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Isto é um Homem"
Falamos de desumanidade?, inumanidade? De que falamos quando falamos
dos campos de concentração e extermínio e da Segunda Guerra?
Auschwitz foi libertado a 27 de Janeiro de 1945. Primo Levi viu uma brecha
nessa madrugada que lhe permitiu pensar no regresso a casa. No livro Se isto é
um Homem testemunha a sua vida no campo, que considera “uma gigantesca
experiência biológica e social (...) [onde é possível] estabelecer o que é
essencial e o que é adquirido no comportamento do animal-homem perante a
luta pela vida”.
Antes de mais, uma interrogação: que podemos nós saber acerca daquilo de
que fala Primo Levi? Que podemos nós saber e em que termos podemos falar
de uma realidade tão radicalmente diferente da nossa que não chegamos
sequer a configurar, senão sob um ponto de vista teórico e ainda assim
imensamente vago, tacteante, a que é que ela corresponde?
Parece evidente, desde logo, que o nosso olhar é o olhar asséptico de quem
observa no conforto das “casas aquecidas”, para usar uma expressão de Primo
Levi, por mais horror, asco, incómodo que a descrição ou a visão provoquem.
A nossa condição é outra. A nossa galáxia é outra. A sonda que fornece
alguma informação está longe de nos fazer experimentar a qualidade daquele
ar, de nos indicar sequer as suas propriedades.
(Há um quadro de Gauguin que traduz numa imagem o que pretendo dizer. É
um retrato de Van Gogh, que data do período que os dois pintores passaram
em Arles, no qual se vê o pintor holandês a pintar, não numa tela, mas
directamente sobre um ramo de flores. A peculiaridade e a força de Van Gogh
era pintar directamente a vida, e não sobre a vida.)
Primo Levi escreve: “Perguntei-lhe (com uma ingenuidade que poucos dias
depois já me devia parecer fabulosa) se nos iam devolver pelo menos as
escovas de dentes; ele não riu, mas com uma expressão de extremo desprezo
no rosto, disse-me: – Vous n’êtes pas à la maison.”
O que é que caracteriza essa esfera? Quem delimita o alcance dessa esfera?
Primo Levi, como Borowski, como Semprún, foram capazes, nas mais anti-
humanas situações, de que Auschwitz-Birkenau paradigmaticamente são uma
representação, de elaborar um discurso humano sobre o anti-humano. Um
discurso baseado no que de mais humano o homem tem – isto é, na
capacidade de narrar.
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
1. «O livro foi escrito para satisfazer essa necessidade; em primeiro lugar, como
libertação interior»
2. «Foi escrito para fornecer documentos para um estudo sereno de alguns
aspectos da alma humana»
Começa a ser escrito logo depois da sua libertação e concluído em 1947. A
primeira edição data desse mesmo ano.
Mas ainda que os recursos físicos o façam subsistir, que humanidade há nisso?
Que subsistência é essa? A de um homem? Repete-se ao longo do livro que
pode ser qualquer outra coisa, um animal, um farrapo, uma sombra, mas
raramente se utiliza a palavra homem.
(...)
A incursão na obra de Dante acontece, aliás, outras vezes. Como num dos
excertos mais famosos: “Isto é o Inferno. Hoje, nos nossos dias, o Inferno
deve ser assim, um local grande e vazio, e nós, cansados de estar de pé, com
uma torneira a pingar água que não se pode beber, esperamos algo sem dúvida
terrível e nada pode acontecer e continua a não acontecer nada. Como pensar?
Já não se pode pensar, é como estar já morto. O tempo passa gota a gota”.
A vida que têm é a vida de animais. Mas justamente por isso, como percebe o
autor, “porque o campo é uma máquina para nos reduzir a animais, não
devemos tornar-nos animais; neste lugar também se pode sobreviver para
contar, para testemunhar. (...) Somos escravos, condenados quase com certeza
à morte, mas restou-nos uma última faculdade: a faculdade de negar o nosso
consentimento”.
Por vezes, os prisioneiros sonham. Não sonham todas as noites, mas apenas
quando o cansaço o permite. E nos sonhos há também margem para um não-
acreditar. Um relato: “É um prazer imenso, estar na minha casa, entre pessoas
amigas e ter tantas coisas para contar. Mas não posso deixar de me aperceber
de que os meus ouvintes não me prestam atenção”. A dor deste sonho (que é a
dor de contar e não ser ouvido) é uma dor que acompanha não só Primo Levi
como muitos outros. Uma espécie de sonho insistente. Também sonham que
estão a comer.
“Se pudéssemos chorar!” desabafa, dizendo-se a seguir “um verme sem
alma”. Ora um verme não chora. Um verme não chora porque não tem
consciência da ofensa que lhe infligem. Se tivesse nem que fosse uma sombra
dessa consciência, compreenderia valores como o da dignidade, respeito,
individualidade. E nesse caso, todo o campo se lhe tornaria insustentável. No
campo só se sobrevive na condição de animal acossado. Pela mesma razão, no
campo não há uma meta. O futuro não existe. A ideia de que a vida tem uma
finalidade é “propriedade da substância humana”.
Entre estes homens é possível estabelecer uma distinção: não entre bons e
maus, mas entre os que sucumbem e os que se salvam. O bom e o mau, o
cobarde e o corajoso – todas essas combinações são variáveis em cada um
deles, mas presentes em todos. Como cá fora. O que os marca,
definitivamente, é a sua capacidade física e moral de sobreviver ou não.
Esta distinção é igualmente ditada pela sua serventia. Os fracos e ineptos são
votados à selecção, ou seja, à morte. Os que ainda têm forças e competência
são poupados e obrigados a trabalhar.
É uma luta esgotante de um contra todos. “As personagens destas páginas não
são homens. A sua humanidade está sepultada, debaixo da ofensa que
sofreram ou que infligiram a outrem. (...) Um homem é o que mantém pura a
sua humanidade”.