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A SITUAÇÃO DOS

DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS
E TRADICIONAIS DE
ALCÂNTARA
O direito à terra e à moradia dos
remanescentes de quilombos de
Alcântara, MA – Brasil

Relatório da Missão da
Relatoria Nacional do
Direito à Moradia Adequada
e à Terra Urbana
AGRADECIMENTOS:

A Relatoria Nacional da Moradia Adequada Ana Mélia Campos Mafra (SMDH), Inaldo
e à Terra Urbana agradece às seguintes pessoas Faustino Silva (MAB), Jonas Borges (MST),
pelo apoio e suporte dispensado à organização Samuel Moraes (STRA), José Francisco Diniz
e realização da missão a Alcântara, sem as quais (MNLM), o alcantarense Paulo Fernando e o
não seria possível vivenciar a realidade concre- pároco René Belcourt, pelo empréstimo da igre-
ta das comunidades remanescentes de ja para a realização da audiência pública. Agra-
quilombos e sua luta pela terra: Ivo Fonseca da decemos também à OXFAM/PE, ao Instituto
Silva e Josilene Brandão da Costa (ACONERUQ), Pólis e ao Cohre pelo apoio a esta publicação.

CATALOGAÇÃO NA FONTE - PÓLIS/CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E INFORMAÇÃO

PLATAFORMA Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais

A situação dos direitos humanos das comunidades negras e tradicionais de Alcântara. O


direito à terra e à moradia dos remanescentes de quilombos de Alcântara, MA - Brasil.
Relatório da Missão da Relatoria Nacional do Direito à Moradia Adequada e à Terra
Urbana. São Paulo, Instituto Pólis, 2003. 56p.

1. Direitos Humanos. 2. Direito à Terra. 3. Direito à Moradia. 4. Quilombo. 5. População


Quilombola. 6. Violação de Direito. 7. Centro de Lançamento de Alcântara. 8. Alcântara.
9. Maranhão. I. Saule Júnior, Nelson. II. Relatoria Nacional do Direito à Moradia Ade-
quada e à Terra Urbana. III. Instituto Pólis. IV. Título. V. Título. VI. Título.

Fonte: Vocabulário Pólis/CDI

Organizador: Nelson Saule Jr. (relator nacional do Direito à Moradia e à Terra Urbana e coordenador da
área Direito à Cidade do Instituto Pólis)
Autores: Nelson Saule Jr., Letícia Marques Osório (assessora da Relatoria e coordenadora do COHRE
Américas), Patrícia de Menezes Cardoso e Thais de Ricardo Chueiri (ambas do Instituto Pólis)
Projeto Gráfico Original: Paula Santoro e Renato Fabriga
Capa e Ilustrações: Marcelo Bicalho
Editoração eletrônica e diagramação: Renato Fabriga
Revisão de texto: Iara Rolnik Xavier
Impressão: Gráfica Peres
Fotolito: À Jato
SUMÁRIO

I. INTRODUÇÃO 04 4. A audiência pública da missão sobre a


situação dos direitos humanos das
II. AS COMUNIDADES NEGRAS E comunidades de Alcântara 28
TRADICIONAIS E O USO DA 5. Visita ao centro de lançamento de
TERRA: CONFLITOS E LUTAS NO Alcântara 29
MARANHÃO 07 6. Conclusões da missão sobre a
1. Os negros no território brasileiro 08 situação dos direitos humanos das
1.1 Os remanescentes dos comunidades de Alcântara 30
quilombos 08 7. Recomendações da Relatoria
1.2 Identidade cultural e forma sobre os direitos humanos das
de organização dos quilombos 09 comunidades de Alcântara 32
2. O impacto das políticas públicas
nas comunidades remanescentes de IV. FORMAS DE DEFESA DOS
quilombos no Maranhão 09 DIREITOS DAS POPULAÇÕES
3. As comunidades negras e QUILOMBOLAS 35
tradicionais e o centro de lançamentos 1. A mobilização da sociedade civil 36
de Alcântara - situação 2. Instrumentos de proteção do direito
permanente de conflito 14 à terra e à moradia dos quilombolas 37
2.1 Breves considerações sobre o
III. A MISSÃO DA RELATORIA SOBRE direito à terra e à moradia 37
OS DIREITOS HUMANOS DAS 2.2 Instrumentos nacionais de
COMUNIDADES DE ALCÂNTARA 18 proteção 39
1. Atividades da missão da Relatoria 19 2.3 Instrumentos internacionais
2. Os direitos humanos violados de proteção 43
das comunidades 19 2.4 Instrumentos regionais de
3. As situações de violação registradas proteção 46
pela missão da Relatoria 21 2.5 Instrumentos internacionais de
3.1 Os deslocamentos forçados proteção a despejos e
e as violações do direito à terra e à deslocamentos forçados 47
moradia 21 3. Possibilidades de atuação fundiária 49
3.2 As ameaças de deslocamentos
forçados das comunidades de V. CONSIDERAÇÕES DA RELATORIA
Alcântara 25 SOBRE OS ACORDOS DE
3.3 As ameaças de desestruturação SALVAGUARDAS TECNOLÓGICAS 50
sociocultural das comunidades de
Alcântara 27 BIBLIOGRAFIA 54
4

I. INTRODUÇÃO
5

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

O Projeto Relatores (as) Nacionais em Direi- Humanos das Nações Unidas em abril de 2003,
tos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais tem em Genebra, denunciou as violações ao direito
por objetivo contribuir para que o Brasil adote à moradia e o processo de desconstrução só-
um padrão de respeito aos direitos humanos eco- cio-cultural que estas comunidades estão so-
nômicos, sociais e culturais, com base na Cons- frendo em função do projeto de implantação
tituição Federal, no Programa Nacional de Di- do CLA.
reitos Humanos e nos tratados internacionais de A Relatoria Nacional do Direito à Moradia
proteção dos direitos humanos ratificados pelo Adequada realizou uma missão ao município
País, através da nomeação de especialistas relaci- de Alcântara, nos dias 23 a 26 de abril de 2003,
onados a direitos específicos (educação, saúde, com o objetivo de averiguar e discutir a situa-
alimentação, moradia adequada, trabalho e meio ção do direito à moradia e à terra das comuni-
ambiente). Este projeto é coordenado pela Pla- dades rurais, negras e remanescentes de
taforma Brasileira de Direitos Humanos Econô- quilombos em função do projeto de expansão
micos, Sociais e Culturais, com apoio do Pro- do Centro de Lançamentos de Alcântara (CLA).
grama das Nações Unidas para o Voluntariado e A missão da Relatoria Nacional do Direito à
da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos. Moradia e à Terra Urbana em Alcântara foi arti-
Os Relatores (as) Nacionais em DhESC foram culada por iniciativa conjunta às entidades que
nomeados pela sociedade civil com a prerroga- lutam pelo reconhecimento dos direitos da
tiva de realizar missões, receber denúncias, in- população remanescente de quilombos que
vestigar situações de violação aos direitos hu- foram ao III Fórum Social Mundial denunciar
manos e elaborar relatórios analíticos e as violações em andamento em Alcântara. A
propositivos sobre a realidade encontrada em missão contou com o apoio dos movimentos
relação aos direitos específicos. nacionais de luta pela moradia e entidades que
No III Fórum Social Mundial, a denúncia por atuam no campo da defesa dos direitos huma-
danos causados pelos impactos do Centro de nos dos afro-brasileiros. O trabalho e mobili-
Lançamento de Alcântara, MA, sobre as Comu- zação dos moradores e lideranças locais foram
nidades Remanescentes de Quilombos e Tradi- imprescindíveis para o sucesso da Audiência
cionais foi apresentada publicamente por mem- Pública e para possibilitar o contato com as
bros das comunidades, durante a oficina de tra- comunidades, superando os obstáculos físicos
balho realizada pelos Relatores (as) Nacionais (distância, falta de estradas e meios adequados
em Direitos Humanos Econômicos, Sociais e de transporte) para a comunicação.
Culturais, em 26 de janeiro de 2003. Nesta oca- O trabalho da Relatoria englobou visitas in
sião foi aprovada a realização de uma missão no loco nas áreas originais e de reassentamento onde
município, para investigar as situações dos di- residem comunidades remanescentes de
reitos humanos dessas comunidades. quilombos. Em cada comunidade visitada fo-
O Relatório Nacional do Direito à Moradia ram realizadas reuniões com os moradores, li-
Adequada apresentado à Comissão de Direitos deranças e organizações representativas destas
6

I. INTRODUÇÃO

comunidades. Foram colhidos dados e ouvidas ameaçadas de terem o seu território ocupado
as reivindicações das comunidades. pelas famílias que serão removidas de seus ter-
A visita às comunidades contemplou as ritórios de origem em razão da implantação
agrovilas, atingidas pela implantação das fases das fases III e IV.
I e II do CLA e as áreas onde residem as comu- Foi realizada uma Audiência Pública no dia
nidades ameaçadas de deslocamento, a serem 25 de abril de 2003, na Igreja Nossa Sra. Do
atingidas pelas fases III e IV, cujo processo de Carmo, no Centro Histórico de Alcântara, que
implantação está suspenso em função da dis- contou com a presença de autoridades fede-
cussão do Acordo de Salvaguardas no Congres- rais, estaduais e municipais, além da participa-
so Nacional. Outra situação averiguada, que ção massiva de representantes das comunida-
pode resultar em violação ao direito à mora- des atingidas e ameaçadas, representantes dos
dia, diz respeito a das comunidades que estão movimentos negro e de luta pela moradia.
II. AS COMUNIDADES
NEGRAS E TRADICIONAIS
E O USO DA TERRA:
CONFLITOS E LUTAS NO MARANHÃO
8

II. AS COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS E O USO DA TERRA:


CONFLITOS E LUTAS NO MARANHÃO

1. OS NEGROS NO TERRITÓRIO ção Federal de 1988 insere os remanescentes de


BRASILEIRO quilombos como sujeitos de direitos sociais,
econômicos, civis e políticos como forma de
1.1 OS REMANESCENTES DOS reativar a memória ligada ao motivo dessa ver-
QUILOMBOS gonha e como meio de resgate da tão negada
dignidade do povo negro.
A primeira definição de quilombo como A maior problemática da conceituação de
“toda habitação de negros fugidos que passem quilombos é que todos os autores que atual-
de cinco, em parte despovoada, ainda que não mente tratam do tema têm como base o mar-
tenham ranchos levantados nem se achem pi- co das Ordenações Manuelinas e Filipinas e os
lões neles”, surgiu em resposta ao Rei de Por- demais dispositivos legais do período coloni-
tugal à consulta do Conselho Ultramarino, em al. A definição de quilombo formulada no pe-
dezembro de 1740. ríodo colonial atravessou o período Imperial
Desta maneira, no Brasil, assim como em ou- e chegou à República exatamente da mesma
tras partes da América onde existiu a escravidão, forma, sendo utilizada até os dias de hoje. O
esses ajuntamentos proliferaram como sinal de quilombola é sempre o escravo fugitivo e lon-
protesto do negro escravo às condições desuma- ge dos domínios das grandes propriedades.
nas e alienadas a que estavam sujeitos. No Brasil, No entanto, é importante lembrar que houve
o quilombo marcou sua presença durante todo o escravo que não fugiu, que permaneceu autô-
período escravista e existiu praticamente em toda nomo dentro da grande propriedade e com
a extensão do território nacional. atribuições diversas, houve aquele que sonhou
Na doutrina jurídica nacional, ao longo dos fugir e não pôde ou não conseguiu fazê-lo,
séculos, tem-se o direito do povo negro manti- houve aquele que fugiu e foi capturado e hou-
do separado da “lei oficial”, elaborada e manti- ve aquele que não pôde fugir porque ajudou
da pelas oligarquias econômicas que estavam no os outros a fugirem e o seu papel era ficar.
poder. Ainda muito antes da abolição da escrava- Assim, a interpretação do conceito de
tura, no ano de 1857, quando Teixeira de Freitas quilombo, contido na Constituição Federal de
elaborou a Consolidação das Leis Civis, as regras jurí- 1988, deve abranger todos os casos acima apre-
dicas relativas à escravidão foram tratadas em um sentados, garantindo-se o direito à terra e os di-
capítulo à parte, devidamente classificadas no reitos daí decorrentes não só apenas ao quilombo
denominado Código Negro. Rui Barbosa, anos mais formado por escravos fugitivos. A relação do
tarde, também colaborou para tentar esconder a quilombola com a terra ocorre de maneira es-
vergonha da opressão desumana ocorrida no pecial em razão da apropriação sustentável dos
passado, ao determinar a destruição de todos os recursos naturais de forma a prover sua subsis-
registros de escravos pelo governo. A Constitui- tência e a dos outros que ainda estavam por vir.1

1
ALMEIDA, Alfredo Wagner. Os Quilombos e as novas etnias. In: LEITAO, Sérgio. Direitos territoriais das comunidades negras
rurais, Doc.5. São Paulo, Instituto Socioambiental, janeiro, 1999.
9

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

1.2 IDENTIDADE CULTURAL E tido do quilombo e para a aplicação correta do


FORMA DE ORGANIZAÇÃO DOS dispositivo da Constituição Federal é verificar
QUILOMBOS como, historicamente, esses povoados se colo-
caram frente aos seus antagonistas, entender suas
Os quilombos possuíam diferentes formas lógicas, suas estratégias de sobrevivência e sua
de organização. Havia quilombos pequenos e autodeterminação. Muitas vezes a incorporação
alguns maiores, mas todos tinham o objetivo na identidade coletiva das lutas é maior que a
de fugir do sistema escravista. Em virtude da abrangência de um critério racial, não sendo
grande diversificação da economia escravista, raro encontrar pessoas com descendência indí-
muitas vezes os quilombos reproduziam inter- gena vivendo em quilombos e se auto-definin-
namente o tipo de economia da área na qual se do como pretos.
organizavam. Os quilombolas possuíam uma Por fim, é uma impropriedade tratar os
relativa organização interna, variando muito de quilombos como “sobrevivência”, como “re-
lugar para lugar. Sua principal atividade estava manescente”, como sobra, pois eles são justa-
voltada para a agricultura, o que não os impe- mente o oposto: são o futuro, são o que se
dia de exercitarem outras atividades, como a manteve de mais preservado. Foram eles que
da extração de ouro, trabalho que possibilitava garantiram aos negros as condições para vive-
a aquisição de vacas, peixes e outros alimentos. rem independentes dos favores e benefícios do
As mulheres se incumbiam dos afazeres domés- Estado da época.
ticos e atividades extrativas, não constando em
nenhum documento sua presença em ativida- 2. O IMPACTO DAS POLÍTICAS
des guerreiras. PÚBLICAS NAS COMUNIDADES
Com relação à forma de organização política, REMANESCENTES DE QUILOMBOS
os quilombos tiveram que fortalecer um poder NO MARANHÃO
capaz de defendê-los dos inimigos, a fim de
preservar sua integridade territorial ao mesmo As raízes do nosso Brasil podem ser encon-
tempo em que mantinham em atividade per- tradas no Estado do Maranhão, que reúne os
manente grande parte da mão-de-obra ativa da traços mais tradicionais desta nação, seja devi-
comunidade na agricultura e em outras ativi- do à sangrenta e atual disputa pela terra, seja
dades produtivas. Do ponto de vista religioso pela mistura de raças, credos e ritmos. Como
havia uma mescla de alguns valores do catoli- um dos primeiros lugares do País a receber os
cismo popular com as religiões africanas. escravos negros que chegaram da África, os
Assim como em relação à conceituação de quilombos se multiplicaram no Maranhão,
quilombo, também há uma grande dificulda- principalmente no século XIX. As vésperas da
de quanto ao entendimento da questão da iden- independência, o Estado apresentava a mais alta
tidade cultural dos quilombos contemporâne- porcentagem de escravos do Império (55%).2
os. O desafio, hoje, para a compreensão do sen- Hoje, lá se concentram mais de quatrocentas
10

II. AS COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS E O USO DA TERRA:


CONFLITOS E LUTAS NO MARANHÃO

comunidades quilombolas dentre as setecentas nentes da estrutura agrária e fundiária bra-


e quarenta identificadas no Brasil.3 sileira produziu um histórico de violação
A relevância histórica e cultural das terras que tem o Estado do Maranhão como o
de quilombo se dá por serem elas as primei- principal agente violador. O que significa
ras formas de acesso à terra que os “escravos dizer que grande parte das violações aos
fugidos da senzala” tiveram no Brasil. Assim, direitos das populações tradicionais mara-
o Maranhão se torna símbolo da resistência nhenses ocorreu e continua a ocorrer pela
negra e da luta pelo reconhecimento de seus via oficial, ou seja, por ações e omissões
direitos, bem como da construção de nossa do Estado e daqueles que dele se utilizam
nacionalidade. para benefício próprio. O resultado deste
Dentre os diversos costumes e condições de descaso foi o aumento da tensão, insegu-
vida das comunidades negras quilombolas ou, rança, posse e da instabilidade que marcam
melhor, das denominadas “terras de preto”, um o cotidiano dessas populações camponesas,
traço lhes é característico e fundamental: o uso vítimas de atos de usurpação de seus direi-
comum da terra4. Entretanto, esse costume tam- tos inalienáveis.
bém é perverso ao passo que esta característica As situações de conflito fundiário que se
faz destas terras território étnico, indivisível e destacam na história do Maranhão, são:
não passível de exploração meramente econô-
mica. Ao mesmo tempo é também causa da in- As grilagens
tensificação dos conflitos fundiários e das ten- Segundo dados oficiais, mais de dez por
tativas de expropriação. Os fortes laços de pa- cento das terras brasileiras estão nas mãos dos
rentesco e o uso comum da terra e de seus grileiros, ou seja, mais de quarenta e seis mi-
recursos, que despontam como fatores da iden- lhões de hectares de área incorporada ilegal-
tidade e resistência quilombola, representam mente no patrimônio de particulares em todo
um contraponto à ordem capitalista de expan- o Brasil. Os imóveis suspeitos estão concen-
são no campo e, portanto, ao sistema legal vi- trados principalmente nas regiões norte e
gente, por não serem passíveis de apropriação centro-oeste, onde se localizam mais de oi-
para fins de exploração privada. tenta por cento das áreas griladas em todo o
A inexistência de políticas públicas com País. No norte, a situação ficou totalmente
enfoque étnico que tratem destes compo- fora de controle, cada grileiro incorporou ao

2
De acordo com levantamento preliminar feito pela Fundação Cultural Palmares, citado em MOURA, Carlos Alves, Terras de preto
no Maranhão: quebrando o mito do isolamento. Projeto Vida de Negro, CCN-MA, SMDH, São Luís, 2002.
3
Cartilha “Alcântara - Comunidades Remanescentes de Quilombos de Alcântara, Maranhão” elaborada pela Rede Social de Justiça
e Direitos Humanos de São Paulo, publicação de agosto de 2002.
4
Tais terras são consideradas de uso comum, o que não impede de haver benfeitorias no povoado pertencentes a uma dada família
ou indivíduo, sobretudo as moradias e os roçados, que são apropriados privativamente.
11

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

seu patrimônio uma média de sessenta e oito As delegacias de terras 7, cujo objetivo
mil hectares5. precípuo era de disciplinar a ocupação e titular
A relação dos atos de grilagem com os apa- as áreas, criaram a mais critica situação de
ratos do poder possui uma longa história no titulação e concentração fundiária na historia
Maranhão que, muitas vezes, se confunde com do Maranhão marcada, segundo Victor Asselin,
a própria história do Estado. Em setenta por pela mais intensa corrupção e fraude, somadas
cento dos casos de grilagem, os acusados são as vendas de terras devolutas sem licitação8.
identificados e entre estes, aparecem de forma Cerca de noventa por cento das terras propícias
explícita e notória, personalidades que ocupa- à agricultura no Maranhão pertenciam ao Esta-
ram cargos públicos como os de prefeito e vice- do quando o governador José Sarney (1966-
governador. Neste sentido, Victor Asselin avalia 1971), no penúltimo ano de seu mandato,
que “se a violência é inerente à grilagem, a aprovou a Lei nº2.979, que permitia o requeri-
grilagem é instrumento do poder, pois foi mento da posse de áreas devolutas de até três
acobertada, incentivada, encampada e finalmen- mil hectares. Há de se acrescentar que a lei
te planejada pelo governo.”6 maranhense, ao contrário de legislações esta-
A grilagem, implantada com a vinda das duais similares do País, possibilitava a criação
grandes empresas do sul e do centro-oeste, de “consórcios” em propriedades vizinhas. Es-
abrangeu inclusive corredores de cem quilô- tava iniciado assim um dos mais espetaculares
metros de cada lado das rodovias, original- casos de grilagem cartorial já testemunhados
mente e legalmente destinados à coloniza- no Brasil.
ção. O único refúgio para os camponeses De 1970 para 1995, os dados do último cen-
chegou a ser os trinta metros de terra exis- so do IBGE de 1995, os dados confirmam que
tentes ao longo das rodovias, empurrados que desde 70, o Maranhão ainda é um Estado cuja
foram pelas cercas dos latifundiários. Criou- estrutura fundiária é fortemente concentrada.
se, então, em âmbito nacional, a faixa priori- Toda mudança significativa de atuação atingiu
tária de desenvolvimento, cortada pelas es- apenas um grupo de áreas do Estado cuja soma
tradas, vias de penetração dos novos interes- é menor do que dez hectares9. Escancara-se,
ses econômicos. desta forma, que os tradicionais “planos de

5
Mais informações consultar o site: www.desenvolvimentoagrario.gov.br
6
ASSELIN, Victor. “Grilagem Corrupção e Violência em Terras Carajás.Petrópolis, Vozes, 1982., citado em MOURA, Carlos Alves,
Terras de preto no Maranhão: quebrando o mito do isolamento. Projeto Vida de Negro, CCN-MA, SMDH, São Luís, 2002.
7
O então governador do Maranhão, José Sarney, criou pelo Decreto 3.831 de 6 de dezembro de 1968, uma Reserva Estadual de
Terras e seus órgãos, as Delegacias de Terras, no interior do Estado, ligadas à Secretaria da Agricultura. Segundo Asselin, “as
Delegacias não tiveram outro objetivo a não ser o de disciplinar a ocupação e o de titular as áreas”.
8
ASSELIN, Victor, op. cit, idem..
9
*PEDROSA, Luis Antonio Câmara. A questão agrária no Maranhão”., artigo do site. www.blznet.com.br/maranhao
12

II. AS COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS E O USO DA TERRA:


CONFLITOS E LUTAS NO MARANHÃO

desenvolvimento” não nascem das necessida- projetos, normalmente, implicam na ocupação


des do Estado e menos ainda expressam os de vastas porções de área para sua implantação
anseios do povo trabalhador local. e futura expansão, ensejando ações oficiais e
não oficiais de remoção de pessoas pobres e
A implantação autoritária de projetos suas casas, quando estas localizam-se nas áreas
oficiais sem concordância da população de interesse do empreendimento. Além disso, a
Conforme denunciou estudo do Projeto Vida complexidade do objeto ou atividade do em-
de Negro (PVN) todos os casos de implantação preendimento a ser implementado (centro de
de projetos oficiais envolvem órgãos ou em- energia, grande centro comercial, centro de alta
presas estatais federais como o Instituto tecnologia, etc.) geralmente não absorvem a
Nacional de Colonização e Reforma Agrária mão-de-obra não qualificada das comunidades
(INCRA), Petrobrás e Ministério da Aeronáuti- locais atingidas11.
ca. Estes projetos constituem-se de barragens, Assim, ao se analisar a historia do Maranhão,
projetos de revitalização urbana, mega-projetos fica evidente que o Estado serviu de palco para
comerciais, mega-eventos e, no presente caso, experiências de supostos projetos nacionais de
tem-se a implantação e a expansão do Centro “desenvolvimento” que conflitaram sobremaneira
de Lançamentos de Alcântara (CLA) em 1982. com as verdadeiras necessidades da população
Nas últimas décadas o Maranhão tem sido o local, sobretudo os camponeses e, dentre estes, as
espaço preferido para a instalação dos chama- populações tradicionais sobre as quais os efeitos
dos grandes projetos agropecuários e industri- da expulsão da terra são muito mais perversos.
ais. Com o advento do Programa Grande Carajás, Dos depoimentos de remanescentes de quilombos
instalaram-se no Maranhão o Complexo de Alu- de Alcântara depreendemos esta assertiva:
mínio (ALUMAR), a Ferrovia de Ferro Carajás,
a siderurgia de ferro gusa, além das monocul- “A Base veio com a finalidade de des-
turas de soja, na região de Balsas, e o do manchar o que achou. A Base descontrolou
eucalipto voltado à produção de celulose, na o local. Nós não somos acostumados com
região tocantina (CELMAR).10 este negócio de foguete. O local é pequeno
Os projetos e mega-projetos implantados em para colocar gente aqui. Só saio daqui se for
nome do desenvolvimento urbano e econômi- morto. Meus filhos vão fazer casa aqui, nos-
co da região vêm acompanhados, geralmente, sa lavoura é aqui, a igreja fomos nós que
de despejos e deslocamentos forçados. Estes fizemos. Nós queremos aqui é força para

10
Conforme relato na pg;3 da publicação do Seminário “Alcântara: A Base Espacial e os impasses sociais”, realizado nos dias 11,
12,13 e 14 de maio de 1999 no município, organizado pela FETAEMA, CONTAG, STR com apoio da Prefeitura Municipal de
Alcântara.
11
Uma análise compreensiva sobre mega-eventos e despejos forçados pode ser encontrada em COHRE, Forced Eviction: violations
of human rights. Geneva, 2003.
13

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

melhorar a situação. Eu não assino papel de se faz às custas da destruição de ecossistemas,


deles não. Nas agrovilas nenhum tem casa. A patrimônio histórico e cultural, à custas de vio-
casa é da Base, eles não têm documento de lência e violação de direitos, é ferir o bom senso
nada. O coronel Da Base faz o seguinte: tem falar em desenvolvimento sustentável.12 Segun-
que pedir para pescar, eles dão uma do os dados do IBGE, o Estado do Maranhão
carteirinha que pode ir pescar de 8 em 8 cresce menos do que o Brasil e o Nordeste, pos-
dias. O igarapé é a nossa feira, mas a ostra já suindo a maior parte da população vivendo abai-
falta depois que o pessoal das agrovilas che- xo da linha da miséria, recebendo menos de R$
gou.” (SIMÃO REIS DO ARAÚJO, 60 anos e 80,00 por mês.
17 filhos -Comunidade de Samucangaua) Não se pode deixar de mencionar, ainda, que
a luta por documentação junto à Justiça, a explo-
Técnicos e militares, pautados pelos pressu- ração econômica, a perseguição, a violência e a
postos da modernização e tendo como justifi- invasão das áreas pelos rebanhos bovinos e
cativa o pretenso desenvolvimento econômico bubalinos - elemento desorganizador da econo-
e a conquista espacial, violam, pelo desconhe- mia dos pequenos produtores agrícolas - são si-
cimento, as formas pré-existentes de organiza- tuações características de conflitos relacionados às
ção social e econômica de diferentes segmentos terras de preto, que representam também formas de
sociais de Alcântara, desorganizando suas bases expulsão dos trabalhadores rurais de suas terras.
materiais e simbólicas de identidade cultural, e Desta forma, apontamos os principais efei-
assim, de reprodução social. A perda da terra, tos da implantação destes projetos:
significa assim, a desconstrução da identidade
social e cultural do quilombola. • A violação do direito à terra das populações negras e
Deve-se frisar que desenvolvimento susten- tradicionais nas áreas rurais, mediante o não
tável não se confunde com simples crescimento cumprimento da Constituição Federal de
econômico e com modernização tecnológica. Ele 1988, a expulsão dos trabalhadores ru-
não é meramente o aumento da área urbanizada rais do campo, os deslocamentos força-
ou uma sofisticação e modernização do espaço, dos devido à implantação de projetos de
mas sim, um desenvolvimento sócio-espacial na desenvolvimento, as ameaças de despejo
e da localidade.Vale dizer, deveria significar a con- promovidas pelo próprio Estado, os con-
quista de melhor qualidade de vida para um número crescente flitos de terra e as mortes no campo.
de pessoas e cada vez mais justiça social. Se o que temos é • O “extermínio” das populações tradicionais, na
a produção de mais riqueza acompanhada por medida em que não se permite a susten-
um aumento nas disparidades econômicas no tabilidade econômica e social das comu-
seio de sua população, se o crescimento da cida- nidades quilombolas e tradicionais.

12
SOUZA, Marcelo Lopes de. ABC do desenvolvimento urbano.Rio de janeiro, Bertrand Brasil, 2003.
14

II. AS COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS E O USO DA TERRA:


CONFLITOS E LUTAS NO MARANHÃO

• A desagregação da economia rural e concentração da O município foi fundado em 1648 e sua


terra e benefícios pela implantação de projetos economia baseava-se na produção de cana-de-
que levaram a proliferação dos latifúndi- açúcar e algodão sustentada pelo trabalho era
os de criação de gado e de monocultura escravo negro. Em 1759 as fazendas dos jesuí-
de soja. Essa produção, voltada principal- tas foram confiscadas e vendidas a particulares.
mente para o mercado externo, levou a As propriedades das Ordens Religiosas dos
destruição de roçados pelos gados e a in- Carmelitas e Mercenários permaneceram até o
tensificação do êxodo rural, dada a pouca final do século XIX e depois foram repassadas à
utilização de mão-de-obra regional pela Igreja ou ao Estado, originando as comunida-
tecnização agrícola, levando ao aumento des tradicionais.
da miséria e degradação da vida no cam- Nesta época, Alcântara passou a ser habitada
po e nas cidades. por escravos e descendentes de índios. Veio a
• O aumento da desigualdade social com o em- queda do preço do açúcar e as pressões pela
pobrecimento e degradação das condições de vida abolição da escravatura formando muitos dos
das comunidades afetadas no Estado do quilombos da região. A importância histórica e
Maranhão. cultural dessas comunidades denominadas “re-
manescentes de quilombos” fez com que a
3. AS COMUNIDADES NEGRAS E Constituição brasileira de 1988 reconhecesse o
TRADICIONAIS E O CENTRO DE direito delas aos seus territórios.
LANÇAMENTOS DE ALCÂNTARA - Alcântara localiza-se na Baixada Ocidental
SITUAÇÃO PERMANENTE DE maranhense a vinte e dois quilômetros de São
CONFLITO Luís, capital do Estado. Possui um rico patri-
mônio histórico e, em função disso, desde 1948
“A aeronáutica vai às estrelas e deixa o Alcântara passou a ser considerada Cidade Mo-
povo no escuro”. numento Nacional por ato do Governo Fede-
(Excerto do depoimento de um ral. O município possui uma população de vinte
trabalhador rural deslocado) e um mil habitantes, sendo cerca de vinte e seis
por cento desses habitantes residindo na zona
Breves Informações sobre o município de urbana e setenta e quatro por cento na zona
Alcântara rural, segundo dados do IBGE.
Alcântara tem muitos séculos de história. Sua Com uma área total de cento e quarenta e
área foi inicialmente habitada por índios nove mil hectares, a economia de Alcântara é
Tupinambá. Os franceses ocuparam o local no sustentada basicamente pelo turismo na sede,
final do século XVI e dominaram a região até decorrente de seu rico patrimônio histórico e
1616, quando foram expulsos pelos portugue- cultural, pela pesca artesanal e pela agricultura
ses. A produção local passou a ser baseada na de subsistência. A cidade possui apenas um hos-
escravidão indígena e africana. pital e somente uma escola de ensino médio sen-
15

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

do o índice de analfabetismo um dos maiores da. O município também se comprometeu da


do Estado do Maranhão. O principal meio de mesma forma.
acesso ao município é o transporte marítimo Em 1983, o Decreto Federal nº 88.136 de
feito em barco rústico ou em lancha. O desloca- primeiro de março criou o Centro de Lança-
mento interno é realizado por estradas em con- mentos de Alcântara (CLA), com o único pro-
dições totalmente precárias mediante o uso de pósito de executar e apoiar atividades espaci-
animais de tração, carroças e camionetas de par- ais, testes científicos e experimentos de inte-
ticulares, inexistindo transporte público que li- resse do Ministério da Aeronáutica, relaciona-
gue o centro da cidade às comunidades rurais. dos, portanto, com a política nacional de de-
A maioria das comunidades não possui luz elé- senvolvimento espacial.
trica, muito menos água e esgoto tratados. A Em 1985, novo convênio é assinado entre a
renda média familiar de noventa e um por cen- União e o Estado do Maranhão, sendo de
to da população é de até dois salários mínimos competência deste a desapropriação de áreas
sendo que somente 0,1% da população possui atingidas pelo projeto da Base as quais, junta-
uma renda de mais de vinte salários mínimos. mente com as áreas que já eram de domínio
estadual, seriam então transmitidas à União. De
O Impacto do Centro de Lançamentos no acordo com o mesmo documento, todas as de-
município de Alcântara sapropriações deveriam ter estado prontas até
Em 1979 o Ministério da Aeronáutica reco- setembro de 1985. O Estado do Maranhão pro-
mendou ao governador do Estado da Maranhão moveu, portanto, vários processos de desapro-
a desapropriação da área onde está localizado o priação contra moradores do território étnico,
Centro de Lançamentos de Alcântara. O decreto denominados invasores. Os estudos topográfi-
estadual de desapropriação de doze de setem- cos realizados pelo Ministério da Aeronáutica
bro de 1980, assinado pelo então governador somente consideraram a titulação formal/
João Castelo, garantia ao Ministério da Aero- registral e oficial das áreas, apesar da configu-
náutica uma área de cinqüenta e dois mil hec- ração real do território.
tares para a instalação da Base Espacial, local Em 1986, é expedido Decreto pelo Executi-
onde viviam duzentas famílias de trabalhado- vo Federal áreas rurais da União para o
res rurais de várias comunidades tradicionais. reassentamento das famílias atingidas pelas de-
Em 1982, o Ministério da Aeronáutica e o sapropriações. O reassentamento das famílias
Estado do Maranhão assinaram um Protocolo ocorreu para módulos de terra com quinze hec-
de Cooperação, no qual o Ministério se com- tares, contrariando o Estatuto da Terra, que de-
promete a buscar fundos para adquirir, regula- termina o módulo rural mínimo de trinta hec-
rizar e desocupar os lotes necessários à implan- tares, inviabilizando o auto-sustento da popu-
tação da Base. O Estado do Maranhão, por sua lação deslocada.
vez, comprometeu-se com a destinação de lo- O Decreto em questão retirou a base legal
tes públicos para reassentar a população afeta- da principal reivindicação das comunidades.
16

II. AS COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS E O USO DA TERRA:


CONFLITOS E LUTAS NO MARANHÃO

Isto provocou o enfraquecimento do processo miu o processo de desapropriação que antes era
de mobilização das comunidades e população conduzido pelo Estado do Maranhão.
atingida pela Base, iniciando a partir de 1990 Nos depoimentos dos moradores das terras de
um declínio na sua força reivindicatória. Além preto que sofreram desapropriações é unânime a
disso, permitiu que a Aeronáutica conseguisse assertiva de que saíram perdendo. Comprovan-
realizar as primeiras agrovilas, ou seja, os con- do os efeitos prejudiciais da implementação au-
juntos habitacionais construídos pelo Centro toritária de projetos, uma pesquisa sócio-eco-
de Lançamentos de Alcântara para o remaneja- nômica realizada na área palafitada da Camboa
mento das comunidades tradicionais seculares (bairro periférico próximo ao centro de São Luiz)
moradoras dos povoados próximos à Base. Fo- constatou que mais de noventa por cento da
ram colocadas nas agrovilas diversas comuni- população daquela região era negra e proceden-
dades. Em algumas delas, foram reunidas dife- te dos povoados atingidos pelo Centro de Lan-
rentes comunidades num mesmo local, o que çamentos. Neste aspecto, a população jovem das
contribuiu para os conflitos internos, que an- comunidades atingidas pela implantação da Base
tes não ocorriam naquele território. é a que mais sofre, ficando sem terra no campo
Em 1991, um novo Decreto Presidencial de- sem trabalho na cidade. É notório que em mo-
clarou de utilidade pública para implantação mento algum o projeto da Base Espacial incor-
outra área de dez mil hectares, aumentando a porou os interesse das futuras gerações, autori-
área da Base para 62 mil hectares. Neste mo- zando se quer, a construção de casas dos filhos
mento, cerca de cinqüenta por cento do muni- que casam junto à família13.
cípio de Alcântara já havia sido ocupado pela
CLA, estimando-se que cerca de 3.600 famílias “Tem muita vida, muita criança aqui.
estavam dentro da área da Base Espacial. Com Vamos tirar nossos filhos dessa terra para
este Decreto, criou-se uma série de embargos botar onde? Aqui eu tenho tudo no mun-
de natureza jurídica, com graves prejuízos às do. Então, para onde eu vou? Criei 12 fi-
comunidades já que todos os processos saíram lhos. O que vou fazer na cidade? Vou cho-
da Justiça Estadual tornando-se competência da rar dez anos. E um menino chora três dias
Justiça Federal, sediada em São Luís. para desmamar da mãe. Tirar nós daqui é
Em 1996, a CLA e o Ministério da Aeronáutica pra matar. Era melhor matar nós com os
assinaram um acordo com a INFRAERO, que pas- foguetes. Eu fui olhar a casas da agrovila e
sou a ser responsável pela exploração comercial e não me agradei. Era muito baixa. O coro-
pelo desenvolvimento das atividades gerenciais do nel disse que não podia dar 30 hectares
aeroporto e do Centro de Lançamentos. Há uma porque Alcântara é muito pequena. Ele disse
clara contradição entre estes objetivos e o perfil que a casa e os 17 hectares iam ter docu-
de interesse público presentes nas justificativas de mento. Mas não tem nada, nem a casa nem
desapropriações realizadas pelos governos fede- a terra.” (JOSÉ FERREIRA DE CARVALHO,
ral e estadual. Com isso, o governo federal assu- 80 anos - Comunidade Santa Maria)
17

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

A implantação autoritária do Centro de Lan- bor de crioula, muita gente toca, aqui é a
çamentos de Alcântara desconsiderou, portan- casa da festa. Nós cantamos, rezamos, tem
to, a existência de populações rurais locais e Dia de Reis, é 6 de janeiro. Tem que dançar,
tradicionais e suas peculiaridades. As relegou a que suar. Os homens batem tambor e as
extinção ou a sobrevivência nas palafitas da mulheres dançam. Essa era terra de enge-
periferia de São Luis do Maranhão. nho. Eles pagavam os escravos com farinha.
Como resultado da política de implantação Depois virou terra liberta, terra de santo,
autoritária de projetos, dos quais a implanta- de santíssimo. Ou terra de preto, de
ção do CLA é simbólico, o que resultou para quilombo. Antes tinha um bocado de pei-
Alcântara e sua população? Com certeza não foi xe. Agora, com muita gente no lugar, tem
o desenvolvimento. O CLA ocupou praticamen- falta. Temos medo, preocupação. (...) Nos-
te toda a área litorânea do município, restrin- sa farinha é o pão da terra. Se não tiver fa-
gindo as áreas propícias à pesca, à agricultura e rinha nós morremos. Temos banana, fei-
ao turismo. jão, mandioca, milho arroz. Trabalho na
roça das 5 da manhã até 5 da tarde. A gente
“A Base não dá sossego, tá trazendo pre- trabalha junto, os grupos na roça. Reveza-
juízo. Antes tinha sururu, ostra, camarão. mos a terra”. (LÚCIA ANSTÁCIA DOS SAN-
Veio o povo da agrovila e isso acabou. E se TOS, 67 anos - Comunidade de Irizal)
tirarem a gente daqui? É o mesmo que ti-
rar uma criança pequena da mãe. Meu pai A instalação da Base trouxe graves impactos
e minha mãe nasceram aqui. Eles já morre- sociais e culturais às comunidades que tradici-
ram a mais de dez anos. Minha mãe dizia onalmente vivem na região. A situação de
que na escravidão prendiam os escravos no Alcântara possui, um elevado grau de conflito
pau e eles apanhavam, depois deitavam eles por ali conviverem um projeto de tecnologia
de barriga pro chão e pisavam em cima, de ponta aeroespacial internacional e as neces-
como se fossem uma ponte. A estrada foi sidades, interesses e a preservação das comuni-
feita com nossos braços. A gente tem tam- dades locais.

13
Conforme diagnosticou FERNANDES: “Outro problema se refere aos filhos que, ao contraírem matrimônio, em função do
modelo social estático do Plano de Relocação do GICLA, não possuem os lotes urbanos e rurais, onde tenham condições de se
reproduzir material e socialmente, enquanto trabalhadores, alterando as regras do chamado sistema velho, como menciona o
depoimento de um morador da agrovila de Cajueiro: ‘O sistema velho era o seguinte: Olha aqui é Cajueiro, então Cajueiro tá
crescendo, meu filho casou, faz a casa encostado de mim. Filho de fulano casou, faz a casa. (...) Agora não se o cara chegar tem que
tomar uma submissão deles lá, pra consegui fazê uma casa no Cajueiro, Cajueiro Novo’. O termo submissão, expresso pelo
trabalhador deslocado, se refere a uma autorização dada pelo responsável do “setor de patrimônio” do Ministério da Aeronáutica,
para construção de uma moradia para o filho que constituiu novo grupo familiar. Nesse sentido, a ação do Ministério implica num
processo que posso denominar de limpeza étnica, na medida em que não permite a reprodução econômica e social de novos
grupos familiares”. FERNANDES, Carlos Aparecido. Deslocamento compulsório de trabalhadores rurais: o caso do Centro de
Lançamentos de Alcântara - Maranhão. Artigo do site www.abrareformaagraria.org.br
18

III. A MISSÃO DA RELATORIA


SOBRE OS DIREITOS HUMANOS
DAS COMUNIDADES DE
ALCÂNTARA
19

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

1. ATIVIDADES DA MISSÃO DA Nossa Sra. Do Carmo, no centro histórico da


RELATORIA cidade.
No dia 26 de abril a Relatoria realizou uma
A missão da Relatoria foi realizada por Nel- visita ao Centro de Lançamentos de Alcântara
son Saule Júnior, relator nacional do Direito à (CLA).
Moradia e à Terra Urbana e coordenador da área
Direito à Cidade do Instituto Pólis; por Letícia 2. OS DIREITOS HUMANOS
Marques Osório, assessora da Relatoria e coor- VIOLADOS DAS COMUNIDADES
denadora do COHRE Américas; e por Patrícia
de Menezes Cardoso e Thais de Ricardo Chueiri, Com base nos diversos estudos, relatórios,
ambas da equipe Direito à Cidade do Instituto depoimentos e na missão realizada pela Relatoria
Pólis. do Direito à Moradia Adequada e à Terra Urba-
No dia 22 de abril de 2003, em seu pri- na, foram constatadas as seguintes situações que
meiro dia no Maranhão, a Relatoria partici- resultam de violação dos direitos humanos das
pou de uma reunião em São Luiz, na sede da comunidades de Alcântara:
ACONERUQ (Articulação das Comunidades
Negras Rurais Quilombolas). A associação foi Comunidades Deslocadas de
uma das entidades organizadoras da Forma Forçada
Audiência Pública e apoiadoras da missão, Comunidades que foram, em função da
assim como a Sociedade Maranhense de Di- Implementação da fase inicial do Centro de
reitos Humanos (SMDH), o Movimento dos Lançamentos de Alcântara, forçadas a deixar suas
Atingidos pela Base (MAB), o Movimento terras sendo removidas para agrovilas situadas
Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) e o em áreas distantes do local de origem e sem a
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de mesma metragem das terras ocupadas tradicio-
Alcântara. nalmente.
No dia 23 de abril a Relatoria, já em
Alcântara, visitou à comunidade Canelatiua, Comunidades Ameaçadas de
ameaçada de deslocamento. Deslocamento
No Dia 24 de abril a Relatoria visitou as co- Comunidades localizadas na área de expansão
munidades que foram removidas para as agro- das atividades do Centro de Lançamentos de
vilas de Cajueiro, Peru, Marudá e Espera. Neste Alcântara que deverão ser removidas de suas terras.
mesmo dia foi feita uma visita à Comunidade
de Itapuaua, ameaçada de desestruturação social Comunidades Ameaçadas de Desestrutu-
e cultural. ração Social e Cultural
No dia 25 de abril a Relatoria coordenou os Comunidades que terão que receber cente-
trabalhos da audiência pública sobre a situação nas de famílias provenientes das comunidades
das comunidades de Alcântara realizada na Igreja ameaçadas de deslocamento no território onde
20

III. A MISSÃO DA RELATORIA SOBRE OS


DIREITOS HUMANOS DAS COMUNIDADES DE ALCÂNTARA

estão localizadas suas terras e moradias, resul- de habitabilidade, com infra-estrutura e servi-
tando na desestruturação da cultura tradicio- ços públicos deficientes.
nal, da produção agrícola de subsistência, da
degradação dos recursos naturais, além da per- Direito Cultural
da de sua identidade cultural. As comunidades remanescentes de qui-
lombos e tradicionais, consideradas pela Cons-
Com base nestas situações, a Relatoria do tituição como patrimônio cultural brasileiro,
Direito à Moradia e à Terra Urbana constatou a têm seus direitos culturais gravemente viola-
violação dos seguintes direitos das comunida- dos pelas ações do Estado do Maranhão e da
des de Alcântara remanescentes de quilombos União, em especial as que foram removidas de
e tradicionais: suas terras de origem. Por total falta de apoio e
assistência do Estado brasileiro, sofrem com o
Direito a Cidades Sustentáveis risco de perderem sua identidade, memória e
O Direito a cidades sustentáveis, um direito formas de viver.
coletivo e difuso das comunidades negras e tra-
dicionais, vem sendo violado pelo Estado brasi- Direito à Propriedade
leiro através das autoridades na esfera da União, O direito de propriedade foi violado pelo
Estado do Maranhão e município de Alcântara. fato de o Estado Brasileiro não ter efetuado ne-
Há a total ausência de políticas públicas, progra- nhuma forma justa de reparação para as comu-
mas e projetos que viabilizem o acesso a terra, à nidades que perderam suas propriedades, ter-
moradia, ao saneamento ambiental, à infra-es- ras e moradias as tornando mais pobres e mi-
trutura urbana, ao transporte e serviços públi- seráveis. A terra é fonte de trabalho e renda e,
cos, ao trabalho e lazer para as presentes e futu- portanto, de sobrevivência.
ras gerações dessas comunidades.
Direito à Alimentação
Direito à Moradia O direito à alimentação das comunidades
Comunidades removidas de suas terras de negras e tradicionais está sendo violado tanto
origem têm seu direito à moradia violado de em função do fim ou redução da produção agrí-
forma grave por não terem tido a devida ga- cola de subsistência, como devido ao impedi-
rantia de defesa e do devido processo legal nos mento de acesso aos locais de pesca por ação
processos administrativos e judiciais de remo- ou determinação do Poder Público.
ção. As comunidades ameaçadas de deslocamen-
to e de desestruturação sociocultural tem seus Direito ao Trabalho
direito à moradia violado por viverem em áre- O direito ao trabalho foi violado em razão
as sem infraestrutura e serviços públicos como das comunidades deslocadas que perderam suas
saúde, educação e transporte, ou por viverem terras de origem perderem a sua principal fon-
em áreas que apresentam precárias condições te de trabalho e renda. A violação deste direito
21

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

também se configura pela falta de apoio , in- 3. AS SITUAÇÕES DE VIOLAÇÃO


vestimento, programas e projetos do Estado REGISTRADAS PELA MISSÃO DA
brasileiro visando a geração de trabalho e ren- RELATORIA
da para as famílias destas comunidades.
3.1 OS DESLOCAMENTOS
Direito à Igualdade - Direito de Não Ser FORÇADOS E AS VIOLAÇÕES DO
Discriminado DIREITO À TERRA E À MORADIA
No processo de implantação do Centro de
Lançamentos de Alcântara, as comunidades “Oficialmente Alcântara é de 1648 mas
tradicionais, por serem negras, foram ampla- desde 1613 que já há registro sobre a his-
mente discriminadas com relação a proteção tória de Alcântara. De 1860 até 1980, mais
dos seus direitos e ao tratamento das autori- de 120 anos que o estado Brasileiro dei-
dades do Poder Executivo e Legislativo nas xou Alcântara no abandono. Em 1980 o go-
esferas federal, estadual e municipal e pelos verno brasileiro lembrou de Alcântara mais
membros do Poder Judiciário na esfera fede- não foi pra pagar sua enorme dívida social
ral e estadual. (...) foi justamente pra colocar uma Base,
sem consultar a comunidade, causando
Direito de Assistência Jurídica Integral e toda desorganização social que hoje
Gratuita Alcântara vive”. (Domingos Dutra – Depu-
As comunidades negras e tradicionais têm tado Estadual PT/MA)
sido lesadas em seus direitos e em seu acesso
à Justiça pela falta da prestação do serviço de Os deslocamentos forçados ocorreram para
assistência jurídica gratuita pela Defensoria a implantação das fases I (1986) e II (1987 e
Pública da União ou do Estado do Maranhão. 1988) do CLA, permitindo o lançamento de
veículos movidos a combustíveis sólidos e a
Direito à Participação Política e Exercício combustíveis líquidos, respectivamente.
da Cidadania Para a construção da I fase, quinhentas e vinte
As comunidades negras e tradicionais tive- pessoas foram transferidas para cinco agrovi-
ram os seus direitos de participação política e las, enquanto que a implantação da fase II
ao exercício da cidadania totalmente desrespei- ensejou o deslocamento forçado de oitocentos
tados pelo Estado Brasileiro que não reconhe- e trinta habitantes para duas agrovilas. Foram
ceu a legitimidade de participação das suas orga- deslocados os residentes das comunidades de
nizações e lideranças nos processos decisórios Pirarena, Cajueiro, Marudá, Espera, Ponta Seca,
de elaboração e execução das políticas públicas Laje, Jenipaúba, Santo Antônio, Ponta Alta,
no município, em especial no processo de im- Jabaquara, Peru, Titica, Santaninha, Cavem,
plantação do Centro de Lançamentos de Pedro Marinho, Santa Cruz, Aldeia, Capijuba,
Alcântara. Santa Helena e São Francisco.
22

III. A MISSÃO DA RELATORIA SOBRE OS


DIREITOS HUMANOS DAS COMUNIDADES DE ALCÂNTARA

Os deslocamentos forçados foram realizados forma coletiva os recursos naturais do


pelo próprio Estado, fazendo com que as pes- território ocupado, foram transferidos
soas sentissem-se forçadas a sair. Quanto a isto, para um espaço limitado pelas frontei-
a Sub-Procuradora Geral da República, em sua ras oficiais;
fala na Audiência Pública, denunciou: • a cada família foi garantido apenas um
lote de quinze hectares para produzir lon-
“A moda neste país em relação a negro ge dos locais de pesca e com terras im-
e índio sempre foi tomar uma decisão de próprias para a agricultura de subsistên-
gabinete, sem consultar o local onde aque- cia que praticavam;
la decisão pode surgir efeito, remanejando • o acordo não respeitou a continuidade
a população”. das atividades econômicas das comuni-
dades, assim como atingiu o direito à fa-
A população reassentada pertencia a várias mília e as práticas religiosas.
comunidades tradicionais que foram realocadas
para sete agrovilas contra a sua vontade e me- As desapropriações lentas e as indeniza-
diante desconsideração de sua realidade sócio- ções irrisórias
cultural, ocasionando conflitos internos inexis- As comunidades de Alcântara remanescen-
tentes anteriormente. tes de quilombos sofreram deslocamentos for-
Assim, muito ao contrário de acessar o pro- çados como conseqüência de ações de desapro-
gresso e o prometido desenvolvimento, o que priação que visavam a instalação do Centro de
as comunidades rurais quilombolas de Alcântara Lançamentos. Há também a omissão do Estado
vivenciaram demonstra que: do Maranhão quanto à sua responsabilidade
pela emissão dos títulos definitivos de posse às
• o deslocamento das comunidades foi fei- essas comunidades rurais .
to de forma forçada e simplista para áre- De 1995 até os dias atuais foram propostas
as distantes do mar e dos igarapés; dez ações discriminatórias pela União Federal,
• não foi feito nenhum diagnóstico que visando à desapropriação, demarcação, delimi-
permitisse uma avaliação da realidade so- tação, discriminação e registro das áreas do
cioeconômica e cultural, o interesse e as Centro de Lançamentos. A apreciação legal está
qualidades dessas famílias, como práti- sendo presentemente conduzida com base no
cas agrícolas, atividades econômicas de- registro cartorial das propriedades e não na
senvolvidas, força de trabalho utilizada e configuração da ocupação territorial de fato
apropriação dos recursos naturais; praticada pelas comunidades no território ét-
• os povoados que possuíam terras sufi- nico. Nenhuma das ações propostas menciona
cientes e férteis e praticavam a agricul- as comunidades ancestralmente constituídas
tura tradicional (com atividades de pes- nem tampouco as redes de interação social do
ca, caça e extrativismo) explorando de território ao qual pertenciam.
23

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

Na Audiência Pública realizada durante a Mais de trinta comunidades remanejadas


Missão da Relatoria em Alcântara a Sub- deram origem a sete agrovilas: Marudá, Só
Procuradora Geral da República, Dra. Armanda Assim, Pepital, Cajueiro, Espera, Peru e Ponta
Figueiredo, constatou que: Seca.
Não há assistência técnica agrícola disponí-
“Outro grande equívoco é tentar subs- vel no local e o acesso à área de pesca, distante
tituir a destruição de uma vida auto-sus- dez quilômetros das moradias, depende da pas-
tentável por dinheiro e por casa.” sagem por dentro da área cercada do CLA. Para
isso, o Centro lhes disponibiliza um crachá de
As ações de desapropriação foram ajuizadas identificação que deve ser exibido perante as
em Alcântara em setembro de 1985. A partir de guaritas de segurança. As famílias foram assen-
um decreto de 1991, do então Presidente tadas em casas de setenta e dois metros quadra-
Fernando Collor, os processos foram transferi- dos e receberam indenizações irrisórias pelas
dos para a Justiça Federal de São Luís. A grande benfeitorias e terras que anteriormente possu-
maioria dos desapropriados ainda não recebeu íam. Os valores de muitas indenizações ainda
suas indenizações, o que tem gerado uma de- estão em discussão na Justiça.
gradação das condições de vida das famílias que Apesar de terem acesso à educação, as famí-
nasceram e se criaram vivendo em harmonia com lias vivem na extrema pobreza. As agrovilas estão
os recursos naturais (ecossistema) e territoriais. localizadas em área de propriedade da União,
Tramita no Ministério Público Federal um desapropriadas com a finalidade de receber as
inquérito para averiguar possíveis irregularida- famílias deslocadas e não tituladas em nome
des verificadas na implementação e no desen- destas. Por esta razão, a Direção Geral do Cen-
volvimento da Base de Lançamentos de Alcântara. tro de Lançamentos de Alcântara entendia ser
O inquérito também questiona a inexistência de de sua competência a gestão do uso e ocupa-
um estudo de impacto ambiental e do respecti- ção do solo das agrovilas e não do plano dire-
vo Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) tor municipal, constitucionalmente obrigató-
quando da implantação do Centro. rio para cidades com mais de vinte mil habi-
tantes e de interesse turístico, como é o caso de
Da situação precária nas agrovilas Alcântara.
O atual território das agrovilas, de quinze A Direção Militar do CLA é quem decide e
hectares, tem área muito inferior ao local autoriza, ou não, a reforma e a construção de
anteriormente ocupado pelas comunidades, casas, a abertura e o funcionamento de peque-
além de sua qualidade e produtividade serem nos comércios, a demarcação e subdivisão de
insuficientes para a subsistência das famílias. O terrenos bem como impede a entrada de no-
módulo rural mínimo, previsto no Estatuto da vas pessoas para fins de moradia, subtraindo
Terra em trinta hectares, não foi considerado de forma gravíssima o poder civil local. O
para fins do reassentamento. Brasil é um Estado Democrático de Direito,
24

III. A MISSÃO DA RELATORIA SOBRE OS


DIREITOS HUMANOS DAS COMUNIDADES DE ALCÂNTARA

cabendo às autoridades municipais eleitas de- “Qual é o problema das agrovilas?


mocraticamente no município, nos termos da Primeiro, não há documentação. Até hoje
Constituição brasileira, o exercício das fun- essas famílias não receberam documentação
ções institucionais e de governo através do nem do lote urbano e nem das suas glebas. Se-
Poder Executivo municipal e da Câmara Mu- gundo, as agrovilas não têm autonomia por-
nicipal de Vereadores. que elas foram pensadas para ser uma extensão
Os filhos das pessoas realocadas não têm do quartel militar. Terceiro, a fome. Essas famí-
garantia de permanência na área ou de recebi- lias que antes tinham pesca com fartura, hoje
mento futuro das terras a título de herança. Além não tem, estão distantes doze, treze quilôme-
disso, o CLA não lhes permite edificar novas tros do local de pesca. E o local de pesca não é
casas junto às existentes de seus pais, nem ao de fácil acesso porque a área de pesca deles se
menos ampliar as existentes. O morador Sr. tornou área da Base Militar. O quarto problema
Moraes, a esse respeito, afirma haver “um caso é que não há programa de desenvolvimento
de mendigação neste povoado”. econômico das agrovilas. O modo de vida, o
Na audiência pública realizada durante a modo de produção foi desorganizado, na hora
missão da Relatoria em Alcântara, os represen- em que cada família pegou quinze hectares,
tantes das comunidades atingidas e ameaçadas então limitou, as pessoas de hoje não têm con-
e dos movimentos de defesa das populações dições de fazer partilha,porque a terra ficou
negras e de luta pela moradia, denunciaram a pequena e a população aumentou.” Domingos
grave situação das agrovilas. Dutra – Deputado Estadual PT/MA)

VISITA ÀS COMUNIDADES passa a não gerar excedente a ser comer-


DESLOCADAS - AGROVILAS cializado. Os moradores apontam como
problemas críticos que tem dificultado a
Foram visitadas as agrovilas de Cajueiro, sobrevivência e levado a expulsão dos
Peru, Marudá e Espera. jovens, a falta de terra em função da re-
Na agrovila Espera foi realizada uma dução do módulo bem como a falta de
reunião com as lideranças e moradores assistência técnica quanto à tecnologia
locais. A agrovila tem cerca de dezessete para o cultivo.
anos e possui hoje entorno de cem habi- Os moradores revelam que vivem em um
tantes correspondentes a dezessete famí- “impasse” para construir novas casas porque
lias que sobrevivem da agricultura de é a CLA quem determina se poderão ou não
subsistência de mandioca, milho, arroz e construir, como e onde, delimitando as áreas
da pesca. Na agrovila, no entanto, o solo longe do núcleo da comunidade, onde as pes-
é pobre e não facilita a produção que soas não querem morar.
25

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

As casas da agrovila são de alvenaria, exceto lho”. Sr. Inocêncio, morador da Agrovila Só
uma ou outra auto-construída de taipa. A água Assim conta o que lhe aconteceu quanto à
utilizada é de poço artesiano, não há coleta compulsoriedade do deslocamento e o pre-
de lixo e há energia elétrica nas casas. Um juízo irresgatável na mudança de sua vida, e
ônibus passa na região três vezes ao dia, exis- quanto a dificuldade para o trabalho e pre-
te uma escola de primeira à quarta série com servação de sua família:
uma professora na comunidade. “Minha terra tá no centro do Centro de
Os moradores se organizam através de uma Lançamento de Alcântara. Daí, fui obrigado a
associação comunitária existente há dez anos vendê a terra porque quando chegou uns do-
e com ela têm lutado por melhorias para so- cumentos que era pra vendê, pra vendê, pra
brevivência na agrovila, como o acesso à praia, vendê. Eu era uns dos que não queria. Mas
posto de saúde e titulação. Explicam que o era obrigado a vender, porque a gente nunca
Ministério da Aeronáutica somente indeni- teve este costume de deslocamento em
zou as benfeitorias até então, sendo que a in- Alcântara. Eles indenizaram a casa e as roças a
denização mais substancial que é a da terra preço de banana. (...) Foram mais de vinte
esta sendo feita em separado e discutida na viagens até o quartel, brigando, reivindican-
Justiça até os dias de hoje. do meus direitos porque eu não podia jogar
A maior preocupação dos moradores é meus filhos fora. (...) Minha vontade é terra
com seus filhos que, segundo narram, se en- pra trabalhar. Hoje não tem terra pra mim
contram “sem terra, sem casa e sem traba- nem pra quem trabalhava comigo”.

3.2 AS AMEAÇAS DE comunidades de Itapera, Pirajuna e Alegre,


DESLOCAMENTOS FORÇADOS totalizando a desocupação de oito mil hecta-
DAS COMUNIDADES DE res e o deslocamento de mil habitantes. Des-
ALCÂNTARA te total, 158 famílias serão deslocadas para 5
comunidades diferentes que já abrigam ou-
Está ainda por ser implantadas as fases III e tras 103 famílias.
IV do projeto, destinadas à adaptação do cen- Estão ameaçadas de despejo as comunida-
tro de operações com veículos de lançamento des de Canelatiua, visitada pela Relatoria,
recicláveis de grande porte. Itapera, Manuninha, Mato Grosso, Brito, Vista
O projeto de expansão da Base deslocaria Alegre, Caiava, Baracatatiua, Mamuna, Santa
cerca de mil e quinhentos habitantes: sua fase Maria, Engenho, Retiro, São Paulo, Uru-Mirim,
III corresponde à desocupação de seis mil Tapera, Ponte do Murio e Uru-Grande. Não foi
hectares e ao reassentamento forçado de tre- realizado até o momento nenhum diagnóstico
zentas e treze pessoas. A fase IV atingirá as que permita a avaliação da realidade socioeco-
26

III. A MISSÃO DA RELATORIA SOBRE OS


DIREITOS HUMANOS DAS COMUNIDADES DE ALCÂNTARA

nômica e cultural, o interesse e as qualidades Quanto a possibilidade de expansão da Base


dessas famílias, as práticas agrícolas que persis- através da implantação da fase III e IV e a garan-
tem, as atividades econômicas desenvolvidas, a tia dos direitos das comunidades negras rurais
força de trabalho utilizada e apropriação dos tradicionais, Domingos Dutra, deputado estadual
recursos naturais, questões fundamentais a do Maranhão, afirmou na Audiência Pública:
serem consideradas em um processo de “Todo município de Alcântara é um territó-
reassentamento populacional. rio étnico, é uma mistura de índio e negro prin-
A expansão do Centro de Lançamentos e o cipalmente. Todos os povoados se comunicam,
conseqüentemente reassentamento das comu- seja pela cultura, pela religião, pela produção. O
nidades não têm prazo previsto ou estipulado Estado Brasileiro, por determinação dos Consti-
para ocorrer, fato que contribui sobremaneira tuintes de 1988, tem obrigação de garantir estas
para justificar a não implementação de políti- terras para os remanescentes de quilombos. É in-
cas públicas e sociais no local pelos governos compatível a expansão da Base com o direito à
estadual e municipal. construção dessas comunidades”.

VISITA À COMUNIDADE Canelatiua tem como principal forma de


AMEAÇADA DE DESLOCAMENTO subsistência a agricultura (cultivo de mandi-
oca, milho, arroz, feijão, melancia,etc.) e a
A Relatoria do Direito á Moradia e à Terra pesca. Possuem uma área de roça separada e
Urbana visitou a comunidade de Canelatiua coletiva perto de suas moradias. A água utili-
que está ameaçada de deslocamento forçado zada nas moradias vem de poço artesiano.
pela expansão do CLA (implantação da fase Existe uma escola com duas salas na comuni-
III e IV doprojeto). dade de ensino da 1ª à 8ª série. A maioria dos
A comunidade se localiza no Sul de moradores é católica (há evangélicos tam-
Alcântara e possui cerca de 160 habitan- bém), foram eles mesmos que construíram a
tes, na maioria de descendência africana e igreja, e apontaram como principal celebra-
indígena. Eles se referem a Canelatiua, ção o festejo de Nossa Senhora de Aparecida,
antes de ela ter abrigado um engenho, comemorado no mês de dezembro.
como terra de índio. Segundo Sr. Domingos Segundo os moradores, o CLA os aconse-
Ramos Ribeiro, 78 anos, uma das pessoas lhou a não plantar e não construir casas por-
mais velhas de Canelatiua, o povoado tem que não seriam indenizados pela iminente re-
cerca de 400 anos. Ele conta que essas ter- moção. O medo da remoção fez com que mui-
ras foram doadas pelo antigo proprietá- tas pessoas, principalmente os jovens, fossem
rio e que guarda consigo esse documento para outras cidades como São Luiz (capital do
de doação. Estado do Maranhão) e São Paulo(SP). Além
27

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

disso, dada a ameaça de deslocamento, não foi o sentimento da comunidade:


implantado nenhum serviço público reivin- “Se o Centro de Lançamento que che-
dicado pela comunidade como um posto de gou aqui há vinte anos não pode ser re-
saúde e estradas de acesso. tirado porque é definitivo, e nós que es-
A principal reivindicação da comunidade tamos lá a mais de duzentos anos?!”.
é a permanência na terra, a mesma dos seus E assim conclui:
ancestrais, a mesma que tiram seu sustento. Sr. “Todos nós estamos prontos a resistir e
Domingos diz: “Plantar com os dentes e co- lutar, o que nos interessa é a terra onde mo-
lher com a gengiva”:plantar moço e colher ramos, porque até hoje, durante esse vintes
até o fim da vida, explicam os moradores. anos de Centro de Lançamento, já foram lan-
O depoimento, durante a Audiência çados vários foguetes, vários satélites, mas
Pública, de Neta, moradora de Canelatiua e nenhum dos foguetes que foram lançados
neta do Sr. Domingos, expressa claramente fizeram teste pra plantar mandioca no céu.”

3.3 AS AMEAÇAS DE O reassentamento deve ocorrer em áreas lo-


DESESTRUTURAÇÃO calizadas longe da praia e já densamente ocu-
SÓCIOCULTURAL DAS padas por outras comunidades remanescentes
COMUNIDADES DE ALCÂNTARA de quilombos que mal conseguem sobreviver
às custas da exploração das terras onde vivem.
Muita comunidades de Alcântara vêm sofren- Estão ameaçadas de receber os reassentados as
do ameaças de terem seus territórios ocupados comunidades de Itapuaua, visitada pela
pelas famílias das comunidades removidas das Relatoria, Peroba de Cima, Peroba de Baixo,
áreas onde serão implantação as fases III e IV Cajitiua, Esperança, Periri, Forquilha, Murari,
do projeto de expansão do Centro de Lança- Santana, Vai com Deus, Prainha de Cima e Prai-
mentos de Alcântara. nha de Baixo.

VISITA À COMUNIDADE tes a onze comunidades tradicionais que, se-


AMEAÇADA DE RECEBER EM gundo o CLA, seriam “diluídas” em territó-
SEU TERRITÓRIO rio já tradicionalmente ocupado por outras
COMUNIDADES REASSENTADAS comunidades.
Os moradores temem a constante escas-
A Relatoria do Direito à moradia visitou sez dos recursos naturais e o esgotamento
a comunidade de Itapuaua, ameaçada de re- do solo, sobretudo nas regiões afetadas pelo
ceber em suas terras parte das cento e cin- deslocamento da fase I e II e nas localizadas
qüenta e oito famílias deslocadas pertencen- próximas ao igarapé. A população da agrovila
28

III. A MISSÃO DA RELATORIA SOBRE OS


DIREITOS HUMANOS DAS COMUNIDADES DE ALCÂNTARA

de Marudá é um exemplo dos que hoje têm casas a grande maioria de taipa e telhado
que dividir peixe e ostras com as agrovilas de palha. A alimentação de seus moradores
localizadas distante da praia. é baseada na mandioca, arroz, milho,
Segundo Dutra: sururu, peixe, camarão e ostra. Tanto a po-
“As condições de vida dos povoa- pulação jovem quanto a idosa continua tra-
dos previsto para serem relocados são balhando com o buriti e o babaçu e na roça
mil vezes melhor que a dos povoados de toco que, exigem muito trabalho: há a
que saíram. Quem vai em Itapera vê. roça comum e a individual, sendo que um
Itapera está na beira da praia, as pesso- ajuda o outro na roça. A comunidade não
as passam dois meses sem pegar um tem serviço de energia elétrica nem posto
real, mas lá ninguém passa fome, nin- de saúde, somente uma escola com ensino
guém passa necessidade (...) as pesso- básico.
as vão à praia que está a menos de um A comunidade reivindica infra-estrutura,
quilômetro e pegam peixe e camarão o reconhecimento de suas terras e se coloca,
para sobreviver!”. principalmente, contra novos deslocamentos
Itapuaua possui cerca de cinqüenta e sete e reassentamentos em seu território.

4. A AUDIÊNCIA PÚBLICA DA e apoiadoras da missão, assim como a


MISSÃO SOBRE A SITUAÇÃO DOS Sociedade Maranhense de Direitos Humanos
DIREITOS HUMANOS DAS (SMDH), o Movimento dos Atingidos pela Base
COMUNIDADES DE ALCÂNTARA (MAB), o Movimento Nacional de Luta pela
Moradia (MNLM) e o Sindicato dos Trabalha-
No dia 25 de abr il foi realizada a dores Rurais de Alcântara.
Audiência Pública da Missão da Relatoria do Participaram da Audiência Pública que foi
Direito à Moradia e à Terra Urbana na Igre- coordenada pela Relatoria do Direito à Mora-
ja Nossa Sra. Do Carmo no centro histórico dia e à Terra Urbana os seguintes órgãos, seus
de Alcântara, que contou com a presença de respectivos representantes e autoridades:
autoridades federais, estaduais e municipais,
além da participação massiva de represen- - Secretaria Especial de Direitos Humanos
tantes das comunidades atingidas e ameaça- da Presidência da República, Sr. Nilmário
das, dos movimentos negro e de luta pela Miranda
moradia. - Câmara dos Vereadores de Alcântara, Pre-
A ACONERUQ (Articulação das Comunida- sidente Sr. Nilson dos Santos Ferreira
des Negras Rurais Quilombolas) foi uma das - Gerência Metropolitana do Estado do
entidades organizadoras da Audiência Pública Maranhão, Sra. Marli Abdala
29

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

- Ministério Público Federal - Procuradoria - Rede Social de Justiça e Direitos Huma-


Geral da República, Dra. Armanda nos, Evanize Sydow
Figueiredo - IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil),
- Ministério Público Estadual Maria Laís da Cunha Pereira
- Comissão de Desenvolvimento Urbano da - CCN (Centro de Cultura Negra), Ivan
Câmara dos Deputados, Deputado Ary Rodrigues
Vanazzi -PT - COHRE (Centre on Housing Rights and
- Direção Geral do CLA, Coronel Jorge Evictions), Leticia Osório Marques
Pagés - Fundação da criança e do adolescente,
- Fundação Cultural Palmares Joana Martines
- Deputado federal Pedro Fernandes, PTB - Favelafro, Lamartini Silva
- Deputado estadual Domingos Dutra, PT - Movimentos dos povos pela Saúde, Irmã
- Deputada estadual Helena Hiullyr, PT Ane
- ACONERUQ (Associação das Comunida-
des Negras Rurais Quilombolas), Ivo 5. VISITA AO CENTRO DE
Fonseca da Silva LANÇAMENTOS DE ALCÂNTARA
- SMDH (Sociedade Maranhense de Di-
reitos Humanos), Anamélia Campos No último dia da missão no dia 26 de abril
Matra foi realizada visita ao Centro de Lançamentos
- MAB (Movimento dos Atingidos pela de Alcântara (CLA) por uma comitiva da
Base) Relatoria, lideranças locais e moradores.
- Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Constatou-se, durante a visita ao Centro de
Alcântara, Inaldo Faustino Silva e Samuel Lançamentos, que a área junto à praia anterior-
Moraes mente ocupada pelas famílias das agrovilas, é
- Federação dos Trabalhadores na Agricul- hoje destinada à residência temporária dos téc-
tura do Maranhão nicos e funcionários que permanecem no CLA
- Fórum Nacional de Reforma Urbana: durante a campanha, período que antecede as ati-
União Nacional por Moradia Popular, vidades de lançamento de veículos espaciais. A
Creuzama de Pinho, Movimento Na- vila militar Tapireí abriga vinte casas auxiliares
cional de Luta pela Moradia, José Fran- para clientes da base, oitenta casas para técni-
cisco Diniz cos de nível médio e vinte e uma casas para
- MST (Movimento dos Trabalhadores Sem funcionários de nível superior. Por que as co-
Terra), Jonas Borges munidades quilombolas não foram mantidas
- Instituto Pólis, Nelson Saule Junior e Pa- neste local original e as residências administra-
trícia de Menezes Cardoso tivas construídas onde hoje estão as agrovilas,
- Centro de Justiça Global, Andressa já que ambas são contíguas à área de abrangên-
Caldas cia do CLA?
30

III. A MISSÃO DA RELATORIA SOBRE OS


DIREITOS HUMANOS DAS COMUNIDADES DE ALCÂNTARA

6. CONCLUSÕES DA MISSÃO ça no exercício da posse das áreas onde


SOBRE A SITUAÇÃO DOS DIREITOS residem, tornando-se vulneráveis.
HUMANOS DAS COMUNIDADES DE 4. As comunidades que residem nas áreas
ALCÂNTARA indicadas para receber as famílias ame-
açadas de deslocamento alegam a pre-
A missão da Relatoria do Direito à Moradia cariedade das condições atuais de mo-
Adequada, baseada nas visitas in loco às comuni- radia, a falta de políticas sociais de saúde,
dades afetadas pelo projeto de implantação e ex- educação e geração de renda, além do
pansão do CLA, nos relatos e depoimentos co- pouco espaço para receber novos mo-
lhidos nas referidas comunidades e na audiên- radores.
cia pública realizou os seguintes apontamentos: 5. As ações desenvolvidas pela atual dire-
1. As comunidades já deslocadas para as toria do CLA em relação às comunida-
Agrovilas não possuem área adequada des das agrovilas vão além de suas com-
para a agricultura de subsistência; não petências: atuam como fiscal de proces-
recebem assessoria para incremento das sos de ocupação do solo, definindo ou
técnicas de plantio e colheita; não são proibindo novas construções, aceitan-
beneficiários de políticas públicas soci- do ou vetando o estabelecimento de pe-
ais por parte dos governos federal, esta- quenos comércios ou a moradia de no-
dual ou municipal; não têm o título das vas pessoas, definindo os locais e os ho-
terras que ocupam; não têm acesso di- rários para a pesca. Há um completo
reto ao mar para o exercício da pesca e controle exercido pelo CLA sobre a vida
dependem da autorização expressa do quotidiana das comunidades.
CLA para poderem reformar ou ampli- 6. Ausência de um plano de reassentamen-
ar suas residências. to e de desenvolvimento econômico e
2. As famílias deslocadas forçadamente não social para as comunidades atingidas e
receberam o devido pagamento das in- comunidades rurais e de um programa
denizações para compensar a perda de nacional de regularização e legalização
suas propriedades e o bloqueio do aces- da posse da terra das comunidades re-
so aos recursos econômicos e naturais manescentes de quilombos e demais
delas provenientes. áreas tradicionalmente ocupadas.
3. As comunidades ameaçadas de desloca- 7. O Poder Público municipal não exerce
mento pela potencialidade de expansão suas competências de planejamento, re-
das atividades do CLA (implementação gulação e controle do uso e ocupação
das fase III e IV), não são beneficiárias do solo do município de Alcântara.
de políticas públicas sociais, não pos- 8. Alcântara não possui um plano diretor
suem o título das terras que ocupam e que discipline o zoneamento urbano e
encontram-se em situação de inseguran- rural, que defina as formas de uso e ocu-
31

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

pação e edificação no território do mu- des Negras Rurais Quilombolas do


nicípio incluindo a área do Centro de Maranhão (ACONERUQ), a Federação
Lançamentos, bem como as formas de dos Trabalhadores na Agricultura do Es-
atuação do município referente a pre- tado do Maranhão (FETAEMA) e a Glo-
servação do patrimônio histórico e do bal Exchange – apresentaram uma pe-
desenvolvimento de atividades turísti- tição à Comissão Interamericana de Di-
cas e culturais. reitos Humanos visando à reparação
9. O enfraquecimento do Poder Público dos direitos violados1.
Municipal face o processo institucional 12. O interesse das comunidades remanes-
de responsabilidade administrativa do centes de quilombos e suas entidades
Prefeito pela Câmara Municipal. representativas em efetivar seu direito à
10. A elaboração do Diagnóstico Local In- terra e à moradia mediante a concreti-
tegrado Sustentável (DLIS) pelo Gover- zação, o mais rápido possível, da regu-
no do Estado do Maranhão, financiado larização e titulação dos seus territóri-
com recursos da Agência Espacial Brasi- os, das terras de preto.
leira, não conta com a participação di- 13. O interesse do Governo Federal em
reta e adequada das comunidades atin- impulsionar a titulação das terras das
gidas. O DLIS tem por objetivo elaborar comunidades quilombolas garantida
propostas para o desenvolvimento sus- pela Constituição Federal mediante a
tentável de Alcântara a partir de um di- constituição de espaços de discussão
agnóstico da situação atual. e deliberação sobre políticas e ações
11. A existência de denúncias perante os destinadas a promover e a proteger
organismos internacionais de proteção seus direitos econômicos, sociais e
dos direitos humanos visando respon- culturais. Foi verificado, entretanto,
sabilizar o Governo Brasileiro quanto uma excessiva demora na implantação
às violações de direitos econômicos, de medidas concretas emergenciais e
sociais e culturais. Várias organizações de longo prazo que revertam as péssi-
da sociedade civil – comunidades mas condições de acesso à saúde e à
Samacanaua, Iririzal, Ladeira, Só Assim, educação pública e de qualidade pe-
Santa Maria, Canelatiua, Itapera e los quilombolas.
Mamuninha, Sociedade Maranhense de 14. A inexistência de cláusulas consisten-
Direitos Humanos, Centro de Justiça tes com os ditames das leis internacio-
Global, Centro de Cultura Negra do nais de proteção aos direitos humanos
Maranhão, Associação das Comunida- nos Acordos Internacionais de Salva-

1
Caso aberto na Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 28 de agosto de 2001 – nº 0555/2001. Em 2002, o COHRE
apresentou Amicus Curiae Brief como suporte à petição inicial.
32

III. A MISSÃO DA RELATORIA SOBRE OS


DIREITOS HUMANOS DAS COMUNIDADES DE ALCÂNTARA

guardas Tecnológicas possibilitam que responsabilidade de intervir mediante ações,


os governos signatários pratiquem gra- planos e programas visando reparar e elimi-
ves violações aos direitos humanos dos nar as violações dos direitos econômicos, so-
indivíduos e comunidades remanes- ciais e culturais que afetam as comunidades
centes de quilombos. A execução do quilombolas de Alcântara.
objeto destes acordos afetará com des-
locamentos e despejos forçados as re- O Grupo de Trabalho Interministerial deve
feridas comunidades e indivíduos cujas ficar encarregado de elaborar e executar um
terras vêm sendo ilegalmente desapro- plano de ação em Alcântara contendo as seguin-
priadas pelo próprio Estado, visando tes medidas:
atender à necessidade de expansão fu- 1. Projeto de desenvolvimento sustentá-
tura do Centro de Lançamentos de vel para as comunidades atingidas: Re-
Alcântara. alização de projetos de desenvolvimen-
to sustentável, geração de emprego e
7. RECOMENDAÇÕES DA renda para as comunidades atingidas
RELATORIA SOBRE OS DIREITOS que residem nas áreas litorâneas e ri-
HUMANOS DAS COMUNIDADES DE beirinhas. Estes projetos são de respon-
ALCÂNTARA sabilidade da União, do Estado do
Maranhão e do município, com a parti-
A Relatoria do Direito à Moradia Adequada cipação ampla das comunidades atingi-
apresenta as seguintes conclusões e recomen- das pela implantação passada e futura
dações, dirigidas aos Governos Federal, do Es- do CLA e do Governo Federal (INCRA,
tado do Maranhão e do município de Ministério da Cultura, Ministério das Ci-
Alcântara, às comunidades remanescentes de dades, Secretaria Especial de Combate a
quilombos e às organizações da sociedade ci- Discriminação Racial);
vil local, as quais advieram da Audiência 2. Titulação das áreas atualmente perten-
Pública e das denúncias colhidas diretamente centes ao Estado e à União em benefí-
junto às comunidades. Há uma urgente ne- cio das comunidades residentes, a ser
cessidade de ação social pelos governos com- executado pelo Governo do Maranhão,
petentes no sentido de garantir àquelas comu- INCRA e Fundação Palmares, com acom-
nidades condições dignas de moradia e sobre- panhamento do Ministério Público;
vivência. Desde a realização da missão em abril 3. Cessar e evitar novos deslocamentos
de 2003, a Relatoria do Direito à Moradia Ade- forçados de comunidades residentes nas
quada propôs a constituição de um Grupo Exe- áreas atingidas pelo CLA; cabendo a
cutivo Interministerial do Governo Federal, o Secretaria Especial de Direitos Humanos
qual finalmente veio a ser constituído em tre- estabelecer os acordos necessários para
ze de maio de 2003 pelos órgãos que têm a esta finalidade;
33

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

4. Ampliar as áreas de cultivo nas agrovi- mentação e conservação das estra-


las, realizar assessoria técnica e buscar fi- das e implementação de transporte
nanciamento para a agricultura familiar, público terrestre e marítimo de for-
visando a geração de emprego e renda; ma a melhorar e baratear a acessibi-
5. Chamar à responsabilidade o município lidade das comunidades às áreas dis-
para: tantes de moradia;
• promover o seu planejamento, disci- 8. Garantia da participação das comuni-
plinar sobre o uso, ocupação e edifi- dades atingidas no processo de discus-
cação do solo em seu território; são e implementação do DLIS – Diag-
• elaborar e executar o Plano Diretor nóstico Local Integrado Sustentável, com
da cidade envolvendo a participação vista ao atendimento de suas reivindi-
popular; cações acima listadas;
• desenvolver um plano de recuperação 9. Realização de Estudo de Impacto Ambi-
e preservação do patrimônio histórico ental, a ser acompanhado pelo Ministério
(Ministério da Cidade e Ministério da Público, incluindo os aspectos sociais,
Cultura, Governo do Estado do culturais, étnicos, e ambientais dos im-
Maranhão). pactos da implantação e expansão do
6. Chamar à responsabilidade o Estado e o CLA;
município quanto às ações que devem 10. Implementação de um programa de
ser desenvolvidas para a melhoria da qua- documentação civil para a população
lidade e do acesso ao ensino médio e residente nas áreas atingidas, visando a
fundamental; sua regularização e conseqüente habili-
7. Chamar à responsabilidade a União, tação a processos e indenizações relati-
Estado e município quanto à pavi- vos às áreas desapropriadas.
III. A MISSÃO DA RELATORIA SOBRE OS
DIREITOS HUMANOS DAS COMUNIDADES DE ALCÂNTARA
IV. FORMAS DE DEFESA
DOS DIREITOS DAS
POPULAÇÕES
QUILOMBOLAS
36

IV. FORMAS DE DEFESA DOS DIREITOS DAS


POPULAÇÕES QUILOMBOLAS

1. A MOBILIZAÇÃO DA SOCIEDADE cultural e violação do direito à propriedade e


CIVIL do direito à terra tradicionalmente ocupada por
estas comunidades, visando a reparação desses
A expansão do Centro de Lançamentos de direitos violados1. Denunciou-se a violação da
Alcântara é incompatível com a permanência Convenção Americana de Direitos Humanos e
da população em suas terras. Isto significa que do pacto Internacional de Direitos Econômi-
a implantação da fase III e IV é inconstitucional cos Sociais e Culturais, acordos internacionais
e ilegal, já que expulsa das terras de preto seus an- dos quais tanto o Brasil como os Estados Uni-
cestrais proprietários. dos são signatários.
Considerando a urgência da garantia dos Essas organizações requereram providências
direitos das populações remanescentes de à Corte Interamericana no sentido de ordenar o
quilombo pelo reconhecimento e titulação de Governo Brasileiro a efetuar o reconhecimento
suas terras, pontuamos as principais iniciativas e titulação do território étnico de Alcântara, de-
desta luta em âmbito nacional: terminar que o Estado brasileiro cesse de imedi-
ato todas os deslocamentos planejados de outras
• A interposição de petição denuncian- comunidades tradicionais (implantação da fase
do o Estado Brasileiro e os Estados Uni- III e IV) e elabore um plano de Desenvolvimen-
dos quanto às violações ocorridas em to Local Sustentável. Este deverá potencializar as
Alcântara à Comissão Interamericana vocações produtivas da região, preservando seu
de Direito Humanos (2001) patrimônio étnico, histórico, ambiental, artísti-
co e cultural, garantindo a participação direta
Várias organizações da sociedade civil – co- das comunidades tradicionais envolvidas. Ain-
munidades Samacanaua, Iririzal, Ladeira, Só da, deverá ser incluída no plano a possibilidade
Assim, Santa Maria, Canelatiua, Itapera e de retorno da população deslocada para os seus
Mamuninha, Sociedade Maranhense de Direi- lugares de origem.
tos Humanos, Centro de Justiça Global, Centro
de Cultura Negra do Maranhão, Associação das • Plebiscito Nacional contra a ALCA e
Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Alcântara (2002)
Maranhão (ACONERUQ), a Federação dos Tra-
balhadores na Agricultura do Estado do O Plebiscito Nacional sobre a ALCA e
Maranhão (FETAEMA) e a Global Exchange - Alcântara foi realizado em todos os vinte e sete
apresentaram uma petição à Comissão Inter- estados da Federação, em quase 4 mil municí-
americana de Direitos Humanos denunciando pios e envolveu mais de 150 mil pessoas vo-
o Estado Brasileiro pela desestruturação socio- luntárias de centenas de organizações popula-

1
Caso aberto na Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 28 de agosto de 2001 – nº P 0555/2001. Em 2002 COHRE
apresentou Amicus Curiae brief como suporte à petição inicial.
37

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

res, movimentos sociais do campo e da cidade, to de participação popular das audiências pú-
Igrejas, sindicatos, federações sindicais, entida- blicas para buscar soluções para a situação das
des estudantis, movimentos de mulheres, asso- comunidades negras e tradicionais em Alcântara.
ciações profissionais, ONGs e partidos políti- Um exemplo foi a audiência realizada em con-
cos. O Plebiscito foi realizado na Semana da junto com a Relatoria do Direito à Moradia e à
Pátria, de 1º a 7 de setembro. Terra Urbana no dia 25 de abril de 2003.
Do total de 10.149.542 votantes no Plebis-
cito noventa e oito e meio por cento disseram 2. INSTRUMENTOS DE PROTEÇÃO
NÃO para a seguinte pergunta: O governo brasileiro DO DIREITO À TERRA E À
deve entregar parte de nosso território – a Base de Alcântara MORADIA DOS QUILOMBOLAS
– para controle militar dos Estados Unidos?
“A quem não consegue morada num
Seminários e Oficina determinado lugar, embora esse seja aquele
As organizações e movimentos das comu- em que nasceu, ou aquele donde não se pode
nidades quilombolas e as organizações de di- mais migrar, costuma dizer-se que é um
reitos humanos, bem como as de trabalhado- estrangeiro em sua própria terra.”
res rurais do Maranhão têm utilizado vários (Jacques Alfonsín)
espaços para divulgar a situação de Alcântara.
Visam buscar apoio de outros segmentos da 2.1 BREVES CONSIDERAÇÕES
sociedade civil e atores sociais como, por SOBRE O DIREITO À TERRA E À
exemplo, as oficinas realizadas durante o MORADIA
Fórum Social Mundial de 2002 e 2003 em
Porto Alegre,RS. Abordar a questão da terra e do direito à ter-
ra das comunidades remanescentes de quilombos
Audiências Públicas é chamar a atenção para a complexidade da situ-
As organizações e movimentos das comuni- ação fundiária e das características sócio-cultu-
dades quilombolas e as organizações de direi- rais e econômicas das comunidades negras, terras
tos humanos bem como as de trabalhadores de preto2 e dos demais territórios assim, e pelas
rurais do Maranhão têm utilizado o instrumen- próprias comunidades, denominados.

2
Conforme a investigação denominada Projeto Vida de Negro, no Maranhão, foram encontrados diversos povoados onde os
moradores, eles próprios, agrupavam o sufixo “dos pretos” ao nome do povoado, que explicitam o “pertencimento a”. Outros
povoados também utilizavam essa dominação quando se localizavam em antigas áreas de exploração indígena ou que haviam sido
entregues pela Igreja Católica à União. Daí a denominação terra de pretos utilizada enquanto conceito que incorpora o sentido de
uso comum da terra, compreendida como abrangendo recursos hídricos e florestais (Terras de Preto no Maranhão: quebrando o
mito do isolamento – CCNM e SMDH, São Luís, 2002). “As denominadas terras de preto compreendem aqueles domínios doados,
entregues, ocupados ou adquiridos, com ou sem formalização jurídica, às famílias de ex-escravos a partir da desagregação de
grandes propriedades monocultoras” (ALMEIDA, Alfredo Wagner. Terras de Preto, Terras de Santo e Terras de Índios: uso comum e
conflito. Revista do NAEA, UFFPA, 1989).
38

IV. FORMAS DE DEFESA DOS DIREITOS DAS


POPULAÇÕES QUILOMBOLAS

Poucas questões são tão complexas quanto e deslocamentos arbitrários, o direito à segu-
a questão da terra e dos direitos associados à rança da posse, o direito à restituição, o direito
posse e ao uso vital deste recurso finito. O a um padrão de vida adequado. Deve abranger
modo de apropriação e controle sobre a terra o direito daqueles que não têm terra e moradia
exerce influência sobre a forma de exercício e dos que comumente sofrem discriminações
do poder econômico e político de determi- quanto ao acesso equitativo à terra (mulheres,
nado país e sobre a forma de distribuição da minorias étnicas, etc.).
riqueza nacional. Aqueles sem proteção ao di- A terra é também um fator fundamental ao
reito à terra enfrentam inseguranças, falta de desenvolvimento, já que consiste em um bem
acesso à renda e aos serviços básicos e sofrem produtivo essencial cuja utilização e manejo
uma ampla gama de violações relacionadas aos possui relação direta com o meio ambiente. Na
seus direitos humanos. maioria dos países é considerada como um bem
A concentração da terra nas mãos de uma com valor de mercado, cuja apropriação tem
pequena minoria, a falta de moradia e a corres- relação direta com a acumulação de renda e de
pondente impossibilidade de alcance de um mais-valia por camadas minoritárias da popu-
padrão de vida adequado, propiciam condições lação. Neste sentido, a acumulação da terra nas
para a instabilidade e o conflito potencial. Li- mãos de poucos tem como conseqüência o
dar de forma efetiva e eqüitativa com a terra e empobrecimento da ampla maioria que não
o direito à terra é um fator determinante para o tem acesso à terra.
desenvolvimento social e econômico: um pré- As populações negras e outros grupos vul-
requisito para o desenvolvimento sustentável e neráveis enfrentam obstáculos particulares
o amplo gozo dos direitos humanos. quanto ao acesso à terra de uma maneira eqüi-
Uma abordagem compreensiva da questão tativa, justa e não discriminatória. Os padrões
da terra enfatiza o direito à terra como um estabelecidos na Agenda Habitat precisam ur-
direito humano e pode proporcionar uma base gentemente ser aplicados pelos governos para
sólida para encontrar meios efetivos de solu- assegurar a segurança legal da posse e igualda-
ção para a falta de terra às populações pobres de de acesso à terra a todas as pessoas, incluin-
que dependem do acesso a este recurso para a do os povos negros e aqueles que vivem na
sua sobrevivência e bem estar. A importância pobreza. Ao mesmo tempo, os países devem
universal do direito à terra é por si só eviden- desenvolver políticas específicas de acesso à terra
te como é a relação direta existente entre a baseada nas necessidades particulares dos gru-
questão da terra, o desenvolvimento sustentá- pos que enfrentam barreiras para o gozo efeti-
vel e o gozo de uma ampla gama de direitos vo do direito à terra.
humanos. Conflitos fundiários e despejos focados
O direito à terra abrange o direito à mora- continuam a ocorrer no Brasil, motivados
dia, o direito à propriedade, o direito à alimen- pela distribuição não eqüitativa das terras,
tação, o direito a ser protegido contra despejos despontando o País como um dos que pos-
39

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

sui uma das mais concentradas estruturas manos a todas as pessoas, bem como pela pro-
fundiárias no mundo. Diversos relatórios já moção de leis, políticas e outras iniciativas na-
publicados sobre essa situação informam que cionais. Isto se faz necessário na medida em que
um por cento dos proprietários detém qua- apenas vinte e nove comunidades quilombolas,
renta e dois por cento do total das terras, dentre as mais de duas mil existentes no Brasil,
enquanto cinqüenta e três por cento possui tiveram suas terras tituladas deste a promulga-
somente um por cento de terra cultivada. Os ção da Constituição.
títulos de grandes áreas com mais de mil hec-
tares ocupam cinqüenta por cento da terra 2.2 INSTRUMENTOS NACIONAIS
cultivada e, em contraste, as pequenas pro- DE PROTEÇÃO
priedades como menos de cem hectares ocu-
pam somente dezoito por cento da área cul- A Constituição Federal de 1988, mediante o
tivada3. Estas disparidades não têm apenas reconhecimento perante a lei e a sociedade, da
uma correlação regional, mas também uma igualdade e dignidade dos povos negros da Áfri-
dimensão racial e étnica que golpeia princi- ca, contribuiu enormemente à retratação naci-
palmente a população negra e indígena. onal da prática da escravidão contra esses po-
Recentemente, as regiões do Brasil que com- vos, e deu o primeiro passo para a garantia de
portam um elevado número de ocupações ur- gozo de todos os direitos inerentes a pessoa
banas e rurais têm demonstrado um aumento humana. O legislador constituinte garantiu a
da violência envolvendo agricultores sem ter- propriedade da terra às comunidades rurais
ra, índios e sem teto. As regiões rurais mais afe- remanescentes de quilombos, por entender que
tadas são o Pontal do Paranapanema em São há uma relação cultural intrínseca e entre estas
Paulo, a zona da mata, em Pernambuco, o sul comunidades e o território que tradicionalmen-
do Pará e o sudeste do Paraná. Já os conflitos te ocupam. Essa relação configura um elemen-
urbanos concentram-se nos grandes centros to diferenciador e caracterizador destas mino-
urbanos, nas regiões metropolitanas e cidades rias étnicas.
médias do País. O artigo 68 do Ato das Disposições Cons-
É objetivo deste relatório apontar os instru- titucionais Transitórias determinou ao Estado
mentos legais internacionais de proteção e pro- a obrigação de emitir os títulos das áreas ocu-
moção do direito à terra e moradia das mino- padas por comunidades remanescentes de
rias raciais. Esses instrumentos propiciam uma quilombos. Dispõe que “aos remanescentes das
sólida base para os governos responsáveis pela comunidades de quilombos que estejam ocu-
proteção do amplo espectro dos direitos hu- pando suas terras é reconhecida a proprieda-

3
Anistia Internacional, Brazil: the Criminalization of Rural Activism: the Case of Frei Anastácio Ribeiro, 1996; e Anistia Internaci-
onal, Brazil: Corumbiara and Eldorado de Carajás: Rural Violence, Police Brutality and Impunit, 1997, citados em COHRE, In
Human Rights in Brazil: gross inequalities and inconsistences, Brazil Mission Report, 2003.
40

IV. FORMAS DE DEFESA DOS DIREITOS DAS


POPULAÇÕES QUILOMBOLAS

de definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os procedimento, fracassou na tentativa de efetivar


títulos respectivos”. o direito à terra, à moradia e à alimentação das
O artigo 215 da Constituição, por sua vez, comunidades remanescentes de quilombos4.
prevê que “o Estado garantirá a todos o pleno A igualdade no gozo e acesso aos direitos
exercício dos direitos culturais e acesso às fon- sociais e econômicos por esses povos, preten-
tes da cultura nacional e apoiará e incentivará a dida pela Constituição, não levou em consi-
valorização e a difusão das manifestações cul- deração que as leis de costumes desses povos
turais”. Para o alcance deste objetivo “o Estado são determinadas e julgadas segundo critéri-
protegerá as manifestações das culturas popu- os que lhes são peculiares e particulares. O
lares, indígenas e afro-brasileiras, e das de ou- próprio direito à terra, internamente ao terri-
tros grupos participantes do processo tório étnico das terras de preto, é estabelecido
civilizatório nacional” (artigo 215, §1º). segundo suas práticas e não segundo normas
O artigo 216, § 5º, refere-se ao patrimônio jurídicas brasileiras que se aplicam às demais
cultural brasileiro como “os bens de natureza comunidades brasileiras. É assim, por exem-
material e imaterial, tomados individualmente plo, que estes povos usufruem as terras de for-
ou em conjunto, portadores de referência à ma comunal e se apropriam do território de
identidade, à ação, à memória dos diferentes acordo com suas necessidades econômicas e
grupos formadores da sociedade brasileira, nos de convívio social.
quais se incluem: Atualmente é a Fundação Cultural Palmares
§ 5º: Ficam tombados todos os documen- (FCP) o órgão detentor de exclusividade para
tos e os sítios detentores de reminiscências his- titular as terras às comunidades remanescentes
tóricas dos antigos quilombos”. de quilombos. Entretanto, é o Instituto Nacional
Entretanto, toda a legislação promulgada sub- de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), em
seqüentemente à Constituição, ao longo da últi- parceria com os governos estaduais, que tem
ma década, com o objetivo de regulamentar o logrado implementar a maior parte das
procedimento para a titulação constitucional- titulações já efetivadas. O início deste processo
mente prevista ou ainda estabelecer as compe- ocorreu com a edição da Portaria do INCRA nº 307/
tências administrativas para a efetivação deste 955, que delegou ao INCRA a competência para

4
Conforme informações contidas na denúncia à Corte Interamericana de Direitos Humanos - Samucangaua e outras comunidades
x Governo do Brasil (Report No. 0555/2001), o Brasil conta com mais de 1 mil comunidades remanescentes de quilombos, das
quais apenas 18 foram tituladas pela Fundação Palmares desde a promulgação da Constituição (1988). Isto representa apenas
1,8% das comunidades remanescentes de quilombos tituladas, no período de treze anos. E, dentre as 18 comunidades tituladas,
apenas 03 conseguiram registrar em Cartório o título que receberam da FCP, em virtude dos cartórios de registros de imóveis
reconhecerem o registro de antigas fazendas e engenhos em detrimento dos títulos expedidos em favor das comunidades que
estão no local há mais de um século.
5
Para uma visão detalhada da legislação vigente relativa à titulação das terras das comunidades quilombolas, consultar Comunida-
des Quilombolas e Direito à Terra, da Sociedade Brasileira de Direito Público e Centro de Pesquisas Aplicadas. Ed. Abaré e Fundação
Cultural Palmares, Brasília 2002.
41

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

demarcar e titular as comunidades remanescen- E justamente sobre esse ponto as organiza-


tes de quilombos insertas em áreas públicas fe- ções não governamentais e representativas das
derais arrecadadas mediante processo de desa- comunidades quilombolas têm consolidada a
propriação (inciso I). análise crítica de que a Fundação Cultural
Em 1999, foi editada a Medida Provisória nº Palmares não dispõe de condições técnicas e
1.911/99 que estabeleceu ao Ministério da Cul- materiais suficientes para exercício das compe-
tura a competência para a implementação do tências materiais que lhe foram cometidas. A
disposto no artigo 68 do ADCT. O Ministério execução dos procedimentos de necessários à
da Cultura delegou à Fundação Cultural identificação, delimitação, demarcação e reco-
Palmares a competência para praticar e assinar nhecimento destes territórios somente será pos-
os atos necessários à efetivação do disposto na sível por intermédio de parcerias com outros
Constituição, por meio da Portaria nº 447/99. órgãos e entidades estaduais e municipais, pú-
A aprovação dos procedimentos a serem reali- blicas e privadas.
zados pela FCP ficou a critério do Ministério Não há previsão orçamentária adequada de
da Cultura6, cuja homologação final deve ser recursos para a realização das atividades de de-
efetivada por meio de Decreto. marcação e titulação, além do fato da Fundação
Por sua vez, o Decreto nº 3.912/01 regulamenta Cultural Palmares não contar com um quadro
o processo administrativo a ser adotado para técnico próprio dotado de historiadores e an-
identificar, reconhecer, delimitar, demarcar, ti- tropólogos, o que lhe torna dependente da re-
tular e registrar as áreas dos remanescentes de alização de convênios com universidades e ins-
quilombos, e foi expedido com base na Lei nº tituições de pesquisas.
9.649/98, que define a competência do Por outro lado, frente à vigência do Decreto nº
Ministério da Cultura para a homologação final. 3.912/01 e a vedação de novas desapropriações
O Decreto nº 3.912/01 estabelece um processo de áreas pelo INCRA para a regularização do
administrativo baseado em critérios objetivos de reco- domínio em benefício das comunidades
nhecimento da propriedade. Por outro lado, a quilombolas, o Estado está atualmente imobi-
concretização deste processo de regularização lizado para proceder à demarcação e titulação
fundiária depende da realização de diversas aná- das terras que não se compreendem entre as do
lises e estudos técnicos, constituídos de levan- domínio da União. Esta atitude pode ser carac-
tamentos físicos e geográficos, cadastramentos terizada como uma omissão do governo brasi-
sócio-econômicos, mapeamento de recursos leiro em cumprir as disposições contidas nos
naturais, laudos descritivos, pesquisas cartoriais, instrumentos internacionais e na Constituição
etc., que exigem qualificação técnica e investi- atinentes à sua obrigação de Estado de executar
mentos para sua efetivação. políticas públicas, adotar medidas legislativas e

6
Conforme artigo 14 da Lei nº 9.649/98 com redação dada pela MP 2.123/28.
42

IV. FORMAS DE DEFESA DOS DIREITOS DAS


POPULAÇÕES QUILOMBOLAS

viabilizar investimentos visando a promoção e Após a aprovação do Estatuto da Cidade, lei


a proteção dos direitos humanos à terra e à federal de desenvolvimento urbano que regu-
moradia adequada. lamenta o capítulo da política urbana contido
Outro entrave imposto pelo Decreto nº 3.912/01 na Constituição Federal, o plano diretor, ins-
ao reconhecimento da propriedade da terra é a trumento básico para a implementação desta
exigência de que estivessem ocupadas pelos política, deve disciplinar as formas de uso e
quilombos desde 1888 e pelos remanescentes em ocupação do solo em todo os território muni-
outubro de 1988 (artigo 1º, §único, I e II). Estes cipal. Os planos diretores podem estabelecer
critérios artificiais, que vinculam termos em de- normas específicas de uso e ocupação do solo
suso a datas sem qualquer tipo de correlação para as áreas urbanas de comunidades rema-
justificada, têm contribuido para desqualificar os nescentes de quilombos, de forma a contribuir
critérios antropológicos e sociológicos aplicáveis para a regularização fundiária e urbanística do
à identificação destas comunidades e seus territó- assentamento, respeitando-se as formas próprias
rios.Verifica-se uma situação de incompatibilida- de manejo e uso da terra que são adotadas por
de entre as categorias oficiais de classificação e a estas comunidades.
realidade das comunidades quilombolas face à As titulações, por sua vez, não têm sido efe-
complexidade destas formações sociais. tivadas de forma condizente com a estrutura-
Inexiste atualmente uma política regular de ção coletiva dos territórios étnicos habitados
reconhecimento massivo destas áreas confor- pelas comunidades quilombolas. As autorida-
me as disposições da Constituição, tanto por des governamentais (sejam elas do Poder Judi-
parte da União quanto por parte dos Estados ciário ou do Poder Executivo) têm tratado estas
federados. Os processos de regularização áreas como um conjunto de povoados isolados
fundiária tramitam de forma múltipla e são e justapostos, analisando-os como uma
pautados por circunstâncias específicas presen- somatória de registros de antigas fazendas, o
tes em cada comunidade. Muitas comunidades que vem a reproduzir o modelo fundiário agrá-
quilombolas, apesar de serem terem caracterís- rio arcaico brasileiro.
ticas predominantemente rurais, dependem Em 2002, o Presidente da República,
muito das cidades mais próximas no que Fernando Henrique Cardoso, vetou o Projeto de
concerne ao acesso a serviços e equipamentos Lei nº 129/95 que regulamentava o direito de
públicos, principalmente saúde e educação. Al- propriedade das terras das comunidades re-
guns Estados, como São Paulo, Bahia, Pará, manescentes dos quilombos e o procedimen-
Maranhão, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, to da sua titulação, nos termos do artigo 68
têm tido iniciativas de estabelecer procedimen- do ADTC, cujo conteúdo era inovador. Neste
tos legais e administrativos visando o reconhe- sentido, o referido PL estabelecia como crité-
cimento, delimitação e demarcação de territó- rio de identificação das comunidades a sua
rios de comunidades quilombolas localizados autodefinição, possibilitava ações de desapro-
em terras devolutas estaduais. priação para os casos de incidência de títulos
43

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

hábeis sobre terras demarcadas, ampliava o rol O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
de legitimados a requerer a instauração dos (1966) garante, em seu artigo 27, que, “nos
procedimentos administrativos, propiciava a Estados em que haja minorias étnicas, religio-
participação de diversos órgãos no processo sas ou lingüísticas, as pessoas pertencentes a
de titulação, incorporava a noção de territó- essas minorias não poderão ser privadas do di-
rio na delimitação das áreas a serem tituladas, reito de ter, conjuntamente com outros mem-
dentre outros. bros de seu grupo, sua própria vida cultural,
Com a eleição do novo Governo Federal, foi de professar e praticar sua própria religião e
instituído um Grupo de Trabalho Interministerial usar sua própria língua”.
(GTI) com o objetivo de revisar e propor modi- O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais
ficações aos instrumentos legais vigentes que e Culturais 1966 (PIDESC), ao qual o Brasil ace-
regulamentam o artigo 68 do ADCT. deu sem reservas e o considerou plenamente
aplicável, de acordo com o Decreto Federal nº
2.3 INSTRUMENTOS 591, contém uma das expressões mais fortes
INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO do direito à moradia adequada. O artigo 11(1)
estabelece que “os Estados, partes presentes ao
O direito à moradia é um dos mais bem Pacto, reconhecem o direito de todos a ter um
definidos direitos pela legislação internacional adequado padrão de vida para si e sua família,
de direitos humanos7. A Declaração Universal incluindo adequada alimentação, vestuário e
dos Direitos do Homem (1948) contém um moradia, e a contínua melhoria de suas condi-
dos mais antigos ditames reconhecendo o di- ções de vida. Os Estados partes adotarão as
reito à moradia adequada, conforme disposto medidas adequadas para a realização deste di-
no artigo 25(1): “Todos têm direito a um pa- reito reconhecendo, para este efeito, a impor-
drão de vida adequado de saúde e bem-estar tância essencial da cooperação internacional
para si e para sua família, incluindo alimenta- baseada no livre consentimento”.8
ção, vestuário, moradia, cuidados médicos e os O Comentário Geral nº 4 sobre o Direito à Moradia
necessários serviços sociais, e o direito à segu- Adequada (1991) elucida a forma como as pro-
rança no advento de desemprego, doença, in- visões sobre o direito à moradia previstos no
capacidade, viuvez, velhice ou falta de condi- PIDESC devem ser adotadas pelos Estados mem-
ções de subsistência em circunstâncias acima bros, de forma a garantir a plena implementa-
de seu controle”. ção dos direitos econômicos, sociais e cultu-

7
Para uma visão ampla dos instrumentos e padrões internacionais relativos ao direito à moradia adequada, consultar COHRE.
Legal Resources for Housing Rights. Geneva, 2000 e Nelson Saule Júnior. A Proteção Do Direito à Moradia nos Assentamentos
Irregulares. Porto Alegre, Sergio Fabris, 2003.
8
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Art. 11(1), G.A. Res. 2200A (XXI), 21 UN GAOR Supp. (No.
16) at 49, U.N. Doc. A/6316 (1966), 993 U.N.T.S. 3, entrada em vigor no dia 3 de Janeiro de 1976.
44

IV. FORMAS DE DEFESA DOS DIREITOS DAS


POPULAÇÕES QUILOMBOLAS

rais. De acordo com o CG nº 4, o exercício do distingam de outros setores da coletividade


direito à moradia não pode ser interpretado de nacional, e que estejam regidos, total ou parci-
uma maneira restritiva, de forma a considerar almente, por seus próprios costumes ou tradi-
apenas a casa em si mesma ou considerá-la ções ou legislação especial” – artigo 1(1)(a).
apenas como uma mercadoria. Deve ser com- Uma das questões mais relevantes previstas
preendido como o direito de viver em algum nesta Convenção é que a autodeterminação e
lugar com segurança, paz e dignidade. A refe- a consciência desta identidade tribal é que deve
rência ao direito à moradia previsto no PIDESC ser considerada como critério fundamental
deve ser compreendida como direito à mora- para determinar os grupos aos quais se apli-
dia adequada. A moradia deve compreender a se- cam as disposições ali previstas, nos termos
gurança legal da posse e a disponibilidade de do artigo 1(2).
serviços e infraestrutura, ter um custo acessí- O conceito de território é adotado no senti-
vel, adequada habitabilidade, acessibilidade e do de conferir aos povos tribais e indígenas o
boa localização, além de adequação cultural. direito de uso e ocupação da totalidade de seu
A Convenção Internacional pela Eliminação de Todas as habitat, incluindo o direito de participação na
Formas de Discriminação Racial (1965) estabelece o utilização, administração e conservação dos
compromisso dos Estados quanto a garantir o recursos naturais, minerais e do subsolo. A im-
direito de toda pessoa à igualdade perante a lei plementação de qualquer programa de pros-
sem distinção de raça, cor, origem nacional ou pecção ou de exploração dos recursos existen-
étnica. Isto implica em ações positivas dos Estados tes nas suas terras por parte dos Estados deverá
em proibir e eliminar a discriminação racial ser precedida de prévia consulta aos povos in-
quanto ao desfrute dos direitos humanos, em teressados, a fim de se verificar se os seus inte-
particular o direito de ser proprietário, indivi- resses virão a ser prejudicados.
dualmente e em associação com outros – artigo A segurança da posse e o direito à terra fo-
5(d)(v) – e o direito à moradia – artigo 5(e)(iii). ram temas extensivamente discutidos na Confe-
A Convenção 169 da Organização Internacional do Tra- rência Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável de 1992
balho sobre Povos Indígenas e Tribais (1989) possui um e na Conferência sobre Assentamentos Humanos de 1996.
dos textos mais compreensivos quanto à pro- Nesta Conferência, os governos se responsabi-
teção do direito à terra destes povos, dedican- lizaram pela adoção do conteúdo da Agenda
do ao tema os artigos 13 a 19 do capítulo 11. A Habitat (1996), e particularmente em “provi-
Convenção estabelece a competência dos denciar segurança legal da posse e igualdade
Estados para o reconhecimento dos direitos de no acesso à terra para todas as pessoas, incluin-
propriedade e de posse dos povos interessados do as mulheres e aqueles vivendo na pobreza,
sobre as terras que tradicionalmente ocupam de forma a assegurar sistemas transparentes,
ou utilizam. A convenção aplica-se “aos povos amplos e acessíveis de transferência dos direi-
tribais em todos os países independentes, cujas tos à terra e segurança legal da posse(...) pará-
condições sociais, culturais e econômicas os grafo 40(b)(d).
45

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

A Campanha das Nações Unidas pela Segurança da Posse • a persistência da pobreza especialmente
reconhece este tema como complexo ao esta- no Nordeste e em áreas rurais, e entre os
belecer que “a segurana da posse deriva do fato afro-brasileiros e os grupos vulneráveis
do direito ao acesso e uso da terra e da propri- e marginalizados (32);
edade ser subscrito por um conjunto de regras, • a desocupação forçada das comunidades
e de que este direito justiciável. de remanescentes de quilombos de suas
As Observações Conclusivas do Comitê das Nações terras ancestrais, que são impunemente
Unidas de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ao Brasil expropriadas por mineradoras e outros
(2003)9 contêm diversas preocupações e reco- interesses comerciais (36).
mendações dirigidas especificamente situação
do direito moradia e terra das comunidades As principais sugestões e recomendações
remanescentes de quilombos. feitas pelo Comitê ao Estado brasileiro quanto
Durante a 30ª Sessão do Comitê DESC, as à situação do direito moradia e à terra das co-
organizações civis e os movimentos sociais do munidades remanescentes de quilombos são as
Brasil apresentaram o Relatório Brasileiro so- seguintes:
bre Direitos Humanos Econmicos, Sociais e Cul- • a implementação imediata de ações cor-
turais, elaborado com base em uma ampla con- retivas para reduzir as desigualdades e os
sulta nacional resultante do debate ocorrido em desequilíbrios persistentes e extremos na
17 audiências públicas nos Estados, das quais distribuição dos recursos e da renda e no
participaram mais de 2 mil entidades e organi- acesso aos serviços básicos entre as várias
zações sociais10. regiões geográficas, Estados e municípios,
Nas Observações Conclusivas o Comitê ex- incluindo o aumento na velocidade do
pressou preocupação com as seguintes ques- processo de reforma agrária e de titulação
tões afetas situação de moradia e acesso terra de terras (30);
das comunidades remanescentes de quilombos: • a implementação de todas as medidas efi-
• a discriminação difundida e profunda- cazes necessárias para proibir a discrimi-
mente enraizada contra os afro-brasilei- nação por raça, cor, origem tnica ou sexo
ros, os povos indígenas e grupos mino- em todos os campos da vida econômica,
ritários como os ciganos e as comunida- social e cultural. Recomenda-se que o
des remanescentes de quilombos (20); Estado Parte empreenda medidas urgen-

9
Observações Conclusivas do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas ao Brasil. Maio de 2003. E/
C.12/1/Add.87.
10
Relatório Brasileiro sobre Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (2003). Plataforma Brasileira DhESC, GAJOP,
MNDH, Justiça Global, FASE e Comissão Justiça e Paz. Recife, 2003. Foram relatados os direitos humanos à moradia adequada, à
alimentação, água e terra rural, ao meio ambiente, à saúde, ao trabalho e à educação. O Relatório sobre o Direito à Moradia
Adequada foi elaborado por Nelson Saule Jr., Relator Nacional, e Letícia Marques Osório, Assessora da Relatoria.
46

IV. FORMAS DE DEFESA DOS DIREITOS DAS


POPULAÇÕES QUILOMBOLAS

tes a fim de assegurar a igualdade de soa tem o direito à propriedade privada para o alcance de
oportunidades para os povos afro-brasi- suas necessidades essenciais de moradia adequada e para a
leiros, indígenas e grupos minoritrios, manutenção de sua dignidade individual”.
tais como os ciganos, e as comunidades A Convenção Americana de Direitos Huma-
remanescentes de quilombos, especial- nos define quais os direitos humanos que os
mente no campo do emprego, da saúde Estados Membros concordaram em respeitar e
e da educação. O Comitê pede também assegurar. Estes direitos incluem o direito à vida
ao Estado Parte para incluir em seu se- (Artigo 4); o direito à tratamento humano (Ar-
gundo Informe periódico, informações tigo 5); o direito à liberdade pessoal (Artigo
detalhadas e completas, incluindo dados 7); o direito à compensação (Artigo 10); o di-
estatísticos comparativos e desagregados reito à saúde, alimentação e moradia (Artigo
em tais assuntos (44); 11); e o direito à propriedade (Artigo 21).11
• a adoção de uma Política Nacional de Mo- Os procedimentos do sistema Inter-Ameri-
radia a fim segurar que as famílias tenham cano permitem considerar violações dos direi-
acesso moradia adequada (56); tos econômicos, sociais e culturais tanto resul-
• a adoção de medidas que garantam as ter- tantes a ações do Estado quanto da omissão do
ras ancestrais s comunidades remanescen- mesmo em proteger tais direitos.
tes de quilombos e em caso de desocu- O artigo 21 da Convenção estabelece que (1)
pação forçada de suas terras assegurar o “todos têm o direito ao uso e gozo de seus bens.
cumprimento do que est previsto no A lei deve subordinar tal uso e gozo ao interes-
Comentário Geral nº 7 do Comitê (59). se social” e que (2) “nenhuma pessoa pode ser
privada de seus bens, salvo mediante o paga-
2.4 INSTRUMENTOS REGIONAIS mento de indenização justa, por motivo de uti-
DE PROTEÇÃO lidade pública ou de interesse social e nos ca-
sos e na forma estabelecidos pela lei”.
O artigo XI da Declaração Americana dos Direitos e A Comissão Interamericana tem-se pronun-
Deveres do Homem (1948) é diretamente aplicável ciado, em várias ocasiões, sobre a proteção es-
na proteção e promoção do direito à moradia pecial e adicional que os Estados Partes devem
ao assegurar que “toda pessoa tem o direito à preservação aos grupos étnicos e aos povos indígenas no
da sua saúde por meio de medidas sanitárias e sociais relacio- que diz respeito ao direito às terras por eles
nada à alimentação, vestuário, moradia e cuidados médicos, na tradicionalmente ocupadas.
extensão permitida pelos recursos públicos e comunitários”. O Protocolo Adicional a Convenção Inter-Americana de
O artigo XXII é aplicável à proteção do di- Direitos Humanos na área de Direitos Econômicos,
reito à propriedade ao estabelecer que “toda pes- Sociais e Culturais a partir de agora conhecidos

11
Citado em COHRE, Enforcing Housing Rights in the Américas: Pursuing Housing Rights Claims within the Inter-American
System of Human Rights. A resource guide for practitioners. Geneva, 2002.
47

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

como “Protocolo de São Salvador” representa a continuada pelas comunidades de sistemas co-
primeira iniciativa Inter-Americana completa- letivos tradicionais para o controle e o uso do
mente dedicada aos direitos econômicos, soci- território, essenciais para a sua sobrevivência
ais e culturais no sentido de vincular os Estados como povos, bem como para o bem-estar in-
legalmente. dividual e coletivo. Neste aspecto, o tema do
A jurisprudência da Comissão Inter- controle da terra adquire importância quanto
americana, em numerosos relatórios, enfatizou à sua capacidade de oferecer recursos para a
a necessidade de um tratamento diferenciado e sobrevivência, como pelo espaço geográfico
especial para os direitos dos povos e grupos necessário para a reprodução cultural e social
étnicos. A mais clara definição para este seg- dos grupos e tribos.
mento social se encontra no artigo 1º do Projeto
de Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indíge- 2.5 INSTRUMENTOS
nas, o qual estabelece: “Esta Declaração se aplica INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO
aos povos indígenas, assim como aos povos A DESPEJOS E DESLOCAMENTOS
cujas condições sociais, culturais e econômicas FORÇADOS
os distinguem de outras secções da comunida-
de nacional, e cujo status jurídico é regulado As Nações Unidas têm reforçado como
em todo ou em parte por seus próprios costu- violação aos direitos humanos a prática de
mes ou tradições ou por regulamentos ou leis despejos forçados por meio de Comentári-
especiais”. os Gerais aprovados pelo Comitê de Direi-
Com base nessa visão, compartilhada pela tos Econômicos, Sociais e Culturais que,
Corte Interamericana, se tem dado tratamen- apesar de não se constituírem em instrumen-
to aos povos com ligações milenares às terras tos que vinculem legalmente os Estados, eles
americanas e aos grupos de descendência afri- providenciam importantes diretrizes e reco-
cana, como é o caso do povo “Bush” de mendações a serem adotadas pelos Estados
Suriname12. Importa destacar que a Comissão signatários.
Interamericana, no tocante aos direitos huma- O Comentário Geral nº 7 (1997) estabelece que
nos das pessoas indígenas, sempre acatou o os Estados devem assegurar, antes da efetivação
conceito de direitos coletivos como o que se de qualquer despejo, particularmente aqueles
refere às condições jurídicas de conjuntos de que envolvem grande número de pessoas, que
pessoas. A Comissão tem enfatizado a utilização alternativas viáveis serão buscadas mediante

12
Citado na petição de denúncia formulada pelos representantes das Comunidades de Samucangaua, Iririzal, Ladeira, Só Assim,
Santa Maria, Canelatiua, Itapera e Mamuninha, integrantes do mesmo território étnico de Alcântara, Maranhão; o Centro de Justiça
Global; a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH); o Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN); a Associação das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão (ACONERUQ), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do
Maranhão (FETAEMA), e a Global Exchange contra o Estado Brasileiro e apresentada à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (Samucangaua e outras comunidades x Governo do Brasil. 2002 – Report No. 0555/2001).
48

IV. FORMAS DE DEFESA DOS DIREITOS DAS


POPULAÇÕES QUILOMBOLAS

consulta à população afetada, com o objetivo que será providenciada em tempo apropriado
de evitar ou, no mínimo, minimizar o uso da para os afetados; (d) especialmente quando
força. Remédios e procedimentos legais devem houver grupos de pessoas envolvidas, represen-
ser viabilizados para aqueles que estão ameaça- tantes de governos devem ser fazer presentes
dos por uma ordem judicial de despejo. durante o despejo; (e) todas as pessoas que
Os Estados devem assegurar que todas as conduzirem o despejo devem ser apropriada-
pessoas afetadas por despejos arbitrários te- mente identificadas; (f) os despejos não devem
nham adequada compensação pela perda de ser efetivados sob mau tempo ou à noite, a
seus bens e propriedade, reais ou pessoais. menos que haja o consentimento das pessoas
Neste aspecto, é importante apontar que o ar- afetadas; (g) garantir remédios legais; e (h) as-
tigo 2.3 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Po- segurar, quando possível, assistência legal às
líticos requer dos Estados a garantia de que re- pessoas que necessitam buscar compensação
médios efetivos serão assegurados para as pes- judicialmente.
soas que tiverem seus direitos humanos vio- A Agenda Habitat (1996) contém dispositi-
lados. E ainda que “nos casos em que o despe- vo em que todos os países signatários se res-
jo é considerado justificável, ele deve ser efe- ponsabilizam por proteger todos os grupos e
tivado em estrito acordo com as provisões re- indivíduos contra despejos arbitrários, assegu-
levantes das leis internacionais de direitos rando-lhes proteção e remedição legal levando
humanos e de acordo com os princípios ge- em consideração os direitos humanos. Quando
rais de razoabilidade e proporcionalidade”. o despejo for inevitável, os Estados se compro-
O Comentário Geral nº 2 (1990), dispõe sobre metem a providencias soluções alternativas e
as medidas de assistência técnica que as agên- adequadas.
cias devem tomar para evitar a execução de A Comissão de Direitos Humanos das Na-
projetos que envolvam despejos em larga-es- ções Unidas adotou a Resolução 1993/77 da
cala ou descolamento de pessoas sem a pro- Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas
visão de todas as medidas apropriadas de pro- (1993) sobre despejos forçados que os consi-
teção e compensação (E/1990/23, annex III, dera graves violações aos direitos humanos e
par. 6). requer dos Estados a tomada imediata de me-
O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e didas que visem evitar, remediar, indenizar e
Culturais considera que os procedimentos de compensar os terrenos, moradia e bens para
proteção a serem aplicados em relação aos des- as pessoas afetadas.
pejos forçados devem incluir: (a) uma oportu- A Sub-Comissão pela Promoção e Proteção
nidade de consulta à população afetada; (b) dos Direitos Humanos das Nações Unidas (an-
notícia adequada e razoável às pessoas afetada tiga Sub-Comissão pela Prevenção da Discrimi-
antes da determinação da data do despejo; (c) nação e Proteção das Minorias), tem adotado
informação sobre o despejo proposto e, quando importantes resoluções sobre os despejos for-
cabível, sobre a alternativa de terra ou moradia çados como em 1998 e em 2003.
49

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

A Resolução 1998/9, intitulada “Despejos 3.POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO


Forçados” reafirmou que toda a pessoa tem FUNDIÁRIA
o direito de estar a salvo de despejos arbitrá-
rios ou discriminatórios, e que toda a mu- Criação de Grupo de Trabalho
lher, homem e criança, tem o direito a um Interministerial para discutir a aplicação
lugar seguro para viver em paz e dignidade, do artigo 68 da ADCT (2003)
o que inclui o direito a não ser despejado de Dentre as recentes iniciativas do Governo
sua moradia, terra ou comunidade. A resolu- Lula no sentido de efetivar os direitos constitu-
ção também reconhece que a prática violen- cionais das comunidades remanescentes de
ta de despejo forçado envolve a remoção in- quilombos destaca-se a edição do Decreto s/nº
voluntária e coercitiva de pessoas, famílias e de 13/5/2003, que institui um Grupo de Tra-
grupos de suas casas, terras e comunidades, balho Interministerial – GTI, com a finalidade
com ou sem decisão legal expedida pelo sis- de rever as disposições contidas no Decreto nº
tema legal vigente, que resulte em aumento 3.912/2001. Esta norma define as diretrizes
do déficit e das condições inadequadas de para o reconhecimento, delimitação, demarca-
moradia.Ela urge os Governos a tomarem ção, titulação e registro das terras dos remanes-
medidas imediatas, em todos os níveis, vi- centes de quilombos, cujo órgão atualmente
sando a eliminação da prática dos despejos responsável a Fundação Cultural Palmares.
forçados, dentre as quais, repelir planos e le- Este GTI constituído por representantes da Casa
gislações vigentes que permitem despejos ar- Civil; dos Ministérios da Justiça, da Defesa, da
bitrários e assegurar o direito à segurança na Educação, do Trabalho e Emprego, da Saúde, do
posse para todos os residentes. Planejamento, da Cultura, do Meio Ambiente, do
A Resolução 1998/26, intitulada “Restituição Desenvolvimento Agrário, e da Assistência e Pro-
de Moradia e Propriedade no contexto do Re- moção Social; do Gabinete do Ministro de Estado
torno dos Refugiados e Pessoas Internamente Extraordinário de Segurança Alimentar e Comba-
Deslocadas reconhece o direito destas pessoas te à Fome; da Advocacia-Geral da União; da
ao livre retorno suas casas e lugares de resi- Secretaria Especial de Políticas de promoção da
dência habitual,em segurança física e psicoló- Igualdade Racial, além de três representantes dos
gica, como elemento indispensável reconcili- remanescentes das comunidades de quilombos.
ação e reconstrução nacional. Além de rever o referido Decreto, o Grupo deve
A Resolução de 2003 contém a recomendação sugerir medidas para o desenvolvimento das áre-
para que os Estados adotem urgentemente me- as já reconhecidas e tituladas pela Fundação
didas para aprovar e implementar legislação Palmares e pelo INCRA. O GTI também discute a
que assegure o direito posse para todos os criação de um sistema de atendimento específico
residentes. para as comunidades quilombolas.
V. CONSIDERAÇÕES DA
RELATORIA SOBRE OS
ACORDOS DE SALVAGUARDAS
TECNOLÓGICAS
51

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

De acordo com o Ronaldo Sardenberg, Mi- esferas da sociedade civil e da falta de


nistro da Ciência e Tecnologia, a base de recursos, o Governo Brasileiro retirou da pau-
Alcântara “é estratégica devido sua localiza- ta de votação no Congresso Nacional o Acor-
ção geográfica, a apenas dois graus de latitu- do de Salvaguardas Tecnológicas Brasil/
de sul da linha do Equador, o que permite Estados Unidos.
que os foguetes sejam lançados com uma eco- O Acordo em questão foi objeto de críticas
nomia de combustível de treze por cento em por vários segmentos da sociedade brasileira,
relação ao Cabo Canaveral, nos Estados Uni- principalmente aqueles que interpretaram o
dos, e de trinta e um por cento em relação a Acordo como um atentado contra a soberania
Baikonur, no Cazaquistão, os dois principais nacional. As cláusulas do Acordo estipulam o
centros de lançamentos comerciais do mun- seguinte: (a) a proibição de usar o dinheiro
do. Assim, empresas que pretendam colocar dos lançamentos no desenvolvimento de veí-
grandes satélites em órbita, como os de tele- culos lançadores – artigo III, parágrafo E; (b)
comunicações e meteorologia, podem signi- a proibição de cooperar com países que não
ficativamente reduzir custos usando a Base de sejam membros do MTCR – artigo III, pará-
Alcântara. Temos o Centro de Lançamentos grafo B; (c) possibilidade de veto político
mais competitivo do mundo. Não podemos unilateral de lançamentos – artigo III, pará-
ficar de fora de um mercado que pode che- grafo A; (d) obrigatoriedade de assinar novos
gar a trinta e três bilhões de dólares nos pró- acordos de salvaguardas com outros países, de
ximos dez anos. Se não entendermos isso, modo a obstaculizar a cooperação tecnológi-
meu Deus, perderemos uma grande oportu- ca – artigo III, parágrafo F. Além disso, o Acor-
nidade. Já perdemos outras no passado. En- do determina que o controle da tecnologia seja
tão, uma deciso negativa nesse caso de feito unilateralmente pelos representantes do
Alcântara ser danosa para nossa economia e governo norte-americano.
nossa capacidade de exportar serviços. E a res- O acordo também não prevê a obrigatori-
ponsabilidade pela decisão equivocada ter de edade de que pelo menos as empresas norte-
ser assumida por quem a provocou13. americanas repassassem às autoridades bra-
O Acordo de Salvaguardas Tecnológicas sileiras dados relativos à existência de mate-
(AST) com o Estados Unidos, assinado em rial radioativo ou de quaisquer substâncias
abril de 2000, prevê o lançamento de fogue- tóxicas danosas ao meio ambiente e sade hu-
tes americanos do Centro de Alcântara, mana presentes nas cargas úteis a serem
Maranhão, e precisava ser ratificado no Con- lançadas.
gresso Nacional. Como resultado da pressão No entanto, a questão central que deveria
externa oriunda da mobilização de diversa ser considerada é o impacto que este Acordo

13
Entrevista à Revista Veja de 12 de setembro de 2001 ............
52

V. CONSIDERAÇÕES DA RELATORIA SOBRE OS


ACORDOS DE SALVAGUARDAS TECNOLÓGICAS

trará população de Alcântara e do Maranhão, temidos impactos do Acordo assinado com os


bem como a forma como o Governo Brasilei- Estados Unidos.
ro tem tratado a questo. Tanto o Acordo de O Acordo de Salvaguardas não é a causa em
Salvaguardas Tecnológicas com os Estados si da violação dos direitos das comunidades ne-
Unidos, quanto o Acordo com a Ucrânia leva- gras e tradicionais, mas no caso concreto, em
rão implementação das fases III e IV do Cen- razão de ações e omissões do Governo, a con-
tro de Lançamentos, o que resultar no deslo- seqüência foi o deslocamento forçado de mui-
camento forado de mais de mil pessoas. Tal tas famílias, desprovendo-as de seus modos de
despejo contradiz os tratos e convenções in- subsistência tradicionais, como a pesca e a agri-
ternacionais dos quais o Brasil signatário e a cultura coletiva.
Constituição de 1988, que garante a essas fa- A Comissão de Relações Exteriores e De-
mílias o direito propriedade de suas terras tra- fesa Nacional (CRE) do Senado Federal, apro-
dicionais como forma de subsistência e de vou no dia 18 de setembro de 2003 o Proje-
preservação de seu modo de vida. É impor- to de Decreto Legislativo nº 393/03, que
tante salientar que as fases I e II foram imple- aprova o texto do Acordo entre o Governo da
mentadas com base em desapropriações República Federativa do Brasil e o Governo
inconstitucionais que no observaram o artigo da Ucrânia sobre Salvaguardas Tecnológicas
5º, XXIV da Constituição Federal. De acordo relacionadas à participação da Ucrânia em
com este dispositivo, a indenização a ser paga lançamentos a partir do Centro de Lançamen-
às famílias afetadas deveria ser prévia, justa e tos de Alcântara, celebrado em Kiev, em 16
em dinheiro. Entretanto, a maioria no rece- de janeiro de 2002.
beu o valor devido pela indenização dos bens Este acordo não possui diferenças em rela-
e riquezas aos quais tinham acesso nos terri- ção ao Acordo de Salvaguardas assinado com
tórios originalmente ocupados. o Governo dos Estados Unidos.Este previa ba-
“A migração forçada foi fatal para essas fa- sicamente que o Brasil, não poderia repassar e
mílias”, analisa Alfredo Wagner de Almeida, proibir o repasse por representantes brasilei-
da Associação Brasileira de Antropologia. “As ros, de quaisquer dados concernentes a veícu-
relações de permuta entre as comunidades, de- los de lançamentos, equipamentos da plata-
dicadas à pesca e variadas atividades agrícolas, forma de lançamentos, espaçonaves e equipa-
foram afetadas radicalmente pela transferên- mentos afins, sem a prévia autorização por es-
cia das famílias. Elas foram assentadas, depois, crito do Governo da Ucrânia. É obrigatória a
em áreas onde passaram a cultivar pequenas utilização de crachás de identificação por to-
roas individuais, não mais coletivas como fa- das as pessoas enquanto estiverem executan-
ziam antigamente”. Para o antropólogo que do atribuições relacionadas com as atividades
há trinta anos acompanha as comunidades da de lançamento, sendo que a autorização para
região, a degradação do modo de vida dessas entrada nas instalações é emitida unicamente
antigas comunidades, precisamente, um dos se autorizada pelo Governo da Ucrânia. E ain-
53

A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


COMUNIDADES NEGRAS E TRADICIONAIS DE ALCÂNTARA

da, quaisquer veículos de lançamento, equi- Portanto, o Acordo de Salvaguardas firmado


pamentos ou dados técnicos transportados entre Brasil e Ucrânia não avançou nada no que
para o Brasil, ou dele provenientes, relaciona- tange às possíveis vantagens que o Brasil pode-
dos a atividades de lançamento, deverão ser ria ter na esfera da ciência e tecnologia e muito
acondicionados em contêineres lacrados e só menos em relação ao social, ou seja, a popula-
poderão ser abertos em áreas apropriadas pre- ção local continua sem qualquer benefício ou
viamente definidas. melhoria na qualidade de vida.
54

BIBLIOGRAFIA

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A SITUAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DAS


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RELATORIA NACIONAL PARA O ASSESSORIA NACIONAL PARA O
DIREITO À MORADIA ADEQUADA E DIREITO À MORADIA ADEQUADA E
À TERRA URBANA À TERRA URBANA

Relator: Nelson Saule Júnior Assessora: Leticia Marques Osório


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