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Entrevistas

Nem garantido, nem caprichoso


André Oliveira
Caçadores de emoções
Janaína Brizante e
Manuel Garcia-Garcia
Mais do que produto, nós
vendemos ponto de vista!
Andrea Salgueiro Cruz Lima
revista da espm • ano 21 • edição 98 • nº3 • maio/junho 2015 • R$ 28,00
Rede social: o futuro do
consumo passa por aqui?
Daniel Miller
O binômio do consumo
Julio Ribeiro

Artigos Artigos

os NOVOS
Em busca dos cientistas A plateia invadiu o palco
do consumo
O consumo como
Consumo: proscrito ou prescrito? linguagem: aquém

CIENTISTAS
e além da satisfação
A economia comportamental: um
novo olhar para o ser humano O marketing nunca
será uma ciência

DO CONSUMO
Neurociência do consumo:
as fronteiras da pesquisa de Classe C... de contida!
mercado e suas contribuições
para os métodos tradicionais A vovó não é mais
de pesquisa vovozinha
Responsabilidade
Eles estão de olho em você!
O virtual que se tornou real
socioambiental e consumo
A era da neurociência:
entenda o cérebro O consumo que
do seu consumidor! nos define
editorial
EXPEDIENTE

Os novos cientistas
Conselho Editorial
Francisco Gracioso – Presidente
Alexandre Gracioso
Thomaz Souto Corrêa

do consumo
J. Roberto Whitaker Penteado
(MTB no 178/01/93)

Coordenação Editorial
Lúcia Maria de Souza

C
Editora Assistente
Anna Gabriela Araujo
omo veículo de divulgação e debate de novas ideias, a Revista da ESPM
não pode e nem deve tomar partido a favor ou contra qualquer um de
Edição de Arte
Mentes Design seus colaboradores. Nosso objetivo consiste, justamente, em informar
o leitor e levá-lo a formar a sua própria opinião. Este lembrete é oportuno para
Revisão
Anselmo Teixeira de Vasconcelos abrirmos esta edição, que é destinada a atualizar e organizar as informações
Antonio Carlos Moreira
Mauro de Barros
que já circulam no mercado, sobre as chamadas ciências do consumo.
O consumo jamais será um processo científico em si mesmo. O ato de con-
Redação
Rua Dr. Álvaro Alvim, 123 sumir é o resultado da interação de leis científicas com variáveis subjetivas,
São Paulo – SP – CEP 04018-010 associadas às emoções humanas. O momento da decisão, quando o consu-
Tel.: (11) 5085-4508
Fax: (11) 5085-4646 midor exerce a sua preferência por determinada marca, é o resultado de uma
e-mail: revista@espm.br combinação de fatores emocionais e racionais, como já demonstrou o professor
Comercial Daniel Kahneman, em entrevista publicada nesta revista.
MidiaOffice
Julio Cesar Ferreira
No entanto, a competição cada vez mais acirrada entre as grandes mar-
(11) 9 9222-4497 cas está provocando uma revolução silenciosa nos métodos de análise e
juliocferreira@uol.com.br
interpretação do comportamento do consumidor. O objetivo é levantar mais
Impressão subsídios e garantir mais rapidez e segurança na obtenção e interpretação
Referência Gráfica
orcamento@referenciagrafica. dos dados, tornando as tomadas de decisões mais precisas. No arsenal das
com.br
novas armas que os pesquisadores vêm utilizando estão a antropologia, a
Distribuidor Exclusivo etnografia, a sociologia e, naturalmente, a psicologia. A tudo isso soma-se
Dinap Ltda. – Distribuidora
Nacional de Publicações agora a neurociência, baseada em princípios científicos já conhecidos e uti-
lizando métodos que se aproximam da ficção científica, como o leitor verá
Operação em Bancas
Assessoria em algumas das matérias que se seguem.
Edicase
www.edicase.com.br
Estamos diante de um fenômeno sem volta que faz parte de algo ainda
maior, em que se incluem o big data e os novos sistemas de informações do
Revista da ESPM
Publicação bimestral da Escola Su- varejo. Hoje, o problema não é mais a obtenção de informações, mas sim a sua
perior de Propaganda e Marketing. interpretação e utilização prática.
Os con­­ceitos emitidos em artigos
assinados são de exclusiva respon- Como já dissemos acima, o assunto é polêmico. Embora a maioria aprove as
sabilidade dos respectivos autores. ciências do consumo, há também vozes dissonantes, como se vê na entrevista
Professores, pesquisadores, consul­ com Julio Ribeiro, na página 128. De fato, não se deve esquecer que as informa-
tores e executivos são convidados a
apresentar matérias sobre su­as es-
ções fornecidas pelas ciências são apenas o preâmbulo do salto criativo que leva
pecialidades, que venham a contribuir às grandes campanhas. O apóstolo São Paulo, grande observador da natureza
para o aperfeiçoamento da teoria e da
prática nos campos da administração humana, já dizia que, quando pensamos demais sobre determinado assunto,
em geral, do mar­k­eting e das comuni- corremos o risco de nos tornarmos retóricos. No marketing e na propaganda,
cações. In­for­ma­ções sobre as formas
e condições, favor entrar em contato o desafio dos profissionais é justamente a utilização das ciências do consumo,
com a coordenadora editorial.
evitando o risco de cair na retórica.

Francisco Gracioso
Presidente do Conselho Editorial

PARA ASSINAR, LIGUE: (11) 5085-4508 OU MANDE UM FAX PARA: (11) 5085-4646 - www.espm.br/revistadaespm
instituição mantenedora

associados conselho deliberativo diretoria


• Adriana Cury • José Bonifácio de Oliveira • Armando Ferrentini – Presidente
executiva da ESPM
• Alex Periscinoto Sobrinho • Alex Periscinoto
• Altino João de Barros • José Carlos de Salles • Armando Strozenberg • J. Roberto Whitaker Penteado
• Andrea Salgueiro Cruz Lima Gomes Neto • Dalton Pastore Presidente
• Antonio Fadiga • José Heitor A­ttilio Gracioso • Décio Clemente
• Antonio Jacinto Matias • Judith Brito • João Vinicius Prianti
• Armando Ferrentini • Luiz Antonio Viana • José Carlos de Salles Gomes Neto • Alexandre Gracioso
• Armando Strozenberg • Luiz Carlos Brandão • Luiz Marcelo Dias Sales Vice-presidente acadêmico
• Claudio de Moura Castro Cavalcanti Júnior • Luiz Lara
• Dalton Pastore • Luiz Carlos Dutra • Roberto Duailibi • Elisabeth Dau Corrêa
• Décio Clemente • Luiz Lara • Sérgio Reis Vice-presidente
• Francisco Gracioso • Luiz Marcelo Dias Sales administrativo-financeira
• Francisco Mesquita Neto • Marcello Serpa conselho fiscal
• Giancarlo Civita • Octávio Florisbal
Titulares • Emmanuel Publio Dias
• Jayme Sirotsky • Orlando Marques • Luiz Carlos Brandão Vice-presidente corporativo
• João Batista Simon Ciaco • Percival Caropreso Cavalcanti Jr. – Presidente
• João Carlos Saad • Roberto Duailibi • José Heitor Attilio Gracioso
• João De Simoni Soderini Ferracciù • Roberto Martensen • José Francisco Queiroz
• Percival Caropreso
• João Roberto Marinho • Sérgio Reis Vice-presidente de marketing
Suplente
• João Vinicius Prianti • Waltely Longo • Adriana Cury e comunicação
Índice
Em busca dos
cientistas do consumo
Karina Milaré
Quem são e o que fazem os
cientistas do consumo, que usam
os ensinamentos de sociologia,
antropologia, psicologia e
administração para trazer um
pouco mais de previsibilidade do
comportamento humano e da
sociedade para o mundo corporativo

Pág. 22

Consumo: proscrito
ou prescrito?
Mario E. René Schweriner

Protagonista de todas as

shut terstock
necessidades e desejos humanos, o
consumo é o motor da economia e
merece ser estudado mais a fundo!
Entenda como ocorrem as relações
de compra na sociedade moderna e
por que as pessoas não param de as marcas a obter respostas mais Grandes empresas, como Google,
consumir precisas sobre os gostos, os hábitos Unilever, McDonald’s e L’Oréal,
e o comportamento de consumo e de investem na área de neurociência
Pág. 26
compra de seus targets. Mas como com o objetivo de entender melhor
tudo isso funciona na prática? o seu público, aprimorar o processo
A economia comportamental: criativo e otimizar os pontos de
Pág. 46
um novo olhar para o ser contato de marketing
humano
O virtual que se tornou real Pág. 62
Flávia Ávila
Paulo Carramenha
O que é e como funciona a economia
A sociedade está em busca O consumo que nos define
comportamental? Conheça a ciência
de produtos que permitam o Flavio Ferrari
que propõe uma visão mais realista
consumo em movimento, com
da natureza humana, além de fornecer Estudos da Ipsos apontam o
portabilidade e privacidade. Para
ferramentas poderosas para entender que os consumidores estão buscando
entender e atender a essa nova
mais a fundo os consumidores e quais são as principais tendências de
demanda dos consumidores, a
consumo no Brasil e no mundo. Entre
Pág. 32 pesquisa de mercado conta com a
elas está a substituição da posse de
tecnologia a seu favor
um bem pelo benefício que ele oferece
Neurociências do consumo: Pág. 56
Pág. 78
as fronteiras da pesquisa
de mercado
A era da neurociência:
Pedro Calabrez e Alexandre Morgado A plateia invadiu o palco
entenda o cérebro
Francisco Alberto Madia de Souza
Tecnologias neurocientíficas, do seu consumidor!
aliadas às ciências sociais, ajudam Lucas Copelli Com o consumidor no comando,

10 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


o marketing assume, Classe C... de contida! Entrevistas
definitivamente, o seu principal Renato Meirelles
papel: converter empresas, O primeiro ponto para entender a
produtos e serviços em marcas nova classe média brasileira é ter
de qualidade na cabeça e no
14
em mente que, para essas pessoas,
coração de seus stakeholders consumo e consumismo são conceitos
Pág. 82 diferentes. Para a classe C, consumir
Nem garantido,
é um investimento que visa ao
nem caprichoso
O consumo como desenvolvimento da família André Oliveira
linguagem: aquém e Pág. 134
além da satisfação
João Matta
Houve uma época em que A vovó não é mais
o novo não era bem-vindo e os
produtos eram produzidos para
vovozinha: o preconceito
e a nova cara da terceira idade 38
durar gerações. Hoje, os indivíduos Gisela Castro Caçadores de emoções
consomem porque aprenderam Atualmente, no conceito de terceira Janaína Brizante e
associar consumo à felicidade. idade, os 70 são os novos 50, e a Manuel Garcia-Garcia
Saiba como esse cenário foi vovó tem namorada. Ainda assim, o
construído ao longo dos anos preconceito contra os mais velhos
existe e é grande. Mas até quando essa
Pág. 92
situação irá prevalecer na sociedade?

Especial Ciências do consumo


Pág. 140 68
O marketing nunca será Mais do que produto, nós
uma ciência. Mas a ciência Responsabilidade vendemos ponto de vista!
pode ajudar o marketing socioambiental e consumo: Andrea Salgueiro Cruz Lima
a ser mais eficiente uma equação necessária
Anna Gabriela Araujo e Ismael Rocha e Marcus Hyonai Nakagawa
Francisco Gracioso Nos últimos 30 anos, muitas empresas
Confira como Bombril, Casas demonstraram que é possível construir
Bahia, Cosan Lubrificantes, Fiat,
NET, Porto Seguro e PepsiCo
um mundo melhor e obter bons
resultados financeiros ao mesmo
100
utilizam as descobertas dos tempo. Descubra qual é a fórmula Rede social: o futuro do
chamados cientistas do consumo, capaz de equilibrar a geração de consumo passa por aqui?
lucros com os dividendos sociais Daniel Miller
no dia a dia de suas operações

Pág. 110 Pág. 148

128
Leitura recomendada 154
Ponto de vista
O consumo nas sociedades contemporâneas O binômio do consumo
Fernando Henrique Cardoso 158 Julio Ribeiro

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 11


ESPM Consult.
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entrevista | André Oliveira

André Oliveira
Formação: fez comunicação social, psicologia, sociologia,
teoria da comunicação, cinema e jornalismo na PUC-Rio
e publicidade na Universidade Anhembi Morumbi
Atuação: diretor de tendências da Box1824
Carreira: iniciou sua trajetória profissional como trainee
na área de planejamento estratégico da BorghiErhLowe,
em 2006. No ano seguinte, foi para a TBWA/Brasil,
como assistente de planejamento estratégico. Em
2008, assumiu o posto de supervisor de planejamento
estratégico da McCann Erickson, de onde saiu em
2010 para a LiveAd. Um ano depois foi ser gerente de
conexões de marca da Limo Inc. Ingressou na Box1824,
em 2013, como gerente de tendências

14 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


Nem garantido,
nem caprichoso

A
s equipes rivais do boi-bumbá no folclore amazônico da Festa de Parintins
são uma alegoria constante no raciocínio do diretor de tendências da
Box1824, André Oliveira. Fundada há dez anos, a empresa de pesquisa e
consultoria conquistou enorme reputação no mercado ao estudar a fundo
as novas manifestações socioculturais dos brasileiros entre 18 e 24 anos. Sua carteira
de clientes abraça grandes líderes de mercado, como Ambev, Itaú, Vivo, Fiat, Grende-
ne e C&A, só para citar algumas.
Ancorada pelos conceitos das ciências do consumo, a Box tem apontado tendências
que superam em muito a visão tradicional de classe social, hábitos de consumo, idade
e geografia. “Está tudo muito misturado”, enfatiza André. Nota-se isso pela equipe da
Box. Ali estão todas as “ias” — sociologia, psicologia, antropologia —, gente de comu-
nicação, artes e administração. Um composto que define com clareza (ou complica
ainda mais) o perfil dos futuros planejadores de marca e cientistas do consumo.
Enxergar o que vem pela frente é uma tarefa complexa, quando conceitos até pouco
tempo consagrados, como as ditas gerações X, Y ou millenium, e até mesmo o on-line
e o off-line já não fazem muito sentido. Para o pesquisador da Box, a grande novidade
é enxergar na figura do jovem um disseminador nato de tendências, alguém mais dis-
posto ao convívio e à aceitação das diferenças.
Liberal ou conservador? Classe A ou classe C? Esquerda ou direita? Temas como a
política, o entretenimento, o homossexualismo, a carreira e as novas relações fami-
liares estão muito mais abertos. Uma geração que transita entre o anticonsumismo
e a ostentação, complicando bastante o jogo no tabuleiro das marcas. Desbravar esse
cenário exige cada vez mais a compreensão dos extremos, sem dividir o mundo em
certo ou errado. Nem garantido, nem caprichoso.

Por Arnaldo Comin


Fotos: Divulgação

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 15


entrevista | André Oliveira

Revista da ESPM — Começando pelo Alfa é aquele que já faz a sua própria André — A primeira diferença é esse
mais simples, o que faz a Box1824? cerveja e está muito envolvido lá na nosso perfil multidisciplinar. Nós usa-
ponta. O Mainstream somos todos mos e abusamos das mais variadas
André — Não é tão simples assim. nós, que estamos começando a to- metodologias e temos uma vontade
Fazemos muita coisa! Nós somos mar marcas como Budweiser, Stella muito grande de sempre criar novas
um escritório de pesquisa de mer- Artois ou Heineken, que represen- metodologias e de utilizar tal prática
cado, tendências e inovação. Essa tam uma categoria um pouco acima para quebrar algumas barreiras.
é a tríade. Temos a inovação como das que haviam no passado. E o Beta
um dos nossos pilares para a cria- é o mais interessante, porque ele cir- Revista da ESPM — O modelo de tra-
ção de workshops com os clientes cula entre os dois mundos e exerce a balho da Box está muito ancorado nos
e o desenvolvimento da questão função de disseminador. Por isso, ele princípios das ciências do consumo. Pes-
da linguagem na comunicação. Aí é o cara que antecipa o futuro. Sem- soalmente, como você define essa área?
tem muito de consultoria. Depois, pre que realizamos uma pesquisa de
seguimos para a pesquisa de merca- mercado, focamos nesses três públi- André — De maneira muito essen-
do e o consumidor. Nascemos com cos, mas é no Beta que depositamos cial, as ciências do consumo visam
um perfil diferente das empresas mais atenção. Essa é a Box. estudar o sistema econômico em que
de pesquisa tradicionais, porque vivemos e cruzar esses dados com
gostamos de fazer estudos mais Revista da ESPM — Qual é o perfil dos a maior profundidade das ciências
profundos, levantar pontos para colaboradores da Box e sua formação sociais. As “ias” da vida — sociologia,
que o cliente possa ir mais longe. A profissional? antropologia, psicologia — conse-
partir disso, olhamos para o futuro guem nos fornecer material para
e passamos a fa lar muito sobre André — Eu, como responsável pela entendermos as reações das pessoas
tendências. Essa é a nossa vocação, área de tendências da empresa, te- com o fetiche de uma marca e a aspi-
tanto que uma das filosofias da Box nho como origem a comunicação ração dela em relação a algum códi-
é olhar o consumidor a partir dessa e a publicidade. No meu time tem go. As ciências do consumo tentam
perspectiva. Esse é um mercado uma designer gráfica, um designer entender essas relações.
ainda pequeno no Brasil, mas esta- de moda, uma cientista social e mais
mos vendo-o crescer bastante nos uma pessoa formada em letras. Ou Revista da ESPM — Como isso se tra-
últimos anos. seja, tudo o que você quiser, tem aqui duz para os clientes?
(risos). A Box toda é assim, tem muita
Revista da ESPM — Olhar para o con- gente da área de ciências sociais e de André — Quando a Box surgiu, há
sumidor, como? comunicação, nós gostamos muito dez anos, ela se destacou por conse-
dessa mistura. guir mostrar novas realidades que
André — Nós trabalhamos com uma as pessoas estavam vivendo. Isso em
pirâmide de influência, que tem no Revista da ESPM — O mercado brasi- grande parte tem a ver com a nossa
topo o Alfa, depois o Beta e, por fim, leiro, há décadas, trabalha com pesqui- metodologia de invasão de cenários,
o Mainstream. Se tomarmos como sa qualitativa. O que diferencia a Box do em que pegamos os ensinamentos
exemplo o mercado de cerveja, o que já está consagrado nessa área? da etnografia, da sociologia e da ob-
servação participativa. Mas, em vez
de posicionar essas pessoas dentro
Sempre que realizamos uma pesquisa de uma sala fechada ou passar três
dias com alguém usando o modelo
de mercado, focamos em três públicos: convencional, nós desenvolvemos
Alfa, Beta e Mainstream. Mas é no Beta que o conceito de ir para a rua e acom-
depositamos mais atenção. Essa é a Box! panhar as pessoas de uma maneira

16 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


mais contextualizada. Isso trouxe
mais genuinidade aos resultados.
A partir daí, criamos a “home inva-
sion”, técnica que começava com a
conversa em um bar e, de repente,
seguia com a pesquisa para a casa
da pessoa. Esse trânsito chacoalhou
bastante o mercado com a chegada
da Box. Eu diria que o nosso sucesso
está em fazer essa triangulação o
tempo todo: entender o comporta-
mento das pessoas, cruzar essa in-
formação com o “futuro” e levar algo
novo para que o cliente possa usar.
Mais do que pesquisadores, aqui
nós nos comportamos o tempo todo
como consultores.

latinstock
Revista da ESPM — Vocês gostam de
trabalhar com pacotes metodológicos
prontos ou o objetivo é sempre criar ”Está tudo misturado mesmo. Tem nego da classe A na balada da classe C,
coisas novas? e nego da classe C na balada da classe A. E isso é demais!”

André — Temos uma prateleira de Revista da ESPM — Você tocou no tema temos profissionais formados em ad-
serviços, como todo mundo deve ter, do branding. Neste sentido, como você ministração com especialização em
mas o nosso trabalho é muito artesa- vê a figura do profissional tradicional de arquitetura, outro é formado em pu-
nal. A cada briefing, pensamos muito planejamento de marca das agências? blicidade com mestrado em ciências
na metodologia. Isso é bacana, porque Na lógica das ciências do consumo, o sociais. Eu mesmo sou formado em
é difícil ganhar em volume dentro do mercado demanda um profissional mais comunicação com especialização em
mercado com esse modelo, mas nós interdisciplinar? sociopsicologia. O perfil de profissio-
temos uma boa resposta dos clientes. nal mais benquisto é o de quem está
André — Com certeza. Hoje, uma conseguindo misturar arte e ciência
Revista da ESPM — Com qual perfil de das grandes dificuldades do merca- o tempo todo. Quando eu tento traçar
clientes vocês trabalham? do é encontrar profundidade, e isso o perfil etnográfico de alguém a partir
acontece não por incapacidade dos do seu comportamento na internet,
André — Com todos que você ima- profissionais, mas porque as pessoas preciso saber muito mais de digital
gi na r. Somos mu ito comprados não têm tempo. Nós enxergamos isso do que apenas navegar por uma rede
pela liderança em seus respecti- claramente. É muito difícil sair da ca- social. São várias disciplinas novas,
vos segmentos. Trabalhamos com deira. O que mais tem hoje no mercado como neurociência e neuromarketing,
Ambev, Itaú, Vivo, Fiat, Grendene, é o planejador de escritório, que não que estão ganhando importância.
C&A. São clientes de natureza mui- consegue ver de perto o que está acon-
to diversa. Mas também atendemos tecendo na rua. Nesse sentido, quem Revista da ESPM — Falando de ten-
a clientes pequenos, muito ligados vem de backgrounds mais multidisci- dências, como vocês observam a figura
à estratégia de branding, o que é plinares leva grande vantagem para do cool hunter nesse entendimento da
bem legal também. executar todas essas tarefas. Aqui, ciência do consumo?

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 17


entrevista | André Oliveira

André — É interessante esta pergun-


ta, porque o cool hunter é um pouco a
gênese da nossa profissão. Eu prefiro
usar o termo pesquisador de tendên-
cia, porque o cool hunter nasceu muito
associado ao mundo da moda. A iden-
tidade do trend forecaster (apontador
de tendências), que surgiu ainda na
década de 1980, conseguia ter uma
abrangência mais ampla. Mas, de
todo modo, eu gosto de dizer que hoje
todo mundo é cool hunter. Porque
todos têm o Google na mão, com essa
capacidade de descobrir o que é legal e

shutterstock
disseminar isso para os outros. Nesse
jogo de nomes, ainda considero mais
adequado o termo pesquisador do que
Por que temos de classificar as pessoas por idade, quando um menino
forecaster, porque, de certa maneira, o de 15 anos e o avó dele de 65 gostam do mesmo game?
futuro já chegou. O desafio é analisar
e entender o impacto dessas tendên-
cias. Mas é sempre bom lembrar que o canal de TV. Era um trabalho de André — Conforme fomos abrindo
nosso trabalho não tem nada de “cool” campo para identificar tendências a amostra, com as diferentes res-
(risos). É muito suor, trabalho de cam- de consumo entre públicos da clas- postas, percebemos que o compor-
po, análise de dados secundários. Eu se A/B e classe C. Foi um projeto tamento estava muito misturado.
gosto muito de uma expressão usada que começou em 2011. Começamos Aí, apareceu uma menina chama-
por pesquisadores britânicos que é a ouvir várias e várias vezes as da Carla, que disse assim: “Está
o braile cultural. Você precisa tatear a mesmas referências de pessoas tudo misturado mesmo. Tem nego
cultura para entender os sinais que aparentemente muito distantes. da classe A na balada da classe
ela está enviando. Não vai ser algo fa- Grupos que ouviam, assistiam e C, e nego da classe C na balada
cilmente visível. Tem de sentir muita eventualmente queriam comprar as da classe A. E isso é demais!”. Foi
coisa no tato, mesmo. mesmas coisas. E aí ouvimos de ga- quando tivemos um estalo e per-
rotas da zona sul do Rio que o pro- cebemos que havia uma tendência
Revista da ESPM — Qual é, afinal, a grama mais legal de fim de semana de consumo não classista. Mais do
entrega que vocês conseguem oferecer era subir o morro na garupa de um que isso, quando existe essa mis-
aos clientes, os insights efetivos que po- motoboy e ir para os bailes. Então, tura, começa a surgir um tipo de
dem mudar a estratégia de uma marca? começamos a ver esse movimento cultura diferente. As baladas, os
não só em São Paulo e no Rio, mas cantores e os programas de TV que
André — Nós auxiliamos desde um também em Porto Alegre e outras não são baseados por classes. Vol-
cliente de moda a compreender ten- cidades. Tudo parecia muito estra- tamos para o cliente e dissemos
dências e traduzir em linguagem de nho. Voltamos a campo mais duas que tinha muita coisa para fazer. O
cores e estilo, até uma empresa de vezes, pois acreditávamos que algo consumidor está mais baseado em
serviços em apontar como será o estava errado nessa resposta. moods (estilos).
futuro da fidelidade do cliente com
as marcas. Vou dar um exemplo Revista da ESPM — E qual foi a Revista da ESPM — Como o cliente
concreto de um cliente que é um conclusão? reagiu a essas descobertas?

18 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


André — A primeira decisão foi fazer pouco melhor, a dos adaptados e dos ninguém sabe muito bem como viver
um programa sertanejo, que abarca nativos digitais. Agora, chegamos a além disso, porque muitas coisas
todas as classes. E toda a classifica- um movimento muito mais fluido e nunca foram feitas depois dos 50
ção de músicas passou a seguir esses louco, que é a classificação por com- anos. Essa mistura é boa: no campo,
estilos, não mais um critério sociode- portamento. Por que temos de clas- nós vemos um personagem de 50
mográfico. Passou a ser mais impor- sificar as pessoas por idade, quando anos com um comportamento muito
tante para identificar, em um cara de um menino de 15 anos e o avó dele mais jovem do que alguém de 40.
25 a 35 anos da classe A, se ele gosta de 65 gostam do mesmo game? Isso Isso abre muitas novas possibilida-
de uma música mais nervosa, como passa a ser outra forma de enxergar des para serem exploradas.
um “heavy baile”, ou um “chamego a juventude. Porque ela é, no final,
records”, quando ele quer curtir uma uma manifestação de liberdade. As Revista da ESPM — Quais são as ma-
dor de cotovelo no final de semana. marcas precisam se apropriar disso, crotendências que você identifica hoje
se quiserem se manter relevantes. no jovem brasileiro?
Revista da ESPM — O jovem está
presente na própria marca da Box1824. Revista da ESPM — Isso acaba levan- A ndré — Eu começaria pela não
Isso surgiu de uma oportunidade de do a Box além do público jovem. O brie- linearidade. As coisas são muito
mercado ou da crença de que estudar o fing dos clientes começa a vir diferente? mais flexíveis, bagunçadas mesmo.
jovem é a melhor maneira de observar A tecnologia nos ensinou a ser dessa
as tendências de consumo com mais André — Sim. Antes, nós éramos forma. Eu não preciso mais ser isso
profundidade? contratados para estudar jovens dos “ou” aquilo. Eu, cada vez mais, posso
18 aos 24 anos, mas agora temos tra- ser “e”. O jovem tem hoje uma men-
André — O segundo caminho, com balhado com todos os cortes etários. talidade muito mais situacional. Nós
toda certeza. O jovem é, tradicio- Até porque temos insistido muito podemos ir a um estádio gritar muito,
nalmente, quem antecipa as ten- nesse rompimento do corte por idade mas isso não nos torna torcedores
dências na cultura e quem rompe os e classe social. fanáticos. Você pode ir a uma festa,
paradigmas estabelecidos para criar montar o playlist e ser o DJ da noite,
uma coisa nova. Historicamente, o Revista da ESPM — Você acha que mas não vai acordar DJ no dia seguin-
jovem fez isso em várias sociedades existe uma supervalorização da figura te. Se a cultura americana dos anos
ocidentais e, no caso do consumo, do jovem na sociedade? Ela se justifica? de 1990 defendia muito essa visão
é uma condição quase sine qua non. das tribos — os atletas, as patricinhas,
Nesses dez anos de vida, a Box viu André — As duas coisas existem, e os esquisitos, os nerds —, hoje há uma
nascer vários desses movimentos. A não tomo partido por nenhuma de- grande mistura. Agora, o bacana
gente viu essa histeria das gerações, las. Nós vivemos uma eterna busca para o jovem é poder transitar em
que foi muito desesperadamente pela juventude. E os fatores da idade todas essas tribos diferentes. Outra
classificada pela mídia: a figura do e comportamento estão se misturan- tendência é uma visão muito mais
baby boomer, do digital, do X, Y, Z, do tanto, que o cenário fica confuso. “gamificada” da vida. Tudo precisa de
ou millenium, por exemplo. Isso de- Os 30 anos são os novos 20. Os 40 são um desafio, um percurso e um prê-
pois evoluiu para uma definição um os novos 30, os 50 são os novos 40. E mio muito claros. Seja em “likes”, em
dinheiro ou reputação social. Isso é
muito forte no jovem brasileiro. Em
Hoje, uma das grandes dificuldades do mercado todos os campos que fazemos, os
jovens falam que querem ser reco-
é encontrar profundidade, e isso acontece nhecidos, não famosos. As escolhas
não por incapacidade dos profissionais, mas fáceis são um tanto questionadas. Há
porque as pessoas não têm tempo uma vontade forte de mostrar a sua

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 19


entrevista | André Oliveira

própria voz. Todo mundo de alguma na política não pode ser ignorado. Há Revista da ESPM — Ainda sobre os
maneira quer se sentir especial. uma vontade grande das pessoas em extremos, o jovem está mais para consu-
participar, mesmo que seja como ati- mista ou anticonsumo?
Revista da ESPM — Há mais ten- vista de Facebook. De novo, não é um
dências? movimento linear. Embora tenhamos André — Sem dúvida, o jovem é pró-
vivido essa situação dividida entre consumo, mas não necessariamente
André — Tem uma juventude muito “garantido e caprichoso” na última pró-consumista. Esse é, por excelên-
realista também, disposta a discutir eleição, o jovem fala muito mais em cia, um tema que temos estudado bem
assuntos nossos, de se comportar uma articulação que tenha a ver con- de perto nos últimos tempos. O mais
de outra maneira. É uma manifes- sigo mesmo, mas que envolva o outro, interessante é que esse cara está bus-
tação interessante, mas ao mesmo um pensamento mais coletivo. Em cando novas relações com o consumo.
tempo perigosa. Porque vivemos resumo, as macrotendências são: não Vemos a tendência e a contratendên-
uma cultura de extremos em que linear, realista, gamer e coletivo. cia andando ao mesmo tempo juntas.
tudo pode. No ano passado, nós De um lado, você tem essa questão
detectamos — e agora está batendo Revista da ESPM — Entrando na da sharing economy. E não é porque o
forte na mídia — essa volta do funk política, as gerações anteriores no Brasil termo está em inglês que não vemos.
proibidão e dos MCs mirins, cantan- tiveram um compromisso muito grande Há um movimento cultural da troca,
do sobre sexo, drogas, ostentação e em assegurar a redemocratização. Havia do empréstimo. A troca da posse pelo
prostituição. Isso provoca um cho- certa convergência para o centro, ao acesso. E, por outro lado, você tem a
que na nossa cara. Mas, afinal, isso menos na defesa das liberdades democrá- ostentação batendo com força na cul-
pode? Claro que pode. É uma mani- ticas. O jovem de hoje é mais polarizado? tura de massa. É pelo fato desses dois
festação cultural da juventude. Você lados estarem sempre brigando que eu
pode ser muito infantil ou muito André — Não. A diferença, na minha constato que esse jovem, sim, gosta do
maduro para discutir esses temas, visão, é que esse eixo que puxava consumo. Mas esse consumo é cons-
independentemente da idade. De al- para o centro oscila muito mais tantemente questionado.
guma forma essa juventude está dis- hoje. Vai para a esquerda, direita, ao
posta a abrir esses assuntos, o que é centro, de uma maneira não linear. O Revista da ESPM — O brasileiro tem
algo muito contemporâneo. De um jovem é mais permissivo para expe- fama de conservador. O jovem de hoje
lado, mostra um espírito libertário, rimentar, testar coisas novas. E para se encaixa nesse estereótipo, em temas
mas sem dúvida é uma juventude as marcas, novamente, isso é muito como homossexualismo e religião?
muito mais permissiva. difícil de interpretar. Ora eu gosto da
cerveja premium, depois da bagacei- André — Eu consigo responder mais
Revista da ESPM — Isso é positivo, na ra. Aí, em outro momento, eu quero sobre o jovem urbano. Nesse meio,
visão de vocês? a cerveja que é “cool” e pouco tempo eu vejo esse conflito do jovem con-
depois não quero mais saber dela. É servador/liberal na boca das pesso-
André — Na Box, somos muito oti- mais difícil fidelizar. O marketing as. Por um lado, ele defende valores
mistas. O jovem está discutindo pro- ensina muito sobre consistência, superestabelecidos, como a família,
pósito, que contribuição ele pode dar mas como fazer isso com uma juven- o casamento, a segurança, a carrei-
para a sociedade. Esse movimento tude cada vez mais inconsistente? ra. Mas, por outro, ele quer testar
coisas novas. Não está claro para
ele como lidar com o homossexua-
Em todos os campos que fazemos, os jovens lismo, as novas relações familiares
falam que querem ser reconhecidos, não famosos. e também as drogas, que é um tema
As escolhas fáceis são um tanto questionadas, há muito presente. O que temos notado
uma vontade forte de mostrar a sua própria voz é um discurso mais permissivo: esse

20 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


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Se a cultura americana dos anos de 1990 defendia muito essa visão das tribos – os atletas, as patricinhas, os esquisitos,
os nerds –, hoje há uma grande mistura. Agora, o bacana para o jovem é poder transitar em todas essas tribos diferentes

jovem aspirando por uma postura corporativo, uma resistência muito forte construir nada em conjunto. Nesse
mais neutra. No ano passado, nós em aceitar os valores que os jovens estão sentido, o mais interessante são
fizemos um grupo sobre entreteni- trazendo para o mercado de trabalho. os esforços das empresas em mon-
mento, teoricamente, com meninos, Os mais velhos questionam a falta de tar times interdisciplinares, com
teoricamente supermachistas e, compromisso e resistência à hierarquia, mistura hierárquica. A discussão
de repente, um deles aponta para o enquanto os mais jovens não aceitam é clássica e válida: o jovem quer
colega e diz: “Você é gay. Conta para mais o modelo tradicional de empresa. ser promovido no terceiro mês, e o
eles como é”. Ou as meninas falan- Tem certo e errado nesse embate? profissional mais velho ralou muito
do para a gente que hoje a mulher para chegar onde está. Esse cenário
trai mais que o homem. É esse novo André — Todo mundo tem razão ao está posto e ninguém vai mudar,
feminismo aparecendo. O discurso mesmo tempo que ninguém está nem o “garantido”, nem o “capri-
pronto do brasileiro, há 30 anos, era certo. Esse é um assunto tão impor- choso”. O que pode mudar é uma
muito mais conservador: “você tem tante, que nós até criamos uma em- tentativa de equalizar um pouco
de fazer isso ou aquilo”. Hoje, o jovem presa aqui na Box, a Nexo, para tra- essa questão. Há jovens dispostos a
acredita que ele pode ser uma coisa e tar, especificamente, sobre o tema. aprender, mas também a ensinar. O
você, outra. É muito natural, por esse Ela é focada em recrutamento. Há que temos visto é um carreira cada
motivo, que o tema da política esteja de fato um embate muito grande. O vez menos linear e profissionais
explodindo neste momento. São as que as empresas fazem é justamen- com várias atividades simultâneas.
pessoas tencionando ao máximo es- te repetir essa divisão geracional. Então, a tendência que estamos en-
ses valores conservadores e liberais. “Nós somos assim, eles são assado.” xergando é mais uma estrutura de
E sabemos que isso não tem futu- rede e não uma hierarquia linear.
Revista da ESPM — Falando em ro. É uma postura para manter as As empresas terão de se adaptar. É
liberal e conservador, há, no mundo empresas de mãos atadas e não se um cenário complexo.

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Mercado

Em busca dos
cientistas do consumo
Como cool hunters e sociólogos pesquisadores podem
se transformar nos novos cientistas do consumo?
Por Karina Milaré

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maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 23


Mercado

A
sociologia é uma das formações acadêmicas
mais comuns entre os profissionais de pes-
quisa. Esta disciplina reúne duas caracterís-
ticas essenciais, que são trabalhar dentro
de conceitos atrelados ao seu próprio universo e também
fazer uma análise sempre muito focada no passado. Só
que para o bem da sociologia, dos sociólogos e, princi-
palmente, de quem tem essa formação acadêmica e tra-
balha com pesquisas de mercado, isso tem mudado. Na
última década, a sociologia começou a se abrir para um
diálogo com outras disciplinas e passou a ser encarada
como uma “ciência”, treinando um olhar para o futuro.
Essa abertura para dialogar com a antropologia, com a
psicologia e a administração, e trazer um pouco mais de
previsibilidade do comportamento humano e da socie-
dade, resulta em um aspecto muito positivo para todos
os lados. Com isso, as ciências exatas passam a se huma-
nizar um pouco e, ao mesmo tempo, a área de humanas
ganha mais ferramental e previsibilidade. O conteúdo, a
partir daí, fica mais rico, o entendimento melhora, com-
preende-se o indivíduo e suas relações com uma comuni-
dade de maneira muito mais ampla e menos complexa.
Com essa visão, conseguimos fazer uma conexão para
entender a conduta de uma sociedade como um todo,
com todas as suas correntes comportamentais que a
permeiam, incluindo as de consumo.
Dentro desse novo cenário — em que os sociólogos pes-
quisadores passaram a ter mais contato com outras dis-
ciplinas, enriquecendo o trabalho de pesquisa —, surge
uma nova figura para concorrer com os pesquisadores
que seguem uma formação mais acadêmica: os chamados
cool hunters. Pessoas com informações e bagagens muito
ricas, esses novos profissionais seguem uma linha con-
trária à dos sociólogos, tendo atuação individual e pouca
utilização de ciência nos seus trabalhos, oferecendo muito ciência do consumo, existindo ainda espaço para que,
mais uma bagagem pessoal para análises e tendências. de fato, se desenvolva uma ciência na busca por ten-
Contudo, sociólogos pesquisadores e cool hunters ainda dências, por previsibilidade de comportamento de uma
não conseguiram consolidar o que podemos chamar de sociedade relacionada ao consumo.
Traçando caminhos opostos, mas querendo chegar ao
mesmo ponto, as linhas seguidas por profissionais com
Cool hunters seguem uma linha formação mais acadêmica e os cool hunters se conversam
muito pouco. Isso é algo até natural, por se tratar de uma
contrária à dos sociólogos, tendo linha de estudos nova, com uma disciplina recente em
atuação individual e pouco uso de processo de desenvolvimento e uma forma inovadora de
ciência nas suas análises de tendências analisar a sociedade.

24 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


Traçando caminhos opostos, mas querendo chegar
ao mesmo ponto, as linhas seguidas por profissionais
com formação mais acadêmica e os cool hunters
se conversam muito pouco

fotos: latinstock

Mas como, então, cool hunters e sociólogos pesquisado- Em ambos os casos nota-se que, embora a demanda
res podem se tornar os cientistas do consumo? O primeiro por profissionais com essa vivência e formação seja
deve adotar técnicas e conhecimentos atrelados aos pes- grande, a ciência do consumo é uma disciplina ainda
quisadores formais, utilizando uma base mais acadêmica emergente, demonstrando que o cientista do consumo
aliada a experiências pessoais, trazendo visão mais ampla está em construção. E ele vai ganhar espaço mostrando
do estudo de comportamento do consumo. Já do lado dos que é possível unir o ferramental acadêmico e concei-
sociólogos pesquisadores, esses cientistas do consumo tual significativo, agregado a bagagens pessoais.
começarão a surgir quando passarem a utilizar o ferramen-
tal que tem aliado a outras disciplinas, como psicologia,
Karina Milaré
administração e estatística, agregando também vivências Presidente da Research Designed for Strategy (REDS)
pessoais que possam contribuir às pesquisas. e membro da HSR Specialists Researchers

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sociedade

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Consumo: proscrito ou prescrito?
Banido das ciências sociais e humanas por muito tempo, o consumo agora assume
papel de protagonista como mediador de todas as necessidades e desejos humanos,
bem como motor da economia. Este é um tema que merece ser estudado mais a fundo!
Por Mario E. René Schweriner

“Temos de compreender que quando os grandes pensadores O consumo tem sido um tema periférico na academia.
do passado nos advertem sobre os demônios de nossos desejos, Até pouco tempo atrás, era tido como um tema banido das
eles falam do vício. Nenhum grande educador, nem Cristo, nem ciências sociais e humanas. Agora, os encontros e con-
Moisés, nem Sócrates jamais condenou o desejo. O que eles gressos de sociologia e antropologia já começam a enca-
tentam nos mostrar é que deixamos os desejos definir nosso rar o consumo como assunto que merece ser discutido.
sentido de identidade.” Mesmo nos cursos de graduação, nos quais o consumo
Jacob Needleman (O dinheiro e o significado assume uma condição de protagonista, ele é estudado
da vida. Editora Best Seller, 1991) em profundidade, mas em poucas disciplinas: compor-
tamento de compra; comportamento do consumidor;

O
psicologia do consumo; sociologia do consumo; e antro-
verbo consumir, segundo o Aurélio, signi- pologia do consumo (estou me referindo à maioria das
fica: gastar até o fim, dilapidar; destruir-se, instituições, mas deve haver outras pioneiras, cujas dis-
mortificar-se com dor, ciúme, raiva; aborre- ciplinas são mais abrangentes e ousadas até).
cer-se; abater-se, debilitar-se; alimentar-se O consumo, como mediador de todas as necessida-
com, aplicar dinheiro na aquisição de bens e serviços. des e desejos humanos, bem como motor da economia,
Incrível que apenas a última das conotações do verbo merece ser estudado mais a fundo, até como foco cen-
seja negativa; não há uma só referência a conveniência, tral de uma graduação. Até agora, conheço apenas um
conforto, prazer ou usufruto que o termo pode vir a pro- curso de pós-graduação e MBA especializado em con-
porcionar ao consumidor. sumo: o MBA em ciências do consumo aplicadas da
Não é à toa que o consumo assuma uma aura tão nega- ESPM. Porém é inviável cobrir um campo tão vasto e
tiva para tanta gente. O verbo que designa o ato de satis- complexo em apenas algumas centenas de horas. Daí
fazer às necessidades humanas, bem como gerar con- que a ESPM desenvolveu e acaba de lançar um curso
forto e prazer, está em sua origem imbuído de destruição. pioneiro de ciências sociais e do consumo, que funde
Boa parcela dos intelectuais e acadêmicos vinculados ciências sociais, psicologia, mercado e gestão, com
à área de humanas visualiza o consumo como sinônimo mais de 3,4 mil horas de duração.
de: exagero, alienação, desperdício, ganância, ostenta- Como profissional egresso de graduações em admi-
ção e futilidade. nistração de empresas e psicologia, eu defendo o con-
Pena. Pois tal pensamento é, no mínimo, míope. Limi- sumo, sim. Bem mais que isso, consumo não é uma
tado. E não percebe que aqueles adjetivos são sinônimo questão de defesa ou não. Ninguém ‘defende’ o respi-
de consumismo, não de consumo, tão antigo quanto a rar. O consumo do ar, por exemplo, é um fato da sobre-
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vida humana. Quando não, tão antigo quanto o... Pecado vivência. Tampouco ninguém ‘defende’ o consumo da
original! (Não seria, então, a maçã a responsável por água. É outro fato da sobrevivência. Consumir significa
revestir o consumo desta aura pecaminosa?) sobreviver. Consumir significa viver.

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sociedade

Mas consumir não significa meramente ar, água,


cesta básica, saúde, saneamento e transporte. A demar-
cação das fronteiras entre necessidades e desejos não
é nítida, ”embaçando” o conceito da ”digna sobrevi-
vência bio-psíquica”. Habitação é necessidade. Mas
quantos metros quadrados configura uma residên-
cia ”digna” por habitante? A partir de que metragem
a moradia configura um desejo? Uma habitação de
6,5 metros quadrados seria aceitável? Não, não é erro
de revisão. São 6,5 metros quadrados mesmo, como
mostra a reportagem publicada na revista Época, de
5 de janeiro de 2009: “Um grupo de ativistas lançou a
Small House Society (Sociedade da Casa Pequena) para
promover os benefícios ecológicos e econômicos das
minimoradias. Os modelos têm preços médios de US$
40 mil e tamanhos que variam de 6 a 15 metros quadra-
dos. [...] Johnson vive em uma moradia de 6,5 metros

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quadrados no Estado de Iowa, nos Estados Unidos. A
televisão dá lugar a um notebook, alimentado pela
bateria. A coleção de discos e CDs foi parar dentro de
um tocador de MP3 portátil”. Um grupo de ativistas lançou a Small House Society para
Várias teorias das necessidades encampam lazer, promover os benefícios ecológicos e econômicos das
minimoradias, com preços médios de US$ 40 mil e
conforto e prazer com parte das necessidades huma-
tamanhos que variam de 6 a 15 metros quadrados
nas. Talvez secundárias às de sobrevivência, como
aquelas da base da hierarquia das necessidades de
Maslow, descrita por Abraham Maslow em Motivation cotidiana, traz um timbre de condenação. É usado aqui
and personality (Editora Harper&Row, 1954). Secundá- à falta de um termo melhor, que descreva adequada-
rias, porém necessárias. mente a mesma série de motivos e fenômenos, e não
deve ser tomado num sentido odioso, como se impli-
“Carpe Diem” casse um dispêndio ilegítimo de produtos ou de vidas
Necessidades secundárias são geralmente satisfeitas humanas. De conformidade com a teoria econômica, o
por produtos e serviços supérfluos. Todavia, supérfluo dispêndio em questão não é mais nem menos legítimo
não significa, em absoluto, um bem ou serviço negativo do que qualquer outro”.
ou inferior. Significa simplesmente que é secundário Sucede que o desejo pelo supérfluo pode ser tão pode-
no rol das prioridades humanas. Atente-se para o que roso que chega a ser guindado à condição de necessi-
o americano Thorstein Veblen escreveu em sua obra dade. Uma necessidade artificial, não oriunda da con-
clássica A teoria da classe ociosa, que foi publicada pela dição psicobiológica do ser humano, mas advinda do
primeira vez em 1904: “O emprego do termo ‘supérfluo’ ambiente de mercado: a propaganda e o marketing.
é a certo respeito infeliz. Tal como é empregado na vida Enquanto as necessidades humanas são relativa-
mente limitadas, universais e objetivamente demar-
cadas, os desejos — que representam sempre uma
O consumo, como mediador de todas especificidade das necessidades — são ilimitados e
subjetivos, uma opção particular do indivíduo. Isso
as necessidades e desejos humanos, gera a insaciabilidade dos consumidores, pois uma
bem como motor da economia, vez que um desejo tiver sido satisfeito, outro já se
merece ser estudado mais a fundo encontra à espreita.

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O homem, criação imperfeita, ainda não aprendeu A demarcação das fronteiras entre
a controlar os desejos. “O desejo é um ótimo escravo, necessidades e desejos não é nítida,
porém um péssimo senhor.”
Desejos insaciáveis remetem às lendas de Sísifo e
“embaçando” o conceito da “digna
das Danaides, extraídas da mitologia grega, ambas sobrevivência biopsíquica”
retratando ”castigos” para toda a eternidade. Sísifo foi
condenado por Júpiter a empurrar morro acima uma
enorme e pesada pedra, que, assim que alcançava o A sociedade de consumo incentiva a multiplicação e
topo, rolava morro abaixo, enquanto a sina das Danai- a força desses desejos que, de tão poderosos, são ”trans-
des era encher um barril furado. formados” em necessidades (artificiais), não oriundas
A escalada sem-fim dos desejos ilimitados conduz da condição psicobiológica do ser humano, mas do
a um verdadeiro beco sem saída. Como não há limite ambiente de mercado. É como resume Jean Baudrillard,
para os desejos do ser humano, nenhum produto con- em A sociedade de consumo (Editora Edições 70, 1995):
segue satisfazer plenamente desejos sem-fim, fonte “Era uma vez um Homem que vivia na Raridade. Depois
permanente de ansiedade e frustração. “Pois não há de muitas aventuras e de longa viagem através da Ciên-
padrões a cujo nível se manter quando a linha avança cia Econômica, encontrou a Sociedade da Abundância.
junto com o corredor”, detalham Hugo Assmann e Jung Casaram-se e tiveram muitas necessidades”.
Mo Sung, no livro Competência e sensibilidade solidá- Esta é de fato a face perversa do consumo: trans-
ria (Editora Vozes, 2000). mutado em consumismo, provoca a dependência nos
Alguma semelhança com a insaciabilidade de tan- consumidores, muito bem batizados em inglês como
tos consumidores — que mal deixam um shopping, já ”Shopaholics”. E é aí que reside o grande risco para o
adentram o seguinte? sujeito, como explica Zygmunt Bauman, no livro Vida
líquida (Editora Zahar, 2007). “A sociedade de consumo
tem por base a premissa de satisfazer os desejos huma-
nos de uma forma que nenhuma sociedade do passado
pôde realizar ou sonhar. A promessa de satisfação, no
entanto, só permanecerá sedutora enquanto o desejo
continuar irrealizado.” Na forma, deve-se acrescentar,
de novos desejos criados ou despertados pelo mercado,
em uma espiral infinita.
O equilíbrio e a sensatez de alguém imerso na socie-
dade de consumo — como quase todos nós — residem em
uma mera palavrinha de três letras: N Ã O
O não que significa simplesmente: “Como me sentiria
se eventualmente eu não pudesse mais consumir tal
supérfluo?”. Em outras palavras: “Quanto eu iria sofrer?”.
O que, traduzido de forma simples, significa “NÃO
consigo viver bem sem tudo isso”. Pois, ao contrário do
que pensam aqueles intelectuais imersos nas humani-
dades mencionados no início do artigo, comer caviar
latinstock

não é consumismo. Um vinho de R$ 300, tampouco.


Nem mesmo a demonizada Miami é consumismo. Ou
Habitação é necessidade. Mas quantos metros quadrados ainda o desembolso de R$ 20 mil para viajar na pri-
configuram uma residência ”digna” por habitante? meira classe. São livres escolhas. Afinal, quem aufere
A partir de que metragem a moradia configura um desejo? uma renda de, digamos, R$ 100 mil ao mês, pode se
Uma habitação de 6,5 metros quadrados seria aceitável? dar esses luxos.

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sociedade

Consumismo é a dependência do prazer, conforto


e ostentação advindos de bens e serviços, principal-
mente das marcas de luxo, que conferem notoriedade
ao consumidor. O seu status não emana de si como
sujeito, mas lhe é chancelado pelas grifes. Ele coloca
fora de si sua identidade como ser humano, projetan-
do-a nas marcas. “Sem visar nenhuma necessidade
racional, as empresas do luxo têm florescido explo-
rando as fraquezas emocionais humanas”, diz Gian
Luigi Longinotti-Buitoni, autor de Vendendo sonhos:
como tornar qualquer produto irresistível (Editora
Negócio, 2000).
Ocorre que, por mais paradoxal que possa parecer,
o consumismo também é bom para o sistema. Um sis-
tema que inter-relaciona consumidor e economia, cujos
frutos afetam o ambiente, que em seguida refletirá na
economia e no próprio indivíduo.
Até o momento em que concluo este breve artigo,
ninguém ainda resolveu essa inequação. Pois o pessoal
das ciências sociais e humanas privilegia o ambiente.
Já o pessoal da publicidade e propaganda, do marketing
e da economia privilegia o consumo-consumismo. O
que pode ser bom tanto para as pessoas quanto para
a economia.
O consumismo parece ser uma boa válvula de escape

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para pessoas que têm profissões (ou melhor, ocupa-
ções), como trabalhadores braçais que executam tare-
fas rotineiras e repetitivas, ou funcionários de escritó-
rio também imersos em rotinas sem qualquer desafio Desejos insaciáveis remetem às lendas de Sísifo e das
intelectual. Sendo extremamente difícil para tais sujei- Danaides, da mitologia grega, ambas retratando ”castigos”
tos se destacarem e, principalmente, se realizarem, para toda a eternidade. Sísifo foi condenado por Júpiter a
empurrar morro acima uma enorme e pesada pedra
não seria o consumo um mecanismo extremamente
rápido e fácil que lhes permitiria se diferenciar e con-
seguir uma realização, ainda que distorcida? Já para elas encontram no consumo um meio para combater
intelectuais, artistas e vários profissionais liberais, seu sentimento de alienação.
é viável obter tal diferenciação, e até enveredar para Marcas, bens e serviços também são formidáveis
o caminho rumo à autorrealização. Mas, para aquela antídotos para depressão, tédio e solidão, sendo
grande massa amorfa, não seriam as marcas um dos excelentes veículos para preencher o vazio existen-
seus “ legítimos” sonhos maiores? O antropólogo cial de tantos. O papel da propaganda e do marketing
Daniel Miller defende que o consumo é um dos raros no incentivo ao consumo é extremamente oportuno
canais que restam às pessoas comuns para expressa- para, digamos assim, compensar muitas frustrações,
rem sua identidade perdida com a homogeneização e mormente de ordem afetiva.
a massificação da produção capitalista. Se antes do Para a economia, o consumismo costuma ser uma
advento do capitalismo de massa as pessoas podiam magistral fonte de empregos. Milhares, quiçá milhões,
se expressar e diferenciar pelo que produziam, agora de empregos estão subordinados à cadeia produtiva dos

30 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


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Caso a obsolescência de desejabilidade fosse ignorada e resultado, o declínio de vendas de toda essa gama de
se ampliasse o ciclo de vida dos bens ao mundo da moda, o empresas, gerando um efeito cascata de queda no
efeito dominó atingiria diversos segmentos da economia, faturamento, menos dinheiro em caixa e demissão de
da indústria do algodão aos shopping centers
funcionários. Essa multidão de desempregados, com
menos dinheiro no bolso, ou até mesmo sem nenhum,
supérfluos, num efeito dominó. Observe-se a moda, iria consumir menos, o que afetaria vários outros
tão vinculada a grifes de prestígio, caso a obsolescên- segmentos da economia. Daí os esforços do mercado
cia de desejabilidade fosse ignorada e se ampliasse como um todo — da indústria de bens à indústria da
o ciclo de vida dos bens. O efeito dominó atingiria, propaganda — para manter ativa e girando continu-
por exemplo, a indústria do algodão, os trabalhado- amente a “roda-viva do consumo”, que é constante-
res rurais, as costureiras, os fabricantes de botão e mente monitorada pelo Índice de Confiança do Con-
de zíper, as confecções, os vendedores em shopping sumidor: o consumo não pode parar.
centers, os fabricantes de insumos agrícolas e a indús- Pois então, quem tem a ”palavra final”?
tria de bens e equipamentos pesados, como tratores
e colheitadeiras. E alcançaria também empresas que
Mario E. René Schweriner
se “beneficiam” da existência da moda, como as que Coordenador do curso de graduação de
fabricam alvejantes, amaciantes e sabões em pó. Como ciências sociais e do consumo da ESPM

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 31


Ciência

A economia comportamental:
um novo olhar para o ser humano
Qual é o diferencial que a economia comportamental e suas metodologias trazem para a mesa?
Ainda pouco explorada no Brasil, essa área está cada vez mais consolidada no exterior, com
estudos que podem ajudar a melhorar as escolhas do ser humano nas mais diversas esferas

Por Flávia Ávila

P
ense sobre a última vez que você decidiu livro Previsivelmente irracional (Editora Campus, 2008).
assinar uma revista ou jornal, inscrever-se Segundo o autor, a ideia surgiu quando ele notou que
em uma academia, comprar um produto de a revista The Economist estava oferecendo três opções
poupança, plano de saúde ou um simples de assinatura para clientes: uma assinatura digital da
televisor. E quando tomou uma decisão pensando no revista por US$ 59; uma da revista impressa por US$ 125;
bem-estar do próximo, economizou água ou simples- e um combo da assinatura digital e da revista impressa
mente respondeu a um favor? por US$ 125. Afinal, por que a The Economist ofereceria
Você lembra o que pesou na sua decisão naquele a opção apenas com a revista impressa?
momento? Quanto tempo demorou para decidir? O que Para entender mais a fundo a estratégia, ele convo-
acha que o influenciou bem ali? cou alguns estudantes do MIT para um experimento em
Os economistas comportamentais (também chamados laboratório. Separou aleatoriamente dois grupos. Para
de cientistas comportamentais) têm abraçado o desafio o primeiro ofereceu a versão da própria The Economist
de propor uma nova forma de olhar para estas e muitas com as três opções (digital, impressa e combo). E para o
outras perguntas, e buscado um entendimento mais segundo grupo retirou a opção do meio, oferecendo ape-
profundo das influências comportamentais conscien- nas a versão digital e o combo. O resultado foi impres-
tes e inconscientes que agem quando fazemos escolhas. sionante. No primeiro caso, 16% escolheram a opção
Mais ainda, como pequenas nuances em um contexto digital e 84% o combo. Já no segundo exemplo, em que
podem alterar completamente o resultado até mesmo se omitiu a opção do meio, 68% foram para a opção mais
de escolhas simples que tomamos no nosso dia a dia. barata da assinatura digital e apenas 32% compradores
A economia comportamental propõe uma visão mais escolheram o combo.
realista da natureza humana. Assim, além de fornecer Nos estudos de economia comportamental, é muito
ferramentas poderosas para entender mais a fundo os comum vermos desenhos simples como esse trazerem
consumidores, vai mais longe ao investigar fatores como resultados reveladores.
bem-estar, o poder dos outros, altruísmo, reciprocidade, Nesse caso, por exemplo, as preferências do indivíduo
pobreza, entre outros. são alteradas de forma decisiva, apenas com a adição de
As suas pesquisas utilizam como ferramenta princi- um novo produto, a assinatura exclusivamente da revista
pal experimentos controlados para observar o compor- física. Extrapolando para diversos outros casos, o que
tamento do ser humano frente às pequenas variações vemos é que mesmo o indivíduo preferindo o produto A
na forma pela qual uma escolha é apresentada, ou em ao produto B, a adição de um produto C pode fazer com
seu contexto. que a ordem de preferência mude completamente e então
Para dar uma ideia mais clara do que seria um experi- o produto B seja preferível ao produto A.
mento, vejamos um caso simples e interessante citado Esse fenômeno acontece normalmente quando a ter-
pelo professor da Duke University, Dan Ariely, em seu ceira opção é dominante de forma assimétrica. A é melhor

32 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


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maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 33


Ciência

que B em um atributo, mas não tão bom em um segundo Muitas vezes, pensamos em grandes soluções quando
atributo. E o produto C é normalmente chamado de isca, surge um problema ou quando criamos um produto,
pois é colocado apenas para deslocar as escolhas entre mas frequentemente vemos que os melhores resulta-
as outras duas opções. dos estão nos detalhes.
Como falamos antes, a economia comportamental vai As pesquisas em economia comportamental têm
muito além do uso para estratégias de marketing. Nos mostrado o enorme impacto que podem gerar pequenas
últimos anos, os seus estudos têm colecionado evidên- mudanças das mais diversas formas: no contexto em que
cias empíricas substanciais de que somos muito menos a escolha está inserida, na forma como ela é apresentada,
“racionais” do que imaginamos, e que pequenas mudan- evidenciando como os outros agem naquele contexto, se
ças, ou até fatores imperceptíveis a priori, pelo tomador é fácil ou não tomar aquela decisão, se naquela circuns-
de decisão, frequentemente influenciam muito mais do tância é mais confortável se manter na opção padrão
que ações custosas baseadas em incentivos financeiros ou no status quo, enfatizando o poder do ponto de refe-
ou programas de conscientização. rência, dado que nossas escolhas são sempre relativas,
Assim, seja em um contexto de compra ou para pro- enquadrando a escolha como perda ou ganho, trazendo
mover mudanças positivas no dia a dia das pessoas — a decisão para um momento que tentação ainda não está
que podem gerar mais bem-estar, saúde e tranquilidade na jogada, ou o contrário, entre outros.
financeira —, os estudos da economia comportamental Mais ainda, observa-se sistematicamente que as nos-
movem o nosso olhar para detalhes antes desconsiderados. sas decisões são muito menos deliberativas, lineares e

latinstock

Um marco importante para a área foi a escolha do psicólogo israelense Daniel Kahneman para receber o Prêmio Nobel
de Economia de 2002 por seus estudos que forneciam uma visão integrada da psicologia na economia

34 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


conscientes do que gostaríamos de acreditar. Segundo Nesse contexto, surge a economia comportamental
o professor Daniel Kahneman, podemos dividir a nossa e seus estudos experimentais para oferecer uma forma
forma de pensar em dois sistemas: sistema 1 e sistema 2. diferente de olhar para os indivíduos (e consumidores).
O sistema 1 é um pensamento rápido e instintivo, sem Não há dúvida de que muitos dos seus conceitos já tenham
esforço, emocional, associativo, difícil de controlar. Já sido aplicados há anos na área de marketing e publicidade.
o sistema 2 é consciente, exige raciocínio, lento, traba- Porém suas metodologias e abordagem sistemática trazem
lhoso, usado para tarefas exigentes e complexas. O pon- novas perspectivas para a construção de estratégias mais
to-chave é que a maioria das nossas decisões são toma- efetivas ao reunir diversos fatores cruciais que agem num
das pelo sistema 1. As pessoas evitam esforço cognitivo momento de decisão, em um mesmo campo de pesquisa.
e muitas vezes confiam em um julgamento plausível que
rapidamente vem à mente. O sistema 2 é “preguiçoso” e Uma nova forma de observar
na maioria das vezes não entra na jogada. A economia comportamental, em seu cerne, é uma ciên-
Dessa forma, ao entender melhor como todos esses cia experimental, por isso muitas vezes somos chama-
fatores, muitas vezes ignorados, influenciam as nossas dos de cientistas de jaleco branco, não muito diferente
escolhas, podem-se construir estratégias de marketing daqueles que vemos manipulando vários compostos
mais efetivas, assim como produtos e ações que real- químicos em um laboratório.
mente ajudam os indivíduos a fazer “as melhores esco- Experimentos nas ciências comportamentais podem
lhas”, maximizando o seu bem-estar. ser conduzidos em laboratório, em campo (no mundo

latinstock

Considerado um dos pais da economia comportamental, o economista Richard Thaler é autor de Nudge –­o empurrão
para a escolha certa (Editora Elsevier, 2008), um dos livros que são referência no assunto

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 35


Ciência

real), com ferramentas da neurociência, entre outros.


Outras ferramentas, como surveys e big data, podem
ser usadas de forma complementar ou separadamente,
para enriquecer os dados e aumentar seu nível de pre-
cisão e alcance.
Em linhas gerais, em um experimento testam-se diver-
sos cenários, simultaneamente, com indivíduos escolhi-
dos de forma aleatória no grupo que se quer investigar.
Sempre que possível, são utilizados grupos de controle
que não sofrem qualquer tipo de intervenção.
Além disso, usualmente manipula-se apenas uma variá-
vel, ou pouquíssimas, entre os diferentes cenários testados
com o objetivo de isolar o efeito que está sendo estudado.
Muitos são também incentivados financeiramente para
tornar a decisão o mais real possível. Um bom experimento
requer um desenho e planejamento criterioso, assim como
a adoção de alguns protocolos não só no desenho, como
também na condução e avaliação de resultados.

A ascensão da área
Nas últimas duas décadas, a economia comportamen-
tal e suas aplicações empíricas têm vivido seu auge,
ganhando cada dia mais destaque, tanto no meio aca-
dêmico quanto em áreas como marketing, sustentabi-
lidade e políticas públicas.
Apesar de os primeiros estudos sobre o que atual-
mente chamamos de economia comportamental terem atualmente sobre o assunto; Nudge — o empurrão para
surgido na segunda metade do século 20 e continuarem a escolha certa (Editora Elsevier, 2008), do economista
a ser amplamente analisados até hoje, vários fatores têm Richard Thaler, da University of Chicago (considerado
contribuído para a ascensão dessa área. também um dos pais da economia comportamental)
Um marco importante para a área foi a escolha do psi- e do advogado Cass Sunstein, da Harvard Law School;
cólogo israelense Daniel Kahneman para receber, ao e Previsivelmente irracional (Editora Elsevier, 2008), de
lado do economista Vernon Smith, o Prêmio Nobel de Dan Ariely, professor da Duke University, que — com
Economia de 2002 por seus estudos que forneciam uma uma abordagem divertida e irreverente — foi a porta de
visão integrada da psicologia na economia e utilizavam entrada para muitos leigos e amantes da área, tanto no
uma abordagem experimental. Também importante mundo dos negócios quanto em áreas não diretamente
foi a premiação de Vernon Smith por consolidar o uso relacionadas.
de experimentos em laboratório como ferramenta para Assim, nos últimos anos, começamos a vivenciar a
estudos empíricos em economia, principalmente para consolidação da área internacionalmente. Um exemplo
mercados e leilões. foi o World Development Report 2015, do Banco Mundial,
Outro divisor de águas foi o lançamento de livros didá- intitulado Mind, Society and Behavior, que foi totalmente
ticos e acessíveis sobre os estudos da área, que alcança- dedicado à economia comportamental e experimental em
ram rapidamente as listas de mais vendidos. Encabeçam países em desenvolvimento. Outro exemplo foi a dimensão
a lista: Rápido e devagar — duas formas de pensar (Editora que o Behavioural Insights Team (BIT) — fundado em 2010
Objetiva, 2012), escrito pelo próprio Kahneman, que pode na Inglaterra e ligado diretamente ao governo — tomou ao
ser considerado uma das grandes referências que temos propagar o uso de experimentos nas políticas públicas.

36 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


resultados rigidamente controlados em soluções apli-
cáveis no mundo real nem sempre é fácil. Um debate
sempre presente é se resultados de experimentos em
laboratório, ou em campo, podem ser transpostos para
o mundo real. Além disso, a implementação de labora-
tórios e departamentos com esse foco requer um inves-
timento considerável e profissionais ainda raros no
mercado para gerar resultados confiáveis e replicáveis.
Se nos Estados Unidos e na Europa — onde a área
está no auge e bem mais consolidada — essas questões
e barreiras de entrada ainda são um desafio, o cenário
fica ainda mais crítico quando falamos de países como
o Brasil, onde a área é praticamente desconhecida e há,
ainda, uma enorme dificuldade em angariar fundos para
laboratórios e estudos experimentais.
Mesmo com grandes desafios, a área cresceu a passos
largos na última década e está cada vez mais consoli-
dada, tanto na academia quanto no mundo dos negócios.
Por ser uma área relativamente nova, pequenos ajustes
ainda estão em andamento. Um deles, por exemplo, é a
proposta de ampliar o alcance da atividade e de seus pro-
fissionais ao denominar seus estudos não apenas beha-
vioural economics, mas algo mais amplo como behaviou-
latinstock

ral science. Essa discussão tem ganhado força, liderada


também pelo próprio Daniel Kahneman, e vamos pre-
senciar o seu desenrolar nos próximos anos.
A economia comportamental propõe uma visão mais Apesar de ser uma discussão, sem dúvida, plausível e
realista da natureza humana. Além de fornecer ferramentas justificável, o publicitário Rory Sutherland, um defensor
poderosas para entender o consumidor, ela vai mais longe ao apaixonado da área, observa que, não obstante as diver-
investigar fatores como bem-estar, altruísmo e reciprocidade
gências, o uso do termo behavioural economics é um ótimo
case de rebranding que deu certo e, com certeza, propiciou
Dinâmica que serviu de inspiração para a fundação de que seus estudos entrassem em meios que até então eram
diversos grupos de pesquisa similares em todo o mundo. inalcançáveis, ao serem vinculados com a economia.
Já na área de negócios, renomadas consultorias e Aproveito assim a oportunidade para deixar um con-
agências de publicidade têm adotado, publicamente, vite. Independentemente da denominação, economistas
seus conceitos e ferramentas. Novas consultorias espe- comportamentais, cientistas comportamentais, psicó-
cializadas são criadas a todo instante. E grandes empre- logos comportamentais, advogados comportamentais,
sas têm investido em áreas exclusivamente com esse uní-vos, pois evidências não faltam que, países como
foco. Além disso, atualmente, as principais universi- o Brasil, que têm pouquíssimo conhecimento sobre a
dades do mundo oferecem programas específicos de área, terão ainda muito a se beneficiar com seus estu-
economia comportamental, diversos laboratórios de dos e aplicações, em todas as esferas.
pesquisa foram criados em grandes centros. Observa-
se uma explosão de papers em periódicos renomados,
e suas teorias estão em rápida evolução. Flávia Ávila
Professora do curso de economia comportamental EAD
No entanto, nem tudo são flores... A área ainda apre- da ESPM, fundadora do site economiacomportamental.org
senta grandes desafios a serem superados. Transformar e da InBehavior – Pesquisa e Insights

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 37


entrevista | JANAÍNA BRIZANTE E MANUEL GARCIA-Garcia

Janaína Brizante
Formação: graduada em
publicidade e propaganda pela
Universidade de São Paulo e
mestra em psicologia experimental
na área de bases neurobiológicas
do comportamento pelo Instituto
de Psicologia da USP. Realizou
estágio de doutorado na Duke
University (EUA) e doutorado em
fisiologia humana no Instituto de
Ciências Biomédicas da USP
Atuação: diretora de neurociência
da Nielsen Neuro no Brasil
Carreira: já trabalhou na Try
Consultoria & Pesquisa e
no Laboratório de Sistemas
Integráveis (Poli-USP), como
pesquisadora. Hoje, assume
a diretoria de Neurociência da
Nielsen Neuro para toda a América
Latina. É membro da Sociedade
Brasileira de Neurociência e da
Cognitive Neuroscience Society
e professora de neurociência do
consumo na ECA-USP

Manuel
Garcia-Garcia
Formação: fez psicologia na
Universidade de Granada
e doutorado em filosofia e
neurociência na Universidade
de Barcelona
Atuação: diretor de neurociência da
Nielsen Neuro nos Estados Unidos
Carreira: trabalha com uma
equipe de pesquisa integrada para
garantir a integridade científica
dos projetos em desenvolvimento
da companhia. Ele também lidera
as relações acadêmicas da Nielsen
Neuro, construindo parcerias com
universidades e desenvolvendo
cursos e treinamentos de ponta para
abordar esse importante assunto
dentro da sala de aula. É professor
auxiliar de neurociência do consumo
na Stern School of Business, onde
leciona em um dos primeiros cursos
do mundo ligados ao tema na NYU

38 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


Caçadores de emoções

O
título acima sugere um roteiro cinematográfico, repleto de aventura, muita
ação, tiros ou cenas de esportes radicais. O fato é que o cenário perfeito para se
captarem as verdadeiras emoções do espectador não é no cinema, mas em uma
sala escura, com poltrona confortável, muita paz e silêncio. Pelo menos é assim
que os neurocientistas cumprem sua atividade diária no papel dos modernos caçadores de
emoções dentro do universo da comunicação.
Em outubro de 2014, a cidade de São Paulo passou a sediar o 13º laboratório da Nielsen
Neuro, braço da gigante mundial de pesquisas de mercado dedicado à neurociência. Ali, os
consumidores são convidados a vestir uma touca de natação high tech, ligada a dezenas de ele-
trodos, e ter toda a sua atividade cerebral e ocular medida milimetricamente. Tudo para dar ao
anunciante a resposta para suas maiores ansiedades: “Afinal, a minha campanha funciona?”.
É nesse laboratório que a diretora de neurociência da Nielsen Neuro no Brasil, Janaína
Brizante, conduz uma equipe de sete profissionais encarregada em transformar eletroence-
falogramas em conteúdo mercadológico. “A nossa metodologia identifica o que as pessoas
estão sentindo diante de uma marca ou comercial, sem perguntar nada para ninguém”. Em
outras palavras, o consumidor jamais será questionado se gostou ou não do anúncio ou se o
sabor de um novo suco lembra o pomar da casa da avó. A associação de valores e emoções
será cientificamente registrada, sem risco de indução.
Em sua primeira visita ao Brasil, Manuel Garcia-Garcia, o Ph.D. e diretor de neurociência
da Nielsen Neuro nos Estados Unidos, explica que, com base no imenso banco de dados da
companhia, a nova divisão está conseguindo ir mais fundo. Um exemplo é a comparação da
resposta cerebral com o “volume” dos comentários postados no Twitter. “Em uma pesquisa
feita com seriados de TV, descobrimos que há relação direta entre as cenas de maior engaja-
mento cerebral e a repercussão na mídia social. Nesse caso, postar no Twitter é comprovada-
mente mais emocional do que racional”, avalia. O desafio para o futuro é avançar em tecno-
logias que possam avaliar com mais precisão a reação do espectador diante de diferentes estí-
mulos, como o uso da TV e do celular, ao mesmo tempo. Este é, sem dúvida, um dos mistérios
que mais atormentam a moderna indústria da publicidade, cuja reposta pode estar na ciência.

Por Arnaldo Comin


Fotos: Divulgação

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 39


entrevista | JANAÍNA BRIZANTE E MANUEL GARCIA-Garcia

Revista da ESPM — Em outubro do atividade cerebral de um chinês é Revista da ESPM — Há décadas, as


ano passado, a Nielsen inaugurou seu essencialmente a mesma que a de empresas se valem dos mais diversos
13º laboratório de neurociência no um latino. O que podemos consta- métodos de pesquisa de mercado. Por
Brasil. Quais foram os motivos que le- tar é o condicionamento de cada que a neurociência é mais eficaz para
varam a companhia a escolher o país público com determinados estí- entender o consumidor?
para receber essa iniciativa? mulos. E isso vai mudar muito de
acordo com a categoria de produto Janaína — Parece que resolveram
Janaína — O Brasil é o principal mer- e o conhecimento prévio daquilo introduzir a neurociência para com-
cado da América Latina, os maio- que está sendo mostrado. Se eu fi- plicar alguma coisa que já funcio-
res anunciantes globais estão aqui, zer o teste de uma nova série de TV nava muito bem. O motivo único
então fazia todo o sentido abrir o na China, o espectador não terá a para isso é o seguinte: com a neu-
laboratório. Tanto do ponto de vista mesma reação, porque aquilo é um rociência, não precisamos mais da
do mercado consumidor quanto do estímulo novo para ele. Em linhas articulação do consumidor para en-
corporativo, era importante ter essa gerais, percebemos que o mundo tender o que ele sente. Por meio da
presença em São Paulo. latino é mais sensível à apresen- neurociência, sabemos que a emo-
tação de imagens ao redor de uma ção modula a tomada de decisão.
Revista da ESPM — O que faz, exa- grande família, por exemplo, se Mas a emoção não é algo totalmente
tamente, esse laboratório? compararmos com um norte-euro- declarável. Existem componentes
peu ou um americano caucasiano. da emoção que são, mas outros não.
Janaína — Nós estudamos e anali- Mas tudo vai depender do que se Se eu mostro uma embalagem para
samos materiais de marketing para está analisando. Esta é a primeira você e pergunto: “Você tem vontade
torná-los mais efetivos. Como uma vez que estou no Brasil e, numa de comprar esse produto?”, ou “Esse
embalagem, uma campanha, uma primeira impressão, acredito que produto lembra a comida da sua
marca, podem ter os seus alcances as pessoas aqui têm o mesmo es- mãe?”, eu estou fazendo associa-
otimizados, aumentando a decisão tímulo de outros países latinos. É ções muito secundárias e explícitas.
de consumo. Estudamos como fazer uma cultura mais fraterna, ligada Isso não é bom para medir a verda-
para que o consumidor opte por um à família. deira emoção do consumidor.
determinado produto, porque a emba-
lagem ou o posicionamento da marca Revista da ESPM — Vocês estão Revista da ESPM — E como se pode
estão mais adequados para ele. conduzindo pesquisas para verificar medir a emoção com mais exatidão
essas diferenças em termos globais? pela neurociência?
Revista da ESPM — É possível tra-
çar diferenças na atividade cerebral, Manuel — Não. Nós temos clien- Janaína — Combinando ferramen-
de acordo com a origem e as diferen- tes com esse perfil [global], mas t as como elet roencefa logra ma
ças culturais de cada indivíduo? normalmente o que eles querem é (EEG) e o monitoramento do mo-
uma visão local da sua campanha vimento ocular (eye tracking), é
Ma nue l — O f uncionamento do ou produto. Esta é a maior preo- possível medir qual é a associação
cérebro não muda tanto assim. A cupação. implícita de determinados estímu-
los com a emoção do indivíduo. O
quanto uma imagem atrai ou rejeita
O mais interessante da neurociência é que nós a atenção do consumidor. O quanto
gera de memória. Tudo isso nós
conseguimos medir, cena a cena, a reação do podemos estimar sem a interme-
consumidor a uma campanha. Isso não se diação de alguém. O bacana dessa
consegue com nenhuma outra metodologia metodologia é que você neutraliza

40 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


o efeito da articulação na avaliação,
porque cada ser humano tem uma
capacidade diferente de expressar
o que sente e o que pensa. Se você
depender muito desses fatores para
elaborar uma campanha, o resulta-
do será impreciso.

Revista da ESPM — Quais são as


ferramentas básicas da neurociência
para elaborar uma campanha?

Janaína — Essencialmente, o EEG


e o eye tracking, que é o rastreador
do olhar. O EEG grava a atividade

latinstock
do cérebro a partir de sensores
instalados em uma touca que colo-
camos na cabeça das pessoas. Não
O público latino é mais sensível à apresentação de imagens ao redor de uma
tem nada de outro mundo, é uma
grande família, comparados a um norte-europeu ou a um americano caucasiano
técnica aplicada em humanos há
quase cem anos. Nós, basicamente,
monitoramos a comunicação de Janaína — Nós temos uma sala com mercado latino, nos Estados Unidos.
um neurônio com outro, que é uma isolamento elétrico, para evitar Quais foram as conclusões?
atividade eletroquímica. Em resu- que haja interferência na medição
mo, nós medimos a atividade elé- da atividade cerebral. Ali, a pessoa Ma nue l — Nós rea lizamos esse
trica do cérebro do indivíduo. Com pesquisada senta numa poltrona trabalho para a principal emissora
o eye tracking nós identificamos confortável, em um ambiente neu- h ispâ n ica nos Estados Un idos,
para onde a pessoa está olhando. tro, diante da tela da televisão. Isso a Univision. Basicamente, o que
Quando cruzamos as duas infor- no caso do teste de uma embalagem eles queriam entender era a reação
mações, podemos dizer que parte ou campanha. Se for um teste de da geração de jovens millenials
do estímulo visual está gerando gôndola, por exemplo, nós fazemos às campan has publicitárias, de
uma determinada resposta elétri- uma projeção em tamanho real. É acordo com o idioma ut i lizado.
ca. Se estamos pesquisando uma sempre projetado. Outro teste que Esse público é muito interessante.
embalagem, por exemplo, eu posso realizamos é com produtos prontos, Houve uma época em que os pais
afirmar qual a área da embalagem em que a pessoa pega a embalagem estimulavam os filhos a falar in-
está provocando um determinado e prova o produto — uma bebida, por glês, mas nos últimos dez anos há
estímulo. Dessa forma, nós pode- exemplo — para que possamos me- uma tendência muito forte para
mos avaliar com mais precisão se dir as respostas do consumo. Nesse que esses jovens sejam bilíngues.
a resposta é a de que aquela emba- caso, nós podemos avaliar a asso- Então, o que temos hoje é uma po-
lagem tem mais atratividade, ou se, ciação desse consumo a uma marca pulação imensa que convive, nor-
simplesmente, provoca confusão ou valores específicos. malmente, com os dois idiomas e
na cabeça do consumidor. que processa, imediatamente, os
Revista da ESPM — Voltando à seus estímulos, de acordo com a
Revista da ESPM — Como funciona questão cultural, a Nielsen Neuro língua que está sendo falada em
a avaliação, do ponto de vista prático? acaba de fazer uma pesquisa para o um comercial, por exemplo.

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 41


entrevista | JANAÍNA BRIZANTE E MANUEL GARCIA-Garcia

Revista da ESPM — O desafio então


era descobrir se faria ou não diferença
para esse público assistir a uma cam-
panha em inglês ou espanhol?

Manuel — Exatamente. Essa era


a perg u nta da pesqu isa . Traba-
lhamos em parceria com a agên-
cia deles, a Starcom Mediavest,
para verificar se valia a pena para
os anunciantes investir em cam-
panhas específicas em espanhol
para esse público. Nós iniciamos
o estudo mostrando comerciais
idênticos, só que falados em inglês

divulgação
e espanhol. Tivemos a preocupação
de reproduzir exatamente o mesmo
texto e a mesma edição, para ga- Na Nielsen Neuro, os testes ocorrem em salas com isolamento elétrico,
rantir que não houvesse distorção para evitar que qualquer interferência afete a medição da atividade cerebral
de conteúdo por causa do idioma.
A grande vantagem da tecnologia Revista da ESPM — Qual é a maior mente simples. O grupo Nielsen
da Nielsen Neuro é a de que po- ansiedade dos anunciantes que procu- possui um banco de dados gigante,
demos ir fundo na avaliação dos ram os serviços da Nielsen Neuro? e um dos produtos oferecidos aos
dados, acompanhar, segundo por clientes é, justamente, o de medir
segundo, a reação de espectador e Janaína — O que o mercado mais o “volume” da repercussão de pro-
avaliar as cenas nas quais o idioma quer saber é o que está implícito. O gramas de T V, por exemplo, nos
é importante ou não faz diferença. que o público está achando desse comentários postados e replicados
comercial? Eu estou passando a no Twitter. O que fizemos, basica-
Revista da ESPM — E qual foi a minha ideia ou não? Vai gerar me- mente, foi cruzar essa informação
conclusão? mória? Essa embalagem vai passar com o sistema da Nielsen Neuro
a ideia de uma comida caseira? em diversos episódios de séries,
Manuel — Nós descobrimos que Adianta eu perguntar sobre a comi- medindo, minuto a minuto, o en-
nas cenas em que há mais envolvi- da da mãe dele? Esta é a chave para gajamento emocional e a interação
mento humano, o espanhol não só que os anunciantes nos procurem. com o Twitter.
aumentava o engajamento, como
era mais memorável para o espec- Revista da ESPM — A Nielsen Neu- Revista da ESPM — Ficou clara uma
tador. Nessa situação, a cena em ro realizou, também, uma pesquisa correlação direta entre os programas e
que aparecia a marca do anuncian- associada ao desempenho de séries de a rede social?
te também tinha índices de fixação TV no Twitter. De que forma podemos
ma is a ltos nos f i l mes ex ibidos medir o engajamento do espectador Manuel — Nós percebemos que os
em espanhol. Ficou claro que nas com uma campanha relacionada com momentos de maior engajamento
situações envolvendo fa m í lia e as mídias sociais? emocional do espectador em cada
interação social, o desempenho episódio tinha um efeito direto no
do anúncio em espanhol era muito Manuel — Usamos nesse estudo volume de comentários no Twitter.
mais alto. uma técnica de pesquisa relativa- Pode parecer “meio óbvio”, princi-

42 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


palmente em séries que são bem Janaína — Quando há um cliente maneira eficiente. Nesse último Su-
conhecidas pelo público. Mas essa que trabalha um grande número perbowl, que sempre foi um espaço
pesquisa é particularmente útil de campanhas conosco, é possível para comerciais com humor, havia
para as emissoras que desejam identificar padrões. Temos uma campanhas como a de uma garota
testar um piloto. A partir dessa com- massa crítica maior. No geral, con- sem pernas, um menino morrendo
paração de dados, é possível prever seguimos saber, pensando como em casa, achei tudo dramático de-
o potencial de reverberação de uma ciência e mercado, coisas que po- mais. Ser emocional não significa,
nova série, nas redes sociais. dem funcionar melhor ou não. Por necessariamente, fazer as pessoas
exemplo, sempre que você tem chorarem no sofá. Tem mais a ver
Revista da ESPM — Podemos dizer um rosto e um texto em cima, ou com a credibilidade da mensagem
com certeza, então, que o ato de “tui- ao lado, a imagem não funciona que você está passando.
tar” é muito mais emocional do que muito bem. Isso acontece porque
racional? você tem uma divisão de atenção. A Revista da ESPM — Qual é o limite
identificação de rostos é muito im- da mensagem emocional para que ela
Manuel — Definitivamente. Nesse portante para o ser humano, temos seja eficiente?
caso relacionado à programação uma área do cérebro específica
de TV, postar algo no Twitter é uma para isso. Por outro lado, qualquer Manuel — Analisamos, recente-
resposta emocional imediata ao que pessoa a lfabetizada tende a ler mente, a campanha de um institu-
se está assistindo. automaticamente qualquer mensa- to de pesquisas de câncer infantil
gem. Isso divide muito a atenção. e descobrimos elementos muito
Revista da ESPM — Que outras interessantes. Um dos comerciais
pesquisas você estão realizando para Revista da ESPM — Com base nas mostrava crianças em situações
medir a resposta emocional nos meios avaliações mais recentes, é possível de sofrimento, o que provocava
digitais? identificar novas tendências nas men- u ma queda no engaja mento. O
sagens publicitárias? segundo filme abordou o tema tra-
Manuel — Um de nossos princi- tando as crianças como super-he-
pais produtos é o de medir a efici- Manuel — A busca por mais enga- róis, com resultados mais efetivos.
ência de campanhas e produtos, jamento é muito grande. Algo que Ficou claro que mostrar crianças
de acordo com o meio de “entre- eu notei no último Superbowl [as doentes provoca um impacto ini-
ga” da mensagem. Já fizemos al- finais do campeonato de futebol cial, mas o prolongamento dessa
guns estudos para a Microsoft, por americano, com o intervalo comer- imagem afasta o espectador em
exemplo, para avaliar a eficácia de cial mais disputado do mundo] foi um determinado momento. Quan-
campanhas em tablets. uma tendência muito mais emo- do você inverte a lógica e mostra
cional dos comerciais. Eu não sei a criança lutando para sobreviver,
Revista da ESPM — Com base na se esse é o caminho mais correto, como um herói, a mensagem ga-
neurociência, quais são os erros ou porque há um desafio enorme em nha mais impacto.
as deficiências mais comuns de uma la nça r u ma imagem emociona l
campanha publicitária? forte e depois concluir o roteiro de Revista da ESPM — Um dos exem-
plos citados pela Nielsen Neuro aqui
no Brasil é a campanha da AACD, que
Com o EEG medimos a atividade elétrica do cérebro foi apresentada em um comercial de
um minuto e meio, mas teve uma su-
e com o eye tracking identificamos para onde a pessoa gestão de redução de tamanho. Qual
está olhando. Com as duas informações, podemos dizer foi a leitura dessa campanha do ponto
que parte do estímulo visual está gerando uma resposta de vista científico?

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 43


entrevista | JANAÍNA BRIZANTE E MANUEL GARCIA-Garcia

Janaína — Sempre que analisamos, precisamente, qual foi a rejeição não quer que a sua mensagem passe
nós entregamos uma sugestão mais emocional do público feminino, por para as pessoas.
curta para otimizar o investimento exemplo. E hoje nós sabemos da im-
do cliente. Esse é um ponto. Mas o portância do fator emocional para Revista da ESPM — Qual é a impor-
que vimos especificamente nessa a tomada de decisão de compra. Se tância da simplicidade do argumento
campanha era o elemento muito existe um engajamento emocional para a efetividade da campanha?
positivo quando se mostrava o tra- baixo em um trecho de cinco anos,
balho da AACD. O engajamento era isso não é uma boa notícia para a Janaína — Uma mensagem mais
muito grande no momento em que campanha. Às vezes, você pode ter simples sempre terá mais potencial
o comercial exibia a interação do uma atenção alta, mas um baixo de compreensão. Nós tivemos o
fisioterapeuta com a criança. Quan- engajamento. Isso pode indicar que caso de uma pré-campanha de ca-
do o comercial se estendia muito a pessoa não está entendendo a misinha, testada fora do Brasil, que
na parte negativa, no problema da mensagem. Essa é a nossa principal em determinado momento do co-
criança, isso tendia a desengajar entrega para o cliente: identificar mercial os personagens se vestiam
o espectador. Então, a conclusão que cenas estão funcionando e que com uma roupa emborrachada. Foi
desse estudo foi não estender de- parte do comercial não está. possível medir um grande esforço
mais a apresentação do problema cognitivo para entender o que aqui-
em tela. Explique o problema, mas Revista da ESPM — Mas é possível lo queria dizer, com baixo engaja-
venha logo com a solução. No caso associar valores pessoais com a men- mento emocional. Foi uma ideia que
da AACD, isso funcionou superbem, sagem da campanha? não funcionou. Mas há ideias mais
porque o trabalho deles foi bem re- complexas que funcionam muito
conhecido pela sociedade. Janaína — Nós conseguimos medir bem. Não existe uma receita de bolo.
essa associação sem perguntar nada Para nós, só é possível criar uma
Revista da ESPM — Como a neu- para ninguém. Primeiro, nós mostra- cartilha de melhores práticas quan-
rociência pode medir a rejeição da mos palavras na tela, para identificar do já testamos várias campanhas de
propaganda? É possível avaliar temas que estímulo a pessoa tem nesses uma mesma marca e em um mesmo
sociais correntes de crítica à publici- valores apresentados, e aí fazemos mercado, porque as referências vão
dade, como o sexismo, por exemplo? a medição da atividade cerebral ficando mais claras.
novamente. Se eu mostrar para você
Janaína — O mais interessante da a palavra “casa” várias vezes, eu con- Revista da ESPM — Os conceitos
neurociência é que nós consegui- sigo gravar a assinatura elétrica dela clássicos de campanhas, como o “lava
mos medir, cena a cena, a reação a no seu cérebro. Assim é possível as- mais branco”, são sempre assertivos?
uma campanha. Isso não se conse- sociar o estímulo da campanha com
gue fazer com nenhuma outra me- a assinatura da palavra na mente do Janaína — Além da ideia, a execução
todologia. Se no comercial há uma consumidor. Com isso, consigo saber é muito importante. Um bom exem-
cena de cinco segundos com uma se o filme está fazendo as associa- plo são as campanhas de absorvente
imagem muito discriminatória da ções que o cliente deseja ou o contrá- feminino ou desodorante, em que há
mulher, nós conseguimos avaliar, rio, comparando com valores que ele um trecho de demonstração. Aquela
cena de jogar uma tinta azul no pro-
duto, ou mostrar moléculas agindo
Uma mensagem mais simples sempre terá no local de aplicação. Testamos vários
anúncios desse tipo e vimos que a
mais potencial de compreensão. Mas há ideias mesma técnica pode funcionar ou
mais complexas que funcionam muito bem. não, dependendo dos outros elemen-
Não existe uma receita de bolo tos da campanha. Não há uma regra.

44 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


novas tecnologias para coletar essa
informação de forma mais acurada.
É algo para o futuro.

Revista da ESPM — Há muita ansie-


dade do mercado para descobrir o que
há por trás dessas novas tendências de
consumo de mídia?

Manuel — Sem dúvida. Tudo o que


envolve o mundo digital gera grande
expectativa.

Revista da ESPM — As agências


gostam de vocês? Muitos publicitários

latinstock
reclamam da interferência dos testes
de campanha na liberdade criativa.

Nos Estados Unidos, a Univision usou os testes da Nielsen Neuro para conhecer
Ja na í na — Quando as agências
a reação de jovens às campanhas publicitárias, de acordo com o idioma falado
conhecem o nosso trabalho e tra-
balham com a gente, elas gostam
Revista da ESPM — De que forma Revista da ESPM — Mas a interfe- muito. Temos parcerias muito boas
as mensagens publicitárias estão sen- rência de outros elementos de atenção com agências, pois qual é a grande
do absorvidas pelo público em um ce- pode ser medida? vantagem da Nielsen Neuro? Hoje,
nário de consumo de múltiplas mídias o cliente tem um briefing, leva para
simultaneamente? Já é perceptível Janaína — A neurociência não é a agência, o criativo desenvolve a
um novo tipo de comportamento nas muito apropriada para isso, pois pré-campanha ou o vídeo final, e
novas gerações que nasceram hiperco- a nossa metodologia consiste em isso é levado para um instituo de
nectadas? controlar o contexto. O EEG capta pesquisa que testa a efetividade
a atividade elétrica, assim sendo, desse comercial. Se ele não passa
Janaína — Nós sempre temos um qualquer movimento distorce a qua- na pesqu isa, o criat ivo rasga o
filtro entre as pessoas pesquisa- lidade do dado. Por isso, nós nunca roteiro e começa do zero out ra
das para medir como diferentes exibimos o conteúdo em diferentes vez. O que nós fazemos é mostrar
gerações de público irão reagir a dispositivos, como uma tela de com- que a campanha funciona, mas dá
uma determinada campanha. Con- putador ou de celular. para melhorar nos pontos a, b ou c.
seguimos testar o desempenho de Normalmente, o desempenho dos
um vídeo no YouTube entre jovens Revista da ESPM — Em outras pala- anúncios é bom ou regular, com
de 18 anos e adultos acima dos 55 vras, é ainda um método de pesquisa pontos de melhora. Em várias oca-
anos, por exemplo. Assim como muito estático, correto? siões, quando testamos e apresen-
podemos medir o desempenho de tamos esses pontos, a campanha é
campanhas em plataformas dife- Manuel — Quando se estudam vá- revisada, e conseguimos medir o
rentes. Hoje, isso é importante, rias fontes ao mesmo tempo, como acerto, que aparece bem feito num
pois os investimentos em mídias TV e celulares, por exemplo, o “ruí- segundo teste. Houve casos em que
d igit a is est ão ga n ha ndo mu it a do” dos dados é muito grande. Nós a agência nem precisou refilmar.
relevância. esta mos desenvolvendo, agora, Bastou reeditar o vídeo.

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 45


neurociência

Neurociência do consumo:
as fronteiras da pesquisa
de mercado e suas
contribuições para os
métodos tradicionais
de pesquisa
Veja como a pesquisa de mercado pode
se beneficiar da utilização das tecnologias
neurocientíficas, aliadas às ciências sociais,
para ajudar as marcas a obter respostas
mais precisas sobre os gostos, os hábitos
e o comportamento de consumo
e de compra de seus targets

Por Pedro Calabrez e Alexandre Morgado

46 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 47
latinstock
neurociência

I
magine a seguinte situação: durante um evento As limitações das metodologias qualitativas são bem
familiar, um pesquisador deseja medir o quanto conhecidas. Primeiramente, temos a impossibilidade
você gosta de cada um dos membros de sua famí- de extrair dados quantitativos e, portanto, estabele-
lia que estão presentes nesse encontro. Ou seja: cer conclusões com precisão. Em segundo lugar está o
qual é a força dos seus laços afetivos com cada familiar fato de que indivíduos mentem/omitem por diversos
que está participando dessa festa? fatores, sejam eles insegurança, timidez ou o receio de
O que fazer? Como extrair um dado quantitativo con- estar saindo de algum padrão social bem estabelecido.
fiável de algo tão essencialmente subjetivo? Em essência, as pessoas tendem a dizer aquilo que elas
Tradicionalmente, a pesquisa de mercado utiliza imaginam que se espera delas. Isso torna certos temas
o recurso metodológico mais evidente: perguntar ao impossíveis de investigar qualitativamente.
indivíduo e interpretar suas declarações. No espectro Um exemplo evidente disso, vivido por nós, vem de
qualitativo, entrevistas em profundidade e focus groups pesquisas que conduzimos para investigar o comporta-
estão entre as metodologias mais utilizadas. No espec- mento do chamado “metrossexual” em homens jovens
tro quantitativo, questionários utilizando escalas psi- de classe média, nos anos 2000. Em focus groups, onde
cométricas de preferência. diversos jovens debatiam em uma mesma sala, era unâ-
Voltando ao exemplo da festa em família... O pesqui- nime a declaração de que nenhum deles seguia tendên-
sador pode estruturar um roteiro de perguntas-chave a cias criadas por celebridades masculinas. Nos grupos,
respeito de seus familiares, sentar-se com você e entre-
vistá-lo em profundidade. Ou, talvez, reunir sua famí-
Em estudos realizados nos anos 2000 para definir o perfil do
lia em uma sala e moderar uma conversa em grupo com ”metrossexual”, nenhum jovem pesquisado admitiu querer
todos — posteriormente analisando a gravação e inter- se parecer com David Beckham – embora todos tenham
pretando os resultados. adotado estilos muito similares ao do jogador de futebol

latinstock

48 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


latinstock
Durante os focus groups, os jovens também não declaravam que seus cuidados estéticos se deviam a questões de sedução e
busca por atenção do sexo oposto. A afirmação mais comum era: ”Quero me sentir bem comigo mesmo”

Exemplo de escala de Likert (contínua), de preferência:


Marque na reta abaixo, como se ela fosse um termômetro, um pequeno risco, de acordo com a
sua opinião.

”Meu pai é minha pessoa predileta na família”

Discordo totalmente ------------------------------------------- Concordo totalmente

Obs.: Escalas como essa são mais psicologicamente precisas do que as tradicionais escalas que utilizam números (por
exemplo: ”- 4 -3 -2 -1 0 +1 +2 +3 +4”) ou categorias discretas (por exemplo: ”discordo totalmente, discordo parcialmente,
nem concordo nem discordo, concordo parcialmente, concordo totalmente”). Primeiramente, por questões psicológicas:
afetos e preferências são manifestações em um continuum de valência (negativa-positiva), e não em uma escala de
categorias psicológicas estanques previamente definidas (como ”-3” ou ”discordo parcialmente”). Em segundo lugar, por
questões estatísticas: dados contínuos permitem modelagens mais complexas e úteis aos pesquisadores.

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 49


neurociência

os jovens diziam seguir estilos desenvolvidos por si pró- sexo oposto, como muitas vezes a parceira acompanhava
prios, de forma original. Ou seja, nenhum admitiu querer e orientava o processo. Muitos se inspiravam em celebri-
se parecer com David Beckham, por exemplo — embora dades. E a sobrancelha? A maioria já havia aparado/deli-
tenham adotado estilos muito similares ao do notório neado ao menos uma vez. Alguns, semanalmente.
jogador de futebol. Levantamentos quantitativos, baseados em questioná-
Também não era declarado pelos jovens que seus cui- rios, são capazes de driblar algumas dessas limitações.
dados estéticos se deviam a questões de sedução e busca Em geral, permitem conclusões mais precisas e obser-
por atenção do sexo oposto. Nos grupos, o jovem somente vações menos subjetivas. No entanto, sofrem do mesmo
afirmava: “Quero me sentir bem comigo mesmo” — e problema das metodologias qualitativas: baseiam-se nas
disso, segundo ele, derivavam seus cuidados estéticos. declarações do consumidor/shopper. Todos que trabalham
Nesses mesmos estudos, os jovens afirmavam que com pesquisa de mercado já ouviram, de consumidores
existem limites claros para os cuidados estéticos mas- e shoppers, a frase “Eu não sei qual é a resposta certa”.
culinos. Ultrapassar tais limites era sinal de um compor- Na festa de família, caso o pesquisador opte por tais
tamento que comprometia a sexualidade do homem. Um metodologias, corre-se o risco de que as delicadas rela-
exemplo encontrado em todos os grupos foi o cuidado ções afetivas familiares — que resultam em inveja, trai-
com as sobrancelhas. Para os jovens, homens que deli- ções, fofocas e tantos outros fenômenos bem conhecidos
neavam ou aparavam a sobrancelha eram “afeminados”.
Quando os dados dos focus groups foram comparados a Nesses mesmos estudos, os entrevistados afirmavam
observações comportamentais e entrevistas com parceiras existir limites claros para os cuidados estéticos
(namoradas e esposas), encontramos informações opostas. masculinos. Para os jovens, homens que delineavam ou
Os homens não só se cuidavam para chamar a atenção do aparavam a sobrancelha eram ”afeminados”

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50 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


latinstock
Quando os focus groups foram comparados com as opiniões No entanto, os resultados apresentados pelos insti-
das parceiras dos entrevistados, o estudo apontou que eles tutos muitas vezes demonstram que o consumidor gos-
não só se cuidavam para chamar a atenção do sexo oposto, tou de todos os conceitos testados. Não fica claro para
como muitas vezes a parceira orientava o processo
o cliente qual dos conceitos é efetivamente melhor ou
qual tem maior poder de conversão e geração de valor
— façam com que os dados declarados sejam inverdadei- na mente dos consumidores.
ros ou, no mínimo, altamente enviesados. Afinal, de maneira geral, todos os conceitos costu-
Um problema ainda maior — e muito comum — é o fato mam apelar a ideias e elementos que possuem signi-
de que, frequentemente, você não saberá dizer realmente ficância positiva na vida do consumidor. Tal como é
se, naquela festa, gosta mais de um indivíduo ou de outro. difícil discernir o quanto gostamos de um filho ou de
Pai ou mãe? Irmão mais velho ou mais novo? Primo X ou outro, é igualmente difícil, para tais consumidores,
Y? Respostas como “Eu gosto muito de todos os meus discernir o quanto gostam de um conceito de marca
irmãos” serão frequentes. E escolher entre pai e mãe, ou de outro.
então? Muito difícil, para muitos — no plano consciente.
Na esfera da pesquisa de mercado, esse fenômeno é Observação do comportamento
bem conhecido por profissionais de marketing. Tome- Uma boa forma de obter respostas mais precisas é,
mos um exemplo de pesquisas de branding. Quando uma além de se basear nas declarações do consumidor ou
empresa deseja construir um Brand Positioning Statement shopper, observar seu comportamento no ambiente de
(BPS — uma descrição objetiva de quem é o público-alvo varejo ou no ambiente de uso dos produtos/serviços.
e de como a empresa deseja que esse público-alvo pense, Não se trata de substituir, mas de complementar as
sinta e interaja com a marca), ela frequentemente recorre abordagens — como veremos adiante, essa é a postura
aos institutos de pesquisa para testar conceitos de marca. que defendemos em pesquisa de mercado.

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 51


neurociência

Óculos de Eye
Tracking, da marca
SMI: tecnologia a
favor da pesquisa
de consumo

divulgação
Tais observações podem ser feitas de maneira não inva- Geralmente, o pesquisador considera atenção o olhar
siva, por meio de câmeras ou de pesquisadores estrategi- constante, “atento”. No entanto, os estudos recentes em
camente posicionados. Nesses casos, a observação pode, ciência psicológica mostram que os indivíduos, em suas
muitas vezes, oferecer informações que os consumidores vidas de maneira geral, passam 47% do tempo fazendo
e shoppers simplesmente não lembram, não prestaram uma coisa enquanto pensam em outra — como apontam
atenção ou não desejam declarar. A aplicação de concei- Matthew A. Killingsworth e Daniel T. Gilbert no artigo
tos e metodologias da chamada psicologia ambiental aos “A wandering mind is an unhappy mind”, publicado na
estudos de shopper — que teve como pioneiro o pesquisa- revista Science, em maio de 2010. O termo científico é
dor Paco Underhill, autor de Vamos às compras (Editora “pensamento estímulo-independente”. O termo cotidiano
Elsevier, 2009) — é um exemplo dessa abordagem. é “vagueando” ou, ainda melhor, “viajando”. Estamos
Como toda abordagem metodológica, a observação fazendo algo, olhando para uma coisa ou mexendo em
tem suas limitações. Por exemplo: institutos que tra- algum objeto — mas nossas mentes estão em outro lugar.
balham com essa técnica costumam chamar de “inte- Conclui-se disso que o fato de um shopper ficar obser-
ração” o momento a partir do qual o shopper olha com vando um produto ou uma gôndola por um tempo maior
atenção para os produtos. Nesse caso, o que é atenção? não significa que ele esteja prestando mais ou menos

52 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


atenção neste produto em detrimento de outros, muito
Tal como é difícil discernir o quanto
menos interagindo com o produto.
Atualmente, tecnologias mais robustas permitem um gostamos de um filho ou de outro, é
rastreamento automatizado do shopper no ambiente de difícil, para o consumidor, discernir o
varejo, a partir de triangulação por GPS. Permitem-se, assim, quanto gosta de um conceito de marca
medidas mais quantitativas e menos subjetivas (indepen-
dentes de um observador humano que pode, por exemplo,
julgar como “interação” um comportamento que não é). As limitações, no entanto, incorrem no mesmo pro-
Nós, em particular, utilizamos tais tecnologias asso- blema levantado anteriormente: quando o indivíduo sabe
ciadas a modelos matemáticos que permitem encon- que está sendo observado, seu comportamento muda.
trar relações entre a trajetória de shoppers e as taxas No caso da etnografia dentro dos lares, por exemplo,
de conversão, mediadas por variáveis como tempo total isso se agrava. O lar costuma ser um ambiente de des-
e tempo em cada área da loja. Tais métodos permitem contração e, em geral, mais livre de comportamentos
responder a perguntas como: qual é a típica trajetória, condicionados por desejos de pertencimento ou sen-
dentro da loja, dos indivíduos com maior tíquete médio?; timentos de vergonha. A presença de um ou mais pes-
quais são as áreas de maior tempo de visita?; as áreas quisadores muda esse “clima”, por vezes totalmente.
com maior tempo de visita são, também, aquelas cujos Novamente, vamos voltar ao exemplo de nossa festa
produtos mais vendem?; qual trajetória está mais asso- de família. A forma como você interage com sua famí-
ciada a um elevado tíquete médio, no menor tempo pos- lia, para um observador externo, não denota realmente
sível, dentro da loja?. E tantas outras questões. como você se sente em relação a cada um dos familiares.
Vieses de observação são evitados quando medidas Especialmente se você souber que está sendo observado.
concretas e quantitativas, como trajetória, tempo e con- Assim, o comportamento pode denotar falsos laços afe-
versão, são comparadas. tivos. Ou o pesquisador pode não ser capaz de notar dife-
Outra metodologia de observação amplamente uti- renças significativas no seu comportamento perante
lizada é a etnografia. Estudos em que pesquisadores, seus diferentes irmãos, por exemplo — concluindo que
por exemplo, passam alguns dias na casa de consumi- você gosta de todos de maneira igual. Como podemos
dores, observando e investigando as práticas de uso de ver, são problemas semelhantes aos que teríamos com
produtos, tornaram-se comuns nos anos 2000 e seguem as metodologias declarativas... O que fazer diante das
frequentes até hoje. limitações apresentadas?

A face não consciente do comportamento


E se fôssemos capazes de medir, durante a festa, a intensi-
dade do abraço que você dá em cada um de seus familiares?
De maneira mais realista, e se pudéssemos verifi-
car a variação na dilatação das suas pupilas quando
você olha para cada um deles? Isso porque a variação
na dilatação das pupilas possui, essencialmente, três
causas: variações na iluminação do ambiente, engaja-
mento cognitivo (prestar atenção, ou a execução de um
pensamento complexo) e excitação emocional. Logo, é
possível, por meio da devida interpretação dos dados de
variação das pupilas (pupilometria), determinar se houve
divulgação

engajamento cognitivo ou emocional quando o indiví-


duo observa algo. O uso da técnica em estudos de com-
Exemplo de Heat Map de Eye-Tracking: as cores quentes portamento do consumidor data dos anos 1970, como
indicam maior tempo de visualização aponta o artigo “Pupil dilation: what does it measure?”,

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 53


neurociência

publicado por Roger Blackwell, James Hensel e Brian


Sternthal, no Journal of Advertising Research, em 1970.
E se pudéssemos obter respostas psicofisiológicas asso-
ciadas à excitação emocional e cognitiva, como a transpira-
ção da sua pele enquanto você interage com cada familiar?
É sabido que a transpiração varia em níveis imperceptí-
veis ao indivíduo, mas perceptíveis a um aparelho que
mede a condutibilidade elétrica da pele — que fica maior
com a presença do suor. E se fôssemos capazes de medir
a atividade elétrica de cada uma de suas estruturas cere-
brais, enquanto você olha para cada membro da família?
Poucos discordarão de que essas são medidas interes-
santes e potencialmente úteis para superar as limitações
das metodologias tradicionais.
É disso que trata a neurociência do consumo — popu-
larmente conhecida como neuromarketing, termo que
tentamos evitar, devido a uma banalização perigosa da
complexidade de abordagens neurocientíficas. Processos
não declarativos e não conscientes podem ser medidos
com tecnologias específicas, permitindo aos profissio-
nais de marketing e comunicação uma nova leitura do

latinstock
comportamento de consumidores e shoppers.
Conheça quais são as principais abordagens metodológi-
cas utilizadas pela neurociência do consumo na atualidade: Estudos em que pesquisadores passam alguns
dias na casa de consumidores investigando as
Eye Tracking: realiza o rastreamento do olhar dos práticas de uso de produtos tornaram-se comuns
indivíduos, indicando as áreas de maior tempo de visu- nos anos 2000 e seguem frequentes até hoje
alização e a ordem (sequência) de visualização. Há apa-
relhos fixos e óculos. Os fixos permitem o estudo de de atenção, engajamento emocional e potencial de
estímulos estáticos, como vídeos e imagens projetadas memorização dos estímulos observados pelos parti-
em telas. Os óculos permitem a realização de estudos cipantes. Amplamente utilizada para testar a eficácia
de shopper, usabilidade e quaisquer estímulos em que de mensagens publicitárias, pode ser usada concomi-
a interação necessite de movimentação por parte do tantemente com o eye-tracking.
indivíduo. Alguns aparelhos colhem medidas de pupi-
lometria — variação da dilatação das pupilas, indica- Respostas psicofisiológicas: aceleração cardíaca,
tiva de excitação cognitiva ou emocional —, mas nem aumento da frequência respiratória, da temperatura e
todos os institutos possuem especialistas capazes de da condutibilidade elétrica da pele — todos são indicati-
interpretar esses dados. vos de excitação cognitiva e emocional e podem ser devi-
damente medidos, enquanto consumidores observam
Eletroencefalografia (EEG): mede a atividade elé- vídeos, imagens ou interagem com produtos.
trica no escalpo (couro cabeludo) do indivíduo. Tal
atividade deriva da operação biocomputacional do Neuroimagem por Ressonância Magnética Funcio-
cérebro, cujo funcionamento possui elementos elé- nal (iRMF): a iRMF verifica o fluxo sanguíneo no cére-
tricos e químicos. A tecnologia permite, a partir de bro de forma precisa e milimétrica. Trata-se da mais cara
modelos cientificamente validados, verificar os níveis das tecnologias e é de altíssima complexidade. A análise

54 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


Millward Brown, TNS e Ibope — já possuem abordagens
neurocientíficas em seus portfólios de soluções. Há tam-
bém a presença de institutos menores, “boutiques de pes-
quisa”, como a NeuroVox, em São Paulo, ou a Forebrain,
no Rio de Janeiro. Tais serviços são solicitados hoje por
empresas como Coca-Cola, Mondeléz International, Pep-
siCo, Yahoo e tantas outras.
No entanto, um dos maiores equívocos de quem pouco
entende das potencialidades e limitações da neurociên-
cia do consumo é afirmar que ela irá erradicar, ou mesmo
tornar menos úteis, as metodologias tradicionais.
Toda metodologia de pesquisa de mercado possui
limitações. O bom pesquisador não é o que afirma que
sua metodologia é infalível, mas sim aquele que entende
as limitações de todas as metodologias disponíveis e é
capaz de selecionar a(s) mais adequada(s) ao problema
ou questão específica que pretende investigar.
Nesse sentido, entrevistas, focus groups, observação
em campo, etnografia e todas as demais abordagens são
muito úteis — quando aplicadas em contextos nos quais
suas limitações não impossibilitem a geração de resul-
latinstock

tados confiáveis. Muitas vezes, tais metodologias são


largamente preferíveis às abordagens neurocientíficas.
A neurociência do consumo possui limitações que
O problema desse tipo de pesquisa é que, quando
o indivíduo sabe que está sendo observado, seu vão desde a esterilidade do ambiente laboratorial onde
comportamento muda. No caso da etnografia alguns estudos são conduzidos, passando pela dificul-
dentro dos lares, por exemplo, isso se agrava dade de generalizar determinados resultados para uma
população inteira de consumidores, até as próprias limi-
dos dados de iRMF necessita de especialistas especifi- tações tecnológicas e de análise dos dados. E esses são
camente treinados para modelagens estatísticas aplicá- apenas alguns exemplos.
veis à tecnologia. Devemos entender a neurociência do consumo como
um crescente campo de pesquisa — acadêmica e de mer-
Leitura de expressões faciais: emoções geram expres- cado —, que possui limitações, porém é muito útil quando
sões faciais incontroláveis por parte dos indivíduos. Tais utilizado complementarmente às já tradicionais abor-
emoções podem ser capturadas por softwares específi- dagens de pesquisa que há décadas entregam resulta-
cos, que permitem a verificação da reação emocional do dos para empresas em todo o mundo.
indivíduo enquanto ele observa estímulos como mensa-
gens publicitárias, imagens de ícones visuais da marca,
Pedro Calabrez
de embalagens ou quaisquer outros. Pode ser utilizada Sócio-diretor da NeuroVox, professor da graduação e MBAs da
concomitantemente ao eye-tracking (fixo) e ao EEG. ESPM e da FIA. Pesquisador filiado ao Laboratório de Neurociências
Clínicas (LiNC) da Escola Paulista de Medicina da Unifesp

O fim da pesquisa tradicional?


A realidade e a utilidade da neurociência do consumo na Alexandre Morgado
Sócio-diretor da NeuroVox, com mais de dez anos de
pesquisa de mercado é perfeitamente exemplificada pelo atuação em departamentos de marketing de multinacionais
fato de que todos os grandes institutos — como Nielsen, de bens de consumo, como Danone, Nestlé, Revlon e Unilever

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 55


pesquisa

O virtual que
se tornou real
O novo papel da pesquisa de mercado
no entendimento do comportamento de
compra e consumo dos brasileiros
Por Paulo Carramenha

56 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


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maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 57


pesquisa

A
s mudanças na forma como os indivíduos inter- Logo, esse consumidor demonstra menor fidelidade às
pretam e vivem a realidade têm sido um dos marcas e maior interesse por produtos e serviços que
maiores desafios da ciência, nos últimos anos, ofereçam alguma forma de interação e gerem a sensação
com grande impacto no mundo dos negócios. de que ele tem o controle na relação de compra.
Isso porque essas transformações se refletem diretamente A quantidade e a velocidade das informações disponí-
no desenvolvimento de produtos e inovações e, de uma veis, atualmente, atenderam uma necessidade intrínseca
forma mais ampla, em todo o contexto social e humano. do ser humano e acabaram por criar um novo consumidor.
Na mesma velocidade, existem ondas e modas que preci- Hoje, na gestão de marcas, é imprescindível incentivar o
sam ser reconhecidas e que devem ser consideradas em todo diálogo e conectar-se emocionalmente com os consumi-
e qualquer novo projeto relacionado a produtos ou serviços. dores. E quanto melhor o relacionamento entre as marcas
O relacionamento entre marcas e pessoas é extrema- e os indivíduos, mais bem-sucedidas serão as estratégias
mente complexo e requer uma visão holística e aprofun- de mercado das empresas, que vêm enfrentando uma nova
dada. No momento de as empresas traçarem suas estra- revolução na forma como desenvolvem as suas ativida-
tégias de marketing é preciso examinar e entender os des, tanto no que se refere aos novos produtos e serviços
consumidores como indivíduos repletos de aspirações quanto nas relações comerciais com seu público final. A
e valores próprios, que interferem e definem os seus chave do sucesso é conciliar as atividades de marketing,
padrões de consumo. Antes de ser alguém que consome, os valores das marcas e seus benefícios emocionais e fun-
o consumidor é um ser humano que carrega inúmeras cionais com as expectativas dos indivíduos e de acordo
necessidades, expectativas, anseios e desejos inerentes com as suas experiências, necessidades e valores.
aos seres humanos e que podem ou não estar vincula- Cada vez mais, buscam-se produtos que permitam
dos ao consumo de produtos e serviços. Por outro lado, mobilidade e consumo em movimento, com portabilidade
o consumidor tem cada vez mais informações, opções e privacidade. O ritmo de vida tem impulsionado essa
de marcas, canais de compras e formas de pagamento. expectativa de mobilidade em quatro diferentes áreas:

latinstock

O atual desafio de pesquisadores e usuários de pesquisa é conseguir tirar proveito das redes sociais “cibernéticas”
para apoiar o desenvolvimento de produtos e inovações tecnológicas que melhorem as condições de vida da sociedade

58 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


1) Mobilidade social — significa a busca por status e ascen- objetiva e sistemática de dados que, analisados e interpreta-
são social. dos, geram conhecimento e ajudam na tomada de decisões.
No passado a pesquisa de mercado se limitava a ser uma
2) Mobilidade física — abrange o consumo de produtos e “fotografia de um determinado momento” e mostrava ape-
serviços fora de casa e em movimento. nas comportamentos e percepções de um passado recente,
mas não permitia estimar tendências de comportamento.
3) Mobilidade cultural — está relacionada à procura de novas A pesquisa de hoje tem um papel inspirador para as marcas,
alternativas de consumo e maior receptividade às mudan- pois, além de apontar tendências, ela permite a tomada de
ças de hábitos em geral. decisões com rapidez e confiabilidade a partir de variáveis
concretas que não só identificam o momento presente,
4) Mobilidade virtual — indica a tecnologia como fator de como também antecipam movimentos e comportamentos.
aumento do acesso a um mundo que não era alcançado Mas não foi só nesses aspectos que a pesquisa de mer-
pelos consumidores para melhorar as suas vidas cado evoluiu. Assim como os indivíduos, ela passou a
usar a tecnologia a seu favor, deixando de ser apenas
Para colocar o consumidor no centro da estratégia um instrumento de medição do que já passou. O atual
de desenvolvimento dos negócios, torna-se imperativo desafio de pesquisadores e usuários de pesquisa é conse-
o uso da pesquisa de mercado, que mantém vivo o diá- guir tirar proveito das redes sociais “cibernéticas” para
logo com o público-alvo, acumula conhecimento, gera apoiar o desenvolvimento de produtos e inovações tec-
ideias, inspira talentos e desperta novas formas de ver. nológicas que melhorem as condições de vida da socie-
A pesquisa de mercado nunca foi tão imprescindível, dade. A tecnologia ganhou uma importância ímpar, e as
pois nesse momento de mudanças e incertezas ela permite redes sociais se mostram como a expressão máxima do
detectar oportunidades, reduzir riscos e avaliar desempe- homem como produtor de conhecimento e sua necessi-
nhos. Um projeto de pesquisa de mercado é uma coleção dade de trocar o que aprende e o que acredita a partir da
interação social por meio de uma plataforma tecnológica.
Apesar da maior inconstância e menor fidelidade dos con-
sumidores, expõem inúmeras oportunidades para as empre-
sas que souberem interpretar essas tendências e encontrar
formas de auxiliá-los a seguir seu caminho. As marcas têm
um papel primordial nesse processo, devendo se adequar
aos anseios, inovando e anunciando as suas inovações.
Nesse contexto, a internet tem sido uma plataforma
extremamente útil para a pesquisa de mercado. Por um
lado, ela funciona como mais um canal de comunicação
e acesso aos indivíduos, facilitando a relação imediata
com eles, independentemente de sua condição social,
localização e outras variáveis, demográficas ou não. Por
outro lado, ela possibilita o entendimento de comporta-
mentos, necessidades, anseios e expectativas, sem neces-
sitar de interação direta com os públicos de interesse.
Se bem aplicada, essa ferramenta pode trazer redução
de custos e prazos na execução de estudos de mercado.
Crescem a cada dia as taxas de aplicação da pesquisa de
mercado por meio de plataformas tecnológicas, a chamada
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pesquisa on-line. Em países como a Inglaterra, França,


Holanda e Alemanha, cerca de 75% dos orçamentos para
As redes sociais são a expressão máxima do homem como pesquisas são destinados aos projetos on-line. No Brasil, esse
produtor de conhecimento e sua necessidade de troca percentual ainda é bastante inferior, mas cresce a cada ano.

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 59


pesquisa

As técnicas tradicionais de pesquisas de mercado, como


entrevistas pessoais ou discussões em grupo, ainda são
intensamente utilizadas. Mas, cada vez mais, as empresas
de pesquisa vêm investindo em novos métodos e técnicas
para se adequar e entender melhor as transformações no
comportamento dos consumidores. De forma agregada,
esses métodos têm se mostrado extremamente eficientes
para a geração de conhecimento sobre a nova realidade
dos consumidores. Alguns desses métodos são apenas
aplicações das novas tecnologias a métodos tradicio-
nais. Em contrapartida, outros são realmente modernos
e radicalmente diferentes do que se vinha usando desde
o início do desenvolvimento da pesquisa de mercado, no
início do século passado. Confira alguns dos principais
métodos utilizados atualmente:

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1. Foco no significado dos dados coletados — Está cada
vez mais fácil coletar dados de comportamento de consu-
midores reais por meio das plataformas de comunicação e
relacionamento. O foco, portanto, passa a ser na interpre- Assim como os indivíduos, a pesquisa de mercado
tação desses dados e na forma de usá-los com originalidade evoluiu e passou a usar a tecnologia a seu favor,
deixando de ser apenas um instrumento de medição
e adequação — o chamado data mining. Por exemplo, no
do que já aconteceu
Google Analytics pode-se obter uma quantidade enorme
de informações sobre visitas aos websites, incluindo, entre
outras, origem do visitante, assuntos de maior interesse, também, que se alcancem públicos que, até por razões
caminhos percorridos e resoluções de tela, permitindo à de segurança, não se dispõem a responder a pesquisas
empresa ajustar o seu website para atender às expectati- pelos métodos tradicionais.
vas do público de interesse. A Amazon também oferece
um serviço de data mining denominado recomendação 3. Pesquisa pelo celular — Com a avalanche dos smar-
preditiva. Por meio do monitoramento do comportamento tphones e tablets no cotidiano das pessoas, estão sur-
histórico de visitas e compras dos seus usuários é possí- gindo empresas de pesquisa especializadas em utilizar,
vel recomendar o desenvolvimento de produtos, ofertas, com sucesso, essa plataforma de relacionamento para
promoções e ações de inovação em geral. Tudo isso é rea- obter informações sobre os consumidores. No Brasil,
lizado por meio da análise de dados, sem a necessidade a Pinion e a Me Seems desenvolveram aplicativos que
de perguntar aos usuários. Atualmente, muitas empre- possibilitam o levantamento de uma série de informa-
sas estruturam equipes de analistas de dados que têm a ções dos consumidores com uma velocidade espantosa
responsabilidade por esse trabalho, proporcionando um e a custos extremamente competitivos. Alguns tipos
enorme diferencial competitivo em relação à concorrência. de pesquisa que podem ser realizados por esse método
são os seguintes:
2. Ferramentas de colaboração on-line — Por meio
de plataformas e ferramentas como Skype e SMS, é pos- • Pesquisas de avaliação de ideias, conceitos,
sível replicar métodos de pesquisa considerados tradi- promoções e caminhos criativos
cionais utilizando a tecnologia que agiliza os proces- • Awareness e ações específicas no ponto de venda
sos e reduz significativamente o preço das pesquisas, • Cliente misterioso
uma vez que elimina a necessidade de interação física • Mobilenography — a etnografia por meio da
com os entrevistados. Essa forma de pesquisa permite, plataforma móvel

60 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


6. Pesquisas nas redes sociais — As redes sociais
dominaram a internet e já estão incorporadas ao coti-
diano das pessoas e influenciam, diretamente, o seu
padrão de consumo. Por isso, é obrigação dos pesqui-
sadores desenvolverem formas de monitorar esse novo
comportamento para obter conhecimento e vantagem
competitiva. Algumas formas de desenvolver pesquisa
nas redes sociais:

• Análise das redes sociais: simplesmente, pesquisar o


que acontece nas redes sociais. Por exemplo, conhecer o
percentual e perfil de usuários do Facebook ou do Twit-
ter, auxiliando a definição de ações nessas plataformas.

• Pesquisa utilizando dados das redes sociais: existe uma


infinidade de informações que podem ser obtidas das redes
latinstock

sociais que ajudam a entender tendências e comportamen-


tos e gerar vantagem competitiva para empresas e marcas.

Em países como Inglaterra, França, Holanda e Alemanha, • Pesquisa nas redes sociais: usar as redes sociais como plata-
cerca de 75% dos orçamentos para as pesquisas são forma de contato com o público de interesse de uma empresa
destinados aos projetos on-line. No Brasil, esse percentual
ou marca. As empresas de pesquisa têm desenvolvido pai-
ainda é bastante inferior
néis on-line de internautas, usando o modelo para atingir os
diferentes públicos, de forma rápida e segura.
4. Pesquisas com técnicas biométricas — As pesqui-
sas biométricas analisam as respostas presenciais das A maior parte desses métodos já tem sido usada com
pessoas a determinados estímulos, possibilitam avalia- regularidade no Brasil. Outros estão apenas começando
ções de preferência e rejeição, de forma gradual, e permi- a aparecer em nosso país. O fato é que, independente-
tem obter informações que não seriam verbalizadas de mente do método que se pretenda utilizar para pesqui-
forma racional. Alguns exemplos são: monitoramento sar os consumidores, é importante que os conceitos
da respiração e dos batimentos cardíacos, avalição da básicos de integridade dos dados não sejam abandona-
atividade cerebral e a observação e o registro da pupila dos. Não se deve esperar que uma pesquisa de mercado
e dos movimentos dos olhos. O ideal é que esses méto- apresente a verdade absoluta, porém ela precisa expres-
dos sejam utilizados como complementares a outros sar, de forma confiável, os padrões de um determinado
métodos de pesquisa. público de interesse. Para isso, é necessário garantir a
integridade dos dados coletados e interpretados. Com
5. Compra virtual — Usa-se como estímulo uma todo o desenvolvimento do chamado big data, dos artifí-
simulação de loja virtual para possibilitar uma expe- cios para a visualização de dados e infográficos, corre-se
riência de compra dos participantes da pesquisa. É o risco de esquecer os princípios básicos de integridade
uma boa forma de testar questões de varejo como dos dados e acabar gerando informações bem apresen-
colocação e posicionamento de produtos no ponto tadas, porém com conteúdo duvidoso.
de venda, layout de lojas, embalagens, promoções
etc. A ideia é replicar uma situação real de ponto de
venda e monitorar o comportamento das pessoas,
Paulo Carramenha
em vez de fazer perguntas diretas sobre comporta- Sócio-consultor da Sevendots e professor de comportamento
mento de compra. do consumidor dos cursos de pós-graduação da ESPM

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 61


neuromarketing

A era da neurociência:
entenda o cérebro
do seu consumidor!
Cada consumidor recebe, em média, cerca de cinco mil mensagens de marketing por
dia. Captar a sua atenção e obter seu engajamento é uma tarefa de complexidade
sem precedentes. Veja como a neurociência já é uma grande aliada neste processo
Por Lucas Copelli

62 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


63
shutterstock

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM


neuromarketing

A
té pouco tempo atrás, os maiores esforços fazem. Em muitos casos, o que os consumidores decla-
em obter esta inteligência aprofundada ram que querem nem sempre corresponde ao que eles
sobre o consumidor eram investidos nas realmente desejam.
tradicionais pesquisas de mercado, para as O fato que explica por que há uma generalizada falta
quais era destinada uma fatia relevante dos orçamen- de precisão nas respostas declaradas dos indivíduos é
tos. De fato, as abordagens qualitativas e quantitativas a primeira grande contribuição que as neurociências
são efetivas para atender a determinados objetivos de deram para a área de marketing: a descoberta de que as
marketing, coletando informações por meio de entre- decisões, incluindo as de compra, são tomadas, em sua
vistas individuais, questionários on-line de autopreen- maioria, no nível subconsciente. Elas sofrem grande
chimento, focus groups, entrevistas em profundidade, influência da parte mais primitiva e instintiva do cére-
entre tantas outras técnicas. bro, responsável pela sobrevivência, manutenção da
Contudo, quando se trata de algumas questões mais vida e bem-estar — e menos das áreas comandadas pela
sensíveis, relacionadas a comportamentos, escolhas e lógica. Na verdade, grande parte das nossas escolhas é
tomadas de decisão, essas metodologias não são 100% feita de forma subconsciente, embora tentemos expli-
efetivas. Isso porque sua efetividade repousa fragilmente cá-las e justificá-las, posteriormente, de forma racio-
na habilidade e disposição dos respondentes de declara- nal. Por isso, algumas verdades ficam escondidas sob
rem com veracidade suas motivações e comportamen- as palavras, nas pesquisas tradicionais, porque é difícil
tos. Muitas vezes, o que os consumidores declaram é, encontrar e verbalizar suas causas — ou simplesmente
na realidade, bem diferente do que pensam, sentem ou porque não são conscientes.

shutterstock

As neurociências correspondem ao conjunto de disciplinas de diversas áreas do saber – como anatomia, neurologia, estatística,
fisiologia e psicologia – que estudam a anatomia e a fisiologia do cérebro e as funções do complexo sistema nervoso humano

64 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


Edwards Deming e Peter Drucker, dois importantes
pensadores das teorias de administração modernas,
afirmam que “você não pode gerenciar o que não pode
medir”. No entanto, muitas decisões de marketing e
comunicação ainda são tomadas com base nas “medidas”
geradas pelos métodos tradicionais de pesquisa. Porém
eles não medem as emoções omitidas, as motivações não
expressadas, os processos inconscientes dos consumi-
dores — que incluem lembranças, sensações, metáforas
e histórias em constante mutação, interagindo umas
com as outras de maneira complexa. Resultado: muito
tempo e dinheiro gastos em inúmeras campanhas de
publicidade que não produzem efeito, em um montante
de mensagens que não são capturadas pelo público-alvo,
em elevada taxa de produtos com insucesso em seus lan-
çamentos, em uma assombrosa quantidade de negócios
que não sobrevivem ao primeiro ano de vida.
É por isso que, no sentido de oferecer medidas quanti-
tativas mais bem-sucedidas, a neurociência do consumo
tem sido cada vez mais usada para auxiliar no gerencia-

shutterstock
mento dos negócios.
Para compreender melhor esse assunto, vale dar uma
pincelada sobre o que são as neurociências. De maneira
simplificada, correspondem ao conjunto de disciplinas
Um sofisticado arranjo de conexões entre os neurônios –
de diversas áreas do saber — como anatomia, neurolo- 86 bilhões – gera um fluxo contínuo de informações
gia, estatística, fisiologia, psicologia, entre outras — que a partir dos estímulos recebidos: são cerca de 11 milhões
estudam a anatomia e a fisiologia do cérebro e as funções de informações por segundo
do complexo sistema nervoso humano, em especial do
Sistema Nervoso Central (SNC). O SNC é formado basi- quais os neurônios produzem sinais, os padrões de
camente pelo encéfalo e pela medula espinhal e é res- conexões entre as células nervosas, a relação entre
ponsável por receber e processar informações e também diferentes padrões de interconexão e tipos diferentes
pela maioria das funções de controle em um organismo, de comportamento e os meios pelos quais os neurônios
coordenando e regulando as atividades corporais. e suas conexões são modificados por experiência. Inte-
A notável variedade e complexidade de comporta- grando essas características, as neurociências permi-
mentos humanos é resposta a um sofisticado arranjo de tem o entendimento de nossos comportamentos — desde
conexões entre os neurônios. Presentes no cérebro em os mais básicos, como regulação orgânica, fome, sexo,
um número extraordinário de 86 bilhões, geram um fluxo respiração, até os mais complexos, como sentimentos,
contínuo de informações a partir dos estímulos recebi- julgamentos e tomadas de decisão. Com isso, aprende-
dos: são cerca de 11 milhões de informações por segundo. mos muito sobre como o sistema nervoso produz o com-
Quase a totalidade é processada em nível inconsciente. portamento humano, em seu nível mais fundamental.
Assim, tudo o que entendemos e interpretamos sobre o Sabendo disso, no final da década de 1990, Gerald
mundo acontece no cérebro, essa “máquina neural” de Zaltman, professor de administração e pesquisador
incrível flexibilidade e plasticidade — que dá a cada um de da Harvard Business School, teve a ideia de usar os
nós a nossa individualidade e capacidade de percepção. aparelhos de ressonância magnética funcional, uti-
As neurociências focalizam quatro características lizados em pesquisas de neurociências, para enten-
básicas da organização do SNC: os mecanismos pelos der os produtos e as marcas preferidos por um grupo

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 65


neuromarketing

de indivíduos. Assim, nascia a neurociência do con-


sumo — também chamada de neuromarketing, nome
cunhado em 2002 pelo holandês Ale Smidts, que per-
mitiu uma evolução nos estudos de mercado: a pos-
sibilidade de entender as correlações neurológicas e
o comportamento do consumidor, complementando
ou aprofundando os processos de investigação feitos
pelas empresas.
As suas aplicações envolvem a inovação e o desenvol-
vimento de negócios, produtos e embalagens, criação de
anúncios, análise de efetividade de peças publicitárias,
avaliação de marca e muitas outras possibilidades. As
metodologias neurocientíficas de pesquisa permitem
que as informações sejam coletadas em tempo real, no
exato momento em que os respondentes estão expostos
aos estímulos, participando diretamente da experiên-
cia. Sem travas, vieses ou interpretações cognitivas.
Por meio de modernos procedimentos de escanea-
mento do cérebro, os pesquisadores conseguem pro-
duzir neuroimagens, observar as atividades cerebrais
e identificar atividades nas áreas relacionadas a exci-
tação, paixão, prazer, rejeição, humor, engajamento,
entre outros, geradas no cérebro do indivíduo diante
de determinado estímulo. Isso é muito valioso, con-
siderando que, no mundo moderno, os consumidores
são expostos, como nunca antes, a um excesso de con- o aumento do fluxo sanguíneo em cada área ativa do
teúdo vindo dos meios digitais que se soma aos meios cérebro. O eletroencefalograma (EEG) identifica com
tradicionais de comunicação: cada consumidor recebe, precisão a variação das suas atividades elétricas em dife-
em média, cerca de cinco mil mensagens de marketing rentes áreas do cérebro a cada momento da exposição.
por dia. Captar a sua atenção e obter seu engajamento Outras técnicas, que podem ser associadas às técni-
é uma tarefa de complexidade sem precedentes. Nesse cas de neuroimagem, medem os batimentos cardíacos,
cenário, a neurociência do consumo possibilita corri- o ritmo respiratório e captam o arrepio da pele (sensores
gir e melhorar as métricas de avaliação e aprimorar as biométricos), fazem a leitura de emoções (face reader) e
decisões gerenciais de marketing. acompanham o movimento dos olhos e dilatação das pupi-
A ressonância magnética funcional (fMRI) identifica las (eye tracking), enriquecendo o grau de entendimento
áreas do cérebro com alto nível de fluxo sanguíneo, nas sobre o consumidor. É possível, dessa forma, mensurar
quais a atividade neural é mais intensa. A positron emis- o envolvimento e o engajamento emocionais, a ativação
sion tomography (PET), mais invasiva, requer a injeção da memória e o nível de atenção, a relevância e a impor-
de uma substância no indivíduo, permitindo visualizar tância daquele contexto para a pessoa.
Certamente, esse é um campo fértil, com vasto
potencial de crescimento e novas possibilidades de
A maioria de nossas escolhas é feita aplicação. Muitas agências de pesquisa nacionais e
de forma subconsciente, embora internacionais nasceram especializadas em neuroci-
tentemos explicá-las e justificá-las, ência do consumo, como as pioneiras Sales Brain (que
posteriormente, de forma racional usa o mote “Pare de confundir, comece a convencer”),

66 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


Grandes empresas, como Google,
Unilever e McDonald’s, investem
nessa área para otimizar os seus
pontos de contato de marketing
As grandes companhias têm liderado a procura por
estudos de neurociência do consumo. Na última década,
um grande e crescente leque de empresas ao redor do
mundo passou a investir nessa área para entender pro-
fundamente o seu público, aprimorar o seu processo
criativo e otimizar os pontos de contato de marke-
ting. Google, Unilever, Procter&Gamble, McDonald’s,
L’Oréal, Ford, GE, Nestlé, Danone, Natura, GNT, Fox e
Paramount são alguns exemplos delas.
Recentemente, a Mercedes-Benz Daimler usou as
técnicas de eye tracking e eletroencefalograma para
definir uma campanha em que as imagens da frente
dos carros simulavam rostos humanos, o que relacio-
nava, imediatamente, ao centro de prazer do cérebro
— e as suas vendas cresceram 12%. Também a eBay des-
shutterstock

cobriu que promover os benefícios de velocidade e con-


veniência para a sua empresa de pagamentos on-line
PayPal era mais eficiente do que promover o benefício
da segurança, como era feito anteriormente. A Coca-
Neurosense e Noldus (“Acesse, entenda, influencie”). Cola, por sua vez, possui seu próprio laboratório de neu-
Outras empresas — cientes da chegada de uma nova rociências in-house, onde avalia em tempo real os seus
era que está ganhando força e que veio para ficar — comerciais assistidos por voluntários para decidir quais
incluíram, nos últimos anos, essas metodologias em cenas são mais efetivas para promover seus produtos.
seu rol de serviços. A multinacional Nielsen, gigante Há espaço, ainda, para que pequenas e médias empre-
líder de pesquisa e estratégias de marketing, adqui- sas também apoiem suas decisões de marketing em
riu em 2011 a americana NeuroFocus e inaugurou pesquisas neurocientíficas, pois os preços dos expe-
sua divisão Nielsen Neuro no Brasil (usando o mote rimentos tendem a se tornar cada vez mais acessíveis.
“Revelar o que está oculto”), e o laboratório de neuro- Assim, o campo da neurociência do consumo é uma
ciências em São Paulo em 2014 — o 13º da companhia área legítima e importante para pesquisas futuras, tra-
no mundo (ver entrevista na página 38). zendo novas perspectivas para expandir o entendimento
Algumas dessas empresas mantêm comitês cien- sobre o comportamento de consumo. Enfim, pode forne-
tíficos e uma relação de parceria com departamentos cer insights consideráveis sobre a natureza e desenvolvi-
de pesquisa de importantes universidades, algo de mento de questões de grande relevância para o relaciona-
extrema relevância para que se possa acompanhar os mento de longo prazo das empresas com seus públicos.
avanços tecnológicos na área e manter a atualização
em relação aos aplicativos usados. De modo geral, os
estudos dessas empresas resultam em recomendações Lucas Copelli
específicas e acionáveis, que podem ser implementa- Mestre em neurociências pelo Instituto de Psicologia
da USP, graduado pela Unicamp, professor de MBA
das imediatamente pelos clientes. na ESPM e diretor da consultoria Vallua

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 67


entrevista | andrea salgueiro cruz lima

Andrea Salgueiro Cruz Lima


Formação: fez economia na Universidade Presbiteriana
Mackenzie e pós-graduação em publicidade e marketing
na ESPM. Participou do Women Global Leading Change
Programme no Insead (França) e do Leadership Program na
Harvard Business School (EUA)
Atuação: vice-presidente de personal care da Unilever
Carreira: em 1988, começou a trabalhar na área de
planejamento e gestão de contas da Almap/BBDO.
Em 1998, ingressou na Unilever para promover a gestão
de categorias e o desenvolvimento dos
clientes por meio do ECR (Efficient Consumer Response).
No ano 2000, assumiu o posto de diretora de marketing das
categorias de foods, home care e personal care da companhia.
De 2007 a 2011, foi vice-presidente da área de foods. Desde
julho de 2011, ocupa o cargo de vice-presidente e gerente-geral
de personal care da Unilever

68 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


Mais do que produto, nós
vendemos ponto de vista!

T
odos os dias, 200 produtos da Unilever são consumidos por segundo no Brasil.
Presente na vida dos brasileiros há 85 anos, a companhia detentora de marcas
consagradas, como Omo, Seda, Lux, Dove e Kibon, consegue manter esse ín-
dice mesmo em tempos de incerteza com a ajuda de grandes aliadas, como as
ciências do consumo. Ter o consumidor como o centro do negócio e estudar a fundo os seus
hábitos de compra. Essa é a fórmula que tem permitido à multinacional influenciar e ser
influenciada pelos brasileiros e, assim, evoluir junto com a sociedade, ao longo das décadas.
Um desses exemplos é de 1942, quando Lifebuoy foi lançado no Brasil. Realizado pela Lever
International Advertising Service (Lintas) — na época, a agência de propaganda da Unilever —,
o sabonete apresentava uma fórmula desodorizante que parecia ser desnecessária num país
onde sempre se tomou muito banho. Para ensinar o brasileiro a usar a novidade, a agência criou
uma série de anúncios que alertavam para os inconvenientes do “cheiro de corpo” — o famoso
“cê-cê” — expressão criada pela propaganda do Lifebuoy, que foi incluída no dicionário Aurélio.
Já na década de 1950, foi a vez de Rinso — e, na sequência, Omo — convencer as donas de casa
a substituir o sabão em pedra, a água sanitária e o anil pelo sabão em pó, que removia a sujeira
da roupa, sem agredir as mãos. No início, demonstradoras iam até a casa dos consumidores e pe-
diam para usar o tanque. Depois, eventos públicos passaram a mostrar como utilizar o produto.
“Desde 1957, Omo é líder de mercado no Brasil, devido à consistência e à credibilidade que a mar-
ca construiu no país a partir da análise criteriosa do comportamento de seus consumidores”, as-
segura Andrea Salgueiro Cruz Lima, vice-presidente de personal care da Unilever, citando outro
grande case da empresa: “Nas três últimas décadas, Dove vem construindo seu posicionamento
de marca, associado ao conceito de beleza real ”. Nesta entrevista, a executiva revela como a
Unilever utiliza antropólogos, sociólogos, psicólogos e cool hunters para entender e atender às
demandas de seus consumidores no Brasil e no mundo. “Para ter share of heart, a marca precisa
ter um propósito relevante na vida das pessoas, para que elas comprem a ideia. Dessa forma, o
que vendemos é ponto de vista. O produto é simplesmente o veículo que utilizamos para isso!.”

Por Anna Gabriela Araujo e Francisco Gracioso


Foto: Natália Osis/Arquivo ESPM

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 69


entrevista | andrea salgueiro cruz lima

Revista da ESPM — Quais são as prin- produtos de cesta básica, de uso diá- cia menor. Todas as medidas que o go-
cipais mudanças no comportamento rio. Mas os nossos parceiros e clientes verno está tomando são importantes,
dos consumidores, notadas pela Unile- já apontam uma redução de consumo. mas afetam diretamente o consumo.
ver nos últimos meses? A restrição da água, por exemplo, Esses momentos de crise são impor-
reduziu a quantidade de banhos dos tantes para fazer limpezas no mer-
Andrea Salgueiro Cruz Lima — So- consumidores, que estão tomando cado. As marcas fortes, que trazem
mos uma empresa que tem por regra dois banhos a menos por semana. O um ponto de vista social e ambiental,
posicionar o consumidor no centro tempo de banho também diminuiu, são aquelas que o consumidor con-
de todo o desenho estratégico. Então, logo já é possível notar uma redução tinuará comprando porque sabe que
mesmo em uma situação de crise, no uso de xampu e condicionador. pode confiar. Na maioria das vezes,
a Unilever não deixa de pensar no Também sentimos uma redução no essas marcas continuam inovando,
consumidor e de inovar por conta do uso de sabão em pó. A consumidora mesmo nos momentos difíceis da
contexto macroeconômico. É uma não está sendo tão criteriosa na sepa- economia. E essa inovação pode ser
companhia consumer-centric, que olha ração de roupa branca e roupa colori- um tamanho menor de embalagem,
o consumidor como pessoa. Estamos da, reduziu o tempo de lavagem e está uma promoção diferenciada, um pro-
sempre avaliando o que está afetan- reaproveitando a água. O consumidor duto novo ou ainda a criação de uma
do a vida dessas pessoas, o que elas está, claramente, mudando o seu ruptura no mercado para reaquecer
buscam para as suas famílias e quais comportamento e, uma vez arraigado a demanda e gerar vontade de expe-
são suas aspirações e angústias, por- este novo comportamento, ele per- rimentação. Toda situação de crise
que é a partir dessa conversa mais dura. Então, temos o papel, enquanto representa uma oportunidade de você
ampla e holística que conseguimos empresa, de desenvolver um trabalho criar um fato novo para gerar cresci-
os maiores insights. O que temos de educação e ajudar o consumidor mento. As empresas não devem parar
visto hoje é que o consumidor está nesse processo. de inovar, principalmente diante do
sendo pressionado por todos os lados. cenário atual da economia brasileira.
O bolso do cidadão que compõe a Revista da ESPM — Como essas
classe média brasileira está sob forte mudanças têm interferido nos antigos Revista da ESPM — Na Unilever,
pressão, com o aumento das tarifas de conceitos de construção e defesa das como esse posicionamento é posto em
água, energia elétrica, transporte e da marcas no mercado nacional? prática?
taxa de juros da casa própria, o risco
grande de desemprego e uma inflação Andrea — Numa situação de aperto, o Andrea — No próximo mês, vamos
forte na casa de 8%. Tudo isso com- consumidor passa a privilegiar mar- trazer uma forte inovação dentro
promete o poder de compra e força o cas de valor menor. Notamos também do mercado de personal care. Ainda
consumidor a fazer escolhas, pois ele uma retração no consumo de embala- não posso adiantar o que é, mas o
está muito endividado pelas compras gens maiores. Como a consumidora fato é que a inovação sempre fez
feitas no ano passado. Observamos não quer abrir mão dos produtos que parte do calendário da Unilever,
uma forte retração nas principais conseguiu incluir na sua cesta de porque trabalhamos com produtos
categorias de produto, não tanto nas compras, ela compra um volume me- de uso diário que, por não registra-
categorias que ofertamos, porque são nor daquele item ou em uma frequên- rem um desembolso elevado, vão
estar sempre na cesta de compras
dos consumidores. A inovação faz
O bolso do brasileiro está sob forte pressão, com parte do nosso DNA e permeia todo
o plano da companhia até 2020.
o aumento das tarifas de água, energia elétrica, O que estamos estudando agora é
transporte e da taxa de juros da casa própria, o risco qual é a faixa de preço correta para
de desemprego e uma inflação forte, na casa de 8% a entrada desse produto, e quais as

70 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


divulgação
Dove: escolha bonita, filme veiculado pela Unilever no YouTube que representa um experimento social e prova
que sentir-se bonita é uma questão de escolha e que o poder desta escolha está nas mãos de cada um

outras ofertas teremos de criar para que levam essas pessoas a querer tre duas entradas — uma identificada
mantermos a competitividade no comprar as nossas marcas, que ge- com a placa “bonita” e outra com a
mercado. ram o que chamamos de share of he- placa “comum” — de um determina-
art, e como conseguimos fazer com do edifício). O objetivo da ação era
Revista da ESPM — Por diversas ve- que os consumidores se tornem fãs provar que sentir-se bonita é uma
zes, a companhia realizou estudos com de nossas marcas. Para isso, a marca questão de escolha e que o poder
foco na antropologia para compreender precisa ter um ponto de vista muito desta escolha está nas mãos de cada
melhor as necessidades do mercado nor- forte, um propósito claro para fazer um. O posicionamento da marca
destino. O que a Unilever faz agora para o consumidor comprar a sua ideia. vende um ponto de vista, que mobili-
entender melhor o comportamento da O produto é simplesmente o veículo za o consumidor. Logo, cada vez que
nova classe C? para isso. Costumo dizer que não é lançamos uma nova campanha que
só product to buy, but idea to buy into. fala da real beleza, atingimos um
Andrea — Usamos todas as ciências Trabalhamos para construir marcas número de views absurdo (o filme
sociais — da neurociência à antropo- sólidas que possuem um propósito e Dove: escolha bonita registrou 8,9 mi-
logia — no desenvolvimento de ações que não sejam apenas mais um pro- lhões de visualizações em um mês),
de marketing mais assertivas. Tal duto na prateleira. É como o filme porque está mostrando algo que tem
prática faz parte do entendimento “Portas” (Dove: escolha bonita), que significado para esse consumidor.
do consumidor de maneira mais veiculamos no YouTube (filmado em Não estou vendendo simplesmente
holística. Não basta apenas avaliar cinco cidades do mundo — São Fran- um xampu ou um desodorante, e
o comportamento do consumidor cisco, Xangai, Deli, Londres e São sim um ponto de vista. E é assim
na loja, durante o ato da compra. É Paulo — o curta-metragem mostra que conseguimos construir marcas
preciso entender quais são os drivers mulheres que deveriam escolher en- fortes em todo o mundo.

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 71


entrevista | andrea salgueiro cruz lima

Revista da ESPM — Mas como as a mulher compra ou o produto que consegue ver como a marca se posi-
ciências sociais são utilizadas na cons- a mãe deixa no banheiro. Ele ainda ciona e como ela irá responder a essas
trução desse ponto de vista? tem vergonha de comprar o produto tensões — ponto que vai diferenciá-la
na loja. Então, você precisa do apoio no mercado, diante da concorrên-
Andrea — Quando você vai desen- das ciências do consumo para en- cia. São trabalhos longos, que duram
volver um posicionamento de mar- tender a relação desse homem com meses, até anos, para construir um
ca ou um brand communication idea, o produto. Assim, montamos um posicionamento claro. Mas na hora
o primeiro passo é entender o que grupo com 400 jovens, que foram em que você chega ao ponto, consegue
mobiliza o consumidor, o que o acompanhados 24 horas por dia, criar o que chamamos discriminator
faz se interessar por aquilo. E são sete dias por semana, por antropó- da marca, que representa um ponto de
essas ciências, aplicadas durante logos, sociólogos e psicólogos, para diferenciação da marca. E sem o apoio
todo o processo, que nos ajudam a poder tirar dali insights novos de dessas ciências, talvez não consegui-
descobrir isso. Temos vários painéis negócios, visando à construção de ríamos chegar a esse ponto de asserti-
de pesquisa com consumidores e o marcas no mercado masculino. Foi vidade. A partir desse estudo, acerta-
suporte de antropólogos, psicólogos uma pesquisa em profundidade, que mos toda a linguagem da campanha,
e especialistas na área de ambiente nada tem a ver com aquela antiga da marca e do plano de comunicação.
que nos ajudam a montar um ponto prática de colocar os pesquisados Em paralelo, a companhia desenvolve
de vista social e ambiental para as dentro de uma sala, oferecer coxi- outros estudos para definir quais são
nossas marcas. Esses profissionais nha a eles e tentar extrair respostas as macrotendências de consumidores
são contratados ad hoc quando ini- relevantes. Não é dessa maneira que globais até 2020.
ciamos o trabalho de definição de os jovens passam informação.
brand communication idea ou algo Revista da ESPM — Aqui entra o
relacionado. E sempre validamos os Revista da ESPM — E que tipo de trabalho de agências especializadas em
conceitos com esses especialistas. resultado foi possível extrair dessa ex- análise de tendências, como, por exem-
periência? plo, a Box1824?
Revista da ESPM — É possível citar um
exemplo de como isso ocorre na prática? Andrea — Conseguimos montar cinco Andrea — Você não consegue fazer
perfis atitudinais e de arquétipos so- isso sem o apoio de um grupo de
Andrea — Sim. Recentemente, fi- bre os quais estamos desenvolvendo especialistas, porque é preciso en-
zemos um trabalho profundo para toda uma nova campanha para a tender diversas questões de valores
entender o universo masculino e linha Axe. Sociólogos, antropólogos e culturais. Trabalhamos com uma
a relação dos homens com produ- psicólogos nos ajudaram a construir agência que nos ajuda a definir as
tos de consumo. Sabemos que o esses perfis, definindo como esses diferenças regionais dos brasileiros,
mercado brasileiro será o maior do jovens se relacionavam com o mundo em termos de linguagem, tom de
mundo em produtos para homens e quais eram as tensões sociais que voz, imagem de campanha, nível
a partir de 2017. Temos observado eles sofrem — além da questão da educacional, por exemplo. O tempo
que o homem está se tornando mais conquista — e que são importantes na todo estamos baseados nesse tipo de
vaidoso, mas ainda usa muito o que vida deles. Quando você entende isso, estudo. Uma dessas agências é a Box
1824, que nos ajudou a definir o po-
sicionamento de Axe. Mas também
Crises são importantes para fazer limpezas no temos outros parceiros nas áreas de
ciências sociais e de estatística.
mercado. As marcas fortes, com um ponto de vista
social e ambiental, são aquelas que o consumidor Revista da ESPM — Sabemos que o
continuará comprando porque sabe que pode confiar trade marketing é muito importante

72 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


como iríamos executar essa marca no
ponto de venda. A linha de bebê é um
segmento novo, onde a Unilever não
atuava. Então, foi preciso pensar em
como expor a marca, como negociar, e
a que preço. Tudo foi pensado em con-
junto com a área de marketing, desde o
momento zero da ação. Você morre na
praia se não souber executar correta-
mente a campanha no ponto de venda,
mesmo tendo um mix maravilhoso de
produtos. Um bom exemplo disso foi
o lançamento recente de Regenerate,
marca de oral care premium, que tem
cinco patentes. Mesmo com um produ-
to espetacular, se eu não conseguisse
realizar um plano de execução em loja,
perfeito no ponto de venda, eu não te-
ria obtido sucesso com essa inovação,
por melhor que ela fosse. É quase meio
a meio. É preciso garantir que a experi-
ência de compra seja tão boa quanto a
estrutura do produto.

Revista da ESPM — Se compararmos o


marketing de hoje com o praticado há 15
anos, veremos que a maior transforma-
ção ocorreu no volume de informações
divulgação

que está disponível, sobre tudo que diz


respeito ao mercado, à concorrência e ao
consumidor. Diante desse novo cenário,
Campanha de lançamento da linha Baby Dove segue o mesmo conceito qual é — ou deveria ser — o papel desem-
de beleza real adotado pela marca Dove em todo o mundo penhado pelo profissional de marketing?

Andrea — Esse é o melhor momento


para a Unilever. Como a senhora enxer- plano de inovação é construído a qua- para ser um profissional de marke-
ga a área no contexto geral do marke- tro mãos com a área de trade marke- ting, porque ele é uma figura central
ting de produtos de consumo? E de que ting. Isso acontece no momento zero, para definir o sucesso ou o fracasso
forma integra essas atividades? porque não tem como separar uma de uma companhia. É preciso estar
coisa da outra. Na verdade, o ponto de muito antenado sobre o que se passa
Andrea — Todo o trabalho de constru- venda é a extensão da construção do do ponto de vista de tendência do
ção de planejamento da marca para o equity da marca. Por exemplo, acaba- consumidor, tendência macroeco-
ano já engloba o trade desde o início. mos de apresentar ao mercado a linha nômica, tendência de comunicação
Definimos os desafios para a marca, Baby Dove. Não teria como lançar digital, com o que se passa no mundo.
naquele ano; quem é o target, e todo esse novo produto sem pensar em É megadesafiador ser um profissional

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 73


entrevista | andrea salgueiro cruz lima

de marketing hoje. No passado, tínha-


mos uma comunicação de mão única,
onde você passava as informações da
indústria para o consumidor. Basta-
va criar um plano para TV, revista e
rádio e colocar um display no ponto
de venda. Pronto. Agora, tudo mudou.
O consumidor critica, ajuda você a
construir o posicionamento, sugere
ideias. A comunicação virou mão
dupla e você precisa saber onde está
esse consumidor, quais são os canais
que ele acessa e quanto ele está dis-

divulgação
posto a pagar pelo produto. É preciso
entender toda a lógica do consumidor.
Para fazer a diferença no mercado, o
Para lançar a marca premium de oral care Regenerate, a equipe de Andrea investiu
profissional de marketing precisa ter em um plano focado na divulgação e exposição do produto no ponto de venda
a faca nos dentes e querer fazer. É pre-
ciso, também, manter a resiliência,
porque nem tudo aquilo que fizer vai le que vai guiar a estratégia da com- ajude na construção dessa ideia. O
dar certo; além de cultivar a curiosi- panhia. E se não tem todos os skills, mais importante é ter o consumidor
dade intelectual, querer saber o que ele deve se cercar de gente que tenha. como ponto de partida. Preciso saber
está acontecendo e não esperar que as Para isso, existem os institutos, que o que ele quer, o que está acontecen-
coisas caiam no colo. nos ajudam. O profissional de marke- do com esse cara, e estar antenada
ting é mais generalista, não é um com toda essa transformação social
Revista da ESPM — Os modernos especialista. E, por isso, precisa se que está acontecendo no mercado,
cientistas do consumo são profissionais cercar dos melhores parceiros estra- inclusive as mudanças que estão
de marketing que incluem em suas tégicos — na área de ciências sociais, ocorrendo do ponto de vista das co-
análises a antropologia, a sociologia e digital, comunicação — para transfor- municações.
a psicologia. Em sua opinião, como um mar determinada ideia em algo con-
cientista do consumo pode auxiliar a creto. Nós temos os insights — que Revista da ESPM — Obviamente, o
companhia a vender mais e melhor? E são extraídos das conversas com os problema hoje consiste em organizar e
quais são as principais características consumidores. Agora, para traduzir interpretar a enorme massa de informa-
que esse profissional deve apresentar esses insights em oportunidades de ções sobre o consumidor e o mercado,
para alcançar tal objetivo? negócio, você precisa do suporte de com rapidez e segurança, permitindo
outras áreas. Mas não preciso ter um a adoção de estratégias com respostas
Andrea — O profissional de marke- antropólogo dentro da companhia, e mais rápidas e seguras. Como a Unile-
ting, por natureza, já é assim, é aque- sim um parceiro estratégico, que me ver enfrenta esse desafio?

Andrea — O profissional precisa


É preciso entender quais são os drivers que levam saber o que é e o que não é relevante.
A participação de mercado é uma
essas pessoas a querer comprar as marcas, que medida importante para quem traba-
geram o chamado share of heart, e como fazer com lha em marketing e para a empresa
que elas se tornem fãs dessas marcas que tem ações na bolsa. Não adianta

74 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


divulgação
No filme Dove: adesivos, outro experimento social, adesivos placebos foram colocados em mulheres que imaginavam estar
participando do teste de um produto revolucionário: o adesivo da beleza. E elas realmente se sentiram mais bonitas!

ter crescimento sem ganhar merca- para chegar a uma conclusão. Nesses marca ao conteúdo? O primeiro gran-
do. Trabalhamos com um time que momentos, é preciso seguir o feeling, de desafio é entender quais os pontos
tão logo recebe as informações de o instinto empreendedor. Tem hora de contato e consumo de mídia para
mercado já dispara os dados para que você vai acertar. Tem hora que pôr a marca no circuito, com um con-
um grupo de analistas. A partir daí, vai errar. O fato é que não temos teúdo relevante para o consumidor.
definimos um plano de ação para mais tempo para ficar buscando um Nem sempre vou para a TV anunciar
correção de rota ou ativação de algo porto seguro, com análise testada e os produtos da companhia. Às vezes,
que não esteja funcionando da ma- aprovada por 800 pessoas. Nós esta- uso o Facebook ou veiculo um filme
neira mais rápida possível. Visando mos sempre fazendo ao vivo. E o re- no YouTube. Na hora de transmitir
ganhar mais agilidade, simplifica- sultado do que foi feito você sempre uma mensagem é preciso analisar
mos a estrutura de marketing da vê no dia seguinte. dois pontos: o conteúdo da história e
Unilever, para que a informação flua o contexto no qual o consumidor está
rapidamente e que a tomada de deci- Revista da ESPM — Quais são as prin- inserido. O conteúdo deve girar nesse
são seja rápida. Hoje, temos uma es- cipais mudanças apresentadas no marke- contexto. Hoje, é preciso desenvolver
trutura muito mais enxuta, que nos ting da Unilever por conta do cenário mensagens que não sejam ruídos
permite acelerar o processo de toma- atual e do crescimento das novas mídias? ou que gerem interrupções. Antiga-
da de decisão e ação. Reduzimos os mente, analisávamos muito mais o
layers, as camadas para a tomada de Andrea — O consumidor não está conteúdo, desenvolvíamos um plano
decisão. As pessoas passaram a ter mais sentado, e apenas assistindo à de mídia mais genérico, e a agência
empowerment, poder de decisão. Essa novela. Ele está conectado 24 horas de mídia era brifada apenas no fim de
é a principal mudança do marketing: por dia. Tudo está mudando muito rá- todo o processo. Hoje, a agência de mí-
a velocidade. É preciso ser cada vez pido e as marcas precisam estar onde dia é brifada junto com a agência de
mais rápido na tomada de decisão o consumidor está e entender sua criação, porque o conteúdo veiculado
para não perder o bonde. Isso signi- rotina, não para interrompê-la, mas no mobile precisa ser diferente do
fica que não é sempre que vou conse- sim complementá-la. Mas como fazer comercial exibido na TV, que também
guir construir todas as 800 análises isso sem interrupção, integrando a difere do filme exibido, pela marca,

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 75


entrevista | andrea salgueiro cruz lima

no YouTube. Primeiro, definimos lham com as marcas da Unilever a unicidade de comunicação, das
em quais meios a marca vai estar, devem saber ler essa bíblia de trás embalagens que fazem parte de uma
para depois desenvolvermos a ideia para frente. Isso é mandatório no mesma família, até a maneira como
criativa. Isso é uma inversão do que mundo inteiro e funciona como uma a marca se posiciona em qualquer
fazíamos no passado. religião, um mantra na companhia. lugar do mundo, que é sempre igual.
Afinal, uma marca como Omo, que E isso vem dessa preocupação, dessa
Revista da ESPM — A Unilever foi pio- tem mais de 80 anos no Brasil, é uma regra dentro da companhia em ser
neira na adoção do conceito de branding entidade, um dos maiores ativos da crível e ter consistência em tudo que
no Brasil e no mundo. Como vocês che- companhia, que deve ser cuidado é feito com a marca. Depois do filme
garam até lá? E como se deve entender o com o máximo de carinho. Retratos da real beleza, que foi premia-
branding no contexto do marketing? do em Cannes, produzimos mais dois
Revista da ESPM — O posiciona- trabalhos que representam experi-
Andrea — A marca é tudo. É o co- mento assumido por Dove é outro caso mentos sociais feitos pela marca para
ração do negócio. Hoje, as nossas em que a aplicação desse conceito ajudar as suas consumidoras. No
marcas valem mais do que a marca de branding está muito presente na filme Dove: adesivos, colocamos ade-
corporativa. Uma marca como Omo, comunicação da marca. A campanha sivos placebos em algumas mulheres
Dove, Seda e Lux tem valor imensu- Retratos da real beleza, por exemplo, que imaginavam estar participando
rável. A construção de marca pres- chegou até a conquistar o GP de Tita- do teste de um produto revolucioná-
supõe muita responsabilidade e con- nium no Cannes Lions 2013. rio: o RB-X, o adesivo da beleza. O
sistência ao longo do tempo. Ima- experimento foi coordenado por Ann
gine a seguinte situação: você fala Andrea — Sim. A comunicação de Kearney-Cooke, psicóloga e pesqui-
com uma pessoa que por telefone diz Dove nos últimos 30 anos fala por si sadora da Universidade de Columbia,
uma coisa, escreve outra por e-mail só. A cara das embalagens, o tom de nos Estados Unidos, e o objetivo foi
e pessoalmente age completamente voz, o posicionamento de real beleza mostrar que beleza é um estado de
diferente de tudo aquilo que falou que estamos estabelecendo e está espírito. As mulheres que usaram o
ou escreveu anteriormente. Você presente também na campanha do adesivo realmente se sentiram mais
não vai conseguir saber quem ela é. novo Baby Dove, que traz mães reais bonitas. Depois do teste, quando
Se você é consistente naquilo que e a mensagem de que não existem foram informadas que o produto não
faz e se propõe como marca, como mães perfeitas. A marca foi criada na passava de um placebo, algumas cho-
pessoa, é mais fácil para quem está época da Segunda Guerra Mundial, raram. Essa foi a forma encontrada
interagindo com você, entender o para tratar os feridos, por isso é repre- por Dove para mostrar que a marca
que você quer e o que você é. Essa sentada por uma barra branca e tem está comprometida em criar um
consistência deve estar presente na por símbolo uma pomba. Esse cuida- mundo onde a aparência é uma fonte
marca ao longo dos anos. Aqui, tra- do está presente em toda a comuni- de confiança, não de ansiedade. Na
balhamos com um brandbook, que é cação que a marca vem construindo sequência, veiculamos o filme Dove:
uma espécie de bíblia que tem todas há anos. Esta é uma marca que nunca escolha bonita, outro experimento
as informações sobre a identidade será sexista e vai sempre respeitar social que mostra como a questão
de nossas marcas. Todos que traba- as diferenças. É possível enxergar da confiança e da autoestima afeta o
conceito de beleza e como Dove pode
ajudar essas mulheres a se sentirem
mais bonitas.
Visando ganhar mais agilidade, simplificamos
a estrutura de marketing da Unilever, Revista da ESPM — O que levou a
para que a informação flua rapidamente marca Dove a assumir o posicionamen-
e a tomada de decisão seja rápida to da real beleza?

76 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


divulgação
Durante anos, Omo trabalhou a mensagem: não tem aprendizado sem manchas. Até que a Unilever entendeu
que era preciso mudar o tom da campanha e deixar os filhos mostrarem para as mães que ”se sujar faz bem”

Andrea — Nossas pesquisas mos- Revista da ESPM — O mesmo acon- tência e da credibilidade construída
tram o quanto a sociedade é cruel tece com Omo, quando assume o con- pela marca ao longo dos anos.
com as mulheres, que não conse- ceito “porque se sujar faz bem”?
guem se achar belas e o quanto Revista da ESPM — Tomando como
elas definem um padrão de beleza Andrea — Sim. Durante anos, tra- base os experimentos de Dove e a evolu-
inalcançável e passam a ser infe- balhamos a mensagem: não tem ção do conceito de Omo, é possível afir-
lizes em função disso. Realizamos aprendizado sem manchas. Até que mar que a ciência das “ias” — sociologia,
muitos testes em todo o mundo entendemos que a marca deveria antropologia e psicologia — está mais
para entender a relação das mulhe- tirar um pouco a mãe de circulação presente no marketing das marcas?
res com a própria beleza e quais os e deixar os filhos mostrarem que se
fatores que são fontes de ansiedade sujar faz bem. Foi quando mudamos Andrea — Antes de tudo, os experi-
e angústia nessas consumidoras. o posicionamento da marca e adota- mentos de Dove representam estudos
Em países como Japão e Portugal, mos o novo conceito, que representa antropológicos e sociais. Ao apostar
0% das entrevistadas declararam uma evolução da ideia de que não nesse conceito, estamos muito mais
ser bonitas. Daí você vê o quanto a existe aprendizado sem manchas. ligados às ciências sociais do que às
sociedade e a mídia jogam contra Isso surgiu do entendimento de ciências do produto. Hoje, se você quer
e qual é o papel de uma marca ao muitas conversas com as mães e se diferenciar e desenvolver uma mar-
levantar essa bandeira e abrir uma da necessidade de dar mais espaço ca relevante e líder de mercado, esse
discussão sobre o assunto. Ao as- aos filhos para eles provarem que a tipo de trabalho, que envolve as ciên-
sumir esse posicionamento, eu não sujeira faz parte do desenvolvimento cias sociais, é essencial e mandatário.
estou falando de vender desodoran- motor e cognitivo de toda criança. A partir daí, você consegue abordar
te, xampu ou sabonete. Esse é um Omo é uma das pérolas da Unilever. um assunto que tem significado para
manifesto, no qual a marca levanta Desde 1957, a marca é líder de merca- o consumidor. Mais do que o produto,
a bandeira de um ponto de vista do no Brasil. Qual marca permanece o consumidor compra essa ideia.
social e convida a sociedade para tanto tempo na liderança? Esse bom Nesse contexto, o produto é apenas o
debater a questão. desempenho é resultado da consis- veículo que vende esse conceito.

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 77


tendências

O consumo que nos define


Um novo tipo de consumidor está invadindo o mercado. O que ele busca?
Substituir a posse de um bem pelo benefício que ele oferece, além de produtos
e serviços que possam oferecer simplicidade e experiência. Veja quais são
as principais tendências de consumo no Brasil e no mundo
Por Flavio Ferrari

78 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


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shutterstock

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM


tendências

A
relação entre consumidores e marcas já foi
mais simples. Até o fim do século passado
escolhíamos produtos de acordo com o seu
posicionamento mercadológico, alinhados
com o discurso oficial da marca.
Cada marca que incorporávamos ao nosso repertório
de consumo funcionava como uma mensagem clara e
direta à sociedade, indicando como gostaríamos de ser
percebidos. A marca funcionava como um passaporte
de inclusão em um grupo de referência. Não por acaso,
grande parte dos anúncios e comerciais fazia menção

shutterstock
ao estilo de vida característico desses grupos.
Nas últimas décadas, as relações de consumo se torna-
ram mais complexas. A necessidade de individualização
cresceu, o questionamento das autoridades institucionais —
incluindo aí os fabricantes de produtos — tornou-se uma ten- Você não precisa mais ser dono do filtro para beber água
dência marcante, e incorporar o discurso coletivo da marca filtrada. Assim, o produto ”filtro” se transforma no serviço
como parte de nossa figura pública passou a incomodar. ”filtragem da água”
Além disso, outras tendências sociais passaram a inter-
ferir mais ativamente nas decisões de consumo. Questões O conjunto das ações relacionadas ao consumo forma
relacionadas com a responsabilidade social, a saúde, a quali- a experiência de consumo. Essa experiência começa
dade de vida, o desenvolvimento pessoal e o consumo cons- nos seus primeiros contatos com a categoria e as mar-
ciente, além, é claro, das novas ofertas e demandas da tec- cas (touchpoints), estende-se pelo processo de compra e
nologia, têm forte influência sobre os padrões de consumo. culmina com a utilização, sendo permeada pela eventual
comunicação da marca e pela opinião de outras pessoas.
Experiência O produto é caracterizado (e julgado) pela experiência
A primeira grande mudança em curso nos padrões de con- integral. Simplicidade é uma das principais demandas
sumo refere-se à possessão. Caminhamos para substituir do consumidor. São muitas as oportunidades de entre-
a posse de um bem pelo benefício que ele nos oferece. tenimento e incontáveis os deveres cotidianos. Tempo é
Um bom exemplo disso, desconsiderando a questão um ativo raro. Nesse contexto, a simplicidade de acesso
do custo, é o filtro de água da Brastemp. Não precisa- à experiência é um diferencial encantador.
mos ser “donos” do filtro. Ele pode continuar sendo Outro item relativamente novo é a contribuição da
propriedade da Brastemp desde que possamos beber experiência de consumo para a sua história pessoal.
água filtrada quando quisermos. O produto “filtro” se Se já não desejamos ser caracterizados pela posse de
transforma no serviço “filtragem da água”, e você já não um produto, experiências são bem-vindas para compor
precisa se preocupar com a manutenção do produto. a nossa lenda pessoal.
Desse exemplo podem-se derivar outras duas tendên- Experiências oferecem a oportunidade de nos rein-
cias que atuam sobre as relações de consumo: a simplici- ventarmos, de escrever novas histórias. O que vivemos
dade e a experiência. diz muito mais a nosso respeito do que a posse de um
produto. Ter um smartphone de última geração pode
ser bacana, mas é o que você faz com ele que, em última
O consumidor ganhou consciência e instância, define quem você é para seu grupo social.
teve seu acesso à informação ampliado
Integração
pela internet. Marcas que mentem ou A segunda grande mudança em curso se refere à inclusão.
omitem informações terão vida curta De um lado, a marca a ser consumida precisa se integrar

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twin design / shutterstock.com

shutterstock
Como o tempo é um ativo raro, a simplicidade de acesso Ter um smartphone de última geração pode ser bacana,
à experiência oferecida por qualquer produto na internet mas é o que você faz com ele que, em última instância,
passa a ser um diferencial encantador define quem você é para seu grupo social

ao constructo individual do consumidor. De outro, deve à informação ampliado pela internet. Marcas que men-
auxiliar a integração do consumidor a, pelo menos, um tem ou omitem informações relevantes terão vida curta.
dos grupos sociais a que ele considere relevante pertencer. Esperamos que o provedor de produtos e/ou serviços
E, paralelamente a esse processo dicotômico (indivi- seja honesto em sua comunicação, que simplifique a
dual-coletivo), o acesso ao produto/serviço precisa ser nossa vida e nos deixe avaliar a sua oferta e ter a nossa
fácil, intuitivo, integrado com outros itens que compõem própria conclusão sobre o seu valor.
o portfólio de experiências do consumidor. Também desejamos que ele esteja aberto a críticas e
Os dois primeiros itens estão relacionados com a sugestões, que esclareça as nossas dúvidas e que nos apoie
comunicação e a maneira pela qual o posicionamento em caso de dificuldades durante a experiência de consumo.
da marca é construído. O terceiro, na maioria das vezes, Erros devem ser assumidos com rapidez e responsabilidade.
se apoia na tecnologia. A possibilidade de se fazer um Campanhas enganosas e serviços de atendimento
curso de pós-graduação on-line numa boa universidade ao consumidor terceirizados e de baixa qualidade só se
é um excelente exemplo dessa tríade. O conhecimento sustentam quando o provedor é monopolista ou quando
chancelado é um item cada vez mais relevante para a seus concorrentes estão muito distantes em termos de
individualização. O “eu sou o que possuo” abre espaço qualidade ou preço.
para o “eu sou o que sei”. O consumidor espera ser respeitado para construir
A realização de um curso numa instituição renomada uma relação de confiança com a marca.
insere o consumidor no seleto grupo daqueles que com- As redes sociais já são o grande painel de monitoramento
partilham essa experiência. E o fato de o acesso ao con- da relação dos consumidores com as marcas. Deslizes são
teúdo ser on-line, e em múltiplas plataformas, confere divulgados com uma velocidade gigantesca, e o impacto
a facilidade de acesso que compatibiliza a experiência dessa comunicação espontânea pode ser avassalador.
com a jornada do consumidor. A confiança será o ativo mais relevante para as mar-
cas nas próximas décadas.
Confiança
A terceira, e talvez a mais importante, mudança nos
padrões de consumo está relacionada com a transparên- Flavio Ferrari
cia. O consumidor ganhou consciência e teve seu acesso Managing director da Ipsos MediaCT

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marketing

A plateia invadiu o palco!


Após 60 anos de maus-tratos, compras toscas e dinheiro jogado fora, saem os
consumidores ingênuos, subservientes e deslumbrados e entram em cena
os mesmos consumidores diplomados na ciência e na arte de comprar.
Não se constroem marcas ‒ nunca mais dando bugigangas aos índios
Por Francisco Alberto Madia de Souza

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latinstock

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 83


marketing

O
rio Tietê, mesmo nestes tempos de pou-
cas águas, continua nascendo no muni-
cípio de Salesópolis, na Serra do Mar, a
1.120 metros de altitude. A Salesópolis
do M&B (marketing e branding) — uma moeda de duas
faces — é representada por um livro, lançado no dia
6 de novembro de 1954, de autoria de um austríaco
doce e generoso, consultor de empresas e visionário.
Mesmo tendo partido no dia 11 de novembro de 2005,
Peter Drucker permanece presente em nossas vidas
por meio de ensinamentos magníficos e inspirado-
res, registrados em seus 42 livros, e infinitos artigos e
lições, como a obra Prática de administração de empre-
sas (Editora Thomson Pioneira, 1981).
Neste livro, Drucker anuncia ao mundo que todas
as empresas de todos os setores de atividades têm,
exclusivamente, duas funções: “marketing e inovação.
Marketing para conquistar e preservar clientes e ino-
vação para sobreviver”. E a única forma de “sobreviver”
é converter-se numa marca de qualidade na cabeça,
no coração e no reconhecimento de seus stakeholders.
Assim como o Padre Vieira pregou aos peixes, o
mesmo aconteceu com o visionário Drucker, em 1954.
E a culpa não foi dos “peixes” — empresas e empresários

latinstock
da época. A consciência e o entendimento de Drucker
estavam muito à frente de seu tempo. De certa forma,
o que aconteceu com Alfredo Mathias, um dos mais
Peter Drucker tinha o discurso certo para um tempo que
emblemáticos empreendedores da cidade de São Paulo, ainda não chegara. E, como nos ensinou Victor Hugo, ”nada
que lançou e construiu o Centro Empresarial, o Portal mais poderoso do que uma ideia cujo tempo chegou”. O
do Morumbi e o Shopping Iguatemi, no mínimo, dez tempo para as ideias de Drucker só chegaria décadas depois
anos antes, e fracassou em todos esses empreendimen-
tos mais que consagrados tempos depois. para que as sementes da economia de mercado vin-
Drucker tinha a receita e o discurso certos para um gassem, crescessem, florescessem e prosperassem.
tempo que ainda não chegara. E, como nos ensinou Vic- Finalmente, em 1994, seduzido e disputado por todos
tor Hugo, “nada mais poderoso do que uma ideia cujo os lados e bolsos, cheques e cartões, começa a desper-
tempo chegou” — discurso repetido à exaustão por Tom tar um novo consumidor: nós, devidamente diplomados
Peters. O tempo para as ideias de Drucker só chegaria por 40 anos de compras malfeitas e dinheiro jogado
décadas depois. fora. E isso só foi possível pela fragmentação e multi-
Em verdade, em 1954, eram poucas as empresas, plicação das categorias de produtos e serviços e pelo
poucos os produtos, e a possibilidade de escolha dos número expressivo e consistente de concorrentes em
consumidores era quase zero. As empresas reinavam. cada uma das categorias.
Muitas de forma tirânica, prepotente, truculenta. “Quer? Nesse exato momento, timidamente, mas de forma gra-
Está aqui. Não quer? Então, saia da frente, porque existe dativa, consistente e irreversível, o consumidor passivo
uma longa fila de pessoas ansiosas para comprar os ativa-se, “empodera-se”, e começa a caminhar em direção
nossos produtos.” A mensagem soava quase como um ao palco. Assim, o marketing e o branding — as duas faces
“não encha o saco”. Foram necessários mais 40 anos de uma mesma moeda — deixam de ser uma possibilidade,

84 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


Gallup e seus seguidores, Dichter abominava os méto-
dos quantitativos e clamava por uma nova metodolo-
gia. Era preciso parar de perguntar para as pessoas em
ritmo binário — sim ou não, preto ou branco, Palmeiras
ou Corinthians — e mergulhar em seus corações, buscar
as verdadeiras razões e motivos para que as pessoas se
comportem do jeito que se comportam.
A metodologia de Dichter, posta em prática, trouxe
resultados espetaculares, como a descoberta do fator
branco, para a Procter, e apropriado pela Unilever no
Brasil e seu megalíder Omo, e que “as meninas queriam
uma boneca com sex appeal, long legs, big breasts and gla-
morous”, queriam a Barbie.
Essas foram as primeiras manifestações a revelar que
marketing e branding são as duas faces de uma mesma
moeda. E que o objetivo supremo do marketing é o bran-
ding — converter empresas, produtos e serviços em mar-
cas de qualidade na cabeça e no coração de seus stakehol-
ders. Como são, até hoje, e décadas depois, Omo e Barbie.

Serviços, e não produtos


Ao contrário do que a maioria imagina, não foi Philip
Kotler, e sim Jerome McCarthy, que criou a matriz dos 4
gettyimages

“Ps”: product, price, place, promotion. De certa forma, ainda


traduzia, em 1960, uma fórmula para melhores resultados,
mas com pouca ou nenhuma preocupação com o branding.
Apenas um planejamento e organização melhor, para tor-
Ernest Dichter mostrou que era preciso parar de perguntar
em ritmo binário – sim ou não, preto ou branco – e mergulhar nar os produtos e serviços mais acessíveis, num mercado
em seus corações, buscar as verdadeiras razões para que absolutamente carente. Disponibilizar um product ade-
as pessoas se comportem do jeito que se comportam quado, com um price suportável pelas pessoas, um place
que facilitasse ser encontrado e comprado e uma comu-
caminho, alternativa, e convertem-se no ambiente como nicação — promotion — que traduzisse tudo isso. Ou, como
um todo. Ou as empresas pensam, planejam, organizam-se nos ensinou o poeta William Blake, “toma do número, do
e ativam-se sob a ótica do mercado e dos clientes, ou podem peso e da medida em tempos de escassez”.
encomendar as cerimônias de passamento. O segundo e mais consistente passo, depois da contri-
Mas voltemos à sequência dos fatos e acontecimentos. buição de Dichter no caminho do branding, foi dado tam-
bém em 1960 por outro pensador do marketing, Theodore
O caminho do coração Levitt. Quando, em seu histórico artigo da Harvard Business
Nos tempos de escassez, truculência e concorrência Review, revela uma patologia empresarial por ele batizada
zero, mais que comunicar tudo o que as empresas pre- de miopia em marketing, Levitt anuncia ao mundo que “as
cisavam fazer era avisar onde as pessoas poderiam empresas não compram produtos, e sim os serviços que
encontrar os seus produtos e serviços. Até outro aus- esses produtos prestam”. Quase que a dizer que o produto
tríaco aterrissar na Madison Avenue. não existe; que só existem serviços. E que se as empresas
Behaviorista, discípulo de Paul Lazarsfeld, Ernest não tivessem consciência do que e o que, verdadeiramente,
Dichter arrepiava-se com a comunicação das empre- seus clientes estavam comprando, corriam o elevadís-
sas nas décadas de 1950 e 1960. Crítico voraz de George simo risco de serem atropeladas por novos concorrentes

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 85


marketing

divulgação
que ofereciam, rigorosamente, os mesmos serviços por Mantra 1: pessoas fazem negócios com pessoas que
meio de outros e inovadores produtos. Um importante e conhecem, gostam e confiam (people do business with
decisivo passo em direção ao branding: o nascimento da people they know, like and trust)
consciência da importância vital de se entender o que as
pessoas, verdadeiramente, compram. E de parar de fazer Especificamente no Brasil, o momento coincide com o
a pergunta errada: qual é o nosso produto?. E começar a reposicionamento daquela que se revelaria, nas décadas
fazer a pergunta certa: o que as pessoas estão comprando seguintes, a mais importante ferramenta de comunicação
de nossa empresa?. Afinal, nada pior do que encontrar a para as práticas do marketing e do branding, a televisão —
resposta certa para a pergunta errada! muito especialmente pelo prevalecimento de uma cultura
de estética e conteúdo de extraordinária qualidade decor-
1968 – A construção da ponte rente da chegada de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho,
Marketing, branding, democracia e liberdade são indis- o “Boni”, ao comando da Rede Globo. Mais a instituciona-
sociáveis. Sem esses quatro pilares é impossível praticar lização da plataforma de revistas de conteúdo, todas da
marketing de qualidade e branding superior. Logo, na Editora Abril — Veja, Claudia, Quatro Rodas, Exame e Nova
década de 1960, o mundo carecia de um ambiente adequado —, e ainda a modernização dos jornais e das rádios. Assim
para que a moeda de duas faces marketing & branding como o prevalecimento do autosserviço — supermercados
prevalecesse e se disseminasse. E isso acontece às vés- —, dos centros de compra — shopping centers — e mecanismos
peras, durante e depois de 1968, com o fim da guerra fria. extraordinários de multiplicação de negócios — franchising

86 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


divulgação

divulgação
divulgação

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Mantra 2: uma marca de qualidade deve corresponder às Mantra 3: é preciso se revelar e ser consistente com o seu
expectativas das pessoas que pretende conquistar. E a única enunciado. É ser e fazer exatamente aquilo que você disse
maneira de se alcançar isso é colocando-se no lugar delas que era e como ia se comportar. É ser autêntico

— e rentabilização de propriedades das conquistas iniciais poderoso ficava, mais acessível — barato, quase de graça.
das primeiras práticas de branding — licensing. A partir daí, marketing & branding, assim como tudo,
Finalmente, os caminhos da moeda marketing para eu disse e repito, tudo, jamais seria o mesmo. Naquela
revelar sua outra face, o branding, escancaravam-se. ocasião, sem ter a mais pálida ideia, as pessoas, os con-
sumidores, preparavam-se para deixar de vez a plateia e
O microchip caminhar em direção ao palco. Deixarem de ser agentes
Aqui, 1971, o chamado ponto de inflexão. Nasce a e converterem-se em protagonistas. Em uma economia
semente do Admirável mundo novo. Chama-se 4004, próspera e exuberante de alternativas e possibilidades
mais conhecido como microchip, e é da Intel. Gordon de escolha, as empresas descem do palco, viram plateia e
Moore, um de seus pais, profetiza: “A cada 18 meses reorganizam-se para aprender a observar, analisar, intuir,
dobrará sua capacidade e terá seu preço reduzido pela disponibilizar, tornarem-se acessíveis. No momento, na
metade”. Errou feio. A realidade atropelou sua previ- hora, nas condições e circunstâncias em que os atores
são. De 2.250 transistores que trazia, em 1971, tinha principais decidirem por uma compra. O não branding
731 milhões embarcados já em 2008; e quanto mais da arrogância, prepotência, falta de educação e baixaria

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 87


marketing

latinstock
A mídia social transformou nosso mundo em uma grande responsabilizou por um novo expediente e por parte das
cidade pequena, dominada pela força dos relacionamentos, despesas da família; e que, por decorrência, homens,
pela troca de atenções e pelo poder do boca a boca
mulheres e crianças assumem um novo ritual em seus
comportamentos. Assim, e mesmo com armamento
dá lugar ao branding do instigante, do lúdico, do sedutor, de altíssima precisão — microcomputadores e possibi-
do bom-dia, do com licença, do por favor, do muito obri- lidade de databases de clientes —, é preciso sensibili-
gado, da recompensa, da narrativa e da autenticidade. zar, atrair, conquistar e merecer a adesão de pessoas
em permanente movimento, em constante mudança.
Maximarketing
Do e a partir do microchip multiplicam-se produtos e Os novos consumidores
serviços decorrentes. A inteligência chega às máquinas Assim, 40 anos depois do anúncio de Drucker e quase
e ferramentas. E o microcomputador revela-se seu mais duas décadas após se conquistar e plantar a semente do
importante descendente. Nesse momento, Stan Rapp e microchip, o velho consumidor sai da plateia e passa a
Tom Collins anunciam o maximarketing — e, por decor- ser disputado pelas empresas mais do que Cauby Pei-
rência, o maxibranding —, o marketing sem desperdícios. xoto era por suas fãs. E quando retorna, em 1994, cami-
A possibilidade de construir marcas com miras telescópi- nha em direção ao palco, empoderado, consciente de
cas e comunicação de altíssima precisão. Pessoa a pessoa. seus direitos e deveres, mais que querendo, exigindo o
Mas também revelam ao mundo, citando a escri- máximo e o melhor pelo seu poder aquisitivo — dinheiro
tora Gertrude Stein, que “não existe lá mais ali”. Que a — e pelo seu poder restritivo — tempo.
nova mulher agora não passa mais todo o dia em casa Gertrude Stein estava mais que certa. O velho mundo
cuidando do lar e dos filhos; que ela foi à luta; que se despediu-se, não existe lá mais ali, e tudo o que existe

88 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


latinstock
O microchip é o principal responsável pelos gadgets das novas vim, minha nega, sem saber nada da vida. Querendo
gerações, que aderem a eles com a mesma naturalidade que aprender contigo a forma de se viver. As coisas estão
fizemos com os de ontem, o caderno, a borracha e o lápis
no mundo, só que eu preciso aprender”.
O Google não foi o primeiro buscador. Talvez o
ali são pessoas em permanente processo de mudança décimo. Mas chegou depois, e infinitamente melhor.
de comportamento, hábitos, preferências. Nesse cená- Dominou. E colocou o big data na ponta dos dedos de
rio, as empresas, que mal tinham começado a enten- todas as pessoas. Conclusão: os novos consumidores,
der e praticar o branding, têm de repensar formatos, já empoderados, ascenderam para o megaempodera-
práticas e fundamentos para a ciência e a arte de sen- mento. Ocuparam o palco por inteiro, remetendo as
sibilizarem e merecerem atenção, adesão e preferên- empresas para o seu devido lugar: a plateia!
cia de aves de migração. Nós e, finalmente, os novos Contemplando, acompanhando, monitorando e ana-
consumidores. Os velhos, apáticos, ingênuos e sub- lisando as diferentes, mais que explícitas, escancaradas
missos, agora empoderados, sobem ao palco. manifestações e movimentos dos consumidores no palco,
as empresas procuram estar disponíveis — no tempo, na
Google ou coisas do mundo, minha nega! forma, no conteúdo e na relevância — no exato momento
No mesmo emblemático e transcendental ano de 1968, comportamental em que os atores do palco manifestam
Paulinho da Viola inscreveu sua composição Coisas alguma necessidade ou desejo específico.
do mundo, minha nega na 1ª Bienal do Samba, da TV Decuplica, assim, o desafio do branding, de construir
Record, classificando-se na quinta posição. Em sua e ser uma marca de qualidade na cabeça e no coração
música, ele dizia: “Hoje eu vim, minha nega, como de pessoas que não admitem nem serem interrompi-
venho quando posso”. E finalizava, repetindo: “Hoje eu das nem muito menos incomodadas. E que acessam

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 89


marketing

quando, como e onde desejarem todas as Coisas do


mundo, minha nega!

Síntese de um aprendizado de 60 anos


Maio de 2015. Tudo o que se aprendeu no mundo velho
e que sobrou das cinzas de duas grandes guerras, em 60
anos, pode ser sintetizado em três aprendizados, fra-
ses, ou, se preferirem — eu prefiro —, mantras. E esses
são aprendizados que valem tanto para pessoas físicas
quanto jurídicas neste admirável mundo novo que esta-
mos apenas começando a viver.
Primeiro mantra: pessoas fazem negócios com pessoas
que conhecem, gostam e confiam (people do business with
people they know, like and trust). Leia-se: pessoas que são
conhecidas, queridas e confiáveis são aquelas que foram
capazes de construir e serem reconhecidas como mar-
cas de qualidade.
Segundo mantra: para ambicionar ser uma marca de
qualidade, é essencial respeitar e corresponder às expec-
tativas das pessoas que pretendemos conquistar. E a
única maneira de alcançar essa conquista é colocando-
se no lugar delas (put yourself in someone´s shoes). É o que
o marketing moderno faz 24 horas por dia.
Terceiro mantra: para ser uma marca de qualidade, depois
de colocar-se no lugar daquele que pretende conquistar,
agora é preciso se revelar e ser absolutamente consistente
com o seu enunciado, com aquilo que você se propôs a ser.
É ser e fazer exatamente o que você disse que era e como ia
se comportar. É ter autenticidade (walk the talk). Logo voltaremos a nos comportar naturalmente, quando
smartphones, tablets e pendrives converterem-se em caderno,
borracha e lápis para todos. Aí, voltaremos a amar e ser amados
Palavras finais
Termino esta reflexão sobre os primeiros 60 anos da
moeda marketing & branding tentando olhar e enxergar familiares. A mídia social transformou nosso mundo
o que nos espera a partir da próxima década. em uma grande cidade pequena, dominada, como todas
Primeiro recorro aos ensinamentos e prognósticos as cidades pequenas costumavam ser, pela força dos
de Gary Vaynerchuk em seu precioso livro Gratidão relacionamentos, pela troca de atenções e pelo poder do
(Editora Lua de Papel, 2011): “A única coisa que nunca boca a boca. Para ter sucesso hoje e no futuro, é impera-
mudará é a natureza humana. Se puderem escolher, as tivo que lembremos o que funcionava no passado”. Ou
pessoas certamente passarão seu tempo próximas àque- seja, isso não mudou e nunca vai mudar.
les de quem elas gostam. Se for conveniente e prático, E sobre o momento de transição no qual vivemos,
elas também preferirão negociar e comprar produtos ainda tenho em meus ouvidos e no fundo do coração a voz
de pessoas das quais gostam. E hoje em dia elas podem repetida de minha saudosa mãe Julieta, em nossa casa
fazer isso. A mídia social possibilitou aos consumidores e infância na cidade de Bauru: “caneta, borracha, lápis”.
interagir com as empresas de modo muitas vezes seme- Todos os dias antes de sair de casa para o Instituto
lhante à maneira como interagem com seus amigos e Ernesto Montes, onde fiz o ginásio, em Bauru, minha

90 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


um botão. Assim como o prazer de estar com pessoas de
carne, osso e coração, ao vivo e em cores.
No dia 31 de outubro de 1517, véspera do Dia de Todos
os Santos, Martinho Lutero ousou afixar suas 95 teses
heréticas na porta da igreja do castelo de Wittenberg.
Usando a invenção de Gutenberg, ele disse: “Ich kann nicht
anders” (“Não posso fazer de outra maneira”). Naquele
momento mudava a história das religiões, do mundo e
da vida. O mesmo aconteceu quando James Watt criou
sua máquina a vapor, dando início à Revolução Indus-
trial. Assim como o mundo virou de ponta-cabeça em
1971, quando a Intel criou e viabilizou o microchip 4004,
principal responsável — e coração — dos gadgets de hoje,
a que as novas gerações aderem e agregam a seus com-
portamentos, com a mesma naturalidade que fizemos
com os de ontem — caderno, borracha e lápis.
Já li, reli e tornei a ler e a reler o livro 44 cartas do mundo
líquido moderno (Editora Zahar, 2011), de Zygmunt Bauman,
o grande filósofo do admirável mundo novo em que vivemos,
ou do novo renascimento como os historiadores do futuro,
ao comentarem sobre o nosso tempo, um dia registrarão.
Zygmunt escreve sobre essas novas gerações que não
sabem o quão é vital ficar sozinho vez por outra e refle-
tir: “Fugindo da solidão você deixa escapar a chance da
latinstock

solitude — dessa sublime condição na qual a pessoa pode


juntar pensamentos, ponderar, refletir sobre eles e criar
— e assim dar sentido e substância à comunicação”.
E nos remete também a Antonio Gramsci, que na pri-
querida mãe, Julieta, berrava: “caderno, borracha, lápis?”. são, no começo dos 1930, escreveu: “A crise consiste pre-
Ela queria saber se eu não me esquecera de nada. Nasci cisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo
com aqueles “gadgets” ao meu redor. Carregados de não pode nascer; nesse interregno, apareceu uma grande
tecnologia embarcada. Jamais me perguntei como era variedade de sintomas mórbidos”.
possível fazer o grafite atravessar a madeira e produzir Tenho certeza de que é isso: a transição entre o velho
uma linda escrita num caderno feito de papel a partir de e o novo, o buraco no meio. Logo mais, voltaremos a nos
um eucalipto sob altas temperaturas, mas passível de comportar naturalmente, quando smartphones, tablets
ser apagado por um produto derivado do látex da selva e pendrives converterem-se em caderno, borracha e lápis
amazônica. Usava e ponto. para todos. Aí despertaremos humanos. E voltaremos a
Espero que isso aconteça muito brevemente com todos amar e ser amados. Lembrar e ser lembrados. Como nos
os gadgets da atualidade e as pessoas voltem a se com- ensinou Vinicius de Moraes: “Para isso fomos feitos”.
portar naturalmente. Como seres humanos que são e Voltaremos a ter e ser uma marca de qualidade. Ou,
continuarão sendo, não obstante e provisoriamente se e novamente, marketing & branding em estado de arte.
comportem como se não fossem. E que redescubram,
também, a importância e o valor da solidão, indepen-
Francisco Alberto Madia de Souza
dentemente de estarem rodeadas de aparelhos que as Presidente do MadiaMundoMarketing e da
conectam a milhões em segundos pelo simples toque de Academia Brasileira de Marketing (Abramark)

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 91


História

O consumo como linguagem:


aquém e além da satisfação
Hoje, o que importa é ser feliz. Discursos publicitários e jornalísticos ratificam
tal lógica, idealizando grupos de indivíduos que, supostamente, são mais felizes
que outros, como se a felicidade fosse um sentimento de grupo e possível de ser
mensurada e comparada. Por quê?
Por João Matta

A
crescente midiatização do mundo e da vida, que há processos culturais em que não há troca econô-
com um inédito uso da mídia como media- mica direta entre as partes, mas que são caracterizados
dora dos processos socioculturais e de nos- como consumo. Esse processo, observado e analisado, por
sas escolhas, marca as sociedades contem- exemplo, sob um viés etnográfico, pode traduzir a própria
porâneas. Ao lado e ao passo dessa cultura midiática, que relação entre os atores sociais do consumo, incluindo
dita de forma hegemônica o ritmo de nossas vidas, há uma os parâmetros que utilizam para nomear o mundo à sua
cultura do consumo em constante transformação. Con- volta. Como uma linguagem, é possível que o consumo
sideramos, assim, que os processos comunicacionais e de um ator social revele não só suas preferências e gos-
de consumo, estrategicamente imbricados, nos colocam tos por este ou aquele produto, mas também uma dinâ-
como sujeitos dessa centralidade e agentes desse processo mica cognitiva e perceptual. Sob esse olhar, o consumo
de autocontrole social por meio da mídia, transformando, nos abre um espectro interpretativo que pode nos ajudar
diversas vezes, nossos corpos em produto final de nosso a traçar cartografias dos modos de ser e de se comunicar
próprio consumo. Porém não descartamos nossa capaci- de diferentes agentes sociais e de seus processos de cons-
dade de autonomia e rebeldia em face dos determinismos tituição enquanto sujeitos históricos.
do consumismo, da comunicação massiva e, principal- Alguns autores defendem um lugar de destaque nas
mente, das interpelações — à maneira do filósofo Louis ciências sociais ao consumo. Entre eles estão: Zygmunt
Althusser — que a mídia nos apresenta em suas diferen- Bauman (Vida para consumo. Editora Jorge Zahar, 2008),
tes manifestações. Mike Featherstone (Cultura de consumo e pós-moderni-
Este artigo dá voz ao consumo enquanto linguagem, dade. Editora Studio Nobel, 1995), Grant McCracken (Cul-
distanciando-se, sem desconsiderá-la totalmente, de sua tura & consumo: novas abordagens ao caráter simbólico dos
faceta economicista que o inclui no trinômio produção- bens e das atividades de consumo. Editora Mauad, 2003),
demanda-consumo. Nosso olhar é sobre os atores envol- Daniel Miller (A theory of shopping, de 1998, e The comfort
vidos no consumo, não apenas sobre a prática comercial. of things, publicado em 2008), Roberta Sassatelli (Consu-
Não nos debruçamos especificamente sobre o consumo mer culture: history, theory and politics. Editora Sage, 2010)
como lugar ou etapa, mas como processo dinâmico por e Don Slater (Cultura do consumo & modernidade. Editora
meio do qual os agentes sociais se manifestam, mostram Nobel, 2002). Há, portanto, uma reinvindicação por estu-
como classificam o mundo à sua volta, dizem quem acre- dos mais abrangentes sobre as práticas de consumo, os
ditam que são e, principalmente, a forma como gostariam quais poderiam dar conta de compreender tendências, que
de serem vistos pelos outros. O consumo é aqui entendido surgem em diferentes áreas da vida cotidiana, sem se per-
como um processo participante da cultura, que pode ou der em possíveis visões negativas, herdadas dos estudos
não incluir o ato de compra de um bem ou serviço, visto da cultura de massa. Sem deixar de lado qualquer rigor

92 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


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maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 93


História

latinstock
O item mais conspícuo que havia na casa das famílias familiares consideravam não só familiares mortos, visto
inglesas do século 16 era o retrato de família, que era medida que estavam ligadas à tradição, mas também os que ainda
exata do número de gerações, que buscava o alto status nem haviam nascido. O item mais conspícuo que havia
representado pela mobília em pátina
na casa das famílias inglesas do século 16 era o retrato de
família, que era medida exata do número de gerações, que
crítico, diferentes abordagens do consumo contemporâ- buscava o alto status representado pela mobília em pátina.
neo poderiam nos ajudar a compreender alguns proces- Entretanto, um novo padrão de aquisição de bens foi
sos sociais emergentes, que as simples avaliações nega- estabelecido, trazendo mudanças nas práticas de consumo
tivas do consumo como prática alienante não permitem. da nobreza. Os nobres, acostumados a compras familiares,
Nessa direção, percebemos haver no mercado de trabalho foram “capturados pelo uso estratégico que Elizabeth fez
atual uma demanda por cientistas sociais que, a partir do consumo como instrumento de governo”, como aponta
de um perfil crítico, consigam dar conta de cartografar McCracken, no livro Cultura & consumo: novas abordagens
estilos e modos de vida, tendências comportamentais e, ao caráter simbólico dos bens e das atividades de consumo.
quem sabe, atuar de forma definitiva na transformação A rainha aprendeu a utilizar a necessidade de compras
de práticas que possibilitem a preservação da vida e do regulares de diferentes produtos como verdadeiro tea-
ambiente a que pertencem. tro para engrandecer seu poder monarca. Seus súditos,
detentores de demasiado poder, sofreram com tal meca-
Breve histórico do consumo moderno nismo e, aos poucos, foram empobrecendo. Elizabeth não
Houve uma época em que o novo não era bem-vindo. Cama- só os instigava a gastar reativamente às suas demandas,
das de gordura como marcas do tempo na mobília confe- como também criou um ambiente socialmente competi-
riam distinção às famílias dos nobres. Os produtos eram tivo, que levava a nobreza a aumentar seus gastos cada vez
produzidos para durar gerações, sendo cada geração respon- mais. Ao longo do tempo, os nobres da Inglaterra daquela
sável pela manutenção da honra da próxima. As compras época tornaram-se escravos de um processo de compras

94 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


latinstock
Houve uma época em que o novo não era bem-vindo. modo de consumir do mundo moderno, que seria realmente
Camadas de gordura como marcas do tempo na mobília estabelecido com o surgimento de uma classe burguesa
conferiam distinção às famílias dos nobres. Os produtos
em busca do consumo como forma de distinção social.
eram produzidos para durar gerações
O século 17 foi, então, caracterizado pela intensifica-
ção dessa nova forma de adquirir bens. Os subordinados
competitivo e de moda, em que a novidade tornou-se a espelharam-se em seu grupo de referência — os nobres —,
palavra de ordem. As consequências dessa explosão de para assim iniciar uma busca por aquisição de bens sem
aquisições extravagantes deram origem a importantes precedentes na história. O excesso, a exemplo do que
mudanças na família e em sua forma de adquirir seus bens. houve com os nobres, abarcou a vida da classe de subor-
O nobre elisabetano foi conduzido a gastos sem prece- dinados, o que caracterizou uma nova série de desenvol-
dentes em sua história. Respondia, agora, a uma competi- vimentos na história das raízes do consumo moderno.
ção feroz por um tipo de status que não era mais baseado Tal comportamento é percebido de forma definitiva um
no sistema “pátina”. Suas compras tornaram-se individu- século mais tarde. No século 18, as compras individuais
ais e, cada vez mais, as práticas familiares para adquirir explodem com o aumento da variedade das opções. Mer-
bens, no formato anterior, perdiam espaço. Tais mudan- cadores começam a criar estratégias de mercado para a
ças não só afetaram a estrutura da família da época, como venda de seus produtos. Novos lugares e diferentes ofertas
também modificaram a natureza dos bens produzidos e, de itens para compras regulares surgiram, e a competi-
consequentemente, comprados. O que antes era valorizado ção por bens deixou de ser restrita aos nobres, passando a
por durar muito e suportar as marcas do tempo (pátina) atingir, também, outras classes sociais, revolucionando,
começou a ser produzido para ser novidade. Alguns bens assim, o mundo das compras e suas práticas. A nobreza
tornaram-se valiosos por serem novos e não mais por sua se tornou a porta de entrada de produtos de vestuários da
pátina acumulada pelo passar do tempo. Assim, os últimos moda que, rapidamente, eram deslocados em direção às
anos do século 16 trouxeram importantes influências ao classes média e baixa em uma Inglaterra sempre obcecada

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 95


História

pela hierarquia social. Outros produtos, que não os ves-


tuários, também seguiam, de certa forma, esse caminho.
Em torno do século 19, esse modo de consumo já se encon-
trava instalado como um fato social em caráter permanente.
Entretanto, não houve, nessa época, uma explosão de con-
sumo como no século anterior. Do outro lado do Canal da
Mancha, a Revolução Francesa, por sua vez, já vinha tra-
zendo mudanças importantes à França do século 18. Mas
não mudou o gosto das massas de consumidores daquele
país. A nova burguesia francesa do século 19 se apropriou
do padrão de consumo da aristocracia na luta por um status
social elevado. Nesse aspecto, as lojas francesas de depar-
tamentos foram aliadas dessa classe na aspiração de novas
posições sociais. Os bens tornaram-se verdadeiros legiti-
madores simbólicos de posição social naquele país.
O século 19 entregou ao consumo certas características
que se intensificam nas práticas de consumo atuais. Poten-
tes significados sociais são, cada vez mais, embutidos nos
bens de consumo por meio de estratégias de marketing
que empregam novas estéticas e motivos culturais pensa-
dos para adicionar valor aos produtos. Da mesma forma,
esse período é caracterizado por um novo tipo de intera-
ção entre comprador e vendedor, que permitiu o desen-
volvimento de inovações, tais como o crédito. A compra
a crédito trouxe alterações significativas ao consumo. O
comprador das lojas de departamentos podia agora admi-
nistrar sua satisfação obtendo um produto no momento
da emergência de seu desejo, e não apenas quando tivesse
dinheiro suficiente para pagar por ele. E isso mudou muita
coisa na dinâmica do consumo.
A Revolução Industrial fez explodir o consumo de massa,
embrionário no século 18, com a emergência dos merca-
dos. Também intensificou as diversas opções de produ- A Revolução Industrial fez explodir o consumo de massa,
tos e suas vendas por meio das estratégias de marketing embrionário no século 18. Essa também intensificou as
e de publicidade. Foi a partir da Revolução Industrial que diversas opções de produtos e suas vendas por meio
das estratégias de marketing e de publicidade
a produção passou a ser padronizada e serializada e o tra-
balho dividido em etapas com a finalidade de aumentar a
produtividade. Tais mudanças deram à indústria do século de um produto e a crença de que o consumo nos entrega
20 uma capacidade de produção sem antecedentes histó- plena satisfação de nossos desejos. Esses dois fenômenos,
ricos. A Revolução Industrial mudou, definitivamente, a associados à excessiva oferta por mercadorias produzidas
produção de bens materiais em grande parte do mundo, em massa — principal contribuição da Revolução Indus-
impactando também a nossa forma de consumir. Toda- trial ao consumo moderno —, definem o consumidor atual
via, há dois outros aspectos de mudança que impactam de como um sujeito que busca nos produtos que consome
forma definidora o consumo moderno: a queda da neces- mais que apenas seu valor de uso e de troca. Esse consu-
sidade do adiamento da realização do desejo de compra midor espera ser feliz satisfazendo-se plenamente a partir

96 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


latinstock
do que consome e, desde então, nem pensa em adiar tal haja consumo. Os indivíduos consomem porque aprende-
satisfação, já que o crédito e o parcelamento de dívidas ram associar consumo à felicidade”, assegura Costa. Para o
prometem dar totalmente conta de não deixá-lo frustrado. autor, neste início de século 21, não consumimos apenas por
razões funcionais, mas também em busca de uma suposta
O consumo da insatisfação felicidade, que estaria, naturalmente, embutida nas mar-
Remetendo-se ao trabalho de Hannah Arendt, Jurandir cas, nos produtos e serviços que compramos.
Freire Costa escreveu O vestígio e a aura: corpo e consumismo A atual etapa do capitalismo se molda à ideia da insa-
na moral do espetáculo (Editora Garamond, 2004). Nesta tisfação, o ethos emocional dessa configuração atual de
obra, ele discute as dimensões do supérfluo, afirmando consumo é o da insatisfação. Essa é intrínseca à socie-
que “até a Revolução Industrial, os objetos eram comprados dade de consumo na medida em que os produtos e servi-
por serem úteis e necessários; depois porque haviam sido ços não se prestam a eliminá-la, sendo programados para
produzidos e tinham de ser vendidos”. Entretanto, atual- entrar no mercado com tempo de vida breve. A lógica se
mente, “não basta haver produção em larga escala para que faz pela constante compra de novos modelos de produtos,

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 97


História

latinstock
reservando aos anteriores um único destino: o descarte. Espaços antes tidos apenas como símbolo da
As práticas de consumo atuais se moldam como repeti- liberdade de expressão, as redes sociais hoje
das realizações de desejos, que se mostram insuficientes vivem, também, sob um regime de intensa vigilância
por parte de seus usuários, sobre seus pares
para entregar a esperada felicidade, também prometida
pelos consumidores a si mesmos. Como é comum aos
atos de realização de desejos, há uma prazerosa satisfa- qualquer um. E nos tempos atuais não é diferente. Há um
ção, porém instantânea e potencial disparadora de uma iminente mal-estar entre adolescentes de hoje que vemos
próxima etapa, a realização seguinte. relacionado à obrigatoriedade da felicidade por meio do
consumo e do atingimento de “sucesso” em suas vidas,
Mal-estar na adolescência como descrevo em minha tese de doutorado em comuni-
Atualmente, ser feliz tornou-se ideal opressivo, como cação e semiótica, intitulada Mal-estar na adolescência:
aponta Maria Rita Kehl em O tempo e o cão: a atualidade jovens de agendas lotadas nas redes sociais (PUC, 2012).
da depressão (Editora Boitempo, 2009). É mandatório ser As agendas dos adolescentes de hoje estão lotadas.
feliz. É a nós outorgada a felicidade a qualquer preço. Dis- Principalmente no caso dos jovens de classe média. Ati-
cursos publicitários e jornalísticos ratificam tal lógica, vidades como aulas de idioma, práticas artísticas, treinos
idealizando grupos de indivíduos que, supostamente, esportivos, entre outras, lotam suas agendas ao lado de
poderíamos assumir como mais felizes que outros. É um intenso cotidiano de consumo. Usam e abusam das
o caso dos jovens. Como se a felicidade fosse um senti- tecnologias da informação e da comunicação (TICs) em
mento de grupo e possível de ser mensurada e compa- seu dia a dia de consumo. Aparatos eletrônicos apresen-
rada. Sabemos que períodos da vida, como é o caso da tam-se como extensões naturais de seus próprios corpos.
adolescência, por exemplo, são dotados de rituais, incer- Dispositivos móveis parecem estar acoplados aos corpos
tezas e anseios capazes de trazer profundas angústias a dos adolescentes, incluindo um ininterrupto e ubíquo

98 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


Nunca um like ou share de um post é
algo jogado ao sabor do acaso. É, sim,
um disputado capital simbólico a ser
consumido como moeda social corrente

de relacionamento, como é o caso do Facebook. Tudo pode


cair por terra diante de um engano ou de um comentário
fora dos padrões esperados pelos outros. As redes sociais
são, hoje, dotadas de exigentes matrizes moralizadoras,
que, a qualquer tempo, podem ser utilizadas para impor
padrões de comportamento on-line ditando o que se deve
e o que não se deve dizer. Basta um comentário politica-
mente incorreto para que práticas como o cyberbulling,
por exemplo, entrem em prática. Espaços antes tidos ape-
nas como de liberdade de expressão, as redes sociais hoje
vivem também sob um regime de intensa vigilância por
parte de seus usuários, sobre os seus pares.
Dessa forma, no papel também de produtor, os jovens
das redes sociais são convocados a assumir a responsabi-
lidade de constantemente produzir conteúdos que serão
latinstock

consumidos por seus pares, o que aumenta ainda mais


seus afazeres diários. À maneira de uma profissão, o usu-
ário das redes sociais tem o papel diário de manter vivo o
As práticas de consumo atuais se moldam como conteúdo que por lá circula. Ao mesmo tempo, em busca
repetidas realizações de desejos, que se mostram de visibilidade que os distinga entre seus pares, também
insuficientes para entregar a esperada felicidade,
almejam se adequar aos padrões de jovem-sujeito contem-
também prometida pelos consumidores a si mesmos
porâneo, conformando-se a perfis estabelecidos pelo mer-
cado consumidor, como é o caso das gerações das letras —
dedilhar em likes, shares e comments. Além de um compe- x, y, z e c. Entretanto, tal missão não se torna fácil diante
titivo consumo de gadgets de última geração — smartpho- da impossibilidade de comprar a felicidade nas prateleiras
nes, PDAs, tablets, notebooks —, esses jovens inserem em do supermercado. Em um contexto que cobra desempenho
suas agendas o consumo de informação, cada vez mais a todo instante, não sobra espaço nem tempo para explo-
excessivo e claustrofóbico, e o consumo de disputados rações das possibilidades aleatórias do universo digital e
capitais simbólicos das redes sociais. Esses podem ser fora dele. O uso da tecnologia fica, então, restrito às pou-
nomeados como visibilidade, reputação e legitimidade cas redes sociais da moda — Facebook, Twitter e Tumblr,
nos grupos. Nunca um like ou share de um post é um mero enquanto as práticas de prosumption limitam-se às time-
passatempo ou algo jogado ao sabor do acaso. É, sim, um lines dessas redes que se autorreferenciam, sendo pouca
disputado capital simbólico a ser consumido como moeda coisa realmente reservada à ordem do criativo.
social corrente nas redes sociais atuais. A disputa por esse
tipo de capital é tensa e pode gerar grandes expectativas
nos instantes subsequentes a um post. Estão em jogo lon- João Matta
gos períodos de investimentos em capitais sociais nes- Engenheiro eletrônico, psicanalista, mestre em comunicação
e práticas de consumo pela ESPM, com MBA em gestão de
sas redes por parte dos jovens. Horas e horas de trabalho negócios pelo ITA / ESPM e doutorado em comunicação e semiótica
postando, comentando, compartilhando, estão em jogo a pela PUC-SP. Professor do curso de graduação em publicidade e
cada interação que um jovem se arrisca a realizar em sites propaganda e MBA em ciências do consumo aplicadas da ESPM

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 99


entrevista | daniel miller

Daniel Miller
Formação: Ph.D. em antropologia e arqueologia
pela Universidade de Cambridge (Inglaterra)
Atuação: professor de antropologia da University
College London e coordenador do Global Social
Media Impact Study
Carreira: desde 1981, ministra aulas de
antropologia na University College of London.
É autor de mais de 20 livros sobre antropologia
digital, consumo e mídia, como Teoria das
compras (Editora Nobel, 1998), Trecos, troços e
coisas: estudos antropológicos sobre a cultura
material (Editora Zahar, 2010), Consumption and
its consequences (Editora Polity, 2012) e Webcam
(Editora Polity, 2014). Desde o ano passado,
coordena o Global Social Media Impact Study

100 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


Rede social: o futuro do
consumo passa por aqui?

O
antropólogo Daniel Miller não se enquadra no estereótipo de pesquisador dos
povos primitivos dos rincões mais remotos do planeta. Autor de diversos livros
sobre antropologia do consumo e professor de cultura material da University
College London, ele é um dos expoentes desta era de cientistas do comércio e
do marketing. Nascido em 1954, Miller se notabilizou por seus estudos sobre a relação do ho-
mem com seus objetos e com o consumo, que lhe conferem a reputação de precursor da hoje
consagrada abordagem etnográfica das relações comerciais. Tanto que João Matta, professor
do curso de graduação e MBA em ciências do consumo da ESPM, concluiu seu doutorado em
comunicação e semiótica sob a orientação do professor-doutor Daniel Miller, que é autor de
clássicos contemporâneos como Teoria das compras: o que orienta as escolhas dos consumidores.
(Ver artigo de João Matta na página 92)
Atualmente mais focado no mundo virtual, Miller acaba de apresentar os resultados
do Global Social Media Impact Study, um novo estudo sobre os impactos da mídia social
nas sociedades contemporâneas, que será transformado em um curso universitário e um
website batizado “Why we post?”. Com lançamento marcado para fevereiro de 2016, as
duas iniciativas estarão disponíveis gratuitamente na web, também com uma versão em
português, já no ano que vem.
Durante o estudo, a equipe de Miller executou nove projetos simultaneamente, por 15
meses, com pesquisadores vivendo em comunidades ao redor do mundo. Uma delas na
Bahia, outra na vila de Alto Hospício, no interior do Chile, duas na China, uma na Turquia,
e assim por diante. Miller liderou a pesquisa global e participou de trabalhos de campo na
Inglaterra, onde vive. Crítico das pesquisas “universalizantes”, nas quais os resultados de
um estudo feito numa só região são considerados válidos para o mundo todo, ele avalia
que, pela primeira vez, temos dados suficientes para compreender como as mídias sociais
são usadas e as consequências dos seus diversos usos por diferentes populações. “As pes-
soas só leem os livros-texto de marketing e de negócios e acham que suas regras gerais se
aplicam em todo e qualquer lugar”, diz Miller.

Por Alexandre Teixeira


Fotos: Divulgação

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 101


entrevista | daniel miller

Revista da ESPM — Nos últimos me- e nas suas consequências em cada lo- Rússia ou na Argentina. Talvez, pela
ses, o senhor tem dedicado seu tempo calidade. Pode-se pegar alguma coisa primeira vez, sejamos capazes de
ao estudo do impacto que a mídia social que hoje pareça estar homogeneizan- apreciar esses detalhes e diferen-
causa em nossas vidas. Quais os princi- do o mundo, como a disseminação ças entre as diferentes partes do
pais resultados do Global Social Media do Facebook ou a disseminação das planeta. E não é só de um país para
Impact Study? selfies, e afirmar que isso vai deixar o outro. Nós tivemos dois projetos
todos os lugares mais parecidos uns na China, e os seus resultados são
Daniel Miller — Anteriormente, a com os outros. Mas quando você completamente diferentes.
maioria dos estudos sobre as mí- olha para como as pessoas realmente
dias sociais tendia a ser feita de uma usam essas coisas, percebe que não Revista da ESPM — Vocês têm gente
forma muito universalizante. Eles é assim. Pode pegar, por exemplo, fazendo isso no Brasil?
faziam um experimento, digamos, as selfies. Na Inglaterra, onde faço o
com alunos de faculdades nos Esta- meu trabalho, existem claramente Miller — Sim, temos gente em um
dos Unidos que faziam algumas ob- categorias bem diferentes de selfies. local na Bahia que representa uma
servações quanto ao efeito [da mídia Aproximadamente cinco vezes mais área majoritariamente de baixa
social], sobre as amizades ou sobre selfies são tiradas em grupo, para renda, onde a maioria das pessoas
o aumento da visibilidade. A partir demonstrar a amizade, comparadas trabalha como garçons e operários
daí, eles diziam: “Este é o impacto do às selfies individuais. A rigor, a forma da construção civil ou ainda como
Facebook”. O que a minha equipe fez mais comum de selfie é aquela em faxineiros em pontos turísticos. Há
foi executar nove projetos, simulta- que as pessoas tentam parecer tão turistas na costa, porém esse lugar
neamente, ao redor do mundo, cada feias quanto podem e enviam por fica atrás da praia, onde os trabalha-
um deles por 15 meses. Pesquisadores serviços como Snapchat para amigos dores vivem. É um exemplo muito
viveram 15 meses nessas comuni- em quem confiam. Aquela em que bom do que você pode chamar de
dades! Uma delas, por exemplo, é no tentam parecer bonitas é muito me- “nova classe média”. Nós chamaría-
Brasil. Outra é no Chile. Como resul- nos comum. mos de classe trabalhadora. É uma
tado disso, pela primeira vez, nós re- amostra bem comum da população
almente temos uma ideia de como as Revista da ESPM — O que isso nos brasileira. O mesmo é verdade em
mídias sociais são usadas de verdade ensina? nosso local no Chile, na vila de Alto
e das consequências do seu uso em Hospício, que fica perto da fronteira
diferentes partes do mundo. Assim, Miller — O padrão de selfie pode ser com o Peru e a Bolívia. Vivem lá
você pode ver o risco desses métodos muito diferente em outros lugares. principalmente pessoas que traba-
tradicionais. Na verdade, quando se olha mais lham na área de mineração. É uma
nos detalhes, você começa a ver vila de trabalhadores absolutamen-
Revista da ESPM — Por que é um risco que a mídia social é um pouco como te comum. Nada de especial.
generalizar? qualquer outra forma de comunica-
ção. Nós todos temos telefones, mas Revista da ESPM — E como essas
Miller — Porque na prática a mídia o modo como usamos o aparelho duas populações usam a mídia social?
social é muito diferente nos seus usos no dia a dia pode ser diferente na
Miller — Na realidade, se você com-
parar esses dois lugares, eles são
Tanto a população da Bahia quanto a do Chile completamente diferentes um do
outro. Completamente diferentes.
usam o Facebook, mas usam para propósitos Posso dar exemplos. O uso de mí-
quase opostos, em relação aos valores e dias sociais na Bahia é muito “baia-
identidades desses lugares em particular no”. Parece com os romances de

102 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


pode aprender coisas com esses es-
tudos, mas o que aprende é diferen-
te em cada lugar. Em Alto Hospício,
por exemplo, é possível que você
encontre muito pouca publicidade,
muito pouco desenvolvimento co-
mercial, embora a vila seja parte de
uma economia moderna. Ao passo
que, nos lugares onde estivemos na
China, as pessoas combinam valo-
res familiares e valores comerciais,
sem vê-los como muito diferen-
tes uns dos outros. Há, portanto,
uma relação bem diferente com os
mercados e com o comércio entre
chineses. Eles ficam felizes usando
as redes sociais para propósitos

latinstock
comerciais.

Revista da ESPM — E nos mercados


Na Inglaterra, a forma mais comum de selfie é aquela em que as pessoas
mais desenvolvidos?
tentam parecer tão feias quanto podem e enviam por serviços como Snapchat

Miller — Cada lugar tem uma re-


Jorge Amado, no sentido de que há Revista da ESPM — São duas socieda- lação diferente com o mercado.
muita fofoca e discussões sobre des radicalmente diferentes, na Bahia e Percebemos i mpactos basta nte
sexo. Há grande oposição entre a no interior do Chile. interessantes em outras partes. Eu,
respeitabilidade das igrejas pen- por exemplo, trabalho com a situa-
tecostais e a não respeitabilidade Miller — É a mesma coisa nas mídias ção na Inglaterra, e o que descobri
associada, você sabe, a mau com- sociais. Ambas usam Facebook, mas foi que, cada vez mais, as empresas
portamento. Ao passo que, se você usam para propósitos quase opostos, que estão na mídia social têm se
olha para nosso lugar no Chile, as em relação aos valores e identidades preocupado com a necessidade de
pessoas lá não expressam muitas desses lugares em particular. E isso ter lucros com essas plataformas.
diferenças, de jeito nenhum. Em é algo que eu acho que os estudos O que estamos vendo, então, é um
Alto Hospício, a mídia social é usa- anteriores sobre mídias sociais não enorme desenvolvimento do tar-
da para expressar valores tradicio- entendiam de modo nenhum. geted advertising [propaganda seg-
nais muito conservadores, e não há mentada], onde se usam evidências
muitas diferenças de valores. Todo Revista da ESPM — Quando vocês coletadas nas mídias sociais para
mundo, basicamente, posta da mes- tentam traduzir esse aprendizado saber muito mais sobre as pessoas
ma maneira, com o mesmo estilo. É para o mercado de consumo, têm con- e sobre as coisas nas quais estão
uma população muito homogênea, seguido insights inovadores relevantes interessadas. O problema é que os
expressando o modo particular para profissionais de marketing e de ingleses, quando comparados a
como ela se sente — que não é o mes- comunicação? povos de outros locais em que esti-
mo da capital cosmopolita. O povo vemos, são os mais obcecados com
chileno não expressa suas diferen- Miller — A primeira coisa seria o privacidade. Desconfiam de qual-
ças locais. ponto que acabo de enfatizar. Você quer coisa que invada sua privaci-

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 103


entrevista | daniel miller

dade. Eles não gostam, por exem-


plo, de que outras pessoas entrem
nas suas casas, de jeito nenhum.
Consideram esse targeted adverti-
sing muito invasivo, o que causa
uma reação extremamente negati-
va a empresas que usam esse tipo
de publicidade. Extremamente.

Revista da ESPM — A ponto de forçar


uma revisão desse modelo de negócio?

M i l ler — As minhas evidências


sugerem que a nova forma como as
companhias estão tentando finan-
ciar suas atividades na internet,

shutterstock
que não é fazer as pessoas pagarem
por elas, mas usá-las para coletar
dados em massa que perm item
fazer mais targeted advertising, vai
causar perdas, e não benefícios, O uso de mídias sociais na Bahia é muito ”baiano”. Parece com os romances de
a essas empresas. Vai colocar as Jorge Amado, no sentido de que há muita fofoca e discussões sobre sexo
pessoas contra essas companhias e
torná-las menos abertas a comprar
seus produtos. Mas, veja, isso é por lugar. Elas não pensam nessas dife- mais voltado para famílias. Foi por
causa de uma característica bem renças culturais que se aplicam às isso que eu disse que o Facebook
específica da identidade inglesa. questões de consumo e de mercado não é cool de nenhum modo. O lugar
Os ingleses têm essa questão com a tanto quanto se aplicam a todos os aonde você vai para se conectar
invasão da privacidade, a qual você outros aspectos de nossas vidas. com seus avós não é exatamente
não encontra, eu diria, no Brasil ou cool para falar com os amigos da sua
no Chile. Então, não posso dizer que Revista da ESPM — Em um de seus faixa etária. Na realidade inglesa,
o targeted advertising provocaria o posts no site do Global Social Media Im- o lugar onde esse tipo de interação
mesmo efeito problemático se esti- pact Study, o senhor afirma que as crian- acontece mais agora é o Twitter. Nas
véssemos falando de Chile e Brasil. ças inglesas ainda usam o Facebook, mas escolas onde trabalho, muitas das
ele não é mais tão cool. Por quê? classes têm contas no Twitter que
Revista da ESPM — E nos outros lu- usam para contatar os alunos. Isso
gares onde fizeram a mesma pesquisa, Miller — A ironia é que alguns pou- não é alguma coisa que eu tenha
qual é a reação? cos anos atrás os pais diziam a seus descoberto. É absolutamente claro
filhos para não estar no Facebook. para todos os professores e para
Miller — Vejo isso apenas entre os Agora, os pais insistem para que os pais que o Facebook não pode
ingleses. Então, uma vez mais, isso essas crianças fiquem no Facebook, ser usado quando você realmente
mostra que as pessoas só leem os uma vez que pais e avós estão no quer se conectar com crianças em
livros-texto de marketing e de ne- Facebook e o usam para comparti- idade escolar. Elas usam Twitter,
gócios e acham que suas regras ge- lhar informações com elas. É por Instragram, Snapchat em particu-
rais se aplicam em todo e qualquer isso que ele se tornou algo muito lar e ainda usam um pouco de BBM

104 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


diferença. E, se ele desaparecer, vai
fazer muito pouca diferença, porque
outras coisas assumirão seu lugar.
O que eu não creio que desaparecerá
são as mídias sociais.

Revista da ESPM — Entendo o seu


ponto e concordo com ele. Não importa
se é o Facebook ou o Orkut até hoje. Mas
a diferença é que não estamos mais to-
dos concentrados em um só lugar.

Miller — Pode ser mais complicado.


Por um lado, você pode dizer que
já estamos fragmentados em dife-
rentes plataformas de mídia social,

shutterstock
o que é verdade. Mas, ao mesmo
tempo, elas estão consolidadas em
torno dos smartphones. A ascensão
do smartphone se tornou tão im-
Já em Alto Hospício, no Chile, a mídia social é usada para expressar valores portante como a ascensão da mídia
tradicionais muito conservadores, e não há muitas diferenças de valores social. Se uma parece estar se de-
senvolvendo sob múltiplas formas,
a outra consolida tudo em um lugar.
nos BlackBerries. Quando estão no Miller — Quando os brasileiros se A grande questão, do ponto de vista
Facebook, que ainda é, provavel- mudaram do Orkut para o Facebook, do usuário, é apenas a variedade de
mente, a mais comum de todas as qual foi o impacto? Não foi grande coisas que ele pode fazer. E eu não
plataformas, já não o usam para os coisa. Na época, você diria que o acho que eles realmente se impor-
propósitos que costumavam usar. Brasil não iria nem mesmo usar o Fa- tem tanto com o que estão usando
cebook, porque o Orkut era tão domi- para fazê-las. Eu desenvolvi o con-
Revista da ESPM — Nós temos visto no nante. As pessoas ficam obcecadas ceito chamado polimídia, que ten-
Brasil, eu não diria crianças, mas adoles- por essas plataformas, mas, na rea- tou demonstrar que o que importa
centes e jovens trocando o Facebook pelo lidade, se o Facebook nunca tivesse para as pessoas, no fundo, é ter uma
Snapchat ou WhatsApp. O que acontece existido isso teria feito pouquíssima boa gama de alternativas.
se o Facebook desaparecer? diferença para o Brasil. Outra coisa
teria aparecido, como o WhatsApp, Revista da ESPM — Em que sentido?
Miller — Há uma resposta fácil para o Snapchat e os demais. A diferença
o Brasil. Quando começamos nosso para vocês seria quase desprezível. Miller — Você pode mandar men-
trabalho poucos anos atrás, o Brasil Ficamos obstinados demais com sagens de texto, usar uma webcam,
não usava o Facebook. Usava o Orkut. essas plataformas, mas o desenvol- usar a sua voz, usar algo que deman-
Todos esquecem disso. vimento das mídias sociais não é de que estejamos juntos ao mesmo
tão dependente de uma plataforma tempo. O refinamento cultural está
Revista da ESPM — É verdade, mas individual. Eu, honestamente, acho em usar essas combinações de um
a dominância do Facebook no Brasil é que se o Facebook nunca tivesse modo que nos ajude a administrar
incontestável. sido inventado, isso teria feito pouca os nossos relacionamentos, porque

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 105


entrevista | daniel miller

parecer mais difícil para as grandes


plataformas estabelecidas mante-
rem e consolidarem as suas posi-
ções. Mas nunca foi fácil. O Google
parece muito poderoso, mas o Orkut
no fim fracassou. O Myspace fracas-
sou. E o Facebook hoje está em declí-
nio. Eu não penso que no momento
pareça provável que uma empresa
em particular venha a se tornar do-
minante por um longo período.

Revista da ESPM — Não lhe parece


que em algum momento alguém vai se
consolidar em definitivo?

shutterstock
Miller — A questão para todas es-
sas empresas é a de sempre: reter
algum tipo de lucratividade, por-
Há poucos anos, pais diziam que suas crianças não deviam estar no Facebook. que, como eu disse, coisas como
Agora, eles insistem para que os filhos usem e compartilhem informações na rede targeted advertising fazem as pesso-
as se oporem a você.

estamos preocupados com esses re- importa muito para as empresas, Revista da ESPM — Que futuro o se-
lacionamentos e não com a comuni- porque elas estão preocupadas com nhor vislumbra?
cação em si. O que importa mesmo é questões de lucratividade. Se você
com quem estamos nos comunican- é uma firma nessa área, está cons- Miller — Mais cedo ou mais tarde,
do e como nos comunicamos. Esses tantemente trabalhando com níveis esse tipo de “solução” para tornar
dispositivos são explorados por nós crescentes de dificuldade. Mas muita os meios de comunicação rentáveis
com tal propósito. Não queremos coisa depende de quem é você. Se pode ficar muito mais problemáti-
ficar tão fixados nas plataformas. É você está tentando desenvolver uma co. Não sei quem tem uma fórmula
muito mais importante o que nós fa- startup, a situação em linhas gerais alternativa.
zemos nelas. Continua havendo um é boa. E está melhorando. O custo de
estilo brasileiro em qualquer plata- ser uma startup está diminuindo. O Revista da ESPM — Se pudermos
forma. Diversos, pois o estilo de São número de nichos diferentes é cres- dar dois passos para trás, eu lhe pe-
Paulo não é igual ao da Bahia. cente e abre novas possibilidades direi para falar sobre que espécie de
constantemente. Talvez há uns 18 influência causa a exposição a mídias
Revista da ESPM — E se mudarmos meses as pessoas achassem que o sociais na disseminação de novos há-
a perspectiva para o ponto de vista de Facebook concentraria toda a mídia bitos de consumo.
empresas e das marcas que têm de se social. Isso tornava bem mais difícil
comunicar com as pessoas desse modo para qualquer outro competidor en- Miller — Isso não é algo que tenha-
fragmentado que o senhor descreveu? trar nesse terreno. Agora isso está se mos olhado particularmente em
rompendo e torna mais factível para nosso projeto, uma vez que o mate-
Miller — Tudo que eu considero que novos grupos entrar no terreno e rial que vemos na mídia social não
não importa tanto [para o usuário], fazer coisas diferentes. Isso faz, sim, é radicalmente diferente do que ve-

106 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


mos sem ela. Nas áreas onde o boca
a boca se torna mais influente, você
pode analisar em quem as pessoas
mais confiam. São os conselhos da
família que contam mais? Ou o dos
seus pares na escola? Eu não vejo
por que isso seria necessariamente
tão diferente em termos das mídias
sociais. Se eram os seus parentes que
o influenciavam mais fora da mídia
social, não temos evidências de que
não seria mais esse o caso também
na mídia social. Isso quer dizer que,
se o seu primo diz que algo é útil e in-
teressante, essa opinião terá seu im-

shutterstock
pacto. Então, a mídia social se torna
apenas outro lugar onde esse tipo de
rede de influência se manifesta. Uma
nova área de influência vai surgir
quando empresas tentarem impac- Na China, as pessoas combinam valores familiares e comerciais, sem vê-los como
tar indivíduos diretamente através muito diferentes uns dos outros. Elas ficam felizes em usar as redes sociais para isso
do targeted advertising.

Revista da ESPM — Já estão tentando... para as mídias sociais, já que con- penso que isso estava em declínio
fiamos mais em nossos amigos e em muito antes do desenvolvimento da
Miller — Como acabei de dizer, isso nossas famílias? mídia social. Há 50 anos, o mundo
é possivelmente bem problemático todo queria uma saia de certo com-
para certas populações. Miller — Isso talvez seja parte de primento e sabia a cor exata para
uma transformação maior. Eu não, o próximo ano. Tal dominância de
Revista da ESPM — O senhor falou necessariamente, concordo que a certos estilos a cada ano estava em
da experiência inglesa. Há rejeição em mídia social é a causa do que você declínio em mobiliário, vestuário e
outros países também? acaba de descrever. O que eu sugeri muitas outras áreas.
antes é que a mídia social reflete o
Miller — Eu não sei. Isso não é algo que está acontecendo off-line. Em Revista da ESPM — Em certas partes
que tentamos conceituar nesse tra- outras palavras, pessoas que nos in- do mundo, a mídia social tem enorme
balho. Eu não sei o que os outros fluenciam off-line são basicamente influência na política...
membros do meu time diriam sobre as mesmas que nos influenciam on-
lugares como o Brasil ou Chile. -line. O fato de que nos afastamos de Miller — Temos muitos de nossos
líderes, celebridades etc. é parte de projetos em lugares onde questões
Revista da ESPM — O senhor não um possível movimento diferente. Já políticas são importantes. Por exem-
pensa que o tipo de formador de houve um tempo em que, no consu- plo, na Turquia, o estudo foi feito em
opinião “autorizado” que detinha o mo de roupas, as pessoas tendiam a uma cidade bem ao lado da fronteira
poder de influenciar as sociedades na olhar para a moda do ano e a seguir síria, onde a população é de árabes,
política, na economia e no consumo mais as tendências. A moda era uma turcos e curdos. Então há muitas
está perdendo a sua importância parte maior da vida das pessoas. Eu questões políticas. Há também ques-

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 107


entrevista | daniel miller

gadora evidência para a mídia social


pública, como o Facebook, é que ela é
muito conservadora, porque as pes-
soas veem o que você está fazendo.

Revista da ESPM — Nossa sensação


de que a mídia social é politizada seria
um erro de amostragem?

Miller — A vasta maioria das posta-

shutterstock
gens políticas é cômica. Isso significa
tirar sarro dos políticos, de vários
modos, porque tirar sarro de políticos
é uma coisa muito segura de se fazer.
tões que têm a ver com a internet, não apareceram nas mídias sociais Assim, é provável que você crie mais
como a censura na China. No Brasil, mesmo por aí. vínculos com seus amigos. Não é como
nosso trabalho estava em curso du- fazer comentários políticos fortes, que
rante a revolta que aconteceu antes Revista da ESPM — Não era essa a as pessoas geralmente evitam. Então,
das eleições. Então, sempre há even- nossa sensação à época. na realidade, o impacto na democra-
tos políticos se desenrolando duran- cia e nos outros temas políticos, eu
te o tempo em que fazemos pesquisa Miller — A população dentro da qual suspeito, é menor do que a maioria das
de campo. Em geral, nós diríamos estávamos trabalhando teve muito pessoas pensa. Tanto de um ponto de
que o que é interessante é o modo pouco engajamento. É um assunto vista positivo quanto de um ponto de
como a mídia social, em muitos des- sobre o qual as pessoas não pare- vista negativo. É uma área não muito
ses lugares, evita qualquer relação ciam ter o que reportar ou discutir importante para a política. O problema
com a política. na mídia social naquele momento. é que, como as pessoas estudam políti-
Agora, se você focar nos posts sobre ca, elas exageram bastante.
Revista da ESPM — Evita? Isso é os protestos, parece que os protestos
surpreendente. eram muito importantes. Mas não é Revista da ESPM — Quais são os
isso que nós fazemos. Nós vivemos próximos passos do Global Social
Miller — Particularmente as formas com uma população e vemos se a Media Impact Study?
mais públicas de mídia social, como política de fato aparece nas posta-
o Facebook. Elas são as mais, diga- gens do seu dia a dia. E não aparece. Miller — Em fevereiro de 2016, va-
mos, limitadas no seu engajamento A razão para isso é que a política é mos pôr no ar o nosso site, o “Why
com a política. O problema é que uma área problemática. É muito fácil we post?”. Simultaneamente, vamos
as pessoas que estudam política e ofender outras pessoas. É muito fácil lançar também um curso universi-
ativismo tendem a falar muito sobre ter problema com as coisas que você tário e 12 livros. Tudo isso vai estar
o Twitter e outras mídias sociais. posta. Então, é mais provável que disponível por Open Access [sistema
Isso é assim, porque elas focam esse tipo de discussão avance em de disponibilização na internet de
nos tuits e nos posts sobre política. mídias sociais mais privadas, como literatura científica]. Ou seja, tudo
O que elas não fizeram, mas nós o WhatsApp. De fato, em algumas gratuito. Todo o site e o curso univer-
fizemos, é simplesmente viver com das áreas em que trabalhamos, onde sitário estarão disponíveis em portu-
as populações. Se você olhar para as a política é muito perigosa, como a guês para o público brasileiro. Esta é
revoltas no Brasil, por exemplo, vai Turquia, as pessoas usam perfis fal- a nossa intenção: tudo gratuito, em
descobrir que elas, virtualmente, sos ou perfis anônimos. Mas a esma- tantas línguas quanto pudermos!

108 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


110 Revista da ESPM | maio/junho de 2015
especial Ciências do consumo

O marketing
nunca será uma

ciência
Mas a ciência pode ajudar o
marketing a ser
mais eficiente
p o r A n n a G a br i e l a A r aujo e F r a nc i s c o Gr ac io s o

Desde a década de 1960, grandes empresas como


Unilever, Coca-Cola e Colgate-Palmolive utilizam
metodologias baseadas nas ciências do consumo para
desenvolver grandes cases de marketing. Nos últimos
anos, essa área tem ganhado cada vez mais adeptos no
mercado nacional. Neste especial, você confere como
Bombril, Cosan Lubrificantes, Fiat, NET, PepsiCo, Porto
Seguro e Via Varejo utilizam as descobertas dos chamados
cientistas do consumo no dia a dia de suas operações
shut terstock
O marketing nunca ser á uma ciência. Mas a ciência
pode ajudar o marketing a ser mais eficiente

A
té a década de 1970, pasta de dente no Bra- invade a mesa dos profissionais de marketing. Em busca
sil era anunciada da seguinte forma: “efi- de respostas mais rápidas e tomadas de decisões mais
ciente proteção contra as cáries”. Até que precisas, o mercado deu voz às ciências das “ias” — socio-
a agência McCann-Erickson — atual W/ logia, antropologia, psicologia, anatomia, neurologia
McCann — decidiu fazer uma pesquisa motivacional e fisiologia — e passou a seguir os seus ensinamentos.
para analisar as emoções que os anúncios desperta- Resultado: as ciências do consumo ganharam status
vam nos consumidores. Para essa missão, contratou dentro dos departamentos de marketing e cada vez mais
um dos maiores especialistas em pesquisa motivacio- representam um importante instrumento à disposição
nal do país: Alfredo Carmo, que na época era gerente dos estrategistas que procuram traçar correlações entre
geral da Marplan. Poucos meses depois, ele deu seu as inúmeras pesquisas que tentam decifrar o comporta-
veredito: “Se quiserem atingir o consumidor de creme mento dos consumidores, com um único objetivo: con-
dental, parem de falar em proteção contra a cárie e quistar o coração e o bolso dos clientes!
foquem a comunicação no que ele realmente deseja: E, para atingir essa meta, esses estrategistas precisam
uma sensação de frescor na boca”. definir um plano de ação com uma base científica capaz
A descoberta de Carmo, que foi um dos primeiros de torná-lo mais ágil e seguro. É nesse momento que os
cientistas do consumo no Brasil, deu origem a uma das chamados cientistas do consumo entram em campo,
campanhas mais famosas da publicidade brasileira: com a aplicação das mais diversas técnicas de pesquisa
“Kolynos. Ah!...”. Inspirado nos elementos extraídos da — das neurociências à análise de tendências — em busca
própria pesquisa, o novo slogan “Sinta a deliciosa sen- do melhor caminho!
sação de bem-estar na espuma protetora de Kolynos” Afinal, como afirmou o ganhador do prêmio Nobel
acabou revolucionando a forma de anunciar esse tipo de Economia de 2002, Daniel Kahneman, em entre-
de produto no Brasil, uma vez que em pouco tempo a vista exclusiva à Revista da ESPM (publicada na edição
Kolynos conquistou a liderança de mercado. Décadas de março/abril de 2015): “Em geral, as pessoas têm a
depois, em 1995, sua principal concorrente, a Colgate- ilusão de que compreendem o que está acontecendo no
Palmolive, adquiriu a marca, que acabou substituída presente melhor do que são capazes de fato. Eu sustento
pelo creme dental Sorriso. que a nossa habilidade de entender as situações depois
O mesmo aconteceu com Omo. A marca da Unilever, que elas acontecem — ou de acreditar que as compreen-
que há mais de 80 anos detém a liderança da categoria demos — contribui para a ilusão de que podemos prever
de sabão em pó no Brasil, aposentou o famoso “lava mais o futuro”. Daí a importância da Teoria da Perspectiva,
branco” para investir no “não existe aprendizado sem man- descrita por Kahneman no livro Rápido e devagar: duas
chas”, e mais recentemente no conceito “se sujar faz bem”. formas de pensar (Editora Objetiva, 2012), que mostra
O fato é que as ciências do consumo vêm sendo uti- como emoções simples, ligadas ao instinto de sobrevi-
lizadas há décadas para entender — e tentar prever — o vência, acabam influenciando as tomadas de decisão no
comportamento dos consumidores. A boa notícia é que, mundo empresarial.
nos últimos anos, elas ganharam um novo impulso no Teoricamente, se um indivíduo fosse completamente
mundo dos negócios, a partir do desenvolvimento da racional, ele não seria influenciado ao ouvir a seguinte
tecnologia e da enxurrada de dados que todos os dias descrição sobre um pedaço de carne: contém 10% de
gordura, sendo 90% livre de gordura. Mas os estudos de
Kahneman provaram que, na prática, isso não funciona.
Em busca de respostas mais rápidas e “As pessoas são influenciadas pelo modo como você des-
tomadas de decisões mais precisas, o creve o conteúdo de gordura. Elas preferem muito mais
uma carne que seja 90% livre de gordura do que uma que
mercado deu voz às ciências das “ias” – tenha 10% de gordura. As pessoas são suscetíveis a esses
sociologia, antropologia, psicologia... erros e reconhecer essa suscetibilidade pode nos ajudar a

112 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


e s p e c i a l To m a d a d e d e c i s ã o e m t e m p o s d e i n c e r t e z a

shut terstock
tomar decisões melhores”, afirma o líder de uma geração Em geral, as pessoas têm a ilusão
de psicólogos, economistas, antropólogos e neurocien-
de que compreendem o que está
tistas que aceitaram o desafio de repensar a economia
à luz da compreensão das ciências sociais. acontecendo no presente, melhor
Tal constatação é vivenciada, diariamente, por Andrea do que são capazes de fato
Salgueiro, vice-presidente de personal care da Unile-
ver: “Usamos todas as ciências sociais — da neurociên-
cia à antropologia — no desenvolvimento de ações de da ESPM foi a campo perguntar aos grandes profissionais
marketing mais assertivas. Não basta apenas avaliar o do setor qual é o papel das ciências do consumo dentro
comportamento do consumidor na loja, durante o ato de suas estratégias de comunicação e qual é a real influ-
da compra. É preciso entender quais são os drivers que ência desse tipo de estudo no posicionamento de suas
levam as pessoas a querer comprar as nossas marcas, marcas e produtos. Descubra, a seguir, como Bombril,
que geram o que chamamos de share of heart” (ver entre- Cosan Lubrificantes, Fiat, NET, PepsiCo, Porto Seguro e
vista na página 68). Via Varejo utilizam os ensinamentos e as descobertas dos
Em busca de respostas, que muitas vezes permanecem chamados cientistas do consumo no trabalho de cons-
ocultas nas entrelinhas do marketing moderno, a Revista trução e consolidação de marcas no mercado nacional.

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 113


M a rc o s S c a l d e l a i | Bo m b r i l

As ciências das 1001 utilidades


Para Marcos Scaldelai, presidente da Bombril, não basta investir milhões na
compra de pesquisas sobre os consumidores. É preciso entender a mente humana, as
regionalidades existentes no país, as características e os perfis de cada público

Revista da ESPM — Por conta da crise apostamos em uma campanha na Ivete Sangalo, uma diva simples, guer-
econômica, a Bombril já identificou qual Dani Calabresa, Marisa Orth e reira, batalhadora e, principalmente,
alguma alteração no comportamento de Monica Iozzi chamavam os homens brasileira! Como garota-propaganda
seus consumidores? para fazer a limpeza de casa. Na oca- da marca, ela publica conteúdos da
sião, mais de 500 homens apresenta- marca em suas páginas nas redes
Marcos Scaldelai — Aqui, na Bom- ram protestos no Conselho Nacional sociais, que chegam a ter audiência
bril, não sentimos a crise. Estamos de Autorregulamentação Publicitária maior do que muitos programas de
crescendo quase três vezes mais (Conar) e chegaram a pedir para tirar a TV. Outro exemplo é a Casa Bombril, a
do que o setor, por conta de um re- campanha do ar. Com isso, consegui- universidade que criamos para formar
posicionamento de marca que teve mos transformar a marca, que passou empregadas domésticas e que acabou
início há cinco anos. Em 2010, quando a ser sinônimo de produtos de limpeza se transformando em um precioso
assumi a diretoria de marketing e e a que apresenta a melhor relação laboratório de consumo para a marca.
comercial da Bombril, as pesquisas custo-benefício do mercado.
indicavam que a marca possuía uma Revista da ESPM — Como funciona o
força gigantesca no segmento, mas Revista da ESPM — Do ponto de vista laboratório de consumo da Bombril?
não conseguia conversar com a mu- do branding, quais as principais iniciati-
lher mais jovem, que naquela época vas apresentadas pela Bombril por conta Marcos — A Casa Bombril surgiu
estava ingressando no mercado de do crescimento das novas mídias? em 2012, como um projeto de ação
consumo, assim como a nova classe social. Logo, percebemos que o local
média brasileira. Isso porque ela era Marcos — Sou formado em marketing poderia fazer mais do que oferecer
reconhecida como uma empresa pela ESPM e fiz carreira na área, até cursos gratuitos para profissionalizar
mais velha. Logo, passamos a investir assumir a presidência da Bombril. E o serviço prestado pelas empregadas
em um processo de rejuvenescimento sempre procurei desenvolver iniciati- domésticas. Acabamos transforman-
da marca, focado no público feminino vas com o objetivo de atender ao clien- do a Casa Bombril em um laboratório
— com idade entre 25 e 40 anos —, que te e a fazer a venda acontecer. Hoje, de experiências. As conversas reali-
é o grande impulsionador da classe C. trabalhamos com projetos que vão zadas durante as aulas e encontros no
Lançamos produtos inovadores e po- muito além do simples filme publicitá- local conseguem materializar, com
sicionamos a Bombril como solução rio. Procuramos criar conteúdo, gerar muita clareza, o que as empregadas
de limpeza em todos os segmentos. experiências e patrocinar progra- domésticas realmente precisam para
mas e ideias diferenciados. Todos os realizar a limpeza diária da casa. O es-
Revista da ESPM — Como ocorreu essa nossos investimentos partem desse tudo desses depoimentos deu origem
mudança de posicionamento da marca? conceito. Um exemplo disso é o des- a 106 novas ideias. Nossos profissio-
dobramento da campanha de 2011, nais constataram a viabilidade de 70
Marcos — Em um primeiro momento, com a adoção do conceito de que “toda dessas ideias, que foram novamente
afastamos o garoto Bombril (Carlos brasileira é uma diva”, materializado apresentadas para as frequentado-
Moreno) de nossa comunicação e em nossos comerciais pela cantora ras da Casa Bombril. Nesta segunda

114 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


especial Ciências do consumo

rodada, 40 ideias foram aprovadas


e agora estão dando origem a novos
conceitos, como o primeiro limpador
de tela LCD, um removedor de sujeira
especial para o rejunte de porcelanato
ou ainda um produto para tirar o odor
das roupas. Também usamos a Casa
Bombril para gravar o quadro Melhor
doméstica do Brasil, para o programa
Raul Gil, e outras ações de marketing.

Revista da ESPM — A companhia tra-


balha com cientistas do consumo?

Marcos — Aqui, não temos o cargo

divulgação
cientista do consumo, mas traba-
lhamos muito com a observação de
tendências. Recentemente, senti que Marcos Scaldelai, presidente da Bombril: ”Na prática, as ciências
precisava criar um canal para enten- do consumo nos ajudam a identificar e vivenciar as necessidades
que não costumam ser tão verbalizadas pelas consumidoras”
der melhor tudo aquilo que as pes-
quisas indicam, principalmente no
ponto de venda. Assim, no segundo reinvenção (produtos inovadores); quer dizer. Isso fica claro nas pesqui-
semestre de 2014, promovemos uma saúde (cuidados com a família); espe- sas que realizamos na Casa Bombril.
reformulação do nosso departamento cificidade; preventivo (limpar mais Logo, o nosso trabalho é o de estabe-
de marketing, com a união da área de rápido); e experiência (como, por lecer uma comunicação clara para
trade e inteligência de mercado. Hoje, exemplo, o prazer sensorial da lim- educar esse consumidor e mostrar
temos profissionais que realizam as peza da casa). Essa matriz deu origem as funcionalidades de cada produto.
entrevistas com os consumidores, co- a um workshop, onde uma vez por Na prática, as ciências do consumo
letam as informações dos institutos ano reunimos todos os nossos forne- nos ajudam a identificar e vivenciar
de pesquisa e os dados do trade. Tam- cedores — desde a área de pesquisa as necessidades que não costumam
bém criamos uma área de governan- até o segmento de fragrâncias — para ser tão verbalizadas pelos consumi-
ça e cidadania para entender melhor apresentar as principais tendências dores. Comecei minha carreira como
a sociedade. Além disso, nossa equipe do mercado para a nossa equipe. estagiário da Nielsen e posso afirmar
de marketing passa todo o mês de que de nada adianta apenas comprar
janeiro conversando com as emprega- Revista da ESPM — Considerando a um volume gigantesco de pesquisas.
das domésticas e assistindo às aulas evolução de estudos nas áreas da neuro- É preciso entender a mente humana,
ministradas na Casa Bombril. ciência e da economia comportamental, os hábitos e os consumos regionais, as
quais são os novos desafios da Bombril? características de cada público. E você
Revista da ESPM — Que tipo de apren- não consegue realizar isso se perma-
dizado a companhia já extraiu dessas Marcos — O grande desafio que te- necer apenas dentro de um escritório.
conversas? mos é fazer o consumidor entender É preciso ir para a rua e vivenciar a
as funcionalidades de cada produto. experiência do ponto de vista do con-
Marcos — A partir dessas conver- Hoje, você vai à gôndola e vê produtos sumidor. Afinal, esse consumidor é o
sas elaboramos um mapa de lança- de limpeza que dizem ser 20 em 1. A maior e mais fiel escudeiro das vendas
mentos baseado em cinco conceitos: pessoa não entende direito o que isso de qualquer marca.

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 115


M i l e n a B r i t o | Co s a n Lu b r i f i c a n t e s

O óleo de toda a engrenagem!


A Cosan Lubrificantes acredita tanto no poder das ciências do consumo que até contratou
um profissional para cuidar dessa área. “Para conquistar a lealdade do shopper é preciso
entregar algo relevante”, garante a diretora de marketing da companhia, Milena Brito

Revista da ESPM — A indústria au- conceitos de construção e defesa das Revista da ESPM — Quais as estraté-
tomobilística foi uma das que mais marcas da Cosan Lubrificantes? gias utilizadas pela Cosan Lubrificantes
sentiram os impactos da crise no Brasil. para que suas marcas continuem sendo
No caso da Cosan Lubrificantes — que Milena — O consumidor de óleo desejadas por esse novo consumidor?
administra a marca Mobil no país —, já é lubrificante mudou bastante nos
possível identificar alguma alteração no últimos anos. Historicamente, o Milena — Começamos a apostar nes-
comportamento do consumidor? quesito preço sempre apareceu sas novas mídias no ano passado
como fator mais relevante para os e, desde então, temos conseguido
Milena Brito — A Mobil tem 15 dife- nossos clientes. Porém, na última ”conversar” de forma muito mais
rentes tipos de consumidor. Atende- pesquisa, a qualidade do produto próxima com os consumidores. Um
mos desde o caminhoneiro autônomo passou à frente do quesito preço, dos exemplos é a promoção para
e os grandes frotistas até os proprie- sendo citada por 47% dos entrevis- a troca de óleo com desconto que
tários de carros de passeio. Mas, de tados, que estão cada vez mais enga- anunciamos no aplicativo de trân-
maneira geral, desde 2014, temos jados. Antigamente, os nossos pais sito Waze quando o motorista passa
notado que os consumidores estão costumavam delegar a escolha da próximo a uma de nossas revendas
mais sensíveis à questão da qualidade marca ao mecânico ou ao frentista. parceiras. Outra ação é a parceria
do produto. Pelo fato de o país estar Hoje, a pessoa entende, claramente, que firmamos com o aplicativo de
vivendo um momento econômico que a troca de óleo é essencial para táxi 99taxis para ofertar uma série
mais crítico, esse consumidor acaba prolongar a vida do motor do seu de benefícios aos taxistas. Para
buscando produtos de melhor quali- carro e, por isso, chega ao ponto de tanto, redirecionamos boa parte
dade, até porque, como não vai mais venda conhecendo os diferenciais da verba, antes investida em mídia
comprar o carro zero, terá de cuidar de alguns produtos, mas ainda sem e ações de relacionamento, para a
bem do seu veículo usado, o que in- a certeza da marca a ser escolhida. área de trade, porque é no ponto de
clui a troca de óleo. Hoje, ele busca Então, o que temos feito do ponto venda que conseguimos efetivar
um óleo lubrificante que apresente o de vista do branding é investir em essas ações e, assim, conversar com
melhor custo-benefício, ou seja, que dois pilares: ações para o trade — nossos parceiros e shoppers. Este
dure mais tempo e até contribua para como parceria com revendas e o ano, vamos investir 41% a mais do
a redução do consumo de combus- treinamento de frentistas; e oferta que no ano passado em iniciativas
tível. No ano passado, esse tipo de de ferramentas diferenciadas para para o trade, cifra que em 2014 já
comportamento nos levou a registrar o consumidor, como um aplicativo havia sofrido um aumento de 26%
um crescimento de 21% sobre 2013. E, e um site, que procuram prestar ser- em relação a 2013. E essa mudança
para este ano, nosso plano é registrar viços do tipo: encontrar o estabele- no foco dos investimentos partiu de
4% de aumento nas vendas. cimento de confiança mais próximo um estudo feito por nossa área de
do cliente para a realização da troca business intelligence, que conseguiu
Revista da ESPM — Como essas de óleo; e qual é o lubrificante mais mostrar para a companhia onde es-
mudanças têm interferido nos antigos indicado para o seu tipo de veículo. tava o grande valor do consumidor.

116 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


especial Ciências do consumo

Revista da ESPM — De que forma


a área de business intelligence da
Cosan Lubrificantes utiliza as ciên-
cias do consumo?

Milena — A Cosan acredita tanto


nessa área, que há um ano trouxe
um profissional da indústria de
alimentos para assumir a gerência
de business intelligence e cuidar,
exclusivamente, desse tipo de aná-
lise. A busca pelo entendimento do
comportamento do consumidor
acontece há muitos anos, mas até

divulgação
então era muito focada em análises
dispersas baseadas em um volume
gigantesco de dados vindos de di-
versas fontes. Hoje, o maior desafio Milena Brito, diretora de marketing da Cosan Lubrificantes: ”Redirecionamos
de qualquer empresa é o de saber parte da verba, antes investida em mídia e relacionamento, para a área de trade.
como tratar o montante de infor- É no pdv que conseguimos ‘conversar’ com os shoppers e os consumidores”
mações disponíveis todos os dias.
O que fizemos foi estruturar todas Milena — Trabalhamos com a W/ Milena — De maneira geral, o cien-
essas informações em uma única McCann e diversos institutos de tista do consumo faz uma radio-
área. Agora, o pessoal de business pesquisa para avaliar as tendên- grafia do mercado, antecipando o
intelligence interpreta os dados, cias de comportamento dos con- comportamento do consumidor
procura entender do que é que o su m idores daqu i a t rês, quat ro e validando o entendimento e as
consumidor precisa, e nos aponta anos. Temos estudos que fazem decisões tomadas durante todo o
como cada dado deve ser lido para essas projeções para os próximos processo. Logo, esse profissional
a correta tomada de decisão. Por 20 anos. Em outra frente, acompa- precisa ser ajustado à filosofia da
exemplo: eu sei que o motoboy é nhamos o uso da tecnologia por companhia para entender não só
apaixonado por sua motocicleta e pa r te da i ndúst r ia automot iva , da área de humanas, como tam-
que faz qualquer coisa por ela. Mas que cada vez mais demanda óleos bém de vendas; para saber avaliar
a pergunta é: como essa informação específicos para os seus motores. como e qua nto u ma decisão de
pode ser trabalhada pelo marketing Desenvolvemos as nossas ofertas ma rket i ng pode i mpact a r toda
para que a marca consiga entregar de produtos a partir dessas duas a operação, desde a fábr ica até
valor a esse consumidor no ponto de análises, que caminham juntas. A o ponto de venda . Esta mos em
venda? É esse tipo de pergunta que busca passa, necessariamente, por um caminho sem volta, no qual
a nossa área de business intelligence produtos que consigam proteger o o consumidor terá cada vez mais
busca traduzir nos inúmeros testes meio ambiente, promover a troca informação para realizar a tomada
e entrevistas que realizamos. inteligente e ainda reduzir o consu- de decisão de compra, que no nos-
mo de combustível e energia. so segmento continua sofrendo
Revista da ESPM — Como a compa- forte influência do revendedor. É
nhia avalia e utiliza o trabalho desen- Revista da ESPM — Qual deve ser o por isso que vamos continuar in-
volvido por agências especializadas em papel desempenhado pelo cientista do vestindo cada vez mais em ações
análise de tendências? consumo em uma empresa? direcionadas ao trade.

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 117


João C i ac o | F i at C h ry s l e r Au t o m o b i l e s ( F CA)

No caminho certo
João Ciaco, da Fiat, alerta: não faz mais sentido ter uma área separada para branding, outra
para digital e outra para a social. O caminho agora passa pela integração, com os “cientistas
do consumo” trabalhando, cada vez mais, na tríade “antes, durante e depois do consumo”

Revista da ESPM — A indústria auto- Ciaco — Nessa nova dinâmica não li- Ciaco — Esse novo ambiente das mí-
mobilística é uma das que mais sofrem o near de consumo, só vai vender quem dias sociais faz com que a marca
impacto da atual crise econômica. Quais conseguir associar muito bem o valor tenha de se apresentar de outro jeito:
as principais mudanças notadas no com- de marca ao valor total percebido — participando das conversas. Tenho
portamento dos consumidores? que é a síntese de aspectos como pre- de estabelecer maneiras de entender
ço, custo-benefício, condições de com- quais são essas conversas e como elas
João Ciaco — Independentemente da pra, custo de manutenção e avaliação se relacionam conosco. Por isso, não
questão econômica que estamos en- de produtos. Cada vez mais o processo faz mais sentido ter uma área separa-
frentando hoje, no Brasil, o consumi- de construção e defesa de marca terá da para branding, outra para digital
dor, de forma geral, tem se mostrado de passar pelos aspectos que com- e outra para a social, dentro da em-
muito mais exigente e multicanal, põem o valor. Isso faz com que ele seja presa. Na Fiat e nas outras estruturas
nos últimos anos. E quando digo mul- bem mais complexo em relação ao que dentro da Fiat Chrysler Automobiles
ticanal, quero dizer também menos víamos há 15 ou 20 anos. Para enten- (FCA), nós entendemos que é preciso
linear. Isso significa que 80% dos der o interesse do consumidor e quan- ter um olhar muito transversal sobre o
consumidores, antes de irem para as to ele está disposto a pagar, temos de que está acontecendo aqui dentro e lá
concessionárias, já pesquisam na in- olhar para outras relações, como a do fora, identificar que tipo de conteúdo
ternet, muitas vezes de seus celulares, consumidor com outras marcas, aque- faz sentido para entrarmos. É claro
o preço, as condições de compra e as la entre os próprios consumidores e que, na prática, as ações são operacio-
avaliações do produto. Essa é a prin- até para questões sociais em si. Afinal, nalizadas de forma separada, mas a
cipal mudança que nós, profissionais é o consumidor que escolhe o canal, estratégia é uma só.
de marketing, devemos considerar. a hora, o conteúdo e a forma do seu
Vale destacar que neste momento contato com a marca. Nós, do lado de Revista da ESPM — De que forma o
de maior desconfiança em relação cá, temos de saber customizar a men- marketing trabalha para que a marca
à economia do país, o consumidor sagem para cada tipo de plataforma e continue sendo desejada?
tende a olhar mais para a questão do entender o comportamento que está
valor percebido, que inclui aspectos por trás dela. Nesse sentido, o mobile Ciaco — A nossa principal estratégia
como custo-benefício, preço de manu- é um meio crucial, que deve estar é analisar o mercado, permanente-
tenção, valor de revenda etc. Isso não sempre presente nessa conversa, seja mente, para entender as tendências e
quer dizer, no entanto, que a marca com campanhas específicas ou sites preferências de consumo e antecipar-
não influencie na decisão de compra. responsivos que atendam muito bem nos a elas. Para isso, é preciso estar
Mas hoje ela funciona mais como um às novas necessidades. sempre investindo em produtos e
reforço do que um fator decisivo. estratégias de marketing capazes de
Revista da ESPM — Do ponto de vista surpreender o consumidor. Os cases
Revista da ESPM — Como essas mu- do branding, que tipo de mudança ocor- da Live Store, Fiat Mio e Social Drive
danças têm interferido nos antigos con- reu no marketing da Fiat por conta do ilustram bem esse posicionamento. A
ceitos de construção e defesa das marcas? crescimento de novas mídias? primeira, no ar desde 2014, é uma for-

118 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


especial Ciências do consumo

ma inédita de falar com o cliente aqui


no Brasil e que permite a experimen-
tação dos carros por áudio e vídeo. Já
o Fiat Mio foi um projeto que, ao convi-
dar o público a participar do processo
de criação de um carro-conceito, virou
um novo jeito de pensar o carro do
futuro. E o Fiat Social Drive mantém o
motorista conectado, com um sistema
capaz de ler informações das redes
sociais enquanto ele está ao volante.

Revista da ESPM — Como a Fiat utiliza


o trabalho das agências especializadas

divulgação
em análise de tendências de consumo?

Ciaco — Devido à tendência de espe-


cializar cada vez mais o trabalho de João Ciaco, diretor de brand marketing communication da Fiat Chrysler Automobiles
marketing, as agências parceiras que (FCA): ”Se no passado esse profissional já estava próximo da área de vendas,
chegou a hora de o cientista do consumo olhar também para o depois da compra”
olham para certos nichos ou segmen-
tos ganharam força nos últimos anos,
descentralizando o trabalho das agên- Revista da ESPM — Em sua opinião, ro tem a ver com a questão da unifi-
cias de publicidade. No fundo, o que como um cientista do consumo pode cação de forças em torno das marcas,
precisamos é ter uma visão profunda auxiliar a companhia? resultado de um processo contrário à
do consumidor — e as ferramentas fragmentação das mídias que vimos
tradicionais não dão mais conta. As Ciaco — Com um sistema de marke- acontecer nas organizações. O segun-
agências especializadas surgem, por- ting cada vez mais complexo, a ten- do está ligado ao valor social das mar-
tanto, para atender a essa nossa ne- dência é a de que esses “cientistas do cas, com a construção de discursos
cessidade, trazendo conhecimentos consumo” expandam suas respon- socialmente responsáveis.
potenciais e ajudando-nos a entender sabilidades para além do branding,
as particularidades. A Box1824 é um trabalhando cada vez mais na tríade: Revista da ESPM — Considerando a
caso de agência com foco em compor- “antes, durante e depois do consumo”. evolução dos estudos nas áreas da neu-
tamento; eles trabalharam conosco Se no passado esse profissional já es- rociência e da economia comportamen-
para o lançamento do Novo Uno, em tava próximo das equipes de vendas, tal, quais são os novos desafios da Fiat?
2010, ao analisar a resposta de con- pensando a parte final do consumo,
sumidores ao carro, e na concepção chegou o momento de ele começar a Ciaco — Entender os desejos e buscas
de estudos como “We all want to be olhar também para depois da compra, do consumidor é sempre um desafio
young”, em 2010, sobre a Geração Y, e pensando na retenção e sustentação para as empresas e requer a utilização
“Sonho brasileiro”, sobre jovens de pe- do consumidor. de várias ferramentas. A neurociência
riferia, em 2011. Temos ainda outros é uma delas, assim como a semiótica,
exemplos assim, como a Tátil, que nos Revista da ESPM — Quais objetivos e a filosofia e a antropologia. Todas elas
ajuda na parte de design. O número de responsabilidades o marketing da com- têm a sua metodologia e o seu valor.
parceiros tende a aumentar devido às panhia deve assumir no mundo de hoje? Especialmente na FCA/Fiat, acredi-
microespecializações e a FCA/Fiat tamos em elementos de análise mais
valoriza muito isso. Ciaco — Vejo dois desafios aí: o primei- comportamentais, como a semiótica.

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 119


A n e Lo p e s T u b e n c h l a k | n e t

O lado NET da vida


Ane Lopes Tubenchlak, gerente da NET, explica que entender as novas demandas dos
consumidores é vital para os negócios. Para trabalhar nesse ambiente, o cientista
do consumo deve ter perfil investigativo, resiliência e um toque de criatividade

Revista da ESPM — Algumas áreas da de conteúdo sob demanda da NET na consolidar ainda mais suas relações
economia, como a de serviços, têm sofri- TV e na internet. com os meios e consumidores que
do mais com a crise. Quais as principais falam uma nova língua. É com essa
mudanças no comportamento dos con- Revista da ESPM — Como essas mu- visão que a NET tem trabalhado para
sumidores notadas pela NET? danças têm interferido nos antigos desenvolver soluções completas e
conceitos de construção e defesa das inovadoras, além de construir um
Ane Lopes Tubenchlak — A relação marcas no mercado nacional? relacionamento cada vez mais pró-
do consumidor com o universo de ximo com os seus clientes e com a
telecom mudou nos últimos anos. Ane — Para a NET, o principal objetivo comunidade. As novas mídias são
O cenário atual revela um consu- é estar onde os seus clientes estão, es- tão ou mais importantes quanto as
midor que valoriza muito mais o tabelecendo e fortalecendo a presen- centrais de relacionamento, o site ou
custo-benefício, busca por produtos ça da marca por meio da comunica- as campanhas que divulgam a mar-
de qualidade e preços justos. Esse ção ou viabilizando uma experiência ca. Por isso é um assunto obrigatório,
movimento é decorrente do aumen- positiva no uso dos nossos produtos que está na pauta de todas as empre-
to da penetração de banda larga, e serviços. As ações têm abrangência sas. Elas são o “boca a boca” moder-
TV por assinatura e telefonia que nacional, sem deixar de considerar as no e de grande escala. Não é mais
aumenta a experiência e a referência características regionais, para tornar possível ignorar as novas mídias e
dos consumidores com esses produ- a marca mais próxima. Mas a nossa ainda querer entregar qualidade,
tos e também pelo amadurecimento proposta de marca, essência e valores inovação e contemporaneidade. São
do mercado brasileiro, com novos são precisamente os mesmos de norte posicionamentos conflitantes.
players de atuação e crescimento da a sul. Temos o mesmo posiciona-
atividade dos órgãos reguladores. mento e executamos uma estratégia Revista da ESPM — Como a NET utili-
Outro ponto de mudança no compor- única, de relacionamento e de comu- za o trabalho das agências especializa-
tamento é em relação à mobilidade. nicação, em todo o país. das em análise de tendências?
O uso de serviços móveis tem grande
relevância — grande parcela de con- Revista da ESPM — Do ponto de vista Ane — A NET acompanha de perto
sumidores carrega o celular para do branding, quais são as mudanças as tendências de consumo dos seus
todos os lugares e está sempre co- apresentadas pelo marketing da NET mercados. Por meio de pesquisas so-
nectada. Também observamos uma com o crescimento das novas mídias? bre percepções da marca, qualidade
tendência no consumo de vídeo sob dos serviços, utilização dos produtos
demanda dentro da TV tradicional Ane — As redes sociais são ótimos etc., as estratégias são ajustadas para
— é o conceito de flexibilidade e per- exemplos de mudança tecnológi- melhor atender aos clientes.
sonalização, no qual o cliente assiste ca e comportamental. As pessoas
ao que quer, na hora que quiser e de estão cada vez mais conectadas, Revista da ESPM — Em sua opinião,
onde quiser — por meio do NET Now imediatistas e sem tempo a perder. como um cientista do consumo pode
e do NET Now On-Line, plataformas As empresas precisam se adaptar e auxiliar a companhia a vender mais?

120 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


especial Ciências do consumo

Ane — À medida que uma empresa


cresce de tamanho, os seus desafios
também aumentam, em comple-
xidade. Na NET, os desafios são
superados após muito investimento
analítico. Para entender o consumo
passado e ajudar no desenho da
tendência, esse profissional precisa
conhecer metodologias científicas,
correlacionar diferentes fatores e
então testar hipóteses de maior inte-
resse. As análises que contemplam
informações de diferentes áreas da
NET, combinadas, tendem a trazer

divulgação
mais riqueza às recomendações e pa-
drões de ação. É a mistura de pesqui-
sa de mercado, análises estatísticas,
cruzamentos de dados internos, aná- Ane Lopes Tubenchlak, gerente de comunicação institucional da NET: ”Investimos
lise da situação do país e do mundo, em pesquisas e novas tecnologias, de acordo com as demandas do nosso público,
avaliação da concorrência nacional pois buscamos oferecer produtos cada vez mais personalizados”
e internacional aliados à experiên-
cia dos profissionais da área. Esses camos oferecer produtos cada vez off-line, o big data mining e a coleta,
aprendizados se acumulam e daí mais personalizados. Realizamos a análise e o uso de dados compor-
surgem as hipóteses e insights. Para um investimento consistente em tamentais influenciam a tomada de
tanto, o profissional deve ter perfil novas metodologias e frames analí- decisão do marketing da NET?
investigativo, resiliência e um toque ticos para captar e multiplicar mais
de criatividade. amplamente o comportamento do Ane — Desde o início de sua his-
consumidor. A neurociência nos aju- tória, a entrega dos produtos da
Revista da ESPM — Considerando a da a entender aspectos menos racio- NET é baseada em plataformas de
evolução de estudos nas áreas da neuro- nais em avalições de comunicação tecnologia de vanguarda com foco
ciência e da economia comportamental, da NET — quando todas as respostas no cliente, e não no sistema ou
quais são os principais desafios da NET racionais começam a ficar seme- na plataforma. Logo, o que mais
para entender o comportamento do lhantes, a neurociência nos ajuda a importa para nós é conhecer o com-
consumidor e atender às suas novas “enxergar” a esfera mais emocional, portamento e atender às necessi-
demandas? menos verbal. A economia compor- dades e expectativas desse cliente,
tamental, embora de maneira não dentro de cada um desses meios,
Ane — Os nossos produtos permitem formal, nos ajuda a testar opções e seja para transação, entrega de pro-
o desenvolvimento das pessoas por ordens das palavras em claims, me- dutos ou interação. Dessa forma,
meio da conectividade. Para nós, dindo qual tem mais capacidade de as ferramentas de big data, beha-
entender o comportamento do con- gerar venda, por exemplo. O desafio vior, análise de tráfego e testes de
sumidor e as suas novas demandas é descobrir maneiras de levantar as- usabilidade, com usuários reais,
é o grande desafio. Investimos em pectos não verbais do cliente. têm nos orientado desde a criação
pesquisas e novas tecnologias, de de novos produtos até a mudança
acordo com as necessidades e de- Revista da ESPM — Como as novas significativa em interfaces nessas
mandas do nosso público, pois bus- plataformas de interação on-line e plataformas digitais.

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 121


R e n ata F i g u e i r e d o | P e p s i Co

De salgadinho a Toddynho!
Na PepsiCo, todo o time de marketing é responsável por ser a “voz do consumidor” dentro
da companhia. “O objetivo é criar ações que gerem engajamento e aumentem a conexão dos
consumidores com as nossas marcas”, assegura a diretora de marketing, Renata Figueiredo

Revista da ESPM — Quais as prin- inesquecível, indo naquele mesmo mada de Brand Engagement, que é
cipais mudanças no comportamento momento, de jatinho, até a cidade responsável por buscar maneiras
dos consumidores, notadas pela Pepsi- de Itu, onde ocorreu o evento, re- diferenciadas de engajar, surpre-
Co, nos últimos meses? forçando o conceito de que Doritos ender e entreter o consumidor.
é para os fortes! Como não poderia Esse departamento trabalha em
Renata Figueiredo — Os consumi- faltar, dentro do festival havia um conjunto com o time de mídia e
dores estão cada vez mais multimí- espaço no qual o público pôde in- garante que os projetos sejam 360°.
dia e conectados. A velocidade e o teragir com a marca, participar de A área liderou várias ações, como o
fácil acesso à informação permitem desafios, além de atrações com per- Doritos Food Truck e a parceria de
um maior conhecimento sobre as sonagens lúdicos e performáticos Toddy com a Warner na promoção
marcas e as suas novidades, fatores circenses que atuavam de maneira #Cowzando no mundo de O Hobbit,
que se amplificam quando falamos itinerante em meio ao público. entre outras.
de marcas globais. Neste novo mo-
mento, para uma marca conseguir Revista da ESPM — Do ponto de Revista da ESPM — Que tipo de es-
se conectar com o target, ela não vista do branding, quais são as prin- tratégia a PepsiCo utiliza para que as
deve ser inerte, ela deve ir até onde cipais mudanças apresentadas no suas marcas continuem sendo deseja-
seus consumidores estão e de ma- marketing da companhia, por conta das pelos novos consumidores?
neira relevante. Doritos, por exem- do crescimento das novas mídias?
plo, patrocinou, no início do mês Renata — A Pepsico tem marcas
de maio, o festival Tomorrowland Renata — Na PepsiCo temos uma muito fortes, como Ruffles, Dori-
Brasil, um dos maiores eventos área de mídia que é responsável pe- tos, Cheetos, Toddy, Toddyn ho,
de música eletrônica do mundo. A las estratégias on-line e off-line das Quaker e Mabel. Para nós, o im-
marca esteve presente em diversos marcas. Nosso acompanhamento portante é que cada marca esteja
pontos de contato, sempre reforçan- das atividades nas redes sociais é próxima de seus consumidores,
do seu posicionamento. Antes do intenso, pois neste novo momento antecipando as suas necessidades
evento foi realizada uma promoção digital qualquer consumidor conse- e surpreendendo-os. Além do en-
com prêmios instantâneos, em que gue opinar e participar de todos os gajamento, as marcas têm trazido
os participantes foram convidados eventos e ações de nossas marcas, grandes inovações em produtos
a escrever o que imaginavam viver em qualquer lugar do mundo. Não como Toddynho em garrafa, Chee-
no festival. Os autores das dez me- podemos esquecer também de que tos Mix, Ruffles Extreme e Doritos
lhores histórias puderam viver três hoje não existe mais barreira entre Power, a lém do la nça mento da
dias incríveis no Tomorrowland o digital e o real. Assim, as inicia- batata Lay’s no Brasil. No caso de
Brasil. No primeiro dia do evento, tivas devem ser constr uídas de Cheetos Mix, os consumidores pu-
Doritos traduziu toda sua irreve- maneira integrada, considerando deram escolher um dos sabores que
rência ao propor a um consumidor todos os pontos de contato com o estariam no pacote e participar de
do Rio de Janeiro uma experiência consumidor. Temos uma área cha- um game com o personagem Ches-

122 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


especial Ciências do consumo

ter Cheetah. Os sabores de Ruffles


Extreme são os mais pedidos pelos
consumidores no nosso SAC. A em-
balagem de Lay’s foi desenvolvida,
exclusivamente, para o Brasil, com
base em aprendizados de pesquisa
de mercado. Ou seja, o mais impor-
tante é abrir os olhos e os ouvidos
para que os brasileiros participem
conosco da criação de nossas ini-
ciativas de marketing.

Revista da ESPM — Considerando


a evolução de estudos nas áreas da

divulgação
neurociência e da economia com-
portamental, quais são os principais
desafios da PepsiCo, do ponto de vista
das ciências do consumo? Renata Figueiredo, diretora de marketing da PepsiCo Brasil: ”O desafio é estar
próximo ao consumidor em vários momentos do seu dia e fazer com que ele
Renata — O grande desafio é estar se sinta único e perceba que a nossa mensagem é personalizada e dedicada a ele”
próximo ao consumidor em vários
momentos do seu dia, a fim de en- mações e os aprendizados sempre tica, para aumentar a relevância,
tender seu comportamento e suas serviram de base para a tomada e investigamos as mais recentes
motivações. Devemos fazer com de decisões. Cruzamos as especi- possibi l idades de prev isão nos
que ele se sinta único, e sinta que a ficidades de cada target ou cam- meios, para aumentar a audiência
nossa mensagem é personalizada pa n h a pa ra tor n a r a i nda m a is e acelerar a tomada de decisão, ba-
e dedicada a ele. Buscamos essa eficiente o próximo passo. Hoje, a seada não somente nos resultados
proximidade em diversos momen- diferença é a de que a difusão das do passado, mas também mirando
tos, já fizemos painéis v irtuais informações está mais dinâmica as tendências.
como gr upos de pesqu isa , com e rápida, o que permite prever e
frequência realizamos vivências analisar, previamente, o possível Revista da ESPM — Nesse cenário,
com os consumidores para experi- impacto dos diferentes caminhos qual é o papel que os novos especia-
mentar o dia a dia dessas pessoas projetados. Utilizamos os meios listas — os cientistas do consumo — já
e usamos a rede global da PepsiCo digitais como ambiente de teste desempenham na companhia?
para antecipar tendências e bus- de comportamento das criações
car sucessos no mundo. para determinar a estratégia no Renata — Hoje, no marketing da
off-line, criando um database por PepsiCo, todo o time é responsável
Revista da ESPM — Como as novas marca e perfil de consumidor para por ser a “voz do consumidor” na
plataformas de interação on-line e ot im izar a tática . Para au xi liar companhia. Buscamos entender
off-line, o big data mining e a coleta, nesse processo, criamos a clus- os hábitos e as necessidades dos
a análise e o uso de dados compor- terização de áreas de interesse nossos consumidores, em profun-
tamentais influenciam a tomada de por target para avaliar projetos e didade, para desenvolver ações e
decisão do marketing da PepsiCo? assumir a lguns territórios. Em- inovações que os engajem, aumen-
pregamos as novas ferramentas tando cada vez mais a sua conexão
Renata — A utilização das infor- e possibilidades como programá- com as marcas.

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 123


Ro n a l d o C e l e s t i n o | p o r t o s e g u r o

De olho no futuro, sempre!


Ronaldo Celestino, da Porto Seguro, utiliza as ciências do consumo para conhecer cada
vez mais a fundo os clientes da marca, com o objetivo de criar pacotes personalizados com
os produtos e serviços da companhia. “Trabalhamos para facilitar o dia a dia dos nossos
consumidores, proteger os seus bens e também a sua família.”

Revista da ESPM — Dados divul- pr i nc ipa i s mud a nça s que vêm que entrega, nada adiantará. Você
gados no início de maio pela compa- ocor re ndo no compor t a me nt o apenas desperdiçará verba ou, o
nhia, mostram que a Porto Seguro do consu m idor em todo o pa ís. que é pior, poderá “dar um tiro no
obteve um lucro líquido de R$ 231 mi- De maneira geral, o brasileiro se pé”, na medida em que os consu-
lhões no primeiro trimestre do ano, o tornou mais cético com relação ao midores notarem essa incoerên-
que representa um desempenho 50% que as empresas comunicam, atri- cia e começarem a se manifestar
superior ao resultado registrado no buindo maior peso para a opinião nas redes sociais.
mesmo período do ano anterior. Esse e a recomendação de outras pes-
bom desempenho está relacionado ao soas. Vimos uma potencialização Revista da ESPM — Do ponto de
crescimento de 8% da frota segurada do velho conhecido “boca a boca”, vista do branding, quais são as
(que atingiu 5,1 milhões de veículos) seja o consumidor recomendando, principais mudanças apresentadas
e o aumento de 23% no número de seja detratando as marcas, em fun- nas estratégias de comunicação
seguros residenciais — com 2,3 mi- ção do crescente uso das redes so- e marketing da Porto Seguro, por
lhões de residências asseguradas. ciais. Hoje, os consumidores estão conta do crescimento dessas novas
Outro destaque foi a área de negócios buscando não somente um produ- mídias?
financeiros e serviços, cujas receitas to de qualidade, mas também em-
trimestrais cresceram 27%, impulsio- presas que possuem valores com Ronaldo — Aqui, na Porto Seguro,
nadas principalmente pela evolução os quais eles se identifiquem, e até contamos com uma área especí-
das receitas de operações de crédito mesmo os ajudem a se expressar fica para cuidar da presença de
(cartão de crédito e financiamento), por meio desses produtos. nossa marca em todos os canais
que foram ampliadas em 34% no pe- eletrônicos.
ríodo. Assim, o número de cartões de Revista da ESPM — Como essas
crédito da Porto Seguro atingiu 1,7 mudanças têm interferido nos antigos Revista da ESPM — Como a com-
milhão de unidades, um acréscimo de conceitos de construção e defesa da panhia avalia e utiliza o trabalho
270 mil cartões. Diante desses núme- marca? desenvolvido por agências especia-
ros e do atual cenário da economia lizadas em análise de tendências de
brasileira, quais são as principais Ron a ldo — A ideia de que você consumo, como a Box 1824?
mudanças no comportamento dos pode i mpu l sion a r u m produt o
consumidores notadas pela Porto com u m pla no de comu n icação Ronaldo — Acreditamos ser um
Seguro, nos últimos meses? ou uma campanha brilhante, não importante trabalho para trazer
faz o menor sentido. Se você não provocações, reflexões e insights
Rona ldo Celest i no — Há a lgum tiver coerência entre discurso e não só para a área de marketing
tempo, temos acompa n hado as atitude, entre o que promete e o mas para toda a companhia.

124 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


especial Ciências do consumo

Revista da ESPM — Em sua opi-


nião, como um cientista do consumo
pode auxiliar empresas, como a Por-
to Seguro, a vender mais e melhor?

Rona ldo — Esse t ipo de profis-


siona l pode ajuda r a entender
mais a fundo o comportamento
do consumidor e as suas relações
com a empresa, de forma a trazer
provocações e insights para me-
lhorar a ex periência do cliente
com os nossos produtos e servi-
ços. Ao capturar rapidamente as
tendências e mudanças de com-
portamento, eles também podem

divulgação
apoiar a empresa no seu planeja-
mento estratégico. Por isso, esse
cientista do consumo precisa ser Ronaldo Celestino, gerente de marketing institucional da Porto Seguro: ”Esse
curioso, inquieto, ousado e estar profissional ajuda a entender o consumidor e as suas relações com a empresa, além
antenado aos últimos conceitos de trazer insights para melhorar a experiência desse cliente com os nossos serviços”
dessa área de conhecimento.
Ronaldo — Eles devem estar co- para facilitar o seu dia a dia, prote-
Revista da ESPM — A Porto Seguro nectados aos valores da empresa, ger os seus bens e a sua família.
tem utilizado as novas mídias para que por sua vez deve estar conec-
a realização de diversas campanhas, tada aos valores da sociedade. To- Revista da ESPM — Como as no-
como a divulgação do movimento dos fazemos parte de um mesmo vas plataformas de interação on-line
“Trânsito mais gentil”, que a marca “ecossistema”, que é interdepen- e off-line, o big data mining e a
lançou em 2010, depois de perceber dente e precisa ser sustentável. coleta, a análise e o uso de dados
em pesquisas comportamentais que comportamentais inf luenciam a
o trânsito é um ambiente que tem Revista da ESPM — Considerando tomada de decisão do marketing
uma grande capacidade de estimular a evolução de estudos nas áreas da da Porto Seguro?
o sentimento de raiva nas pessoas. neurociência e da economia com-
Desde então, diversas ações foram portamental, quais são os principais Rona ldo — Busca mos apoio na
criadas para divulgar a gentileza no desafios da Porto Seguro para enten- análise de dados estruturados e
trânsito. Outra iniciativa foi o des- der o comportamento do consumidor não estruturados para aperfeiçoar
conto de 7% no valor do seguro de e atender às suas novas demandas? a experiência do atendimento e
automóvel para aqueles motoristas do serviço que prestamos, identi-
que não possuem pontos na carteira Ronaldo — Nosso desafio é conhe- ficar quais os perfis de clientes e
de habilitação. Tomando como base cer cada vez mais a fundo os clien- produtos são mais correlaciona-
essas iniciativas, em sua opinião, que tes, de maneira a poder oferecer, dos, e também saber onde estão
objetivos e responsabilidades a comu- por meio dos nossos corretores, as oportunidades de desenvolvi-
nicação e o marketing da companhia um pacote persona lizado, feito mento de novos produtos, servi-
devem assumir no mundo de hoje? sob medida, de produtos e serviços ços e benefícios.

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 125


F l áv i a A lt h e m a n | V i a Va r e j o

Quer pagar quanto?


Traduzir dados em conhecimento, respondendo às perguntas por meio de aprendizados e
recomendações relevantes, viáveis e práticos para o crescimento ou a recuperação dos resultados
da empresa. Esse deve ser o papel do cientista do consumo, segundo Flávia Altheman, da Via Varejo

Revista da ESPM — Quais são as prin- ele é uma ferramenta que permite a tender os movimentos, mas também
cipais mudanças no comportamento dos milhares de pessoas se comunicarem para nos antecipar e nos preparar para
consumidores, notadas pela Via Varejo? ao mesmo tempo. Cada indivíduo as mudanças. O mundo está muito
pode filmar, tirar fotos e comparti- dinâmico e os acontecimentos, que
Flávia Altheman — No primeiro tri- lhar em tempo real, assistir a filmes e demoravam décadas para influenciar,
mestre do ano, notamos que a busca programas de TV, ouvir música, jogar hoje influenciam em poucas horas.
por preço ganhou mais relevância e até verificar as condições do seu
no processo de decisão da compra. A corpo com as tecnologias “vestíveis” Revista da ESPM — Em sua opinião,
Via Varejo enxerga o momento como (wearables). Esses recursos geram no- como um cientista do consumo pode
oportunidade para reforçar o otimis- vos comportamentos (como utilizar auxiliar a companhia?
mo no Brasil e nos brasileiros, con- o celular como monitor do sono e des-
tribuir com a mudança de cenário e pertador) e potencializam comporta- Flávia — A neurociência e o comporta-
continuar com a evolução do negócio. mentos antigos (como compartilhar mento de consumo são duas discipli-
Assim, priorizamos entregar a nossa o prato do restaurante com amigos). nas importantes para qualquer varejo.
experiência de marca com consistên- Adaptamos as estratégias de marke- Cada indivíduo tem um processo de
cia e alinhada aos objetivos do negó- ting e mídia conforme o público. decisão, percorre uma jornada e é
cio. Acompanhamos os consumidores Sabemos que a atenção das pessoas influenciado de forma diferente pelas
de perto por meio de todos os nossos está cada vez mais disputada com mensagens que recebe durante a es-
canais (por exemplo: lojas físicas, loja diferentes formatos de comunicação. colha do produto. Logo, o cientista de
virtual, pós-venda, SAC, redes sociais, Cabe a nós proporcionar a mensagem consumo será capaz de entender mais
entre outros), realizamos pesquisas da forma mais relevante possível. profundamente esse comportamento,
de mercado e mapeamento de dados provando, por meio de indicadores
secundários, além de analisar o ce- Revista da ESPM — Como o grupo Via reais, como sentimentos, expressões
nário no qual atuamos e onde ainda Varejo avalia e utiliza o trabalho desen- e outros elementos, influenciam na
queremos estar. volvido por agências especializadas em compra. Para que alcance os objeti-
análise de tendências de consumo? vos, é essencial unir a ciência com o
Revista da ESPM — Do ponto de vista conhecimento do negócio. É preciso
do branding, o que mudou na área de Flávia — Temos diversos parceiros unir teoria e prática.
marketing da Via Varejo, por conta do para análise de tendências no mun-
crescimento de novas mídias? do e no Brasil. Um deles é a nossa Revista da ESPM — Que objetivos a co-
agência de publicidade Y&R, que tem municação e o marketing da companhia
Flávia — O surgimento de novas mí- ferramentas e recursos no mundo devem assumir no mundo de hoje?
dias acompanha a evolução da tec- todo para troca de conhecimento e
nologia. Por exemplo, há 20 anos, o entendimento das macro e microten- Flávia — Devem assumir o papel de
celular era utilizado como meio de co- dências. Olhar para fora do negócio entregar relevância ao consumidor.
municação entre duas pessoas. Hoje, é fundamental, não apenas para en- Como citamos anteriormente, há uma

126 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


especial Ciências do consumo

disputa muito grande pela atenção e,


consequentemente, pelo tempo das
pessoas. Se o conteúdo da mensagem,
a forma e o contexto não gerarem
engajamento, encantamento ou ação
nos consumidores, precisamos ade-
quar ou traçar novas rotas. A comu-
nicação e o marketing não devem ter
o único papel de gerar resultados ao
negócio, precisam contribuir dire-
tamente na construção de marca e
sustentabilidade com consistência,
relevância, gerando relacionamento
com o consumidor.

divulgação
Revista da ESPM — Considerando a
evolução de estudos nas áreas da neuro-
ciência e da economia comportamental, Flávia Altheman, diretora-executiva de marketing e inteligência de mercado da Via
quais são os principais desafios do grupo Varejo, que administra a Casas Bahia e o Pontofrio: ”O desafio é formar profissionais
Via Varejo? com capacidade para enxergar oportunidades no meio de tanta informação”

Flávia — Hoje, a informação e as tecno- Revista da ESPM — Qual é o papel que Revista da ESPM — O que as grandes
logias estão mais acessíveis, possibili- os cientistas do consumo já desempe- empresas — como a Via Varejo — devem
tando o entendimento do consumidor nham na companhia? fazer para proteger o patrimônio repre-
de uma forma mais holística. Conse- sentado por suas marcas, até que os bons
guimos analisar comportamentos Flávia — O cientista de consumo tem ventos voltem a soprar?
internos (por exemplo, histórico de de entender as diversas fontes de
compra), e externos (como a atuação informação dentro e fora da empresa Flávia — O básico do nosso negócio é
nas mídias sociais), para traçar o (como dados de vendas e de clientes, vender e prestar serviços. Se o cliente
perfil do cliente. Por outro lado, essa performance da concorrência, estu- vem comprar um refrigerador, por
enxurrada de informação precisa ser dos sociodemográficos, pesquisas de exemplo, espera que encontre o pro-
processada, analisada e organizada mercado, birôs de informação, con- duto, seja bem atendido, tenha formas
para que seja aplicável ao negócio. Se juntura); ter conhecimento técnico de pagamento que se ajustem às suas
antes analisar dados era uma disci- sobre o processo e as metodologias de necessidades, a entrega seja feita
plina de economistas, engenheiros de captação dos dados; ser especialista com qualidade e no prazo, conforme
software e matemáticos, hoje passa a em comportamento humano; e ter ha- o combinado. Isso é fazer o básico
ser uma disciplina de todas as áreas bilidade para analisar, correlacionar e bem feito. No cenário de incertezas,
estratégicas da empresa. Um dos interpretar essa massa de informação. o cliente tem de se sentir seguro de
desafios é formar novas gerações de O papel desse especialista é traduzir que está fazendo o melhor negócio
profissionais com a mentalidade de dados em conhecimento aplicado e fique, no mínimo, satisfeito com a
enxergar oportunidades no meio de para o negócio, respondendo às per- experiência de compra. Por outro lado,
tanta informação, gerar conhecimen- guntas por meio de aprendizados e é um momento de agir com otimismo,
to e trazer iniciativas que se adaptem recomendações relevantes, viáveis e acreditando no país e nos brasileiros,
aos objetivos do negócio e às deman- práticos para o crescimento ou a re- fazendo o melhor possível hoje, para
das de mercado e do consumidor. cuperação dos resultados da empresa. buscar a prosperidade do negócio.

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 127


entrevista | Julio Ribeiro

Julio Ribeiro
Formação: cursou direito na
Universidade de São Paulo. Fez business
management, na Harvard Business School,
e criatividade, na New York University
Atuação: presidente da Julio Ribeiro
Planejamento de Empresas (JRP)
Carreira: em 1980, fundou a Talent,
agência responsável por campanhas
de sucesso como ”Não é assim uma
Brastemp”, ”Bonita camisa, Fernandinho”
e ”Pergunta lá no posto Ipiranga”, entre
outras. É considerado, pelo mercado
publicitário, pioneiro e referência na área
de planejamento. É autor de cinco livros
sobre técnicas de publicidade e marketing.
No início de 2015, deixou a Talent para
fundar a JRP

128 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


O binômio do consumo

D
epois de 35 anos à frente da Talent, o publicitário Julio Ribeiro tem convicções fir-
mes sobre as forças que movem a roda do consumo. São só duas — porém com poder
para alicerçar toda decisão de compra: necessidade e impulso. “Os outros fatores são
sempre consequências de um desses dois pilares”, observa. “Se você não partir do
simples, não chegará aos impulsos das pessoas.” Hoje à frente da JRP, uma agência de planeja-
mento de empresas, Julio oferece o mais veemente contraponto ao entusiasmo com abordagens
científicas aplicadas ao marketing: “As palavras são inventadas de graça. Acho uma estupidez
falar em ciência para o consumo”, explica o fundador da consultoria voltada para a renovação de
empresas que têm dificuldade em entender que o sucesso depende mais da qualidade do relacio-
namento entre patrões, empregados e clientes do que dos produtos que ela vende.
Advogado de formação, Julio estudou criatividade nos negócios na New York University
e administração de empresas na Harvard Business School. Em 1980, fundou a Talent, onde
calcula ter atendido mais de cem empresas — entre elas Ipiranga, banco Santander, NET,
Tigre e Brastemp —, tendo sido responsável pela criação de um dos slogans mais famosos da
publicidade brasileira. A campanha “Brastemp não tem comparação” marcou uma geração,
e a frase “Não é assim uma Brastemp” caiu na boca do povo e virou bordão nacional. Escre-
veu três livros sobre propaganda, um a respeito do que batizou de “marketing de atitude” e
outro sobre gestão, lançado no ano passado com o título Dá para consertar? Empresas que iam
muito bem de repente passaram a ir mal (Editora Dash).
Apesar do recuo nas vendas por conta do cenário econômico adverso, Julio não vê
maiores riscos para as marcas líderes. “Não acredito que crises financeiras levem as
pessoas a trocar uma marca boa por uma marca mambembe”, nota. O risco, para ele, está
mais relacionado à qualidade dos serviços prestados do que ao desempenho da economia:
“É surpreendente a quantidade de gente que deixa de comprar porque é mal atendida”.
Não por acaso, a empresa de planejamento, que ele inaugurou na virada do ano, parte
da premissa de que as pessoas são carentes. Você pode dizer que isso é pura psicologia.
Só não diga ao Julio Ribeiro que esta é uma abordagem científica dos consumidores e do
marketing. Ou ele responderá sorrindo: “Psicologia não é ciência!”.

Por Alexandre Teixeira


Fotos: Divulgação

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 129


entrevista | Julio Ribeiro

Revista da ESPM — No momento tante os mecanismos dos shopping pulso de comprar é a necessidade.
em que agências e empresas sofis- centers e cadeias de lojas durante Nasce um bebê na sua família. Ele
ticam a abordagem de marketing, os mais de 30 anos em que cuidei da tem frio? É preciso comprar roupa.
trazendo de pesquisas etnográficas Talent. A primeira providência que São necessidades que você tem de
a neurociência para o dia a dia da eu tomava, se surgia um problema, atender.
comunicação, o Brasil volta a conviver era conversar com o cliente e visitar
com inflação alta, recessão e desem- os outlets onde ele vendia. Revista da ESPM — Seu ponto seria
prego. Vai ser preciso voltar ao básico? que talvez essa ânsia de trazer neuro-
Revista da ESPM — O que aprendeu ciência, antropologia e novas aborda-
Julio Ribeiro — Eu sempre acreditei nesse corpo a corpo com o cliente? gens para a compreensão do consumo
que consumo se baseia em apenas e do marketing pode estar fugindo do
dois fatores. O primeiro é a neces- Julio — A decisão de não comprar essencial?
sidade: na hora em que teu terno pode ser decorrente de ignorância
rasgar, você vai precisar comprar [do consumidor sobre o produto], Julio — A questão é que se você
outro. O segundo é o impulso. Você de defeito do produto ou do preço. não partir do simples, não chegará
vê um carro, começa a se interessar O desejo de comprar é uma parte aos impulsos das pessoas. Mas, se
por ele e compra. Depois vai pensar do teu organismo. Você tem desejos estudar a evolução da sociedade,
em como pagar. Desde que o mundo de muitos tipos: de viajar, desejo descobrirá que a compra é sempre
é mundo, basicamente todas as sexual, de possuir. E tem as neces- por necessidades ou por impulso.
compras se baseiam nesses dois sidades: quando você casa, precisa Depois de 30 anos, já atendi todas
elementos. Minha mulher vai ao su- mobiliar a sua casa. Nunca encon- as empresas que você possa ima-
permercado duas vezes por semana, trei uma terceira razão para alguém ginar: General Motors, Ipiranga,
porque tem gente que precisa comer executar uma compra. Essa é uma Brastemp... E percebi que todo o tipo
lá em casa. Agora, ela tem impulsos. simplificação que, de certa forma, de produto se vende por uma dessas
Ela vai ver uma coisa linda para a desmistifica essas preocupações duas razões. Cada uma dessas ra-
casa e pode acabar comprando. Fora psicológicas e sociais de que o ho- zões tem subdivisões, mas se você
desses dois fatores, ainda não des- mem compra por se sentir inferiori- não entender a razão básica por trás
cobri nenhum outro que estimule a zado ou algo assim. Eu não acredito dessas coisas, começa a flutuar sem
pessoa às compras. nesse tipo de coisa. nenhuma amarração. Eu vejo a pro-
paganda dos automóveis. Ela está
Revista da ESPM — Você resumiria Revista da ESPM — Essa seria uma limitada apenas a mostrar o carro.
a motivação do consumidor ao binô- regra imutável do consumo, à prova de Não tem razão para você comprar
mio necessidade e impulso? inovações? que não seja ver o carro.

Julio — Sim, porque todos os outros Julio — As pessoas sempre fizeram Revista da ESPM — Qual é o papel
fatores que determinam a compra o fio para fazer o tecido e, com ele, da pesquisa na sua abordagem do
são sempre consequências de uma fazer a roupa, porque as pessoas consumo e do marketing?
dessas duas coisas. Eu estudei bas- precisam se vestir. O primeiro im-
Julio — Fiz uma pesquisa para a
Ford. Fui a um enorme revendedor
Eu sempre acreditei que consumo se baseia em Ford, com um salão lindo, e fiquei
lá uma tarde. Eu não vi nenhum
apenas dois fatores. O primeiro é a necessidade: vendedor levantar da mesa para
na hora em que teu terno rasgar, você vai precisar atender quem entrava. Não iam
comprar outro. O segundo é o impulso vender mesmo. A necessidade de

130 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


atenção é ignorada. Essa empresa
de planejamento que eu abri agora
parte da ideia de que as pessoas são
carentes. Empregados de uma em-
presa são carentes de admiração,
mas uma boa parte dos patrões não
liga. Quem liga tem empresas de
sucesso. Um exemplo é o Magazine
Luiza, que cresce porque as pessoas
ali gostam da Luiza Helena Tra-
jano, a presidente da companhia.
Ela se interessa mesmo pelos seus
funcionários.

fotos: divulgação
Revista da ESPM — Como você ana-
lisou o comportamento do consumidor
brasileiro nos últimos anos? Durante o
governo Lula, vivemos um processo de
aumento da autoestima do consumi- Criada por Julio Ribeiro em 1991, a campanha ”Brastemp não tem comparação”
dor. Uma parcela dos brasileiros que marcou uma geração, e a frase ”Não é assim uma Brastemp” caiu na boca do povo
estava fora do mercado de consumo
conseguiu entrar, e agora temos uma
situação econômica que dá um choque Revista da ESPM — Entendo, mas um restaurante de classe A, e ele
de realidade em parte dessas pessoas. as pessoas estão com menos poder estará lotado. Já as pessoas de classe
aquisitivo neste ano... C, quando vão ao supermercado hoje
Julio — Não acho que o Lula tenha em dia, compram menos do que an-
feito o pessoal comprar. Ele deu o Julio — O impulso continua igual. tes porque têm menos dinheiro.
dinheiro e as pessoas, por impulso A necessidade continua igual. O
ou por necessidade, compraram. En- dinheiro é que mudou. Porque o PT Revista da ESPM — O que podem
tão, houve crescimento. A pessoa, nunca acreditou na sabedoria. A fazer as marcas construídas com anos
primeiro, tem a necessidade básica razão para as pessoas comprarem de investimento e de trabalho para
de sobrevivência. Você precisa co- é a necessidade. Agora, se a pessoa evitar que, numa crise como a atual,
mer duas vezes por dia, pelo menos. não tem os meios, é impossível com- o consumidor mude para uma marca
Você precisa dormir oito horas. Se prar... A classe D diminuiu muito no mais barata?
tiver uma mulher, tem necessidade Brasil graças ao PT. Mas isso parou,
de ter uma troca afetiva com ela, e agora o pessoal que tinha dinheiro Julio — Eu não acho que as crises
para a tua relação permanecer viva. já não tem. fina nceiras levem as pessoas a
Isso é necessidade. Mas no dia em passa r de u ma ma rca boa pa ra
que vê uma roupa, um carro ou uma Revista da ESPM — Na sua avalia- uma marca mambembe. A forma
casa que te dá vontade de comprar, ção, quem é mais afetado pela piora como você se re lacion a com o
você tem um impulso. E você pode no cenário econômico? consu m idor é que deter m i na a
ou não pode comprar. Se optar por não venda. Eu estou lendo o livro
adquirir o bem, você vai procurar Julio — Geralmente, uma crise como Planejamento estratégico digital
uma forma de financiamento. Não a que estamos enfrentando é domi- (Editora Brasport, 2009), escrito
há outra razão. nante na classe C. Você vai procurar por Felipe Morais, que diz ter com-

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 131


entrevista | Julio Ribeiro

prado um Volkswagen, mas nunca a compra é realizada em função para quem não vinha investindo o
ninguém da Volks ligou para lhe do produto, do preço, do poder de bastante em serviço ao cliente ou ser-
dar parabéns no dia do seu aniver- compra, do interesse da pessoa que viço ao consumidor se contrapor ao
sário. Da mesma forma, nenhum vende em vender. É surpreendente cenário econômico?
fabricante das roupas que ele com- a quantidade de gente que deixa de
pra liga para ele. A qualidade do comprar porque é mal atendida. Eu Julio — Estaremos atravessando até
atendimento é que determina a fiz estudos sobre isso para diversos outubro ou novembro um período
venda. A rede Magazine Luiza, por clientes da Talent. de redução do poder de compra das
exemplo, está vendendo menos, pessoas, porque os impostos au-
mas continua vendendo. Não acre- Revista da ESPM — Você nunca se mentaram, a conta d’água aumen-
dito que as crises tragam como interessou por usar psicologia e ciên- tou 40%, a conta de luz deve ficar
consequência a diminuição do que cia no marketing? 25% mais cara, e 70 mil pessoas fo-
as pessoas consomem . Elas até ram demitidas na indústria automo-
podem consumir outros produtos. Julio — Psicologia não é ciência! É ci- bilística. Então, você tem elementos
Mas não deixam de comprar. ência quando tratada como ciência. reais de diminuição da massa de
dinheiro disposta ao consumo. As
Revista da ESPM — Você citou o Revista da ESPM — O.k., mas como vendas caem. Mas não a motivação
livro Planejamento estratégico digi- a psicologia pode ser útil para enten- das pessoas em consumir.
tal. Junto com esta onda de trazer de der a cabeça do consumidor?
neurociência a antropologia para o Revista da ESPM — Mas será que
mundo do marketing, vem todo esse Julio — Estou lendo um livro muito bons serviços podem ajudar as empre-
novo mundo do marketing digital. interessante. Chama-se Love thy cus- sas a reduzir perdas de venda?
Nessa área, é possível afirmar que tomer, de Rick Brinkman e Rick Kirs-
existe mais espaço para o uso da ciên- chner (Editora McGraw-Hill, 2005). Julio — Se o cara não tem o dinheiro,
cia ou não? Nele, os autores questionam o que ele não vai comprar. Vamos ima-
os consumidores realmente querem ginar o Brasil de dois anos atrás,
Julio — As palavras são inventadas e cita um estudo feito para saber por quando o dinheiro era abundante e
de graça. Eu, pessoalmente, acho que as pessoas mudam de fornece- o índice de desemprego era 4%. As
uma estupidez fa lar em ciência dor. Você encontra números assim: pessoas tinham a opção de comprar
para o consumo. O consumo é de- 1% delas morre, 5% mudam por in- ou não. A principal razão para não
terminado pela necessidade e pelo fluência de amigos, 9% preferem um comprar era o serviço da loja ou da
impulso. Você até pode estudar as concorrente, 16% já não gostam dos internet. Na crise, você vai vender
razões pelas quais as pessoas têm produtos ofertados. Mas 68% sentem o máximo possível se der atenção
impulso, mas aí já sai da área do que o fornecedor está desinteressa- para o consumidor.
marketing. Entra nas áreas de ciên- do. Aí é que está o ponto!
cias, fisiologia etc. Você usa a ciên- Revista da ESPM — Esta perda de
cia para fazer teorias sobre consu- Revista da ESPM — Será que há poder aquisitivo da classe C afeta mais
mo? Eu acho isso um erro... Porque uma oportunidade neste momento as marcas fortes, com uma construção
de seu posicionamento bem estrutura-
da? Favorece as marcas de guerrilha?
Não acredito que as crises tragam como consequência
Ju l io — Não existem marcas de
a diminuição do que as pessoas consomem. Elas até guerrilha. Você entra num maga-
podem consumir outros produtos. O que você corta em zine e vê que as geladeiras variam
primeiro lugar é o chantili do bolo. Mas o bolo está lá pouco. Tem uma um pouco mais

132 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


divulgação
Hoje, a propaganda dos automóveis, por exemplo, está limitada apenas a mostrar o automóvel. Não tem razão
para você comprar que não seja ver os atributos do carro

cara; uma um pouco mais barata. pessoas continua. As pessoas con- Revista da ESPM — Você diria que
Mas nenhuma custa quatro vezes tinuam comprando. As redes de se pode falar no surgimento de novos
o preço da outra. As pessoas veem supermercados estão vendendo perfis de consumidores?
o produto, gostam e, se tiverem di- menos, mas continuam vendendo.
nheiro, compram. O Brasil ainda é uma grande po- Julio — Lógico. Eles são jovens e
tência econômica. criados dentro de uma nova cultura.
Revista da ESPM — O consumidor, Você, quando era criança, não tinha
diante desse aperto, passaria a com- Revista da ESPM — E o consumidor computador para aprender na escola.
prar o mesmo produto de uma marca jovem? Tem se falado muito sobre Hoje, toda escola tem computador.
mais barata? Ou ele compra com me- o poder que o jovem tem agora na Quando se emerge num universo
nos frequência, mas é fiel à marca que construção das marcas. Tem alguma diferente, as reações são diferen-
já conhece? novidade nisso, ou o jovem cumpre o tes. Meus netos, por exemplo. Cada
papel de sempre? um tem um computador. Eles têm
Julio — Quando a crise vem, o que iPhones e se comunicam com uma
você corta em primeiro lugar é o Julio — Tem uma coisa nova, que é a multidão de pessoas. É óbvio que
chantili do bolo. Mas o bolo está internet. É impossível ter uma dis- o comportamento deles é influen-
lá. Há segmentos que perderam seminação tão grande de um novo ciado. Novas mídias geram novos
parte substancial de seus clien- meio e esse meio não ter influência impulsos. Há mudanças no compor-
tes, mas o consu mo básico das direta na venda de produtos. tamento, mas não na motivação.

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 133


consumo

Classe C...
de contida!
Composta por 110 milhões de pessoas,
que juntas movimentam R$ 1,35 trilhão
por ano, a nova classe média brasileira
está mais madura e exigente dos seus
direitos, porém frustrada com os rumos
da economia nacional
Por Renato Meirelles

134 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


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maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 135


Consumo

N
os últimos anos, o Brasil sofreu uma das chamamos de pesquisa etnográfica, aquele estudo no
mais profundas mudanças da sua história. qual os nossos pesquisadores — na maioria sociólogos
Deixou de ser um país com uma estrutura e antropólogos — vão morar por um determinado tempo
de pirâmide social — com a população mais na casa dessas famílias.
concentrada na base da pirâmide — e se transformou em Numa dessas pesquisas fiquei uma semana morando
um país com uma estrutura de losango social, ou seja, na casa de uma família, na zona leste de São Paulo, que
com a maioria da população localizada no centro da era chefiada por uma mulher. Só assim pude começar
figura que representa a distribuição econômica. Com a entender o que e como esse público consome. Fui
mais poder aquisitivo, forte processo de distribuição de muito bem recebido por essa família, que morava em
renda, ganho real do salário-mínimo e mais geração de um apartamento de 39 metros quadrados. Logo nos pri-
emprego, milhões de brasileiros saíram da pobreza e o meiros dias, percebi que eles demonstravam certo dis-
país viu nascer o que se convencionou chamar de “nova tanciamento, mas isso mudou quando repeti o prato de
classe média” ou “nova classe C”, então protagonista de comida pela primeira vez. Depois disso, vi uma sensa-
um mercado interno crescente. No Data Popular, ins- ção de alívio nos rostos de todo mundo. Imediatamente,
tituto de pesquisa pioneiro em estudar essa “fatia” da a dona da casa disse que estava aliviada, pois achava
população, utilizamos um critério econômico que clas- que eu não tinha gostado do tempero da comida que
sifica como classe média famílias com renda per capita ela preparava com muito carinho. Já o marido dispa-
entre R$ 338 e R$ 1.184. Não se trata de classe social, é rou: “Achei que você tinha pensado que eu era pobre e
essencialmente uma classificação econômica. que não tinha condições de te oferecer dois pratos de
Para entender a classe média, é preciso também comida”. Naquele momento passei a entender que o
entender a diferença entre os bancarizados e os não fato de poder oferecer é um valor para essa nova classe
bancarizados. Graças ao aumento do emprego formal, média. O prato cheio e a fartura são valores simbólicos
o Brasil passou a ter aumento gigantesco de pessoas que evidenciam a melhora da qualidade de vida que
bancarizadas. Hoje, mais da metade da população (e eles tiveram nos últimos anos.
da classe média) possui conta corrente ou poupança Inquieto, sentia que precisava entender mais sobre
ativas. Mais brasileiros com conta em banco significa aquela realidade, tão diferente da minha. Sou filho de
mais pessoas com acesso ao crédito, por exemplo. Con- psicólogos e faço parte da terceira geração de univer-
tudo, mesmo diante desse cenário promissor, ainda sitários da minha família. Como sou apaixonado por
há outra parcela significativa de brasileiros que não gente e por histórias que têm o poder de me fascinar, fui
é atendida pelos bancos e movimenta mais de R$ 600 vivenciar a realidade de outra família da classe C. Nessa
bilhões por ano. É muito dinheiro para ficar guardado outra pesquisa, descobri que, muitas vezes, consumir
“debaixo do colchão”! é um investimento para o desenvolvimento da família.
Sabemos que o consumo das famílias é sempre o ele- Isso fica mais claro quando uma mãe compra um com-
mento do PIB que mais cresce. Mas não dá para falar de putador para o filho, sonhando com a chance de ter o
consumo sem explicar qual o significado de consumo primeiro doutor da família. Em muitos casos, consumir
para a nova classe média. E esse entendimento só é pos- significa proporcionar mais condições para a melhora
sível quando moramos na casa dessas pessoas. No Data da qualidade de vida da família.
Popular, tive o privilégio de fazer algumas vezes o que Nessa minha busca por conhecer de perto as neces-
sidades das famílias mais pobres, perguntei a uma
dona de casa, que estava radiante por ter comprado
Se a classe média brasileira formasse sua primeira máquina de lavar roupa, se ela tinha feito
as contas para saber o quanto de juros estava pagando
um país, estaria no G20 do consumo a mais ao parcelar a compra no carnê. Muito segura,
mundial. A classe média (ou classe C) ela respondeu que sabia dessa diferença. Não conven-
não é mais um nicho de mercado cido da resposta, questionei se não era melhor ela ter

136 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


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A classe C não está gastando menos. Está comprando mais fácil compreender e atuar nessa revolução de
menos, porque não consegue comprar o que comprava consumo que nosso país tem vivido nos últimos anos.
há seis meses com o mesmo dinheiro. Exigente dos seus Hoje essa fatia da população brasileira movimenta
direitos, ela está frustrada com os rumos da economia
R$ 1,35 trilhão por ano e é formada por mais de 110
milhões de pessoas. Se a classe média brasileira for-
guardado o dinheiro e ter comprado o eletrodomés- masse um país, estaria no G20 do consumo mundial.
tico à vista. Para a minha surpresa, ela me encarou e Estou dizendo isso para deixar claro que a classe
contestou: “Seu Renato, o senhor, com essa carinha média (ou classe C) não é mais um nicho de mercado.
de playboy, nunca deve ter lavado roupa no tanque. Se É uma necessidade estratégica para toda empresa que
você tivesse lavado roupa no tanque uma vez na vida, deseja crescer e desenvolver modelos de negócios que
você ia entender por que eu não vou esperar dois anos busquem a liderança de mercado. Ninguém é líder no
para comprar minha máquina de lavar. Eu preciso dela Brasil se não for líder na classe C.
agora”. Só assim eu entendi que ela estava disposta a Com mais poder aquisitivo, esse público passou a ter
pagar mais caro pela máquina porque não precisaria acesso a bens antes exclusivos da elite. Como exemplo
mais desperdiçar seu tempo, passando duas horas por desse ingresso em novas categorias de consumo, pode-
dia lavando a roupa no tanque. Quem sou eu para dizer mos citar as viagens de lazer — só no ano passado mais
que ela está errada? de dez milhões de brasileiros viajaram de avião pela pri-
Quando entendemos que para a classe média con- meira vez. Isso nos leva a ter muito cuidado com o senso
sumo e consumismo são conceitos diferentes, fica comum, que muitas vezes pode nos direcionar ao erro.

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 137


Consumo

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Para não abrir mão do que conquistou até agora, esse público fazem parte do consumo diário, como embutidos, iogur-
compra produtos de marcas mais baratas e deixa de adquirir tes e refrigerantes, e reduz a quantidade dos produtos.
alimentos supérfluos que não fazem parte do consumo O consumidor da classe C não está gastando menos.
diário, como embutidos, iogurtes e refrigerantes
Está comprando menos, porque não consegue comprar
o que comprava há seis meses com a mesma quantidade
Por outro lado, tenho observado uma nova mudança de dinheiro. E para quem não está disposto a cortar os
no padrão de consumo dessa nova classe média, que gastos em época de inflação, a saída é fazer bicos para
está mais madura e exigente dos seus direitos, porém ter uma renda extra.
frustrada com os rumos da economia. Vejo um consu- Enxergo claramente que o Brasil vive hoje uma crise de
midor mais cauteloso e preocupado com a alta dos pre- perspectiva, de confiança. Para além da crise econômica,
ços dos produtos. O atual cenário de instabilidade eco- a preocupação coletiva é não saber para onde o Brasil vai
nômica faz com que o consumidor fique mais contido num futuro próximo. O que me deixa mais otimista é saber
e coloque mais o pé no freio na hora de comprar. Para a da capacidade da população de se virar em momentos de
classe média, crise não é exceção, é regra. Muitos pas- incertezas e do fato de não abrir mão de alcançar os sonhos
saram fome e hoje buscam diversas estratégias para que estão ao alcance dos olhos e das mãos.
enfrentar este atual momento com medidas próprias.
Para não abrir mão do que conquistou até agora em
termos de consumo, compra produtos de marcas mais Renato Meirelles
baratas, deixa de adquirir alimentos supérfluos que não Presidente do instituto de pesquisa Data Popular

138 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


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informações: espm.br/pos
Comportamento

A vovó não é mais vovozinha:


o preconceito e a nova cara
da terceira idade
Hoje, no conceito de terceira idade, os 70 são os novos 50, e a vovó tem namorada.
Diferentemente de outras épocas, quando rígidas normas sociais ditavam os modos de
ser em cada idade, o embaralhamento de referências resulta em arranjos identitários
diversos e transitórios. Ainda assim, o preconceito contra os mais velhos existe e é grande
Por Gisela G. S. Castro

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maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 141


Comportamento

C
om o envelhecimento da população mundial, velhice uma experiência multifacetada e uma categoria
o debate sobre a velhice passa a ser essen- de referência dúbia e imprecisa. É um equívoco supor que
cial. Mesmo no Brasil, tradicionalmente esteja atrelada a uma suposta cronologia fixa de marca-
considerado um país jovem, a representa- dores etários. De modo semelhante, é ingênuo tomá-la
ção gráfica da distribuição da população por idade já não como um fenômeno natural decorrente da inexorável
configura uma pirâmide com ampla base de recém-nas- passagem dos anos no decurso da vida. Para além de
cidos, crianças e jovens e percentuais decrescentes de suas determinações temporais e biológicas, a velhice é
adultos e idosos. Motivado pelo desenvolvimento social uma construção sociocultural marcada por uma série
do país, o progressivo amadurecimento da nossa popu- de fatores de ordem econômica, familiar, de gênero, de
lação resulta da conjugação entre a expressiva redução estilo de vida, para citar apenas algumas variáveis dessa
nas taxas de natalidade e de mortalidade infantil, aliada delicada construção. Nesse contexto do envelhecimento
ao significativo aumento da longevidade. das populações em todo o mundo, é mais do que neces-
Os dados referentes ao tempo médio de vida do brasileiro sário reconhecer a dimensão sociocultural da velhice.
demonstram um acréscimo superior a 11 anos entre 1980 e Não há consenso sobre quando exatamente começa-
2013. Pelas projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e mos a ser classificados como velhos. O Estatuto do Idoso
Estatística (IBGE), em poucas décadas teremos um percen- em vigor trata dos direitos dos brasileiros em idade igual
tual de idosos no Brasil semelhante ao do Japão, país que ou superior a 60 anos. Nossa Previdência Social concede
hoje possui o maior contingente de velhos em sua população. aposentadoria para homens a partir de 65 anos e para
Diante desse cenário em transformação, vale a pena refle- as mulheres com 60 anos ou mais. A definição desses
tir sobre a velhice para em seguida discutir o preconceito parâmetros motiva permanentes e renhidas disputas.
acionado pelos estereótipos negativos associados ao velho. Evidentemente, a idade se articula com outras catego-
Em A velhice: a realidade incômoda (Editora Difel, 1976), rias sociais. Não se trata de um conceito estático. Está
obra que se tornou referência no âmbito das ciências huma- sujeito a variadas definições, de acordo com o contexto.
nas e sociais, Simone de Beauvoir observa que “a velhice Compreende-se assim a dificuldade de precisar, de modo
é um destino e nos deixa estupefatos quando se apodera definitivo, em que idade se atinge o patamar da velhice.
de nossa própria vida”. A autora relata ter entreouvido Além de imprecisa, a velhice é também raramente uma
no comentário de uma aluna americana a palavra velha categoria de autoidentificação. Para Simone de Beauvoir, a
pela primeira vez associada à sua pessoa. No vigor dos velhice é o outro. No artigo “Fronteiras de gênero e a sexua-
seus 50 anos à época e instigada pelo efeito perturbador lidade na velhice”, publicado em 2012 na Revista Brasileira
da associação incômoda, Simone empreende minucioso das Ciências Sociais, Guita Debert e Mauro Brigeiro chamam
estudo no qual põe em questão a velhice como fato bio- a atenção para esse fato ao constatar em suas pesquisas
lógico, denuncia a ambiguidade do termo e constata ser de cunho etnográfico que “velho é sempre o outro”. Isso se
“impossível encerrar essa pluralidade de experiências deve, em parte, a uma percepção negativa da velhice como
num conceito ou numa noção”. Afirmando ser a velhice decrepitude condenada ao ostracismo social.
um “fato cultural”, ela conclamou os leitores à luta contra
a “conspiração do silêncio” usada para escamotear o des- A terceira idade e a mediação do consumo
caso de nossas sociedades em relação aos mais velhos. Autor de A fresh map of life: the emergence of the third
Consoante com os ensinamentos de Simone, embora age (Editora Weidenfeld & Nicolson, 1989), Peter Las-
sem partilhar de seu viés catastrófico, entendemos ser a lett foi um dos primeiros a utilizar a expressão “ter-
ceira idade” para definir uma etapa da vida. Em sua
obra, ele aponta a necessidade de uma compreensão
Hoje se entende a terceira idade como mais refinada do envelhecimento — e notadamente da
aposentadoria, que passa a ser ressignificada como o
uma categoria construída pela mediação
momento privilegiado em que se teria conquistado o
do consumo, instância que nomeia o direito de se dedicar a atividades voltadas ao desfrute
nosso tempo como a era do consumo da vida. Nesse estudo, que de certo modo fundamenta o

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Em geral, as imagens da terceira idade apresentam “traição” do corpo que se torna incapaz de corroborar a
indivíduos de meia-idade em excelente forma física, imagem mental do self cristalizada como juvenil.
aparentando desfrutar de um estado perpétuo de Críticas feitas às análises de Laslett, que procura-
lazer e puro deleite
mos descrever de forma sintética, destacam que o autor
toma como universais os padrões e costumes da classe
importante movimento das Universidades da Terceira média. Hoje se entende a terceira idade como uma cate-
Idade, o autor propõe decompor a categoria “idade” em goria construída de modo mais evidente pela mediação
seus diferentes componentes de análise. Como resul- do consumo, instância que nomeia o nosso tempo como
tado dessa operação, temos a idade cronológica, a idade a era do consumo, como indica Luis Enrique Alonso, em
biológica, a idade social, a idade pessoal e, finalmente, La era del consumo (Editora Siglo XXI, 2005).
a idade subjetiva. Nessa prevalência das dinâmicas do consumo na
Inspirados no trabalho do sociólogo francês Pierre esfera social, tem-se o esfumaçamento dos limites
Bourdieu, reconhecemos que as relações entre a idade que tradicionalmente separavam e, simultaneamente,
social e a idade biológica costumam ser complexas e caracterizavam as etapas da vida e fixavam padrões de
fazem parte das disputas simbólicas que caracterizam comportamento. De acordo com Debert, “a promessa da
as nossas sociedades. Em relação ao descompasso por eterna juventude é um mecanismo fundamental para a
vezes experimentado pelos mais velhos entre as idades constituição de mercados de consumo”.
pessoal e subjetiva, recorremos aos estudos de Mike Nas cartografias do consumo, a segmentação do mer-
Featherstone, que junto com Andrew Wernick escreveu cado utiliza os 50 ou 55 anos como idade de corte para
Images of aging: cultural representations of later life (Edi- designar o consumidor como idoso. Parece problemático
tora Routledge, 1995). Para Featherstone, a “máscara da pretender englobar em um só estrato a enorme diversi-
idade” é vivenciada como uma perturbadora espécie de dade de perfis de comportamento entre indivíduos de 50,

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 143


Comportamento

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Tendo a juventude como padrão desejável, os jovens são associados a atributos como saúde e beleza. Para os mais
velhos, reservam-se as conotações desagradáveis, como a fragilidade física e/ou mental e a incapacidade de cuidar de si

60, 70, 80 e 90 anos — incluindo-se ainda os centenários, já Nessa concepção hipertrofiada de juventude como valor,
não tão raros entre nós. Na ressignificação dos modos de esse é um atributo a ser preservado em qualquer idade. O
vivenciar e representar a velhice como “melhor”, “maior” envelhecimento passa a ser visto como algo contra o qual
ou mesmo “feliz” idade, sugere-se o modelo da velhice se torna imperioso lutar. Saúde, fitness e beleza formam
ativa e gratificante contra arraigados estereótipos nega- um todo indissociável que fundamenta a noção de bem-
tivos. Esse modelo positivo é associado a estilos de vida -estar e movimenta, sobremaneira, as dinâmicas do con-
baseados no consumo de bens e serviços considerados sumo. Especialmente no que diz respeito à aparência física.
adequados e desejáveis. Mais diretamente em relação às mulheres, não combater
Nas individualizadas e flexíveis formações identitárias, os efeitos do tempo e “deixar-se envelhecer” se confunde
que caracterizam a atualidade, prevalece, de um modo com lassidão moral. Apesar de frequentemente serem bem-
geral, o ideário do “envelhecer bem” associado ao man- -intencionados, os esforços para manter o envelhecimento
ter-se ativo, bem disposto — e jovem. No binarismo norma- “bem-sucedido” podem se transformar em insensatez e
tivo e hierárquico entre velhos e não velhos que permeia tirania. Como lembra Guita Debert, em A reinvenção da
a construção social da juventude como padrão desejável, velhice: socialização e processos de reprivatização do envelhe-
os jovens estão associados a atributos como saúde, jovia- cimento (Editora Edusp, 1999), “a velhice [...] é biográfica [...]
lidade e beleza. Para os mais velhos, reservam-se as cono- e envelhecer bem é subjetivo, nunca será igual para todos”.
tações desagradáveis como a fragilidade física e/ou mental Mais recentemente, o interesse no potencial de consumo
na senescência e a incapacidade de cuidar de si. do público mais velho enseja certa profusão de imagens

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Quando todos são instados a querer ser e parecer jovens, o envelhecimento se torna um problema e seus sinais passam
a ser encarados como erro. Combater esse preconceito significa desafiar estereótipos e visões arraigadas na sociedade

positivas da velhice. Como se viu, essa fase da vida é fre- envelhecimento mais generalizado no mundo contem-
quentemente alardeada como um período gratificante, a porâneo” (grifo no original).
“terceira” e “melhor” idade. Por estarem livres das obriga-
ções do trabalho e da criação dos filhos, poderiam enfim O insidioso idadismo
dedicar-se aos cuidados pessoais — comumente relaciona- A desvalorização do velho em nossas sociedades está
dos às diversas tecnologias do rejuvenescimento, aliadas ao diretamente relacionada com os pre(con)ceitos do ida-
vestuário e acessórios da moda — e a projetos longamente dismo. O idadismo (em inglês, ageism) é uma das formas
adiados, tais como viajar ou aprender sobre vinhos, por insidiosas de preconceito que acarretam a discriminação
exemplo. Em geral, essas imagens apresentam indivíduos por idade. Apesar de disseminado, o idadismo é ainda
de meia-idade em excelente forma física, aparentando des- pouco discutido, tanto por estudiosos do meio acadêmico
frutar de um estado perpétuo de lazer e puro deleite. quanto pelos profissionais de mercado. No entanto, no
Nesse tipo de estratégia criativa das narrativas do rol das questões sociais que merecem atenção e apoio,
consumo, são frequentes as alusões às gratificações e a luta contra o idadismo por meio da promoção de ima-
prazeres da socialização, o que não raro inclui os rela- gens positivas dos mais velhos faz parte da agenda de
cionamentos amorosos entre pessoas maduras. Entra recomendações da ONU para o conturbado cenário do
em cena o que Debert e Brigeiro denominam como a envelhecimento da população mundial.
“erotização da velhice”, sendo a sexualidade “um dos Estereótipos negativos associados ao idadismo acio-
pilares do envelhecimento ativo, modelo de gestão do nam atitudes nas quais se mesclam de modo inconsciente

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Comportamento

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graus variados de condescendência e negligência em novas formas de convívio social, incluindo as interações
relação aos mais velhos — incluindo a problemática baseadas no respeito e na solidariedade entre gerações.
infantilização do idoso. Travestida de carinho diante Diferentemente de outras épocas, quando rígidas
da fragilidade da situação de dependência, essa forma normas sociais ditavam os modos de ser em cada
de tratamento frequentemente dispensado por cuida- idade, o embaralhamento de referências resulta hoje
dores e profissionais de saúde afeta a dignidade do mais em arranjos identitários diversos e transitórios.
velho ao destituir-lhe do status de pessoa adulta. O des- Se na nova cara da terceira idade os 70 são os novos
respeito ao idoso pode ser constatado ainda em certas 50 e a vovó tem namorada, cabe indagar até que ponto
produções midiáticas, em que sua imagem é acionada têm sido acionadas, com propriedade, outras imagens
na tênue fronteira entre o humor e o escárnio. — mais diversas, menos convencionais e não obstante
Quando todos são instados a querer ser e parecer dignas — do envelhecimento. De modo inquietante,
jovens, o envelhecimento se torna um problema e seus especula-se que em grande medida os discursos em
sinais passam a ser encarados como erro. São abundan- circulação ainda se fundam nos estereótipos e con-
tes os reality shows de transformação da imagem pessoal tribuem para consolidar o preconceito contra os mais
que promovem a pedagogia social do rejuvenescimento. velhos. Até quando?
Tampouco são infrequentes nas cintilantes imagens
digitais de celebridades, intervenções estéticas que
desafiam a prudência e o bom senso. Gisela G. S. Castro
Combater o preconceito significa desafiar estereótipos Psicóloga, mestre e doutora em comunicação
e cultura (UFRJ), com pós-doutorado em sociologia
e visões arraigadas que nos impedem de celebrar a diver- pela University of London, docente e pesquisadora do
sidade e a diferença que nos caracterizam como seres programa de pós-graduação stricto sensu em
humanos. Combatendo a discriminação, fomentamos comunicação e práticas de consumo da ESPM-SP

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Terceiro setor

Responsabilidade
socioambiental e consumo:
uma equação necessária
Praticar o bem não assegura a liderança de mercado. Mas, nos últimos 30 anos,
muitas empresas demonstraram que é possível construir um mundo melhor
e obter bons resultados financeiros. Descubra qual é a fórmula capaz de
equilibrar a geração de lucros com os dividendos sociais

Por Ismael Rocha e Marcus Hyonai Nakagawa

A
definição mais primitiva de marke- na política, na educação, nas instituições finan-
ting traz à tona o conceito de troca. ceiras, no supermercado e em todos os processos
Mas não um processo onde duas par- de troca que acontecem nessa grande arena cha-
tes simplesmente apresentam o que mada mercado.
trouxeram para a arena, ou o mercado. Ela evo- No entanto, esse desenho se torna, a cada
lui para a amplitude da satisfação em trocar com momento, mais sofisticado, pois os elementos que
aquele interlocutor específico. Assim, marketing o compõe envolvem um personagem carregado de
passou a ser definido como o processo de troca em sentidos, informações, desejos e desapontamen-
que os dois interlocutores saem alegres, encan- tos: o ser humano do século 21.
tados, seguros e satisfeitos com este encontro, Agora, convidamos você a embarcar em uma
nesta arena, num determinado tempo. viagem pelo interior da memória de trocas das
É possível verificar tal prática quando visuali- pessoas. Quais os elementos preponderantes que
zamos um adesivo que faz alusão a determinada levaram cada um de nós a abandonar as arenas
denominação religiosa ou credo, colado na tra- específicas, a processar novos conhecimentos,
seira de um automóvel. Um indivíduo fiel e satis- exigir relações mais comprometidas, a promo-
feito com o que tem recebido na prática daquela ver, em suas redes sociais, elevados índices de
fé, retribui, ou seja, devolve com o que chamamos satisfação e de desapontamento?
“moeda de troca”, colando um adesivo e expondo É possível imaginar que os exemplos cres-
a todos que o cercam essa sua experiência reli- çam exponencialmente em sua mente, pois
giosa. Ele, satisfeito. Seu credo, promovido. Sua todas as pesquisas apontam um consumidor
religião, propagada. Sua igreja, com mais fiéis. E a mais exigente, mais crítico, menos fiel e com
cadeia de valores segue numa espiral ascendente. um punhado de alternativas que se apresentam
Na mesma direção e sentido, há uma teia social como mais adaptadas aos seus anseios, desejos,
em que esses fenômenos se repetem: no esporte, ambições e vontade.

148 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


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maio/junho de 2015 | Revista da ESPM


Terceiro setor

Nesse cenário, nos últimos tempos surgiu um elemento marketing são muito influenciadas pelas mudanças de
que passou a pesar, tanto positiva quanto negativamente, comportamento e atitudes do target. Mas não só isto. É
na escolha de um interlocutor: a responsabilidade socio- a forma mais sofisticada da “era centrada no consumi-
ambiental e ética nos processos e nos negócios. dor”, na qual cada indivíduo demanda abordagens de
Não há mais como esconder. Esse aspecto — que já se marketing mais colaborativas, culturais e espirituais.
mostrou externo à arena onde os processos de troca aconte- Mas será que o consumidor estará realmente preocu-
cem —, hoje é presente e, em alguns pontos, preponderante pado com essas questões sociais e ambientais da empresa,
para se optar por um fornecedor ou para a sua exclusão, na hora do seu consumo?
seja ele de produtos, serviços, ideias ou até de um sonho. A pesquisa Doing well by doing good global, realizada
No livro Marketing 3.0: as forças que estão definindo o pela Nielsen, em 2014, com mais de 30 mil consumido-
novo marketing centrado no ser humano (Editora Elsevier, res em 60 países, mostrou que mais da metade (55%) dos
2010), Philip Kotler aponta o resultado dessa crescente entrevistados globais na pesquisa de responsabilidade
tendência da sociedade, cada vez mais criativa e crítica: social corporativa diz que está disposta a pagar mais por
os consumidores não estão procurando produtos e servi- produtos e serviços de empresas comprometidas com
ços que satisfaçam somente as suas necessidades laten- o seu impacto positivo social e ambiental. E esse per-
tes. É a busca por experiências e modelos de negócios centual vem aumentando: 50% em 2012 e 45% em 2011.
que toquem o lado espiritual das pessoas. Proporcionar Tais indicadores chamam a atenção para uma tendência
significado é a futura proposição de valor do marketing. irreversível, algo já amplamente discutido e apontado
Kotler afirma ainda que o modelo de negócio baseado como crítico, mas agora tecnicamente descortinado.
em valores é o que há de mais inovador no marketing 3.0. Regionalmente, assim responderam os consumido-
Mas como as empresas podem adicionar os valores res da Ásia-Pacífico (64%), América Latina (63%) e Oriente
nos seus modelos de negócios? Médio/África (63%), representando indicadores superiores
Em Libertando a alma da empresa (Editora Cultrix, 1998), à média global. Esses índices aumentaram 9, 13 e 10 pontos
Richard Barrett mostra que as corporações podem apre- percentuais, respectivamente, desde 2011, como aponta o
sentar níveis de espiritualidade que se assemelhem aos gráfico na página ao lado. A pesquisa da Nielsen mostra que:
dos seres humanos. Ele descobriu que o nível humano de • 67% dos consumidores preferem trabalhar para empresas
motivação espiritual pode ser adaptado à missão, visão e socialmente responsáveis;
valores da empresa. • 52% dos entrevistados fizeram uma compra nos últimos seis
Já Kotler argumenta que, mesmo assim, muitas empre- meses de uma ou mais empresas socialmente responsáveis;
sas simplesmente incluem os valores de boa cidadania • 52% checam a embalagem do produto para verificar o seu
corporativa na missão, visão e valores, deixando de lado impacto sustentável;
aqueles valores que realmente praticam no dia a dia dos • 49% das pessoas são voluntárias ou doam para organi-
negócios. Ele observa também que muitas empresas zações engajadas com programas sociais e ambientais.
empreendem ações socialmente responsáveis como
medidas de relações públicas. O marketing 3.0 não tem A partir desses dados, é possível notar a crescente preo-
a ver com medidas de relações públicas das empresas. cupação com a combinação entre o consumo e os valores
Contrariando essa proposta, ele está em linha com as pessoais. Alguns outros fatores também ajudam o consu-
incorporações de valores na cultura de cada organização. midor a desenvolver esse lado mais aguçado de buscar
O marketing 3.0 acontece quando as práticas de empresas mais responsavelmente sociais, como:
• O crescimento de produtos certificados por terceiras par-
tes, tais como ISOs, FSC, Inmetro, entre outras;
Proporcionar significado é a futura • Os indicadores de sustentabilidade e responsabilidade
socioambiental sendo mostrados nos sites institucionais
proposição de valor do marketing. e nos relatórios de sustentabilidade baseados em critérios
Segundo Philip Kotler, isso é o que há como GRI ou o ISE — índice da Bovespa ou em Nova York
de mais inovador no marketing 3.0 com o Dow Jones Sustainability Index;

150 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


Um elemento passou a pesar, tanto positiva quanto

shutterstock
negativamente, na escolha de um interlocutor: a
responsabilidade socioambiental e ética nos negócios

percentual de consumidores dispostos a pagar mais por produtos e serviços


de empresas comprometidas com o seu impacto positivo social e ambiental

2014 aumento de pontos


percentuais comparados a 2011

média global 55 % +10

ásia pacífico 64 % +9

américa latina 63 % +13

oriente médio / áfrica 63 % +10

américa do norte 42 % +7

europa 40 % +8
Fonte: Nielsen, 2014

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 151


Terceiro setor

• As organizações não governamentais (ONGs), tais como para a sua vida, pois é em função de como vê a sua razão
Greenpeace, Instituto Alana e Instituto Ethos, que rea- de ser que o negócio define seus rumos e seus objetivos,
lizam pesquisas e denunciam processos não tão susten- estabelece as suas práticas e avalia o seu desempenho. As
táveis, colocando em xeque algumas grandes empresas; ações e, por consequência, os resultados, são decorrentes
• As notícias e os consumidores ativistas que apresentam nas redes do que a empresa entende ser a sua finalidade. As relações
sociais situações questionáveis de ações de empresas, produtos e com os clientes, colaboradores, empreendedores e com as
serviços. O consumidor está cada vez mais crítico e aponta os instituições da sociedade são também decorrentes dessa
lados obscuros dos produtos e serviços. finalidade, que, por sua vez, é o que distingue as empresas
No livro Value proposition design (Editora Wiley, 2014), e as diferenciam umas das outras. Definir as finalidades
Alex Osterwalder ressalta que, na hora de montar o design para as quais uma empresa existe, portanto, não é escolher
da proposta de valor no plano de negócio, devemos bus- uma estratégia a ser seguida. É uma questão de filosofia.
car as dores e os ganhos do cliente. Lembrando que o É determinar os motivos que fundamentam a sua razão
autor entende a proposta de valor, como a descrição dos de ser. Toda essa filosofia acaba sendo expressa por meio
benefícios que os clientes podem esperar de determina- de seus produtos e serviços, que servem para atender às
dos produtos e serviços. Nesse contexto, os ganhos são necessidades da sociedade.
aqueles que descrevem os resultados que os clientes que- Quando todos esses pontos são apresentados, é possí-
rem alcançar ou os benefícios concretos que estão procu- vel identificar a importância de se ter um cerne ético e de
rando. Enquanto as dores descrevem os resultados ruins, responsabilidade socioambiental para guiar os valores
os riscos e os obstáculos relativos às tarefas do cliente. da empresa, a filosofia de toda e qualquer organização.
Nesse ponto, é importante lembrar que cada vez mais E não basta o discurso constar nos documentos oficiais
as dores dos clientes estão sendo expostas diretamente da empresa ou nas embalagens dos produtos; é preciso
nas redes sociais, e as empresas precisam estar prepa- ser vivenciado no dia a dia da instituição.
radas para dar uma pronta resposta para os problemas Mas, afinal, o que é essa tal de responsabilidade
e obstáculos do cliente. Aqui, não estamos expondo socioambiental?
somente as questões práticas dos produtos e serviços, Segundo a organização Business for Social Responsi-
mas tudo aquilo que envolve os valores da empresa e a bility, a responsabilidade social empresarial (mais uma
sinergia que buscamos para combinar com o que acre- vez) não se resume a uma postura de práticas pontuais,
ditamos tanto racionalmente quanto espiritualmente. de atitudes ocasionais ou de iniciativas motivadas pelo
As empresas precisam se preparar para este momento, marketing, pelas relações públicas ou por quaisquer
que Kotler chama de marketing 3.0, visando atingir não só outras vantagens comerciais. Ela abarca a visão compre-
a mente e o coração do cliente, mas também a sua alma, os ensiva de políticas, práticas e programas que perpassam
seus valores e, assim, passar a fazer parte da sua crença. todas as operações do negócio e se traduzem nos mui-
Sem que isso, obviamente, não esteja somente ligado a tos processos de tomada de decisão. Francisco Paulo de
uma ação pontual ou a um apoio social momentâneo. Melo Neto, em seu livro Responsabilidade social e cidada-
No livro Empresas válidas: como elas alcançam resultados nia empresarial: a administração do terceiro setor (Editora
superiores ao servirem a sociedade (Editora Évora, 2012), Nélio Qualitymark, 1999), apresenta os principais vetores de
Arantes questiona exatamente isso: por que as empresas responsabilidade social de uma empresa:
são válidas e por que existem? Ele relembra que saber a
finalidade para a qual a empresa existe é fundamental • Apoio ao desenvolvimento da comunidade onde atua;
• Preservação do meio ambiente;
• Investimento no bem-estar dos funcionários e de seus
Saber a finalidade para a qual a dependentes e em um ambiente de trabalho agradável;
• Comunicações transparentes;
empresa existe é fundamental, pois é • Retorno aos acionistas;
em função de como vê a sua razão de • Sinergia com os parceiros;
ser que o negócio define os seus rumos • Satisfação dos clientes e/ou consumidores.

152 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


Definir as finalidades pelas quais uma empresa
existe não é escolher uma estratégia a ser
seguida. É uma questão de filosofia e foco

shutterstock
O Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade como integrar o marketing a ações corporativas que
Social, uma das organizações responsáveis pela mul- geram dividendos sociais e retorno financeiro sustentável
tiplicação do conceito no Brasil, destaca em sua Carta (Editora Elsevier, 2012), Kotler explica que o compro-
de Princípios que entende a responsabilidade social misso de agir bem não é garantia de vencer nos mer-
“como a responsabilidade pelos resultados e impactos cados, mas, nos últimos 30 anos, numerosas empre-
das ações da empresa no meio natural e social afetados sas demonstraram que é possível, ao mesmo tempo,
pelas atividades empresariais e que fará todos os esfor- construir um mundo melhor e obter bons resultados
ços no sentido de conhecer e cumprir a legislação e de, financeiros. Não importa que seja uma gigante da
voluntariamente, exceder as obrigações naquilo que seja Fortune 500 ou uma novata, gerar lucros financeiros
relevante para o bem-estar da coletividade”. e dividendos sociais é um ato de equilíbrio. Para mui-
Já a definição de Responsabilidade Social do Inme- tos líderes empresariais, essas inciativas se situam
tro e da Norma Nacional ABNT NBR 16.001 “consiste entre as mais realizadoras de suas vidas.
na responsabilidade de uma organização pelos impac- É isso que realmente gera valor para as pessoas, para
tos de suas decisões e atividades na sociedade e no meio a empresa e para o planeta. Os consumidores estão cada
ambiente, por meio de um comportamento ético e trans- vez mais valorizando esse tipo de conduta e considerando
parente que: contribua para o desenvolvimento susten- tais atributos no momento de sua compra. Em breve, esse
tável, inclusive a saúde e o bem-estar da sociedade; leve será um grande patrimônio das marcas, assim como
em consideração as expectativas das partes interessa- qualidade ou preço. Preparado para o futuro?
das; esteja em conformidade com a legislação aplicável e
seja consistente com as normas internacionais de com-
portamento; e esteja integrada em toda a organização e Ismael Rocha
Mercadólogo formado pela ESPM e pela University of Texas at
seja praticada em suas relações”. Arlington (UTA). Mestre em sociologia da religião, professor universitário,
Enfim, são inúmeras as definições, pesquisas e diretor acadêmico da ESPM SP e coordenador da ESPM Social
argumentos. A responsabilidade socioambiental
chega para complementar as atividades da empresa Marcus Hyonai Nakagawa
Sócio-diretor da iSetor, fundador e atual presidente do
e ser referência de valor ao produto e ao serviço. Em conselho deliberativo da Associação Brasileira dos Profissionais de
seu livro Boas ações: uma nova abordagem empresarial: Sustentabilidade (Abraps) e professor de graduação e MBA da ESPM

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 153


leitura recomendada

Comunicação, gênero e saúde: Saindo da garagem: Gestão da educação


uma análise das campanhas música e business a distância: comunicação,
do câncer de mama no Brasil Rodrigo Kuster, Gabriel Machado desafios e estratégias
Anna Flávia Feldmann e Vitor Durão Organização: Felipe Chibás Ortiz
e Fernando de Almeida Santos
Editora Salta – São Paulo – 2015 Editora Salta – São Paulo – 2015
136 páginas – R$ 55,00 152 páginas – R$ 55,00 Editora Atlas – São Paulo – 2015
304 páginas – R$ 75,00
Considerado o segundo tipo mais Hoje, para ter sucesso no mundo da
frequente no mundo, o câncer de música, não basta apenas ter talen- Aprender a gerir a educação a distân-
mama é também o mais comum to. É preciso entender e saber fazer cia é fundamental para professores,
entre as mulheres, correspondendo negócio, para assim ”vender” seus facilitadores, instrutores, escolas,
a 22% dos casos novos por ano, de diferenciais de artista e conseguir instituições de ensino superior, insti-
acordo com o Instituto Nacional de sair da garagem para os principais tutos e quaisquer tipos de entidades
Câncer José Alencar Gomes da Sil- palcos do mundo. Dessa forma, a que ofereçam essa nova modalidade
va (Inca). Isso faz com que muitas obra reúne os conhecimentos essen- de ensino. No entanto, implantar e,
campanhas publicitárias de cons- ciais para criar e fortalecer o ”lado principalmente, manter com elevada
cientização sejam feitas, como o mo- B” – de business – do artista, como qualidade e satisfação para alunos,
vimento popular Outubro Rosa. Mas planejamento de carreira, marketing professores e demais participantes
será que a comunicação de massa das artes e os aspectos legais. do processo é algo que deve ser reno-
é capaz de esclarecer o público fe- vado constantemente. É o que ensina
minino sobre o que realmente é, e Rodrigo Kuster é músico e produtor esse livro, que aponta como desen-
como prevenir o câncer de mama? Na musical. Estudou engenharia de gravação volver o EAD, gerenciar a criatividade
tentativa de responder a essa ques- no Full Sail (EUA) e fez MBA em gestão virtual, utilizar games e formatar
tão, o livro faz uma análise crítica da de negócios na ESPM-RJ equipes de ensino.
área de comunicação relacionada à
abordagem do tema na publicidade Gabriel Machado é fundador da empresa Felipe Chibás Ortiz é doutor e mestre
e mídia, além de discutir o papel da de consultoria em marketing DODAKHAM. pela USP em temas de comunicação
mulher na sociedade. Formado em publicidade pela ESPM-RJ organizacional, RP e marketing

Anna Flávia Feldmann é professora da PUC- Vitor Durão é formado em publicidade Fernando de Almeida Santos é doutor em
SP, com experiência no campo dos estudos pela ESPM-RJ e em radialismo pela ciências sociais pela Pontifícia Universidade
de gênero e da comunicação alternativa FACHA-RJ Católica de São Paulo (PUC/SP)

154 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


Marketing sustentável: História da educação Resultado. A liderança
valor social, econômico brasileira: do período colonial além dos números
e mercadológico ao predomínio das políticas Alexandre Prates
Luiz Claudio Zenone e Reinaldo Dias educacionais neoliberais
Alexandre Shigunov Neto Editora Integrare – São Paulo – 2015
Editora Atlas – São Paulo – 2015 254 páginas – R$ 42,90
165 páginas – R$ 55,00 Editora Salta – São Paulo – 2015
296 páginas – R$ 65,00 ”O sucesso passa pelo autoconheci-
A falta de equilíbrio entre os humanos mento. E o coaching me possibilita
e o seu meio ambiente está forçando Nessa obra, o autor faz um resgate isso”, assegura Falcão, craque da
o estabelecimento de um novo mode- histórico do movimento educacional seleção brasileira de futsal, que no
lo de crescimento econômico e social. brasileiro, tomando como ponto de prefácio desse livro explica como
O mundo caminha para uma nova partida o período colonial e o ensino se tornou o melhor do mundo, ali-
estrutura, onde as relações passam jesuítico, num estudo que vai até a nhando alto desempenho e resul-
a ser mais éticas e responsáveis. década de 1990. Aqui, o ponto de par- tado. Em seu depoimento, Falcão
Veja como desenvolver estratégias tida é a atuação dos padres jesuítas procura explicar o que está além
empresariais baseadas em conceitos e seus desdobramentos, até as atuais dos resultados, que é a essência
de sustentabilidade para atender às políticas propostas para os cursos da metodologia apresentada nesta
demandas do consumidor moderno, superiores, as quais estão vinculadas obra. Segundo o autor, o primeiro
que está cada vez mais consciente ao projeto hegemônico neoliberal. passo para o sucesso é abandonar
e em busca de soluções alternativas Com isso, o livro procura desvendar o os estereótipos estabelecidos e
para o consumo sustentável. modo pelo qual as ideologias em cada encontrar a sua própria maneira de
período da história viabilizam condi- entregar os melhores resultados.
Luiz Claudio Zenone é doutor ções favoráveis para a implantação Entre os temas abordados estão a
em ciências sociais e mestre em de propostas educacionais, além de busca pela liderança, a decisão, os
administração com ênfase em apontar quando a educação passou desafios e a entrega incondicional
marketing pela PUC/SP a ser um problema de ordem social, de grandes atletas, como o lutador
com implicações diretas no desenvol- Júnior Cigano e o jogador de futebol
Reinaldo Dias é professor da vimento da economia brasileira. Denílson de Oliveira.
Universidade Presbiteriana Mackenzie
(UPM) e do mestrado em turismo e Alexandre Shigunov Neto é Alexandre Prates é coach especialista em
meio ambiente do Centro Universitário administrador do Instituto Federal São desenvolvimento humano, liderança e
UNA/MG Paulo (IFSP), campus Itapetininga performance organizacional

maio/junho de 2015 | Revista da ESPM 155


leitura recomendada

Estratégias criativas da Mas, afinal, o que é essa tal Você está contratado!
publicidade: consumo de organização? Marcelo de Freitas Nóbrega
e narrativa publicitária Sidney Zaganin Latorre
João Anzanello Carrascoza Editora Évora, São Paulo
Editora Senac São Paulo 2014 – 208 páginas – R$ 39,90
Editora Estação das Letras e Cores São Paulo – 2015
São Paulo – 2015 200 páginas – R$ 49,90 Com esse guia, você aprende a planejar
176 páginas – R$ 62,00 a sua carreira e a se programar para
O autor explica de forma metafóri- não apenas procurar um emprego
Nesse livro, o autor aborda as estraté- ca que toda organização pode ser melhor, como também conduzir ou até
gias discursivas e retóricas da criação comparada com uma pessoa, que redirecionar a sua trajetória profissio-
publicitária contemporânea, apresen- tem corpo e alma e, por isso, pode nal. Para o autor, o fato é que não basta
tando uma abordagem original, que aprender, mudar, adoecer e até mor- ser candidato ou estar qualificado para
envolve a teoria e a prática da publi- rer ao longo de seu ciclo de vida. De determinada vaga, é preciso querer a
cidade por meio de aproximações com acordo com Latorre, o corpo de uma vaga. Isso significa que todo candidato
a literatura e as lógicas de produção e organização corresponde aos aspec- ou trabalhador precisa se preparar,
consumo de bens materiais e simbóli- tos mais concretos e visíveis, como sempre, para buscar a melhor coloca-
cos. Citando como exemplo inúmeras as pessoas, as estruturas, as tarefas ção, como tudo na vida! ”Meu plano,
campanhas publicitárias, Carrascoza e a tecnologia. Já a sua alma está por exemplo, começou com um ano de
detalha o mundo ficcional construído relacionada aos pontos mais sutis antecedência: definindo os objetivos,
para os anunciantes, os recursos retó- de uma empresa, como a cultura e estudando, descobrindo oportunidades
ricos do texto publicitário (como a iro- os valores organizacionais, que se e dando a cara a tapa. Até chegar à
nia), as ações de guerrilha, a propagan- relacionam com a individualidade e a posição em que estou atualmente, fiz
da comparativa e até o posicionamento personalidade da organização. A ideia tudo aquilo que você vai ter de fazer!”
bipolar de algumas marcas. é proporcionar ao leitor uma visão
ampla sobre o mundo corporativo. Marcelo de Freitas Nóbrega é
João Anzanello Carrascoza é docente especialista em coaching de executivos,
do programa de pós-graduação em Sidney Zaganin Latorre é mestre em gestão da mudança e desenvolvimento
comunicação e práticas de consumo administração de empresas, com organizacional e de lideranças. Tem
da ESPM, com pós-doutorado pela especialização em sistemas, negócios bacharelado e mestrado em ciência
Universidade Federal do Rio de Janeiro. e gerência de projetos e graduação em da computação pela Universidade de
Ele é redator publicitário e autor de matemática. Desde 2007 é reitor do Columbia, Nova York, e doutorado em
vários livros sobre publicidade Centro Universitário Senac (SP) engenharia industrial pela Coppe/UFRJ

156 Revista da ESPM | maio/junho de 2015


Agora também com planos de
ASSINATURA
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ponto de vista

O consumo nas sociedades

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contemporâneas Fernando Henrique Cardoso

O
consumo é uma categoria central para com- vida. Testemunhamos as lutas políticas para que deter-
preender as sociedades contemporâneas. minados bens e serviços (saúde, educação etc.) ganhas-
Por muitos séculos a maioria da humani- sem o status de bens sociais, e que o acesso a eles fosse
dade viveu no meio rural, produzindo boa assegurado pelo Estado, e não pela capacidade de com-
parte do que consumia e trocando pequenos exceden- pra individual nos mercados. Presenciamos o surgi-
tes em feiras locais. O quadro mudou definitiva e radi- mento dos movimentos em defesa do consumidor. Por
calmente com a Revolução Industrial, a divisão social fim, vivenciamos a emergência de movimentos como
do trabalho e a monetização das relações econômicas. o ambientalista ou o chamado “fair-trade”, que confe-
Praticamente todos os bens de consumo se converteram rem ao ato de consumo o caráter de uma escolha ética
em mercadorias, que se compram e vendem em transa- e, assim como os movimentos em defesa dos consumi-
ções monetárias, em escala nacional e internacional. dores, têm incorporado os temas do consumo à esfera
Surgiu assim a sociedade de consumo, de mãos dadas pública e à disputa política e cultural.
com o capitalismo industrial e a revolução científico-tec- Tudo isso nos leva a concluir que o consumo não pode
nológica. A dinâmica do capitalismo se sustentou — como ser visto como um assunto restrito às relações privadas
de resto se sustenta até hoje — na constante expansão do entre empresas e indivíduos. Progressivamente, o mundo
consumo, não apenas pela maior oferta de produtos já exis- do consumo passou a ser campo de atuação de governos
tentes, mas, sobretudo, pela permanente diversificação e movimentos sociais e culturais. Isso não apenas o sub-
de bens e serviços, derivada de inovações tecnológicas. meteu a leis e códigos escritos, que obviamente também
Inovações tecnológicas transformadas em novos pro- alcançaram o mundo da produção, mas o tornou palco de
dutos de consumo para o maior número possível de indi- uma discussão sobre valores. Um número cada vez maior
víduos — eis o motor que move o capitalismo (e que tem de indivíduos concebe o consumo não apenas como um
sido o principal responsável pelo progresso material da ato voltado à sua satisfação pessoal, mas também como
humanidade). Se, por um lado, o capitalismo tem capa- expressão de compromissos éticos com a humanidade
cidade de produzir mais e melhores bens e serviços, por e a natureza. A responsabilidade socioambiental deixa
outro, ele, por si mesmo, não assegura acesso equitativo de ser um slogan para se tornar uma diretriz de compor-
a essa crescente e cada vez mais diversificada oferta de tamento. Deixa de ser uma excentricidade para ganhar
mercadorias. Sua lógica econômica não coincide com os milhões de corações e mentes.
valores e aspirações de justiça e equidade que emergiram Nesse cenário, as ciências que estudam o consumo não
junto com o capitalismo industrial, mas não em necessá- devem se limitar ao ângulo, indispensável, mas insufi-
ria harmonia com ele, a partir da Revolução Francesa. O ciente, das motivações egocêntricas dos consumidores e
compromisso histórico entre democracia e capitalismo se das estratégias mais eficientes das empresas para enten-
sustenta na regulação pública das relações de consumo. der e atender essas motivações. Elas precisam considerar
As lutas sociais pelo direito a padrões mais elevados as dinâmicas sociais, políticas e éticas que atravessam
de consumo tomaram várias formas. Assistimos às e são parte constitutiva da sociedade contemporânea.
lutas sindicais para elevar os salários dos trabalhado-
res acima do nível da simples sobrevivência e assegurar-
lhes maior participação no consumo dos novos produtos Fernando Henrique Cardoso
e serviços responsáveis pela melhoria da qualidade de Sociólogo e ex-presidente da República do Brasil

158 Revista da ESPM | maio/junho de 2015

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