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IDEIAS DISPERSAS SOBRE O SIGNIFICADO DE POLÍTICAS

SOCIAIS

Carlos Vasconcelos Rocha1

In: Stengel et. al. Políticas de Apoio Sociofamiliar, Ed. PUC Minas, 2001.

O QUE SE PRETENDE

Neste texto, o objetivo é desenvolver o significado geral de política


social e abordar o processo de constituição da idéia de direitos sociais no
mundo e as especificidades da adoção das políticas sociais no Brasil. Serão
sugeridas algumas ideias relativas aos direitos sociais e às políticas sociais,
no mundo contemporâneo.
Nem é preciso chamar a atenção para a amplitude ou ousadia,
digamos, do tema proposto. Parece que o leitor irá encontrar um trabalho
organizado não em pequenas partes, mas em capítulos que se desdobram
em volumes. Não é o caso. O que se oferece aqui é um pequeno trabalho
que busca introduzir uma visão geral sobre um assunto tão amplo. É assim
que, dado o espaço reduzido e, principalmente, as limitações do autor, o
texto que se segue apresentará uma abordagem parcial, muitas vezes
disforme e incompleta do tema das políticas sociais. A opção é procurar
oferecer uma visão geral do assunto, em detrimento das particularidades.
Tentemos, portanto, colocar o elefante na caixa de fósforo.

POLÍTICA E POLÍTICAS SOCIAIS

As políticas sociais são uma modalidade das políticas públicas que,


por sua vez, representam uma subclasse do conceito de política.
Comecemos do geral para o particular. O princípio básico da política é o
fato de que os homens são diferentes e necessitam uns dos outros para
viver. É dessa constatação básica que a política surge como problema: se o
homem é um ser social, se necessita relacionar-se com outros homens para
viver e, ao mesmo tempo, difere de qualquer outro, como é possível
viabilizar uma vida em comum, e de que forma o homem individual e os
grupos podem fazer valer suas crenças, valores e interesses? O objetivo da
política é, assim, o de processar as diferenças entre as pessoas e possibilitar
uma vida em comum. Nesse sentido, podemos propor dois momentos
relacionados com a ação política: o momento do consenso e o momento do
conflito. No primeiro caso, o que está em jogo é a capacidade dos homens
de estabelecerem acordos, através da fala, reforçando pontos de identidade
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Professor do Departamento de Sociologia da PUC-MINAS
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e assim traçando objetivos comuns. Como exemplo, podemos tomar o fato


de homens que compartilham a situação de serem operários, tendo, para
sobreviver, de vender sua mão-de-obra a terceiros. Esse ponto comum se
desdobra em ação quando, a despeito de todas as outras diferenças, esses
homens se organizam num sindicato, estabelecendo objetivos comuns. No
segundo caso, a ação visa à prevalência de alguns valores sobre outros.
Tomemos o mesmo exemplo dos operários em sua relação com os patrões:
o que está em jogo aí é o fato de que os operários desejam receber mais
pelo seu trabalho e os patrões desejam pagar menores salários. Tal fato
implica disputa. Há, assim, uma situação em que a ação política visa impor
o interesse de uns sobre os outros.
A política pode ser vista como constituída de ambos os momentos:
um momento de identificação com o outro, visando estabelecer uma ação
comum; e um momento de disputa de quem é capaz de fazer valer os seus
interesses e valores frente a valores e interesses divergentes. Em qualquer
sociedade moderna há uma diversidade de focos de disputa: classe social,
gênero, religião e raça, dentre tantos outros.
As questões envolvidas na política são aquelas referentes ao espaço
público. Assim, as questões públicas são aquelas que têm conseqüências
para a vida das pessoas que compõem uma sociedade. Se o espaço público
é aquele em que um grupo de pessoas compartilha a sua existência, e as
questões públicas são aquelas que afetam de alguma forma cada um dos
que compõem o grupo, um requisito se impõe: as questões públicas devem
ter transparência, devem ser vistas e ouvidas por todos. Devem ser
publicizadas. Em contrapartida, há a esfera privada, que diz respeito apenas
ao indivíduo e as pessoas de seu relacionamento mais próximo. As
questões privadas são aquelas que não afetam o conjunto da comunidade.
Daí o fato de que não interessam aos “de fora”. Contrastando com o
requisito de transparência do público, as questões privadas envolvem a
privação de ver e ouvir, devem encerrar-se no limite das casas. É como diz
o ditado: “roupa suja se lava em casa”.
O que tem ou não relevância para toda a comunidade varia no tempo
ou de cultura para cultura. Questões que são públicas, no Irã, podem não
ser no Brasil; questões que foram públicas no século passado podem não
ser hoje. Fiquemos com apenas um exemplo: em passado recente, a relação
entre pais e filhos era uma questão estritamente privada. Ninguém deveria
meter-se na criação de uma criança por seus pais. Hoje, com a percepção
que as crianças têm direitos, se um pai maltrata o filho, deve responder
publicamente e pode, no limite, ser preso. A sociedade é que define,
coletivamente, quais são as questões públicas.
Um momento privilegiado da política é a busca do controle do
Estado. O Estado representa um foco de poder que tem a capacidade de
impor as regras de convivência em um determinado limite territorial. Um
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requisito para isto é que ele deve monopolizar os instrumentos da violência


física, ou seja, possuir uma maior quantidade de armas e, dentre elas, as
que têm a maior capacidade destrutiva. Sem isto, o Estado não tem
condições de impor leis. Isso foi intuído por autores que estabeleceram a
visão moderna de política, como Thomas Hobbes, para quem as leis sem a
espada não passam de palavras.
Concretamente, o Estado é composto de instituições integradas por
funcionários públicos, cada qual cumprindo uma determinada função. O
Estado visa a instaurar uma ordem em uma determinada sociedade.
Tomemos o exemplo do trânsito de veículos. Há uma regra segundo a qual
um carro deve parar quando o sinal está vermelho. Caso alguém transgrida
essa regra, há um funcionário público para punir essa pessoa, o guarda de
trânsito, que pode usar o argumento da racionalidade da regra para que a
pessoa não repita seu ato (pois o perigo de uma colisão seria grande se não
houvesse sinais), ou então utilizar o “argumento” de estar portando um
talão de multa e, no limite, uma arma no coldre. E por que controlar o
Estado é um momento importante na política? Por que o Estado é que
estabelece e implementa as regras de convivência. E essas regras devem ser
obedecidas por todos. Assim, quem controla o Estado tem muito mais
condições de conformar a sociedade segundo seus valores e interesses.
Quem controla o Estado maximiza poder. E poder é a capacidade impor a
terceiros comportamentos desejados. Poder é ter a capacidade de
estabelecer que se deve parar no sinal vermelho e as pessoas passam a agir
conforme este princípio.
Podemos dizer que o Estado age através das políticas públicas. As
políticas públicas referem-se a decisões governamentais projetadas para
atacar problemas que podem estar relacionados, por exemplo, a política
externa, saúde pública, proteção do meio ambiente, crime e desemprego,
dentre outros. Seus efeitos são direta ou indiretamente válidos para a
sociedade, ou seja, têm poder vinculatório. As políticas públicas são
predicados dos governos, implicando decisões fortalecidas em um
programa em que se utiliza, em última instância, a virtualidade do uso da
força para sua realização. Imaginemos a decisão de que determinados
setores da sociedade devem repassar recursos ao poder público em forma
de impostos; um ato de desobediência pode redundar, no limite, na ação
policial.
O próprio fato de identificar problemas implica uma proposta de
transformação da realidade. Se algo é tomado como problemático é porque
deve ser mudado. Assim, a política pública parte da insatisfação diante de
determinada realidade, visando estabelecer uma outra realidade ideal ou
pelo menos próxima do ideal. Isso tem a ver com ações destinadas a
construir uma "ponte" entre a situação existente e um futuro possível, uma
conduta que leva do ponto atual ao ponto que se quer chegar. Se se toma o
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analfabetismo como algo negativo, estabelece-se uma política educacional


visando criar a situação desejável de colocar todas as pessoas na escola.
Traça-se uma meta a ser alcançada e mobilizam-se os recursos necessários:
para colocar determinada quantidade de alunos em sala de aula, torna-se
necessário construir tantas escolas, contratar determinado número de
professores, envolvendo um montante “x” de recursos financeiros e daí por
diante. Finalmente, avaliam-se os resultados das ações implementadas,
visando a constituir um estoque de conhecimento para orientar as ações
futuras. Resumindo, as políticas públicas cumprem as fases de
planejamento, implementação e avaliação.
Como os recursos são escassos, ou seja, não há escolas, postos
médicos nem habitações para todo o mundo, tomar decisões significa
eleger prioridades. É mais importante construir escolas ou passar recursos
para as empresas privadas em forma de incentivos? Ao responder a essa
questão, elegem-se prioridades. As políticas públicas implicam, então, a
repartição de bens escassos. Uma conseqüência básica das decisões
públicas é a subtração ou transferência de recursos de um setor da
sociedade para outros.
Portanto, pode-se considerar as políticas públicas como um aspecto
ou subclasse da política. As políticas públicas podem ser vistas como
efeitos provocados por um conjunto complexo de forças sociais, que
surgem à medida que as demandas para a resolução de certos problemas
pelo Estado são propostas. Os bens escassos são repartidos através da
interação de sujeitos cujo interesse consiste em se apropriar de tais bens.
Essa alocação é influenciada pela distribuição e utilização do poder. Quem
tem mais poder provavelmente vai ter maiores vantagens da ação estatal.
Como os recursos escassos são disputados por grupos ou pessoas, pode-se
dizer que se trata de alocação de valores entre unidades interatuantes. As
decisões governamentais resultam da combinação da participação direta e
indireta de atores políticos, que atuam por diversos meios, como persuasão,
ameaças, promessas, manipulação direta, coerção e etc. O processo de
tomada de decisões envolve relações pessoais, pois o que é decidido são as
diretrizes que outras pessoas devem seguir. A grosso modo, pode-se traçar
como etapas de uma decisão a existência de uma vontade e do poder para
encaminhá-la, a escolha da decisão baseada na análise da realidade e nos
componentes de negociação ou luta envolvidos na interação entre os
participantes, e a formulação das políticas públicas propriamente ditas.
Todo esse processo depende de dois fatores importantes. Primeiro, da
experiência anterior dos atores em políticas passadas: decisões que não
deram certo em períodos anteriores tendem a ser descartadas do estoque
das alternativas a serem consideradas. Depois, dado o fato de que todo esse
processo é em boa medida institucionalizado, depende das regras que
conformam os limites de atuação dos atores. Tais regras não são neutras:
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geralmente espelham um determinado equilíbrio de poder, potencializando


as chances de determinados interesses em detrimento de outros.
Resumindo, podemos dizer que a política, vista de uma forma
abrangente, apresenta uma relação dialética entre conflito e consenso. Por
um lado, temos a criação do consenso, única forma em que interesses
convergentes de sujeitos interatuantes podem partilhar objetivos, e assim
"construir poder", visando atuar com eficácia na realização de seus
objetivos. Por outro lado, temos atores que interagem de forma estratégica,
cada qual tentando fazer prevalecer seus interesses sobre os demais. A
política aqui é concebida como luta e, mais especificamente, como disputa
pela submissão de uns interesses a outros. Se o conflito demonstra ações
voltadas no sentido da "distribuição do poder", por outro lado é necessário
"construir o poder" para se alcançar alguma eficácia na organização da
convivência de pessoas com interesses e valores diversos.
Numa certa perspectiva, o processo político é um fluxo contínuo de
atividades diversas, mediante as quais há a repartição de bens escassos. Os
bens escassos são repartidos através da interação de indivíduos, cuja ação
objetiva a apropriação de tais bens. A alocação dos bens é resultante de
dada distribuição e utilização do poder. O processo de alocação deve ser
institucionalizado em certa medida, ou seja, deve orientar-se por certas
regras. Ao cabo, deve legitimar a atribuição a certos indivíduos de certos
objetos, tanto valorizados como desvalorizados.
A política social é uma modalidade de política pública que visa a
fornecer condições básicas de vida para à população – e o significado disso
muda de sociedade para sociedade. Visa, assim, buscar uma situação de
maior igualdade entre os componentes de uma sociedade e fornecer um
nível básico de segurança sócioeconômica. Envolve uma ampla gama de
modalidades, como políticas de saúde, educação, habitação, amparo a
desempregados, crianças, velhos, programas de renda mínima, enfim,
diversos tipos de intervenções. Porém, a noção de problemas sociais e,
consequentemente, a existência de políticas sociais ocorre a partir de
determinado momento na história. Vejamos.

A QUESTÃO SOCIAL COMO PROBLEMA

A questão social torna-se um problema público com o


desenvolvimento do capitalismo. Na economia agrária elementar, havia
trabalho para todos e os mais jovens cuidavam dos idosos. A assistência à
saúde por profissionais não era tão importante, pois não haviam ocorrido os
grandes avanços da medicina e da cirurgia e os médicos não tinham muito
o que fazer. Saúde não era algo que dependia da capacidade de pagar. O
mesmo pode-se dizer em relação à educação: o estoque de conhecimentos
necessário para a vida era repassado pela família e no próprio local de
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trabalho. Foi a urbanização que tornou necessária a constituição de serviços


públicos de assistência social. É remoto o primeiro esforço público de
combate à pobreza. Em 1601, na Inglaterra, foi promulgada a Poor Law,
cujo objetivo era a eliminação da pobreza através da constituição de um
sistema de subsídio em dinheiro, financiado pela cobrança de uma taxa. O
resultado foi a eliminação dos pobres e não da pobreza: a comunidade que
tinha de prover o sustento dos pobres resolveu expulsá-los. Uma solução
que, infelizmente, repete-se na história. Até meados do séc. XIX, o
problema social era resolvido por corporações de artes e ofícios, por
sociedades de socorro mútuo e pela própria comunidade, com ênfase na
família.
Com a Revolução Industrial, que joga imenso contingente de pessoas
no espaço urbano, empobrecidas e privadas dos laços de solidariedade que
encontravam no meio rural, expostas aos riscos do mercado, a “questão
social” começa a deixar de ser um problema de caridade ou de polícia. As
desigualdades sociais começam a deixar de ser tratadas como reflexo de
virtudes, de vícios morais ou de habilidades individuais, para serem
relacionadas com o funcionamento do próprio sistema econômico. De
formas diversas, a falta de condições básicas de vida e os riscos da
economia de mercado tornam-se uma questão pública. Progressivamente,
políticas estatais começam contemplar a “questão social”. Antes do início
do século XX, a Inglaterra já tinha uma legislação da atividade fabril. A
Alemanha de Bismarck introduz um sistema de previdência social entre
1883 e 1889, seguida da Suíça, em 1890, da Dinamarca, em 1891 e da
Bélgica, em 1894.
No plano da ordem social, esse processo engendra uma alternativa ao
liberalismo. Não é mais possível organizar a sociedade segundo uma
ortodoxia de princípios baseados nas idéias de livre mercado, meritocracia
e defesa do indivíduo burguês contra o poder do Estado. O Estado deve
também defender os mais pobres dos mais ricos. A desigualdade social
deixa de ser vista como reflexo das desigualdades naturais e, portanto,
justa. Começa a ser vista resultado do próprio sistema econômico e social.
O Estado, transformando-se, passa a intervir na economia e moldar uma
sociedade mais igualitária, através de políticas redistributivas, que
redundam na redistribuição dos bens e serviços entre os diversos setores da
sociedade. Certas condições básicas de vida são tomadas como direitos de
qualquer cidadão, nos marcos territoriais de cada nação, inicialmente, e
depois como direitos dos homens, independentemente de sua
nacionalidade. Como nos mostra T. H. Marshall em uma obra clássica, dos
direitos civis e políticos passa-se aos direitos sociais. Instaura-se um
processo em que o princípio da democracia avança da esfera da política
para a esfera da economia. Assim, do direito de dispor do próprio corpo, de
locomoção, de segurança, de igualdade perante a lei, de liberdade de credo
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e profissão, surge a noção do poder legítimo como aquele que expressa a


vontade dos cidadãos, envolvendo o direito de participação política,
organização e liberdade de expressão, para finalmente tomar como direito
de todo cidadão o acesso a condições mínimas de bem-estar social. Nesse
caso, em cada situação específica, a intervenção estatal se dá em aspectos
como saúde, educação, seguro desemprego, amparo na velhice e na
infância, moradia e nutrição, lazer e programas de renda mínima, dentre
outros, formam o conjunto de direitos sociais.
Mas é bom que se faça uma distinção. A idéia de direitos sociais
contrasta com o assistencialismo, que implica a prestação de ajuda
arbitrária, inconstante, e a personalização da relação de quem “dá” e quem
“recebe”. A relação ocorre entre desiguais, estabelecendo, de um lado, o
benfeitor e, de outro, aquele que deve retribuir a doação com lealdade e
favores. Essa relação pode estabelecer-se como padrão da gestão dos
recursos públicos, fundamentando o clientelismo político, pelo qual alguém
fornece ajuda visando, em troca, ao apoio político. Direitos sociais, ao
contrário, implicam a convicção de que todas as pessoas, sem qualquer tipo
de qualificação e independente da opinião de quaisquer outros, devem ter
asseguradas condições dignas de vida. É como se fosse algo natural,
antecedendo a quaisquer outras considerações. Assim, a idéia de direitos
sociais tem como referência o conjunto dos cidadãos e, como base, a idéia
do exercício de um direito, excluindo a concepção de uma ação
benevolente do Estado.
Colocada de outra forma, a questão das políticas sociais tem como
pressuposto a idéia de uma sociedade mais igualitária e garantidora da
segurança sócio-econômica de seus cidadãos. Isso remete ao problema de
como organizar a sociedade e de como conceber o papel doEstado, de um
lado, e do mercado, de outro. Passa-se pelo enfrentamento de qual dos
mecanismos seria o mais adequado ou de como articulá-los para a definição
da fórmula de organização econômica e social mais adequada.
Na verdade, conforme T. H. Marshall, a cidadania como um status
que garante direitos contrasta com os mecanismos de mercado, pois
envolve sempre regulação crescente. As políticas sociais implicam o
Estado em ação, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida da
população, especialmente das populações excluídas, integrando-as
econômica e socialmente a um certo padrão de desenvolvimento
econômico-social. Se política social envolve a intervenção estatal no
sentido da promoção do bem-estar, o caráter dessa intervenção revela uma
certa concepção de Estado. Vejamos mais concretamente como esse
problema foi solucionado nos países em que a política social se tornou um
aspecto central na organização da vida social.

DIREITOS SOCIAIS OU OS CAVALOS E OS PARDAIS?


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A idéia de política social vai integrar-se de maneira progressiva


numa forma de organização política, principalmente após a II Guerra, com
o amadurecimento da social-democracia, gerida pelo chamado Welfare
State. A partir de então, nos Estados capitalistas mais avançados, os gastos
com a seguridade social tornam-se a maior parte dos gastos públicos totais.
Conforme dados fornecidos por Eric Hobsbawm, em sua obra Era dos
Extremos, no final da década de 70, França, Alemanha Ocidental, Itália e
Bélgica gastavam mais de 60% de seus orçamentos na seguridade social.
Como explicar esse processo?
A social-democracia surge no contexto de países capitalistas, em que
atuava um forte movimento operário, através de sindicatos e de partidos
socialistas. O movimento operário tinha como objetivo fazer a revolução.
Progressivamente, porém, os operários passam a atuar nos marcos das
regras democrático-eleitorais, disputando eleições e, muitas vezes,
chegando ao poder. Nesse processo, vão deixando de lado a idéia de uma
ordem socialista, à medida que iam ampliando seus direitos dentro da
ordem capitalista. Como a revolução, além de implicar em pesados custos
em vidas humanas, tem resultados incertos, e os ganhos dentro da ordem
burguesa são limitados, porém concretos, o movimento operário vai-se
desradicalizando. Passa a circunscrever suas reivindicações nos marcos da
ordem burguesa, visando não mais acabar com o capitalismo, mas reformá-
lo. O movimento operário passa a ser coparticipante na gestão do
capitalismo.
Por seu turno, a burguesia tem de considerar a existência de uma
ordem alternativa à sua, o socialismo, que passa da teoria à realidade com a
Revolução Russa de 1917, e depois se expande como um modelo de
organização de sociedades que representam cerca de um terço da população
mundial. Assim, confrontada com uma forma de organização alternativa ao
capitalismo, a burguesia passa a ter interesse em estabelecer um acordo
com o forte movimento operário do final do século XIX e início do século
XX, para legitimar a sua ordem social. É “entregar os anéis para não perder
os dedos”. A burguesia aceita financiar políticas para oferecer melhores
condições de vida à população de seus países. Tudo isso foi possível,
porém, devido à fase de crescimento que o capitalismo atravessou após a
Segunda Guerra. Havia riqueza para ser distribuída.
O pacto que se estabeleceu entre as classes se traduz numa ordem em
que, através de um sistema tributário progressivo, pelo qual a contribuição
cresce na mesma medida que a renda dos contribuintes, o Estado extrai
renda dos mais ricos para repassá-la ao conjunto da sociedade em forma de
políticas sociais. O Estado aparece como um mediador entre as classes e,
para tal, transforma-se para prover o suporte institucional e financeiro à
política social.
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Na verdade, esse processo põe em questão a eficiência e os


resultados sociais do modelo liberal, na sua dimensão tanto econômica
quanto política, no sentido de sua capacidade de constituir uma sociedade
mais justa e fornecer legitimidade à ordem burguesa. Essa discussão pode
ser colocada em termos de Estado e mercado.
O modelo liberal fundamenta-se no princípio da defesa da liberdade
dos cidadãos, tanto das escolhas pessoais como, principalmente, da
iniciativa econômica. O liberalismo defende a organização da sociedade
segundo o livre jogo dos interesses de indivíduos, que estabeleceriam
livremente contratos no mercado. O Estado deve ser mínimo em suas
funções e poderes.
O problema, porém, para os que acreditamos em sociedades mais
solidárias e iqualitárias, é que o funcionamento do mercado implica a
crescente desigualdade na distribuição dos frutos do trabalho. Em termos
políticos, o sistema de mercado traduz-se no fortalecimento do poder dos
que possuem e administram o equipamento produtivo. O livre
funcionamento do mercado cria, pois, sociedades progressivamente
desiguais, acarretando risco para a maioria da população. Risco de
desemprego, de carência de bens e serviços essenciais, dentre outros. Seus
efeitos cruéis só não redundam numa dinâmica autofágica, no sentido da
dissolução do tecido social pela falta de legitimidade do poder político, na
medida em que foram atenuados pela intervenção do Estado, que oferta
uma rede de segurança, ainda que limitada, aos desafortunados. Só assim o
capitalismo se legitima. E o paradoxal nisso tudo, é que foram os
socialmente engajados que salvaram o capitalismo de si mesmo, com a
oposição dos que se salvaram. Enquanto a parte mais pobre reivindicava
melhores condições de vida, os mais ricos buscaram defender-se de
impostos maiores, base de financiamento da melhoria de vida da maioria,
brandindo um princípio liberal. Defendiam que os recursos deveriam ser
alocados pelo livre jogo dos interesses no mercado e não pela imtromissão
política na liberdade econômica dos empreendedores privados.
Argumentavam que de sua prosperidade dependia o bem-estar do restante
da sociedade: quanto mais recursos tivessem os mais ricos, mais
investimentos fariam e melhores condições teria toda a sociedade. A isso o
o economista John Kenneth Galbraith chamou ironicamente de teoria do
cavalo: se for dada ração suficiente aos cavalos, parte dela terminará na
estrada para os pardais.
Porém, se o livre mercado suscita a desigualdade social, no aspecto
econômico não deixou, tampouco, de apresentar problemas. Para o
surgimento da social-democracia concorreram também o trauma da Grande
Depressão de 1929 e a crise da economia capitalista que se seguiu. Essa
crise evidenciou que o livre mercado não é tão virtuoso como os liberais
imaginavam: toma-se consciência de que o seu desempenho passa da
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expansão à depressão, causando aos mais fracos, nos períodos de crise,


privação e desespero. Aí também é necessária a intervenção do Estado.
Segundo o economista inglês John Maynard Keynes, em tempos de crise só
a intervenção governamental, através do aumento do gasto público, pode
gerar empregos, minorar os efeitos sociais da crise e impulsionar um novo
ciclo econômico virtuoso. Assim, caberia ao Estado minimizar as
disfuncionalidades do funcionamento do mercado tanto no que concerne à
economia quanto ao aspecto social.
As políticas sociais passam a caracterizar a ação estatal sobre as
condições de vida das populações, na medida da percepção dos efeitos do
livre mercado. É assim que, nos países de capitalismo mais avançado, o
Estado passa a ter o papel de implementar a idéia de direitos sociais. E o
Brasil? Como se caracteriza em relação às políticas sociais? É o que
veremos a seguir.

O CASO BRASILEIRO

A intervenção do Estado brasileiro visando a constituir um sistema


de proteção social tem início nos anos 30, aproximadamente, quando o
poder público reconhece que a problemática social não era uma questão
estritamente privada. Não que a questão social deixasse de ser um
problema público anteriormente. Na década de 20, há mobilização de um
movimento sindical atuante, que luta por melhores condições de vida e
trabalho. A elite política brasileira, coerente com sua estreita ideologia,
reage com a repressão. Tal forma de tentar resolver o problema social,
porém, mostra-se contraproducente: fica clara a impossibilidade de se
garantir a acumulação econômica pela coação. Para pacificar a força de
trabalho e para que as elites se legitimassem politicamente, o problema da
ordem econômica e social passa a ser tratado de outra forma, via política
social. É a partir dessa necessidade que começa a conformar-se o padrão de
intervenção social no Brasil.
A interferência governamental nas relações sociais no Brasil não se
afasta muito do padrão verificado em outros países. Os conflitos gerados
pela industrialização e seus desdobramentos levam ao esgotamento da
concepção de organização social e econômica baseada no livre jogo dos
interesses no mercado, impondo a necessidade de intervenção do Estado
tanto nas relações de trabalho quanto na esfera da distribuição de bens e
serviços, através das políticas sociais. No entanto, tal processo guarda suas
peculiaridades no Brasil.
O conceito-chave que permite entender a política social brasileira,
dos anos 30 ao final dos anos 80, proposto por Wanderley Guilherme dos
Santos em trabalho clássico sobre o assunto, é o de “cidadania regulada”.
Ao contrário da concepção de cidadania que toma como sujeitos de direitos
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todos os participantes de uma sociedade, sem qualquer requisito de


qualificação, a noção de “cidadania regulada” implica a exclusão de
parcelas mais ou menos amplas da sociedade, da esfera dos direitos,
dependendo do momento. No caso, são cidadãos aqueles que se localizam
em uma das ocupações reconhecidas pelo Estado e definidas em lei. O
acesso aos direitos sociais e o escopo desses direitos dependem, portanto,
de um reconhecimento do Estado a determinados grupos. E esse
reconhecimento se faz segundo o lugar que as pessoas ocupam no processo
produtivo. Confirmando a tese de que no Brasil as políticas sociais foram
adotadas visando possibilitar o funcionamento da economia, as profissões
reconhecidas são as mais relevantes sob o aspecto econômico. E quanto
mais relevante é a profissão, maiores são os benefícios auferidos. Os
demais, os trabalhadores não regulamentados, tornam-se pré-cidadãos.
O padrão de intervenção social brasileiro é então seletivo, no plano
dos beneficiários, e heterogêneo, no plano dos benefícios. Seletivo, porque
só alguns têm direitos; heterogêneo, porque esses direitos são diferenciados
conforme a empresa ou a categoria do trabalhador. Um ferroviário, por
exemplo, no início dos anos 30 ocupava um lugar privilegiado no mercado
de trabalho e, por isso, tinha direito à aposentadoria, pensão e assistência
médica; já um trabalhador rural, além de ocupar um posto de trabalho
inferior, não tinha quaisquer direitos sociais. A política social reforçava as
desigualdades, em vez de combatê-las.
Diante dessa situação, os setores não regulamentados pressionavam
para o seu reconhecimento por parte do Estado. E a evolução da
intervenção estatal nas questões sociais caracteriza-se pela incorporação
progressiva de novas categoria profissionais aos direitos sociais. É assim
que nos anos 20 e início dos anos 30, aposentadorias, pensões e assistência
médica eram direitos de trabalhadores de empresas específicas,
administrados pelas Caixas de Aposentadorias e Pensões – CAPs. O
financiamento desses direitos se dava através da contribuição dos
empregados, empregadores e Estado. Quem mais podia contribuir,
melhores benefícios recebia. A partir de meados dos anos 30, os benefícios
passam a ser fornecidos pelos Institutos de Aposentadoris e Pensões –
IAPs, que abrangem não mais funcionários de empresas, mas categorias
profissionais inteiras. O resultado é uma redistributividade: funcionários de
empresas com condições de trabalho e de contribuição diferentes passam a
ter acesso a serviços e direitos iguais. Em 1966, os IAPs são reunidos no
Instituto Nacional de Previdência Social – INPS. Agora os benefícios e
serviços são iguais para todas as categorias profissionais reconhecidas,
independente da expressão econômica de cada categoria. A base para se ter
acesso aos direitos era a contrapartida em contribuição. Assim, os
desempregados ficam excluídos dos benefícios e serviços. Além disso, é só
na década de 70 que os trabalhadores rurais e empregadas domésticas vão
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ter acesso aos direitos sociais.


A universalização dos direitos sociais só vai se dar com a
Constituição Federal de 1988. Formalmente, todos os cidadãos,
independente de quaisquer qualificações, passam a ter direitos sociais. Se
antes, por exemplo, só quem contribuía com o INPS tinha acesso à saúde
pública, depois da promulgação da Constituição basta a carteira de
identidade para ter direito ao atendimento. Consolidamos, então, a idéia de
direitos sociais universais? Desafortunadamente não. Se formalmente, a
Constituição de 88 estabelece que todos os brasileiros devem ter acesso a
serviços e benefícios para uma vida minimamente digna e segura, não há
uma transposição automática da lei à prática. Primeiro porque muitas leis
ficam apenas no papel. Depois, nas políticas públicas, muitas vezes os
efeitos alcançados são diferentes dos pretendidos. Vejamos um exemplo.
Conforme o artigo 196 da Constituição de 1988, a saúde é direito de
todos e dever do Estado. Com inspiração no sistema público inglês de
saúde, caracterizado pela oferta pública e universal dos serviços, a
Constituição Federal define como obrigação do Estado ofertar os serviços
de saúde para todo cidadão brasileiro. Até então, como se disse, o direito à
saúde pública era facultado apenas aos que contribuíam com o sistema.
Com a universalização dos direitos aos serviços de saúde, a demanda
aumentou, sem que houvesse o necessário aumento dos recursos alocados
para o setor. Resultado: cai a qualidade dos serviços públicos ofertados.
Consequentemente, as classes mais favorecidas e funcionários de empresas
que adotavam sistemas de amparo aos seus empregados buscam os seguros
e planos privados de saúde. Como o regime militar privilegiou financiar os
empresários da saúde em detrimento da constituição de uma estrutura
pública da oferta, o processo de privatização da saúde encontrou, para sua
expansão, uma rede hospitalar privada constituída, diga-se de passagem,
com dinheiro público. Os requisitos para o desenvolvimento de um
mercado privado de saúde estavam dados: de um lado, uma demanda
constituída; de outro, uma estrutura de oferta consolidada. Ao restante da
população coube recorrer aos serviços públicos precarizados. Como as
pessoas com maior poder de pressão política foram justamente as que
migraram para os serviços privados de saúde, isto acabou deslocando a
discussão do foco da necessidade da oferta de saúde pública de qualidade
para o de regulamentação dos ofertantes privados dos serviços, visando a
um melhor atendimento de seus clientes. A intenção era de dotar o país de
um sistema público e gratuito de saúde, mas o resultado foi um sistema
público precário, ao lado de um vigoroso sistema privado de saúde. A
universalização imaginada se mostrou, portanto, em certo aspecto,
excludente: a baixa qualidade dos serviços prestados acaba excluindo as
pessoas que contam com alternativas de resolver o acesso aos serviços de
saúde de forma privada. Se a concepção da Constituição foi desenhar um
13

sistema público de saúde nos moldes do inglês, na realidade acabou-se


transferindo-o em grande parte ao setor privado, conforme o modelo
vigente nos Estados Unidos.
O problema é que a concepção de direitos sociais universais se
consolida legalmente no Brasil no momento em estava sendo contestada
por forças políticas poderosas, mesmo nos países onde surgiu. O contexto é
de aprofundamento da crise econômica, com a crise fiscal do Estado,
implicando maior escassez de recursos para o cumprimento do que
estabelecia a Constituição. Assim, o aumento da demanda pelos serviços
públicos não é acompanhado do aumento de verbas. Há, portanto, a
precarização dos serviços e a busca, pelos grupos com condições para tal,
dos suprimentos desses serviços ofertados pelo setor privado.
Além dessa caracterização mais geral, outros traços definem as
políticas sociais no Brasil. Em primeiro lugar, o processo de expansão dos
direitos implica a centralização institucional e financeira das ações sociais
no governo federal, especialmente no período do regime militar. Ao lado
dessa centralização, ocorre uma fragmentação institucional, com a criação
de órgãos públicos de diferentes naturezas, como fundações e empresas
públicas, que se articulam com clientelas específicas e adotam lógicas de
atuação próprias. Isso cria uma situação de burocratização excessiva,
desarticulação das ações, superposição de programas e ausência de
mecanismos de controles da ação pública. Tal fato é agravado pela
exclusão do direito de participação social e política de grande parte da
população. Sem controle, a ação do Estado autoritário desvia-se dos
objetivos propagados, redundando em fraudes e corrupção. Outro aspecto
que destoa da idéia de direitos sociais é a avaliação dos programas sociais
pelo critério da sua viabilidade econômica. Os recursos investidos
deveriam ser repostos pelos beneficiários dos programas. Um fundo criado
para financiar habitação e saneamento para população necessitada, o do
Banco Nacional de Habitação, por exemplo, acaba privilegiando habitação
em detrimento de saneamento, e habitação para classe média, em
detrimento de habitação popular. As ações são priorizadas pela capacidade
de retorno financeiro e não pela relevância social.
De tal lógica, somada ao poder de pressão que as classes mais
favorecidas têm frente ao Estado, surge o fato de que boa parte dos
recursos alocados para as políticas sociais acaba financiando os que
ocupam lugares privilegiados no mercado. Os gastos sociais acabam sendo
apropriados pelos mais ricos, conforme demonstram os dados: em 1992,
20% da população mais pobre apropriava 15% desses gastos, enquanto os
20% mais ricos ficavam com 21% dos gastos. Outra característica que foge
ao modelo do Estado de Bem-Estar clássico é que a base institucional da
oferta de políticas sociais foi em grande parte composta pelo setor privado,
alavancado por dinheiro público. Também em 1992, 72,74% dos gastos
14

totais com saúde foram com o setor privado.


Finalmente, as instituições sociais acabam sendo utilizadas como
recurso de poder de grupos com acesso ao Estado. O controle dos recursos
financeiros e administrativos do Estado implica o estabelecimento de
relações clientelistas: barganha-se apoio político por acesso a bens públicos
como cestas básicas, emprego, habitações, dentre tantos outros. No caso, tal
questão pode ser problematizada a partir da idéia de democracia, tomada
como regras que fazem do governo expressão da vontade popular, fundadas
no princípio da liberdade e na busca de uma situação efetiva de maior
igualdade social. Vejamos o processo de luta contra o regime militar e o
esforço da construção da democracia.

DEMOCRACIA E DESCENTRALIZAÇÃO

O regime instaurado em 1964 coloca o Estado brasileiro ao controle


de forças avessas aos direitos civis e políticos básicos dos cidadãos. Sua
relação com a sociedade marcada pela repressão. O exercício do poder
político é caracterizado pela centralização político-administrativa e pelo
autoritarismo. Enquanto certos interesses se apropriam das ações do
Estado, outros encontram no Estado apenas um agente repressor. O Estado
distancia-se das demandas populares e suprime as políticas redistributivas.
Sua ação é bem traduzida na fórmula: “Fazer o bolo crescer para depois
dividi-lo”.
A partir de meados da década de 70, no entanto, o regime militar vai
perdendo suas bases de apoio, enquanto a sociedade civil se organiza de
uma forma inédita, reivindicando espaços de participação democrática.
Sindicatos de trabalhadores voltam a atuar, organizam-se associações de
bairros, partidos políticos são fundados, num processo de intensa
participação e organização da sociedade. Nesse contexto, torna-se
imperioso, na perspectiva dos setores de oposição, reformular as
instituições estatais segundo os princípios democráticos. A
descentralização político-administrativa é então proposta. Um argumento
bastante difundido por esses setores é que a melhor forma de aproveitar e
potencializar o dinamismo do movimento social do período seria através da
institucionalização da participação popular na gestão pública. É a partir
desse processo que os governos estaduais de oposição eleitos em 1982
adotam a concepção da democracia participativa. Não basta a democracia
eleitoral, argumentam, torna-se necessário abrir espaços para a participação
da população na gestão pública.
Na verdade, um alvo dos setores oposicionistas é acabar com a forma
clientelista de exercício de poder, que caracteriza a política brasileira ao
longo de todo o século XX. O clientelismo envolve barganha de bens,
muitas vezes públicos, em troca de lealdade. Grupos e pessoas que
15

controlam os recursos públicos utilizam esses recursos não como base em


necessidades sociais ou projetos que visam a uma sociedade melhor para a
maioria, mas, ao contrário, para atender aos interesses dos que detêm o
poder político. O Estado passa a ser gerido segundo objetivos político-
eleitorais. Distribuição de cestas básicas, alocação de postos médicos,
construção de estradas e escolas, nomeação de funcionários públicos e
muitas outras ações públicas visam garantir apoio e lealdade política aos
grupos no poder. O jogo político se dá, então, em grande medida, em torno
da disputa de posições no interior do Estado, visando garantir a
possibilidade de controlar e manipular os seus recursos, com o objetivo de
lograr apoios e votos. Forma-se, assim, uma complexa rede de corretagem
que perpassa todos os níveis de poder.
O resultado é que a lógica da implementação das políticas sociais
deixa de ter como fim uma situação de maior igualdade social. Tais
políticas transformam os recursos públicos em moeda eleitoral,
beneficiando os aliados e punindo os adversários. Instala-se, assim, da ótica
dos usuários, um fator que leva à ineficiência e ineficácia da atuação estatal
no setor social. Por exemplo, escolas e hospitais são construídos não
segundo a real necessidade de cada localidade, mas pelo retorno em votos
que podem proporcionar. É assim que inauguram diversos prédios públicos,
com as solenidades de praxe, para depois relegá-los ao abandono.
Além de visar enfraquecer politicamente as elites governantes, ao
tirar-lhes o controle de um importante recurso de poder, a reivindicação
pela descentralização político-administrativa do Estado pretende
possibilitar a implementação eficiente das políticas sociais e, dessa forma,
minorar o problema da desigualdade social. Concedendo-se à sociedade
poder de participação na gestão dos recursos públicos, com a possibilidade
de decidir sobre as prioridades, sobre como gastar os recursos e,
principalmente, na fiscalização do cumprimento das metas e na correção da
aplicação dos recursos financeiros e materiais, evitam-se desperdícios e
desvio de recursos. Ao mesmo tempo, garante-se a vontade dos cidadãos.
As políticas sociais passariam, então, a expressar não só a ótica dos
administradores, mas sobretudo a ótica dos beneficiários. Descentralização
se tornaria sinônimo de democratização, e a participação tornaria-se um
importante fator de educação política e de formação dos verdadeiros
cidadãos, pessoas conscientes dos seus direitos e deveres, conscientes de
que a construção de uma vida comum deve ser obra de todos.
Como um determinado desenho institucional reflete uma
determinada distribuição do poder, redesenhar as instituições estatais pode
resultar na redistribuição das chances de acesso ao poder dos diversos
atores sociais. Tal fato explica a disputa que se dá em torno da questão da
reforma do Estado. Nos anos 80, setores que estiveram alijados do poder no
regime militar viam na descentralização uma forma de ter acesso ao
16

Estado, e os setores que apoiaram o regime militar relutavam aceitar as


modificações ou então adotavam mudanças, mas de forma gradual e
restrita.
Um exemplo é o da política pública de educação de Minas Gerais.
Em 1982, o PMDB, partido de oposição ao regime militar, ganha o governo
de Minas, com Tancredo Neves, no contexto da vitória das oposições nos
estados mais importantes do Brasil. Até então, refletindo os interesses que
tomaram o poder em 1964, o Conselho Estadual de Educação era dominado
pelos representantes do ensino privado. Havia, assim, uma reserva de
mercado do 2o grau para as escolas particulares. Não se podia expandir a
oferta da rede pública em locais que a iniciativa privada pudesse suprir a
demanda. Com o governo do PMDB, a Secretaria de Educação ficou sob
direção de militantes de esquerda. Os membros do Conselho Estadual de
Educação foram sendo substituídos por professores universitários, que
passaram a dar suporte a uma nova visão de educação, caracterizada pela
ênfase no ensino público. Assim, um espaço dominado por interesses
restritos passou a ser ocupado por interesses até então alijados da gestão
pública. O mesmo vai ocorrer em diversas outras áreas.
Um outro exemplo de descentralização, agora no nível federal, é a
adoção do Sistema Único de Saúde. Com o intuito de tornar mais eficiente
e democratizar a gestão do sistema, além de modificar o padrão anterior de
forte centralização decisória e financeira no governo federal, a Constituição
de 88 propõe como princípio de organização da saúde pública a
descentralização do sistema e a participação popular. O foco privilegiado
para a oferta dos serviços passa a ser o município. Para tal, propõe-se a
criação de Conselhos Municipais de Saúde, compostos de 50% de
representantes dos usuários e a outra metade de representantes do governo
e dos profissionais de saúde, com a função de deliberar sobre as ações a
serem executadas. Com a finalidade de formular estratégias para a atuação
nos Estados, criam-se nos mesmos moldes os Conselhos Estaduais de
Saúde. Finalmente, a União fica com a função da distribuição dos recursos,
de auditoria do sistema e da condução de programas nacionais (AIDS por
exemplo).

DESIGUALDADE E POLÍTICAS SOCIAIS

Como vimos, as políticas sociais visam resolver, em certo aspecto, o


problema da desigualdade e, consequentemente, da pobreza. Se é assim,
pode-se afirmar que o Brasil carece de políticas sociais. Nosso país
caracteriza-se por um amplo contingente da população localizado abaixo da
linha de pobreza. Nas últimas duas décadas, cerca de 40% a 45% da
população vive com uma renda insuficiente para uma vida minimamente
digna. Essa situação teria duas causas: a insuficiência das taxas de
17

crescimento econômico e a extrema concentração de renda do Brasil.


Já está demonstrado que o crescimento econômico no Brasil tem um
impacto relativamente pequeno na diminuição da pobreza, porque é
caracterizado pela concentração da renda. Tal fato é fruto de certa
concepção de gestão econômica que impera no Brasil. Utilizando-se da
teoria eqüina de Galbraith, poderíamos dizer que a concepção das elites
dirigentes é que nosso cavalo é de tão magro que não pode despender pela
estrada qualquer quantidade de energia. De Oliveira Vianna a Delfim
Netto, a tese é que não se deve falar em distribuição de riquezas antes de
acumulá-las. Ao que poderíamos acrescentar: nos tempos que correm, os
cavalos padecem de prisão de ventre. Em tempos de Pedro Malan, o
discurso é esperar a estabilização da economia para ministrar laxante ao
nosso pangaré.
Resta, portanto, enfatizar a opção da distribuição da renda. Com os
recursos que temos, é plenamente possível resolver o problema da pobreza.
O Brasil é um país extremamente desigual: comparado com a média da
população pobre de países com renda per capita similar à sua, o Brasil
deveria ter sua taxa de pobreza em torno de 8%, conforme demonstram
Barros, Henriques e Mendonça. Em um universo de 92 países, somente a
África do Sul e Malavi têm um grau de desigualdade de renda maior do que
o Brasil. Confiar no mercado para resolver essa questão é inútil. Somente
através da ação do Estado, especificamente no campo das políticas sociais,
podemos alcançar um grau de desigualdade menor e tolerável.
Porém, a questão da desigualdade não afeta apenas uma certa noção
de justiça. Uma rede de segurança social eficaz para os indivíduos e para as
famílias é necessária também para a garantia da liberdade e da democracia.
A absoluta falta de condições materiais de existência é incompatível com a
autonomia e liberdade dos cidadãos. Além disso, uma democracia política
que não gera, de alguma forma, maior bem-estar social, acabará sendo
questionada em seu sentido. Tomemos o exemplo do Brasil. Temos hoje
cerca de mais de 100 milhões de eleitores. Destes apenas cerca de 12%
contribuem com o imposto de renda, já que a renda dos demais é
insuficiente. Esse fato revela que a crescente incorporação da população na
arena das decisões políticas não é acompanhada de sua incorporação social
e econômica, o que reforça as características clientelistas e populistas da
política brasileira, além de fragilizar o próprio sentido da democracia
política. Se os canais de participação institucional não respondem às
necessidades mínimas das pessoas, qual a alternativa para os excluídos?
Cremos que a violência que se alastra por nossas cidades é parte relevante
da resposta.

UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL


18

A partir do final dos anos 80, eventos que vinham se processando no


mundo vão questionar a atuação do Estado no campo econômico e social.
O neoliberalismo se torna hegemônico, sendo difundido, com a ajuda de
organismos internacionais, como modelo de organização de diversos
países. O tema da reforma do Estado ganha destaque na agenda de vários
governos. Questiona-se o Estado de Bem-Estar e reafirma-se a idéia de que
o livre jogo dos interesses no mercado é a forma mais racional e mais justa
de alocar os recursos econômicos. Agora a idéia central é a de que o Estado
é por natureza ineficiente, improdutivo, e desperdiça os recursos escassos.
A solução é a privatização. No caso tange aos problemas sociais, o ideal é
que a própria sociedade passe a amparar os necessitados. Defende-se a
atuação da família, da comunidade, de organizações não-governamentais
ou do setor público não-estatal no setor social. Em políticas sociais cuja
implementação ainda fique a cargo do Estado, a descentralização é
defendida para evitar a burocratização e a corrupção, garantindo assim a
eficiência na aplicação dos recursos. Não se parte da idéia de uma
sociedade mais igualitária: a desigualdade seria justa por refletir diferenças
naturais, de capacidades e esforço, entre os homens. E o conceito do justo,
no caso, é a distribuição dos recursos pelo mérito de cada um: e isto só o
mercado pode fazer. A idéia de direito social perde o seu sentido. Se as
políticas sociais visavam, baseadas numa idéia de justiça e igualdade
social, à educação e saúde para todos, por exemplo, a nova concepção é a
de concentrar os recursos disponíveis nos setores mais carentes. É assim
que o Estado passa definir como alvo de suas políticas a infância e
adolescência, juventude, mulher, idosos, índios, que por sua vez, são
divididos em subgrupos de alta vulnerabilidade, como crianças maltratadas,
jovens desempregados, idosos pobres, mulheres chefes de família, dentre
outros. Não é por outro motivo que a desigualdade social tem aumentado
no mundo depois que o pensamento neoliberal se tornou hegemônico.
Nos tempos que correm, quando se fala em política social um
problema se impõe. Será que a política social, no contexto da economia
capitalista, pode criar de forma sustentável uma sociedade mais justa? A
crise do Estado do Bem-Estar não sustentaria a resposta de que a economia
de mercado implica desigualdade crescente e de que políticas em contrário
teriam pouca sustentação? As políticas sociais seriam meros paliativos? Se
a resposta for positiva, o que colocar no lugar? Qual a alternativa de
organização da sociedade, se o socialismo real falhou como modelo?
A verdade é que o sonho de sociedades mais justas e igualitárias, no
mundo, torna-se mais distante a partir da década de 80. Quando, no Brasil,
chegamos a estabelecer uma Constituição que incorpora os direitos sociais,
as condições econômicas apontam em outro sentido. Segundo a concepção
hegemônica de gestão das sociedades, difundidas pelos organismos
internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Nacional
19

através do modelo neoliberal, a melhor forma de alocar os recursos na


sociedade é através do livre jogo dos interesses no mercado. A ação do
Estado, incluindo nas questões sociais, é vista como algo negativo: injusta,
porque transfere renda dos que têm méritos para os incompetentes;
ineficaz, porque nunca alcança os objetivos colocados. Nos próprios países
em que se configurou o Estado de Bem-Estar Social, tais princípios foram
adotados, porém com limites, pois suas populações não estavam dispostas a
perder o sistema de atendimento social que alcançaram. Mesmo assim a
desigualdade aumenta, com a conseqüente tensão social.
Hoje, os que acreditam em uma sociedade mais solidária encontram-
se na obrigação de ajudar a construir alternativas ao modelo neoliberal. Isso
implica em soluções práticas, construídas no fazer cotidiano, e soluções
teóricas que possam iluminar um caminho para a ação e lançar as bases
para um modelo de organização social mais solidário. Em ambos os casos,
a tarefa é coletiva. E o que envolve essa tarefa?
Estamos em uma conjuntura em que o poder do capital é
incontestável e se expressa, por um lado, no controle que os países ricos
têm sobre organismos internacionais como o Banco Mundial e o FMI, de
cujos recursos os países em dificuldades necessitam tanto. Por outro lado, a
racionalidade econômica que impera é pautada pela contabilidade que visa
ao acúmulo de ganhos em forma de moeda. Dessa lógica estão excluídas as
conseqüências humanas e ecológicas: tornam-se secundários os efeitos da
economia em termos das condições de vida das populações e de devastação
dos recursos naturais. Em termos técnicos, são “externalidades”. O
resultado é que os homens, na construção da sua vida material, perdem de
vista os objetivos humanamente significantes que deveriam norteá-los.
Passam a não importar os efeitos da racionalidade econômica para a
maioria das pessoas. Como afirmou o pensador alemão Robert Kurz, a
empresa moderna matou mais crianças que o rei Herodes, com a diferença
que ela lava as mãos em nome das leis monetárias. Para concorrer no
mercado, torna-se irracional alocar recursos em políticas sociais. Daí
resulta um mundo em que as desigualdades aumentam tanto nos países
periféricos como também nos países centrais. É crescente a desigualdade
entre as rendas de capital e as rendas do trabalho. Enquanto uma minoria
torna-se cada vez mais abastada, o desemprego aumenta e o trabalho se
precariza. A racionalidade econômica é então uma “gaiola de ferro” cujas
as grades devem ser arrebentadas.
Mudar a racionalidade da economia é uma tarefa política que hoje
transcende os marcos nacionais. Se o capital se tornou consideravelmente
autônomo em relação aos Estados nacionais, a reação deve estar presente
na mesma arena. A preocupação com o bem-estar humano não termina nas
fronteiras nacionais. Essa é uma idéia que tem seus defensores hoje. Porém,
é necessário traduzir tal preocupação para a prática dos organismos
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internacionais. A reação deve ser interna e externa ao mesmo tempo. Tal


diagnóstico, contudo, não reduz a importância do papel compensatório das
políticas sociais, que minimizam, em maior ou menor grau, os estragos
feitos pela lógica econômica vigente. Ruim com as políticas sociais, pior
sem elas.

INDICAÇÕES PARA LEITURA

Para aprofundar o tema, algumas obras podem ser de grande va-lia.


Sobre o conceito de política e políticas públicas, ver texto meu, “Para um
Conceito de Política”, em Cadernos de Ciências Sociais, Belo Horizonte,
PUC-Minas, n. 9, 1999. Sobre as bases políticas e econômicas do Estado
do Bem-Estar na Europa, ver de Adam Przeworski, o primeiro e o sexto
capítulo do livro Capitalismo e Social-democracia, São Paulo,
Companhia das Letras, 1989. Sobre a evolução dos direitos, especialmente
direitos sociais, ver a obra clássica de Thomas H. Marshall, Cidadania,
classe social e status, Rio de Janeiro, Zahar, 1967.
Sobre as políticas sociais no Brasil, destacamos “A Práxis Liberal e a
Cidadania Regulada”, capítulo de Décadas de espanto e uma apologia
democrática, de Wanderley Guilherme dos Santos, Rio de Janeiro, Rocco,
1998, resumo de uma obra clássica sobre a evolução das políticas sociais
no Brasil, do mesmo autor. Outro texto de interesse é o de Sônia Miriam
Draibe, “O ‘Welfare State’ no Brasil: características e perspectivas”,
publicado na revista Ciências Sociais Hoje, São Paulo, Vértice, Anpocs,
1989. Dados sobre a situação social no Brasil e a necessidade de
distribuição da renda são encontrados no teto “Evolução recente da pobreza
e da desigualdade: marcos preliminares para a política social no Brasil”, de
Barros, Henriques e Mendonça, em Cadernos Adenauer, São Paulo,
Fundação Konrad Adenauer, n. 1, 2000.

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