Neste texto, o objetivo é desenvolver o significado geral de política
social e abordar o processo de constituição da idéia de direitos sociais no mundo e as especificidades da adoção das políticas sociais no Brasil. Serão sugeridas algumas ideias relativas aos direitos sociais e às políticas sociais, no mundo contemporâneo. Nem é preciso chamar a atenção para a amplitude ou ousadia, digamos, do tema proposto. Parece que o leitor irá encontrar um trabalho organizado não em pequenas partes, mas em capítulos que se desdobram em volumes. Não é o caso. O que se oferece aqui é um pequeno trabalho que busca introduzir uma visão geral sobre um assunto tão amplo. É assim que, dado o espaço reduzido e, principalmente, as limitações do autor, o texto que se segue apresentará uma abordagem parcial, muitas vezes disforme e incompleta do tema das políticas sociais. A opção é procurar oferecer uma visão geral do assunto, em detrimento das particularidades. Tentemos, portanto, colocar o elefante na caixa de fósforo.
POLÍTICA E POLÍTICAS SOCIAIS
As políticas sociais são uma modalidade das políticas públicas que,
por sua vez, representam uma subclasse do conceito de política. Comecemos do geral para o particular. O princípio básico da política é o fato de que os homens são diferentes e necessitam uns dos outros para viver. É dessa constatação básica que a política surge como problema: se o homem é um ser social, se necessita relacionar-se com outros homens para viver e, ao mesmo tempo, difere de qualquer outro, como é possível viabilizar uma vida em comum, e de que forma o homem individual e os grupos podem fazer valer suas crenças, valores e interesses? O objetivo da política é, assim, o de processar as diferenças entre as pessoas e possibilitar uma vida em comum. Nesse sentido, podemos propor dois momentos relacionados com a ação política: o momento do consenso e o momento do conflito. No primeiro caso, o que está em jogo é a capacidade dos homens de estabelecerem acordos, através da fala, reforçando pontos de identidade 1 Professor do Departamento de Sociologia da PUC-MINAS 2
e assim traçando objetivos comuns. Como exemplo, podemos tomar o fato
de homens que compartilham a situação de serem operários, tendo, para sobreviver, de vender sua mão-de-obra a terceiros. Esse ponto comum se desdobra em ação quando, a despeito de todas as outras diferenças, esses homens se organizam num sindicato, estabelecendo objetivos comuns. No segundo caso, a ação visa à prevalência de alguns valores sobre outros. Tomemos o mesmo exemplo dos operários em sua relação com os patrões: o que está em jogo aí é o fato de que os operários desejam receber mais pelo seu trabalho e os patrões desejam pagar menores salários. Tal fato implica disputa. Há, assim, uma situação em que a ação política visa impor o interesse de uns sobre os outros. A política pode ser vista como constituída de ambos os momentos: um momento de identificação com o outro, visando estabelecer uma ação comum; e um momento de disputa de quem é capaz de fazer valer os seus interesses e valores frente a valores e interesses divergentes. Em qualquer sociedade moderna há uma diversidade de focos de disputa: classe social, gênero, religião e raça, dentre tantos outros. As questões envolvidas na política são aquelas referentes ao espaço público. Assim, as questões públicas são aquelas que têm conseqüências para a vida das pessoas que compõem uma sociedade. Se o espaço público é aquele em que um grupo de pessoas compartilha a sua existência, e as questões públicas são aquelas que afetam de alguma forma cada um dos que compõem o grupo, um requisito se impõe: as questões públicas devem ter transparência, devem ser vistas e ouvidas por todos. Devem ser publicizadas. Em contrapartida, há a esfera privada, que diz respeito apenas ao indivíduo e as pessoas de seu relacionamento mais próximo. As questões privadas são aquelas que não afetam o conjunto da comunidade. Daí o fato de que não interessam aos “de fora”. Contrastando com o requisito de transparência do público, as questões privadas envolvem a privação de ver e ouvir, devem encerrar-se no limite das casas. É como diz o ditado: “roupa suja se lava em casa”. O que tem ou não relevância para toda a comunidade varia no tempo ou de cultura para cultura. Questões que são públicas, no Irã, podem não ser no Brasil; questões que foram públicas no século passado podem não ser hoje. Fiquemos com apenas um exemplo: em passado recente, a relação entre pais e filhos era uma questão estritamente privada. Ninguém deveria meter-se na criação de uma criança por seus pais. Hoje, com a percepção que as crianças têm direitos, se um pai maltrata o filho, deve responder publicamente e pode, no limite, ser preso. A sociedade é que define, coletivamente, quais são as questões públicas. Um momento privilegiado da política é a busca do controle do Estado. O Estado representa um foco de poder que tem a capacidade de impor as regras de convivência em um determinado limite territorial. Um 3
requisito para isto é que ele deve monopolizar os instrumentos da violência
física, ou seja, possuir uma maior quantidade de armas e, dentre elas, as que têm a maior capacidade destrutiva. Sem isto, o Estado não tem condições de impor leis. Isso foi intuído por autores que estabeleceram a visão moderna de política, como Thomas Hobbes, para quem as leis sem a espada não passam de palavras. Concretamente, o Estado é composto de instituições integradas por funcionários públicos, cada qual cumprindo uma determinada função. O Estado visa a instaurar uma ordem em uma determinada sociedade. Tomemos o exemplo do trânsito de veículos. Há uma regra segundo a qual um carro deve parar quando o sinal está vermelho. Caso alguém transgrida essa regra, há um funcionário público para punir essa pessoa, o guarda de trânsito, que pode usar o argumento da racionalidade da regra para que a pessoa não repita seu ato (pois o perigo de uma colisão seria grande se não houvesse sinais), ou então utilizar o “argumento” de estar portando um talão de multa e, no limite, uma arma no coldre. E por que controlar o Estado é um momento importante na política? Por que o Estado é que estabelece e implementa as regras de convivência. E essas regras devem ser obedecidas por todos. Assim, quem controla o Estado tem muito mais condições de conformar a sociedade segundo seus valores e interesses. Quem controla o Estado maximiza poder. E poder é a capacidade impor a terceiros comportamentos desejados. Poder é ter a capacidade de estabelecer que se deve parar no sinal vermelho e as pessoas passam a agir conforme este princípio. Podemos dizer que o Estado age através das políticas públicas. As políticas públicas referem-se a decisões governamentais projetadas para atacar problemas que podem estar relacionados, por exemplo, a política externa, saúde pública, proteção do meio ambiente, crime e desemprego, dentre outros. Seus efeitos são direta ou indiretamente válidos para a sociedade, ou seja, têm poder vinculatório. As políticas públicas são predicados dos governos, implicando decisões fortalecidas em um programa em que se utiliza, em última instância, a virtualidade do uso da força para sua realização. Imaginemos a decisão de que determinados setores da sociedade devem repassar recursos ao poder público em forma de impostos; um ato de desobediência pode redundar, no limite, na ação policial. O próprio fato de identificar problemas implica uma proposta de transformação da realidade. Se algo é tomado como problemático é porque deve ser mudado. Assim, a política pública parte da insatisfação diante de determinada realidade, visando estabelecer uma outra realidade ideal ou pelo menos próxima do ideal. Isso tem a ver com ações destinadas a construir uma "ponte" entre a situação existente e um futuro possível, uma conduta que leva do ponto atual ao ponto que se quer chegar. Se se toma o 4
analfabetismo como algo negativo, estabelece-se uma política educacional
visando criar a situação desejável de colocar todas as pessoas na escola. Traça-se uma meta a ser alcançada e mobilizam-se os recursos necessários: para colocar determinada quantidade de alunos em sala de aula, torna-se necessário construir tantas escolas, contratar determinado número de professores, envolvendo um montante “x” de recursos financeiros e daí por diante. Finalmente, avaliam-se os resultados das ações implementadas, visando a constituir um estoque de conhecimento para orientar as ações futuras. Resumindo, as políticas públicas cumprem as fases de planejamento, implementação e avaliação. Como os recursos são escassos, ou seja, não há escolas, postos médicos nem habitações para todo o mundo, tomar decisões significa eleger prioridades. É mais importante construir escolas ou passar recursos para as empresas privadas em forma de incentivos? Ao responder a essa questão, elegem-se prioridades. As políticas públicas implicam, então, a repartição de bens escassos. Uma conseqüência básica das decisões públicas é a subtração ou transferência de recursos de um setor da sociedade para outros. Portanto, pode-se considerar as políticas públicas como um aspecto ou subclasse da política. As políticas públicas podem ser vistas como efeitos provocados por um conjunto complexo de forças sociais, que surgem à medida que as demandas para a resolução de certos problemas pelo Estado são propostas. Os bens escassos são repartidos através da interação de sujeitos cujo interesse consiste em se apropriar de tais bens. Essa alocação é influenciada pela distribuição e utilização do poder. Quem tem mais poder provavelmente vai ter maiores vantagens da ação estatal. Como os recursos escassos são disputados por grupos ou pessoas, pode-se dizer que se trata de alocação de valores entre unidades interatuantes. As decisões governamentais resultam da combinação da participação direta e indireta de atores políticos, que atuam por diversos meios, como persuasão, ameaças, promessas, manipulação direta, coerção e etc. O processo de tomada de decisões envolve relações pessoais, pois o que é decidido são as diretrizes que outras pessoas devem seguir. A grosso modo, pode-se traçar como etapas de uma decisão a existência de uma vontade e do poder para encaminhá-la, a escolha da decisão baseada na análise da realidade e nos componentes de negociação ou luta envolvidos na interação entre os participantes, e a formulação das políticas públicas propriamente ditas. Todo esse processo depende de dois fatores importantes. Primeiro, da experiência anterior dos atores em políticas passadas: decisões que não deram certo em períodos anteriores tendem a ser descartadas do estoque das alternativas a serem consideradas. Depois, dado o fato de que todo esse processo é em boa medida institucionalizado, depende das regras que conformam os limites de atuação dos atores. Tais regras não são neutras: 5
geralmente espelham um determinado equilíbrio de poder, potencializando
as chances de determinados interesses em detrimento de outros. Resumindo, podemos dizer que a política, vista de uma forma abrangente, apresenta uma relação dialética entre conflito e consenso. Por um lado, temos a criação do consenso, única forma em que interesses convergentes de sujeitos interatuantes podem partilhar objetivos, e assim "construir poder", visando atuar com eficácia na realização de seus objetivos. Por outro lado, temos atores que interagem de forma estratégica, cada qual tentando fazer prevalecer seus interesses sobre os demais. A política aqui é concebida como luta e, mais especificamente, como disputa pela submissão de uns interesses a outros. Se o conflito demonstra ações voltadas no sentido da "distribuição do poder", por outro lado é necessário "construir o poder" para se alcançar alguma eficácia na organização da convivência de pessoas com interesses e valores diversos. Numa certa perspectiva, o processo político é um fluxo contínuo de atividades diversas, mediante as quais há a repartição de bens escassos. Os bens escassos são repartidos através da interação de indivíduos, cuja ação objetiva a apropriação de tais bens. A alocação dos bens é resultante de dada distribuição e utilização do poder. O processo de alocação deve ser institucionalizado em certa medida, ou seja, deve orientar-se por certas regras. Ao cabo, deve legitimar a atribuição a certos indivíduos de certos objetos, tanto valorizados como desvalorizados. A política social é uma modalidade de política pública que visa a fornecer condições básicas de vida para à população – e o significado disso muda de sociedade para sociedade. Visa, assim, buscar uma situação de maior igualdade entre os componentes de uma sociedade e fornecer um nível básico de segurança sócioeconômica. Envolve uma ampla gama de modalidades, como políticas de saúde, educação, habitação, amparo a desempregados, crianças, velhos, programas de renda mínima, enfim, diversos tipos de intervenções. Porém, a noção de problemas sociais e, consequentemente, a existência de políticas sociais ocorre a partir de determinado momento na história. Vejamos.
A QUESTÃO SOCIAL COMO PROBLEMA
A questão social torna-se um problema público com o
desenvolvimento do capitalismo. Na economia agrária elementar, havia trabalho para todos e os mais jovens cuidavam dos idosos. A assistência à saúde por profissionais não era tão importante, pois não haviam ocorrido os grandes avanços da medicina e da cirurgia e os médicos não tinham muito o que fazer. Saúde não era algo que dependia da capacidade de pagar. O mesmo pode-se dizer em relação à educação: o estoque de conhecimentos necessário para a vida era repassado pela família e no próprio local de 6
trabalho. Foi a urbanização que tornou necessária a constituição de serviços
públicos de assistência social. É remoto o primeiro esforço público de combate à pobreza. Em 1601, na Inglaterra, foi promulgada a Poor Law, cujo objetivo era a eliminação da pobreza através da constituição de um sistema de subsídio em dinheiro, financiado pela cobrança de uma taxa. O resultado foi a eliminação dos pobres e não da pobreza: a comunidade que tinha de prover o sustento dos pobres resolveu expulsá-los. Uma solução que, infelizmente, repete-se na história. Até meados do séc. XIX, o problema social era resolvido por corporações de artes e ofícios, por sociedades de socorro mútuo e pela própria comunidade, com ênfase na família. Com a Revolução Industrial, que joga imenso contingente de pessoas no espaço urbano, empobrecidas e privadas dos laços de solidariedade que encontravam no meio rural, expostas aos riscos do mercado, a “questão social” começa a deixar de ser um problema de caridade ou de polícia. As desigualdades sociais começam a deixar de ser tratadas como reflexo de virtudes, de vícios morais ou de habilidades individuais, para serem relacionadas com o funcionamento do próprio sistema econômico. De formas diversas, a falta de condições básicas de vida e os riscos da economia de mercado tornam-se uma questão pública. Progressivamente, políticas estatais começam contemplar a “questão social”. Antes do início do século XX, a Inglaterra já tinha uma legislação da atividade fabril. A Alemanha de Bismarck introduz um sistema de previdência social entre 1883 e 1889, seguida da Suíça, em 1890, da Dinamarca, em 1891 e da Bélgica, em 1894. No plano da ordem social, esse processo engendra uma alternativa ao liberalismo. Não é mais possível organizar a sociedade segundo uma ortodoxia de princípios baseados nas idéias de livre mercado, meritocracia e defesa do indivíduo burguês contra o poder do Estado. O Estado deve também defender os mais pobres dos mais ricos. A desigualdade social deixa de ser vista como reflexo das desigualdades naturais e, portanto, justa. Começa a ser vista resultado do próprio sistema econômico e social. O Estado, transformando-se, passa a intervir na economia e moldar uma sociedade mais igualitária, através de políticas redistributivas, que redundam na redistribuição dos bens e serviços entre os diversos setores da sociedade. Certas condições básicas de vida são tomadas como direitos de qualquer cidadão, nos marcos territoriais de cada nação, inicialmente, e depois como direitos dos homens, independentemente de sua nacionalidade. Como nos mostra T. H. Marshall em uma obra clássica, dos direitos civis e políticos passa-se aos direitos sociais. Instaura-se um processo em que o princípio da democracia avança da esfera da política para a esfera da economia. Assim, do direito de dispor do próprio corpo, de locomoção, de segurança, de igualdade perante a lei, de liberdade de credo 7
e profissão, surge a noção do poder legítimo como aquele que expressa a
vontade dos cidadãos, envolvendo o direito de participação política, organização e liberdade de expressão, para finalmente tomar como direito de todo cidadão o acesso a condições mínimas de bem-estar social. Nesse caso, em cada situação específica, a intervenção estatal se dá em aspectos como saúde, educação, seguro desemprego, amparo na velhice e na infância, moradia e nutrição, lazer e programas de renda mínima, dentre outros, formam o conjunto de direitos sociais. Mas é bom que se faça uma distinção. A idéia de direitos sociais contrasta com o assistencialismo, que implica a prestação de ajuda arbitrária, inconstante, e a personalização da relação de quem “dá” e quem “recebe”. A relação ocorre entre desiguais, estabelecendo, de um lado, o benfeitor e, de outro, aquele que deve retribuir a doação com lealdade e favores. Essa relação pode estabelecer-se como padrão da gestão dos recursos públicos, fundamentando o clientelismo político, pelo qual alguém fornece ajuda visando, em troca, ao apoio político. Direitos sociais, ao contrário, implicam a convicção de que todas as pessoas, sem qualquer tipo de qualificação e independente da opinião de quaisquer outros, devem ter asseguradas condições dignas de vida. É como se fosse algo natural, antecedendo a quaisquer outras considerações. Assim, a idéia de direitos sociais tem como referência o conjunto dos cidadãos e, como base, a idéia do exercício de um direito, excluindo a concepção de uma ação benevolente do Estado. Colocada de outra forma, a questão das políticas sociais tem como pressuposto a idéia de uma sociedade mais igualitária e garantidora da segurança sócio-econômica de seus cidadãos. Isso remete ao problema de como organizar a sociedade e de como conceber o papel doEstado, de um lado, e do mercado, de outro. Passa-se pelo enfrentamento de qual dos mecanismos seria o mais adequado ou de como articulá-los para a definição da fórmula de organização econômica e social mais adequada. Na verdade, conforme T. H. Marshall, a cidadania como um status que garante direitos contrasta com os mecanismos de mercado, pois envolve sempre regulação crescente. As políticas sociais implicam o Estado em ação, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida da população, especialmente das populações excluídas, integrando-as econômica e socialmente a um certo padrão de desenvolvimento econômico-social. Se política social envolve a intervenção estatal no sentido da promoção do bem-estar, o caráter dessa intervenção revela uma certa concepção de Estado. Vejamos mais concretamente como esse problema foi solucionado nos países em que a política social se tornou um aspecto central na organização da vida social.
DIREITOS SOCIAIS OU OS CAVALOS E OS PARDAIS?
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A idéia de política social vai integrar-se de maneira progressiva
numa forma de organização política, principalmente após a II Guerra, com o amadurecimento da social-democracia, gerida pelo chamado Welfare State. A partir de então, nos Estados capitalistas mais avançados, os gastos com a seguridade social tornam-se a maior parte dos gastos públicos totais. Conforme dados fornecidos por Eric Hobsbawm, em sua obra Era dos Extremos, no final da década de 70, França, Alemanha Ocidental, Itália e Bélgica gastavam mais de 60% de seus orçamentos na seguridade social. Como explicar esse processo? A social-democracia surge no contexto de países capitalistas, em que atuava um forte movimento operário, através de sindicatos e de partidos socialistas. O movimento operário tinha como objetivo fazer a revolução. Progressivamente, porém, os operários passam a atuar nos marcos das regras democrático-eleitorais, disputando eleições e, muitas vezes, chegando ao poder. Nesse processo, vão deixando de lado a idéia de uma ordem socialista, à medida que iam ampliando seus direitos dentro da ordem capitalista. Como a revolução, além de implicar em pesados custos em vidas humanas, tem resultados incertos, e os ganhos dentro da ordem burguesa são limitados, porém concretos, o movimento operário vai-se desradicalizando. Passa a circunscrever suas reivindicações nos marcos da ordem burguesa, visando não mais acabar com o capitalismo, mas reformá- lo. O movimento operário passa a ser coparticipante na gestão do capitalismo. Por seu turno, a burguesia tem de considerar a existência de uma ordem alternativa à sua, o socialismo, que passa da teoria à realidade com a Revolução Russa de 1917, e depois se expande como um modelo de organização de sociedades que representam cerca de um terço da população mundial. Assim, confrontada com uma forma de organização alternativa ao capitalismo, a burguesia passa a ter interesse em estabelecer um acordo com o forte movimento operário do final do século XIX e início do século XX, para legitimar a sua ordem social. É “entregar os anéis para não perder os dedos”. A burguesia aceita financiar políticas para oferecer melhores condições de vida à população de seus países. Tudo isso foi possível, porém, devido à fase de crescimento que o capitalismo atravessou após a Segunda Guerra. Havia riqueza para ser distribuída. O pacto que se estabeleceu entre as classes se traduz numa ordem em que, através de um sistema tributário progressivo, pelo qual a contribuição cresce na mesma medida que a renda dos contribuintes, o Estado extrai renda dos mais ricos para repassá-la ao conjunto da sociedade em forma de políticas sociais. O Estado aparece como um mediador entre as classes e, para tal, transforma-se para prover o suporte institucional e financeiro à política social. 9
Na verdade, esse processo põe em questão a eficiência e os
resultados sociais do modelo liberal, na sua dimensão tanto econômica quanto política, no sentido de sua capacidade de constituir uma sociedade mais justa e fornecer legitimidade à ordem burguesa. Essa discussão pode ser colocada em termos de Estado e mercado. O modelo liberal fundamenta-se no princípio da defesa da liberdade dos cidadãos, tanto das escolhas pessoais como, principalmente, da iniciativa econômica. O liberalismo defende a organização da sociedade segundo o livre jogo dos interesses de indivíduos, que estabeleceriam livremente contratos no mercado. O Estado deve ser mínimo em suas funções e poderes. O problema, porém, para os que acreditamos em sociedades mais solidárias e iqualitárias, é que o funcionamento do mercado implica a crescente desigualdade na distribuição dos frutos do trabalho. Em termos políticos, o sistema de mercado traduz-se no fortalecimento do poder dos que possuem e administram o equipamento produtivo. O livre funcionamento do mercado cria, pois, sociedades progressivamente desiguais, acarretando risco para a maioria da população. Risco de desemprego, de carência de bens e serviços essenciais, dentre outros. Seus efeitos cruéis só não redundam numa dinâmica autofágica, no sentido da dissolução do tecido social pela falta de legitimidade do poder político, na medida em que foram atenuados pela intervenção do Estado, que oferta uma rede de segurança, ainda que limitada, aos desafortunados. Só assim o capitalismo se legitima. E o paradoxal nisso tudo, é que foram os socialmente engajados que salvaram o capitalismo de si mesmo, com a oposição dos que se salvaram. Enquanto a parte mais pobre reivindicava melhores condições de vida, os mais ricos buscaram defender-se de impostos maiores, base de financiamento da melhoria de vida da maioria, brandindo um princípio liberal. Defendiam que os recursos deveriam ser alocados pelo livre jogo dos interesses no mercado e não pela imtromissão política na liberdade econômica dos empreendedores privados. Argumentavam que de sua prosperidade dependia o bem-estar do restante da sociedade: quanto mais recursos tivessem os mais ricos, mais investimentos fariam e melhores condições teria toda a sociedade. A isso o o economista John Kenneth Galbraith chamou ironicamente de teoria do cavalo: se for dada ração suficiente aos cavalos, parte dela terminará na estrada para os pardais. Porém, se o livre mercado suscita a desigualdade social, no aspecto econômico não deixou, tampouco, de apresentar problemas. Para o surgimento da social-democracia concorreram também o trauma da Grande Depressão de 1929 e a crise da economia capitalista que se seguiu. Essa crise evidenciou que o livre mercado não é tão virtuoso como os liberais imaginavam: toma-se consciência de que o seu desempenho passa da 10
expansão à depressão, causando aos mais fracos, nos períodos de crise,
privação e desespero. Aí também é necessária a intervenção do Estado. Segundo o economista inglês John Maynard Keynes, em tempos de crise só a intervenção governamental, através do aumento do gasto público, pode gerar empregos, minorar os efeitos sociais da crise e impulsionar um novo ciclo econômico virtuoso. Assim, caberia ao Estado minimizar as disfuncionalidades do funcionamento do mercado tanto no que concerne à economia quanto ao aspecto social. As políticas sociais passam a caracterizar a ação estatal sobre as condições de vida das populações, na medida da percepção dos efeitos do livre mercado. É assim que, nos países de capitalismo mais avançado, o Estado passa a ter o papel de implementar a idéia de direitos sociais. E o Brasil? Como se caracteriza em relação às políticas sociais? É o que veremos a seguir.
O CASO BRASILEIRO
A intervenção do Estado brasileiro visando a constituir um sistema
de proteção social tem início nos anos 30, aproximadamente, quando o poder público reconhece que a problemática social não era uma questão estritamente privada. Não que a questão social deixasse de ser um problema público anteriormente. Na década de 20, há mobilização de um movimento sindical atuante, que luta por melhores condições de vida e trabalho. A elite política brasileira, coerente com sua estreita ideologia, reage com a repressão. Tal forma de tentar resolver o problema social, porém, mostra-se contraproducente: fica clara a impossibilidade de se garantir a acumulação econômica pela coação. Para pacificar a força de trabalho e para que as elites se legitimassem politicamente, o problema da ordem econômica e social passa a ser tratado de outra forma, via política social. É a partir dessa necessidade que começa a conformar-se o padrão de intervenção social no Brasil. A interferência governamental nas relações sociais no Brasil não se afasta muito do padrão verificado em outros países. Os conflitos gerados pela industrialização e seus desdobramentos levam ao esgotamento da concepção de organização social e econômica baseada no livre jogo dos interesses no mercado, impondo a necessidade de intervenção do Estado tanto nas relações de trabalho quanto na esfera da distribuição de bens e serviços, através das políticas sociais. No entanto, tal processo guarda suas peculiaridades no Brasil. O conceito-chave que permite entender a política social brasileira, dos anos 30 ao final dos anos 80, proposto por Wanderley Guilherme dos Santos em trabalho clássico sobre o assunto, é o de “cidadania regulada”. Ao contrário da concepção de cidadania que toma como sujeitos de direitos 11
todos os participantes de uma sociedade, sem qualquer requisito de
qualificação, a noção de “cidadania regulada” implica a exclusão de parcelas mais ou menos amplas da sociedade, da esfera dos direitos, dependendo do momento. No caso, são cidadãos aqueles que se localizam em uma das ocupações reconhecidas pelo Estado e definidas em lei. O acesso aos direitos sociais e o escopo desses direitos dependem, portanto, de um reconhecimento do Estado a determinados grupos. E esse reconhecimento se faz segundo o lugar que as pessoas ocupam no processo produtivo. Confirmando a tese de que no Brasil as políticas sociais foram adotadas visando possibilitar o funcionamento da economia, as profissões reconhecidas são as mais relevantes sob o aspecto econômico. E quanto mais relevante é a profissão, maiores são os benefícios auferidos. Os demais, os trabalhadores não regulamentados, tornam-se pré-cidadãos. O padrão de intervenção social brasileiro é então seletivo, no plano dos beneficiários, e heterogêneo, no plano dos benefícios. Seletivo, porque só alguns têm direitos; heterogêneo, porque esses direitos são diferenciados conforme a empresa ou a categoria do trabalhador. Um ferroviário, por exemplo, no início dos anos 30 ocupava um lugar privilegiado no mercado de trabalho e, por isso, tinha direito à aposentadoria, pensão e assistência médica; já um trabalhador rural, além de ocupar um posto de trabalho inferior, não tinha quaisquer direitos sociais. A política social reforçava as desigualdades, em vez de combatê-las. Diante dessa situação, os setores não regulamentados pressionavam para o seu reconhecimento por parte do Estado. E a evolução da intervenção estatal nas questões sociais caracteriza-se pela incorporação progressiva de novas categoria profissionais aos direitos sociais. É assim que nos anos 20 e início dos anos 30, aposentadorias, pensões e assistência médica eram direitos de trabalhadores de empresas específicas, administrados pelas Caixas de Aposentadorias e Pensões – CAPs. O financiamento desses direitos se dava através da contribuição dos empregados, empregadores e Estado. Quem mais podia contribuir, melhores benefícios recebia. A partir de meados dos anos 30, os benefícios passam a ser fornecidos pelos Institutos de Aposentadoris e Pensões – IAPs, que abrangem não mais funcionários de empresas, mas categorias profissionais inteiras. O resultado é uma redistributividade: funcionários de empresas com condições de trabalho e de contribuição diferentes passam a ter acesso a serviços e direitos iguais. Em 1966, os IAPs são reunidos no Instituto Nacional de Previdência Social – INPS. Agora os benefícios e serviços são iguais para todas as categorias profissionais reconhecidas, independente da expressão econômica de cada categoria. A base para se ter acesso aos direitos era a contrapartida em contribuição. Assim, os desempregados ficam excluídos dos benefícios e serviços. Além disso, é só na década de 70 que os trabalhadores rurais e empregadas domésticas vão 12
ter acesso aos direitos sociais.
A universalização dos direitos sociais só vai se dar com a Constituição Federal de 1988. Formalmente, todos os cidadãos, independente de quaisquer qualificações, passam a ter direitos sociais. Se antes, por exemplo, só quem contribuía com o INPS tinha acesso à saúde pública, depois da promulgação da Constituição basta a carteira de identidade para ter direito ao atendimento. Consolidamos, então, a idéia de direitos sociais universais? Desafortunadamente não. Se formalmente, a Constituição de 88 estabelece que todos os brasileiros devem ter acesso a serviços e benefícios para uma vida minimamente digna e segura, não há uma transposição automática da lei à prática. Primeiro porque muitas leis ficam apenas no papel. Depois, nas políticas públicas, muitas vezes os efeitos alcançados são diferentes dos pretendidos. Vejamos um exemplo. Conforme o artigo 196 da Constituição de 1988, a saúde é direito de todos e dever do Estado. Com inspiração no sistema público inglês de saúde, caracterizado pela oferta pública e universal dos serviços, a Constituição Federal define como obrigação do Estado ofertar os serviços de saúde para todo cidadão brasileiro. Até então, como se disse, o direito à saúde pública era facultado apenas aos que contribuíam com o sistema. Com a universalização dos direitos aos serviços de saúde, a demanda aumentou, sem que houvesse o necessário aumento dos recursos alocados para o setor. Resultado: cai a qualidade dos serviços públicos ofertados. Consequentemente, as classes mais favorecidas e funcionários de empresas que adotavam sistemas de amparo aos seus empregados buscam os seguros e planos privados de saúde. Como o regime militar privilegiou financiar os empresários da saúde em detrimento da constituição de uma estrutura pública da oferta, o processo de privatização da saúde encontrou, para sua expansão, uma rede hospitalar privada constituída, diga-se de passagem, com dinheiro público. Os requisitos para o desenvolvimento de um mercado privado de saúde estavam dados: de um lado, uma demanda constituída; de outro, uma estrutura de oferta consolidada. Ao restante da população coube recorrer aos serviços públicos precarizados. Como as pessoas com maior poder de pressão política foram justamente as que migraram para os serviços privados de saúde, isto acabou deslocando a discussão do foco da necessidade da oferta de saúde pública de qualidade para o de regulamentação dos ofertantes privados dos serviços, visando a um melhor atendimento de seus clientes. A intenção era de dotar o país de um sistema público e gratuito de saúde, mas o resultado foi um sistema público precário, ao lado de um vigoroso sistema privado de saúde. A universalização imaginada se mostrou, portanto, em certo aspecto, excludente: a baixa qualidade dos serviços prestados acaba excluindo as pessoas que contam com alternativas de resolver o acesso aos serviços de saúde de forma privada. Se a concepção da Constituição foi desenhar um 13
sistema público de saúde nos moldes do inglês, na realidade acabou-se
transferindo-o em grande parte ao setor privado, conforme o modelo vigente nos Estados Unidos. O problema é que a concepção de direitos sociais universais se consolida legalmente no Brasil no momento em estava sendo contestada por forças políticas poderosas, mesmo nos países onde surgiu. O contexto é de aprofundamento da crise econômica, com a crise fiscal do Estado, implicando maior escassez de recursos para o cumprimento do que estabelecia a Constituição. Assim, o aumento da demanda pelos serviços públicos não é acompanhado do aumento de verbas. Há, portanto, a precarização dos serviços e a busca, pelos grupos com condições para tal, dos suprimentos desses serviços ofertados pelo setor privado. Além dessa caracterização mais geral, outros traços definem as políticas sociais no Brasil. Em primeiro lugar, o processo de expansão dos direitos implica a centralização institucional e financeira das ações sociais no governo federal, especialmente no período do regime militar. Ao lado dessa centralização, ocorre uma fragmentação institucional, com a criação de órgãos públicos de diferentes naturezas, como fundações e empresas públicas, que se articulam com clientelas específicas e adotam lógicas de atuação próprias. Isso cria uma situação de burocratização excessiva, desarticulação das ações, superposição de programas e ausência de mecanismos de controles da ação pública. Tal fato é agravado pela exclusão do direito de participação social e política de grande parte da população. Sem controle, a ação do Estado autoritário desvia-se dos objetivos propagados, redundando em fraudes e corrupção. Outro aspecto que destoa da idéia de direitos sociais é a avaliação dos programas sociais pelo critério da sua viabilidade econômica. Os recursos investidos deveriam ser repostos pelos beneficiários dos programas. Um fundo criado para financiar habitação e saneamento para população necessitada, o do Banco Nacional de Habitação, por exemplo, acaba privilegiando habitação em detrimento de saneamento, e habitação para classe média, em detrimento de habitação popular. As ações são priorizadas pela capacidade de retorno financeiro e não pela relevância social. De tal lógica, somada ao poder de pressão que as classes mais favorecidas têm frente ao Estado, surge o fato de que boa parte dos recursos alocados para as políticas sociais acaba financiando os que ocupam lugares privilegiados no mercado. Os gastos sociais acabam sendo apropriados pelos mais ricos, conforme demonstram os dados: em 1992, 20% da população mais pobre apropriava 15% desses gastos, enquanto os 20% mais ricos ficavam com 21% dos gastos. Outra característica que foge ao modelo do Estado de Bem-Estar clássico é que a base institucional da oferta de políticas sociais foi em grande parte composta pelo setor privado, alavancado por dinheiro público. Também em 1992, 72,74% dos gastos 14
totais com saúde foram com o setor privado.
Finalmente, as instituições sociais acabam sendo utilizadas como recurso de poder de grupos com acesso ao Estado. O controle dos recursos financeiros e administrativos do Estado implica o estabelecimento de relações clientelistas: barganha-se apoio político por acesso a bens públicos como cestas básicas, emprego, habitações, dentre tantos outros. No caso, tal questão pode ser problematizada a partir da idéia de democracia, tomada como regras que fazem do governo expressão da vontade popular, fundadas no princípio da liberdade e na busca de uma situação efetiva de maior igualdade social. Vejamos o processo de luta contra o regime militar e o esforço da construção da democracia.
DEMOCRACIA E DESCENTRALIZAÇÃO
O regime instaurado em 1964 coloca o Estado brasileiro ao controle
de forças avessas aos direitos civis e políticos básicos dos cidadãos. Sua relação com a sociedade marcada pela repressão. O exercício do poder político é caracterizado pela centralização político-administrativa e pelo autoritarismo. Enquanto certos interesses se apropriam das ações do Estado, outros encontram no Estado apenas um agente repressor. O Estado distancia-se das demandas populares e suprime as políticas redistributivas. Sua ação é bem traduzida na fórmula: “Fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”. A partir de meados da década de 70, no entanto, o regime militar vai perdendo suas bases de apoio, enquanto a sociedade civil se organiza de uma forma inédita, reivindicando espaços de participação democrática. Sindicatos de trabalhadores voltam a atuar, organizam-se associações de bairros, partidos políticos são fundados, num processo de intensa participação e organização da sociedade. Nesse contexto, torna-se imperioso, na perspectiva dos setores de oposição, reformular as instituições estatais segundo os princípios democráticos. A descentralização político-administrativa é então proposta. Um argumento bastante difundido por esses setores é que a melhor forma de aproveitar e potencializar o dinamismo do movimento social do período seria através da institucionalização da participação popular na gestão pública. É a partir desse processo que os governos estaduais de oposição eleitos em 1982 adotam a concepção da democracia participativa. Não basta a democracia eleitoral, argumentam, torna-se necessário abrir espaços para a participação da população na gestão pública. Na verdade, um alvo dos setores oposicionistas é acabar com a forma clientelista de exercício de poder, que caracteriza a política brasileira ao longo de todo o século XX. O clientelismo envolve barganha de bens, muitas vezes públicos, em troca de lealdade. Grupos e pessoas que 15
controlam os recursos públicos utilizam esses recursos não como base em
necessidades sociais ou projetos que visam a uma sociedade melhor para a maioria, mas, ao contrário, para atender aos interesses dos que detêm o poder político. O Estado passa a ser gerido segundo objetivos político- eleitorais. Distribuição de cestas básicas, alocação de postos médicos, construção de estradas e escolas, nomeação de funcionários públicos e muitas outras ações públicas visam garantir apoio e lealdade política aos grupos no poder. O jogo político se dá, então, em grande medida, em torno da disputa de posições no interior do Estado, visando garantir a possibilidade de controlar e manipular os seus recursos, com o objetivo de lograr apoios e votos. Forma-se, assim, uma complexa rede de corretagem que perpassa todos os níveis de poder. O resultado é que a lógica da implementação das políticas sociais deixa de ter como fim uma situação de maior igualdade social. Tais políticas transformam os recursos públicos em moeda eleitoral, beneficiando os aliados e punindo os adversários. Instala-se, assim, da ótica dos usuários, um fator que leva à ineficiência e ineficácia da atuação estatal no setor social. Por exemplo, escolas e hospitais são construídos não segundo a real necessidade de cada localidade, mas pelo retorno em votos que podem proporcionar. É assim que inauguram diversos prédios públicos, com as solenidades de praxe, para depois relegá-los ao abandono. Além de visar enfraquecer politicamente as elites governantes, ao tirar-lhes o controle de um importante recurso de poder, a reivindicação pela descentralização político-administrativa do Estado pretende possibilitar a implementação eficiente das políticas sociais e, dessa forma, minorar o problema da desigualdade social. Concedendo-se à sociedade poder de participação na gestão dos recursos públicos, com a possibilidade de decidir sobre as prioridades, sobre como gastar os recursos e, principalmente, na fiscalização do cumprimento das metas e na correção da aplicação dos recursos financeiros e materiais, evitam-se desperdícios e desvio de recursos. Ao mesmo tempo, garante-se a vontade dos cidadãos. As políticas sociais passariam, então, a expressar não só a ótica dos administradores, mas sobretudo a ótica dos beneficiários. Descentralização se tornaria sinônimo de democratização, e a participação tornaria-se um importante fator de educação política e de formação dos verdadeiros cidadãos, pessoas conscientes dos seus direitos e deveres, conscientes de que a construção de uma vida comum deve ser obra de todos. Como um determinado desenho institucional reflete uma determinada distribuição do poder, redesenhar as instituições estatais pode resultar na redistribuição das chances de acesso ao poder dos diversos atores sociais. Tal fato explica a disputa que se dá em torno da questão da reforma do Estado. Nos anos 80, setores que estiveram alijados do poder no regime militar viam na descentralização uma forma de ter acesso ao 16
Estado, e os setores que apoiaram o regime militar relutavam aceitar as
modificações ou então adotavam mudanças, mas de forma gradual e restrita. Um exemplo é o da política pública de educação de Minas Gerais. Em 1982, o PMDB, partido de oposição ao regime militar, ganha o governo de Minas, com Tancredo Neves, no contexto da vitória das oposições nos estados mais importantes do Brasil. Até então, refletindo os interesses que tomaram o poder em 1964, o Conselho Estadual de Educação era dominado pelos representantes do ensino privado. Havia, assim, uma reserva de mercado do 2o grau para as escolas particulares. Não se podia expandir a oferta da rede pública em locais que a iniciativa privada pudesse suprir a demanda. Com o governo do PMDB, a Secretaria de Educação ficou sob direção de militantes de esquerda. Os membros do Conselho Estadual de Educação foram sendo substituídos por professores universitários, que passaram a dar suporte a uma nova visão de educação, caracterizada pela ênfase no ensino público. Assim, um espaço dominado por interesses restritos passou a ser ocupado por interesses até então alijados da gestão pública. O mesmo vai ocorrer em diversas outras áreas. Um outro exemplo de descentralização, agora no nível federal, é a adoção do Sistema Único de Saúde. Com o intuito de tornar mais eficiente e democratizar a gestão do sistema, além de modificar o padrão anterior de forte centralização decisória e financeira no governo federal, a Constituição de 88 propõe como princípio de organização da saúde pública a descentralização do sistema e a participação popular. O foco privilegiado para a oferta dos serviços passa a ser o município. Para tal, propõe-se a criação de Conselhos Municipais de Saúde, compostos de 50% de representantes dos usuários e a outra metade de representantes do governo e dos profissionais de saúde, com a função de deliberar sobre as ações a serem executadas. Com a finalidade de formular estratégias para a atuação nos Estados, criam-se nos mesmos moldes os Conselhos Estaduais de Saúde. Finalmente, a União fica com a função da distribuição dos recursos, de auditoria do sistema e da condução de programas nacionais (AIDS por exemplo).
DESIGUALDADE E POLÍTICAS SOCIAIS
Como vimos, as políticas sociais visam resolver, em certo aspecto, o
problema da desigualdade e, consequentemente, da pobreza. Se é assim, pode-se afirmar que o Brasil carece de políticas sociais. Nosso país caracteriza-se por um amplo contingente da população localizado abaixo da linha de pobreza. Nas últimas duas décadas, cerca de 40% a 45% da população vive com uma renda insuficiente para uma vida minimamente digna. Essa situação teria duas causas: a insuficiência das taxas de 17
crescimento econômico e a extrema concentração de renda do Brasil.
Já está demonstrado que o crescimento econômico no Brasil tem um impacto relativamente pequeno na diminuição da pobreza, porque é caracterizado pela concentração da renda. Tal fato é fruto de certa concepção de gestão econômica que impera no Brasil. Utilizando-se da teoria eqüina de Galbraith, poderíamos dizer que a concepção das elites dirigentes é que nosso cavalo é de tão magro que não pode despender pela estrada qualquer quantidade de energia. De Oliveira Vianna a Delfim Netto, a tese é que não se deve falar em distribuição de riquezas antes de acumulá-las. Ao que poderíamos acrescentar: nos tempos que correm, os cavalos padecem de prisão de ventre. Em tempos de Pedro Malan, o discurso é esperar a estabilização da economia para ministrar laxante ao nosso pangaré. Resta, portanto, enfatizar a opção da distribuição da renda. Com os recursos que temos, é plenamente possível resolver o problema da pobreza. O Brasil é um país extremamente desigual: comparado com a média da população pobre de países com renda per capita similar à sua, o Brasil deveria ter sua taxa de pobreza em torno de 8%, conforme demonstram Barros, Henriques e Mendonça. Em um universo de 92 países, somente a África do Sul e Malavi têm um grau de desigualdade de renda maior do que o Brasil. Confiar no mercado para resolver essa questão é inútil. Somente através da ação do Estado, especificamente no campo das políticas sociais, podemos alcançar um grau de desigualdade menor e tolerável. Porém, a questão da desigualdade não afeta apenas uma certa noção de justiça. Uma rede de segurança social eficaz para os indivíduos e para as famílias é necessária também para a garantia da liberdade e da democracia. A absoluta falta de condições materiais de existência é incompatível com a autonomia e liberdade dos cidadãos. Além disso, uma democracia política que não gera, de alguma forma, maior bem-estar social, acabará sendo questionada em seu sentido. Tomemos o exemplo do Brasil. Temos hoje cerca de mais de 100 milhões de eleitores. Destes apenas cerca de 12% contribuem com o imposto de renda, já que a renda dos demais é insuficiente. Esse fato revela que a crescente incorporação da população na arena das decisões políticas não é acompanhada de sua incorporação social e econômica, o que reforça as características clientelistas e populistas da política brasileira, além de fragilizar o próprio sentido da democracia política. Se os canais de participação institucional não respondem às necessidades mínimas das pessoas, qual a alternativa para os excluídos? Cremos que a violência que se alastra por nossas cidades é parte relevante da resposta.
UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE A SITUAÇÃO ATUAL
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A partir do final dos anos 80, eventos que vinham se processando no
mundo vão questionar a atuação do Estado no campo econômico e social. O neoliberalismo se torna hegemônico, sendo difundido, com a ajuda de organismos internacionais, como modelo de organização de diversos países. O tema da reforma do Estado ganha destaque na agenda de vários governos. Questiona-se o Estado de Bem-Estar e reafirma-se a idéia de que o livre jogo dos interesses no mercado é a forma mais racional e mais justa de alocar os recursos econômicos. Agora a idéia central é a de que o Estado é por natureza ineficiente, improdutivo, e desperdiça os recursos escassos. A solução é a privatização. No caso tange aos problemas sociais, o ideal é que a própria sociedade passe a amparar os necessitados. Defende-se a atuação da família, da comunidade, de organizações não-governamentais ou do setor público não-estatal no setor social. Em políticas sociais cuja implementação ainda fique a cargo do Estado, a descentralização é defendida para evitar a burocratização e a corrupção, garantindo assim a eficiência na aplicação dos recursos. Não se parte da idéia de uma sociedade mais igualitária: a desigualdade seria justa por refletir diferenças naturais, de capacidades e esforço, entre os homens. E o conceito do justo, no caso, é a distribuição dos recursos pelo mérito de cada um: e isto só o mercado pode fazer. A idéia de direito social perde o seu sentido. Se as políticas sociais visavam, baseadas numa idéia de justiça e igualdade social, à educação e saúde para todos, por exemplo, a nova concepção é a de concentrar os recursos disponíveis nos setores mais carentes. É assim que o Estado passa definir como alvo de suas políticas a infância e adolescência, juventude, mulher, idosos, índios, que por sua vez, são divididos em subgrupos de alta vulnerabilidade, como crianças maltratadas, jovens desempregados, idosos pobres, mulheres chefes de família, dentre outros. Não é por outro motivo que a desigualdade social tem aumentado no mundo depois que o pensamento neoliberal se tornou hegemônico. Nos tempos que correm, quando se fala em política social um problema se impõe. Será que a política social, no contexto da economia capitalista, pode criar de forma sustentável uma sociedade mais justa? A crise do Estado do Bem-Estar não sustentaria a resposta de que a economia de mercado implica desigualdade crescente e de que políticas em contrário teriam pouca sustentação? As políticas sociais seriam meros paliativos? Se a resposta for positiva, o que colocar no lugar? Qual a alternativa de organização da sociedade, se o socialismo real falhou como modelo? A verdade é que o sonho de sociedades mais justas e igualitárias, no mundo, torna-se mais distante a partir da década de 80. Quando, no Brasil, chegamos a estabelecer uma Constituição que incorpora os direitos sociais, as condições econômicas apontam em outro sentido. Segundo a concepção hegemônica de gestão das sociedades, difundidas pelos organismos internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Nacional 19
através do modelo neoliberal, a melhor forma de alocar os recursos na
sociedade é através do livre jogo dos interesses no mercado. A ação do Estado, incluindo nas questões sociais, é vista como algo negativo: injusta, porque transfere renda dos que têm méritos para os incompetentes; ineficaz, porque nunca alcança os objetivos colocados. Nos próprios países em que se configurou o Estado de Bem-Estar Social, tais princípios foram adotados, porém com limites, pois suas populações não estavam dispostas a perder o sistema de atendimento social que alcançaram. Mesmo assim a desigualdade aumenta, com a conseqüente tensão social. Hoje, os que acreditam em uma sociedade mais solidária encontram- se na obrigação de ajudar a construir alternativas ao modelo neoliberal. Isso implica em soluções práticas, construídas no fazer cotidiano, e soluções teóricas que possam iluminar um caminho para a ação e lançar as bases para um modelo de organização social mais solidário. Em ambos os casos, a tarefa é coletiva. E o que envolve essa tarefa? Estamos em uma conjuntura em que o poder do capital é incontestável e se expressa, por um lado, no controle que os países ricos têm sobre organismos internacionais como o Banco Mundial e o FMI, de cujos recursos os países em dificuldades necessitam tanto. Por outro lado, a racionalidade econômica que impera é pautada pela contabilidade que visa ao acúmulo de ganhos em forma de moeda. Dessa lógica estão excluídas as conseqüências humanas e ecológicas: tornam-se secundários os efeitos da economia em termos das condições de vida das populações e de devastação dos recursos naturais. Em termos técnicos, são “externalidades”. O resultado é que os homens, na construção da sua vida material, perdem de vista os objetivos humanamente significantes que deveriam norteá-los. Passam a não importar os efeitos da racionalidade econômica para a maioria das pessoas. Como afirmou o pensador alemão Robert Kurz, a empresa moderna matou mais crianças que o rei Herodes, com a diferença que ela lava as mãos em nome das leis monetárias. Para concorrer no mercado, torna-se irracional alocar recursos em políticas sociais. Daí resulta um mundo em que as desigualdades aumentam tanto nos países periféricos como também nos países centrais. É crescente a desigualdade entre as rendas de capital e as rendas do trabalho. Enquanto uma minoria torna-se cada vez mais abastada, o desemprego aumenta e o trabalho se precariza. A racionalidade econômica é então uma “gaiola de ferro” cujas as grades devem ser arrebentadas. Mudar a racionalidade da economia é uma tarefa política que hoje transcende os marcos nacionais. Se o capital se tornou consideravelmente autônomo em relação aos Estados nacionais, a reação deve estar presente na mesma arena. A preocupação com o bem-estar humano não termina nas fronteiras nacionais. Essa é uma idéia que tem seus defensores hoje. Porém, é necessário traduzir tal preocupação para a prática dos organismos 20
internacionais. A reação deve ser interna e externa ao mesmo tempo. Tal
diagnóstico, contudo, não reduz a importância do papel compensatório das políticas sociais, que minimizam, em maior ou menor grau, os estragos feitos pela lógica econômica vigente. Ruim com as políticas sociais, pior sem elas.
INDICAÇÕES PARA LEITURA
Para aprofundar o tema, algumas obras podem ser de grande va-lia.
Sobre o conceito de política e políticas públicas, ver texto meu, “Para um Conceito de Política”, em Cadernos de Ciências Sociais, Belo Horizonte, PUC-Minas, n. 9, 1999. Sobre as bases políticas e econômicas do Estado do Bem-Estar na Europa, ver de Adam Przeworski, o primeiro e o sexto capítulo do livro Capitalismo e Social-democracia, São Paulo, Companhia das Letras, 1989. Sobre a evolução dos direitos, especialmente direitos sociais, ver a obra clássica de Thomas H. Marshall, Cidadania, classe social e status, Rio de Janeiro, Zahar, 1967. Sobre as políticas sociais no Brasil, destacamos “A Práxis Liberal e a Cidadania Regulada”, capítulo de Décadas de espanto e uma apologia democrática, de Wanderley Guilherme dos Santos, Rio de Janeiro, Rocco, 1998, resumo de uma obra clássica sobre a evolução das políticas sociais no Brasil, do mesmo autor. Outro texto de interesse é o de Sônia Miriam Draibe, “O ‘Welfare State’ no Brasil: características e perspectivas”, publicado na revista Ciências Sociais Hoje, São Paulo, Vértice, Anpocs, 1989. Dados sobre a situação social no Brasil e a necessidade de distribuição da renda são encontrados no teto “Evolução recente da pobreza e da desigualdade: marcos preliminares para a política social no Brasil”, de Barros, Henriques e Mendonça, em Cadernos Adenauer, São Paulo, Fundação Konrad Adenauer, n. 1, 2000.