da von-
tade em jogo naquele que profere a verdade. esta posição autoritária nega,
em nome de uma verdade mais alta, a relevância de interrogar o interesse que
o confessando tem em contar a verdade à sua maneira: qualquer que seja a
vontade por detrás da confissão (em última instância, pensava a Condessa
tolstói, a vontade de tolstói de a atingir), a verdade transcende a vontade
que lhe subjaz. a verdade também transcende a suspeita de que «a verdade
que transcende a vontade que lhe subjaz» possa ser desejada em benefício
próprio. Por outras palavras, a posição assumida n’A Sonata de Kreutzer, quer
no quadro interpretativo com que tolstói a rodeia, quer na sua própria falta de
munição contra outras leituras não autorizadas, outras verdades — falta essa
que deveremos ler, em última análise, como uma forma de desdém e descon-
sideração — é uma posição que impede a dúvida pessoal e a auto-análise em
nome de uma verdade autónoma.
uma vez que o movimento básico da reflexão sobre si mesmo é um
movimento de dúvida e questionamento, a verdade que o eu introspectivo
declara a si próprio é sempre, por natureza, provisória. esta ausência de um
carácter definitivo é naturalmente vivida com particular angústia num escritor
tão orientado para a verdade como tolstói. o nó infindável da autoconsciência
transforma-se num nó górdio. Mas se este não pode ser afrouxado, há mais
do que uma forma de o cortar. «o homem corta o nó górdio da sua vida,
e mata-se com o simples fito de escapar das tortuosas contradições internas

15
produzidas por uma forma de consciência inteligente, levada a um extremo
de tensão na nossa época», escreve tolstói em 188718. alternativamente, o
homem pode cortar o nó anunciando o fim da dúvida em nome da verdade
revelada. Mas esta manobra, seguida por tolstói n’A Sonata de Kreutzer,
levanta o seu próprio problema. Pois qualquer que seja a autoridade adstrita
à confissão num contexto secular, ela deriva do estatuto do confessando
como um herói do labirinto disposto a confrontar o pior dentro de si próprio
(rousseau afirma-se como tal). um confessando que não duvida de si quando
há óbvias razões para o fazer (como é o caso de Pózdnichev) não é melhor do
que um que recusa duvidar por a dúvida não ser proveitosa. Nenhum deles é
herói, nenhum confessa com autoridade.

Rousseau
o impacto provocado em tolstói pela primeira leitura de rousseau é bem
conhecido. Por algum tempo, quando jovem, usou pendurada ao pescoço uma
medalha com o retrato de rousseau. «Haveria uma certa justiça», escreve
zenkovsky, «em interpretar todas as ideias de tolstói como variações do seu
rousseaunismo — tão profundamente este rousseaunismo o influenciou até
ao final da vida»19. as Confissões de rousseau começaram por impressionar
tolstói pelo seu «desprezo pelas mentiras humanas, e o amor à verdade» que
revelavam, ainda que mais tarde ele transmitisse a Máximo Gorki o veredicto
de que «rousseau mentia e acreditava nas suas mentiras»20. o terreno da
verdade, do autoconhecimento e da sinceridade, a que tolstói dedica tanta da
sua vida de escrita, foi traçado por rousseau, e só pontualmente tolstói vai
mais longe do que rousseau na sua exploração.
as Confissões começam com a declaração: «Vou empreender uma coisa
sem exemplo […]. quero mostrar aos meus semelhantes um homem em
toda a verdade da natureza, e esse homem serei eu.» rousseau prossegue
imaginando-se a apresentar-se perante Deus, com o livro nas mãos, e a dizer:
«Mostrei-me tal qual fui: desprezível e vil, quando o hei sido; bom, generoso,
sublime, quando o hei sido: revelei o meu íntimo.»21 a tarefa a que rousseau
se propõe é a da total revelação da sua pessoa. Contudo, poderíamos ao
mesmo tempo questionar-nos como é que qualquer outro leitor do livro da
vida de rousseau, salvo Deus omnisciente, pode saber que ele contou de facto
a verdade.
a primeira defesa de rousseau é passar o teste que Montaigne falha:
enquanto Montaigne «finge confessar os seus defeitos», mas confessa apenas
aqueles que são «amáveis» (segunda Parte, livro X, 499), ele, rousseau, está
preparado para confessar defeitos que o envergonham, como o prazer sensual
que sente quando uma mulher lhe bate (Primeira Parte, livro i, 27). esta
defesa, claro está, não responde à acusação de que ele pode acreditar dizer

16
a verdade e, no entanto, estar iludido. Neste ponto, a sua resposta é que o
método das Confissões é o de detalhar «tudo o que me aconteceu, tudo o que
fiz, tudo o que pensei, tudo o que senti», sem nenhuma estrutura de interpre-
tação: «pertence [ao leitor] reunir estes elementos e determinar o ser formado
por eles: o resultado deve ser a sua obra» (Primeira Parte, livro iV, 175). e se
esta resposta parece evasiva (se não responde à acusação de memória selectiva,
por exemplo), a posição de rousseau é a seguinte:

Posso cometer omissões nos factos, transposições, erros de datas; não posso,
porém, enganar-me a respeito do que senti, nem a respeito daquilo que os meus
sentimentos me levaram a fazer […]. o objectivo próprio das minhas confissões
é fazer conhecer exactamente o meu íntimo em todas as situações da minha
vida. Foi a história da minha alma que eu prometi, e para a escrever fielmente
não necessito doutras memórias; basta-me entrar dentro de mim, como fiz até
aqui. (segunda Parte, livro Vii, 330)

a posição de rousseau é, pois, a de que a auto-ilusão a respeito de uma


recordação actual é impossível, uma vez que o eu é transparente para si pró-
prio. o autoconhecimento actual é um dado (donnée).
Como funciona esta posição na prática? Voltemos ao muito discutido epi-
sódio do roubo da fita, contado não apenas no segundo livro das Confissões,
mas também no quarto dos Devaneios. No tempo em que trabalha como
criado, rousseau rouba uma tira de fita. a fita é encontrada na sua posse.
rousseau alega que a criada Marion lhe deu a fita, e repete a acusação na pre-
sença dela. tanto rousseau como Marion são despedidos. rousseau comenta:
«não é provável que depois disso ela tenha podido facilmente empregar-se
bem»; obscuramente, interroga-se se ela não se terá suicidado (Primeira Parte,
livro ii, 108).
ainda que o remorso tivesse pesado sobre si durante quarenta anos,
escreve rousseau em 1766, nunca até então conseguira confessar a sua culpa.
o acto fora «atroz», e o espectáculo da pobre Marion, falsamente acusada,
só não comoveria um «bárbaro coração». ainda assim, o propósito das
Confissões ficaria por alcançar se ele não tentasse agora apresentar a verdade
interior da sua história. e a verdade interior é que «a acusei de ter feito o que
eu queria fazer», ou seja, acusou Marion de lhe ter dado a ele a fita, porque
a sua «intenção» era dar-lhe a fita a ela. quanto à incapacidade de reparar a
mentira quando confrontado com Marion, resultou de uma «vergonha inven-
cível». «eu mal havia saído da infância»: viu-se ultrapassado pela situação
(Primeira Parte, livro ii, 109).
Paul de Man distingue dois veios nesta história: um elemento de con-
fissão cujo propósito é revelar uma verdade verificável, e um elemento de

17
justificação cujo propósito é convencer o leitor de que as coisas são e foram
como rousseau as vê22. ainda que De Man erre ao afirmar que a verdade que
confessamos deve ser, por princípio, verificável (podemos confessar pensa-
mentos impuros, por exemplo), a sua distinção entre confissão propriamente
dita e justificação permite-nos ver por que razão confissões do tipo das que
encontramos em rousseau levantam problemas quanto à certeza que as con-
fissões de facto não suscitam. o acto do roubo foi mau, diz-nos rousseau,
mas a intenção subjacente era boa, e, portanto, o acto não é inteiramente
condenável. similarmente, o acto de culpabilização de Marion foi mau, mas
foi provocado pelo medo, sendo assim em certa medida desculpável. a auto-
-análise de rousseau termina neste ponto. Mas o processo de qualificação que
iniciou pode ser continuado. Como pode ele estar certo de que a parte de si
que recorda a boa intenção por detrás do acto mau não está a construir essa
intenção pós-facto para o desculpar? Por outro lado (podemos imaginar que o
autobiógrafo assim prossiga), devemos ter o cuidado de dar ao bom em nós
tanto crédito como ao mau: o que existe em mim que possa desejar minimizar
as boas intenções rotulando-as de racionalizações pós-facto23? Mas não é uma
pergunta como esta justamente o tipo de pergunta que eu faria se estivesse a
tentar proteger-me do conhecimento do pior em mim? e no entanto…
a fim de chegar à «verdadeira» verdade sobre a história da fita, De Man
passa de um balanço das reivindicações de boas intenções contra as dos maus
actos para um escrutínio da linguagem da confissão. «a óbvia satisfação no
tom e na eloquência da passagem […], o ágil encadeamento de hipérboles
[…], o manifesto deleite com que o desejo de se esconder vai sendo reve-
lado» — todas estas características de tom indicam que «aquilo que rousseau
realmente quer não é nem a fita nem Marion, mas a exposição pública que,
de facto, obtém». tanto o roubo como a culpabilização tardia mascaram o
«verdadeiro» desejo que rousseau tem de se exibir. e se esta exibição é o seu
verdadeiro motivo, então, quanto mais crime houver, mais encobrimento e
mais demora na revelação, melhor. o desejo «verdadeiramente vergonhoso»
que rousseau tem demasiada vergonha de confessar é o desejo de se expor,
um desejo a que sacrifica Marion. e, sublinha De Man, este processo de ver-
gonha e exposição, como o processo de confissão e qualificação, implica uma
regressão infinita: «cada novo estágio de desvelamento sugere uma vergonha
mais profunda, uma nova impossibilidade de revelar e uma maior satisfação
em contornar esta impossibilidade»24.
talvez seja ingénuo da parte de De Man escrever sobre «aquilo que
rousseau realmente quer», como se fosse algo historicamente conhecível.
também pode parecer imprudente basear uma interpretação na análise
de características de estilo. a respeito deste último ponto, porém, De Man
conta com a autoridade não apenas de rousseau como dos próprios poetas

18
românticos. De uma mera posição anticlassicista inicial, entendida como uma
relação de honestidade do escritor para consigo mesmo, um substituto de
uma aprendizagem dos clássicos25, o romantismo passa rapidamente para a
fórmula de Keats: não só a verdade implica beleza, a beleza também implica
verdade. a partir daqui não estamos longe da posição de que a poesia cria as
suas próprias e autónomas normas de verdade26.
a noção de que o artista cria a sua própria verdade assume uma forma
particularmente radical nas Confissões, uma vez que rousseau está a trabalhar
num meio — a autobiografia — com vínculos mais fortes à história e aos
critérios referenciais de verdade do que à poesia. Podemos convenientemente
traçar os estágios através dos quais rousseau se aproxima desta posição se
seguirmos o tema do exibicionismo nas Confissões.
No iii livro, rousseau descreve uma série de actos de exibicionismo
sexual que praticou em jovem. a descrição destes actos é evidentemente ela
mesma um tipo de exibicionismo. que motivo têm em comum estas duas for-
mas de revelação pessoal? Jean starobinski sugere uma resposta: ambas repre-
sentam um recurso ao «poder mágico» da «sedução imediata»: o sujeito
alcança os outros sem sair de si mesmo; mostra-se como é, permanecendo ele
mesmo e no interior de si mesmo27.
De facto, as revelações de rousseau têm sempre o propósito de lhe
assegurar amor e aceitação. a revelação propicia a verdade sobre o eu, uma
verdade que os outros podem ser persuadidos a ver. assim, e nas palavras
de starobinski, cuja análise do exibicionismo de rousseau aqui sigo, «as
Confissões são, no essencial, uma tentativa de rectificar o erro dos outros e não
a investigação de um temps perdu. o interesse de rousseau […] começa com
a questão: Por que razão este sentimento interior […] não encontra eco numa
atribuição de reconhecimento imediato?» Para que esta intenção persuasiva
possa ser levada a cabo, terá de ser inventada uma linguagem (écriture) que
apresente o sabor único da experiência, uma linguagem «suficientemente
flexível e variada para expressar a diversidade, as contradições, os mínimos
pormenores, as minúsculas nuances, o choque de ínfimas percepções cuja tessi-
tura constitui a existência única de Jean-Jacques»28. o comentário do próprio
rousseau sobre este projecto estilístico é o seguinte:

escreverei sempre o que me ocorrer, mudarei [o meu estilo] seguindo o


meu humor, sem escrúpulos, expressarei cada coisa tal como a sinto, como a
vejo, sem elaboração, sem desconforto, sem me embaraçar com a confusão resul-
tante. entregando-me simultaneamente à memória da impressão recebida [no
passado] e ao sentimento presente, pintarei duplamente [je peindrai doublement]
o estado da minha alma.29

19
o imediatismo que a linguagem de rousseau projecta é concebido como
a garantia da verdade do passado que reconstrói. Já não é uma linguagem
que domina o seu assunto como ocorre com a linguagem do historiador.
trata-se, em vez disso, de uma linguagem ingénua que revela o confessando no
momento da confissão, revelando em simultâneo o passado que confessa —
um passado necessariamente tornado incerto. Nos termos de starobinski,
passamos do domínio da veracidade, em que a confissão é ainda objecto de
verificação histórica, para o domínio da autenticidade. a autenticidade não
exige que a linguagem reproduza a realidade; exige sim que a linguagem mani-
feste a sua «própria» verdade. a distância entre o eu que escreve e a origem
dos sentimentos sobre os quais escreve é abolida — sendo esta abolição o que
distingue autenticidade de sinceridade —, já que essa origem é sempre o aqui
e o agora. «De facto, tudo acontece num presente tão puro que o próprio
passado é revivido como sentimento presente.»30 o primeiro pré-requisito é,
portanto, ser-se fiel a si mesmo. o eu arrisca-se a não ser fiel a si mesmo se vive
numa distância reflexiva relativamente a si próprio (uma inversão significativa
dos valores da autobiografia).
Desta forma, a própria linguagem torna-se para rousseau o ser do
autêntico eu, e o apelo a uma «verdade» exterior é posto de lado. além
disso, o único tipo de leitor que pode ajuizar sobre a verdade e a falsidade em
rousseau, enquanto aceita — ainda que provisoriamente — as premissas do
seu projecto confessional, é um leitor como De Man, que procura detectar
momentos inautênticos em rousseau através de momentos inautênticos na
sua linguagem. a análise de De Man ao episódio da fita depende da premissa
de que a confissão trai inautenticidade sempre que o confessando deriva para
a linguagem do outro. assim sendo, e ainda que De Man acuse rousseau de
se iludir com base na «satisfação» que detecta no seu tom, um «deleite»
nas suas próprias revelações, a satisfação e o deleite são eles mesmos identifi-
cáveis na «eloquência» e no «ágil encadeamento de hipérboles», ou seja, em
características de linguagem que não pertencem a rousseau. rousseau não está
a falar (por) si mesmo; alguém fala através dele31.
sem contestar esta identificação da autenticidade com a verdade, dir-
-se-ia que temos tão poucas hipóteses de chegar a uma segunda leitura das
Confissões como de chegar a uma segunda leitura d’A Sonata de Kreutzer que
não contestasse a verdade autoritária de tolstói. De Man só pode oferecer uma
segunda leitura do episódio da fita na medida em que detectou e explorou
uma fissura no texto, um lapso de autenticidade. enquanto a sua linguagem
lhe pertencesse, rousseau pareceria continuar a ser o único autor da sua
verdade. Podemos mostrar, no entanto, que há uma via alternativa para uma
segunda leitura do texto de rousseau, que passa por explorar momentos quer
de inconsistência quer de um falso estilo. Gostaria, para isso, de mencionar

20
uma passagem em que rousseau discute a sua atitude para com o dinheiro
(Primeira Parte, livro i, 49-53).
rousseau apresenta-se como um homem de «paixões muito ardentes»
que, dominado pela emoção, é capaz de ser «descarado, violento, intrépido».
Mas os surtos são normalmente breves, caindo logo depois em «indolência,
timidez», dominado pelo «receio e a vergonha», a tal ponto embaraçado
pelos olhares dos outros que gostaria de se esconder. e não apenas os seus
desejos são dominados por uma natural indolência e timidez: o âmbito dos
seus gostos também é limitado. «Nenhum dos meus gostos dominantes con-
siste em coisas que se comprem», escreve, «o dinheiro envenena-os a todos».
«Mulheres conseguidas a preço de dinheiro perderiam para mim todos os seus
encantos; duvido mesmo que os pudesse aproveitar.» «É a mesma coisa com
todos os prazeres ao meu alcance; se não são gratuitos, acho-os insípidos.»
Porque é que o dinheiro envenena o desejo? a explicação oferecida por
rousseau é a de que, para si, a troca é sempre injusta. «queria obter uma coisa
de boa qualidade: com o meu dinheiro estou certo de que é má [je suis sûr de
l’avoir mauvaise]. Compro caro um ovo fresco — está podre; um lindo fruto
— é verde; uma rapariga — está iscada.»
esta primeira explicação, que culpa o ovo ou a fruta ou a rapariga, não é
sustentada pelos factos (a única rapariga que rousseau alguma vez compra,
não está «iscada»; pelo contrário, é rousseau que é impotente32). a expressão
«estou certo de que é má» é mais reveladora: em comparação com aquilo
que quer, aquilo que compra (e não aquilo que obtém) será certamente podre/
verde/iscado. «se [os prazeres] não são gratuitos, acho-os insípidos». a pro-
fecia de que aquilo que compra será certamente mau acaba por se cumprir.
rousseau dá agora exemplos de como experiencia a transacção da com-
pra. aproxima-se de uma pastelaria e avista umas mulheres rindo e fazendo
entre si troça do «pequeno guloso». Vai a uma loja de frutas, mas a sua miopia
torna todos os que passam em «gente conhecida». «em qualquer parte me
sinto intimidado, detido por qualquer obstáculo; o desejo aumenta com a timi-
dez, e volto por fim para casa como um idiota, devorado de desejos, tendo na
algibeira com que satisfazê-los, e não tendo ousado comprar coisa alguma.»
o que é que os olhares à sua volta ameaçam reconhecer e ridicularizar
sempre que ele entra numa loja? aquilo que quer (comprar)? o acto de pedir?
a oferta de dinheiro? ao invés de procurar uma resposta, rousseau faz um
típico movimento de inflexão e recuo. Diz-nos ele que à medida que o leitor
seguir a história da sua vida e tomar conhecimento do seu «feitio, perceberá
tudo isso sem que haja insistido em dizer-lho». À síndrome na sua totalidade,
chama rousseau uma «pretensa contradição [contradiction]», nomeadamente
«a de aliar uma avareza quase sórdida com o maior desprezo pelo dinheiro».
Para a avareza, a desculpa é que «guardo [o dinheiro] bastante tempo sem

21
o gastar, por não saber empregá-lo segundo a minha fantasia [faute de savoir
l’employer à ma fantaisie]»; e distingue imediatamente a posse do dinheiro (que
«é o instrumento da liberdade») da busca do dinheiro (que «é o instrumento
da servidão»), uma distinção que nitidamente anula o vício da avareza que
acabou de admitir.
Por que razão não deseja o dinheiro? rousseau responde que o dinheiro
não pode ser desfrutado em si mesmo, ao passo que «não existe [interme-
diário] entre a própria coisa e a sua fruição. Vejo a coisa, tenta-me; se só vejo o
meio de a adquirir, não me tenta. Por isso [donc], fui e sou ainda algumas vezes
gatuno de bagatelas que me tentam e que gosto mais de roubar do que pedir».
a lógica desta passagem merece ser escrutinada. tal como starobinski
a lê, rousseau está a dar-nos um exemplo de como «o dinheiro envenena
tudo»33. Mas se parafrasearmos correctamente a lógica de rousseau, o que ela
diz é o seguinte: «eu desejo a coisa, mas não o meio de a obter; por isso, roubo
a coisa, mas não o meio» — e não: «eu desejo a coisa, mas não o meio, por-
tanto tomo (roubo) a coisa para não ter de usar o meio». À questão: «Porquê
roubar?», esta passagem não oferece melhor explicação do que «gosto mais
de roubar do que pedir». e rousseau também não leva mais longe a explora-
ção das suas atitudes face ao dinheiro, ainda que retome o tópico várias vezes
ao longo das Confissões34.
uma vez que rousseau não avança na explicação desta «aparente con-
tradição», e a iluminação que promete ao leitor acaba por nunca acontecer,
pelo menos para alguns leitores, podemos tentar dar a nossa própria expli-
cação para o complexo comportamento que descreve. atendendo menos às
suas reflexões do que aos episódios nas lojas por si descritos, notamos que
aquilo que o ofende é a abertura e a legitimidade das transacções mone-
tárias. ao entrar numa loja, dizendo «eu quero um bolo» e oferecendo
dinheiro, está a aceitar um modo de tratar o seu próprio «eu quero» que,
efectivamente, o «envenena». É trazido a público e igualado ao «eu quero»
de toda e qualquer pessoa que entra na loja, perdendo a sua singularidade;
torna-se conhecido (por todos aqueles que podem reconhecê-lo) no preciso
momento em que perde o controlo sobre os termos em que gostaria que
fosse conhecido (torna-se um desejo gasto no interior de uma escala pública
de francos e cêntimos). Para rousseau, os seus próprios desejos são recursos
conquanto permaneçam únicos, escondidos — por outras palavras, enquanto
forem potencialmente confessáveis. trazidos a público, revelam-se desejos
tão comuns como os de qualquer outro. o sistema de trocas que inquieta
rousseau, o sistema em que não aceita participar é, portanto, aquele em que
o seu desejo por uma maçã é trocado por uma maçã através do meio público
do dinheiro; pois de cada vez que uma tal troca ocorre o desejo perde valor.
Vergonha e valor são, pois, termos intercambiáveis, visto que, na economia

22
da confissão, os únicos apetites singulares, os únicos que constituem moeda
confessional, são os apetites vergonhosos. um desejo vergonhoso é um desejo
valioso e vice-versa: para um desejo ter valor tem de ter uma componente
vergonhosa. a confissão consiste num duplo movimento que se propõe gas-
tar «inconsistências», retendo o suficiente para manter a «liberdade» que
advém da posse de capital. este processo, que parcialmente revela e depois se
recolhe no seu mistério, um processo concebido para fascinar, está claramente
exemplificado nesta passagem.
se comprar é inaceitável porque submete o desejo a uma escala pública
(sendo essa a natureza do dinheiro), roubar, ainda que também revele o
equivalente do desejo através do objecto roubado, tem a compensação: a) de
substituir o desejo revelado — e já não vergonhoso — por um crime, que é
ele próprio moeda confessional; b) e de criar o mistério de alguém que rouba
embora tenha dinheiro para comprar, mistério que rousseau apresenta e a
seguir se esquiva a resolver.
Não pretendo sugerir que esta minha leitura é a verdade sobre o dinheiro
que rousseau deveria ter contado, mas não quis ou não pôde contar, tal como
não desejo propor a leitura que fiz do Pózdnichev de tolstói como a verdade
sobre Pózdnichev que o próprio não conseguiu ver. De facto, uma das funções
secundárias destas releituras é questionar a noção de verdade.
Por outro lado, parece-me existir neste ponto uma direcção mais estrita
mas mais produtiva a seguir do que a linha de argumento indicada por Jacques
Derrida de que a ideia de verdade pertence a uma certa época, a «época da
suplementaridade», ou seja, a ideia que legitima a própria prática da escrita,
por funcionar como um «ponto cego» em direcção ao qual toda a escrita
caminha, através de uma série infindável de «suplementos» que continua-
mente adiam a verdade35. as leituras de rousseau e de Pózdnichev, e as relei-
turas que delas ofereci, na medida em que estas releituras se justificaram em
nome da verdade, são certamente suplementos derrideanos; e a desconstrução
das práticas que segui relendo rousseau e Pózdnichev poderiam certamente
conduzir a «melhores» e «mais densas» novas leituras; e assim por diante,
até ao infinito. Mas o argumento de Derrida é relevante para toda a escrita com
uma orientação para a verdade, enquanto o ponto que eu quero defender é que
a possibilidade de ler a verdade «por detrás» de uma confissão genuína tem
implicações peculiares para o género confessional.
Voltando à Sonata de Kreutzer e às Confissões de rousseau podemos notar
que, em cada caso, passámos por uma progressão similar. um crime é confes-
sado (assassínio, roubo); uma causa, razão ou origem psicológica é proposta
para explicar o crime; finalmente, uma releitura da confissão produz uma
explicação «mais verdadeira». a pergunta que devemos fazer agora é: qual
deverá ser a resposta do confessando perante estas ou quaisquer outras correc-

23
ções «mais verdadeiras» da sua confissão? a resposta, quer-me parecer, é que
na medida em que uma nova e «mais profunda» verdade é reconhecida como
verdadeira, a resposta do confessando deve conter um elemento de vergonha.
Pois, ou o confessando estava consciente dessa verdade mais profunda mas
escondeu-a; ou não tinha dela consciência (mesmo que agora a reconheça) e,
neste caso, a sua competência como confessando é posta em questão: aquilo
que estava a ser oferecido como segredo, o capital da sua confissão, não era o
verdadeiro segredo, era um capital falso, tendo-se consumado de facto uma
intenção de iludir, que constitui novo motivo de confissão36.
até aqui considerei o caso hipotético de um Pózdnichev ou de um
rousseau que, confrontados com uma leitura das suas confissões que produz
uma verdade «mais profunda» do que aquela que admitiram, reconhecem a
nova verdade e mudam a sua posição. e, nesse caso, podemos perguntar-nos, a
partir de que ponto o confessando insistirá em manter a sua posição? Pois, em
princípio, se pudemos oferecer uma releitura da sua história, poderemos ofe-
recer uma segunda. se o confessando está em princípio preparado para mudar
a sua posição com cada nova leitura, conquanto possa ser persuadido de que
é «mais verdadeira» do que a anterior, então não é mais do que um biógrafo
do eu, um construtor de hipóteses sobre si próprio que podem ser melhoradas
por outros biógrafos. e, nesse caso, a sua confissão não tem mais autoridade
do que um relato construído por qualquer outro biógrafo: pode proceder do
conhecimento, mas não procede do autoconhecimento.
se o confessando cede ou não à nova verdade sobre si mesmo depende
da natureza do compromisso com a confissão original. quanto mais profun-
damente se tiver comprometido com a verdade desta confissão, mais pro-
fundamente esta terá passado a fazer parte da sua identidade pessoal. Ceder
subsequentemente à nova verdade implica danificar essa identidade. No caso
de um Pózdnichev ou de um rousseau o dano é particularmente agudo, já que
parte do seu ser é ter-se tornado um confessando, um narrador da verdade.
alternativamente, o confessando pode recusar ceder à nova verdade,
adoptando assim a posição do sujeito auto-iludido que prefere não assumir a
«verdadeira» verdade sobre si mesmo, e prefere não assumir esta preferência
e assim por diante até ao infinito37. Neste caso, como poderá identificar a
diferença entre ele próprio e o confessando auto-iludido, o confessando cuja
verdade é uma mentira, já que ambos «acreditam» conhecer a verdade?
uma terceira alternativa é confessar com «espírito de abertura», decla-
rando desde o início que aquilo que se admite como a verdade pode não ser a
verdade. Mas há algo de literalmente impudente nesta posição. se avançamos
com a consciência de que as transgressões de que somos «verdadeiramente»
culpados podem ser mais pesadas do que aquelas de que nos acusamos,
avançamos igualmente conscientes de que as transgressões de que somos

24
«verdadeiramente» culpados podem ser mais suaves do que aquelas de que
nos acusamos (rousseau é explícito sobre este último tipo de consciência
no seu próprio caso: veja-se a nota 23). estar consciente de si mesmo nesta
situação — algo que procede inevitavelmente de se ter um espírito aberto
quanto à questão da sinceridade própria — é já matéria de confissão; estar
consciente de que esta não é uma posição de culpa (uma vez que é inevitável)
constitui matéria para nova vergonha e nova confissão; e assim por diante até
ao infinito.
aquilo que escrevi até este momento indica que, quando o sujeito está
num nível elevado de autoconsciência e pronto a duvidar de si próprio, o pro-
jecto confessional levanta problemas intrincados e aparentemente intratáveis
sobre a sinceridade, problemas cujo factor comum parece ser uma regressão
ao infinito da autoconsciência e da dúvida de si. Não é de todo claro que estes
problemas fossem visíveis para o rousseau das Confissões ou para o tolstói
d’A Sonata de Kreutzer. Mas confiar que a evidência dessa consciência tem de
emergir no texto, quando justamente não é do interesse de nenhum dos auto-
res admitir tal consciência, seria imprudente. tudo aquilo que podemos dizer
nesta altura é que os problemas não são enunciados. Por enquanto estamos na
situação de Hume, que, confrontado com um interlocutor que alega conheci-
mento não mediado de si próprio (e, portanto — embora isto não esteja em
Hume —, conhecimento da sua própria verdade), não tem alternativa senão
interromper a discussão por falta de um substrato comum38.

Dostoievski
as confissões percorrem a obra de Dostoievski. Nos casos mais simples,
Dostoievski usa a confissão como um modo de deixar uma personagem
expor-se, contar a sua própria verdade. a confissão do Príncipe Valkóvski
em Humilhados e Ofendidos (1861), por exemplo, é pouco mais do que um
mecanismo expositivo deste tipo39. Porém, mesmo neste romance precoce,
um elemento de gratuitidade penetra na confissão: a liberdade da revelação
não é estritamente requerida pelas exigências do enredo ou da motivação; a
franqueza não é um dos traços do carácter da personagem. Nos romances tar-
dios o nível de gratuitidade eleva-se a tal ponto que já não podemos conceber
a confissão como um mero mecanismo expositivo; a própria confissão, com
os respectivos problemas psicológicos, morais, epistemológicos e, finalmente,
metafísicos, passa a ocupar o primeiro plano. ainda que noutros contextos
críticos possa ser produtivo tratar a confissão nos romances maiores como, por
um lado, uma forma de masoquismo ou um vício que Dostoievski pensa ser
típico da época40 ou, por outro, como uma das formas genéricas congregadas
para formar o próprio romance dostoievskiano41, proponho isolar aqui três
dos mais importantes episódios confessionais — de Cadernos do Subterrâneo,

25
O Idiota e Os Demónios — e perguntar como é resolvido o problema da fina-
lização quando a autoconsciência tende a promover a confissão interminavel-
mente.
os Cadernos do Subterrâneo (1864) dividem-se em duas partes, a primeira
uma dissertação sobre a autoconsciência, a segunda uma história do passado
do narrador. ainda que ambas as partes possam pensar-se como confissões,
são confissões de tipos distintos, sendo a primeira uma revelação de per-
sonalidade e a segunda a revelação de um episódio vergonhoso. Porém, na
primeira parte — que é também a mais teórica —, a revelação é subsumida
numa discussão mais vasta sobre se será possível contar a verdade sobre si
próprio na era da autoconsciência ou da «hiperconsciência», a doença «do
nosso desgraçado século XIX» (assim lhe chama o narrador anónimo) e de são
Petersburgo, «a cidade mais abstracta e mais premeditada do planeta». as
regras da «hiperconsciência», que ditam uma infindável consciência da cons-
ciência, fazem do homem hiperconsciente a antítese do homem normal. sem
qualquer certeza de base, não pode tomar decisões e agir. Nem sequer pode
agir sobre a hiperconsciência, detendo-a numa ou noutra posição, já que esta
obedece a leis próprias. tão-pouco pode tomar-se como um agente responsá-
vel, já que aceitar ser responsável por si mesmo é uma posição final. (isto não
significa, claro, que não se culpe de nada: pelo contrário, culpa-se de tudo. Mas
fá-lo num movimento reflexo que tem origem nas leis da hiperconsciência42.)
e chega de teoria. Mas antes de embarcar nas suas próprias memórias
vergonhosas, o herói-narrador invoca o precedente de rousseau.

É possível, ou não, ser-se absolutamente sincero pelo menos consigo mesmo e


não ter medo de toda a verdade? […] Heine afirma que as autobiografias sinceras
são quase impossíveis e que, de certeza, qualquer homem mentirá ao falar de si
mesmo. Na opinião dele, o rousseau, por exemplo, caluniou-se a si mesmo nas
suas confissões, e caluniou-se até intencionalmente, por vaidade. estou conven-
cido de que Heine tem razão. (63-64)

Por outro lado, no seu caso, não terá leitores e, portanto, afirma, não terá
a tentação de mentir.
o projecto de não mentir é submetido ao mais rigoroso teste na história
das suas relações com a jovem prostituta lisa. após uma noite de «depravação
[…] sem amor», conta-nos, acorda na cama dela e vê que lisa o olha inten-
samente. sentindo-se incomodado, começa a falar sem reflectir, instando-a
a uma reforma moral e oferecendo-se para ajudá-la. Por que motivo o faz?,
questiona-se mais tarde. e explica-o como «um jogo», o jogo de «ter-lhe
revirado a alma, ter-lhe literalmente quebrado o coração». Contudo, tem um
pressentimento de que aquilo que o arrasta «não é [só] jogo» (132, 152).

26
No dia seguinte apodera-se de si a «verdade ignóbil» de que fora sen-
timental. a sua reacção é começar a odiar lisa; ainda assim, não consegue
esquecer o «sorriso tão lastimoso, tão forçado, tão torcido de trejeitos» com
que o fitava. «qualquer coisa subia, subia sem parar do fundo do coração,
doía-me, recusava amainar» (156, 161, 160).
Pouco depois, lisa visita-o para aceitar a sua promessa. Num espírito de
«humilhação» o narrador inicia a sua cruel confissão. Durante todo o tempo
em que exprimia belos sentimentos, afirma, estava no fundo a fazer troça
dela. Pois, tendo sido humilhado pelos amigos, voltara-se por sua vez para ela
como objecto de humilhação. tudo o que queria era o «jogo». agora lisa
pode «desaparecer». Com certeza que é capaz de perceber que ele nunca lhe
perdoará ter vindo ao seu apartamento e visto as condições miseráveis em que
vive? está destinado a fazê-la sofrer, já que é «o mais reles, ridículo, o mais
mesquinho, o mais estúpido, o mais invejoso de todos os vermes do mundo»;
e pelo facto de lhe extrair esta confissão abjecta, por fazê-lo abrir-se como «só
uma vez na vida as pessoas se abrem», ela terá de ser ainda mais castigada; e
assim por diante (175-78).
inicialmente lisa é apanhada de surpresa pelo «cinismo» dele; em
seguida, e de forma surpreendente, abraça-o, como se se tivesse apercebido de
que também ele é infeliz. ele sente-se avassalado por uma onda de emoção.
«Não me deixam… Não consigo ser… bom!», soluça nos braços dela. quase
simultaneamente, porém, começa a sentir vergonha por estar na posição do
«humilhado, esmagado» (176-79). No seu coração irrompe

uma outra sensação… a do poder, a da posse. os meus olhos brilharam de pai-


xão, apertei-lhe as mãos com todas as minhas forças. Como a odiava, como era
atraído para ela nesse instante! uma sensação reforçava a outra. isso parecia-me
quase como a vingança! No rosto dela apareceu primeiro uma espécie de pasmo,
depois o medo, mas só por um instante. apertou-me contra ela, com ardor e
paixão. (180)

Na «febre de vacilações» (25) típica da hiperconsciência, os seus próxi-


mos movimentos são praticamente previsíveis. 1) Faz questão de dar dinheiro
a lisa, indicando-lhe que, a seus olhos, ela continua a ser uma prostituta; e
então, quando lisa parte, 2) ele corre atrás dela «com vergonha e desespero»,
reflectindo, porém, 3) que a verdadeira causa da sua vergonha é o aspecto
«livresco» do seu gesto. Desiste da perseguição, convencendo-se de que 4) um
sentimento de ultraje «elevá-la-á e purificá-la-á». Fica satisfeito com esta
formulação e 5) despreza-se por se sentir satisfeito (183-85).
a história de lisa termina neste ponto: «Não me apetece mais escrever
‘do fundo do subterrâneo’», anuncia o narrador. Porém, o seu texto é seguido

27
por uma nota de «autor»: «não é aqui que terminam os ‘cadernos’ deste
homem paradoxal. Foi mais forte do que ele, continuou. Mas parece-nos, a nós
também, que é aqui que podemos parar» (187).
o sumário que fiz da confissão a «lisa» não é desinteressado. enfatizei
os momentos em que algo sobrevém das profundezas do narrador que ele
não compreende, nem sequer retrospectivamente, quinze anos mais tarde.
a Primeira Parte já nos preparara para uma confissão em que nenhum motivo
escaparia à luz da hiperconsciência e na qual rousseau seria ultrapassado em
matéria de franqueza. esses momentos em que o narrador não se compreende
a si mesmo têm, pois, um estatuto peculiar: ou não foram entendidos quinze
anos antes quando era um actor da história, e são registados sem questiona-
mento da sua parte, agora no papel de confessando; ou recebem agora uma
explicação retrospectiva, mas uma explicação estranha, não tanto por ser falsa
como por ser final, ou seja, por não estar sujeita à regressão infinita da auto-
consciência (darei um exemplo de seguida).
especificamente, poderíamos questionar a confissão a «lisa» nos se-
guintes pontos: a) se humilhar lisa é um «jogo», o que motiva o narrador que
«não é apenas o jogo»? b) «sentia que algo se recusava a morrer no fundo
de mim, no fundo do meu coração… qualquer coisa subia, subia sem parar do
fundo do coração, doía-me, recusava amainar. regressei a casa completamente
transtornado; como se tivesse cometido um crime» (159-60). qual é o nome
desse «algo», e qual a natureza do crime? c) «Não me deixam… Não consigo
ser… bom!», soluça, proferindo palavras que parecem provir de um estranho
dentro de si. o que significa essa frase? uma leitura possível é que o narrador
continua o seu «jogo» com lisa, fingindo-se atormentado e infeliz. outra
leitura é que a voz que vem de dentro é a voz reprimida de um eu melhor, um
eu que «eles» não permitem que aflore.
d) No abraço de lisa, o narrador passa por uma rápida sucessão de sen-
timentos, notáveis pela sua ambivalência. ainda que cripticamente expressos,
estes incluem: triunfo por ter arrancado a confissão do seu peito sem sofrer
uma rejeição; um desejo de selar esta vitória com a posse sexual da rapariga;
e uma vontade persistente de a humilhar ainda mais. Não há dúvida de que
ambos apresentam as características próprias do casal sadomasoquista, tão
comum em Dostoievski. Mas a leitura que acabo de oferecer assenta apenas
no relato que o narrador faz do seu próprio estado interior e daquilo que lê no
rosto de lisa; e o que ela lê no rosto dele (que ele, por sua vez, lê no rosto dela)
desperta na rapariga primeiro espanto e terror, e finalmente uma resposta arre-
batada. estará a compreendê-lo mal, vendo «verdadeiro» amor onde deveria
ver um desejo sádico? Num certo sentido, sim; o problema da ridicularização
a que ele a sujeita é que lisa é uma má intérprete e desde o início o tomou por
sincero, quando ele nunca o foi. Porém, devemos lembrar-nos que, enquanto

28
escritor da sua própria história, ele está numa posição privilegiada para deter-
minar leituras. as suas «Notas» ditam uma interpretação segundo a qual lisa
se deixa enganar, quer no bordel quer no apartamento dele. e ele não é apenas
o escritor da sua própria história; também domina os dois diálogos com lisa,
interrogando-a, dizendo-lhe quem ou o que é que ela é. um único juízo dela
sobre ele nos é reportado: «bem, você [fala] como num livro» (145). quanto
ao resto, a visão que ela tem dele é registada em dois olhares: os «dois olhos
abertos, que me fitavam, curiosos, obtusos», com que se depara ao despertar,
no quarto dela (132), e o olhar que ela lhe dirige, no apartamento dele, lendo
os sinais de paixão no seu rosto. escasso material para inferir a maneira como
ela o entende. ainda assim, podemos fazer uma ideia do que os seus dois olhos
abertos vêem: um homem que deu o seu dinheiro e passou duas horas a ter
sexo com ela, «sem amor, [de forma] obscena, escandalosa» (132). o comen-
tário dela — de que ele fala como um livro — é igualmente acertado. Podemos
então considerar que ela o interpreta mal quando ele lhe diz que deseja que
escape da prostituição e, uma vez mais, quando lhe diz que sente paixão por
ela (e talvez mesmo que precisa dela)? Parece de facto existir a possibilidade de
que lisa conheça, ou pelo menos intua, uma verdade sobre o narrador que este,
enquanto relator da sua própria história, não possa permitir-se reconhecer: e
que, do ponto de vista (privilegiado) dele, os três momentos de percepção que
atribui a lisa constituam falhas na textura da sua história.
seria ingénuo propor uma leitura da história — preenchida a partir dos
três momentos com lisa e desses momentos em que uma voz fala esponta-
neamente dentro de si — em que o herói emerge como sendo «na verdade»
um jovem infeliz e atormentado que anseia pelo amor de uma mulher, mas
que tem medo de expor esses anseios. Há uma ironia no âmago de Cadernos
do Subterrâneo, mas essa ironia não reside no facto de o herói não ser tão mau
como afirma ser. a verdadeira ironia é que, prometendo uma confissão que
supere rousseau em veracidade, uma confissão que ele próprio considere digna
da extrema hiperconsciência que o aflige, a sua confissão revele sobretudo a
impotência da confissão ante o desejo do eu de construir a sua própria verdade.
Vale a pena voltar à Primeira Parte dos Cadernos para ver o que o herói
da história tem a dizer sobre o desejo. De acordo com a opinião esclarecida
dos anos 1860, diz-nos o texto, o desejo obedece a uma lei segundo a qual o
homem deseja de acordo com o seu benefício próprio43. Mas a verdade é que,
de vez em quando, o homem deseja o que lhe é nocivo, justamente para «agir
segundo a sua vontade», sem ser coagido por nenhuma lei. e deseja libertar-se
da determinação a fim de poder afirmar que «o que o homem precisa é só de
uma vontade independente, custe o que custar e leve onde levar essa indepen-
dência» (42, 43). o desejo primordial é, assim, o desejo de uma liberdade que
o herói identifica com uma individualidade única.

29
a questão que podemos colocar-nos de imediato é a seguinte: como pode
o sujeito saber que as escolhas que faz, mesmo as escolhas «perversas» que não
lhe trazem qualquer benefício, são verdadeiramente livres de determinação?
Como pode estar certo de não ser escravo de um padrão de escolhas perversas
(um padrão patológico, talvez), cujo desígnio é visível para todos à excepção de
si próprio? a hiperconsciência não lhe dará uma resposta, já que, nos Cadernos
do Subterrâneo, a hiperconsciência é uma doença. o seu aspecto doentio reside
justamente em alimentar-se de si própria, encontrando por detrás de cada
motivo outro motivo, por detrás de cada máscara outra máscara, até se chegar
ao derradeiro motivo, que deverá permanecer mascarado (de outra forma a
regressão infinita cessaria, a doença seria curada). Podemos considerar este
derradeiro motivo como o próprio motivo do desmascaramento. aquilo que o
homem do subterrâneo não poderá saber dessa auto-interrogação é por que
razão quer dizer a verdade sobre si mesmo; e existe a possibilidade de que a
verdade que conta sobre si mesmo (a verdade perversa, a verdade como uma
história das perversas escolhas «livres» que fez) possa ser ela mesma uma ver-
dade perversa, uma escolha perversa feita de acordo com um desígnio invisível
para si mesmo, mas talvez visível para os outros.
estamos agora muito para além de todas as questões de sinceridade.
a possibilidade que enfrentamos é a de uma confissão feita através de um pro-
cesso implacável de autodesmascaramento, que poderá não ser ainda a verdade,
mas uma ficção autocomplacente, já que o princípio operante por detrás desta,
não examinado, inexaminável, poderá não ser um desejo de verdade, mas o
desejo de se ser de uma determinada maneira. quanto mais coerente for uma
ficção hipotética sobre o eu, menor será a possibilidade de o leitor descobrir se
a confissão é verdadeira. a sua verdade só pode ser testada quando a confis-
são se contradiz ou entra em conflito com alguma outra verdade «externa»,
verificável — duas eventualidades que um confessando cuidadoso poderá,
teoricamente, evitar. Não teríamos razões para duvidar da verdade da confissão
do homem do subterrâneo, e especificamente da sua tese sobre aquilo que, em
última instância, o define — a hiperconsciência —, não fossem determinadas
imperfeições de superfície que a própria confissão apresenta, em momentos
como esse em que o corpo sob pressão emite palavras como «não posso ser
bom», sinais de uma luta subliminar não explorada.
Não nos surpreenderia que a confissão do narrador fosse uma ficção men-
tirosa e interesseira e que a verdade reprimida irrompesse através da superfície,
particularmente em momentos de tensão, sob a forma de palpitações, insinu-
ações do inconfessado, formulações do eu mais íntimo — ou que a verdade
voltasse a ser rapidamente reprimida. o que é decepcionante em Cadernos
do Subterrâneo, se pensamos na obra como uma exploração da confissão e da
verdade, é que tenha de se apoiar, para a sua própria verdade, não apenas no

30
retorno do recalcado ao nível do sujeito da acção (o herói da história de lisa),
mas também na falta de uma censura subsequente ao nível do sujeito narrativo
(o herói que conta a sua história quinze anos mais tarde). É como se o único
processo não submetido ao escrutínio da hiperconsciência fosse o próprio pro-
cesso narrativo. ao apresentar a história das suas relações com lisa, em frag-
mentos, como a história de dois eus autónomos (permitindo a lisa expressar a
sua opinião, os seus próprios olhares), reportando a voz subterrânea que se fez
ouvir dentro dele quinze anos antes, o narrador facilita-nos a tarefa de ler outra
verdade, uma verdade «melhor» do que a que nos conta. será a ingenuidade
que permite que a voz dessa «outra» verdade não seja censurada a prova de
um secreto e tortuoso apelo ao leitor que o narrador não reconhece? Não há
dúvida de que este apresenta de forma ambivalente a questão de a sua histó-
ria ser uma confissão pública ou privada: a história torna-se um documento
«realmente» privado, mas com uma aparência pseudopública44. Porém, as
notas terminam de forma indeterminada. os paradoxos da hiperconsciência
poderiam, de facto, prosseguir indefinidamente, como afirma o autor na coda
justificativa.
ainda assim, as questões que coloquei ficam não apenas por responder
(não está na sua natureza serem respondidas), mas por explorar. o Dostoievski
dos Cadernos do Subterrâneo ainda não encontrara a solução para o problema
de como terminar a história, problema cuja resolução Michael Holquist afirma
ser a grande façanha dos seus anos de maturidade45.
O Idiota (1868-69) é, a vários níveis, um livro sobre coisas derradeiras. Faz-
-nos pensar no livro do Apocalipse e na pintura do Cristo Morto de Holbein,
na confrontação de ippolit teréntiev com a sua própria morte iminente e nas
muitas histórias sobre os últimos momentos de homens condenados. o sen-
tido generalizado de que há um limite de tempo também afecta a atitude para
com a confissão: há muita procura pelo confessor adequado e impaciência
com confissões que não são sérias.
os episódios confessionais mais marcantes n’O Idiota são o jogo de ver-
dade em casa de Nastássia Filíppovna e a «explicação» de ippolit. Há, porém,
um episódio que gostaria de abordar em primeiro lugar e que expressa alguns
dos problemas filosóficos que envolvem a confissão.
Keller irrompe «com desabafos e confissões» no quarto do príncipe
Míchkin, cheio de histórias vergonhosas sobre si próprio, clamando estar pro-
fundamente arrependido, mas ainda assim contando as suas histórias como se
delas se orgulhasse. o príncipe louva a sua «extraordinária sinceridade», mas
questiona o motivo por detrás da confissão: quereria ele pedir-lhe dinheiro
emprestado? sim, confessa Keller, «preparei a confissão […] para […] prepa-
rar o caminho e para que o senhor, condoído, me largasse cento e cinquenta
rublos. Não acha isto uma infâmia?»46

31
Verificamos que estamos no começo de uma regressão potencialmente
infinita de auto-reconhecimento e auto-rebaixamento em que a candura
satisfeita a cada nível de confissão de um motivo impuro se torna uma nova
fonte de vergonha, e cada pontada de vergonha uma nova fonte de satisfação.
o modelo é conhecido dos Cadernos do Subterrâneo e é familiar para as figuras
d’O Idiota, que rapidamente detectam o germe da vaidade no rebaixamento
que os outros fazem de si mesmos, e mal reagem com indignação quando o
mesmo defeito lhes é apontado. No âmago deste processo está um padrão
a que Míchkin chama dvoinaya mysl, literalmente «pensamentos duplos»,
muito embora possa ser mais claramente entendido como uma «volta atrás»
do pensamento, o movimento característico da hiperconsciência (284). Há em
Keller um pensamento duplo ao querer confessar-se sinceramente a Míchkin
em nome de um «desenvolvimento moral» e pretender simultaneamente
pedir-lhe dinheiro; e há uma «volta atrás» do pensamento que mina a integri-
dade da vontade de confessar quando se detecta por detrás desta uma vontade
de iludir, e por detrás desta segunda intenção um terceiro motivo (um desejo
de se ser admirado por uma certa candura) e assim por diante.
Míchkin vê assim no «pensamento duplo» uma doença que torna a
confissão incapaz de dizer a verdade e chegar a um fim. De facto, Míchkin faz
algo mais do que diagnosticar a doença: «todas as pessoas são assim», diz; ele
também experimentara pensamentos duplos. Mas o reconhecimento de que o
pensamento duplo é universal é já um pensamento duplo, como Míchkin pron-
tamente reconhece: «até me aconteceu algumas vezes pensar […] que todas
as pessoas são assim, de modo que [tak čto] comecei a desculpar-me» (o itálico
é meu). o próprio movimento de reconhecimento já o enreda na síndrome.
Vale a pena insistir neste ponto. tanto Keller como lébedev (que faz uma
confissão a Míchkin uma ou duas páginas adiante) confrontam directamente
o porquê de terem escolhido o príncipe como confessor. questões sobre o
espírito em que a confissão é feita e sobre o confessor adequado não podem
continuar a ser evitadas após o jogo das confissões (134-46), em que, depois de
confessarem os piores actos das suas vidas, os convidados acabam por se sen-
tir envergonhados e insatisfeitos, parecendo justificar-se o comentário cínico
de totski de que a confissão não passa de «gabarolice de um género espe-
cial» (134). Keller e lébedev oferecem idênticas explicações para a escolha de
Míchkin como confessor: este julgá-los-á «com humanidade» (po-čelovečeski,
«humanamente»). Para além disso, não sendo inteiramente um homem, mas
um idiota, um «ingénuo» — como Keller explicitamente lhe chama (285) —,
um rato (mys), não está comprometido com esse jogo demasiado humano de
usar a verdade para os seus próprios fins. Não se trata nem de um ser de uma
severidade divina (ainda que aglaia epantchina manifeste reservas quanto à
sua devoção à verdade, que o leva a julgar sem «ternura», 387), nem tem a

32
fraqueza humana de subjugar a verdade ao desejo. ao escolher Míchkin como
confessor, Keller e lébedev procuram, portanto — ainda que obscuramente
e por motivos «duplos», impuros —, o perdão em vez do julgamento, Cristo
em vez de Deus.
Podemos opor esta figura do confessor ideal aos convidados da festa, que
dão por si no papel de confessores da «explicação» de ippolit teréntiev. antes
mesmo de ippolit começar a leitura da sua confissão, alguns dos seus ouvintes
já formaram ideias próprias sobre aquilo que o seu acto de confissão pública,
como tal, pode implicar. Míchkin vê-o como um expediente que ippolit con-
cebeu para se forçar a levar a cabo o suicídio; rogójin, pelo contrário, vê-o
como uma estratégia de ippolit para compelir os seus ouvintes a dissuadi-lo
do suicídio. ambos, pois, consideram que a sua confissão está ao serviço não
da verdade, mas de um desejo mais profundo (morrer, viver).
quanto à confissão propriamente dita, os seus motivos vacilam de
uma forma a que já estamos habituados em Dostoievski. em primeiro lugar,
afirma ippolit, a sua confissão conterá «apenas a verdade» já que, estando a
morrer de tuberculose, não pode ter qualquer motivo para mentir (por outras
palavras, a sua confissão é escrita à sombra das últimas coisas). em segundo
lugar, se algo de falso houver na confissão, os seus ouvintes não deixarão de o
detectar, já que escreveu o documento de uma forma deliberadamente apres-
sada e não o corrigiu (é o argumento da autenticidade do estilo, retirado de
rousseau). em terceiro lugar, embora esteja consciente de que a sua confissão
pode ser vista como um mero meio para atingir um fim, uma forma de se
justificar ou de pedir perdão, nega todos estes motivos. estando à beira da
morte e sendo, portanto, privilegiado, afirma o direito de se confessar «ape-
nas porque assim quero»; e afirma o direito a declarar uma tal confissão
«livre», sem motivo, contra qualquer imputação de motivo. a sua confissão
pertence ao domínio das últimas coisas, é ela mesma uma última coisa e tem,
portanto, um estatuto diferente do de qualquer crítica que a vise. a sinceri-
dade do motivo por detrás de uma última confissão não pode ser impugnada,
diz-nos, precisamente porque essa sinceridade está garantida pela morte do
confessando. a sinceridade de toda e qualquer crítica que lhe façam, pelo con-
trário, pode e deve ser submetida à interminabilidade da crítica. os ouvintes
de ippolit têm motivos próprios para contestar o seu motivo; não querem
conhecer a verdade sobre a vida e a morte e, como tal, estão preparados para
impor-lhe o silêncio e a duplicidade que resultam de se tomar o silêncio por
aquiescência: «saibam que há, na consciência da própria insignificância,
um limite de vergonha que a pessoa não consegue ultrapassar, e a partir do
qual começa a sentir uma imensa satisfação na sua própria vergonha» (376).
a verdade que os seus ouvintes não querem escutar é que não há vida depois
da morte e que Deus é apenas «uma tarântula enorme e repugnante» (372).

33
o seu suicídio é, portanto, uma afirmação da liberdade de viver sem se sujeitar
às ridículas regras impostas ao homem (377).
assim, de acordo com o argumento de ippolit, quando o eu é confrontado
com a morte, a divisão causada pela hiperconsciência pode ser superada e a
regressão infinita da dúvida ultrapassada por uma imperiosa vontade de obter
a verdade. o momento antes da morte pertence a um tipo diferente de tempo,
um tempo em que a verdade tem finalmente o poder de surgir em forma de
revelação. a experiência de um tempo fora do tempo é descrita mais clara-
mente a propósito dos ataques epilépticos de Míchkin, quando, num último
instante de claridade antes da escuridão,

a mente e o coração iluminavam-se por uma luz extraordinária: todas as


suas inquietações, todas as dúvidas, todas as preocupações pareciam apaziguar-
-se de uma vez, resolviam-se numa tranquilidade superior, cheia de uma alegria
e de uma esperança claras e harmoniosas, cheia da razão e da causa última […]
esses instantes eram precisamente e apenas uma extraordinária intensificação
da autoconsciência […] e ao mesmo tempo da exaltação do sentimento de si,
extremamente imediata. (208-209)

reflectindo sobre estes momentos, Míchkin pensa nas palavras: «o tempo


deixará de existir» (209). e é com estas palavras que ippolit mais tarde prefacia
a sua confissão.
esse momento em que o tempo terreno cessa, a dúvida termina, o eu é
integrado e a verdade se dá a conhecer é recorrente nas histórias de execuções
contadas por Míchkin. Numa dessas histórias (64) fala da extraordinária
riqueza com que o homem condenado experimenta os mais mundanos por-
menores da vida. Noutra (65) imagina um homem no cadafalso que, no último
momento, «sabe tudo». Mais tarde Míchkin terá a sua própria experiência
desses «clarões de uma sensação e de uma autoconsciência superiores» que
inundam a alma do homem sob a lâmina do carrasco (208).
ippolit afirma estar no cadafalso, tanto quanto qualquer dos homens
condenados de Míchkin. Partindo desta posição de privilégio, deseja legar
à humanidade a sua «verdade», que imagina como uma semente que pode
crescer e ter grandes consequências. Mais especificamente, ele espera que a sua
morte possa ter sentido num universo sem sentido se puder semear nas mentes
dos homens a ideia de um suicídio filosófico como o seu.
Mas terá ippolit «realmente» o privilégio da verdade? o prognóstico
de que morrerá dentro de um mês fora pronunciado por um mero estudante
de medicina; ippolit não está, de modo algum, no leito de morte. a maior
parte dos convidados na festa reage à sua «explicação» «ruidosamente e
com enfado» (285), vendo nela o estratagema de um jovem vaidoso que quer

34
chamar a atenção. recusam considerar o seu voto de suicídio como sincero.
e ele, por sua vez, recusa considerar essa indiferença sincera, lendo-a como
uma pressão para que leve a termo o suicídio. Confrontado com uma situação
subitamente ridícula, em que tanto ele como os seus ouvintes se transforma-
ram em jogadores de poker, cada um tentando fazer bluff ao outro, em que,
se se matar, poderá estar a fazê-lo por despeito ou frustração, e em que o mais
urgente apelo a que poupe a vida provém de lébedev, que não quer que o
chão se suje, ippolit leva uma pistola à cabeça e aperta o gatilho, apenas para
se dar conta de que a arma não está carregada. aquilo que começara como o
projecto de um suicídio filosófico rapidamente degenera num caos de riso e
de choro. a questão de saber se ippolit tem ou não uma visão «verdadeira»,
privilegiada, sobre a vida e a morte é reformulada por Keller de uma forma
nova e banal: esqueceu-se de carregar a pistola ou foi tudo uma brincadeira?
o final burlesco do episódio reafirma o problema que ippolit afirmara
ter transcendido, o problema da auto-ilusão e da regressão interminável da
dúvida. o projecto de um suicídio como forma de garantir a verdade da sua
história pagando com a própria vida perde vigor com o comentário corrosivo
de rogójin: «Não é assim que se deve tratar esse tema, rapaz, não é assim…»
(351). o acto deveria ser cometido, conclui rogójin, sem uma «explicação»,
sem um como e um porquê, no silêncio e na escuridão. a explicação, a verdade
privilegiada que se paga com a vida, é na verdade uma semente, uma forma de
sobreviver à morte: por isso põe em dúvida a sinceridade da decisão de morrer.
a única verdade é o silêncio.
o sonho que ippolit narra na sua confissão aprofunda o paradoxo. Nesse
sonho, ippolit pede a um homem que funda todo o seu ouro e faça um caixão,
e então desenterre o seu filho «enregelado» e o volte a enterrar no caixão de
ouro (370). o sonho é baseado num incidente da sua vida, em que ippolit
praticou uma boa acção em benefício de um estranho, considerando este
acto como uma semente lançada ao mundo. Nas complexas condensações
do sonho, um ippolit com dezoito anos é o menino «enregelado», a sua
«explicação» o caixão de ouro; lançado à terra como uma semente, o sonho
prediz que o menino não ressuscitará (imediatamente depois deste sonho,
ippolit pensa na pintura do Cristo morto de Holbein, um Cristo que jamais
ressuscitará). Falando, como nas frases espontâneas do herói dos Cadernos do
Subterrâneo, a partir de um nível mais «profundo», «mais verdadeiro» do eu,
o sonho revela-nos a dúvida de ippolit sobre a fertilidade da sua «semente» e
debilita o privilegiado estatuto de verdade da «explicação» de que constitui
uma parte47.
o efeito poético do sonho é poderoso. Porém, ao invés de ler o sonho
como uma verdade privilegiada que vem «de dentro» de ippolit — um
procedimento que, inquestionavelmente, atribuiria ao inconsciente a posição

35
de uma fonte de verdade —, gostaria de indagar, como o fiz a propósito dos
Cadernos do Subterrâneo, por que razão estes confessandos não rasuram das
suas confissões esses traços de uma verdade «mais profunda» que contra-
diz a verdade que procuram expressar. uma resposta poderá ser a de que,
transferindo para uma narrativa na primeira pessoa a mesma «menipeia»
mistura de géneros que caracteriza os seus romances como um todo — uma
mistura que inclui exposição filosófica, confissões e sonhos —, Dostoievski
trata o tema do narrador que se trai a si mesmo como um tópico puramente
formal que só um realista desprovido de imaginação poderia levar a sério.
Mas a questão permanece perturbadora. Continuamos a sentir que quando
Dostoievski recua para uma verdade «interior» unívoca, atraiçoa a interro-
gação de noções de sinceridade que, de outra forma, leva a cabo através de
uma rigorosa dialéctica.
o homem do subterrâneo senta-se para escrever as suas confissões, va-
gamente oprimido pelas memórias do passado, mas sobretudo entediado e
indolente. Contará as suas histórias para se acalmar; dirá a verdade porque, ao
contrário de rousseau, está a escrever apenas para si. É o mais longe que pode
ir o seu exame do motivo da confissão, do espírito em que é feita e do signifi-
cado de um público. e são precisamente estas as questões a que se dá destaque
n’O Idiota. aqui, a confissão só pode ser feita ao confessor adequado; e até
o príncipe Míchkin, o homem-Cristo, se revela inadequado para absolver o
confessando (tal como é incapaz de se salvar) da espiral do pensamento duplo.
quanto ao espírito da confissão, afirma O Idiota, é ridículo acreditar-se que a
verdade se conta como um jogo, uma forma de passar o tempo. Nenhum acto
da vontade parece poder forçar a verdade a emergir, nem sequer um momento
de iluminação que nos chega pelo desejo da própria morte, já que esse desejo
pode ser ele mesmo um pensamento duplo. a crítica que Dostoievski faz à
confissão conduz-nos claramente ao limiar de uma concepção da narração da
verdade que se aproxima da graça.
Dostoievski dá os seus próximos — e últimos — passos na exploração dos
limites da confissão secular n’Os Demónios (1871-72). Concentrar-nos-emos
em dois episódios. Kirílov, à semelhança de ippolit, decidiu matar-se e lançar
assim uma semente de verdade no coração dos homens. a diferença é que
Kirílov consuma o acto; e o foco de interesse não reside na explicação que ele
dá para o seu suicídio (a semente) — uma explicação cheia de uma desrazão
selvagem, grandiosa e blasfema48 —, mas no próprio suicídio.
No entanto, questões como saber se Kirílov examina ou não os seus moti-
vos para apresentar um manifesto suicida (hesitaríamos em chamar-lhe «con-
fissão») e se está sob o domínio da dúvida e da ilusão não têm propriamente
sentido, uma vez que o romance não nos dá acesso à sua mente. a cena do
suicídio é apresentada através do olhar do jovem Verkhovenski (é uma ironia

36
típica do livro que, enquanto Kirílov julga estar a suicidar-se para afirmar a
sua liberdade, está na verdade, desde o início, a ser incitado ao suicídio por
Verkhovenski). assim, é através dos gestos, da atitude e dos pormenores exte-
riores que teremos de ler, até onde pudermos, os últimos momentos de Kirílov,
«compreendendo-se a si mesmo», como escreve rené Girard, «num mo-
mento de possessão vertiginosa»49, tentando transcender-se pela morte.
assumindo uma estranha posição ao lado de um armário num quarto escuro,
Kirílov entra numa espécie de transe, «os olhos negros absolutamente imó-
veis, fitando um ponto no vazio» (579). se o lermos correctamente — e com
a leitura dos homens condenados de Míchkin em mente —, dir-se-ia que
aguarda esse instante em que o eu se apresenta inteiro a si mesmo e o tempo
se detém, para fazer saltar os miolos. Nesta interpretação, Kirílov vai mais longe
do que qualquer outra personagem de Dostoievski no cultivo da morte como
a única garantia de verdade da história que contamos sobre nós mesmos. Mas
devemos ter em mente que, nos seus últimos momentos, Kirílov se torna cada
vez mais um louco e um animal (o seu último acto antes do suicídio é morder
Verkhovenski), e essa leitura exterior a que Dostoievski nos força talvez
indique que a consciência de Kirílov é ilegível, inumana.
o capítulo intitulado «Com tíkhon», excluído da versão em fascículos
dos Demónios pelo editor d’O Mensageiro Russo e mais tarde excluído pelo
próprio autor da edição autónoma do romance, retoma a interrogação céptica
sobre o impulso confessional. stavróguin visita o monge tíkhon e mostra-lhe
um panfleto que pretende distribuir, no qual confessa um crime cometido con-
tra uma criança; mas, rapidamente, os motivos de stavróguin para apresentar
esta confissão tornam-se objecto de escrutínio e, finalmente, de nova confissão.
stavróguin relata o seu delito (um crime sexual não especificado, seguido
por um incitamento ao suicídio) sem explicar o que o motivou, a menos que
«estar farto» (644) conte como um motivo. em vez de explorar o motivo,
algo que tão facilmente — como vimos em rousseau — resvala em autojus-
tificação, vemos stavróguin insistir na sua culpa e responsabilidade (643, 644,
648). Mesmo quando, anos mais tarde, a criança começa a aparecer-lhe em
visões, insiste que estas visões não são involuntárias: é ele o responsável por
elas, é ele que as faz surgir, ainda que não possa deixar de o fazer (652). a ima-
gem da criança não é, pois, a emanação de um eu «profundo» ou «incons-
ciente»: o mesmo eu que cometeu o acto confronta compulsivamente a sua
memória culposa; não há distinção entre o eu da intenção e o eu da acção50.
o acto de stavróguin é visto com uma abominação tanto por stavróguin
como por tíkhon. Porém, aquilo que tíkhon questiona é o motivo subjacente
ao desejo de stavróguin de publicar a sua culpa. a indagação deste motivo,
exteriorizada no interrogatório a que tíkhon submete stavróguin, assume o
lugar da interrogação interior a que as narrativas confessionais na primeira pes-

37
soa nos habituaram. interrogando-o, tíkhon reabre a fissura que stavróguin
tentara fechar entre o autoconhecimento e a verdade.
o encontro entre stavróguin e tíkhon (631-61) consiste num duplo
teste. ao mesmo tempo que tíkhon testa a verdade dos motivos alegados por
stavróguin para fazer uma confissão pública, stavróguin testa a adequação
de tíkhon como confessor. tíkhon deve provar o seu poder de absolvição
discernindo a verdade para além das falsidades que o próprio stavróguin pro-
põe. Mas tal como existem afinal limites para o tipo de penitência e o tipo de
perdão que stavróguin está disposto a aceitar, existem também limites para o
tipo de verdade que é permitido a tíkhon ver. especificamente, stavróguin
não está preparado para permitir que tíkhon perturbe um certo núcleo da
identidade que afirma ser a sua. Desta forma, e apesar da sua disponibilidade
para renunciar a qualquer direito de explicar o seu crime e justificar a sua
culpa — uma disponibilidade que deixa a impressão de que ele deseja uma
verdade absoluta e uma absolvição verdadeira —, a confissão de stavróguin
torna-se um jogo cuja essência é a não transgressão de certos limites, ainda
que os participantes finjam entre si que não há limites. trata-se, portanto, de
um jogo de ilusão do outro e de si mesmo, um jogo de uma verdade limitada.
tíkhon põe fim ao jogo infringindo as regras51.
a identidade que stavróguin está determinado a assumir é a de um grande
pecador. apresenta o seu crime contra a criança como sendo ainda mais
desprezível — enorme na sua insignificância — pela futilidade do motivo, a
superficialidade da sua paixão. tíkhon sugere que um crime tão mesquinho e
tão pretensioso não merece mais que uma gargalhada e aconselha stavróguin
a levar a cabo uma penitência tranquila em vez de procurar um «sofrimento
infinito». tíkhon coloca assim em questão a escala em que stavróguin pensa
o seu crime e a sua punição. stavróguin quer que lhe seja prescrito um «sofri-
mento infinito», como um sinal de que a sua culpa é incomensurável; e a
desmesura da sua culpa deverá resultar da banalidade do mal que subjaz ao
seu crime. tíkhon sugere a stavróguin a possibilidade de que este talvez seja
apenas um aristocrata dissoluto e desenraizado com aspirações byronianas,
que pretende alcançar a fama através do simples atalho de cometer um acto
abominável e confessá-lo em público.
É importante destacar que tíkhon não apresenta esta explicação a
stavróguin como a verdade sobre ele, já que desse modo estaria a assumir-se
como uma fonte de verdade inquestionável. apresenta-a como uma verdade
possível, uma possibilidade que stavróguin deveria confrontar se de facto
encarasse com seriedade a busca da verdade sobre si mesmo num quadro
de indagação espiritual (tal como tíkhon, na sua introspecção, deveria
examinar os seus próprios motivos para minimizar a dimensão da maldade
de stavróguin). Desta forma, tíkhon interrompe uma perniciosa regressão

38
infinita da hiperconsciência — uma regressão mais claramente tipificada
por apologistas da punição humilhante como Marmeladov e lébedev, para
os quais a impudência da confissão constitui um novo motivo de vergonha e
assim por diante até ao infinito, do que por stavróguin, cuja versão da regres-
são é que a mesquinhez do seu acto é uma forma de grandeza, e a mesquinhez
deste artifício deliberado uma nova forma de grandeza, e assim por diante —,
substituindo-a por outra regressão da auto-análise que tem o potencial de se
estender indefinidamente, mas também o potencial de terminar em perdão.
Perdoar-se significa o fecho do capítulo, o fim da espiral descendente da
auto-recriminação, cujas profundezas são insondáveis, já que decidir parar
num determinado ponto mediante um acto voluntário, decidir que a culpa
termina num dado momento, é já um acto potencialmente falso e em si mesmo
merecedor de análise. Como estabelecer a diferença entre um «verdadeiro»
momento de perdão e um momento de complacência em que o eu decide já
ter ido suficientemente longe na auscultação de si mesmo? eis um mistério que
tíkhon não resolve, deixando a tarefa, talvez, para esse conselheiro espiritual
«possuidor de tanta sabedoria cristã que nem eu nem o senhor podemos
imaginar», o qual recomenda a stavróguin (660) — ainda que, se tivermos
lido Dostoievski com atenção, possamos adivinhar que este monge jamais
enunciaria essa diferença, no pressuposto de que, uma vez enunciada, tal dife-
rença suscitaria esforços de incorporação num novo jogo de ilusão do outro e
de si mesmo; mais ainda, que enunciar a decisão de não enunciar a diferença
poderia similarmente tornar-se parte de um jogo; e assim por diante, até ao
infinito. a cadeia interminável manifesta-se assim que a hiperconsciência entra
em cena; como atingir a verdade sobre si, como chegar ao perdão e transcen-
der a dúvida, são questões que, por razões estruturais, parecem destinadas a
permanecer num âmbito de mistério; e a própria demarcação deste campo,
bem como a especificação das suas razões estruturais, teriam igualmente de
permanecer por enunciar; e as razões para este silêncio também.

O fim da confissão
o fim da confissão é contar a verdade a e sobre si mesmo. a análise do destino
da confissão que aqui tracei, seguindo três romances de Dostoievski, mostra
o quão céptico Dostoievski era, e porque o era, quanto ao tipo de confissão
secular que rousseau e, antes dele, Montaigne, haviam tentado. Dada a
natureza da consciência, indica Dostoievski, o eu não pode dizer a si mesmo a
sua verdade e chegar a um ponto de repouso, sem que haja a possibilidade de
se iludir. a verdadeira confissão não provém de um monólogo estéril do eu ou
de um diálogo do eu com a dúvida sobre si próprio, mas sim (e aqui vamos para
além de tikhón) da fé e da graça. É possível ler os Cadernos do Subterrâneo,
O Idiota e a confissão de stavróguin como uma sequência de textos nos quais

39
Dostoievski explora os impasses da confissão secular, apontando finalmente
para o sacramento da confissão como o único caminho para a verdade sobre si.
Numa longa recensão de Anna Karénina, incluída no seu Diário de Um
Escritor, Dostoievski louva tolstói pela «grandiosa análise psicológica da
alma humana» levada a cabo no romance. a seu ver, essa profundidade de
visão está exemplificada no episódio da quase fatal doença de anna, durante
a qual esta, Vronski e Karénin «se libertam da ilusão, da culpa e do crime»
num espírito de «perdão mútuo», apenas para se verem, após a recuperação
de anna, no caminho descendente «dessa condição fatal em que o mal, tendo
tomado posse do homem, domina cada movimento seu, paralisa cada desejo
de resistência»52.
No caso de Karénin, a pena, o remorso e a alegria libertadora que sente
em perdoar anna não são prova contra a vergonha que experimenta ao vol-
tar para a sociedade no papel que lhe foi prescrito: o de marido humilhado,
«ridicularizado» (Anna Karénina, p. 475). Começa por sentir autocomisera-
ção e depois uma suspeita vergonhosa de que, perdoando anna, poderá ter
expressado, não a generosidade do eu a que aspira, mas a fraqueza e talvez a
impotência do eu que não quer ser. assim, a introspecção permite-lhe negar
o que tinha experimentado antes como uma emanação do seu melhor e mais
verdadeiro eu, em nome de uma nova verdade, «mais profunda», no sentido
em que enfraquece a anterior. esta verdade «mais profunda» é, na verdade,
uma auto-ilusão interesseira que (segundo o comentário de tolstói) permite
a Karénin «esquecer aquilo de que não se queria lembrar» (489): numa
criatura tão secular («era um homem crente, que se interessava pela religião
principalmente no sentido político», 479), a auscultação de si próprio é um
instrumento, não da verdade, mas de um mero desejo de se reconfortar, de ser
tido em boa consideração, e assim por diante.
a questão normalmente colocada sobre A Sonata de Kreutzer é: como
pôde tolstói, depois da «grandiosa análise psicológica» que caracteriza
Anna Karénina (1874-1876), e em particular da análise dos movimentos de
auto-ilusão que aí encontramos, publicar um livro tão ingénuo e simplista,
em que a verdade que o protagonista nos conta emerge como uma simples
série de ditames sobre o controlo dos apetites? antes de aceitarmos a questão
sob esta forma, porém, devemos talvez relembrar três coisas. a primeira é
que, já em Anna Karénina, temos o exemplo de um indagador da verdade
que, mesmo se cheio de dúvidas, não encontra a verdade através do processo
labiríntico da auto-análise, mas mediante uma iluminação exterior (no caso
de levin, a súbita iluminação das palavras de um camponês). a segunda é que
não há argumento que possa superar a afirmação do homem subterrâneo de
que a hiperconsciência funciona segundo leis próprias — uma das quais é que,
por detrás de cada posição verdadeira, final, se esconde outra posição mais

40
verdadeira e ainda mais definitiva. De um certo ponto de vista, esta é uma
lei fértil, já que permite a criação infinita do texto do eu, como exemplificado
nos Cadernos do Subterrâneo. De outro ponto de vista, o do homem ávido de
verdade, é estéril, pois adia indefinidamente a verdade, sem chegar jamais a
um fim. a terceira coisa a ter em mente é que o tipo de transcendência da
autoconsciência para que Dostoievski aponta como uma forma de chegar a
um fim pode não ser acessível a um racionalista cristão como tolstói, capaz
de encontrar a verdade em pessoas simples, mas céptico quanto a um caminho
para a verdade que transcenda a autoconsciência através da mesma.
tendo estas considerações presentes, talvez possamos reformular a nossa
questão de uma forma mais empática para com tolstói: num escritor que vê
na psicologia da auto-ilusão um campo circunscrito que, para todos os efeitos
práticos, já foi conquistado, e para quem a dúvida em si e por si própria se tor-
nou um interminável ciclo vicioso, que potencial para obter a verdade poderá
existir na auto-análise de uma consciência confessante? Não há dúvida de que
tolstói teria sido capaz de tornar a confissão de Pózdnichev psicologicamente
«mais rica» ou «mais profunda», tornando-a ambígua — de facto, existe
no texto material disponível para criar essa ambiguidade —, mas (podemos
imaginar tolstói a perguntar) com que fim? então, depois de montada toda
a maquinaria (o narrador, pronto a fazer o papel do outro interrogante e
interrogado, o trilho de pistas que apontam para uma verdade que questiona
e complica a verdade admitida pelo confessando), vemos (e aqui especulo) a
desilusão, o cansaço perante esse particular engenho para extrair verdades de
mentiras, a impaciência com os movimentos romanescos necessários à emer-
gência da verdade (uma verdade que, em qualquer caso, aparece sempre como
provisória, manchada pela dúvida dos processos por que teve de passar) e uma
(apressada?) decisão de estabelecer a verdade, finalmente, como se depois de
uma vida inteira de exploração se tivessem adquirido as credenciais, acumu-
lado a autoridade, para o fazer.

[tradução de ana Falcato; revisão da tradução de rui Pires Cabral]

41
NOTAS

[a tradutora segue a antiga ortografia.]

«Confession and Double thoughts: tolstoy, rousseau, Dostoevsky» foi escrito por J. M.
Coetzee entre 1982 e 1983 — Coetzee era então Professor de literatura na universidade
da Cidade do Cabo —, e publicado pela primeira vez na revista Comparative Literature
(university of oregon, vol. 37, n.º 3, Verão 1985, p. 193-232). o texto foi republicado em
Doubling the Point: Essays and Interviews (londres, Harvard university Press, 1992), obra
conjunta de Coetzee e David attwell que agrega todo o trabalho ensaístico produzido pelo
escritor entre 1970 e 1990. trata-se do mais longo ensaio crítico escrito por Coetzee até hoje e
aparece aqui pela primeira vez numa tradução portuguesa.

1 santo agostinho, Confissões, ed. bilingue, trad. arnaldo espírito santo, João beato e Maria
Cristina de Castro-Maia de sousa Pimentel, lisboa, imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000,
ii.iv, ix, p. 67, 77. (N. t.: edição doravante citada no texto.)
2 Nas palavras de Francis r. Hart, a confissão é uma «história pessoal que procura comunicar
ou expressar a natureza essencial, a verdade, do eu», enquanto a apologia é uma «história pes-
soal que procura demonstrar ou concretizar a integridade do eu» e a memória uma «história
pessoal que procura articular a historicidade do eu ou reapropriar-se da mesma». Portanto, «a
confissão é ontológica; a apologia é ética; a memória é histórica ou cultural» («Notes for an
anatomy of Modern autobiography», in New Directions in Literary History, ed. ralph Cohen,
baltimore, the John Hopkins university Press, 1974, p. 227).
3 Por exemplo, nos ensaios «sobre o exercício e a Prática» (livro ii, cap. Vi) e «Da Presunção»
(livro ii, cap. XVii). Montaigne estabelece o seu propósito de «ver-me e procurar-me até às
entranhas» no livro iii, capítulo V dos Ensaios. (N. t.: tradução da minha responsabilidade,
a partir de Michel de Montaigne, Essais, ed. Pierre Michel, pref. alain, Paris, Gallimard, 1965,
p. 71.)
4 Veja-se Peter M. axthelm, The Modern Confessional Novel, New Haven, Yale university Press,
1967.
5 ao longo deste ensaio usarei o termo «confessor» para referir aquele a quem a confissão é
dirigida e o termo «confessando» para aquele que confessa. Vale a pena notar que oswald
spengler, citando a lamentação de Goethe sobre o fim da confissão auricular na esteira do
protestantismo, sugere que seria inevitável que, depois da reforma, o impulso confessional
encontrasse uma saída nas artes, mas também que, na ausência de um confessor, é inevitável
que tal confissão tenda a ser «irrestrita» (The Decline of the West, trad. Charles F. atkinson
[londres, 1932], Nova iorque, alfred a. Knopf Publisher, 1980, vol. ii, p. 295).
6 lev tolstói, A Sonata de Kreutzer, trad. e notas de Nina Guerra e Filipe Guerra, lisboa, relógio
d’Água, 2010, p. 23. os termos russos são citados a partir de «Kreutzerova sonata», em l. N.
tolstoi, Sočineniya, vol. iV, berlim, 1921, p. 160-293. referências ulteriores aparecem no texto.
7 N. t.: Por questões relacionadas com a censura nos meios de comunicação russos, o texto
d’A Sonata de Kreutzer foi modificado por tolstói diversas vezes. Por pressão da própria
esposa, sofia andreievna tolstói, que temia que o imenso público do escritor, dentro e fora
da rússia, a assimilasse à heroína da história, tolstói foi alterando o texto inicialmente publi-
cado em 1889, tendo como resultado a existência de edições com variações textuais. a edição
portuguesa seguida (cf. nota 6) não inclui esta última passagem, que Coetzee cita a partir de

42
leo tolstoy, The Kreutzer Sonata and Other Stories, trad. louise and aylmer Maude, oxford,
oxford university Press, 1924.
8 leo tolstoy, «an afterword to The Kreutzer Sonata». Cf. Essays and Letters, trad. aylmer
Maude, londres, Grant richards, 1903, p. 36, 38.
9 Donald Davie, «tolstoy, lermontov, and others», in Donald Davie (ed.), Russian Literature
and Modern English Fiction, Chicago, university of Chicago Press, 1965, p. 164.
10 t. G. s. Cain, Tolstoy, londres, Paul elek, 1977, p. 148-49.
11 ao ficar noivo, Pózdnichev (tal como levin em Anna Karénina) entrega os seus diários ínti-
mos à futura mulher, que os lê com horror. tolstói baseia-se em ambos os romances no epi-
sódio da sua própria vida pessoal em que entregou os diários íntimos à noiva sonya behrs. Na
biografia de tolstói, Henri troyat descreve o papel que os diários desempenharam no próprio
casamento. Citando uma entrada de 1863 («Praticamente cada palavra neste diário revela
prevaricação e hipocrisia. a ideia de que [sonya] ainda está aqui, lendo sobre o meu ombro,
sufoca e perverte a minha sinceridade»), troyat comenta que as «confissões privadas»
que o casal faz nos seus diários «tornaram-se inconscientemente argumentos de acusação e
defesa» de um contra o outro. À medida que a fama de tolstói cresceu e se tornou claro que
os seus diários se tornariam um dia públicos, a questão sobre o que poderia escrever neles
tornou-se motivo de conflito, e sofia, ocasionalmente, acusava-o nos seus diários de a insultar
nos diários dele. No seu último ano de vida, tolstói manteve um diário secreto que escondia
na própria bota (a mulher surripiou-lho enquanto dormia). (troyat, Tolstoy, trad. Nancy
amphoux, 1967; reimpressão Harmondsworth, Penguin, 1970, p. 371, 397, 366, 718-19, 902,
917.) a Condessa tolstói via A Sonata de Kreutzer, não como uma ficção livre nem como um
sermão, mas como um ataque pessoal, «dirigido a mim, que me [mutila] e me [humilha] aos
olhos do mundo inteiro». em resposta, escreveu um romance em que denunciava tolstói, o
predicador do celibato, como um bruto sexual, e só muito a custo foi dissuadida de o publicar
(troyat, p. 665-68).
12 Carta de 21 de outubro de 1924, em Henry Gifford (ed.), Tolstoy: A Critical Anthology,
Harmondsworth, Penguin, 1971, p. 187.
13 The Forms of Autobiography, New Haven/londres, Yale university Press, 1980, p. 15.
14 lev tolstói, Confissão, trad. zélia Évora, pref. José Milhazes, lisboa, alêtheia editores, 2014,
p. 86. (N. t.: edição doravante citada no texto.) quando se cita o russo, faz-se a partir de
Ispoved, letchworth, Prideaux Press, 1963). o título pode apresentar-se como Confissão ou
Uma Confissão (não há artigo em russo).
15 lev tolstói, Anna Karénina, trad. antónio Pescada, lisboa, relógio d’Água, 2012, p. 742.
16 o homem «conhece-se a si próprio em consequência de e em conformidade com a natureza
da sua vontade, em vez de querer em consequência de e em conformidade com o seu conheci-
mento»; arthur schopenhauer, Die Welt als Wille und Vorstellung. Beide Bände in einem Buch,
berliner ausgabe, 2016. (N. t.: Minha tradução.)
17 Matthew arnold, «Count leo tolstoy», Essays in Criticism, segunda série, londres/Nova
iorque, Macmillan and Co., 1888, p. 283.
18 leo tolstoy, Life, trad. isabel F. Hapgood, londres, Walter scott, 1889, p. 70.
19 V. V. zenkovsky, A History of Russian Philosophy, trad. George l. Kline, londres, routledge
and Kegan Paul, 1953, vol. i, p. 391.
20 Citado em Cain, Tolstoy, p. 9; Máximo Gorki, Reminiscences of Tolstoy, Chekhov and Andreev,
trad. Katherine Mansfield, s. s. Koteliansk e leonard Woolf, londres, Hogarth Press, 1968,
p. 30.

43
21 Jean-Jacques rousseau, Confissões, trad. Fernando lopes-Graça, lisboa, Portugália editora,
1964, vol. i, p. 15. (N. t.: edição doravante citada no texto.)
22 Paul de Man, Allegories of Reading: Figural Language in Rousseau, Nietzsche, Rilke and Proust,
New Haven, Yale university Press, 1979, p. 280.
23 esta estratégia é comum em rousseau. Por exemplo: «longe de não ter calado nada, de nada
ter dissimulado que estivesse contra mim, […] sentia-me mais inclinado a mentir no sentido
contrário, preferia acusar-me com excessiva severidade a desculpar-me com demasiada indul-
gência; a minha consciência assegura-me que chegará o dia em que serei julgado menos seve-
ramente do que me julguei a mim próprio» («quarto Passeio», Os Devaneios do Caminhante
Solitário, trad. Henrique de barros, lisboa, Cotovia, 2014, p. 62).
24 De Man, Allegories of Reading, p. 285-86.
25 Veja-se, por exemplo, o segundo ensaio de Wordsworth em «essays upon epitaphs» (1810):
«onde o charme da sinceridade se esconde na linguagem de uma lápide, impregnando-a
secretamente, não há erros de estilo ou de modo para os quais não seja, em certa medida, uma
recompensa»; Prose Works, ed. W. J. b. owen e J. W. smyser, oxford, Clarendon Press, 1974,
ii, 70. (N. t.: Minha tradução.)
26 Veja-se, por exemplo, t. s. eliot, «os Poetas Metafísicos» (1921): «uma teoria filosófica que
entrou na poesia estabelece-se porque a sua verdade ou falsidade em certo sentido deixa de ter
importância, e noutro sentido a sua verdade é demonstrada» (Ensaios Escolhidos, sel., trad. e
notas de Maria adelaide ramos, lisboa, Cotovia, 1992).
27 Jean starobinski, Jean-Jacques Rousseau: La Transparence et L’Obstacle, suivi de Sept Essais sur
Rousseau, Paris, Gallimard, 1971, p. 208. (N. t.: Minha tradução.)
28 Ibid., p. 218, 229.
29 Annales Jean-Jacques Rousseau, cit. em ibid., p. 233.
30 starobinski, Rousseau, p. 238.
31 ainda que seja uma eloquência fácil a denunciar rousseau neste ponto, a linguagem do outro,
da qual tenta libertar-se, é a linguagem de la rochefoucauld, la bruyère e Pascal. «os gran-
des escritores de prosa da França do século XVII», escreve Margery sabin, «estabeleceram a
língua da autoridade da descrição psicológica, cuja força advinha justamente do seu carácter
público». rousseau alarga o protesto contra esta linguagem do sentimento, diz sabin, a
«todos os níveis da obra, incluindo as implicações da sintaxe e o significado de palavras indi-
viduais». a autora prossegue com uma análise exemplar do estilo de rousseau na descrição dos
seus sentimentos por Madame de Warens, cujas frases «circundam» esse sentimento esquivo
em vez de o definir. «se as suas emoções permanecem vagas, confusas, paradoxais — bem, o
estilo argumenta que essa é a verdadeira natureza da sua vida interior» (English Romanticism
and the French Tradition, Cambridge, Mass., Harvard university Press, 1976, p. 19, 29). (N. t.:
Minha tradução.)
32 o episódio é contado na segunda Parte, livro Vii, p. 379-81.
33 starobinski comenta que rousseau começa por usar o «princípio do imediatismo» para
clarificar a sua psicologia, mas quase de seguida este princípio «assume o valor de uma justi-
ficação superior ou de um imperativo moral» de mais alto valor do que «as comuns regras
do certo e do errado» (Rousseau, p. 237). De facto, este princípio não tem conotações morais
na passagem que estou a considerar.
34 Por exemplo, na discussão da sua «avareza» durante o tempo que passa com Madame de
Warens ou da sua aversão a pagar por sexo (Primeira Parte, livro V, 250; segunda Parte, livro
Vii, 379).

44
35 Jacques Derrida, De la Grammatologie, Paris, les Éditions de Minuit, 1967, p. 226, 233-34, 345.
36 Poderá objectar-se que traço uma linha demasiado inflexível entre o estar e não estar consciente
de uma verdade «mais profunda», ignorando as gradações e subtilezas da auto-ilusão que
variam entre os extremos da inocência e da hipocrisia. Porém, como Michel leiris, por exem-
plo, reconhece, o autobiógrafo enfrenta-se a si próprio como o torero enfrenta o touro: não há
desculpas para a derrota (Manhood, trad. richard Howard, londres, Cape, 1968, p. 20).
37 Para este tratamento do mecanismo de auto-ilusão estou particularmente em dívida para com
Herbert Fingarette, Self-Deception, londres, routledge, 1969, p. 86-87.
38 David Hume, Tratado da Natureza Humana, trad. serafim da silva Fontes, lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 2002, p. 301.
39 Fiódor Dostoiévski, Humilhados e Ofendidos, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, lisboa, edi-
torial Presença, 2006, p. 112-21.
40 esta é essencialmente a posição defendida por alex de Jonge em Dostoevsky and the Age of
Intensity, londres, secker & Warburg, 1975. a tese de De Jonge é a de que muitos dos con-
fessandos de Dostoievski — entre eles Valkóvski, Marmeladov e svidrigailov — aderem a um
«culto da intensidade» fundado por rousseau, que explora os prazeres masoquistas do avil-
tamento de si próprio. De Jonge vê Dostoievski como um psicólogo da confissão que explora
os modos como as pessoas sem sentido de si, sem sentido de culpa, sem interesse pela verdade,
usam a auto-revelação como um instrumento de poder e de prazer (p. 175-76, 181, 186-87).
41 Mikhail bakhtine defende que o romance de Dostoievski é uma forma de sátira menipeia, misto
de narrativa ficcional e diálogo filosófico, confissão, hagiografia, fantasia e outros elementos
geralmente incompatíveis. Para além disso, afirma bakhtine, Dostoievski explora a antiga tra-
dição do carnaval, em que as costumeiras restrições sociais são postas de lado e uma absoluta
franqueza pode reinar nas relações humanas (cf. Problems of Dostoevsky’s Poetics, trad. Caryl
emerson, Manchester, Manchester university Press, 1984, cap. 4). Portanto, para bakhtine, a
confissão é, antes de mais, um elemento estrutural da ficção de Dostoievski, ainda que o en-
saísta proceda depois à exploração de uma atitude «dialógica» para com o eu nos narradores
na primeira pessoa de Dostoievski — o eu torna-se o seu próprio interlocutor (cap. 5).
42 Fiódor Dostoiévski, Cadernos do Subterrâneo, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, lisboa,
assírio & alvim, 2007, p. 17, 19. (N. t.: edição doravante citada.) a metáfora da autocons-
ciência como doença é um lugar-comum na europa dos anos 1860. «a autocontemplação […]
é infalivelmente um sintoma de doença», escreveu thomas Carlyle em 1831: apenas quando
«a febre do cepticismo» se tiver esgotado haverá «clareza, saúde» («Characteristics»,
Critical and Miscellaneous Essays, londres, Chapman & Hall, 1899, vol. 3, p. 7, 40). Veja-se
ainda Geoffrey H. Hartman, «romanticism and ‘anti-self-Consciousness’», in Harold bloom
(ed.), Romanticism and Consciousness, Nova iorque, Norton, 1970, p. 46-56.
43 sobre a Primeira Parte dos Cadernos do Subterrâneo como uma crítica ao niilismo dos anos
1860, veja-se Joseph Frank, «Nihilism and Notes from Underground», The Sewanee Review,
n.º 69, 1961, p. 1-33.
44 «[…] declaro […] que se escrevo como se estivesse a dirigir-me aos leitores, faço-o exclusiva-
mente […] porque é mais fácil para mim escrever desta forma […] nunca terei leitores» (64).
45 «a preocupação metafísica com o fim do Homem concretiza-se nos atributos mais formais
da estrutura dos romances [de Dostoievski], a sua forma narrativa. e isto porque ele foi um dos
primeiros a reconhecer que aquilo que um homem pode ser não se pode separar da questão do
que constitui uma história autêntica» (Michael Holquist, Dostoevsky and the Novel, Princeton,
N.J., Princeton university Press, 1977, p. 194).

45
46 Fiódor Dostoievski, O Idiota, trad. antónio Pescada, lisboa, relógio d’Água, 2014, p. 283-84.
(N. t.: edição doravante citada.)
47 o paradoxo da semente tem provavelmente origem no evangelho de são João, Xii, 24: «em
verdade, em verdade vos digo: se um grão de trigo, ao cair na terra, não morrer, fica infecundo;
mas se morrer, produz muito fruto.» o verso é citado n’Os Irmãos Karamazov, trad. e notas de
antónio Pescada, lisboa, relógio d’Água, 2012.
48 «Plena liberdade quando indiferente viver ou não viver […] quem vencer dor e medo, ele
próprio Deus […] quem deseje liberdade principal, tem de ousar matar-se […] quem ousar
matar-se é Deus» (Demónios, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, com uma tradução do capítulo
«Com tíkhon», lisboa, editorial Presença, 2008, p. 112). (N. t.: edição doravante citada.)
49 rené Girard, Deceit, Desire, and the Novel: Self and Other in Literary Structure, trad. Yvonne
Freccero, baltimore, John Hopkins university Press, 1965, p. 276.
50 ainda assim, o paradoxo inerente à noção de compulsão mantém-se. e no momento de tensão
em que stavróguin confessa «todo o [s]eu objectivo», ou seja, que quer perdoar-se a si mesmo,
e demanda um «sofrimento desmedido», Dostoievski volta a uma psicologia dualista na qual
um eu «interior» se articula a si mesmo: stavróguin fala «e no tom da pergunta sentia-se um
pequeno toque de ironia» (658).
51 Na medida em que a meta-regra do jogo é as regras não deverem ser declaradas — de facto,
não deve reconhecer-se a existência de quaisquer regras, de qualquer jogo —, a apreciação dos
mecanismos da auto-ilusão proposta por Fingarette descreve cabalmente este jogo (veja-se
nota 37).
52 F. M. Dostoievsky, The Diary of a Writer, trad. boris brasol, londres, Cassell, 1949, vol. ii,
p. 787-88. (N. t.: Minha tradução.)

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