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Abrir portas onde se erguem muros Director: Manuel Carvalho Domingo,
go, 25 de Setembro de 20
2022
022 • Ano XXXIII • n.º 11.837 • Diário • Ed. Porto • Assinaturas 808 200 095 • 1,90€

O fenómeno do quiet quitting

itting Uma Aventura
Não é trabalhar menos, Nove milhões de livros
é recusar fazer depois, elas não sabem
cada vez mais escrever uma sem a outra
Sociedade, 14/15 P2
JEAN-MARC CAIMI E VALENTINA PICCINNI

Supermercados
e distribuidores
Eleições são hoje
”Meto-vos medo?” multados em
Giorgia Meloni é a grande
favorita para governar Itália 675 milhões por
O que fazer com
a extrema-direita
concertação
Opinião de Teresa de Sousa de preços
Destaque, 2 a 6, 11, Editorial e P2

É uma “conspiração equivalente a um e hipermercados e distribuidores e

cartel”, segundo a Autoridade da
Concorrência. No período de um ano
e nove meses, esta entidade aplicou
coimas no valor de 675,7 milhões. Os
visados são grupos donos de “super”
fabricantes de bebidas, alimentos,
produtos de limpeza e higiene pes-
soal. Todos negam as acusações de
que são alvo e nenhuma coima foi
paga até agora Economia, 20/21

Portugal ganha em duas

frentes na Liga das Nações
Selecção goleou República Checa Desporto, 28/29

Apelo a países da UE Primavera Silenciosa

Charles Michel
quer decisão
sobre russos que
fogem à guerra
Alemanha pôs hipótese de conceder
asilo, Lituânia opôs-se. Presidente
do Conselho Europeu pede “abertu-
ra” e “coordenação” Mundo, 17
O livro que
marcou a luta
pelo ambiente
fez 6O anos
Rachel Carson desaÆou em 1962 a
indústria química e alertou para os
perigos dos pesticidas. Esta é a sua
história Ciência e Ambiente, 26/27

Jorge Palma
Hoje Biblioteca da Censura
“Estou a Romances do Mar,
descobrir coisas de Bernardo Santareno
que escrevi Vol. 6
há ‘500’ anos”
Por+
Cantor e compositor volta aos pal-
cos com um desaÆo homérico: revi- 9€
sitar 14 álbuns em seis concertos
Cultura, 24
ISNN-0872-1556

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2 • Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022

Destaque Eleições em Itália

“Eu não sei se ela é fasci

Se as previsões se conÄrmarem, a Draghi sucederá
o executivo mais à direita de que há memória em Itália.
Entre os contrapoderes e a necessidade de legitimação
internacional, estará a democracia italiana em risco?
nacional de Mario Draghi, cuja queda cismo” e persegue uma sociedade
Sofia Lorena
precipitou as eleições antecipadas. assente na chamada “família normal”,

“D
izem que sou assusta-
dora… mas meto-vos
medo?”, perguntou
Giorgia Meloni aos
seus apoiantes no
comício de quinta-fei-
ra, que juntou na Piazza del Popolo de
Roma todos os membros da coligação
de direita e extrema-direita que se
espera saia vencedora das eleições
legislativas de hoje. Aos 45 anos, Melo-
ni deverá ser chamada a formar gover-
no à frente de uma aliança encabeça-
da pelo seu partido, Irmãos de Itália
(FdI), descrito habitualmente como
pós-fascista — e, sim, isso provoca
medo a muitos italianos e a muitos dos
que olham a Itália a partir de fora.
A conÆrmar-se o que dizem todas
as sondagens, o próximo executivo
em Itália será o mais à direita do país
desde a Segunda Guerra Mundial. O
Partido Democrático (PD), principal
formação de centro-esquerda, espera
ser o segundo mais votado, obtendo
entre 21% e 22%, não muito longe dos
25% que os inquéritos antecipam aos
FdI. Mas a lei eleitoral beneÆcia as
coligações, devendo garantir a maio-
ria à direita. Há quem tema o Æm do
mundo e quem defenda que vai tudo
Æcar mais ou menos na mesma.
É inegável o crescimento vertigino-
so do FdI, que teve 4% em 2018. Foi o
único partido a manter-se na oposi-
ção ao longo de toda a legislatura,
sem apoiar o Governo de unidade
Numa aliança formada por três parti-
dos — FdI; Liga, de Matteo Salvini; e
Força Itália (FI), de Silvio Berlusconi;
para além dos centristas Noi Modera-
ti, que desta vez se juntaram —, a for-
mação de Meloni passou de minori-
tária a claramente dominante. Uma
coligação que começou por ser de
direita, centro-direita até, dizia-se,
tem hoje a extrema-direita no centro
do palco.
Para alguns autores, mais relevante
é o facto de as sensibilidades políticas
que a integram serem as mesmas des-
de 1994. Num artigo publicado no
Centro de Investigação sobre Extre-
mismo da Universidade de Oslo, os
investigadores Caterina Froio e Pietro
Castelli Gattinara argumentam que a
mudança no equilíbrio de forças não
altera o essencial, que é “a aparente-
mente irreversível mistura da política
mainstream com a extrema-direita em
Itália”.
Monica Frassoni, ex-eurodeputada,
que foi co-presidente do Partido Ver-
de Europeu, discorda. “O equilíbrio
entre os partidos mudou muito. O
Força Itália tem muitos defeitos, mas
não é um partido de extrema-direita.
O FdI é”, aÆrma.
A sua descrição assenta em três
questões, explica. Por um lado, trata-
se de uma formação com “uma ideia
de país profundamente conservadora
e reaccionária”, onde a própria Melo-
ni “tem nostalgia do período do fas-
em que “os direitos sociais pratica-
mente não existem”. Em segundo
lugar, a ecologista aponta uma pro-
posta económica bem conhecida em
Itália, assente “no peso das corpora-
ções”.
Finalmente, esta direita, diz, é
“muito céptica” nas questões do clima
e “não dá qualquer importância às
alterações climáticas”. Frassoni lem-
bra como o FdI e a Liga foram os úni-
cos que se abstiveram num voto
recente no Parlamento Europeu sobre
as energias renováveis e a eÆciência
energética. “Até o Partido Popular
Europeu voltou a favor”, sublinha.
“Eu não sei se ela é fascista, mas é
perigosa”, aÆrma sobre Meloni. “Nem
sequer sei se ela mesmo é de extrema-
direita, mas as suas posições sobre o
clima, a Europa e os direitos civis são
perigosas. E os italianos não percebe-
ram; nós, enquanto forças de oposi-
ção a esta proposta política, não
fomos capazes de fazer os italianos
compreenderem que há um proble-
ma de clima, um problema de demo-
cracia”, lamenta.
O politólogo Marco Tarchi, consi-
derado o ideólogo da chamada Nova
Direita Italiana, que o próprio deu
como enterrada em 1994, defende
que estas preocupações “são exage-
radas”. Não só Meloni não vai gover-
nar sozinha, “mas em coligação com
forças políticas como Força Itália e os
centristas, que vão condicionar a sua Giorgia Meloni, dos Irmãos de Itália, deverá liderar governo apoiado pela L

Pergunta e resposta Como funcionam as eleições italianas? E o que dizem as sondagens?

Quem vota?
O universo eleitoral italiano é
hoje de 51,4 milhões de
pessoas. Destas, 4,1 milhões,
que têm entre 18 e 24 anos,
podem pela primeira vez votar
para o Senado. A idade
mínima de voto para a câmara
alta era de 25 anos e passa
agora a ser de 18 anos, como
já acontecia para a Câmara de
Deputados.
Para escolher o quê?
Os italianos vão votar para
escolher os membros da Câmara
dos Deputados e do Senado.
Serão eleitas 600 pessoas: 400
para a Câmara dos Deputados,
200 para a câmara alta do
Parlamento.
Quem se candidata?
Há um total de 4746 candidatos
em todo o país, mas as
candidaturas são mais — 6347 —
porque a lei eleitoral permite que
se seja candidato num círculo
uninominal e em cinco círculos
plurinominais.
A lei italiana prevê que
nenhuma lista possa ter mais de
60% de homens ou de mulheres;
num país onde as mulheres
estão sub-representadas em
todas as posições de topo,
44,3% dos candidatos são
mulheres.
Um em cada sete candidatos
tem menos de 40 anos, e são
1762 os candidatos com
experiência anterior em
governos nacionais, Parlamento
e nos conselhos regionais e
autárquicos.
Como se vota?
O processo de escolha dos
candidatos já mudou várias
vezes, o que costuma gerar
alguma confusão. O que nunca
muda são os dois boletins de
voto (um cor-de-rosa, para a
Câmara, e um amarelo, para o
Senado) que cada eleitor vai
receber na mesa de voto, ambos
com uma dimensão considerável
e dobrados em quatro.
Desta vez é preciso assinalar o
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ista, mas é perigosa”
Liga, de Salvini (à esquerda), e pelo Força Itália, de Berlusconi (à direita)
rectângulo com o símbolo da
lista desejada e os nomes dos
candidatos para os colégios
plurinominais.
Como se é eleito?
A actual lei eleitoral, Rosarellum,
em vigor desde 2017, estabelece
que 37% dos lugares sejam
determinados através de um
sistema maioritário,
first-past-the-post, o que
significa que um candidato
ganha se tiver mais votos do que
os adversários, e não uma
GUGLIELMO MANGIAPANE/REUTERS
maioria dos votos. Os restantes
são atribuídos através do
sistema proporcional, com listas
fixas.
O que dizem as sondagens?
As últimas sondagens
disponíveis, publicadas no dia 9
de Setembro, não apresentavam
grandes diferenças. A do
instituto Ipsos, por exemplo,
atribuía 25,1% ao Irmãos de Itália,
de Giorgia Meloni, e colocava o
Partido Democrático em
segundo, com 20,5%.
acção, moderando-a”, como querer
“modiÆcar parcialmente algumas leis
da iniciativa de governos progressis-
tas, tornando-as mais conservadoras
não signiÆca ‘atacar os direitos’, mas
respeitar a vontade popular”.
Democracias iliberais
“Quem não aceita esta lógica de alter-
nância não se pode dizer democráti-
co, independentemente da sua posi-
ção política”, defende o professor na
Faculdade de Ciência Política da Uni-
versidade de Florença. “Um partido
nacional-conservador, nacionalista e
bastante liberal no plano económico-
social”, responde Tarchi, quando se
lhe pede que descreva o partido de
Meloni.
Apesar de a ameaça do fascismo ter
sido central na campanha, Edoardo
Bressanelli, professor de Ciência Polí-
tica da Escola Superior San’Anna, de
Pisa, defende que “não é de todo cor-
recto falar-se de regresso do fascismo
em 2022”. O que há a temer, diz, é
uma democracia iliberal “com a Hun-
gria de Viktor Orbán como exemplo,
e, nesse sentido, uma regressão, em
particular no que diz respeito aos
direitos civis e a várias liberdades, os
mesmos e as mesmas que Orbán tem
atacado sistematicamente”.
Aqui, nota, “as preocupações são
justiÆcadas, tendo em conta o progra-
ma e o facto de o partido de Giorgia
Meloni ser um partido da direita radi-
cal, profundamente conservador”.
Apesar disso, Bressanelli acredita
que “estas preocupações podem ser
algo exageradas”. Por dois motivos:
“Meloni e Salvini não terão com gran-
de certeza uma maioria no Parlamen-
to, só terão maioria com o conjunto
da coligação, que inclui um partido
como o Força Itália, que tem posições
mais moderadas, e outros grupúscu-
Seguia-se o Movimento 5
Estrelas, com 14,5% das
intenções de voto, seguido pela
Liga, com 12,5%. O Força Itália,
de Silvio Berlusconi, surgia com
8%, enquanto o Terceiro Pólo,
que soma os centristas liberais
do Acção ao Itália Viva, de
Matteo Renzi, somava 6,7%.
De seguida estava a aliança
Esquerda Italiana e Europa
Verde, com 3,4%; o Italiexit, com
3%; acima do Empenho Cívico e
do +Europa.
Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022 • 3
los de centro”, diz. Ao mesmo tempo,
sublinha, “em Itália, como sabemos,
é difícil ao executivo governar mesmo
quando tem muitos lugares no Parla-
mento porque os contrapoderes são
fortes e o sistema de democracia
constitucional italiano é um sistema
bastante robusto”. Dando os exem-
plos da presidência da República e do
Tribunal Constitucional, o analista
nota que “será neste quadro consti-
tucional que Meloni, se for ela a pri-
meira-ministra, terá de se mover”.
Frassoni também sabe que da coli-
gação fazem parte partidos que não
pertencem à direita radical. A diferen-
ça é que não acredita que estes
venham a ter votos suÆcientes para
inÇuenciarem de forma signiÆcativa
as políticas de um governo de direita,
“limitando ou travando uma linha
profundamente antieuropeia, reac-
Partido
Democrático,
de Enrico Letta,
espera ser
o segundo mais
votado nas
eleições de hoje
cionária e perigosa para o país”.
As sondagens disponíveis — até dia
9 de Setembro, já que a sua publica-
ção está proibida nas duas semanas
de campanha oÆcial — indicam que a
FI pode ter um resultado terrível, à
volta dos 7%”.
Mesmo assim, Bressanelli conside-
ra que a tendência será para o Gover-
no se moderar, lembrando as “posi-
ções públicas muito tranquilizadoras
de Meloni, no sentido de um apoio
muito forte à Ucrânia contra a Rússia
de [Vladimir] Putin e num quadro de
atlantismo”. O analista acredita que
estas posições se vão manter pela
necessidade que Meloni tem de “legi-
timação junto dos parceiros tradicio-
nais da Itália na Europa”. E as tenta-
tivas da dirigente para se moderar,
“se tornar mais apresentável, diga-
mos mais legítima”, não são de agora,
já começaram há algum tempo, acres-
centa.
Em sinal contrário, Bressanelli nota
a escolha de votar contra a resolução
do Parlamento Europeu a condenar
a Hungria: “É um erro. Primeiro por-
que é uma resolução sem consequên-
cias políticas, apenas simbólica;
depois porque contraria esta tentati-
va de legitimação”, aÆrma.
Para Frassoni, a decisão de mode-
rar o eurocepticismo, posição tradi-
cional do FdI, de Meloni, mas tam-
bém da Liga (que, de facto, não se
reÇecte no programa da coligação),
não chega para concluir que não
haverá grandes mudanças na atitude
de um futuro governo no quadro da
UE. “Ao contrário de Draghi, defen-
dem veementemente o direito de veto
no Conselho Europeu. E ainda mais
importantes são as questões climáti-
cas, já que é o nosso futuro comum
que está em perigo”, sublinha. “Itália
é um país com peso muito importan-
te no conselho. Se até agora as maio-
rias para fazer avançar medidas cli-
máticas urgentes já não eram gran-
des, poderão Æcar ainda mais
fragilizadas”, receia.
Desilusão e desinteresse
Mesmo quem acredita que o Irmãos
de Itália nunca abandonou comple-
tamente as suas raízes neofascistas
(da mesma forma que mantém a cha-
ma tricolor no símbolo) não conside-
ra que a vitória de Meloni e da sua
coligação signiÆque que uma grande
parte dos italianos tem simpatia pela
ideologia fascista. Frassoni 
Os dados do Ipsos
apontavam ainda para uma taxa
de 10,1% de indecisos e previam
uma abstenção de 33,4%.
No embate entre a coligação
de direita e extrema-direita, por
um lado, e o centro-esquerda
(Partido Democrático e
algumas pequenas formações),
por outro, a primeira somava
45,6% dos votos, quase mais
20 pontos percentuais do que
o centro-esquerda, com 27,2%.
Sofia Lorena
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4 • Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022
Destaque Eleições em Itália
argumenta que a maioria, “simples-
mente, não quer saber”. Como estão
“pouco informados, pouco interessa-
dos e mergulhados nos seus proble-
mas quotidianos”, pensam que “este
governo não vai durar, que da próxi-
ma vez ganham outros”.
“Mas não temos tempo a perder”,
sublinha. “A próxima vez pode ser
daqui a cinco anos e nós só temos sete
ou oito anos para inverter as políticas
de mudanças climáticas.”
A realidade diz aos eleitores que o
seu voto não conta assim tanto e que
ao votar estão apenas a contribuir
para eleger mais um governo de cur-
ta duração — contam-se 67 nos 76
anos da república italiana. Numa só
legislatura podem caber vários gover-
nos e até vários primeiros-ministros:
a actual, por exemplo, teve três gover-
nos e dois primeiros-ministros.
O sucesso do FdI e de Meloni é
geralmente explicado com a desilu-
são dos italianos face aos partidos que
já estiveram no poder e a consequen-
te atracção pela novidade.
Giorgia Serughetti, investigadora
de FilosoÆa Política na Universidade
Milano-Bicocca, refere ainda que “em
Itália se sente a necessidade de uma
política mais popular, mais próxima
das pessoas, mesmo se essa ideia é
enganadora”. Meloni não é o único
caso, “há outros exemplos, como o
sucesso do Movimento 5 Estrelas
[anti-sistema, foi o partido mais vota-
do nas últimas eleições] e o sucesso
que [o seu líder, Giuseppe] Conte teve
nesta campanha ao adoptar o papel
de advogado do povo”.
Receita de felicidade
Trata-se, diz a Ælósofa, de uma “voca-
ção de passado e não de futuro”, com
“uma proposta vaga de regresso a
uma comunidade menos desigual,
com menos estrangeiros, com a famí-
lia no centro, a um passado em que
se imagina que se estava melhor, o
que não é verdade”. Uma proposta
muito atractiva quando “há 15 anos
que saltamos de crise em crise, crise
económica, terrorismo, imigrações,
crise de refugiados, crise da pande-
mia, agora a crise energética…”.
Em Itália, isto soma-se a “sucessi-
vos desastres ambientais”, “terramo-
tos, desmoronamentos, inundações”.
Não são precisas propostas concretas
e sérias, diz, “basta uma receita de
maior felicidade”.
Pesando tudo, e “em caso de vitória
da direita — desta direita —, é bom
notar que em 1994 as eleições foram
ganhas por uma coligação de leghisti
[apoiantes da Liga Norte], neofascis-
tas [Aliança Nacional], forzisti
[apoiantes do Força Itália] e católicos
de direita, encabeçada pelo inventor
do populismo italiano, Berlusconi”,
escreve o escritor, jornalista e satiris-
ta Michele Serra na rubrica semanal
onde responde a cartas dos leitores
no La Repubblica. “Saímos vivos:
humilhados em meio mundo, maltra-
tados, fragilizados, mas vivos. Sobre-
viveremos também a esta eleição.”
Como se chegou às eleições antecipadas
O dominó que fez
cair Draghi num
sistema partidário
sempre imprevisível
Sofia Lorena
Vários erros e posições
de força são a explicação
de Monica Frassoni,
ex-eurodeputada, para as
eleições antecipadas de hoje
A
voracidade da campanha
eleitoral italiana quase fez
esquecer que no início de
Julho nada fazia prever que
as eleições do próximo ano
seriam antecipadas. Mario
Draghi, à frente de um governo de
unidade nacional que incluía todos
os partidos, menos o Irmãos de Itá-
lia, de Giorgia Meloni, gozava de
enorme respeitabilidade externa e
de um apoio signiÆcativo entre os
italianos. Mas depois, bem, depois
Itália é a Itália das crises sucessivas,
alguém deu o primeiro passo e nin-
guém foi capaz de travar o que pou-
cos desejariam.
“Fiquei muito surpreendida com
o desenlace, penso que a antecipa-
ção das eleições não é boa para nin-
guém. Claro que é boa para os parti-
dos da direita, principalmente para
o Irmãos de Itália, de Giorgia Meloni
[que lidera as sondagens], mas pen-
so que até eles poderiam ganhar se
fossem a votos mais tarde”, diz Moni-
ca Frassoni, política italiana que foi
co-presidente do Partido Verde Euro-
peu. Mas “gerou-se uma dinâmica de
diferentes posições de força”, des-
creve, e o resultado é os italianos
terem de ir hoje votar.
Dentro da coligação que apoiava
Draghi, começou a sentir-se algum
nervosismo entre o Movimento 5
Estrelas (M5S, anti-sistema), partido
que enfrentara uma cisão, estava em
queda nas sondagens e precisava de
se distinguir da linha oÆcial para
começar a recuperar apoios a tempo
de um bom resultado em 2023. A
Liga, de Matteo Salvini, também esta-
va a perder votos e “temia ser engo-
lida pelo partido de Meloni”, nota
Frassoni.
Perante isto, Draghi, que enfren-
tava uma situação muito difícil — cri-
se energética, além da obrigatorie-
dade de terminar relatórios Ænancei-
ros no âmbito dos apoios do Plano
de Recuperação e Resiliência da
União Europeia e de começar a pre-
parar o orçamento —, temia um cená-
rio de impasse e começou a exibir
posições de força, recorda a dirigen-
te ecologista.
A decisão que acabaria por desen-
cadear o processo que se seguiu foi
de Draghi, ao incluir uma série de
propostas “completamente inaceitá-
veis” para o M5S numa lei para aju-
dar italianos com problemas em
pagar a conta da luz. Depois, quando
o M5S se absteve, provocando a vota-
ção de uma moção de conÆança ao
Governo, Draghi “resolveu forçar a
mão, disse ‘ou estão comigo ou não’,
e fez críticas muito duras quer ao 5
Estrelas quer à Liga”.
Seguiu-se o que Frassoni diz ter
sido um “grande erro” de Giuseppe
Conte, líder do M5S: apesar de ter
conseguido que algumas das suas
propostas fossem consideradas,
decidiu que o partido não participa-
ria na votação e que abandonaria o
plenário. Nesse momento, o Partido
Democrático (PD, principal forma-
ção de centro-esquerda), presidido
por Enrico Letta, “cometeu outro
erro grave, anunciando que neste
cenário recusava continuar a traba- Mario Draghi gozava de enorme Salvini obteve 17,4%, sendo o mais
lhar com o M5S”. respeitabilidade externa votado dentro da coligação de direi-
Penso que “foi um efeito dominó, e de apoio significativo ta e extrema-direita. Hoje, esperam
uma daquelas situações em que há entre os italianos obter cerca de 14% cada um.
uma coisa que ninguém quer e que, Os exemplos de debacles suce-
mesmo assim, acontece”, descreve dem-se: Matteo Renzi, por exemplo,
Frassoni. que à frente do PD chegou a reunir
Face às críticas de Draghi, e temen- 40% das preferências dos eleitores,
do continuar em queda nas sonda- terá sorte se chegar aos 2% com o seu
gens, Salvini teve medo de esperar e novo partido, Itália Viva. Giorgia
arrastou o Força Itália, de Silvio Ber- Meloni e os seus FdI, em sentido con-
lusconi, acabando por deixar cair trário, podem passar de 4% para os
Draghi. Sem a decisão de Letta, 25% que as sondagens lhes atri-
Draghi podia ter continuado no buem.
poder apoiado pelo M5S e pelo PD. Alguns analistas admitem que esta
Assim, o seu governo implodiu. volatilidade signiÆque que Meloni
Quem consultar os resultados das pode estar prestes a conseguir este
eleições de 2018 Æcaria surpreendido
com estes receios do M5S e da Liga.
Foi um efeito resultado apenas por se ter mantido
na oposição, podendo daqui a uns
AÆnal, foram os dois partidos mais dominó, uma anos valer menos de metade.
votados e dividiram o poder no pri-
meiro governo formado na actual daquelas situações E apesar da sensação de vitória
certa por parte da direita, fruto dos
legislatura.
Mas num país muitas vezes descri-
em que há uma coisa resultados de todas as sondagens, é
bom lembrar que em eleições há
to como ingovernável, nenhum par-
tido está a salvo de ver o seu apoio
que ninguém quer sempre lugar para certezas — em Itá-
lia ainda mais. O facto de a publica-
entre os italianos descer a pique. O e que, mesmo ção de sondagens estar proibida nas
partido anti-sistema fundado pelo
humorista Beppe Grillo conseguiu assim, acontece últimas duas semanas antes das elei-
ções ajuda.
32% há quatro anos, um resultado Para comprovar a imprevisibilida-
extraordinariamente alto para um só Monica Frassoni de dos resultados eleitorais, basta
partido, enquanto a formação de Ex-eurodeputada relembrar o que aconteceu nas últi-
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mas vezes que os italianos foram às
urnas.
União, dois papas
Em 2006, Romano Prodi liderava a
União, a experiência de coligação de
centro-esquerda da altura, e chegou
às eleições com as sondagens a
darem-lhe uma vantagem de quatro
pontos percentuais face ao rival Ber-
lusconi, mas acabou por ir para a
cama sem os aguardados festejos. Só
no dia seguinte se conÆrmou que
tinha vencido, por escassos 25 mil
votos.
Sete anos depois, em 2013, chegava
o momento histórico em que os ita-
lianos dizem ter tido durante algum
tempo dois papas (Ratzinger resi-
gnou, Francisco foi eleito) e nenhum
governo. Os resultados deram quase
um empate entre a coligação de
esquerda liderada por Pier Luigi Ber-
sani, e a de direita, encabeçada por
Berlusconi. O primeiro conquistou a
Câmara dos Deputados, por pouco,
mas perdeu para o segundo o Senado.
Ao mesmo tempo, emergia, fulmi-
nante, o M5S, com perto de 25%.
O que estes resultados produziram
foi uma sensação de ingovernabilida-
de absoluta e longas negociações fra-
JOHANNA GERON/REUTERS
cassadas. O Presidente acabou por
encarregar o “número dois” do PD,
Letta, de formar governo e este jun-
tou antigos adversários políticos,
incluindo cinco ministros do Povo da
Liberdade (partido que assimilou
durante alguns anos o FI, de Berlus-
coni, e a Aliança Nacional, que prece-
deu os FdI), Æguras independentes e
políticos ligados ao PD.
Já em 2018, nenhum dos campos
tradicionais, centro-esquerda e cen-
tro-direita, teve números suÆcientes
para governar e como solução surgiu
uma coligação, aparentemente con-
tra-natura, que uniu o M5S à Liga e
durou 15 meses.
O que tudo isto signiÆca é que o
próximo governo, apesar de poder
vir a ser o mais estável em muitos
anos, tendo em conta a dimensão da
vitória que as sondagens antecipam
à coligação de direita e extrema-di-
reita, pode ainda assim durar pouco
— os parceiros desta aliança discor-
dam em inúmeros temas, apesar de
garantirem que o seu compromisso
de união será inabalável. Isto partin-
do do princípio que a contagem dos
votos conÆrma o cenário que hoje
todos os italianos, mesmo Letta,
esperam ver sair das urnas.
Olhos postos na terceira maior economia da zona euro
As eleições europeias que os mercados
vão seguir com mais atenção
Sérgio Aníbal
J
á sem as compras de dívida
do Banco Central Europeu
(BCE), brevemente sem Mario
Draghi à frente do Governo
para tranquilizar os mercados
e com os problemas crónicos
de dívida pública elevada e estagna-
ção económica ainda por resolver, a
Itália é, no momento em que escolhe
o seu futuro Governo, a principal
razão para se temer uma nova crise
Ænanceira na zona euro, semelhante
à que, há uma década, trouxe a troika
a Portugal.
Em 2010, no rescaldo da crise
Ænanceira internacional, foi a descon-
Æança em relação à capacidade de a
Grécia pagar a sua dívida que lançou
vários países da periferia, incluindo
Portugal, para o foco dos mercados
internacionais. Agora, no momento
em que a Europa enfrenta uma difícil
conjuntura de inÇação elevada e risco
de recessão, podem ser as incertezas
económicas e políticas em Itália, a
terceira maior economia da zona
euro, a desestabilizar ainda mais os
mercados.
A tensão em relação a Itália é visível
já há vários meses, principalmente
desde o momento em que Æcou claro
que o Governo liderado por Mario
Draghi tinha os dias contados. Com
as taxas de juro da dívida a subirem
em todos os países da zona euro, devi-
do à retirada por parte do BCE das
suas ajudas, a Itália conseguiu desta-
car-se pela negativa.
As taxas de juro da dívida italianas
a 10 anos — o indicador que passou,
desde a última crise, a ser o mais usa-
do para medir a pressão a que cada
país da zona euro está sujeito nos
mercados Ænanceiros — estão neste
momento acima de 4,3%, no nível
mais alto desde Outubro de 2013. E o
diferencial em relação à generalidade
dos outros países tem vindo ao longo
dos últimos meses a agravar-se.
Se no início do ano, com Draghi à
frente do Governo, as taxas de juro de
dívida italianas eram cerca de 0,6
pontos percentuais mais altas do que
as portuguesas, agora estão mais de
1,2 pontos acima.
São várias as razões para a preocu-
pação dos mercados com a Itália.
Tanto aquando da ascensão de Salvi-
ni em 2018, como agora que se adivi-
nha a formação de um governo à
direita liderado por Giorgia Meloni, o
receio é o de que, a um cenário em
que as perspectivas de crescimento
económico são reduzidas e a dívida
pública está acima dos 150% do PIB,
se junte um executivo que entre em
conÇito com Bruxelas relativamente
Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022 • 5
às suas regras orçamentais e que,
numa espiral de quedas de ratings,
perda de Ænanciamento do BCE e
falências bancárias, faça ressurgir a
ameaça, mesmo que muito reduzida,
de uma saída do euro. Numa tentativa
de acalmar esses receios — e de não
limitar o seu potencial eleitoral — os
responsáveis máximos da coligação
de direita que lidera as intenções de
voto retiraram dos seus programas e
dos seus discursos qualquer intenção
de saída do euro, comprometendo-se
mesmo a contribuir para o projecto
europeu.
O potencial para a existência de
conÇitos é no entanto elevado. Com
a segunda maior dívida pública da UE
e com um déÆce que foi de 7,2% do
PIB em 2021 (e que a Comissão Euro-
peia previa em Abril ser ainda de 5,5%
em 2022 e de 4,3% em 2023), a Itália
será, quando as regras orçamentais
europeias voltarem a estar em vigor,
um dos países com maiores diÆculda-
des em cumpri-las. Junta-se a isto o
facto de no programa eleitoral dos
partidos que poderão vir a formar o
governo de direita haver poucos
sinais de que se vá aplicar uma políti-
ca de consolidação do orçamento.
Pelo contrário, a preocupação vai
toda para políticas que têm como
objectivo dinamizar a actividade eco-
nómica e contrariar a inÇação, mas
que podem tem como efeito no ime-
diato um agravamento dos déÆces.
Por exemplo, o programa da coli-
gação de direita inclui promessas de
cortes nos impostos e de aumentos
das despesas, como, por exemplo,
a actualização do valor da pensão
mínima, não sendo claro como é
que poderão ser efectivamente
Ænanciadas. Isto torna mais pessi-
mistas as estimativas de evolução do
déÆce público italiano, principal-
mente numa altura em que a subida
das taxas de juro faz com que os
encargos com a avultada dívida
Juros pressionam Itália
Taxa de juro da dívida pública a 10 anos, em percentagem
5
4
3 3,103
Portugal
2
Itália
1
0
-1
Set. 2018 2019 2020
2017
Fonte: Reuters
pública continuem a crescer.
Depois há a execução do plano de
recuperação e resiliência, pouco infe-
rior a 200 mil milhões de euros, mas
que Bruxelas só irá disponibilizar se
Roma concretizar as reformas que
prometeu. Giorgia Meloni já manifes-
tou a sua intenção de o renegociar,
para que ele leve em conta a recente
escalada da inÇação.
Meloni tem feito um esforço para
limitar ao máximo o nervosismo do
mercado. Seja dando a entender que
está em contacto directo com Draghi
para assegurar uma transição pacíÆ#
ca, seja reiterando que os seus tem-
pos de eurocepticismo Æcaram no
passado. “Li que uma vitória dos
Irmãos de Itália em Setembro seria
um desastre, que signiÆcaria uma
viragem autoritária e que a Itália sairia
do euro, para além de outras coisas
sem sentido. Nada disso é verdade”,
aÆrmou num discurso recente. No
entanto, ao mesmo tempo, não deixa
de dizer que, com o seu Governo, “a
Itália vai começar a defender os seus
interesses nacionais” na UE e que
defende uma Europa que “respeite a
soberania dos Estados-membros”.
Para já, do lado europeu, a tentati-
va de limitar os riscos de uma crise
criada em Itália veio, como já vem
sendo hábito, do lado do BCE. Chris-
tine Lagarde e os seus pares criaram
um instrumento antifragmentação,
que tem como objectivo ajudar os
países que comecem a encontrar diÆ#
culdades em Ænanciar-se nos merca-
dos de dívida pública. É um instru-
mento que parece feito precisamente
para servir de seguro contra uma cri-
se em Itália, mas ainda assim Æca a
dúvida se, dentro do conselho de
governadores do BCE, será possível
encontrar uma maioria que aceite
apoiar a Itália num cenário em que a
coligação liderada por Meloni esteja
em conÇito aberto com Bruxelas por
causa da sua política orçamental.
4,332
2021 2022 23 Set.
2022
PÚBLICO
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6 • Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022
Destaque Eleições em Itália
Cas Mudde diz que Portugal foi um dos países onde de facto subiu
Extrema-direita sobe menos do que parece
mas é a maior ameaça às democracias europeias
Maria João Guimarães
O investigador Cas Mudde
diz que se declaram
tendências de descida ou
subida da extrema-direita
com demasiada leveza
A
s eleições em Itália, espe-
cialmente depois das elei-
ções na Suécia, estão a
levar a muitas declarações
de que a extrema-direita
está a subir na Europa. Um
dos maiores especialistas em direita
radical, extrema-direita e populis-
mo, Cas Mudde, da Universidade da
Georgia (EUA), alerta para o cuida-
do que é preciso ter com estas aÆr-
mações de curto prazo baseadas
num par de eleições e sem ter a con-
ta o crescimento dos partidos mas
sim o seu peso relativo numa paisa-
gem política mais fragmentada, o
que os faz sobressair.
Foi precisamente esse o caso com
duas das últimas eleições em que foi
notado um aumento da extrema-di-
reita ou da direita radical — Suécia
e França. Na Suécia, aponta Mudde,
os Democratas Suecos de Jimmie
Akesson subiram apenas três pontos
percentuais em comparação com a
votação de 2018, mais, “tendo em
conta a participação um pouco mais
baixa, a subida relativa
va foi na verda-
de de dois pontos percentuais”.
rcentuais”.
Em França, Marine Le Pen perdeu
as eleições com o resultado
esultado mais
alto de sempre. Mas em termos de
percentagem de eleitores
tores tendo em
conta a abstenção, subiu
ubiu apenas 4,6
pontos percentuais na segunda vol-
ta, sublinha Mudde.
Olhando para o resto esto da União
Europeia, sobressai a Hungria,
onde o partido de Viktor
ktor Orbán
conseguiu uma supermaioria
ermaioria
de dois terços em Abril,
ril, numa
eleição tão desequilibrada
ilibrada
que o opositor tinha diÆcul-
dade em comprar espaçospaço
publicitário em placards
ards
nas ruas (as empresas as
eram na maioria de e dos e está a enfra-
apoiantes de Orbán),
e com uma série de
medidas, como o
desenho dos círcu-
los eleitorais, favo-
ráveis do Fidesz.
Por isso, Mudde
considera que a
Hungria já não é
uma democracia e
os países
não inclui na lista dos
em que a extrema-direita
reita subiu.
Na semana passada, o Parlamento
Europeu declarou que a Hungria já
não é uma democracia.
Tirando a Hungria do quadro, o
caso que Mudde aponta de subida
de facto é o de Portugal (uma subida
maior pela irrelevância durante
anos, que foi uma excepção na
União Europeia), onde o Chega pas-
sou de 1,29% em 2019 para 7,18% em
Janeiro deste ano. Mudde não inclui
Espanha, onde haverá legislativas
em 2023, na sua análise.
Em 2019, o Vox registou uma subi-
da de mais de quatro pontos percen-
tuais para obter 15%. O partido de
Santiago Abascal entrou este ano
pela primeira vez num governo
regional em Espanha após um pacto
com o PP em Castela e Leão, embo-
ra não tenha conseguido replicar o
sucesso na Andaluzia, em Agosto (o
PP teve maioria absoluta).
As sondagens mais recentes dão
ao partido um apoio semelhante ao
das últimas eleições legislativas, à
volta dos 15%.
Quebra de “cordões
sanitários”
De resto, o investigador nota
a perdas
pe das
para estes partidos da Eslovénia,
lovénia,
com a derrota estrondosa do então
chefe de Governo Janez Jansa,
sa, admi-
rador de Donald Trump que era
também conhecido como “mare-
chal Twitto”. Houve ainda descidas
ligeiras deste tipo de partidos na
República Checa, Alemanha e
Noruega no ano passado, enquanto
Chipre e Países Baixos tiveram
pequenos ganhos no mesmo ano.
“A Bulgária é demasiado volátil para
incluir, e a Islândia não tem extre-
ma-direita”, diz ainda o investiga-
dor.
Em Itália, Mudde admite que as
sondagens mostram uma subida
assinalável da direita mais extrema,
do partido Irmãos de Itália, de Gior-
gia Meloni, descrito como “pós-fas-
cista”.
Mas acrescenta que, apesar de as
sondagens preverem um aumento
de cerca de 11 pontos percentuais
para os Irmãos de Itália, o bloco de
direita incluindo o partido tem
ganhos mais próximos de 3% a 4%
— e há ainda a registar potenciais
perdas para o Movimento 5 Estrelas,
diz, considerando que o partido fez
uma campanha muito à direita em
2018.
O académico não aborda em deta-
lhe como o peso relativo dos parti-
dos e a fragmentação da paisagem
A extrema-direita
(e não o ‘populismo’)
é a maior ameaça
para as democracias
em todo o mundo no
início do século XXI.
Matou a democracia
liberal na Hungria
(e possivelmente
na Índia), está
a tentar fazê-lo
no Brasil, na Polónia
e nos Estados Unidos
Cass Mudde
Universidade da Georgia (EUA)
política lhes dá maior importância
e inÇuência, mas nota que a subida
de votação destes partidos (em
alguns países) é apenas parte da his-
tória. “A integração dos partidos de
extrema-direita assim como a adop-
ção, por parte de outros partidos,
do seu framing [enquadramento das
questões e palavras usadas para se
referir a elas] e das suas posições é
pelo menos tão importante [como
os resultados eleitorais] e raramen-
te é referido pelos media.”
A quebra do “cordão sanitário”
em alguns países com partidos do
centro-direita ou direita a aceitar
governar com estes partidos, como
a Finlândia, Áustria e Itália (todos
governos que já não estão em fun-
ções), ou governos que adoptaram
algumas das exigências por exemplo
na política de imigração, como
aconteceu como o Governo de cen-
tro-esquerda na Dinamarca, contri-
buiu para a normalização destes
partidos. Embora, por vezes, a
experiência no poder não decorra
sem problemas, como dirá o antigo
líder da extrema-direita austríaca
Heinz-Christian Strache, apanhado
numa gravação a discutir oferecer
contratos públicos em troca de
Ænanciamento russo ao seu parti-
do.
Cas Mudde explicou que pôr em
contexto aÆrmaçõ
aÆrmações feitas agora
como “a extrema-direita
extrema-d está a subir
na Europa” a propósito
prop de Itália e
Suécia (quando, le lembra, em 2020
se decretava a “morte”
“mo destes par-
tidos) não é, de mmodo algum, uma
desvalorização do perigo que
representam.
“A extrema-d
extrema-direita (e não o
‘populismo’) é a maior ameaça
para as dedemocracias em
todo o mundo no início
do sé
século XXI”, subli-
nhou. “Matou a
dem
democracia liberal
na HHungria (e possi-
velm
velmente na Índia),
está a tentar fazê-lo
no Brasil,
B na Polónia
en nos Estados Uni-
dos,
que
quecê-la por toda a
Un
União Europeia.”
Viktor Orbán
(Hungria),
Marine Le Pen
(França) e
Jimmie
Akesson
(Suécia)
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8 • Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022

Espaço público

A arma contra a extrema-direita chama-se Europa

A
Itália prepara-se para eleger
Editorial uma primeira-ministra
xenófoba, racista e com
óbvias simpatias pela
memória de Benito
Mussolini, Giorgia Meloni. Será
apoiada pelo partido de um
Manuel Carvalho populista de extrema-direita, Matteo
Salvini, e por uma Ægura de plástico
com um longo rasto de corrupção,
Silvio Berlusconi. O cenário é
assustador, mas parece estar longe
de gerar o pavor da eleição de 2018,
quando Salvini e o Movimento 5
Estrelas do comediante Beppe Grillo
A União continua a ser tomaram o poder. A pouco e pouco,
um lugar de estabilidade a Europa vai-se habituando à
e segurança que nestes ascensão da extrema-direita. Sem o
poder dissuasor da União, estaria a
tempos angustiosos reviver o pesadelo dos anos de 1920.
nem os radicais da A chegada de Ursula von der Leyen
extrema-direita ousam à Comissão Europeia serviu de
questionar. É esse valor bálsamo para muitas dores e, com
excepção de uma cedência à Polónia,
que está a salvar produziu uma mudança auspiciosa:
a Europa as regras da democracia e do Estado
de direito consagradas nos tratados
são para cumprir. A Comissão não
tem meios para impedir Viktor
Orbán de prolongar a opacidade que
fomenta a corrupção ou de ameaçar
a liberdade de imprensa e a
independência judicial. Mas pode, e
deve, impor-lhe um custo: enquanto
a Hungria não extirpar os sinais de
uma “autocracia eleitoral”, como a
designou o Parlamento Europeu, não
recebe as volumosas transferências
Ænanceiras dos programas europeus.
Giorgia Meloni dizia que a União
Europeia era um bando de
“tecnoburocratas” desejosos de
impor um “plano soviético para
destruir as identidades nacionais e
religiosas”. Agora, “quer trabalhar na
observância dos regulamentos
europeus e com a Comissão
Europeia”. Não sendo crível que a
líder de um partido que tem como
emblema um símbolo fascista tenha
mudado de ideias, sobra outra
explicação para o novo discurso: o
cheque de 195,5 mil milhões de euros
que Bruxelas destinou à Itália.
Quando a extrema-direita prospera
num país fundador da União, que é
ao mesmo tempo a sua terceira maior
economia, quando avança em países
até há pouco politicamente estáveis
como a Suécia, há razões para alarme.
A democracia europeia está a sob uma
ameaça existencial. Não havendo
forma de mudar o sentimento de voto
de um eleitorado descrente, resta o
custo dessa opção democrática. A
democracia tem sempre um preço.
Quem não quiser pagar tem uma
alternativa: sair do bloco para
escapar às suas regras. Até à data,
porém, nem o mais visceral inimigo
do projecto europeu teve coragem de
o propor aos seus eleitores. Porque,
como se sabe, a União continua a ser
um lugar de estabilidade e segurança
que nestes tempos angustiosos nem
os radicais da extrema-direita ousam
questionar. É esse valor que está a
salvar a Europa.

CARTAS AO DIRECTOR
Desperdício,
improdutividade
e sustentabilidade
O desperdício instalado na nossa
sociedade, e que tão bem
retratado foi no recente artigo
sobre as instalações dos
tribunais, não parece preocupar
muita gente. É inacreditável o
que o Estado gasta por má gestão
e falta de planeamento — vide o
exemplo referido ou o das rendas
que os hospitais pagam à Estamo
— e de capacidade de decisão,
como a localização do aeroporto,
assim como os gastos com
administrações centrais,
fundações e comissões de
discutível importância, para não
falar em obras muitas vezes
interrompidas por falta de
Ænanciamento.
Mas também o desperdício
intelectual não utilizando
estudos técnicos sobre diversos
temas cruciais como a gestão das
Çorestas e agricultura enquanto
se perde tempo com assuntos
desnecessários como o acordo
ortográÆco. E nesta época de
crise não seria altura de se pensar
não só nas exportações mas
também em reduzir importações,
voltando a produzir com maior
eÆcácia e qualidade muito do que
nos torna dependentes de outros
países?
Talvez que com maior
produtividade e menor
desperdício a sustentabilidade da
Segurança Social fosse menos
problemática e não o travão a
reformas essenciais na economia
e Æscalidade.
Isabel Ribeiro
Lisboa
Julgamento
de Pedrógão
O julgamento teve o desfecho
que era de esperar — a
absolvição. A este respeito
permita-me apenas três ordens
de considerações: a acusação do
Ministério Público era um
procedimento processual
criminal que se impunha, não
tanto pela convicção dos crimes
cometidos, mas sobretudo para
que acerca dos mesmos não
restassem dúvidas no espírito
dos portugueses quanto à forma
como os bombeiros procederam,
não obstante o trágico resultado;
por outro lado, foi a forma de
enaltecer e reconhecer o
empenho, a dedicação e o
sacrifício a que estes soldados de
paz “contra o fogo” se sujeitam,
muitas vezes mais não fazendo
porque não podem. Lamento, no
entanto, profundamente, os
trágicos acontecimentos,
nomeadamente as mortes e os
danos sofridos, que poderiam
tocar a qualquer um que
estivesse nas mesmas
circunstâncias; Ænalmente
caberá, isso sim, ao Estado
ressarcir os prejuízos na sua
globalidade, atendendo que ao
mesmo cabe já, há muito,
resolver o nefasto problema dos
incêndios, qualquer que seja a
sua origem. É sabido que cerca
de 78% das Çorestas em Portugal
são privadas; e se os
proprietários não facilitam a
actividade dos bombeiros no seu
interior, abrindo vias de acesso e
clareiras, então cabe ao Estado
tomar posse administrativa
temporária das mesmas, sem pôr
em causa o direito de
propriedade dos titulares, para
facilitar essa tarefa. Uma última
palavra vai para a
responsabilidade das câmaras
municipais e juntas de freguesia
no papel de Æscalização e
monitorização que podem
exercer nesta tarefa — o que, pelo
menos até hoje deixa muito a
desejar.
António Bernardo Colaço
Lisboa
Corte nas pensões
— uma perspectiva
diferente
Admita-se um pensionista
recente com reforma de
1000€/mês, inÇação de 8% este
ano e 4% no ano seguinte.
Considere-se um seu colega de
trabalho, com idêntica situação
laboral, mas que só se reforma
em 2023 para não sofrer corte
pela idade.
Se a reforma do primeiro fosse
agora actualizada com os 8% da
lei, a mesma passaria para
1080€/mês e 1123€/mês no ano
seguinte. E neste ritmo
continuaria.
Quanto ao segundo, a sua
reforma pouco diferiria dos
1000€/mês, tendo em conta a
sua carreira e a pouco
signiÆcativa actualização salarial
no ano anterior à concessão da
reforma. Contudo a sua pensão
seria actualizada no ano seguinte
para apenas 1040€/mês, muito
menor do que a do seu ex-colega
de trabalho. A causa, como se
referiu, seria este ter partido de
um valor-base muito superior,
em virtude de uma inÇação
pontual deste ano muito elevada.
E o fosso iria aumentando nos
anos seguintes.
Conclusão: “Pensionista Ælho e
pensionista enteado.” Nesta
perspectiva, e sem sequer levar
em consideração a questão da
insustentabilidade futura da
Segurança Social, poder-se-ia
dizer que a decisão do Governo
faz sentido.
Reginaldo G. Gonçalves
Alfragide

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ESCRITO NA PEDRA As lágrimas inteligentes
É sempre
melhor que Ainda ontem
quem nos
incute medo
tenha mais
medo do que
N
nós Umberto Miguel Esteves Cardoso
Eco (1932-2016), ão basta ver fotograÆas de
Roger Federer e Rafael Nadal a
escritor e chorar por ocasião do último
jogo de ténis de Federer. É
filósofo italiano preciso ver o Ælme. Ou um
excerto dele.
Chorar faz parte da inteligência destes dois
homens tão diferentes, tão rivais, tão
O NÚMERO parecidos. Desencadeiam-se um ao outro,
500
estes dois grandes desportistas que nunca
mais veremos a jogar um com o outro.
Durante anos desencadearam-se a jogar
ainda melhor do que já jogam. Na sexta-feira,
desencadearam-se a chorar, como dois
meninos, como também se poderiam ter
desencadeado a rir, ou a bocejar.
Choram a passagem do tempo, o
envelhecimento, a queda que todas as coisas
é o número de bolsas que a têm para acabar, por muito boas que sejam,
Gulbenkian atribuiu a alunos aliás, particularmente quando são muito boas
carenciados e com boas notas e — o que é raro — quando acabam muito bem.
ZOOM A DESPEDIDA DO TENISTA ROGER FEDERER DA COMPETIÇÃO NA LAVER CUP, EM LONDRES
Feliz e em lágrimas, o tenista Roger Federer despediu-se na sexta-feira da competição, após “uma viagem perfeita” ao
longo da carreira. O suíço garantiu estar “feliz”, mesmo após ter perdido o último encontro como profissional na Laver Cup
Não há excepções para os desportistas
perfeitos, para os que se mantêm mais em
forma, para os que foram considerados os
melhores de sempre.
A tristeza é a mesma. Mal chegam aos 22
anos, já há jogadores mais novos a emergir
como papoilas na Primavera, desejosos de
derrotar os velhadas, cuja virtude
Amílcar Correia, Andreia Sanches, David Pontes, Tiago Luz Pedro
principal passa a ser, de um dia para o
outro, a maldita “experiência”, a
experiência dessa outra palavra maldita,
dos “veteranos”.
Federer e Nadal (cujas idades somam só 71
anos) foram derrotados por Jack Sock e
Frances Tiafoe (54 anos de soma). É uma
diferença de 17 anos, que é praticamente a
idade do número 1 do ténis, Carlos Alcazar,
que fez 19 anos em Maio.
O tempo é que é a tartaruga da fábula da
lebre e da tartaruga: o tempo ganha sempre.
Lucas Freitas; Rui Barros (jornalista de dados) Política Marta Moitinho Oliveira
A lebre começa bem mas, a certa altura,
começa a perder velocidade e começa, cada
vez mais, a precisar de dormir e descansar.
A lebre vive quatro anos, a tartaruga vive
dez vezes mais. Quem é que Æca a ganhar? É a
tartaruga, por 36 anos. Ora, 36 anos é
precisamente a idade de Nadal. E Federer só
tem mais cinco aninhos.
Choram porque sempre souberam que a
corrida contra o tempo estava perdida.
Pedro Ferreira Esteves, Isabel Aveiro (editores), Cristina Ferreira, Sérgio Aníbal
Mas só agora chegou o tempo de a perder.
ANDREW BOYERS/ACTION IMAGES/REUTERS
(produção) Copy-desks Aurélio Moreira, Florbela Barreto, Manuela Barreto, Rita
Proprietário PÚBLICO, Comunicação Social, SA | Sede: Lugar do Espido, Via
O PÚBLICO e o seu jornalismo estão sujeitos a um regime de auto-regulação
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10 • Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022
Espaço público
Percurso inacabado da Economia de Francisco
Frei Bento Domingues O.P.
O Papa desencadeou um
movimento porque, em vez
de promover a vida dos
mais pobres, a economia
arruína-os cada vez mais
1.
A característica do pontiÆcado do
Papa Francisco não é a de
multiplicar iniciativas e
realizações de ordem pessoal.
Desde as tentativas de reforma da
Cúria, ao envolvimento com o
vasto mundo dos migrantes que fogem da
fome e das guerras; da visão de um mundo a
partir dos pobres e de todas as periferias
existenciais; de despertar a sociedade para
uma concepção da vida como realidade
intergeracional, intercultural e
inter-religiosa; de não descansar enquanto a
pedoÆlia e o seu encobrimento, por parte
do clero, não se tornem empenhamento de
toda a Igreja e da sociedade para acabar
com essa tragédia; de fazer do Sínodo dos
Bispos o Sínodo de toda a Igreja, mostrou
sempre que procura, em todas as suas
iniciativas, o envolvimento crescente de
todas as pessoas de boa vontade.
Para este Papa, desde Março 2013, as suas
questões são as de toda a humanidade, a
fraternidade universal, como manifestou na
Laudato Sí’ (a ecologia integral, cuidado da
Casa Comum), na Carta A Fraternidade
Humana em prol da paz mundial e da
convivência comum — a quatro mãos — assim
como na Fratelli Tutti. Não são documentos
para Ægurar nas estantes religiosas, são
tentativas de mobilização de pessoas e
grupos que podem e devem trabalhar por
um mundo outro, um mundo de paz activa.
São convocatórias. Como mostrou nos
encontros com os movimentos populares,
trata-se sempre de olhar o mundo a partir de
baixo, a partir do mais elementar Ægurado
com os 3T: terra, tecto e trabalho, isto é, três
direitos sagrados.
No seu documento programático, A
Alegria do Evangelho (2013), denunciou a
economia que mata, expressão que teve um
grande eco, tanto entre os que a apoiavam —
católicos ou não — como entre os que a
censuravam, com o argumento de que o
Papa não é um economista. Teria exorbitado
da sua missão de pastor da vida espiritual.
Deixe, de uma vez para sempre, a política
económica para os debates entre
economistas, nas suas diversas orientações.
De facto, não conheço nenhuma obra de
ciência económica assinada pelo Papa
Francisco. Também neste domínio,
revelou-se um bom pastor: desencadeou um
A situação actual está
cheia de imprevistos,
também de ordem
económica, a partir
da invasão da Ucrânia
pela Rússia de Putin
e também das suas
ameaças cada vez
mais loucas
movimento — A Economia de Francisco —
precisamente porque a economia dominante
não tem em conta o espírito do Santo de
Assis, em vez de promover a vida dos mais
pobres, arruína-os cada vez mais. E ainda
neste domínio, segue Æel ao seu estilo: não
faz aquilo que não sabe, mas faz fazer quem
sabe ou pode vir a saber.
2. É paradoxal a minha situação ao
escrever esta crónica. Ao elaborá-la, só podia
conhecer uma parte do percurso da
chamada Economia de Francisco e o anúncio
de um evento do futuro, a realizar-se de 22 a
ETTORE FERRARI/EPA
24 deste mês. Quando aparece publicada, é
sobre um evento que já terminou e no qual
não participei. Dir-se-á que o melhor seria
ignorar o que, por outro lado, não quero
nem posso ignorar.
O que desejo destacar é que o evento, em
Assis, com a participação de tantos jovens de
tantos países e a presença activa do Papa
Francisco, não pode ser a clausura de um
percurso. Seria uma traição ao convite que
Bergoglio enviou, no dia 1 de Maio de 2019, a
economistas, agentes de mudança,
empreendedores e empreendedoras com
menos de 35 anos em todo o mundo. Seria
também trair o trabalho online dos últimos
dois anos que não se deixou vencer pela
pandemia, envolvendo milhares de jovens
de 120 países dos cinco continentes.
O Papa designou o professor Luigino Bruni
para director cientíÆco deste grande
projecto. Nesta reunião sem precedentes,
além dos jovens, participarão também
muitos especialistas de renome, incluindo
Prémio Nobel da Paz de 2006, Muhammad
Yunus, Prémio Nobel da Economia de 1998,
Amartya Sen, Jeèrey Sachs ou Stefano
Zamagni, entre vários outros, como os
portugueses, Ricardo Zózimo, Professor da
U. Nova, e Américo Mendes, da UCP Porto.
Toda a movimentação desenvolvida, desde
2019, não pode ter prazo de validade.
O que aconteceu, nos últimos três dias, foi
a realização de um programa preparado ao
longo do tempo. O perigo destas realizações,
por mais que se diga o contrário, é
confundi-las com a lógica dos festivais:
realizou-se e acabou. No entanto, é preciso
dizer que, desde há muito, tudo tem sido
feito para contrariar essa tendência. Um dos
sinais foi dado no dia 24, ao apresentar ao
Papa um pacto que ele e os jovens assinaram
em conjunto, de forma pessoal e colectiva
para se comprometerem neste caminho
rumo a uma economia com alma, que não
deixa ninguém para trás, como tinha
explicado a jornalista da equipa de Economia
de Francisco, Lourdes Hércules.
3. A esperança é que a Economia de
Francisco faça parte de um processo mais
amplo que possa levar os jovens e os adultos a
comparar as suas propostas com importantes
realidades da economia, Ænança e energia. É
continuar a confrontar-se e confrontar os
grandes da terra para que o acontecimento de
Assis não seja só um sonho.
Quando tantos jovens se disponibilizam a
trabalhar para dar substância aos sonhos e
experimentar a profecia de uma economia,
que não deixa ninguém para trás e que sabe
viver em harmonia com as pessoas e com a
terra, toda a Igreja se deve alegrar e sentir o
dever de se informar, seguir e acompanhar
esse processo, evitando a tentação de querer
encaixotar os jovens e os seus projectos em
estruturas preexistentes, como tinha dito a
irmã Alessandra Smerilli, secretária do
Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento
Humano Integral, que é parte desta iniciativa.
Importa, agora, dar a conhecer o percurso
realizado até ontem e partir para uma etapa
que divulgue, no ensino secundário e
universitário, nas empresas, nos movimentos
sindicais, nas Igrejas, para que saibam
combinar o culto com esta nova cultura
económica.
Como toda esta movimentação aconteceu
a partir de iniciativas católicas, tentando
envolver a sociedade e as igrejas cristãs e
outros movimentos religiosos e humanistas,
é fundamental dispor de um calendário de
avaliação dos passos que se forem dando.
Não para reproduzir o acontecimento
emblemático dos últimos dias, mas pelo
contrário, tanto ao nível da investigação
como das realizações, perguntar-se sempre o
que está a acontecer de novo.
Não estou a dizer nada de inédito.
Apetece-me lembrar o que li numa entrevista
de 2019 de Ricardo Zózimo, que envolve
também Américo Mendes — Há três coisas
que eu quero levar: o nosso entusiasmo por
esta iniciativa, a nossa vontade de que isto não
seja um ponto de chegada nem um ponto de
partida, mas um ponto de celebração e de nos
lançar para a frente, ideias para conseguir
mudar os modelos económicos [1].
A situação actual está cheia de
imprevistos, também de ordem económica,
a partir da invasão da Ucrânia pela Rússia de
Putin e também das suas ameaças cada vez
mais loucas.
[1] Agência Ecclesia, 18/7/2019; cf. também
Manuel Brandão Alves (7Margens, 20/9/2022).
Escreve ao domingo
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O que fazer com a extrema-direita?
Sem fronteiras
Teresa de Sousa
A vitória anunciada de
Meloni acontece no pior
momento possível, quando
a União Europeia precisa
de unidade e determinação
1.
A interrogação no título desta
crónica faz sentido? À primeira
vista, a resposta seria simples:
combatê-la e isolá-la. Mas nada é
simples no que diz respeito aos
novos partidos extremistas de
direita, que se consolidam rapidamente nas
democracias europeias. Incluindo a
designação que lhes deve ser dada.
Extrema-direita? Direita radical? Direita
ultraconservadora? Populista? Nacionalista?
Ou mesmo fascista ou semifascista, a
expressão a que Joe Biden utilizou para
designar o trumpismo?
A dificuldade está em que não há uma
identificação imediata entre a extrema-direita
dos anos entre as duas guerras mundiais ou
de movimentos políticos neofascistas e
neonazis que reemergiram em alguns países
europeus pouco depois da vitória das
democracias na Segunda Guerra Mundial. São
fenómenos, ao mesmo tempo, velhos e
novos, com uma inegável capacidade de
adaptação ao mundo em que vivemos e que
aceitam as regras da democracia para
chegarem ao poder. Não fazem paradas
militares nas ruas, não vestem camisas
castanhas, não parecem ser, no geral,
ameaçadores.
Um exemplo, que é a razão desta crónica:
logo à noite, Giorgia Meloni, a líder dos
Irmãos de Itália, será provavelmente a escolha
dos italianos para chefiar o próximo Governo
de Roma. Não há nada de ameaçador na sua
figura. É relativamente jovem, elegante, usa
cores suaves e roupas de boas marcas
italianas. É carismática sem ser ameaçadora.
É forte sem deixar de ser feminina. Suavizou o
seu discurso para não assustar os eleitores.
Não sabemos se fez o mesmo às suas ideias.
Rodeou-se de outros dois líderes de aspecto
bastante boçal (se me é permitida a palavra),
que ajudam a valorizar a sua imagem. Silvio
Berlusconi, o velho líder da Força Itália, de 86
anos e inúmeras operações plásticas, que já
foi primeiro-ministro e que conseguiu ser
“Trump antes de Trump”. Matteo Salvini, o
líder da Liga, que já foi o segundo partido
mais votado de Itália, cuja ideologia não
andará muito distante da de Meloni, mas cujo
discurso mais brutal e outras circunstâncias
políticas nunca lhe permitiram chegar à
liderança do Governo. Participou nos
gabinetes de Giuseppe Conte, uma figura
independente escolhida precisamente para
tornar mais aceitável a aliança entre a Liga e o
movimento populista Cinco Estrelas,
defensor de uma espécie de democracia
electrónica directa.
Ainda não sabemos qual será o equilíbrio
Ænal entre os três partidos da coligação.
Sabemos que Meloni conseguiu levar os
Irmãos de Itália dos 4,3% que obteve nas
eleições de 2018 para valores que as
sondagens colocavam há 15 dias acima dos
25%. Durante algum tempo, ainda se admitia
a possibilidade de o Partido Democrata, de
centro-esquerda, liderado pelo antigo
primeiro-ministro Enrico Letta, ser o partido
mais votado, mesmo que sem as mesmas
condições para formar governo — falharam
todas as tentativas de coligações
pré-eleitorais com outros pequenos partidos
de centro e de esquerda. Hoje, é provável
que Æque em segundo lugar, dando a
primazia a Meloni.
2. Mas há uma questão que já se pode
colocar enquanto se espera pelos resultados:
como vão as democracias europeias lidar com
esta nova realidade política? Até agora, na sua
maioria, dominou uma estratégia de
isolamento destes partidos — o famoso “cordão
sanitário”. Continua a ser assim em França ou
na Alemanha, por exemplo, com resultados
opostos. Em França, a União Nacional de
Marine Le Pen cresce de eleição para eleição e
é já hoje o segundo maior partido francês. Na
Alemanha, a Alternativa para a Alemanha,
que já chegou a ser o maior partido da
oposição à “grande coligação” (CDU/CSU-
SPD) que governou a Alemanha nos últimos
anos de Merkel, já perdeu esse lugar e caiu
eleitoralmente, embora não demasiado.
A Suécia é outro caso recente em que os
Democratas Suecos, de extrema-direita,
Æcaram em segundo lugar nas eleições de 11
de Setembro, preparando-se para fazer parte
de uma coligação de governo (ou
parlamentar), liderada pelos Moderados de
centro-direita, que Æcaram em terceiro lugar
(o primeiro lugar coube aos
sociais-democratas, que ganham sempre as
eleições desde 1915, mas que não têm
condições para formar uma coligação
maioritária à esquerda). Na Suécia, a
estratégia maioritária foi, até agora, de
YARA NARDI/REUTERS
O que fazer com
a extrema-direita
europeia? Isolá-la está
a revelar-se ineÄcaz.
Integrá-la ou aceitar
a sua ‘normalização’?
É um risco
isolamento do partido de extrema-direita.
Aparentemente, falhou.
Em suma, olhando para a paisagem política
europeia, não é possível dizer que a estratégia
de isolamento ou de “demonização” tenha
sempre resultado. “Tratar os nacionalistas
como párias não impediu a sua ascensão”,
escreve a Economist.
Outra conclusão relevante: os partidos da
direita mais extrema e mais nacionalista têm
sabido adaptar o seu comportamento à
cultura política enraizada nas democracias
europeias.
3. O que diz Meloni? Que a “globalização”
destrói a identidade dos povos e das nações;
que a Itália tem de deixar de “lamber as
botas” dos franceses e alemães na União
Europeia, para passar a defender os seus
interesses nacionais; que a família tradicional
deve ser defendida por todos os meios — o seu
lema de campanha é “Deus, Pátria e Família”;
que é preciso combater os lobbies LGBTQ+,
que destroem os valores cristãos (na Itália,
católicos) e que explicam a decadência do
Ocidente. Le Pen defende o mesmo. Ou
Orbán. A questão é que estão criadas, nas
democracias ocidentais, as condições para
que o discurso de extrema-direita encontre
eco em camadas cada vez mais amplas da
população, que se sentem vítimas da
globalização e da imigração e abandonadas
por uma elite que ignora os seus problemas.
Não é tanto a questão dos seus rendimentos.
É muito mais a questão dos seus
ressentimentos.
Os partidos moderados do sistema — à
Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022 • 11
esquerda e à direita — ainda não conseguiram
encontrar uma resposta a estes novos
problemas. Os extremos vão crescendo.
Consolidam-se. Aproximam-se cada vez mais
do poder. São diferentes, adaptam-se as
circunstâncias nacionais, mantêm um
elemento em comum: a xenofobia.
4. Meloni suavizou as suas posições
políticas, à excepção dos imigrantes, em
relação aos quais o discurso do ódio e da
violência é indisfarçável. Defende que a
Marinha de Guerra italiana deve impedir
qualquer barco de imigrantes de chegar à
costa italiana. Responsabiliza os imigrantes
pelo aumento da criminalidade ou dos casos
de violação. Na Suécia, foi o principal trunfo
dos Democratas Suecos. Nos dois países, o
número de imigrantes e refugiados aumentou
drasticamente nos últimos anos. A Itália está
directamente exposta aos Çuxos que vêm do
Norte de África e do Médio Oriente através do
Mediterrâneo. A solidariedade dos seus
parceiros europeus não foi propriamente
exemplar — cada um preferiu tratar de si.
“Denunciar os racistas e os xenófobos é uma
causa justa. Mas tratá-los como intocáveis é
aumentar a sua mística eleitoral”, escreve
ainda a revista britânica. É um dilema moral.
5. O que mudou também no discurso da
extrema-direita europeia, incluindo em
Itália, foi a questão europeia. Deixaram de
defender o abandono da União e do euro. Era
demasiado impopular. No Conselho Europeu
e nas instituições europeias, a sua estratégia
será tentar pôr areia na engrenagem. Como
faz hoje a Hungria de Orbán ou a Polónia dos
nacionalistas do Justiça e Paz. Meloni sabe
que não pode dispensar Bruxelas, se quiser
manter o acesso ao Programa de
Recuperação e Resiliência de 200 mil
milhões de euros ou se não quiser que os
juros da dívida pública (150% do PIB)
disparem. Seria um desastre.
6. A vitória anunciada de Meloni acontece
no pior momento possível. Quando a União
Europeia precisa de unidade e determinação
para enfrentar a guerra de Putin na Ucrânia e
quando os seus efeitos económicos e sociais
prometem um Inverno difícil para os
europeus. A maioria da população italiana
está ao lado da Ucrânia. A extrema-direita
europeia nunca escondeu o seu fascínio por
Putin e pela sua imagem do homem-forte.
Meloni, que em tempos já admirou o líder
russo, soube alinhar-se com a NATO e a UE
contra a guerra de Putin. Defendendo o apoio
militar à Ucrânia e as sanções. Salvini e
Berlusconi, pelo contrário, nunca esconderam
a sua amizade com o autocrata russo.
Berlusconi teve o descaramento de dizer que
a invasão russa era apenas para substituir o
Governo de Kiev por “pessoas decentes”.
E voltamos à pergunta inicial: o que fazer
com a extrema-direita europeia? Isolá-la está a
revelar-se ineÆcaz. Integrá-la ou aceitar a sua
“normalização”? É um risco.
Vivemos tempos novos. Ainda não sabemos
como lidar com eles.
Jornalista. Escreve ao domingo
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12 • Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022
Política São 16 os “guardiões” dos documentos que ajudam a contar esta história
Lá em baixo,
no arquivo
do Parlamento,
“património
de todos”
A Constituição de 1822 celebrou
o seu bicentenário. Tal como o Arquivo
Histórico Parlamentar, onde se encontra
o primeiro texto constitucional
Reportagem
Ana Bacelar Begonha Texto
Daniel Rocha Fotografia
É sobretudo conhecido por albergar
o hemiciclo onde os deputados se
reúnem todas as semanas, mas
debaixo do solo do Palácio de São
Bento esconde-se um sem-Æm de
corredores com toda a produção
legislativa do país desde a
Monarquia Constitucional. Esta
semana, dezenas de documentos
saíram das caixas para serem
exibidos na exposição A primeira
Constituição de Portugal — 1822, que
se inaugurou na quinta-feira na
Assembleia da República. Entre
eles, a Constituição que deu o nome
à mostra, juntamente com a
documentação relativa à
preparação e à aprovação do texto
que fez na sexta-feira 200 anos.
Da parte dos funcionários que
todos os dias trabalham no Arquivo
Histórico Parlamentar há vontade
de preservar esse espólio, mas não
sem o mostrar aos cidadãos. “Isto é
património de todos”, diz ao
PÚBLICO a directora, Manuela
Magalhães, enquanto manuseia
com luvas o manuscrito
constitucional, de capa azul
aveludada e debruada a Æo de prata.
“Isto” são actos eleitorais, diários
das sessões plenárias, actas das
comissões parlamentares, projectos
de lei, propostas de resolução,
registos biográÆcos dos deputados,
livros de recenseamento, espólios
doados por famílias de antigos
deputados… — a lista continua — que
se foram acumulando desde a
formação das Cortes Constituintes
até aos dias de hoje nas antigas
cavalariças do Palácio de São Bento.
Tudo remonta ao dia 24 de
Janeiro de 1821 quando se realizou a
primeira sessão preparatória dos
trabalhos das Cortes Constituintes.
Embora o Arquivo tenha sido
formalmente criado em 1977, a acta
dessa sessão plenária já previa que
se depositassem os testemunhos
primordiais do constitucionalismo
português “no arquivo das Cortes”.
“Houve sempre esse cuidado”,
explica a responsável pelo Arquivo, contas de gerência de legislaturas
que tal como a Constituição de 1822 passadas e materiais de campanhas
cumpre já dois séculos. eleitorais dos partidos — no
Embora sejam poucos — a equipa chamado arquivo corrente e
é constituída por 16 pessoas, o que intermédio), desce-se à zona
levou a direcção a recorrer a histórica, onde o barulho das
outsourcing —, os funcionários não máquinas que controlam a
só actuam como “guardiões” destes temperatura do ar faz parecer que
documentos, como ainda reúnem estamos numa fábrica. Abertas as
esforços para os organizar, portas, o cheiro a humidade e a
conservar, digitalizar, papel envelhecido ataca-nos de
reacondicionar, descrever ou imediato. Ninguém diria ao ver a
disponibilizar na base de dados modesta sala de leitura do Arquivo
online. no piso superior, mas são sete os
No dia em que visitamos o depósitos que se estendem ao longo
arquivo, uma conservadora trata de labirínticos corredores formados
um mapa da Assembleia da por estantes no subsolo do
República de 1900, um jovem Parlamento. Nessas estantes,
funcionário contratado ao abrigo de centenas de caixas de papel livre de
um projecto da Santa Casa da ácido, organizadas por datas,
Misericórdia digitaliza os primeiros fundos ou colecções.
actos eleitorais monárquicos e no Do outro lado do Palácio, existe
gabinete do lado, uma outra ainda um oitavo depósito, casa de
funcionária reacondiciona uma uma equipa de dois restauradores
pasta sobre o acompanhamento da que se dedicam a recuperar os actos
situação em Timor-Leste de 2000, eleitorais monárquicos que não
uma tarefa que implica retirar todos sobreviveram ao jugo do tempo. É
os agrafos presos aos papéis, que esta a documentação mais
com os anos foram enferrujando. requisitada do Arquivo, sobretudo
Ainda noutra sala, uma os cadernos de recenseamento,
colaboradora transfere reportagens maioritariamente por historiadores.
fotográÆcas de eventos do Mas tudo o que ali se encontra pode
Parlamento para o servidor do ser consultado — com a excepção de
Arquivo. informações sobre dados pessoais
Passadas as salas onde os dos deputados ou das comissões de
funcionários trabalham (e onde inquérito —, seja do tempo da
neste momento se acumulam as Primeira República, do Estado Novo
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ou das assembleias que se seguiram
à revolução de Abril.
Como nem só de documentos se
faz o arquivo, existe também uma
pequena câmara fria para conservar
as fotograÆas históricas, tanto
aquelas impressas em papel, como
zincogravuras ou negativos em
vidro. Muito desse material tem
também já mais de um século e
pertence a Joshua Benoliel,
nomeadamente os afamados
registos da proclamação da
República na varanda do Palácio de
São Bento em 1911.
As bobines das primeiras
gravações das sessões plenárias (no
início deste século) e os vídeos hoje
Ælmados para o Canal Parlamento
também têm a sua morada no
Arquivo e uma funcionária dedica-se
quase em exclusividade a indexar
essas Ælmagens para facilitar a
correlação de pesquisas. É um
trabalho “moroso”, admite Manuela
Magalhães, mas é isto que permite
saber, por exemplo, tudo aquilo que
um determinado deputado disse
sobre um determinado tema.
Se antes o Arquivo recebia 300 a
400 caixas só com documentação
das comissões parlamentares de
cada legislatura, por exemplo, neste
momento recebe apenas umas 20,
fruto da cada vez mais acelerada
desmaterialização. Em
contrapartida, estão “inundados”
por outros suportes — pens,
disquetes, cassetes, bobinas ou CD
— alguns dos quais já nem são
legíveis.
Actas, pojectos de lei, diários de Embora esse esforço de
sessões plenárias... das Cortes digitalização do Parlamento tenha
Constituintes aos dias de hoje vantagens, desde logo porque
ocupa menos espaço num arquivo
já a atingir a sua capacidade,
Manuela Magalhães questiona se o
acervo das legislaturas mais
recentes poderá sobreviver um
bicentenário como o das primeiras
Cortes Constituintes. “A minha
preocupação é o futuro”, diz a
directora do Arquivo. “O papel é o
suporte que está provado que dura
mais anos. As pessoas acham que é
mais seguro guardar tudo num
A minha computador, mas tem de se pensar
na leitura. Confesso que é um susto
preocupação imaginar qual é a informação que
é o futuro. As existirá daqui a 200 anos.”
A exposição A Primeira
pessoas acham que Constituição de Portugal — 1822 abriu
é mais seguro ao público na quinta-feira na Sala
dos Passos Perdidos com a presença
guardar tudo do Presidente da República,
num computador. Marcelo Rebelo de Sousa, do
presidente da Assembleia da
Confesso que República, Augusto Santos Silva, e
é um susto do presidente das Comemorações
dos 200 anos do Constitucionalismo
imaginar qual Português, o historiador Guilherme
é a informação d’Oliveira Martins.
No âmbito das Jornadas
que existirá daqui Europeias do Património, a
a 200 anos exposição está aberta ao público
neste Æm-de-semana e continuará
Manuela Magalhães patente até ao dia 31 de Dezembro
Directora deste ano.
Carta Aberta – solidariedade
com os democratas do Brasil
Opinião
Com a aproximação das eleições no
Brasil, marcadas para dia 2 de
outubro, manifestamos a nossa
profunda preocupação com as
ameaças sistemáticas às instituições
democráticas. O sistema de votação
eletrónica tem sido alvo de ataques
por parte do Presidente Jair
Bolsonaro, tendo como objetivo
disseminar desinformação sobre a
legitimidade e integridade dos
processos eleitorais, e atacar
publicamente as entidades
eleitorais independentes. À luz
destes graves e demasiado
familiares desaÆos à democracia do
Brasil, Portugal tem o dever de estar
atento a todas as iniciativas que
ameacem incitar à violência política
no país e minar a integridade do seu
processo eleitoral.
Em 18 de Julho de 2022, numa
reunião com o corpo diplomático, o
Presidente Bolsonaro declarou que
“o sistema (eletrónico) é
completamente vulnerável”, sem
apresentar qualquer prova de
fraude. Esta não foi a primeira vez
que tentou desacreditar as
instituições eleitorais brasileiras.
Nos últimos anos, tem promovido
ativamente uma campanha que põe
em causa o sistema eletrónico,
atacou a imparcialidade do
Supremo Tribunal Federal e do
Supremo Tribunal Eleitoral do
Brasil, e ameaçou que só terminaria
o seu atual mandato sendo “preso,
morto ou vitorioso”.
A retórica imprudente e perigosa
de Jair Bolsonaro sobre a fraude
eleitoral suscita sérios receios sobre
uma transferência pacíÆca de poder
se perder. Em Junho, prometeu “ir
para a guerra” se necessário para
impedir uma eleição “roubada”. A 7
de Setembro de 2021, exortou os
seus apoiantes a atacar o Supremo
Tribunal do país. O Presidente
Bolsonaro apelou também às forças
armadas para que interviessem no
processo eleitoral, conduzindo uma
contagem paralela dos votos, uma
função constitucionalmente
reservada à Justiça Eleitoral do
Brasil. Ao fazê-lo, põe em risco os
mandatos constitucionais e a
neutralidade dos militares, uma
preocupação signiÆcativa, dadas as
recentes declarações de líderes
militares brasileiros de alto nível,
tais como o chefe da Marinha do
Brasil, aparentemente apoiando as
alegações de fraude eleitoral do
Presidente Bolsonaro.
À medida que as eleições
brasileiras se aproximam,
Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022 • 13
Portugal tem
o dever de estar
atento a todas
as iniciativas que
ameacem incitar
à violência
política
registamos com preocupação o
risco signiÆcativo que tal retórica e
ações representam para a
perspetiva de um processo eleitoral
pacíÆco. O chefe do Tribunal
Eleitoral brasileiro advertiu em
Julho que o país corre o risco de
sofrer distúrbios, mesmo mais
graves do que a insurreição de 6 de
Janeiro, no Capitólio nos EUA, e já
há provas de que a violência política
está a aumentar acentuadamente. O
risco de violência política é ainda
maior para candidatos de
populações vulneráveis, incluindo
mulheres, LGBTIQ+, indígenas, e
comunidades afro-brasileiras. De
acordo com um inquérito
conduzido pelo Instituto Marielle
Franco, quase 100% dos candidatos
negros declararam estar sujeitos a
pelo menos um tipo de violência
política nas eleições de 2020. Esta
realidade é exacerbada pelo
aumento dramático do número de
armas em circulação no Brasil
desde que Bolsonaro tomou posse,
o que já levou à ocorrência de
assassinatos durante o decorrer da
campanha.
Num momento tão perigoso para
a democracia em todo o mundo e
num momento tão crucial para a
democracia brasileira em particular,
estamos solidárias e solidários com
Política
os milhões de brasileiros de todo o
espectro político, incluindo
centenas de líderes da sociedade
civil, religiosos, políticos e
empresariais, que denunciaram
publicamente as ameaças à
democracia do Brasil. Devemos
repudiar todas as tentativas de
rejeitar os resultados eleitorais, de
reprimir manifestações públicas
pacíÆcas, de prejudicar a
capacidade dos grupos minoritários
de exercerem com segurança os
seus direitos políticos, de atacar a
imprensa e os defensores dos
direitos humanos, de instigar os
políticos à violência ou de fazer com
que as Forças Armadas interÆram
no processo eleitoral. Como
deputados da Assembleia da
República, comprometemo-nos a
continuar a trabalhar para
assegurar que as históricas e
importantes relações de amizade e
de cooperação entre Portugal e o
Brasil continuem a assentar num
compromisso partilhado com os
valores democráticos e os direitos
humanos, começando pelo respeito
absoluto por eleições livres e justas.
Subscrevem:
Alexandra Leitão — deputada
Partido Socialista; Alma Rivera —
deputada Partido Comunista
Português; Capoulas Santos —
deputado Partido Socialista;
Diogo Leão — deputado Partido
Socialista; Edite Estrela —
deputada Partido Socialista;
Eunice Pratas — deputada do
Partido Socialista; Francisco
César — deputado Partido
Socialista; Inês Sousa Real —
deputada Pessoas-Animais-
-Natureza; Isabel Moreira —
deputada Partido Socialista;
Jamila Madeira — deputada
Partido Socialista; Joana
Mortágua — deputada Bloco de
Esquerda; João Dias — deputada
Partido Comunista Português;
José Soeiro — deputado Bloco de
Esquerda; Maria João Castro —
deputada Partido Socialista;
Mariana Mortágua — deputada
Bloco de Esquerda; Nathalie
Oliveira — deputada Partido
Socialista; Paulo Pisco —
deputado Partido Socialista;
Pedro Filipe Soares — deputado
Bloco de Esquerda; Porfírio Silva
— deputado Partido Socialista;
Ricardo Lino — deputado Partido
Socialista; Romualda Fernandes
— deputada Partido Socialista; Rui
Tavares — deputado Livre;
Susana Correia — deputada
Partido Socialista; Tiago Barbosa
Ribeiro — deputado Partido
Socialista
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14 • Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022

Sociedade Uma “nova” forma de trabalhar

Quiet quitting
Não é apenas mais
uma moda das redes
sociais. É reacção
à precariedade
Não é trabalhar menos, é fazer o que está no contrato
cumprindo o horário. Surge como reacção à precariedade e
é sintoma da mudança na forma como encaramos o trabalho.
E, sim, começa a provocar dores de cabeça aos empregadores
começa por responder Pedro Gomes, poder fazer outras coisas na vida”, te nalguns dias da semana, um lugar inteiro a gritar-lhes que, ao contrário
Natália Faria
professor na Universidade de Londres aponta Joaquim Coimbra, docente na para poderem levar o animal domés- dos pais, não poderiam contar com

O
fenómeno começou na
China e propagou-se à
velocidade da luz através
de redes como o TikTok:
chama-se quiet quitting —
o que poderá ser traduzi-
do por os trabalhadores fazerem
nem mais nem menos do que aqui-
lo para que são pagos e dentro do
horário legalmente contratualiza-
do. E, segundo jornais como o cir-
cunspecto Wall Street Journal, esta
espécie de greve de zelo está a pro-
vocar violentas dores de cabeça
aos empregadores um pouco por
todo o lado.
Mas será que este quiet quitting
antecipa realmente mudanças no
modo como nos posicionamos
perante o trabalho ou não passa de
mais uma moda inócua, sem tradu-
ção concreta no mundo laboral? “É
difícil avaliar, porque não há dados
concretos sobre o desempenho dos
trabalhadores, não existem estatís-
ticas, mas só o facto de estar a sus-
citar tanta curiosidade mediática
revela desde logo que estamos a
viver uma mudança de atitude das
pessoas em relação ao trabalho”,
e autor do livro Sexta-Feira É o Novo
Sábado.
Trazido à superfície juntamente
com fenómenos recentes como a
Great Resignation, que no pós-pande-
mia levou milhares de trabalhadores
a despedirem-se dos seus empregos,
sobretudo nos Estados Unidos e no
Reino Unido, criando uma crise de
mão-de-obra, ou mesmo à discussão
instalada sobre a redução do tempo
de trabalho para quatro dias por
semana, ao quiet quitting subjaz uma
igual recusa das jornadas de trabalho
longas, intensas e mal remuneradas,
enquadradas por contratos de curtís-
sima duração, e que não deixam espa-
ço para mais nada, seja família, volun-
tariado, fruição cultural ou para pra-
ticar um qualquer desporto.
“O trabalho atípico e precário, a
desregulação das relações laborais, de
que os jovens são as principais víti-
mas, tem feito com que o trabalho se
torne cada vez mais instrumental para
eles, isto é, tem levado a um certo
desinvestimento emocional, que leva
a que o trabalho tenha deixado de ser
tão central na identidade de cada um:
é algo que tem de se fazer para se
Faculdade de Psicologia e Ciências da
Educação da Universidade do Porto,
para quem “estamos a viver uma
mudança de fundo, de que o quiet
quitting, seja lá o que isso for, é mais
um sinal”.
O quiet quitting não é abandonar o
emprego, sublinhe-se. É tão-somente
impedir que o trabalho contamine
todas as outras dimensões da vida. É
recusar fazer cada vez mais, e a um
ritmo apressadíssimo, recebendo
cada vez menos. É uma nova hashtag
para algo que, há algumas décadas,
qualiÆcaríamos simplesmente como
“ter um emprego”, como escrevia há
dias a revista The Atlantic. E, apesar
da novidade do termo, e da sua popu-
laridade meteórica, esta tendência
recua até muito antes da pandemia.
Muito antes de o coronavírus ter
empurrado milhões de trabalhadores
para o trabalho remoto, num velocís-
simo processo de digitalização do
trabalho sem precedentes na história,
já os empregadores e especialistas em
recursos humanos se esforçavam por
reter o talento dos mais jovens ofere-
cendo-lhes horários Çexíveis, a possi-
bilidade de trabalharem remotamen-
tico para as empresas, pequenos-al-
moços adaptados aos diferentes perÆs
alimentares ou a possibilidade de dis-
porem, por exemplo, de uma mesa de
matraquilhos para poderem descom-
primir nos locais de trabalho.
“Em determinados nichos, o gran-
de desaÆo das empresas deixou de
ser arranjar mão-de-obra, mas con-
seguir reter os trabalhadores”, situa
Ana Paula Marques, do Departamen-
to de Sociologia da Universidade do
Minho, que, arriscando alguma espe-
culação sobre este fenómeno mais
recente do quiet quitting, o situa tam-
bém na tendência menos recente dos
jovens que recusam ter o trabalho
como foco central das suas vidas.
A felicidade à mesa
“Esta nova etiqueta surge em linha
com uma geração que não abdica de
ter vida e de procurar a felicidade e
que por isso recusa ser dominada ou
escravizada pelo trabalho”, reforça a
socióloga, para quem esta “relativiza-
ção” do trabalho por parte dos mais
jovens não pode ser dissociada do
facto de terem crescido com o mundo
um emprego para a vida ou sequer
com uma carreira contributiva capaz
de lhes garantir a reforma. E “enquan-
to a geração que ronda agora os trinta
anos cresceu com essa angústia, a
geração dos vinte e tal aprendeu a
lidar melhor com a incerteza do mer-
cado de trabalho, tendo começado a
relativizá-lo, em prol de valores que
lhe são mais importantes como a feli-
cidade, o bem-estar, a identiÆcação
com causas”, sustenta Ana Paula Mar-
ques. “Claro que todos queremos ser
felizes, mas eu não me lembro de
enunciar isso como propósito. E tra-
zer a felicidade para cima da mesa das
negociações com o empregador, com
o à-vontade com que os jovens de
hoje o fazem, é algo novo. E talvez
esta crise, esta consciência maior de
que tudo isto é efémero e até de que
estamos a contribuir para o Æm do
planeta, acentue neles esta necessi-
dade de procurarem ser felizes”,
admite a socióloga, para quem “isto
não se observa apenas quanto ao tra-
balho, mas também no à-vontade
com que recusam a normalização e
assumem a diversidade de compor-
tamentos, até nas questões da identi-
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Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A.
dade sexual”.
Nenhuma tentativa de compreen-
são do fenómeno pode, porém, fazer-
se sem trazer para a equação uma
realidade laboral que mantém milha-
res de trabalhadores subjugados por
cheÆas tóxicas, sem quaisquer pers-
pectivas de progressão e reféns de
salários mileuristas, insuÆcientes
para lhes permitir a emancipação da
casa dos pais ou do quarto da facul-
dade e muito menos o projecto de
serem pais. “Se o trabalho não cum-
pre as promessas de conforto na vida
e não confere capacidade de consu-
mo, a reacção do outro lado é: ‘Então
não vale a pena entregarmo-nos de
tal maneira ao trabalho, como os nos-
sos pais faziam’”, descreve Joaquim
Coimbra.
“Muitos estudantes saem das facul-
dades para empregos fora da sua área
de formação, o que já é desmotivante.
Submeterem-se ainda por cima a uma
precariedade enorme, com salários
baixos e muitas horas de trabalho,
depois de terem passado por vários
estágios não remunerados enquanto
estudantes, leva-os a não querer abdi-
car de manter outros interesses na
vida”, reforça João Machado, presi-
dente da Federação Académica de
Lisboa, para enfatizar que não se tra-
ta de não querer trabalhar, mas ape-
nas de ter presente que a vida não é
só trabalho. “E é saudável que assim
seja”, recorda.
Mas recusar levar trabalho para
casa ou Æcar mais horas na empresa
para fazer mais do que aquilo para
que se é pago não são comportamen-
tos que possam ser circunscritos a
uma faixa etária ou arrumados como
consequência da pandemia. “Esta
mudança de atitude em relação ao
trabalho sente-se sobretudo nas gera-
ções mais novas, mas é transversal e
parece-me que a pandemia foi o gati-
lho e não tanto a causa”, preconiza o
economista Pedro Gomes, para apon-
tar como causas “as mudanças muito
mais profundas e estruturais” da
sociedade nos últimos 50 anos.
“Dos tipos de trabalho à tecnologia,
passando pela estrutura da família,
com as mulheres a trabalharem as
mesmas horas e com a mesma ambi-
ção que os homens, o trabalho Æcou
mais intensivo e exigiria mais descan-
so. Mas, ao mesmo tempo, descansa-
mos muito menos do que há 50 anos,
porque, quando voltam os dois para
casa, não é para descansar mas para
fazer tudo o que Æcou por fazer,
Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022 • 15
PAULO PIMENTA
nomeadamente os cuidados com a
casa e com os Ælhos.”
“As pessoas aguentaram, sempre
com aquela visão de que as coisas vão
Æcar melhores, mas não Æcaram. E na
pandemia houve uma paragem que
nos forçou a repensar isto tudo. Ago-
ra, quando as empresas começam a
fazer pressão no sentido do regresso
aos locais de trabalho, as pessoas não
querem”, ilustra Pedro Gomes, sobre
um fenómeno que “não é exclusivo
de nenhum país” e que tem levado
inúmeras empresas, da advocacia ao
sector Ænanceiro, a limitar o trabalho
presencial a alguns dias por semana.
“Depois de décadas a acumular
desgaste, stress, burnout, com custos
também para as empresas e para os
serviços de saúde, os trabalhadores
não querem voltar a trabalhar presen-
cialmente cinco dias por semana,
porque não querem voltar a mergu-
lhar numa panela com água que foi
aquecendo, aquecendo, até começar
a ferver”, diz o investigador. Indepen-
dentemente de a insistência para o
regresso ao trabalho presencial ser
motivada “por razões primitivas de
controlo dos trabalhadores, ou por
uma genuína preocupação pelo facto
de a equipa não funcionar tão bem
em modo remoto, isto está a ser um
problema para as empresas um pou-
co por todo o lado. Estas sabem que,
se forçarem, perdem os trabalhado-
res”, conclui.
A recusa em retomar o trabalho
presencial nos moldes pré-pandémi-
cos, e que do lado dos trabalhadores
radica em problemas como as horas
gastas no trânsito muito mais do que
de uma menor vontade de trabalhar,
também não pode ser compreendida
ignorando a crescente “desvinculação
emocional” dos trabalhadores face às
Os jovens que entram no empresas. “Um estudo recente da
mercado de trabalho já não o norte-americana Gallup, que faz um
encaram da mesma maneira que trabalho à escala mundial, mostrou
a geração que os precedeu que as pessoas ‘activilly engaged’ com
o trabalho andam na casa dos 20% —
em Portugal, andamos entre os 15% e
os 16%. E isto acontece desde logo
porque a quantidade de pessoas com
salários que não lhes permitem ter
uma vida digna é enorme, e é muito
difícil desenvolver o engagment das
pessoas com salários tão exíguos”,
refere Arménio Rego, professor de
comportamento organizacional na
Católica Porto Business School e autor
Trazer a felicidade de vários livros sobre liderança.
Pouco surpreendido com a visibili-
para cima da mesa dade do quiet quitting, mas incapaz
também de avaliar se este está a cres-
das negociações cer entre a enorme massa de traba-
lhadores, Arménio Rego diz que as
com o empregador, empresas não estão isentas de culpa
com o à-vontade nesta desvinculação emocional dos
trabalhadores. “Durante algum tem-
com que os jovens po foi criada uma narrativa e algumas
práticas de gestão focadas naquilo a
de hoje o fazem, que se tem chamado o ‘salário emo-
cional’, uma série de práticas que
é algo novo englobam desde a criação de um bom
ambiente de trabalho à alteração da
Ana Paula Marques denominação das funções para as
Socióloga tornar mais apelativas, cujo objectivo
é conduzir as pessoas a fazerem
mais do que o que está estipulado,
sem que sejam remuneradas para
tal.”
Solução? A semana
dos quatro dias
Esta ÆlosoÆa do “salário emocional”,
em que entra, no fundo, “tudo aqui-
lo que visa motivar o trabalhador,
mas que não tem tradução monetá-
ria”, tem contribuído para a disse-
minação nas empresas de algo a que
se convencionou chamar-se “deso-
bediência cínica” dos trabalhadores.
“As pessoas, sabendo que a dedica-
ção extra é valorizada, aparentam
essa dedicação, mas sem no fundo
estarem genuinamente dedicadas ao
trabalho. Se este desligamento está
a tornar-se mais intenso ou não,
admito que sim, até porque há cada
vez mais trabalhadores com forma-
ção, com qualiÆcações, logo com
mais diÆculdade em alinhar em nar-
rativas aparentemente muito apela-
tivas, mas que depois não têm tra-
dução do ponto de vista remunera-
tório, sobretudo porque partem dos
mesmos executivos que apelam à
importância do salário emocional
mas não adoptam a mesma postura
relativamente ao seu próprio salá-
rio”, critica Arménio Rego, lembran-
do que “temos assistido a um cres-
cendo das disparidades salariais
dentro das empresas”.
Soluções? “Os trabalhadores têm
de saber com clareza o que é espe-
rado do seu trabalho, deve-lhes ser
dada oportunidade de fazer o que
sabem fazer melhor. Têm de poder
conÆar nas cheÆas e colegas, de sen-
tir que estão a ser escutados e o seu
trabalho reconhecido e o seu desen-
volvimento encorajado”, enumera
Arménio Rego. Por seu turno, Pedro
Gomes diz que não é com mesas de
matrecos nem com workshops de
saúde mental que as empresas irão
conseguir recuperar os seus traba-
lhadores, por muito meritórias que
sejam essas medidas.
“Essa tensão que vivemos hoje
resolve-se com mais tempo de des-
canso para os trabalhadores”,
defende, lapidar, o coordenador do
projecto-piloto da semana de quatro
dias, que, em Outubro, vai ser pro-
posta pelo Governo aos parceiros
sociais. “Pode-se sempre melhorar
a compensação através do aumento
do salário, mas acho que o aumento
do tempo de descanso terá um efei-
to muito maior, o que, não havendo
cortes salariais e estes não podem
existir, levará a um aumento do salá-
rio por hora”, explicita, para avisar
desde já que a crise que se avizinha
não deverá fundamentar qualquer
recuo neste campo: “O medo de
uma recessão existe, e vai sempre
haver qualquer problema, seja por-
que a inÇação está alta ou porque o
desemprego está alto, mas esta é
uma mudança muito mais estrutu-
ral.”
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16 • Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022

Sociedade

Gulbenkian dá 500 bolsas a alunos

carenciados e com boas notas
Samuel Silva
Estudantes com média
superior a 17 valores
recebem 2000 euros por
ano e mais 1000 euros
quando forem de Erasmus
A Fundação Calouste Gulbenkian
vai atribuir 500 bolsas de estudo a
jovens que tenham entrado este ano
no ensino superior com uma média
elevada e sejam, simultaneamente,
provenientes de famílias com meno-
res rendimentos. Este apoio, no
valor de 2000 euros anuais, será
reforçado com mais 1000 euros
quando os alunos vão estudar para
fora do país ao abrigo do programa
Erasmus.
Podem concorrer ao programa
Bolsas Gulbenkian Mérito os estu-
dantes que tenham ingressado este
ano no ensino superior, ao abrigo
do concurso nacional de acesso,
tendo de cumprir duas condições:
ter entrado com uma nota igual ou
superior a 17 valores e ser originário
de famílias com rendimentos mais
baixos. Para serem elegíveis, os
estudantes têm de entregar um
comprovativo de candidatura à bol-
sa de acção social junto da Direcção-
Geral do Ensino Superior.
A Fundação Calouste Gulbenkian
coloca o limiar dos apoios num
patamar mais generoso do que o
Ministério da Ciência e Ensino Supe-
rior. Com as recentes alterações ao
regulamento de bolsas de estudo,
que vão permitir alargar para mais
cerca de 3000 a 4000 alunos o
apoio do Estado, a bolsa Æca acessí-
vel a estudantes vindos de famílias
com rendimentos até cerca de 9000
euros anuais per capita. No caso das
bolsas da Gulbenkian, o rendimen-
to anual pode ir até aos 12.000 euros
por pessoa. Ou seja, mais cerca de
200 euros por mês.
As candidaturas às bolsas da Fun-
dação Calouste Gulbenkian come-
çam a 1 de Outubro, e prolongam-se
até ao dia 24 do mesmo mês. O pro-
cesso divide-se em dois passos. Pri-
NUNO FERREIRA SANTOS
meiro, é feita uma veriÆcação dos
rendimentos da família do estudan-
te que, caso cumpra esse critério,
passa a estar elegível. Estão garan-
tidas bolsas para os 500 alunos de
baixos rendimentos com as médias
de ingresso no ensino superior mais
elevadas.
O programa será ainda alargado.
A Fundação Gulbenkian vai atribuir
mais algumas bolsas, com base em
doações de antigos bolseiros da ins-
tituição. Ao abrigo desta iniciativa
estão assegurados apoios para mais
uma dezena de estudantes.
Um milhão de euros por ano
As Bolsas Gulbenkian Mérito já exis-
tiam, mas as mudanças introduzidas
pela administração da fundação —
presidida por António M. Feijó e
onde têm assento o ex-reitor da Uni-
versidade de Lisboa António Cruz
Serra, o antigo director da Nova
School of Business and Economics
José Neves Adelino e o ex-ministro
O número de alunos apoiados da Educação Guilherme d’Oliveira
tem um aumento significativo: Martins, todos com ligação ao sector
foram 85 em 2020/2021 educativo — são signiÆcativas.
Desde logo, o número de bolsas a
atribuir passa de 85 (em 2021/22)
para 500. O valor deste apoio tam-
bém aumenta, de 1500 para 2000
euros anuais para todos os alunos.
O valor atribuído Até agora, os apoios eram diferen-
ciados, com uma majoração de 500
é igual para todos euros para alunos que estudassem
os estudantes, longe da residência habitual. A fun-
dação entendeu, porém, que o
estejam ou não reforço de 250 euros anuais para
deslocados apoiar as viagens dos estudantes
bolseiros entre o local onde estu-
dam e o local onde vivem, anuncia-
do pelo Governo em Julho, permite
responder às necessidades dos alu-
nos deslocados, pelo que as bolsas
serão iguais para todos.
Os estudantes a quem seja atribuí-
da uma das bolsas Gulbenkian man-
têm o apoio até ao Æm dos estudos
— três anos para quem Æzer uma
licenciatura, cinco ou seis para
quem prosseguir para mestrado —
desde que continuem a ter boas
notas. O programa estabelece uma
média de 14 valores no Ænal de cada
ano lectivo para renovar a bolsa dos
estudantes.
Contas feitas, a fundação realiza-
rá uma despesa anual de um milhão
de euros com estas bolsas para estu-
dantes carenciados e com boas
notas. Esta verba inclui ainda a
majoração prevista para os alunos
que decidam estudar fora do país ao
abrigo do Erasmus. Neste momento,
apenas cerca de 2% dos estudantes
que recebem bolsa de acção social
entram neste programa europeu.
Para contrariar essa tendência e
alargar o número de jovens com
uma experiência internacional, a
Gulbenkian entregará um apoio
suplementar de 1000 euros no
semestre em que os bolseiros este-
jam em mobilidade fora do país.
Estes apoios são cumulativos tanto
com as bolsas de acção social, entre-
gues pela DGES, como com as bolsas
entregues pela agência Erasmus
Mais no âmbito do programa euro-
peu de mobilidade.

Fnam dá prazo ao Governo para reunião e exige

revogação de medida sobre médicos não especialistas
A Federação Nacional dos Médicos
(Fnam) deu ontem duas semanas ao
ministro da Saúde para receber esta
estrutura e exigiu a revogação da
possibilidade de médicos não espe-
cialistas exercerem funções de espe-
cialistas, adiantou o presidente da
organização sindical.
Noel Carrilho falava à agência
Lusa no Ænal da reunião do Conse-
lho Nacional da Fnam, que decidiu
as próximas acções a tomar como
resposta ao “total silêncio” do Minis-
tério da Saúde sobre as negociações
entre as duas partes. “Não nos pare-
ce justiÆcável, mais ainda depois de
o senhor primeiro-ministro ter aÆr-
mado que a política se mantém e os
compromissos se mantêm, que se
venha a desenvolver algum atraso
neste processo negocial”, disse.
E prosseguiu: “Já Æzemos seguir
o pedido de reunião ao senhor
ministro [da Saúde, Manuel Pizarro]
e solicitámos que essa reunião se
desenvolva com a celeridade que
deve e estabelecemos um limite
para nas próximas duas semanas
sermos convocados para essa reu-
nião.”
No encontro de ontem da Fnam
foi aprovada “uma moção com
vários níveis de exigência”, entre os
quais a estrutura sindical destaca a
revogação, “em nome da qualidade
que se pretende para o Serviço
Médicos querem negociar
Nacional de Saúde”, da medida que
“permite a médicos não especialis-
tas exercerem a função de médicos
especialistas, substituindo-se a
médicos de família”.
Noel Carrilho acredita que o
encontro com o recém-empossado
ministro da Saúde vai acontecer
antes do Æm daquele prazo, expli-
cando: “Tivemos exemplos recen-
tes do resultado da falta de diálogo.
Apenas queremos chamar a aten-
ção para algumas medidas serem
resolvidas e levar a cabo um com-
promisso já estabelecido.”
Segundo a Fnam, numa reunião
realizada em 27 de Julho, o Governo
acordou com os sindicatos repre-
sentantes dos médicos iniciar um
processo negocial sobre a nova gre-
lha salarial, a revisão do acordo
colectivo de trabalho, a implemen-
tação de um novo regime de traba-
lho e a valorização do trabalho em
serviço de urgência.
Este protocolo negocial foi assina-
do em Agosto, mas a mudança da
equipa do Ministério da Saúde, ago-
ra liderada por Manuel Pizarro, a
aprovação do novo Estatuto do Ser-
viço Nacional de Saúde e a formali-
zação de uma direcção executiva
para o sistema público de saúde
foram “acompanhadas por um total
silêncio relativamente às negocia-
ções com os médicos”. Lusa
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Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A.
Charles Michel quer decisão europeia
sobre russos que fogem à guerra
Alemanha pôs hipótese de conceder asilo a russos que querem escapar à mobilização parcial, Lituânia
opôs-se. Finlândia quer parar rapidamente a passagem de turistas russos pelo país
Maria João Guimarães
O Presidente do Conselho Europeu,
Charles Michel, pediu aos países da
União Europeia que mostrassem
“abertura para aqueles que não que-
rem ser instrumentalizados pelo Kre-
mlin”, diz o Politico, citando palavras
de Michel à margem da Assembleia
Geral da ONU que decorre em Nova
Iorque.
Na Rússia, houve ontem novos pro-
testos contra a mobilização parcial
decretada por Vladimir Putin na quar-
ta-feira, apesar das penas pesadas a
que se arriscam, da repressão policial
e dos relatos de que manifestantes
contra a guerra estavam a receber
ordens de mobilização para ir com-
bater para a Ucrânia. A organização
OVD-Info recebeu informação de
detenções em protestos em 32 cida-
des diferentes.
A pena aplicada na Rússia a quem
recusar combater, desertar, ou que se
renda foi aumentada para até dez
anos de prisão, num decreto ontem
Passagem de russos para a
Finlândia: Helsínquia quer
restringir entradas a casos
especiais
assinado pelo Presidente.
Em Nova Iorque, Charles Michel
disse que tendo em conta que “há
um novo facto — esta mobilização
parcial” — era bom que houvesse
rapidamente “cooperação e coorde-
nação” europeia. “Em princípio,
penso que a União Europeia [deve-
ria] acolher os que estão em perigo
pelas suas opiniões políticas”, e se
no caso da Rússia “não seguem esta
ideia louca de o Kremlin lançar esta
guerra na Ucrânia, temos de ter isto
em consideração”.
Enquanto da Alemanha a ministra
do Interior, Nancy Faeser, punha a
possibilidade de conceder asilo a
desertores russos, outros países vizi-
nhos da Rússia não partilhavam a
ideia. Ontem, o ministro dos Negócios
Estrangeiros lituano, Gabrielius
Landsbergis, disse que o país não vai
conceder asilo aos russos que tentem
fugir da mobilização parcial: “Os rus-
sos devem Æcar e lutar. Contra Putin”,
declarou no Twitter.
O direito a asilo da União Europeia
prevê que este seja concedido a pes-
soas em risco de “perseguição ou
castigo por recusa de prestar serviço
militar obrigatório num conÇito em
que prestar serviço militar obrigató-
rio” implique cometer “crimes de
guerra, crimes contra a paz, ou cri-
mes contra a humanidade”, notava
no Twitter o professor de Direito da
Universidade de Essex Steve Peers.
Mas há quem questione como
garantir que quem foge agora não
apoiou antes a invasão — e que meca-
nismos existem para poder evitar que
apoiantes da guerra contra a Ucrânia
tenham asilo nos países europeus.
A ideia de deixar simplesmente
entrar cidadãos da Rússia já foi excluí-
da pela Finlândia, que nos últimos
dias viu um aumento enorme de pas-
sagem pelos vários postos fronteiri-
ços.
O país era o último da União Euro-
peia com fronteira terrestre com a
Rússia a permitir a passagem, mas diz
agora que, por razões de segurança,
esta tem de parar, e pede uma posi-
Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022 • 17
ção europeia conjunta sobre o
tema.
Helsínquia já se vinha a queixar de
ser uma plataforma giratória para
russos que iam passar férias a desti-
nos europeus, com o parque de esta-
cionamento do aeroporto de Helsín-
quia com um maior número de carros
de luxo, como Porsches ou Bentleys,
com matrículas russas, do que o habi-
tual.
Reportagens de jornais locais mos-
travam descontentamento com esta
visível presença e uma maioria de
Ænlandeses (70%) apoia a restrição de
entrada de russos em turismo (visitas
familiares e outras razões semelhan-
tes continuam permitidas).
As Ælas de entrada também se nota-
vam na fronteira com a Geórgia, che-
gando, aqui, aos 10 quilómetros,
segundo a BBC. Houve pessoas que
disseram ter esperado mais de 20
horas para passar.
Muitos russos temem ter muito
pouco tempo para sair do país e há
quem ponha mesmo a hipótese de
JANIS LAIZANS/REUTERS
Guerra na Ucrânia
que haja mais medidas para levar
cidadãos a combater na Ucrânia após
a anexação de quatro zonas na Ucrâ-
nia em que a Rússia está a levar a cabo
pretensos referendos quando nem
sequer controla todo o território e há
combates activos.
Pretexto para anexação
O suposto resultado pró-adesão à
Rússia nesta pseudovotação (feita
sem condições, tendo visitas a casas
de responsáveis eleitorais acompa-
nhados por militares armados, urnas
de voto transparentes com boletins
não dobrados, e preenchimento
num local onde todos podem ver o
voto) será o pretexto para anexação
— e com isto também se teme que os
homens sejam chamados a combater
pelo lado russo.
O Presidente ucraniano, Volodymyr
Zelensky, disse aos ucranianos que
vivem em zonas ocupadas para se
esconderem de potenciais acções de
mobilização da Rússia e irem para
território ucraniano.
Lavrov: EUA “brincam
com fogo” em Taiwan
O
ministro dos Negócios
Estrangeiros da
Federação Russa, Sergei
Lavrov, acusou os Estados
Unidos de “brincar com o
fogo” em relação a Taiwan,
num discurso na Assembleia
Geral das Nações Unidas, em
Nova Iorque.
Lavrov acusou os Estados
Unidos de tentar moldar o
mundo à sua imagem através
de sanções — os EUA, a União
Europeia e outros países
impuseram várias rondas de
sanções à Rússia após a
invasão da Ucrânia.
Antes, na mesma
assembleia, o ministro dos
Negócios Estrangeiros chinês,
Wang Li, disse que a China
apoia rodos os esforços que
conduzam a uma resolução
pacífica da “crise” na Ucrânia.
A prioridade é conseguir
conversações entre os dois
lados, que pudessem ter em
conta “as preocupações
legítimas de segurança de
todas as partes”.
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18 • Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022
Mundo
Labour reagrupa-se para reagir ao
pós-Johnson no regresso da política britânica
António Saraiva Lima
Congresso do Partido
Trabalhista arranca hoje.
À frente nas sondagens,
Starmer quer iniciar trilho
vitorioso até 2024
O Partido Trabalhista dá hoje o pon-
tapé de saída na tradicional tempo-
rada de congressos partidários no
Reino Unido, depois de praticamen-
te dois meses de uma quase-ausência
de discussão política no país, fruto
do prolongado processo de escolha
do novo primeiro-ministro conser-
vador e das várias cerimónias fúne-
bres e eventos protocolares por oca-
sião da morte da rainha Isabel II.
A troca de Boris Johnson por Eli-
zabeth Truss na cheÆa do Partido
Conservador e do Governo britâni-
co vai obrigar o Labour a redeÆnir
e a reorientar alguns dos métodos e
prioridades da sua forma de fazer
oposição, mas o partido de centro-
esquerda olha para reunião anual
como uma boa oportunidade para
mostrar aos conservadores, aos elei-
tores e ao país que está pronto para
vencer as próximas eleições, previs-
tas para 2024.
Com o Reino Unido a atravessar
uma das piores crises energéticas das
últimas décadas, com taxas de inÇa-
ção perto dos dois dígitos e próximo
Presidente do Irão diz que o país tem de lidar
com os protestos “com determinação”
Maria João Guimarães
Ebrahim Raisi criticou
quem “se opõe à segurança
e tranquilidade do país” nas
manifestações após a morte
de uma jovem curda
O Presidente iraniano, Ebrahim Rai-
si, declarou ontem que o país tem de
“lidar com determinação com os que
se opõem à segurança e tranquilida-
de do país”. A aÆrmação, repetida
por agências noticiosas, foi feita num
telefonema de condolências à família
de um agente de segurança que mor-
reu esfaqueado, aparentemente por
manifestantes que saíram à rua
depois da morte de Mahsa Amini, de
22 anos, que terá sido detida por usar
o “mau hijab”, ou seja, deixando o
da recessão, a resposta ao aumento
vertiginoso do custo de vida nos últi-
mos meses estará no centro dos dis-
cursos, das votações internas, dos
debates, dos workshops e de outras
iniciativas partidárias que vão decor-
rer entre hoje e quarta-feira da pró-
xima semana na cidade inglesa de
Liverpool.
Uma das principais propostas dos
trabalhistas para responder à crise,
que deverá merecer o respaldo unâ-
nime dos militantes ao longo dos
próximos dias, passa pelo reforço e
alargamento da política de tributa-
ção dos lucros inesperados — nomea-
damente das empresas energéticas
— para ajudar as famílias a lidar com
o aumento dos preços.
“As políticas económicas de casi-
no dos tories estão a apostar as
hipotecas e as poupanças de todas
as famílias do país. O Labour vai
assegurar crescimento para as clas-
ses trabalhadoras, que beneÆciará
todas as comunidades. O meu
governo vai proporcionar um futu-
ro mais justo e mais verde”, aÆan-
çou Keir Starmer, num tweet de
lançamento do congresso, publica-
do este sábado.
Responsabilidade
O líder do Partido Trabalhista chega
ao congresso com optimismo, mas
com acrescida responsabilidade. Na
anterior reunião magna, há precisa-
lenço de forma solta, com parte do
cabelo de fora.
O uso do hijab (lenço islâmico) foi
declarado como obrigatório no Irão
logo após a Revolução Islâmica de
1979, num discurso do ayatollah Kho-
meini, mas as mulheres sempre lhe
resistiram. Em 1981 foi aprovada uma
lei que instituiu a obrigatoriedade e
os castigos foram aumentados várias
vezes. As mulheres foram sempre
resistindo a esta obrigação, deixando
o lenço solto ou não o usando quan-
do conduzem, por exemplo.
À margem da Assembleia Geral da
ONU, que decorreu esta semana em
Nova Iorque, Raisi disse que a morte
tinha de ser investigada e que as
autoridades judiciais estavam a fazer
o que lhes compete.
OÆcialmente, a jovem curda teve
um AVC e um ataque cardíaco. Mas
Líder trabalhista deve atacar plano económico de Liz Truss
mente um ano, o objectivo passava
por unir o Labour, lançar o
“corbynismo” para trás das costas e
acabar com as dúvidas persistentes
sobre a sua visão para o país.
Se é certo que algumas divisões
internas ainda persistem — a ala
esquerda rejeita liminarmente a vira-
gem ao centro promovida por Star-
mer —, também é verdade que o
partido está numa posição privilegia-
da para vencer as próximas eleições,
como nunca esteve, provavelmente,
nos últimos 12 anos.
A gestão da pandemia, da crise
económica e dos vários escândalos
que abalaram o Governo de Johnson
poucos acreditam, lembrando rela-
tos de polícias que a agrediram mal
a detiveram, e que chegaram a bater
com a sua cabeça num dos carros da
polícia.
Depois da morte de Amini, a 16 de
Setembro, num hospital onde esteve
três dias em coma após a detenção,
muitas iranianas, e iranianos, saíram
à rua em protesto, com mulheres a
queimar os lenços islâmicos.
Há mais de uma semana que há
manifestações em dezenas de cida-
des, e de palavras de ordem contra
o uso obrigatório do hijab (lenço islâ-
mico) passaram a pedir também o
regime: “morte ao ditador”. O regi-
me disse na quinta-feira que morre-
ram 17 pessoas, incluindo dois ele-
mentos das forças de segurança, nos
protestos. Organizações não gover-
namentais apontam números mais
HENRY NICHOLLS/REUTERS
não só forçaram a demissão do pri-
meiro-ministro, em Julho, como
tiveram um impacto negativo para
os tories nas eleições locais de Maio
e em duas eleições intercalares em
Junho, e atiraram o Partido Conser-
vador — vencedor de todas as elei-
ções legislativas desde 2010 e tendo
conseguido, em 2019, a sua maior
vitória desde 1979 — para o segundo
lugar nas sondagens a nível nacio-
nal, há vários meses consecutivos.
O inquérito da YouGov para o
Times, publicado na sexta-feira, e
realizado já depois de Liz Truss ter
assumido o cargo de primeira-minis-
tra, atribui 40% das intenções de
Ebrahim Raisi, Presidente do
Irão, discursando na ONU
voto ao Partido Trabalhista e 32% ao
Partido Conservador — Liberais-De-
mocratas (9%), Partido Verde (8%),
Partido Nacional Escocês (5%),
Reform UK (3%) e Plaid Cymru (1%)
completam a lista.
Para além disso, um outro estudo
da Ipsos, publicado a 7 de Setembro,
concluiu que 40% dos inquiridos
consideram que Starmer dará um
bom primeiro-ministro, contra ape-
nas 33% que dizem o mesmo sobre
Truss.
Apesar destes números, favoráveis
ao Labour, é no duelo particular
entre a primeira-ministra e o líder da
oposição que residem algumas das
incógnitas políticas dos próximos
tempos, uma vez que ainda não hou-
ve muitas oportunidades para os
dois debaterem na Câmara dos
Comuns.
No seu discurso aos militantes,
agendado para terça-feira, Starmer
vai, por isso, apontar baterias a
Truss, procurando colá-la às políti-
cas, aos escândalos e à imagem da
governação Johnson — foi ministra
dos Negócios Estrangeiros no execu-
tivo do ex-primeiro-ministro conser-
vador.
A resposta da chefe do Governo
não demorará muito tempo: no pró-
ximo Æm-de-semana será a vez de os
tories se reunirem em congresso,
também no Norte de Inglaterra, mas
na vizinha cidade de Manchester.
altos, e as autoridades restringiram
o uso da Internet por todo o país.
Os protestos são extraordinários
num regime repressivo e constituem
um dos maiores desaÆos populares
ao regime dos últimos anos.
Em 2019, os grandes protestos que
foram provocados pelo aumento do
preço dos combustíveis foram bru-
talmente reprimidos. E em 2009-
2010 o chamado “movimento ver-
de”, em reacção à declaração do
então Presidente, Mahmoud Ahma-
ninejad, como vencedor de eleições
vistas como fraudulentas, também
foi esmagada com violência e deten-
ções. Desde então, o antigo primei-
ro-ministro Mir-Hossein Mousavi e
Mehdi Karroubi (candidatos refor-
mistas que se candidataram contra
Ahmadinejad) estão, ainda hoje, em
prisão domiciliária.
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Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022 • 19

Mundo

Ciro Gomes apostou tudo contra Lula

e arrisca o Ɗm do poder da sua família
ANDRE COELHO/EPA

Reportagem

João Ruela Ribeiro, em Fortaleza

Com o fim da aliança

com o PT, as hipóteses de
que o Ceará continue a ser
governado pelo clã dos
Ferreira Gomes são baixas
O histórico Mercado Central de
Fortaleza poderia ser facilmente
descrito como um centro comercial
popular. Ao longo de cinco andares,
com um labirinto de escadas pelo
meio, acotovelam-se lojas
sobretudo de artesanato e comida
típica nordestina. Ao lado de Æguras
em madeira de cangaceiros, o
mítico fora-da-lei do Nordeste,
vendem-se castanhas, licores de
toda a qualidade, roupas e chapéus
típicos. É um local de peregrinação
para quem visita a cidade.
À entrada está Antônio Henry
com um inconfundível boné alusivo
a Jair Bolsonaro, Presidente e
candidato à reeleição. Viajou de
Belém, no Pará, para passear pelo
Ceará e a sua escolha é óbvia. “Sem
dúvida que voto em Bolsonaro, sou Ciro Gomes tem aparecido em terceiro lugar nas sondagens, embora a uma distância muito considerável de Lula e de Bolsonaro
militar, sargento fuzileiro”, diz o
homem de 68 anos, que só aceita “Ciro é supercapacitado”, diz a pelo irmão mais novo, Ivo Gomes), conhecido como “coronelismo”, As eleições deste ano — em que
ser entrevistado porque tem lojista, que votou no ex-governador governador entre 2007 e 2015, e mas a politóloga Monalisa Torres, também vão ser eleitos os
antepassados portugueses. “Entre do seu estado em 2018, mas agora hoje é senador. doutorada em Sociologia pela governadores estaduais —
um cara honesto e um ladrão, eu vai optar por Lula. Mas o lastro dos Ferreira Gomes Universidade Federal do Ceará, ameaçam, porém, pôr Æm à era dos
escolho o honesto”, aÆrma Antônio, “Se ele tivesse alguma chance [de na política cearense vem dos apresenta algumas nuances Ferreira Gomes como a força
referindo-se ao principal adversário vitória], eu votaria em Ciro”, explica primórdios da história política. Na particulares dos Ferreira Gomes. política dominadora no Ceará. Um
do capitão reformado, o Luana, cujo principal objectivo é ver época colonial, a família de origem “No caso da política cearense há dos principais acontecimentos
ex-Presidente Lula da Silva. Bolsonaro muito longe do Palácio do portuguesa começou logo por ser uma dinâmica de construção de políticos da época eleitoral no Ceará
Natural de Fortaleza, o lojista Planalto. “Vai contra tudo aquilo em uma das mais importantes no Ceará grandes grupos políticos com líderes foi o Æm da aliança entre o Partido
John Lennon, de 41 anos, também que eu acredito”, justiÆca. e, em 1890, o primeiro prefeito de fortes espalhados pelas diferentes Democrático Trabalhista (PDT), de
vai votar no actual Presidente, Sobral foi um Ferreira Gomes. Nas esferas de poder e uma tendência ao Ciro, e o Partido dos Trabalhadores.
embora não o tenha feito em 2018. Clã em crise idas e vindas da política local, que chamamos de situacionismo Com Ciro Gomes empenhado em
Na altura, votou em Ciro Gomes, O Ceará é o bastião eleitoral de Ciro antepassados de Ciro e Cid foram verticalizado, que é um alinhamento apresentar-se como uma alternativa
ex-ministro e ex-governador do Gomes, o candidato que tem prefeitos da cidade ao longo do com os governos vitoriosos a nível viável a Lula, não se coibindo de
Ceará, e que também é candidato às aparecido em terceiro lugar nas século XX, tanto durante a época de federal e estadual”, diz, em desferir ataques tão ou mais
eleições presidenciais este ano. A sondagens, embora a uma distância Getúlio Vargas como durante a entrevista ao PÚBLICO. agressivos como são os de
mudança de opção é justiÆcada por muito considerável do par favorito Ditadura Militar. A analista sublinha os papéis Bolsonaro, “não faria sentido
John com uma única frase: “Ciro é para as eleições presidenciais. Na O fenómeno das famílias cuja diferentes cumpridos pelos dois manter no seu reduto eleitoral uma
muito perturbado.” verdade, o estado de nove milhões história se confunde com o poder irmãos Gomes. “Ciro Gomes actua aliança com o PT”, diz Torres.
Apesar da crítica, o lojista que de habitantes é dominado em certas regiões no Brasil é mais na arena federal, actuando Desta forma, concorrem a
vende frutos secos no Mercado politicamente pela família Ferreira como uma espécie de vitrine e governador uma candidatura
Central da capital cearense Gomes há muitos anos. Ciro, interlocutor a nível nacional; a nível apoiada pelo clã, a de Roberto
reconhece que Ciro Gomes e o formado em Direito, foi prefeito de estadual está o Cid Gomes, que é o Cláudio, e outra do PT, com Elmano
irmão Cid Gomes, que também foi Fortaleza no Ænal dos anos 1980 e líder mais importante no Ceará”, de Freitas. As sondagens mostram
governador do estado, “são entre 1991 e 1994 foi governador do explica Torres. que ambas estão a tentar disputar
trabalhadores”. “As políticas deles estado, sendo ainda deputado A especialista admite que este um lugar para alcançar a segunda
mostram o trabalho e eles não têm federal entre 2007 e 2011, para além tipo de arranjo político pode ter volta, em que vão defrontar o
corrupção”, aÆrma. de ministro nos governos de Itamar efeitos nefastos. “Ainda que haja o candidato alinhado com Bolsonaro,
Ciro Gomes também merece uma Franco e de Lula. compromisso com certas políticas Capitão Wagner, um ex-polícia que
boa avaliação de Luana Lina, de 42 O irmão mais novo, Cid, também que têm o objectivo de reduzir as defende uma política dura para a
anos, uma mulher de cabelo curto e ocupou cargos de relevo em toda a desigualdades sociais, a segurança pública.
óculos, que veste uma camisola de estrutura política do estado. Foi manutenção no poder de um grupo “A minha aposta é que a
Dungeons and Dragons, o célebre prefeito de Sobral, cidade a 250 tão grande como este no poder depender do resultado, o ciclo dos
jogo de tabuleiro que desde os anos quilómetros de Fortaleza de onde é Acompanhe em publico.pt/ exige obviamente práticas que são Ferreira Gomes encerra-se nestas
1970 reúne fãs em todo o mundo. originária a família (hoje governada eleicoes-brasil-2022 pouco republicanas”, observa. eleições”, sintetiza Monalisa Torres.
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20 • Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022
Economia Hipermercados e fornecedores contestam acusações
Concertação
de preços no
retalho resulta
em coimas
de 675 milhões
Fruto de buscas em 2016 e 2017, a
Concorrência já aplicou coimas de quase
700 milhões a seis cadeias de retalho
alimentar e nove fornecedores
Isabel Aveiro
“Hub-and-spoke” é uma expressão
que designa em inglês uma prática
em que vários operadores de merca-
do alinham, em conjunto, preços de
venda ao público através de um for-
necedor comum, “sem necessidade
de comunicarem directamente entre
si”, evitando uma guerra de preços,
estabilizando a rentabilidade espera-
da e reduzindo ao consumidor as
vantagens de um mercado em livre
concorrência. É uma “conspiração
equivalente a um cartel”, nas pala-
vras da Autoridade da Concorrência
(AdC). E é essa prática anticoncorren-
cial que justiÆca que, no período de
um ano e nove meses, a entidade
reguladora tenha decidiu aplicar coi-
mas no valor global de 675,7
milhões.
Os visados foram grupos donos
de “super” e hipermercados e dis-
tribuidores e fabricantes de bebi-
das, alimentos, produtos de limpeza
e higiene pessoal. Que negam as
acusações.
É esse — 675,7 milhões — o valor
acumulado dos nove processos em
que a AdC já decidiu pela condena-
ção, de um grupo de 12 já deliberados
desde Dezembro de 2020, que tive-
ram na sua origem diligências de
busca e apreensão em várias empre-
sas em Ænais de 2016 e inícios de 2017.
Nesse último ano, a AdC explicava
que as “diligências foram realizadas
em oito concelhos do país, tendo cor-
respondido a um total de cerca de 60
dias de buscas, envolvendo mais de
duas dezenas de instrutores da AdC
e duas dezenas de agentes das forças
policiais”.
Dos processos conhecidos, há ainda
um em investigação, envolvendo o
fornecedor Johnson & Johnson e
várias cadeias de retalho alimentar
— a 24 de Março foi divulgada a nota
de ilicitude (fase em que as acusações
são comunicadas, que “não determi-
na o resultado Ænal da investigação”,
dando um prazo aos visados para se
defenderem, que antecede a decisão
Ænal, e, caso seja esse o caso, a san-
ção). Pelo caminho, três processos
foram arquivados: um relativo à Proc-
ter & Gamble; um que visava a Socie-
dade de Cervejas da Madeira; e outro
que incidia sobre a Adega Cooperativa
de Redondo, todos também envolven-
do vários grupos de distribuição.
Embora os processos com origem
nas buscas de 2016 e 2017 tenham Æm
nesse período, as práticas anticon-
correnciais que a AdC tem vindo a
penalizar duraram, na maior parte
das vezes, mais de dez anos, acusa a
Concorrência. Pelo menos. Porque
nos casos que a reguladora sancionou
nos últimos dois anos foi deixado por
vezes um alerta nos comunicados:
“Na decisão adoptada, a AdC impôs
a cessação imediata da prática, uma
vez que não se pode excluir que o
comportamento investigado ainda
esteja em curso.”
Todos em tribunal
A decisão mais recente da Concor-
rência envolve as fornecedoras Active
Brands/Gestvinus (anunciada a 14 de
Setembro), e os distribuidores
Auchan, Modelo Continente (da
Sonae, grupo dono do PÚBLICO) e
Pingo Doce (rede detida em 51% pela
Jerónimo Martins e em 49% pelos
holandeses da Ahold-Delhaize). Com
a adição deste, foram já decididos 12
processos “por práticas restritivas da
concorrência no sector da distribui-
ção retalhista de base alimentar des-
de 2020”, dos quais nove “resultaram
em condenações e três em arquiva-
mentos, na fase de inquérito (ou seja,
sem que tenha sido proferida acusa-
ção)”, contabiliza fonte oÆcial da AdC
ao PÚBLICO.
O volume de coimas em causa diz respeito a um período inferior a dois anos. Em baixo, Margarida Matos Rosa
Lista dos processos por data de decisão do conselho da AdC
18.12.2020
Sociedade Central de Cervejas
e Bebidas, Modelo Continente
(MC), Pingo Doce, Auchan,
Intermarché: prática durou
“nove anos, entre 2008 e 2017”,
acusa a AdC. Visou “vários
produtos da SCC, tais como as
cervejas Sagres e Heineken, mas
também Bandida do Pomar e
Água do Luso”.
18.12.2020
Primedrinks, MC, Pingo Doce,
Auchan, Lidl, Intermarché, E.
Leclerc: prática “durou 10 anos,
entre 2007 e 2017”. Visou “vários
produtos” do “portefólio da
Primedrinks, no qual se incluem
produtos como os vinhos do
produtor Esporão e Aveleda, os
whiskies The Famous Grouse ou
Grant’s, o gin Hendick’s ou ainda
o vodka Stolichnaya”.
02.11.2021
Super Bock Bebidas, MC, Pingo
Doce, Auchan, Intermarché:
práticas duraram “mais de 12
anos, entre 2003 e 2017”. “Visou
vários produtos da Super Bock,
incluindo as cervejas Super Bock,
Carlsberg, Cristal e Cheers, as
águas Vitalis e Água das Pedras, e
ainda a sidra Somersby.”
16.11.2021
Bimbo Donuts Portugal, MC,
Pingo Doce, Auchan: práticas
“duraram entre 2005 e 2016
2016”..
os
Visaram “vários produtos
mo pão
Bimbo Donuts, tais como
ycao
de forma, Donuts, Bollycao
ou Manhãzitos”.
16.12.2021
Sogrape, MC, Pingo
Doce, Auchan,
Intermarché, E. Leclerc: práticas
duraram “entre 2006 e 2017”. Em
causa estavam “vários produtos
da Sogrape, tais como vinhos de
marcas portuguesas como
Mateus, Gazela, Casa Ferreirinha,
Porto Ferreira, Offley e Sandeman
e os whiskies Jack Daniel´s e
Macallan e o champanhe
Taittinger”.
29.03.2022
Sumol+Compal, MC, Pingo
Doce, Auchan, Lidl: prática
“durou 14 anos e meio, entre 2002
e 2017
2017”,, “visou vários produtos da
distrib
distribuidora de bebidas e
veget
vegetais preparados, tais
com
como sumos e néctares e
ref
refrigerantes com e sem
g
gás”.
07.06.2022
0
Unilever Fima, MC, Pingo
U
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Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A.
JOÃO HENRIQUES
Doce, Auchan, E. Leclerc:
práticas duraram “cerca de 10
anos, entre 2007 e 2017”.
Visaram “vários produtos da
Unilever”, “tais como
detergentes, desodorizantes,
gelados, molhos e chás”.
15.06.2022
Beiersdorf Portuguesa, MC,
Pingo Doce, Auchan: prática
“durou sete anos, entre 2011 e
2017”, exemplos: “vários
produtos da Beiersdorf”, dona
da marca Nivea, entre outras.
13.09.22
Active Brands/Gestvinus, MC,
Pingo Doce, Auchan: “prática
durou mais de oito anos, entre
2009 e 2017”. “Visou vários
produtos do fornecedor, tais
como vinhos, aguardentes e
licores/aperitivos”.
Questionada sobre quais os proces-
sos que estão a ser alvo de recurso —
no Tribunal da Concorrência, Regu-
lação e Supervisão — e qual o valor
pago até agora, a AdC adiantou, em
resposta por escrito, que as coimas
aplicadas no âmbito dos processos
que resultaram em condenações
“não foram pagas até ao momento,
uma vez que foram contestadas em
tribunal”.
“Todas as empresas visadas objec-
to de condenação interpuseram
recurso de impugnação judicial das
decisões da AdC referidas”, subli-
nhou. O que quer dizer que — sem
contar com a investigação da Active
Brands, cuja decisão foi conhecida há
semana e meia — todos os seis distri-
buidores alimentares e oito fornece-
dores visados nos outros processos
já recorreram na justiça das decisões
da reguladora.
Estando todos os visados a recor-
rer, teme a AdC que, após recurso
para o tribunal, o valor Æque muito
abaixo da sua decisão? “A AdC encara
com normalidade o escrutínio das
suas decisões pelos tribunais”, foi a
resposta da entidade, que desde
Novembro de 2016 é liderada por
Margarida Matos Rosa.
A Concorrência recorda que “os
recursos não suspendem o pagamen-
to das coimas” e que, “para o efeito,
as empresas devem prestar garantia
adequada”. “Assim”, acrescenta,
“nos processos (agregados em tribu-
nal) Centralcer [Sociedade Central de
Cervejas] e Primedrinks”, o tribunal
Æxou “efeito suspensivo aos recursos
interpostos pelas empresas, median-
te a prestação de caução pelas empre-
sas”. “A modalidade e o valor da cau-
ção foram Æxados pelo tribunal em
função da situação concreta de cada
uma das empresas, representando
entre 40% e 100% do valor da respec-
tiva coima aplicada pela AdC.” Nestes
dois casos, que embora agregados
em tribunal “são processos separa-
dos”, as coimas foram de 29,5 milhões
para a SCC, de 7,01 milhões para a
Primedrinks; e, por cúmulo jurídico,
de 121,9 milhões para a Modelo Con-
tinente, 91,09 milhões para o Pingo
Doce, 22,25 milhões para a Auchan e
19,39 milhões para o Intermarché.
Destes dois processos que o tribunal
agregou, Lidl (com 10,5 milhões) e E.
Leclerc (Cooplecnorte), com 2,06
milhões de euros, só foram sanciona-
dos no da Primedrinks.
“Nos demais processos, o pedido
de Æxação de efeito suspensivo apre-
sentado aquando da interposição dos
respectivos recursos não foi ainda
apreciado”, esclarece ainda a AdC na
resposta enviada.
Questionados sobre os processos,
alguns dos sancionados preferiram
deixar para o tribunal a argumenta-
ção — sendo que todos, nos últimos
21 meses, emitiram comunicados a
negar as acusações e, na sua maioria,
a avisar logo aí de que iriam impug-
nar a decisão em tribunal.
Agora, por escrito, a Sociedade
Central de Cervejas (SCC) respondeu:
“Nada temos a comentar, por ora,
sobre este processo.” “Neste momen-
to, além da informação que já foi tor-
nada pública, o Super Bock Group
não tem nada a acrescentar”, foi a
resposta de fonte oÆcial da cervejeira.
A Unilever Fima “foi notiÆcada em
Junho de 2022 da decisão relativa ao
processo em curso contra si junto da
Autoridade da Concorrência” e acres-
centa que, “tanto quanto é do seu
conhecimento”, “se trata do único
processo pendente contra si junto
daquela autoridade”. No mesmo “dia
22 de Junho de 2022, a Unilever Fima
apresentou a sua impugnação judi-
cial da decisão em causa e continuará
a usar de todos os meios ao seu alcan-
ce para repor a verdade e defender a
sua boa reputação”. De acordo com
fonte oÆcial da companhia, a decisão
da AdC “é também profundamente
imerecida, à luz do trabalho consis-
tente que desenvolve para fornecer
diariamente aos consumidores por-
tugueses produtos de elevada quali-
dade”.
Em resposta igualmente por email,
a fabricante Sumol+Compal conÆr-
ma que “a decisão da AdC foi adop-
tada em 29 de Março de 2022” e que,
nela, “foi aplicada pela AdC à
Sumol+Compal uma coima de
25.100.000 euros (10% do volume de
negócios referente ao ano 2021)”,
detalha. A fabricante de sumos e néc-
tares “apresentou recurso da decisão
da AdC para tribunal a 13 de Maio de
2022”, mas este “ainda não se pro-
nunciou a respeito do referido recur-
so” e não decidiu ainda “se deverá
ser paga uma caução”. Questionado
sobre a coima, fonte oÆcial da empre-
sa respondeu: “Não foi pago qual-
quer valor porque não existe conde-
nação da Sumol+Compal, nem cre-
mos que venha a existir, pelos
tribunais, pela prática dos factos ale-
gados de que a empresa foi acusada
pela AdC.”
Do lado dos distribuidores, a Sonae
frisa que “os processos em curso e
que têm sido publicitados pela Auto-
ridade da Concorrência surgem no
contexto de uma única inspecção
desta autoridade a um conjunto de
operadores económicos, ocorrida no
ano de 2017”. “A MC [Modelo Conti-
nente], assim como os outros opera-
dores”, aÆrma fonte oÆcial, “recorreu
e recorrerá das decisões da Autorida-
de da Concorrência”, acrescentando
que, “nesta fase, os processos se
encontram em curso e a MC aguarda,
com tranquilidade e conÆança, os
próximos desenvolvimentos”.
A maior operadora de hipermerca-
dos do país, sancionada nove vezes
pela Concorrência, “refuta categori-
camente estas decisões” da AdC e
defende que “utilizará todos os meios
ao seu alcance para o cabal esclareci-
mento dos factos de que é acusada, a
defesa da sua reputação e a aÆrmação
dos seus valores”.
A MC aÆrma ainda estar “ciente das
suas obrigações legais e reitera o seu
Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022 • 21
Grande grupos dominam tar na violação das regras de concor-
Como se distribuem rência”.
os 675 milhões em coimas? Alvo do mesmo número de deci-
Valores em milhões de euros sões sancionatórias da AdC, o grupo
Jerónimo Martins conÆrma que o
Grupos de distribuição Pingo Doce já impugnou no Tribunal
da Concorrência “todas essas deci-
MC (Sonae) sões”. “Os processos judiciais estão
244,59 todos na sua fase inicial, não tendo
Pingo Doce (JM) ainda sido proferida nenhuma sen-
186,8 tença”, acrescentou fonte oÆcial da
Auchan empresa.
53,81 A ITMP/Mosqueteiros (dona da
ITMP (Intermarché) cadeia alimentar Intermarché), visa-
28,86 da em quatro decisões, aÆrmou: “O
grupo Os Mosqueteiros não comenta
Lidl
publicamente assuntos e processos
16,03 judiciais”.
Cooplecnorte (E.Leclerc)
5,09 Muitas infracções
Total 535,2 Nas respostas ao PÚBLICO, a AdC
relembra que, “nos últimos três anos
Grupos fornecedores (2019-2022), aplicou coimas no mon-
Super Bock Group tante total superior a 1300 milhões
33,29 de euros, por infracções detectadas
em vários sectores-chave para a eco-
Sociedade Central de Cervejas
nomia, tais como telecomunicações,
29,5 resíduos, mercado laboral, saúde,
Unilever distribuição retalhista ou contratação
26,5 pública”. “No caso da distribuição
Sumol+Compal retalhista de base alimentar”, acres-
25,1 centa, “foi detectado um número
Bimbo Donuts elevado de infracções, o que originou
7,35 a abertura de várias investigações
Primedrinks que conduziram às coimas totais apli-
7,01 cadas”, que actualmente ascendem
aos referidos 675,7 milhões.
Sogrape
Do total de coimas aplicadas nestes
4,83 processos, não há empate. Os forne-
Beiersdorf Portuguesa cedores visados foram alvo de coimas
4,4 no valor de 140,4 milhões de euros e
Active Brands/Gestvinus a distribuição foi sancionada em
2,39 535,2 milhões de euros — com os gru-
Total 140,4 pos Sonae e Jerónimo Martins a par-
Fonte: Contas do Público com base nas coimas da AdC
tilharem a maior fatia, assim como
partilham a maior fatia do mercado
de retalho alimentar em Portugal. Os
compromisso de conduzir a sua acti- dois foram, desde Dezembro de 2020
vidade no estrito cumprimento da lei, até à semana passa, sancionados em
concretamente no que concerne a 431,4 milhões de euros, o que repre-
regras em matéria de concorrência” senta 80% das coimas aplicadas a seis
— “estamos conÆantes e lutaremos distribuidores e 63,8% do total das
pela defesa justa da nossa posição”, sanções até agora.
“desenvolvemos a nossa actividade “As coimas impostas”, explica a
num mercado notoriamente compe- Concorrência a cada decisão, “são
titivo e com o claro propósito de apre- determinadas pelo volume de negó-
sentar aos nossos clientes a melhor cios das empresas sancionadas” nos
oferta de produtos e serviços, em mercados que foram afectados, ten-
termos de preço e de qualidade”, do em conta o prazo em que durou a
conclui. prática. “Ao Æxar a coima, a AdC tem
Já a Auchan, sancionada nove em conta a gravidade e duração da
vezes, “refuta totalmente as práticas infracção, o grau de participação das
que lhe são imputadas pela Autorida- empresas na infracção” e “a situação
de da Concorrência na decisão Ænal económica das empresas”, sendo
no âmbito do processo contra-orde- que as sanções “não podem exceder
nacional e irá recorrer judicialmente 10% do volume de negócios da
da decisão adoptada, exercendo empresa no ano anterior à decisão”
naturalmente os direitos previstos na de condenação.
Lei da Concorrência”. A companhia
(até há pouco tempo mais conhecida
É preciso notar que a AdC aplicou
coimas também aos responsáveis
em Portugal pela designação anterior individuais nestes 21 meses, em seis
das suas marcas Jumbo e Pão de Açú- casos decididos. O valor total das san-
car) “não se revê nas acusações e ções que visaram pessoas em parti-
reitera que são assegurados interna- cular foi de 76,7 mil euros. Neste caso,
mente todos os processos de forma- quando aplicadas a responsáveis indi-
ção e controlo dos seus colaborado- viduais, “as coimas não podem exce-
res a Æm de evitar qualquer tipo de der 10% da remuneração anual aufe-
comportamentos que possam resul- rida no último ano da infracção”.
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22 • Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022
Cultura Festival Mimo termina hoje no Porto
Chico César
juntou o seu
Brasil ao Brasil
de cá num grito
pela liberdade
No primeiro dia do Mimo, nos palcos em
torno do jardim da Cordoaria, tocaram
ainda Mario Lúcio, a franco-nigeriana
Asa e a ucraniana Valentina Lisitsa
André Vieira Texto
Paulo Pimenta Fotografia
Em palco montado em frente à anti-
ga Cadeia da Relação do Porto, Chi-
co César solta palavras condizentes
com as que são ditas por quem se
sente aprisionado e oprimido. O
discurso é apresentado num forma-
to musicado a reggae pintado com
as cores da bandeira brasileira e,
inicialmente, num tom de mãos
dadas com o pessimismo: “É repú-
blica de parentes, pode crer. Na
nova Babilônia eu e você somos só
carne humana para moer. E o amor
não é para nós.”
Mas a letra do compositor paraí-
bano termina com um aviso que
sugere um desfecho radical para se
chegar a um caminho em direcção
à liberdade. “Nós temos a pedrada
para jogar. A bola incendiária está
no ar. Fogo nos fascistas. Fogo, Jah”,
ouve-se no Ænal do tema Pedrada,
do álbum que antecedeu Vestido de
Amor, lançado na sexta-feira nas
plataformas digitais e tocado ao vivo
pela primeira vez em Portugal, no
FOTÓGRAFO
mesmo dia, no festival Mimo, que
este ano se mudou de Amarante
para o Porto, para até hoje se espa-
lhar por vários locais da cidade com
dezenas de concertos e outras acti-
vidades de entrada gratuita. No pri-
meiro dia, além do músico brasilei-
ro, tocaram, entre outros, o compo-
sitor cabo-verdiano Mario Lúcio
acompanhado pelos Kriols, a fran-
co-nigeriana Asa e a pianista ucra-
niana Valentina Lisitsa.
São palavras duras, mas sempre
necessárias quando os ventos estão
de feição para que o ar se torne qua-
se irrespirável. Para aligeirar o
ambiente, de forma a enquadrá-lo
melhor no título do seu novo traba-
lho, a sonoridade tem a boa onda
necessária para que se possa dan-
çar. E muita gente estava em frente
ao palco — o maior do evento e um
de vários montados em torno da
zona do Jardim da Cordoaria — a
ajustar o corpo à melodia.
A música de Chico César é reggae,
é pop, é rumba, forró e muito mais.
É também um veículo para as suas
convicções políticas. E muitos dos
que contribuíram para a maior novamente candidato do PT, pen- para esperar que o país volte à nor-
enchente da primeira noite do fes- durada nos ombros e a descer-lhe malidade. Primeiro, diz ser neces-
tival foram atrás dessa mensagem. pelas costas. Diz que não foi lá para sário limpar um legado de “xenofo-
A comunidade brasileira em Portu- fazer campanha. “Estou a fazer isto bia, misoginia, homofobia e machis-
gal cresceu nos últimos anos de cer- por amor”, atira. Acredita que Lula mo” que acredita ter sido instalado
ca de 80 mil pessoas, em 2016, para da Silva foi o melhor Presidente dos nos últimos anos durante o manda-
aproximadamente 210 mil, em 2022. últimos 20 anos. Por isso, quer vê-lo to de um Presidente que recusa
Para muitos desses imigrantes, a outra vez ao leme do país. Mas se o nomear. Ver Chico César em palco
distância geográÆca não é sinónimo seu desejo se concretizar, sublinha num país que não é o da sua origem,
de distância política. A plateia do ser necessária alguma paciência mas que também é agora seu legal-
Mimo segue a mesma lógica do con-
ceito do festival, que aposta na
democratização da cultura de forma
a chegar a toda a gente. Dentro da
diversidade de origens do público
que ali estava havia uma forte repre-
sentação de residentes oriundos do
Brasil. Claramente, são muitos os
que estão a seguir com atenção a
campanha das eleições presiden-
ciais de 2 de Outubro.
Durante o concerto viam-se algu-
mas bandeiras do PT e outras refe-
rências a Lula da Silva. Patrícia
Simões, a viver no Porto há “três
anos e quatro meses”, foi para o
Largo Amor de Perdição com uma
bandeira alusiva ao antigo Presiden-
te da República do Brasil, e agora
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mente e por aÆnidade, “tem um
signiÆcado muito especial para um
brasileiro”. Sobre o evento, aplaude
o lado “democrático” de um cartaz
com nomes internacionais que por
ser gratuito chega a toda a gente.
Já o compositor, que no corpo da
sua guitarra tinha estampado uma
espécie de stencil com a cara de Lula
da Silva dos tempos do movimento
cívico Diretas Já!, que em Janeiro de
1984 saiu para as ruas de São Paulo
e se espalhou pelo país para reivin-
dicar o Æm da ditadura militar, foi
bem directo quanto ao alvo das suas
palavras na letra de Bolsominions,
do último álbum. “Bolsominions
são demónios que saíram do infer-
ninho. Directo para o culto para
brincar de amigo oculto com satã
num condomínio”, cantou. Só quem
não falava português é que não per-
cebeu.
Ainda ao Ænal da tarde, já os rit-
mos do Brasil se ouviam no mesmo
palco, com a mistura de samba, dis-
torção e outros sons de DJ Farofa,
que em 2014 criou as festas Kebraku
no Porto, cidade onde o brasileiro
Momentos da actuação do
cantor e compositor brasileiro
Chico César (em cima)
e da pianista ucraniana
Valentina Lisitsa
A música de Chico
César é reggae, é
pop, é rumba,
forró. É também
um veículo para
as suas convicções
políticas. E
muitos dos que
contribuíram para
a maior enchente
da primeira noite
do festival foram
atrás dessa
mensagem
se estabeleceu, tornando-se presen-
ça habitual em vários bares.
Concertos mais intimistas
Num ambiente mais intimista, Plínio
Fernandes, também brasileiro, levou
a sua guitarra para dentro da Igreja
do Carmo, completamente lotada.
De costas viradas para a talha doura-
da tocou Heitor Villa-Lobos, Tom
Jobim, Ary Barroso, Milton Nasci-
mento e Violeta Parra. Enquanto
ainda actuava, a pianista ucraniana
Valentina Lisitsa ou Queen of
Rachmaninoè, como é conhecida no
seu canal de YouTube com mais de
um milhão de seguidores, já se fazia
ouvir na Igreja dos Carmelitas Des-
calços, mesmo ao lado e igualmente
com os lugares todos ocupados.
Já o pátio do Museu de História
Natural e da Ciência da Universida-
de do Porto abriu as portas para ser
casa do jazz. O trompetista luso-bra-
sileiro Gileno Santana levou quem
ali estava numa viagem pelo clássico
de Miles Davis, Kind of Blue, que
tocou na íntegra acompanhado por
uma banda que reproduziu o mate-
rial tocado por Bill Evans, Wynton
Kelly, John Coltrane, Paul Chambers
e Jimmy Cobb.
Nem o cabo-verdiano Mário
Lúcio, acompanhado pelos Kriols,
nem a franco-nigeriana Asa conse-
guiram juntar o mesmo número de
pessoas que Chico César reuniu em
frente ao palco principal, no Largo
Amor de Perdição, junto à antiga
Cadeia da Relação/Centro Português
de FotograÆa. Esta circunstância
acaba por ser positiva num festival
que tem na versão do Porto o espa-
ço necessário para que as activida-
des possam ser vistas sem atropelos
ou sem grandes Ælas.
Entre o Jardim da Cordoaria, Pas-
seio das Virtudes (dedicado a
soundsystems de reggae e dub), Igre-
ja do Carmo, Igreja de S. José das
Taipas, Igreja dos Carmelitas Des-
calços ou o Museu de História Natu-
ral e da Ciência da Universidade do
Porto, o festival continua até hoje.
Ontem, o Mimo assinalou o Bicen-
tenário da Independência do Brasil
com um recital, na Igreja de S. José
das Taipas, do pianista Fabio Cen-
tanni e da soprano Chiara Santoro.
Actuaram ainda Pedro Burmester
com o Quarteto de Cordas de Mato-
sinhos, a dupla tunisina DuOud, o
congolês Ray Lema e o português
Branko. No Museu de História Natu-
ral Ana Deus (Ban, Três Tristes
Tigres), Anabela Duarte (Mler Ife
Dada), Lena d’Água, Carolina Bran-
dão (SunÇowers), Marta Abreu
(Voodoo Dolls, Mão Morta) ou Mitó
Mendes (Señoritas), entre outras,
juntaram-se para um concerto que
assinalou o Æm da exposição Mulhe-
res Que Fazem Barulho — Cenas do
Rock Português I. O Mimo encerra
hoje, domingo, com o indiano
Nishat Khan, o DJ set de Don Letts e
com o rap de KT Gorique (Costa do
MarÆm) e do brasileiro Emicida.
Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022 • 23
Morreu um dos gigantes
do saxofone e do jazz
Obituário
Nuno Pacheco
Pharoah Sanders
(1940-2022) Parceiro de
John Coltrane, Don Cherry
e ex-membro da Sun Ra
Arkestra, tinha 81 anos
Pharoah Sanders, um dos
saxofonistas mais marcantes da
história do jazz, morreu na
madrugada de ontem, aos 81 anos.
A notícia foi dada no Twitter pela
Luaka Bop, às 1h33, numa curta
mensagem onde dizia que Sanders
tinha morrido paciÆcamente na sua
casa de Los Angeles, rodeado por
familiares e amigos próximos. “Será
sempre e para sempre o mais bonito
ser humano”, dizia a mensagem.
“Que descanse em paz.”
Nascido Farrel Sanders, em Little
Rock, no Arkansas, a 13 de Outubro
de 1940, deu os primeiros passos na
música a acompanhar hinos de
igreja no clarinete, um dos vários
instrumentos onde se foi iniciando,
a par da bateria, da tuba e da Çauta.
A descoberta do saxofone tenor,
que começou a tocar na orquestra
do liceu, levou-o até à Califórnia,
onde, segundo o Dictionnaire du
Jazz (1988), começou a tocar rhythm
and blues e rock’n’roll. Não só por
isso: também por sentir o peso da
segregação racial em Little Rock,
segundo a entrada que lhe dedica a
Encyclopedia of Arkansas.
Em 1961 foi para Nova Iorque,
onde por mais de uma vez teve de
vender o saxofone para garantir a
sobrevivência. Depois, tudo muda.
Junta-se à Sun Ra Arkestra, onde
ganha o apelido de “faraó”, que se
lhe colaria ao nome, passando a ser
conhecido por Pharoah Sanders.
Tocou com Don Cherry e começou
a trabalhar com John Coltrane em
1964, numa colaboração que só
acabou com a morte deste, em 1967.
A par da forte parceria com
Coltrane, Sanders gravou o seu
primeiro álbum, Pharoah’s First
(1964), e em 1966 iniciou uma série
de álbuns para a Impulse!, entre os
quais Karma (1969), com um tema
que bem o identiÆca: The Creator
has a master plan.
No texto acerca da morte de
Pharoah Sanders, o site jazz.pt põe
Karma à frente de cinco discos que
retratam o trabalho do saxofonista,
seguindo-se Thembi (1971), Live at
the East (1972), Izipho Zam (1973) e
Journey to the One (1980). Uma
pequena parte da discograÆa em
nome próprio, parcerias ou
Cultura
colectivos. O texto, que refere as
passagens de Sanders por Portugal
( Jazz em Agosto da Gulbenkian,
Guimarães Jazz, FMM Sines),
classiÆca deste modo o seu
trabalho: “A música de Pharoah
Sanders, que nasceu no meio do
tumulto do free jazz, começou por
se destacar pelo som enérgico e
abrasivo do seu tenor, e foi
ganhando uma dimensão espiritual,
tendo gerado aquilo a que designou
por ‘spiritual jazz’ — e que tem
herdeiros no jazz contemporâneo,
em nomes como Shabaka Hutchings
e Kamasi Washington.”
Da passagem de Sanders pelo Jazz
em Agosto de 2013 nasceu um disco
ao vivo, Spiral Mercury, acerca do
qual Rodrigo Amado escreveu no
PÚBLICO que o saxofonista surgia
“como um espectro, com o seu som
característico marcado por uma
profunda fragilidade”. Mas brilhava
ali ainda algo da antiga chama: “Os
seus movimentos musicais são, no
entanto, bem claros, ainda que
ténues e algo hesitantes.”
Mais recentemente, o disco que
Pharoah Sanders gravou com
Floating Points (o inglês Sam
Shepherd) e a London Symphony
Orchestra (2021), Promises, foi
classiÆcado por Vítor Belanciano
no Ípsilon do PÚBLICO como “uma
obra assombrosa”, e viria a ser
escolhido como um dos discos de
ano de 2021 em várias listas, entre
as quais a do próprio jornal.
“Quando o saxofone de Sanders
surge, é mágico, rico e caloroso,
mas também sucede o mesmo
quando as orquestrações ganham
mais corpo, ou as modulações
ambientais fazem o ouvinte imergir
na escuta.” Sons que se juntam às
memórias de tudo o que Sanders
foi moldando, do free às
experiências mais diversas,
muitas delas eternas.
Pharoah Sanders
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24 • Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022
Cultura
Jorge Palma: “Estou a descobrir coisas que
escrevi há ‘500’ anos e nunca mais toquei”
Nuno Pacheco
Para assinalar os 50 anos
de carreira, Jorge Palma vai
percorrer 14 discos em seis
concertos. Começa com Só,
hoje à noite, em Benfica
Depois de 70 Voltas ao Sol, o concerto
com que Jorge Palma assinalou em
2020 os seus 70 anos de vida (lançado
num disco ao vivo em 2021), o cantor
e compositor volta hoje aos palcos
com um desaÆo homérico: revisitar
14 álbuns em seis concertos em Lis-
boa. Não todas as canções, evidente-
mente, mas aquelas que ele próprio
tem vindo a seleccionar junto com os
músicos para não deixar de fora
nenhum dos seus trabalhos.
“Temos imensos ensaios”, diz Jorge
Palma do PÚBLICO num intervalo do
ensaio para o primeiro concerto. “O
pessoal da banda está todo muito
empenhado, a ter gozo nas coisas.
Eles estão a descobrir canções que
nunca tinham ouvido na vida, porque
são todos mais novos do que eu. Mas
eu próprio tenho canções que gravei
e nunca mais toquei.”
Esta série de concertos chama-se
Antologia e no primeiro, hoje nos Jar-
dins do Palácio Baldaya, em BenÆca
(às 21h), Palma estará em solo absolu-
to, voz e piano, com o álbum Só.
Seguir-se-ão, até Novembro, mais
quatro concertos, todos eles no Tea-
tro Tivoli BBVA e cada um deles dedi-
cado a três álbuns, cronologicamente
alinhados. No dia 7 de Outubro, já
com banda, Palma abordará os álbuns
Com Uma Viagem na Palma da Mão
(1975), ’Té Já (1977) e Qualquer Coisa
Pá Música (1979). Dia 26 de Outubro,
Acto Contínuo (1982), Asas e Penas
(1984) e Lado Errado da Noite (1985).
No dia 1 de Novembro, será a vez de
Quarto Minguante (1986), Bairro do
Amor (1989) e Jorge Palma (Proibido
Fumar) (2001). E no dia 8 de Novem-
bro os mais recentes álbuns de estú-
dio: Norte (2004), Voo Nocturno
(2007) e Com Todo o Respeito (2011).
O sexto e último concerto desta série
será no dia 19 de Novembro, no Cine-
teatro Capitólio, e é dedicado à Pal-
ma’s Gang, com que gravou o disco
Ao Vivo no Johnny Guitar (1993).
Antes de gravar o seu primeiro
álbum, Com Uma Viagem na Palma da
Mão, Jorge Palma lançou também a
solo um single e um EP, The nine
billion names of God (1972) e A Última
Canção (1973). E pelo menos a primei-
ra canção não será esquecida nos
concertos do Tivoli, diz ele:
“The nine billion names of God deve
abrir cada Tivoli, ou pelo menos ser
Jorge Palma no Tivoli,
onde decorrerão quatro
dos seis concertos
tocada em todos os concertos do
Tivoli. Porque é o primeiro single e
está aqui no coração e na cabeça.
Escrevi-o inspirado num conto incluí-
do num livro do Arthur C. Clarke que
toda a gente lia no princípio dos anos
70, O Despertar dos Mágicos. Gostei
muito desse conto, ‘The nine billion
names of God’, que é um conto
pequeno [escrito em 1967] em que há
um confronto entre a mística, o espi-
ritualismo dos monges tibetanos, e
os computadores do mundo ociden-
tal. E consegui, num inglês ainda
académico, fazer uma canção que
não está nada mal feita. Tinha eu nes-
sa altura 22 anos!” Agora tem 72 e é
em 2022 que a canção volta aos pal-
cos, como marca indelével do início
das suas gravações a solo. Já o EP inti-
tulado A Última Canção, terá direito
a Ægurar com o tema-título no primei-
ro dos concertos no Tivoli: “Vou
tocar sozinho A Última Canção, que
nunca mais toquei. Esse EP tem duas
letras do Ary e duas minhas, o apren-
diz a tentar imitar o mestre.”
Viagem nascida em inglês
Presente no primeiro concerto do
Tivoli, o álbum Com Uma Viagem na
Palma da Mão (1975) nasceu em Cope-
nhaga. “Na casa dos meus amigos,
que tinham um piano de cauda. Foi
lá que eu compus esse primeiro
álbum e todo em inglês, porque ainda
DANIEL ROCHA
estava com a esperança, ingénua, de
fazer carreira em Inglaterra. Quando
voltei para Portugal, depois do 25 de
Abril, achei que era um disparate
estar a fazer um álbum em inglês e
reescrevi-o todo em português.” E
trazia outras aprendizagens: “Apren-
di muito na Dinamarca. Percebi que
era bastante machista e muitas outras
coisas. Eu, vindo de uma ditadura, a
ver ali debates políticos na televisão
com vários partidos…” O primeiro
concerto do Tivoli reÇecte este perío-
do e nele, além de canções mais
conhecidas dos três primeiros discos,
Jorge Palma vai cantar também outras
menos difundidas, como Eu sei lá,
Giselle (“estas nunca mais toquei”),
Meio-dia (“que há uns tempos largos
não toco”), Yogy Pijama (“também
não a toco há muito tempo”), ou
Podem falar, entre outras.
O terceiro dos discos abordados no
primeiro concerto do Tivoli Qualquer
Coisa Pá Música, vem na sequência de
dois anos em que Jorge Palma andou
na estrada. “O quartel-general era
Paris, mas não estávamos sempre lá.
Aliás, nesse disco eu digo onde é que
todas aquelas canções foram feitas
[Paris, Londres, Copenhaga, Estugar-
da, Lisboa, Algarve]. Fui escrevendo,
apaixonado por aquele tipo de músi-
ca bluegrass do Kentucky, e vinha
com a pedalada toda da rua, a tocar
guitarra (melhor do que toco agora),
bandolim e banjo.” Isso à mistura
com muitas leituras: “A Beat Genera-
tion (Kerouac, Ginsberg), as letras do
Dylan, do Leonard Cohen, do James
Taylor, por aí fora.”
Coisas um bocado avançadas
Nos concertos seguintes, a lógica
será mesma: juntar canções mais
conhecidas de cada um dos períodos
com outras menos conhecidas, que
para muitos soarão como novidade.
Exemplos: Olá, tenho que ir andando,
Há muito tempo, A cantiga do Zé, Cas-
tor (“um instrumental dedicado ao
meu primeiro Ælho”), Quarto min-
guante, Bom dia, Só mais uma histó-
ria, Olhos de Catarina, Sonhadores
inatos, Do pobre B.B. (“um texto auto-
biográÆco do Brecht com que eu me
identiÆco imenso”).
“Estou a descobrir coisas que
escrevi há ‘500’ anos. Há arranjos e
orquestrações que eu acho, sincera-
mente, que me saíram bem. E há
coisas um bocado avançadas para o
tempo em que foram feitas, modula-
ções, sequências de acordes, inter-
valos. Cheguei à conclusão de que
tenho trabalhado um bocadinho.” A
escolha das canções tem sido colec-
tiva: “Não foi só minha, foi feita em
colaboração com os músicos e os
meus managers, uma dupla fantásti-
ca [André Sebastião e o Tiago Bran-
co]. A partir daí, só estou a ouvir
aquelas que vou tocar.”
Nos concertos do Tivoli, Jorge Pal-
ma (voz, piano, guitarra acústica e
eléctrica) será acompanhado por
Pedro Vidal (guitarras e direcção
musical), João Correia (bateria), Nuno
Lucas (baixo) e Vicente Palma (teclas
e guitarras acústicas). No concerto do
Capitólio estará, diz Palma, “o Pal-
ma’s Gang sem o Zé Pedro [1956-207],
que não será substituído: o Kalú, o
Alex, o Flak e eu. Será o disco ao vivo,
integral, com outras canções que pos-
sam adequar-se a esta formação. E
talvez haja um ou outro cover.”
 Os direitos de propriedade intelectual de todos os conteúdos do Público – Comunicação Social S.A. são pertença do Público.
Os conteúdos disponibilizados ao Utilizador assinante não poderão ser copiados, alterados ou distribuídos salvo com autorização expressa do Público – Comunicação Social, S.A.
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26 • Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022
Ciência e Ambiente O princípio do movimento ambientalista
Rachel Carson
desafiou-nos
há 60 anos.
Faz falta
ler hoje Primavera
Silenciosa?
Há seis décadas, Andréia Azevedo Soares
o Primavera
N
o dia 27 de Setembro de
1962, chegava às livrarias
Silenciosa dos Estados Unidos Prima-
vera Silenciosa, de Rachel
alertava-nos para Carson. Tinha uma capa
o facto de o uso verde-clara, com a ilustra-
ção de um ribeiro tímido e plantas
de pesticidas estar aquáticas — uma aparência despre-
tensiosa para uma obra tão contro-
a destruir os versa, que trazia em si a semente de
ecossistemas e a uma revolução social e condiciona-
ria o curso da História.
saúde humana. O As 368 páginas do livro encerra-
vam uma mensagem que não era
livro de Rachel nova para muitos leitores. Capítulos
do livro já haviam sido publicados
Carson na revista New Yorker em Junho de
impulsionou a 1962, inÇamando um debate nacio-
nal à volta do uso desregrado de
proibição do DDT pesticidas e mobilizando cidadãos
para aquele que viria a ser o movi-
e o movimento mento ambientalista moderno. No
ambientalista. mês seguinte, a manchete do New
York Times condensava o ar do tem-
Hoje, não está po: “Primavera Silenciosa é agora
um Verão barulhento.” Em 1972,
disponível em uma década depois, foi banido nos
Estados Unidos o diclorodifeniltri-
Portugal. Mas o cloroetano (DDT).
que é que esta Primavera Silenciosa tornou-se um
bestseller e, em 1963, já estava tradu-
obra ainda nos diz zido em 14 línguas. Só foi publicado
Portugal em 1966, pela Editorial Pór-
em tempos de tico, com tradução de Raul Correia.
crise climática? Hoje, o título está indisponível no
mercado nacional, embora algumas
livrarias online vendam a edição bra-
sileira. Faz-nos falta ler hoje Prima-
vera Silenciosa? O que nos ensina em
tempos de crise climática?
O Ælósofo Viriato Soromenho-Mar-
ques acredita que os portugueses
têm “todas as razões” para ler ou
revisitar Primavera Silenciosa. O pro-
fessor catedrático da Universidade
de Lisboa explica que Rachel Car-
son, quando aponta o dedo para a
indústria química, não se limita a
mostrar falhas técnicas ou cientíÆ#
cas. “Ela vai mais longe”, diz.
Rachel Carson denuncia “a escas-
sa capacidade humana” de produzir
mecanismos de regulação para as
tecnologias que a própria humani-
dade engendrou. “Cabe a nós, 60
anos depois, numa situação muito
mais dramática do que aquela em
que o mundo se encontrava em
1962, redobrar e prosseguir conti-
nuamente [esse esforço]”, aÆrma ao
PÚBLICO.
Viriato Soromenho-Marques, que
ensina FilosoÆa da Natureza na uni-
versidade, lamenta que Primavera
Silenciosa não seja lido como título
de divulgação cientíÆca. “O público
leitor em Portugal acaba por ser
mais académico, infelizmente”, refe-
re o docente da Universidade de
Lisboa.
Soromenho-Marques leu o texto
original, em inglês, uma edição
comemorativa publicada em 1992 e
comprada durante uma viagem a
Berkeley, nos Estados Unidos. O
livro está todo sublinhado, anotado.
“A primeira leitura teve um impacto
enorme em mim”, confessa.
O facto de Primavera Silenciosa
estar indisponível não só nas livra-
rias, mas também em bibliotecas,
prejudica a democratização do tex-
to. “Acredito que há muitos leitores
de Rachel Carson em Portugal”, aÆr-
ma o Ælósofo português numa con-
versa com o PÚBLICO, que pode ser
ouvida na íntegra no mais recente
episódio do podcast do Azul.
Christof Mauch, director do Cen-
tro Rachel Carson da Universidade
de Munique, na Alemanha, corrobo-
ra a ideia de que, passadas seis déca-
das, Primavera Silenciosa continua
a ser uma leitura necessária. “Acre-
dito que a popularidade de Carson
só vai aumentar no futuro, em parte
porque há algo de profético na sua
escrita”, aÆrma ao PÚBLICO.
“Os textos de Rachel Carson não
são apenas [a exposição de] factos.
Eles combinam uma advertência e
uma visão do amanhã; ensinam-nos,
acima de tudo, que os humanos são
organismos como todos os outros e
que, para termos um futuro, nós
precisamos utilizar os recursos da
Terra sem perturbar o equilíbrio
geral”, refere Christof Mauch.
Para celebrar as seis décadas do
livro, o Centro Rachel Carson está a
organizar para a segunda quinzena
de Outubro uma conferência intitu-
lada “Primaveras Silenciosas” —
assim mesmo, no plural —, com um
programa no qual serão exploradas
“histórias globais sobre pesticidas e
sobre o nosso mundo tóxico”. As
narrativas que emergiram da obra
dos anos 60 parecem mostrar como
Rachel Carson transformou a forma
como escrevemos hoje sobre a natu-
reza.
“Carson tem sido uma inspiração
maior. Os seus textos estão na men-
te de muitos romancistas também
— como Margaret Atwood, Richard
Powers e muitos outros. Acredito
que nenhum outro autor teve um
impacte parecido nas humanidades
ligadas ao ambiente, seja porque a
autora concilia ciência pura com
ÆlosoÆa, seja porque Carson tem um
entendimento profundo da comple-
xidade da vida — do microscópico ao
macroscópico”, observa Christof
Mauch.
O microscópico Äca visível
Os 17 capítulos de Primavera Silen-
ciosa têm, entre tantas outras coisas,
o condão de tornar compreensíveis
eventos moleculares que não são
visíveis a olho nu. Na parte intitulada
“Elixires da morte”, Rachel Carson
demonstra a omnipresença do DDT.
“Pela primeira vez na história do
mundo, todos os seres humanos
estão agora sujeitos ao contacto com
químicos perigosos, desde o
momento da fecundação até à mor-
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te”, lê-se nas primeiras linhas do
texto.
A autora prossegue citando vários
estudos que atestam que o corpo
humano não possui uma barreira
protectora; aquilo que é capaz de
matar insectos também afecta todas
as formas de vida num ecossistema,
persistindo em tecidos e Çuidos
como a placenta e o leite materno.
O leitor do século XXI, que lê Prima-
vera Silenciosa enquanto o planeta
não pára de aquecer, fará talvez um
paralelo imediato com os microplás-
ticos. Tal como o DDT, a poluição
plástica está por todo lado, do gelo
do Árctico ao sangue humano.
Nos anos 60, os pesticidas moder-
nos eram vistos como o único cami-
nho para uma agricultura capaz de
alimentar o mundo. O DDT era apre-
sentado ainda como a panaceia para
a malária em países africanos — e,
por isso, os detractores acusaram
Rachel Carson de “assassinar”
milhões de crianças afectadas pela
doença.
Como o próprio nome “pestici-
das” sugere, estes produtos deve-
riam matar apenas pestes agrícolas.
Daí Rachel Carson ter dito certa vez
que a denominação induzia em erro,
e que a molécula deveria chamar-se
biocida, e não pesticida. Porque além
das pestes — também aniquila ou
causa dano a outras formas de vida,
alterando processos celulares em
plantas, animais e seres humanos.
EVENING STANDARD/GETTY IMAGES
O título do livro remete exacta-
mente para a potência destruidora
dos insecticidas. Se moléculas dese-
nhadas para aniquilar pestes são
dispersas de forma desregrada, as
aves também serão afectadas e a
Primavera chegará sem o canto des-
tes animais.
Esta imagem emerge de uma bala-
da de John Keats, cujos versos ser-
vem de epígrafe ao livro: “O carriço
desapareceu do lago / E nenhum
pássaro canta.” Com a metáfora do
silêncio, Carson conseguiu transfor-
mar uma denúncia grave, alicerçada
em sólidos argumentos cientíÆcos,
numa clara mensagem de causa e
efeito.
“Rachel Carson mostrou com mui-
ta coragem nos anos 60 — e ainda
hoje há poucas pessoas que o fazem
— que, se analisarmos, dos departa-
mentos e institutos que trabalham
na área dos insectos [nos EUA], só
2% se focam em controlo biológico
(controlo natural das pragas), sendo
que os restantes 98% recebem Ænan-
ciamento da indústria química. E
esta entrada em cena do dinheiro faz
toda a diferença”, diz Soromenho-
Marques.
O lobby da indústria química nos
Estados Unidos não tardou a reagir,
tentando desacreditar não apenas o
livro mas também a autora. Um sec-
tor que movimentava milhões de
dólares não poderia permitir que,
nos anos 60, uma mulher solteira,
sem um doutoramento ou aÆliação
a uma universidade (Carson inter-
O título do livro de Rachel rompeu os estudos para sustentar a
Carson remete para o lado família), denunciasse os mecanis-
destruidor dos pesticidas. Por mos que permitiam expor popula-
causa deles, o canto dos ções inteiras a agentes tóxicos.
pássaros pode ser silenciado
Texto marca ambientalismo
Robert Musil explica, no livro Rachel
Carson and Her Sisters, por que razão
A obra de Rachel a obra é considerada o texto funda-
dor do ambientalismo contemporâ-
Carson é neo. Primeiro, porque consegue
aliar boa ciência a uma escrita impe-
considerada o texto cável. Por mais urgente que seja uma
mensagem, ela não chegará ao des-
fundador do tinatário se não for bem articulada.
ambientalismo E aí residia uma das destrezas de
Carson: dominava, desde muito
contemporâneo nova, a arte da comunicação de
ciência.
Carson nasceu a 27 de Maio de
1907 em Springdale, Pensilvânia.
Cresceu numa casa repleta de livros
e era encorajada por uma mãe culta,
Maria McLean Carson. Ainda muito
jovem, publicou artigos de história
natural no jornal The Baltimore Sun
e, já madura, fez carreira como edi-
tora-chefe das publicações do
Departamento de Pescas e Natureza
do Governo norte-americano.
Antes de Primavera Silenciosa, já
era uma celebridade literária: o livro
The Sea Around Us foi publicado em
capítulos na The New Yorker, em
1951, e teve uma resposta calorosa
dos leitores. Carson venceu prémios
e repetiu o sucesso editorial com The
Edge of the Sea. A autora conhecia
Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022 • 27
bem os meandros editoriais — e isto
nos leva à segunda razão, segundo
Robert Musil, para o livro de 1962 se
tornar um marco da literatura
ambiental.
O lançamento de Primavera Silen-
ciosa foi cuidadosamente desenhado
para ser uma ferramenta de activis-
mo ambiental, sugere Musil. Carson
movia-se bem tanto na academia
como na política. A bióloga rodeou-
se de cientistas de peso como Geor-
ge Wallace, na Universidade de
Michigan, e Edward O. Wilson, na de
Harvard. Contava ainda com apoian-
tes nas associações civis.
O terreno foi preparado; os pró-
prios editores sabiam que a obra
seria atacada pela poderosa indús-
tria química. E tentaram, por isso,
dissociar o livro de expressões eco-
logistas vistas como radicais — como
o vegetarianismo, por exemplo.
“Carson esteve a pensar nas reco-
mendações para a legislação e
mudanças de políticas públicas des-
de o início da investigação, cinco
anos antes. Durante a escrita de Pri-
mavera Silenciosa, contactou vários
especialistas para discutir as suas
ideias de reformas. Rachel queria
que o seu testemunho oferecesse
recomendações especíÆcas que
pudessem trazer melhorias mas que,
ao mesmo tempo, fossem politica-
mente exequíveis”, escreve a biógra-
fa Linda Lear no livro Rachel Carson:
Witness for Nature.
Num laborioso trabalho de marke-
ting, Primavera Silenciosa terá che-
gado às mãos de Æguras políticas de
relevo como congressistas, secretá-
rios do Governo de Kennedy e líde-
res associativos inÇuentes. A erradi-
cação do DDT nos Estados Unidos
não aconteceu num vácuo sociopo-
lítico. Se por um lado a vitória polí-
tica deve muito a Rachel Carson, por
outro, seria ingénuo ignorar que a
rede de contactos foi previamente
sensibilizada em prol da protecção
dos ecossistemas.
“Rachel Carson não acordou de
repente um movimento de conser-
vação meio adormecido, vamos sal-
var os papinhos e os falcões, nem
baniu o DDT sozinha. Ela teve ajuda.
Mesmo muita”, defende Robert
Musil, que hoje dirige o Rachel Car-
son Council em Maryland, nos Esta-
dos Unidos.
Viriato Soromenho-Marques con-
corda com a ideia de que “Rachel
Carson não está sozinha”, citando,
por exemplo, o trabalho precursor
do naturalista e Ælósofo Aldo Leo-
pold (1887-1948), que fazia o elogio
de uma “ética da terra”. Há um las-
tro prévio mas, do ponto de vista de
transposição das ideias para as polí-
ticas públicas, Rachel Carson aÆrma-
se como uma divisora de águas.
“A lei-quadro do ambiente, de
1969, e o Dia da Terra, [celebrado
pela primeira vez a 22 de Abril de
1970], por exemplo, têm a sua mar-
ca”, recorda Soromenho-Marques.
Carson, que já escreveu o livro com
um cancro de mama, não sobrevi-
veu para testemunhar estas vitó-
rias. Morreu em 1964, dois anos
após a publicação de Primavera
Silenciosa.
Carson inspirou gerações de acti-
vistas e ecólogos, sobretudo nos
Estados Unidos. A ambientalista
Erin Greeson, hoje com 45 anos,
vê desde muito jovem Rachel Car-
son como “uma heroína”. “Rachel
Carson incentivou os movimentos.
Ela seria inspirada pelos movimen-
tos que acontecem hoje, em gran-
de parte encabeçados por jovens
líderes que se recusam a aceitar o
mundo fracturado e os sistemas
destrutivos que lhes estamos a
entregar”, diz ao PÚBLICO direc-
tora de comunicação do Instituto
para as Energias Renováveis e a
Vida Selvagem, sediado em
Washington.
Para Greeson, a voz de Carson
continua a ecoar hoje e ajuda-nos
a enquadrar e a comunicar os ris-
cos que a crise climática coloca à
humanidade. Ainda assim, parece
faltar-nos uma metáfora poderosa
para condensar a urgência de um
planeta a arder, fustigado com
eventos climáticos extremos.
“Talvez não precisemos mais de
metáforas. Rachel Carson descre-
via em Primavera Silenciosa algo
que ainda não podia ser realmente
visto. Carson falava sobre futuro.
Agora, temos muitos exemplos de
incêndios e inundações — as metá-
foras tornaram-se desnecessárias”,
aÆrma o escritor e activista climá-
tico Bill McKibben, à margem de
uma entrevista ao PÚBLICO.
Já Soromenho-Marques, acredi-
ta que “a crise climática é uma
janela perturbante, gravíssima
para algo mais amplo: a crise glo-
bal do ambiente”. Por isso, quando
enunciamos o problema em busca
de soluções, devemos nos desviar
de “expressões redutoras” como
“transição energética” e focar no
primordial: “A nossa principal cri-
se é a do modo como habitamos a
Terra.”
A solução passa, portanto, pela
transformação, pela possibilidade
de escolher outra estrada. Para
Soromenho-Marques, este é um
ensinamento que Primavera Silen-
ciosa continua a oferecer. Como se
nota nestas palavras, que o Ælósofo
lê Rachel Carson em voz alta: “A
estrada pela qual temos estado via-
jando por tão longo tempo é iluso-
riamente fácil: uma auto-estrada
de pavimentação lisa, pela qual
avançamos em grande velocidade;
mas, na sua extremidade Ænal, o
que há é o desastre.”
Saiba mais sobre ambiente em
publico.pt/azul
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28 • Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022
Desporto Portugal está agora em vantagem na luta pela final four
Com a vitória
Crónica de jogo
Marco Vaza
em Praga
Em 2022, a Liga das Nações é,
em simultâneo, um Æm e um meio.
É uma competição que tem um
troféu e que conta para o currículo,
mas, na circunstância de termos um
basta empate
Mundial daqui a menos de dois
meses, também é uma forma
de avaliar o momento da equipa
antes de começar a luta pelo prémio
maior. Ontem, em Praga, a selecção
em Braga
portuguesa conseguiu algo que
não tem conseguido muitas vezes
nos últimos tempos. Venceu e con-
venceu. Bateu a República Checa
por 0-4, um resultado que, combi-
nado com a derrota da Espanha
frente à Suíça, faz com que baste
Selecção nacional goleou a República apenas um empate, no duelo ibéri-
co da próxima terça-feira, em Bra-
Checa e aproveitou derrota da Espanha ga, para garantir o primeiro lugar
do Grupo 2 e avançar para a Ænal
para assumir comando do grupo 2 a quatro.
MARTIN DIVISEK/EPA
Foi mesmo uma noite em que Triunfo em Praga
tudo correu bem à selecção orien- começou a ser
tada por Fernando Santos. Não só construído a meio
pela vitória convincente e robusta da primeira parte
nos números, mas também pela
sensação de bom encaixe entre
todas as peças — Cristiano Ronaldo
nem sequer precisou de aparecer do nariz após um choque com o
— e de bom aproveitamento ofensi- guarda-redes Vaclik, Patrick Schick
vo. E foi uma noite com dois bónus: Æcou com a mão em mau estado
um penálti falhado pelos adversá- após uma pisadela de Rúben Neves.
rios numa altura em que ainda E a República Checa até pareceu ter
podia signiÆcar alguma coisa para argumentos para lutar pelo resulta-
o resultado Ænal; e, claro, o desaire do, pelo que fez, por exemplo, aos
espanhol em Saragoça, que descom- 30’, quando Barak cabeceou ao lado
plica as contas portuguesas no
objectivo de chegar ao grupo de
semiÆnalistas da competição. Grupo A2
Depois de uma semana de prepa-
ração não muito tranquila, com a Jornada 5
Rep. Checa-Portugal 0-4
renúncia de Rafa e a indisponibili-
Espanha-Suíça 1-2
dade física de vários convocados na
J V E D M-S P
agenda, a selecção portuguesa
entrou em campo com a cabeça lim- 1 Portugal 5 3 1 1 11 - 2 10
pa para defrontar os checos. Foi um 2 Espanha
3 Suíça
5 2 2 1
5 2 0 3
7-5
4-8 6
8
jogo algo acidentado nos primeiros
minutos — Ronaldo Æcou a sangrar 4 Rep. Checa 5 1 1 3 4 - 11 4
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após um cruzamento bem medido
de Coufal.
À melhor oportunidade em todo
o jogo, Portugal respondeu com um
golo. Aos 33’, Diogo Dalot leva a bola
até à área checa, deixa em Bruno
Fernandes, que procura Ronaldo na
pequena área. Um defesa checo cor-
ta na direcção de Rafael Leão e o
avançado do AC Milan, num grande
momento de forma, faz o cruzamen-
to rasteiro que seria concretizado
pelo homem que começara a joga-
da, Dalot, naquele que foi o seu pri-
meiro golo ao serviço da selecção
— não seria o único, de resto, nem o
mais espectacular.
O golo serviu para consolidar o
domínio português no jogo, muito
bem conduzido por Bruno Fernan-
des, William Carvalho e, num pata-
mar ligeiramente abaixo, Bernardo
Silva. Já no tempo de compensação,
aos 47’, uma aventura de Mário Rui
pela esquerda gerou um cruzamen-
to para Bruno Fernandes fazer o
0-2. Mais um golo de um jogador do
Manchester United e, curiosamente,
nenhum deles de Ronaldo.
Penálti falhado
Com as paragens para assistência a
Ronaldo e Schick no início do jogo,
a primeira parte teve mais cinco
minutos e foi tempo suÆciente para
a República Checa beneÆciar de um
penálti, depois de mão na bola de
Ronaldo.
Da marca dos 11 metros, Patrik
Schick, a “estrela” da equipa, de
regresso após lesão, atirou por cima
da baliza portuguesa, com a bola a
bater ligeiramente na trave. Foi a
componente sorte também a bene-
Æciar Portugal num momento em
que a goleada não era, de todo, uma
certeza.
Essa goleada só se materializou
verdadeiramente na segunda parte.
Aos 53’, Dalot recebeu a bola de
Rafael Leão e, de fora da área, atirou
com precisão para o 0-3 — vai ser
difícil tirá-lo da equipa quando João
Cancelo, ausente por castigo, já esti-
ver disponível para Braga. E, aos
82’, o suplente Diogo Jota apareceu
sozinho na área para fazer o 0-4,
após um canto que Ronaldo desviou
na sua direcção.
Era o ponto Ænal num jogo só de
boas sensações para a selecção por-
tuguesa. EÆcácia no ataque, solidez
numa defesa que, em teoria, só
tinha um dos seus titulares (Rúben
Dias entendeu-se bem com Danilo
no eixo da defesa), grande dinâmica
na posse de bola, e com margem
para gestão de recursos — não houve
um único cartão amarelo e havia
vários jogadores em risco de falhar
o jogo com a Espanha.
Por tudo isto, Portugal chega à
última jornada da fase de grupos da
Liga das Nações com a qualiÆcação
na mão. Mas a Espanha, que tam-
bém só depende de si para passar,
será sempre um adversário mais
perigoso que a República Checa.
0 4
REP. CHECA PORTUGAL
Fortuna Arena, em Praga, Rep. Checa
Rep. Checa Vaclik; Zima, Brabec
(Kudela, 22’), Jemelka, Coufal,
Soucek (Kuchta, 77’), Kral, Zeleny
(Vlkanova, 64’), Barak (Sevcik, 63’),
Hlozek (Cerny, 64’) e Schick.
Treinador Jaroslav Silhavy
Portugal Diogo Costa; Diogo Dalot,
Rúben Dias, Danilo (João Mário, 83’),
Mário Rui, Rúben Neves, William
(Palhinha, 77’), B. Fernandes (Matheus
Nunes, 77’), Bernardo Silva (R. Horta,
67’), Rafael Leão (Diogo Jota, 67’) e
Ronaldo. Treinador Fernando Santos
Árbitro Srdjan JovanoviĿ (Sérvia)
VAR Bastian Dankert (Alemanha)
Golos Dalot 33’ e 52’, B. Fernandes
45+2’, Diogo Jota 82’
Positivo/Negativo
Diogo Dalot
Nunca tinha marcado pela
selecção, mas estrou-se
logo com dois golos, um
testemunho da sua grande
inclinação ofensiva. Com
ele e com Cancelo, o lado
direito da defesa está bem
coberto.
Bruno Fernandes
Este terá sido um dos seus
melhores jogos pela
selecção nacional,
coroado com um golo
pleno de sentido de
oportunidade. Andou por
várias posições no campo,
sempre em alta rotação.
William Carvalho também
esteve quase perfeito.
Patrick Schick
A “estrela” checa gosta de
marcar golos
espectaculares, mas,
frente a Portugal, falhou
um penálti, com um
desastrado remate que
acabou com a bola na
bancada. Talvez fosse
demasiado fácil para o
avançado do Bayer
Leverkusen, que está longe
do melhor momento.
Reacções
“Podíamos ter feito
um bocadinho melhor,
sobretudo após o terceiro
golo, em que podíamos ter
tido mais bola. Mas o
resultado fala por si”
Diogo Dalot
Lateral da selecção
Líder cai em Saragoça
Espanha sofre desfalque nas contas
com uma Suíça renascida das cinzas
Augusto Bernardino
Portugal despertou o monstro dos
Alpes e a Espanha foi a segunda víti-
ma de uma Suíça renascida das cin-
zas, que venceu, por 1-2, em Saragoça,
e obrigou a rasurar as contas do gru-
po, promovendo uma nova ordem
que pode acabar da pior forma para
o Ænalista vencido de 2020-21 da Liga
da Nações.
A Espanha tinha, em tese, uma
missão bem mais simples do que Por-
tugal para chegar à última ronda em
posição privilegiada para seguir para
a “final four”. Em 24 encontros com
a Suíça, a “Roja” apenas por uma vez
perdera com os helvéticos, há 12 anos,
por 1-0, na fase de grupos do Mundial
da África do Sul, conquistado pelos
espanhóis com um único desaire.
Agora, em solo espanhol, o desfalque
revelou-se um verdadeiro rombo nas
contas do grupo.
Animada pelo triunfo conseguido
frente a Portugal, o único até ontem
nesta Liga das Nações, a Suíça jogava
no La Romareda a sobrevivência no
grupo, consciente de que uma derro-
ta em Espanha e um triunfo dos che-
cos frente a Portugal os relegariam
para a Liga B. Mas nada disso se con-
Ærmou, muito pelo contrário.
Ainda assim, sem surpresa, a Espa-
nha, com algumas opções discutíveis
no “onze” — Jordi Alba e Marco Asen-
sio são segundas escolhas no Barce-
lona e no Real Madrid, respectiva-
mente —, impôs o ritmo, controlou a
posse de bola, mas falhou claramente
na Ænalização, não conseguindo um
único remate enquadrado com a bali-
za em toda a primeira parte.
Nesse capítulo, a Suíça revelava-se
mais assertiva e sempre que chegava
perto da baliza de Unai Simón fazia-o
com perigo. De tal forma que chegou,
mesmo, à vantagem num golo de
Manuel Akanji (21’). O central do Man-
chester City foi mais forte e compe-
Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022 • 29
“A nível colectivo, foi talvez
dos jogos mais seguros,
com muito controlo, com
excepção para ra as bolas
paradas defensivas.
nsivas.
Trabalhámos muito”
s
Fernando Santos
Seleccionador
tente num canto, assinando o seu
primeiro golo pela selecção.
Luis Enrique não cedeu e manteve
a aposta no mesmo onze para a
segunda parte. Coerência premiada
com um golo “inventado” por Asen-
sio e assinado por Alba (55’), a tal
dupla surpresa. E quando os ventos
pareciam prestes a mudar, Akanji
reapareceu num canto para desviar
a bola que Embolo (58’) levou às redes
de Unai Simón. Até Ænal, a Espanha
tentou tudo, mas sem sucesso, aver-
bando a primeira derrota no grupo,
que a deixa no Æo da navalha no jogo
decisivo de Braga, com Portugal.
Ao vencer na Arménia no início da
tarde, em partida dirigida pelo árbitro
Grupo B1
Jornada 5
Arménia-Ucrânia 0-5
Escócia-Rep. Irlanda 2-1
J V E D M-S P
1 Escócia 5 4 0 1 11-5 12
2 Ucrânia 5 3 1 1 10-4 10
3 Rep. Irlanda 5 1 1 3 5-5 4 ção. Os israelitas, com Miguel Vítor
4 Arménia 5 1 0 4 2-14 3
A Suíça voltou a surpreender um dos favoritos ao triunfo no grupo
“Fomo superiores.
É sempre bom estar
em primeiro lugar do grupo
na últim
última jornada, mas
vvamos
amos entrar para ganhar
no jogo
jog com a Espanha”
Wi
William Carvalho
M
Médio da selecção
português João Pinheiro, a Ucrânia
adiou, automaticamente, qualquer
possibilidade de a Escócia carimbar
o passaporte para a Liga A. Pelo
menos no encontro de ontem, apesar
de os escoceses terem vencido (2-1) a
República da Irlanda.
Os ucranianos golearam por 0-5 os
arménios e recuperaram, provisoria-
mente, a liderança que tinham perdi-
do na ronda anterior, na Escócia, com
a primeira derrota neste grupo 1.
Igualmente animada esteve a luta no
grupo B4, onde a Noruega perdeu
pela primeira vez (2-1) na Eslovénia,
adiando a promoção à Liga A. Os eslo-
venos deram a volta ao resultado e
ainda viram a Sérvia bater a Suécia
(4-1), também numa reviravolta com
hat-trick de Mitrovic.
Os sérvios assumiram, inclusive, a
liderança que defenderão na Norue-
ga, na última ronda. Os suecos terão
de vencer a Eslovénia para evitarem
a despromoção. No grupo B2, encur-
tado com a exclusão da Rússia, Israel
precisava de um triunfo na recepção
à Albânia para tirar a Islândia da equa-
no “onze”, cumpriram (2-1).
JEAN-CHRISTOPHE BOTT/EPA
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A democracia em jogo
No dia 2 de Outubro, os brasileiros vão escolher o seu próximo Presidente. Num país dividido entre a figura
de Jair Bolsonaro e de Lula da Silva, muitos acreditam que é o próprio sistema democrático que está em risco.
Estas são eleições cruciais para serem acompanhadas diariamente no PÚBLICO,
na edição impressa ou em publico.pt/eleicoes-brasil-2022
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Público • Domingo, 25 de Setembro de 2022 • 31

Desporto
MotoGP
Miguel Oliveira Ciclismo de estrada Annemiek van Vleuten conquista título mundial
qualifica-se em 8.º
para o GP do Japão
DEAN LEWINS/EPA
Miguel Oliveira (KTM) garantiu a
oitava posição na grelha de
partida do Grande Prémio do
Japão de MotoGP. O piloto luso
fez a sua melhor volta em
1m55,895s, terminando a 0,681
segundos do espanhol Marc
Márquez, que não saía da pole
há 1071 dias, desde o GP do
Japão de 2019. Oliveira sairá da
terceira linha da grelha de
partida, depois de ter sofrido
uma queda quando faltavam
apenas três minutos para o final
da sessão marcada pela chuva.

Golfe
Ricardo Melo Gouveia
continua a recuperar
no Open de França
Ricardo Melo Gouveia subiu ao
22.º lugar do Open de França,
em contraponto com Ricardo
Santos, que caiu para 28.º no
torneio francês do mais
importante circuito europeu.
Melo Gouveia fez 69 pancadas,
duas abaixo do par. Ricardo
Santos precisou de 71 e caiu
seis postos. Com 209 shots,
Ricardo Melo Gouveia está a
oito do líder, Rasmus Hojgaard.
Pedro Figueiredo não
conseguiu passar o cut, tendo
terminado no 133.º lugar.
A ciclista neerlandesa Annemiek
van Vleuten conquistou, ontem,
o título mundial de estrada, ao
vencer a prova de fundo
feminina dos Mundiais de
Wollongong, na Austrália. A
corredora, que fracturou um
cotovelo no arranque da estafeta
mista, na quarta-feira,
superou-se e provou ser a mais
forte do pelotão internacional,
juntando este título mundial ao
de 2019, bem como às três
“grandes voltas” conquistadas
este ano.
Para chegar ao triunfo, a
neerlandesa soube manter-se
entre as favoritas, para, a cerca
de um quilómetro da meta,
escapar ao grupo de 12 ciclistas
que seguia na frente, superando
a belga Lotte Kopecky e a
italiana Silvia Persico.
Ainda incrédula com o feito,
declarou: “É a minha mais bela
vitória. Passei do pesadelo ao
sonho. Nunca imaginei ser
possível vencer esta corrida. Os
meus sonhos tinham Æcado em
risco devido à fractura no
cotovelo.”
Prata na prova de fundo de
Tóquio 2020 e ouro no “crono”,
Annemiek van Vleuten soma
ainda nove medalhas em
Mundiais de estrada, quatro de
ouro, mais uma em Mundiais de
pista, e um ouro em
Campeonatos da Europa.
Destaque ainda para as três
vitórias no Giro Rosa, em 2018,
2019 e 2022, com 13 etapas
conquistadas; uma no Tour
(2022); e duas na Vuelta (2021 e
2022), bem como uma série de
outras provas por etapas (por
exemplo, duas Voltas à Flandres
e duas Liège-Bastogne-Liège).

Remo Surf Basquetebol Andebol

Afonso e Dinis Costa
vencem Final B dos
Mundiais de Racice
Os irmãos Afonso e Dinis Costa
venceram, ontem, a Final B de
double-scull peso ligeiro nos
Mundiais de remo de Racice, na
Rep. Checa. A dupla portuguesa
ganhou com 6m28,78s, batendo
os espanhóis Caetano Pombo e
Manel Balastegui, por 1,24s. Os
irmãos Costa terminaram os
Mundiais no sétimo posto.
Qualificam-se para Paris 2024
os sete primeiros dos Mundiais
de 2023, a disputar em
Belgrado, na Sérvia, entre 3 e 10
de Setembro de 2023.
Guilherme Fonseca
apura-se para a final,
Bonvalot abandona
Guilherme Fonseca qualificou-se
para a final dos Jogos Mundiais
de Associação Internacional de
Surf, tendo Teresa Bonvalot
desistido da prova feminina, por
lesão, terminando no sexto lugar.
Guilherme Fonseca disputará a
final após ter terminado o “heat”
da sétima ronda no segundo
lugar, com 12,94 pontos, atrás do
japonês Kanoa Igarashi (15,93),
vice-campeão olímpico em
Tóquio 2020. Yolanda Hopkins
despediu-se na nona ronda da
repescagem, com 9,76 pontos.
FC Porto entra Quinteto de líderes
com a mão direita à 2.ª jornada
no campeonato da Liga portuguesa
O FC Porto iniciou a edição de O Benfica, que venceu o Santo
2022-23 da Liga de basquetebol Tirso (25-35), o Águas Santas,
com um triunfo (88-62) sobre o que ganhou em casa do
CAB Madeira, enquanto o V. Belenenses (27-29), o Sporting,
Guimarães perdeu em casa com que ultrapassou o Marítimo
a Oliveirense (86-104). A (36-24), o Póvoa, que bateu o
Ovarense impôs-se ao CD Póvoa, Ac. Viseu (37-25), e o ABC, que
por 88-70, e o embate entre superou o Avanca (35-25),
Lusitânia e Sangalhos foi adiado, formam um quinteto de líderes
já que as condições atmosféricas no campeonato nacional de
não permitiram a aterragem nos andebol, após a 2.ª jornada.
Açores da equipa visitante. O Depois da derrota no arranque
jogo grande da jornada inaugural, da prova, o FC Porto levou a
o Sporting-Benfica, vai realizar-se melhor sobre o FC Gaia, por
no dia 17 de Novembro. expressivos 43-26.
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Domingo, 25 de Setembro de 2022

BARTOON LUÍS AFONSO

Chega agradece ao PSD a “normalização”

e anuncia que Montenegro prepara o futuro
RUI GAUDÊNCIO
somos daqueles que ultrapassam Montenegro o apelo ao voto do
Anacrónica muros para abraçar o extremismo PSD no candidato a
só para sobreviver politicamente.” vice-presidente do Chega que
Ohhhhh, que lindo. AÆnal, era só depois o líder parlamentar se
uma frase para “impressionar os encarregou de transmitir, Ventura
burgueses”, e sinto-me nesta diz: “É assim que a direita deve
história bastante enganada por funcionar, cada um na sua
um soundbite feito exactamente diferença, mas com expectativa
para aldrabar pessoas que temiam para 2026.”
Ana Sá Lopes
o que viria a sair das profundas Ainda por cima, André Ventura

F
ui muito ingénua no
congresso do PSD. Acreditei
que, apesar dos
ziguezagues patéticos com
que Luís Montenegro nos
brindou durante a
campanha eleitoral sobre o Chega,
o novo líder tencionava pôr o PSD
a afastar-se do partido de André
Ventura. Oh, a minha santa
ingenuidade. AÆnal, aquelas
palavras de Montenegro que
registei no congresso do Porto
valiam tanto como os jornais em
papel no dia seguinte — nem para
forrar o balde do lixo já servem,
como acontecia nos anos 70/80.
O que disse Montenegro no
congresso? Isto: “É por sermos
moderados que não somos nem
populistas nem ultraliberais. E
muito menos nos associaremos
algum dia a qualquer política
xenófoba ou racista. Nós não
hesitações de Montenegro sobre o
Chega, como um famoso diálogo
com a jornalista da SIC Débora
Henriques mostrou.
Depois do que aconteceu esta
semana, com o PSD a querer
obrigar os seus deputados a
elegerem um vice-presidente do
Chega, argumentando com as
tradições parlamentares, as juras
de Montenegro no congresso do
PSD passaram a valer zero.
Montenegro lá fez as suas
contas e percebeu que sem André
Ventura não consegue chegar a
primeiro-ministro. No fundo, o
Chega acaba de ocupar o lugar do
velho CDS na contabilidade
eleitoral dos sociais-democratas e
isto vem já do tempo de Rui Rio e
do famoso acordo dos Açores.
A questão é que o CDS era um
aliado natural — cuja associação
com o PSD nunca alarmou o
centro. A previsível aliança com o
“normalizado” Chega vai alienar
o centro e dar mais
oportunidades ao PS no futuro,
por muito que este Governo já
pareça ser “a casa da Joana”,
onde cada um fala para o seu
lado.
É quase comovente o
agradecimento de André Ventura
ao PSD e a sua conÆança no
acordo para 2026. “Cada vez Æca
mais claro que em 2026 tem de
haver esta normalização para
poder haver uma alternativa”,
disse Ventura. Mas há mais frases
mimosas. Admitindo que
concertou com o próprio Luís
tem a suprema lata de vir criticar
Rui Rio, que lhe ofereceu o
acordo dos Açores e muitas
hesitações sobre acordos futuros
— as suÆcientes para os
portugueses acharem que a
possibilidade de aliança
pós-eleitoral entre o PSD de Rio e
o Chega era real. Para elogiar o
actual presidente do PSD e a nova
“atitude” do partido, criticou Rui
Rio, que “não quis fazer esta
normalização”, enquanto
Montenegro “tem uma atitude
diferente”.
De tudo isto, pode arranjar-se
uma “moral da história”: sete
anos depois de ter chegado ao
poder, e com todas as trapalhadas
que este Governo nos oferece
semanalmente, o PS é um partido
cheio de sorte.
Jornalista

PÚBLICO, Comunicação Social, SA. Todos os conteúdos do jornal estão protegidos por Direitos de Autor ao abrigo da
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uso livre permitidas por lei sem o consentimento expresso e escrito da PÚBLICO, Comunicação Social, S.A.
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