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INSTITUTO SINGULARIDADES

Pós-graduação Lato Sensu em Psicopedagogia: Práticas Educacionais e Contextos de


Intervenção

MARÍLIA WESTIN OLIVEIRA GARCIA

Ficcionalidade e processos de subjetivação no autismo: um estudo


de caso na clínica psicopedagógica

São Paulo
202
INSTITUTO SINGULARIDADES
Pós-graduação Lato Sensu em Psicopedagogia: Práticas Educacionais e Contextos de
Intervenção

MARÍLIA WESTIN OLIVEIRA GARCIA

Ficcionalidade e processos de subjetivação no autismo: um estudo


de caso na clínica psicopedagógica

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Pós-


graduação Lato Sensu em Psicopedagogia: Práticas Educacionais
e Contextos de Intervenção, do Instituo Singularidades, como
parte dos requisitos para obtenção do título de Especialista em
Psicopedagogia.

Orientadora: Profª. MA Daniela Dau

São Paulo
2021
Sumário
1. Introdução ............................................................................................................. 3
2. Métodos (procedimentos básicos) ....................................................................... 8
3. Resultados ........................................................................................................ 10
3.1. O menino de asas ......................................................................................... 11
3.2. Solidão ......................................................................................................... 11
3.3. Outros mundos possíveis ............................................................................. 12
4. Discussão ......................................................................................................... 13
5. Conclusão ......................................................................................................... 25
Referências............................................................................................................. 26
Ficcionalidade e processos de subjetivação no autismo:
um estudo de caso na clínica psicopedagógica

Resumo:

Esse artigo se propõe, por um lado, a analisar o modo como a ficção pode servir como
instrumento de avaliação e intervenção psicopedagógica com um sujeito autista e,
por outro, proporcionar uma discussão teórico-clínica sobre a posição do sujeito
autista no circuito da linguagem. Partimos da ideia de que novas constituições
subjetivas podem propor reconfigurações da noção de linguagem, conforme
abordamos na introdução por meio de referências tanto do campo da psicanálise e
psicopedagogia, quanto do campo da filosofia, antropologia e teoria literária. Os
pontos levantados na discussão teórico-clínica são observados na prática mediante
um estudo de caso, que consiste no relato de acompanhamento de um sujeito autista
em processo de escolarização durante seis anos consecutivos. No período de
acompanhamento, a ficção pareceu funcionar como um espaço profícuo não só para
avaliações, mas também para intervenções que visem legitimar a perspectiva do
sujeito autista sobre o mundo.

Unitermos: autismo, literatura, linguagem.

Abstract:

This article aims to analyze how fiction can be used as an evaluation tool and psycho-
pedagogical intervention towards an autistic person as well as to propose a
theoretical-clinical debate on an autistic person’s position in the circuit of language.
Our hypothesis is that new subjective constitutions may allow the reconfiguration in
the notion of language, according to our approach in the introduction of this article
through references from the psychoanalytic, psycho-pedagogical, philosophical,
anthropological and literary theory fields. The issues raised in the theoretical-clinical
discussion are observed in practice through a case study, which consists of monitoring
an autistic person during its education process over the course of six straight years.
During the monitoring period, fiction seems to function not only as fruitful space for
evaluation, but also for interventions aimed at legitimizing the world perspective of an
autistic person.

Keywords: autism, literature, language.

2
1. Introdução

A relação entre a linguagem e as formas de constituição tanto dos sujeitos


quanto das sociedades às quais tais sujeitos estão submetidos é exaustivamente
abordada em diversos estudos que transitam entre as áreas da filosofia, da literatura
e da psicanálise. Se, por um lado, muitos estudos visam compreender os modos de
subjetivação e atravessamento dos sujeitos pela linguagem, bem como a maneira
pela qual alguns sujeitos se (des)organizam diante da estrutura padrão da língua, por
outro, há pouca referência teórica que coloque sob suspeição a existência de apenas
uma linguagem como parâmetro de constituição de um sujeito e pluralize as
possibilidades de subjetivação. Não à toa, ao pensar as formas de transgressão da
razão, Foucault aponta para a existência de linguagens excluídas: os sujeitos, de uma
só vez, inserem e retiram a palavra de um código ao torcer o seu significado e trazer
para a palavra outra medida.

Desde Freud, a loucura ocidental tornou-se uma não-linguagem, pois ela


transformou-se em uma linguagem dupla (língua que não existe senão nessa
fala, fala que não expressa senão sua língua) -, isto é, uma matriz de
linguagem que, e senso estrito, nada diz. Dobra do falado que é uma
ausência de obra. (FOUCAULT, 2019 p. XVIII)

Assim, a inserção do sujeito na linguagem se relaciona não ao acionamento da


língua pelo sujeito que diz, mas sim ao modo como tal sujeito maneja a língua pelo
atravessamento da linguagem. Nesse movimento, ele dobra a estrutura linguística e
propõe reconfigurações que furam o espaço de significação, fazendo com que as
palavras se esvaziem do seu significado primeiro para significar outra coisa, por vezes
incompreensível aos que as escutam ou leem. Em casos mais extremos, poderíamos
pensar, inclusive, no acionamento de expressões de linguagem através de balbucios
e sons que adquirem significações singulares. Para Foucault, as formas de
transgressão da razão, além de atingirem a linguagem enquanto domínio de
significação, também atingem as normas sociais que são estruturadas tal qual uma
linguagem. Nesse sentido, o louco seria aquele que ocupa o além da borda ou o seu
limiar – que opera a partir de uma lógica ininteligível ou socialmente desencaixada.
Quando tais transgressões, que imprimem um limite social aos polos da razão
e da loucura, são convertidas em modalidades de ficção, passam não só a serem

3
socialmente validadas, mas também a serem acionadas, por meio de um
agenciamento específico, como forma de fruição por aqueles que se dizem detentores
da razão. Nesse sentido, a literatura e as demais expressões artísticas reconfiguram
o lugar da não-linguagem, possibilitando uma experiência da loucura em que a obra
do escrito se faz ausência de dobra. Tal experiência se dá pelo reposicionamento do
sujeito leitor, que transita entre os polos para experienciar outros pontos de vista sobre
o mundo.
O agenciamento aciona, conforme apontam Deleuze e Guattari, uma “mistura
de corpos reagindo uns sobre os outros” por meio de “atos e enunciados,
transformações incorpóreas sendo atribuídas aos corpos” (1995, p. 23). No limite
entre corpo e mundo, a linguagem se forma a partir do agenciamento entre categorias
construídas, como natureza e sociedade, razão e loucura, significante e significado,
sujeito e objeto, eu e outro, propondo transformações que são, ao mesmo tempo,
interiores e exteriores à linguagem e que, na ficção, são elevadas à máxima potência.
Essas transformações transitam entre o corpóreo e o incorpóreo pois é a partir das
estruturas de linguagem validadas simbolicamente que configuramos nossos corpos
e nossas existências no mundo – ele mesmo construído por um fato de linguagem.
Ora, se a ficção serve como espaço de reposicionamento da razão no eixo
daquilo compreendido como loucura por meio do agenciamento, pelo caminho
inverso, ela pode ser capaz de reposicionar aquilo compreendido como loucura no
eixo da razão. Isso se daria porque, tal qual a razão, a loucura é um construto da
própria noção de linguagem enquanto eixo organizador – é aquilo que escapa de uma
organização sensível determinada como necessária para o bom funcionamento
social. Como observa Zular, produzimos a linguagem a partir do “contato entre o
estranho interno e o estranho externo e suas infinitas formas de relação” (2015, p.11),
assim, uma vez que torcemos a linguagem que organiza os limites do interno e do
externo, do socialmente estabelecido e daquilo que escapa e habita o nosso íntimo,
colocamos sob suspeição os ideais de loucura e razão ao reordenarmos o espaço
sensível a partir de outras posições de visibilidade.
Essa reordenação se faz possível porque, por meio da acoplagem entre texto
e sujeito leitor, a reenunciação literária, ou seja, o acionamento do enunciado lido por
um corpo singular, faz confluir, em um único campo de sentido, o corpo que lê e o
corpo-texto ali acionado, produzindo “um fluxo de ressonâncias não hierárquicas de
conexões parciais [..] entre os corpos e os afetos e afecções que os constituem”

4
(ZULAR, 2015, p.8). Durante a leitura de um texto literário, o leitor é apresentado a
muitas possibilidades de enunciação que se estabelecem pela sua inserção na
posição do personagem lido sem destituí-lo da sua subjetividade singular,
mobilizando um movimento de troca de perspectivas, que permite ao leitor ver a si
mesmo a partir do ponto de vista determinado pela obra lida, ficcionalizando a
experiência do personagem para, em seguida, tomá-la como sua própria experiência.
Esse movimento permite que os múltiplos sujeitos experimentem, por meio da
literatura, a diluição da borda entre a loucura e a razão.
Tal diluição se dá porque a loucura só existe enquanto tal por escapar do eixo
dominante da razão e, em contrapartida, o eixo da razão só se constitui enquanto
soberano pela invenção da loucura enquanto espaço de validação da sua soberania.
A ficção literária, por sua vez, propõe um modo de operação da linguagem ao mesmo
tempo dentro e fora da borda, que dissolve os construtos da razão e, por conseguinte,
da própria loucura. Daí a importância da ficção como ferramenta para uma
psicopedagogia que vise proporcionar, por um lado, novas experiências do sujeito
consigo mesmo e, por outro, novas possibilidades de compreensão do mundo que o
cerca. Assim, ao longo desse artigo pretendemos investigar de que modo o estudo
da ficção pode contribuir para o reconhecimento das experiências autistas por
adolescentes neurotípicos e vice-versa?1
Partimos do pressuposto de que há possibilidades menos ortodoxas de
organização do sujeito na estrutura da linguagem, abrindo espaço tanto para novas
constituições subjetivas, quanto para outras compreensões da linguagem em si
mesma. A multiplicidade de formas de organização e constituição do sujeito na
estrutura da linguagem abre espaço para outros modos de viver a literatura. Assim,
as experiências acionadas a partir de um texto literário pelos sujeitos que operam a
linguagem por meio de lógicas distintas não necessariamente partem dos lugares
interpretativos mais comuns, validados pelos acadêmicos e leitores profissionais. O
texto literário poderá acionar experiências aparentemente desconexas e, por vezes,
não relacionadas ao contexto estabelecido pelo enredo, mas que terminam por
evidenciar modos de relação entre sujeito e mundo que dificilmente seriam percebidas
tão rapidamente fora da ficção.

1
Compreendemos que o modo de experienciar a linguagem e, por consequência, o mundo, se dá de
forma diferente entre as pessoas autistas e as pessoas neurotípicas - estas, enquadradas socialmente
no que compreendemos como norma.

5
Conforme argumenta Cavarero, a desvocalização do logos, ou seja, o
processo de retirar o corpo da linguagem, atribuindo ao significado um valor
hierárquico, termina por deslegitimar o significante enquanto espaço de invenção de
sentido por impor ao sujeito modos de habitação da linguagem nos quais a voz se
descola radicalmente do verbal e faz ecoar, para além ou através da palavra, a
presença de um sujeito que fala por meio de um corpo particular.

Mais do que um destino essencial, a palavra se torna para a voz, desse


modo, uma linha divisória capaz de produzir a drástica alternativa entre um
papel acessório de vocalização dos significados mentais e a condução a um
reino extraverbal de emissões insensatas, perigosamente corpóreas e ainda
sedutoras [...]. Em outros termos, a tenaz do logocentrismo metafísico nega
radicalmente à voz um horizonte próprio de sentido que incida sobre o
sentido mesmo de sua destinação à palavra. (CAVARERO, 2011, p.28).

Maleval (2007), ao argumentar que aos sujeitos autistas 2 falta a voz enquanto
objeto pulsional, parte de uma noção de linguagem logocêntrica e unívoca, cujo eixo
do significante orbita em torno de um significado centralizador. Como apontam
Azevedo e Nicolau, não é a sonoridade da voz que a caracteriza enquanto pulsão,
mas justamente a manifestação do ser do sujeito na vocalização” (2017, p.18).
Contudo, na mesma medida em que a voz não se resume apenas aos significados
verbais, as manifestações do ser do sujeito na esfera da voz pode se dar por meio de
diversas estratégias, inclusive pela recusa da comunicação, como apontam Vocaro e
Lucero (2010).

Efetivamente, se localizamos o sujeito na definição magistral de Lacan de


que um significante representa um Sujeito para outro significante, ou seja,
(S1→$→S2), há sujeito em qualquer concatenação significante. Assim
sendo, desde que haja uma demanda e uma res-posta, mesmo que essa se
reduza à recu-sa associada a um olhar endereçado por um desvio daquele
que o recebe, temos a presença, sempre evanescente, do sujeito que
concatenou olhar e desvio mesmo que para operar sua descontinuidade
(VOCARO; LUCERO, 2010, p. 148-149)

Nesse sentido, o gesto que atravessa o (não) dito, o corpo que balança, que
repete em ecolalia palavras cujos sentidos estão no desenho das letras que as
distinguem, que percebe o mundo com a singularidade de um olhar cuja concretude

2
Entendemos que o autismo é parte constituinte subjetividade do sujeito autista. Assim, optamos por
utilizar o termo “autista” no lugar do termo “com autismo” para nos referirmos aos sujeitos cujo autismo
os constitui - trazendo consigo outras possibilidades de experienciações da realidade, diferentes da
normatividade.

6
faz explodir nossa percepção do real, parece apontar menos para um fracasso no
percurso de entrada na linguagem, e mais para a ressignificação da própria linguagem
enquanto estrutura que escapa da linearidade imposta e se faz teia, refúgio, casa
emaranhada ao sujeito.
Em O cérebro autista – pensando através do espectro (2015), Temple Grandin
sinaliza duas questões que se fazem muito importantes no contexto dessa pesquisa,
pois nortearam as suas bases. A primeira delas é a necessidade de considerar o
relato de experiência do sujeito autista como um dado válido cientificamente e a
segunda é a dificuldade que sujeitos neurotípicos têm para validar as experiências
autistas, ficcionalizando a experiência desse outro e transformá-la em sua própria
experiência.
Conforme aponta Grandin, uma cena de um sujeito envolvido em uma
conversa em uma cafeteria é imaginada pela maioria das pessoas a partir de um
ponto de vista determinado, ainda que com algumas variações. Esse ponto de vista
muito raramente é questionado pelos neurotípicos, a não ser quando eles se veem
diante de uma cena ficcional:

[...] A mulher que passa pela nossa mesa deixa um odor de perfume
fortíssimo e o meu foco muda. Então, por cima do meu ombro esquerdo
escuto a conversa da mesa de trás. O lado áspero da abotoadura da minha
manga esquerda roça no meu corpo para cima e para baixo. Isto começa a
chamar minha atenção, enquanto o sussurro e o chiado da cafeteira se
misturam aos outros sons à minha volta. O visual da porta abrindo e fechando
na frente da loja me consome por completo. Perdi o fio da conversa e não
escutei quase nada do que a pessoa à minha frente falou... Percebo que
escuto apenas o mundo estranho. (GRANDIN, 2015, p. 125)

Como procuramos argumentar até aqui, a literatura se configura como um


espaço de proliferação de vozes e de reinscrições na linguagem. Para atribuirmos
sentido a um texto literário precisamos “[a]rranjá-lo (dispor as vozes, as posições, os
feixes, as relações, os mundos) em nós, e subjetivá-lo, movimentar esse arranjo e
nos movimentarmos por ele, dar agência a ele em nós ((re)subjetivando-nos nesse
gesto) – fazer com que o texto nos faça sentido.” (NODARI, 2019, p.14) Nesse
movimento, o corpo do leitor faz ressoar outras possibilidades subjetivas para o texto
lido, fazendo confluir pelo menos dois pontos vista – o do sujeito que lê e o do
personagem que é lido. Assim, a ficção literária parece se estabelecer como um
espaço profícuo tanto para que sujeitos neurotípicos possam vivenciar outras formas
de organização de linguagem e de experiências de mundo, quanto para que sujeitos

7
autistas, considerando suas singularidades, sejam colocados em contato com
percepções e possibilidades subjetivas de linguagem pouco reconhecidas por eles.
A partir da análise de um relato de experiência de um sujeito autista em idade
escolar sob forma de autobiografia, tendo como fio condutor as transformações da
sua relação com a linguagem, com os demais colegas e consigo após seis anos de
acompanhamento escolar e tutoria pedagógica, pretendemos, no decorrer desse
artigo, propor estratégias de utilização da ficção para, por um lado, propor a validação
das experiências autistas como experiências reais e, por outro possibilitar a
compreensão, pelo sujeito autista, de formas ortodoxas de organização da linguagem.

2. Métodos (procedimentos básicos)

Conforme aponta Gil (2002), o estudo de caso possui uma estrutura menos
engessada que os demais métodos de pesquisa, contudo o delineamento do
problema de e das metodologias utilizadas no decorrer das observações do caso se
fazem necessários por conferir a esse tipo de estudo maior validade científica.
Ao longo desse artigo, procuraremos responder à pergunta formulada na
introdução e retomada aqui: de que modo o estudo da ficção pode contribuir para o
reconhecimento das experiências autistas por adolescentes neurotípicos e vice-
versa? Por experiências, compreendemos o recorte ontológico a partir do qual as
pessoas atípicas3 se percebem e percebem ao outro, considerando toda a
multiplicidade existente no espectro4.
Ainda que existam recortes ontológicos diversos no interior do espectro autista,
a experiência de troca entre pessoas neurotípicas e atípicas está fundamentada na
correlação entre percepções de mundo distintas - essa correlação também está
presente na experiência ficcional, a partir da qual dois universos de sentido se
relacionam, modificando-se mutuamente. Por ficção, compreendemos toda invenção
de sentido que se dê através de um jogo entre o que entendemos como real e como

3
O termo se refere às pessoas autistas, expressando a ideia de que essas pessoas fogem da norma
estabelecida socialmente. Seu antônimo é o termo “neurotípico”.
4
Ainda que o transtorno do espectro autista englobe pessoas com características semelhantes, a
saber: déficits na interação e comunicação social e padrões repetitivos de comportamento, interesse
ou atividade (DSM-V), em cada dos sujeitos, o autismo se manifesta de uma forma específica. Por
conta dessa variação, define-se o autismo como um espectro e os sujeitos autistas ocupam posições
diferentes nesse espectro, manifestando habilidades e dificuldades singulares.

8
simbolizamos essa realidade por meio de uma fantasia que nos aproxime ou distancie
dela.
Não à toa, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2002, p.123) aponta que
a experiência de tentar compreender ontologias distintas, “envolve uma dimensão
essencial de ficção, pois se trata de pôr em ressonância interna dois pontos de vista
heterogêneos”. Para ele, esse movimento de compreensão da existência de dois
pontos de vista heterogêneos sobre o mundo, que não se anulam nem se subsumem,
faz com que “o mundo fora do alcance da percepção atual [tenha] sua possibilidade
de existência garantida pela presença virtual de outrem por quem ele é percebido.”
(CASTRO, 2002, p.118), de modo a nos permitir não apenas “imaginar uma experiência,
mas experimentar uma imaginação” (CASTRO, 2002, p.123) ou, no caso da proposta
deste artigo, assumir uma posição política que valide a experiência autista como uma
experiência legítima sobre o mundo.
Para responder à pergunta da pesquisa, será preciso investigar também o
modo como o ficcional é pensado na educação escolar. No ambiente escolar, a
literatura é o recurso ficcional mais comum, mas não é o único recurso possível. Como
veremos ao longo desse estudo, o jogo ficcional pode ser um instrumento de
compreensão de sentido para diversas disciplinas.
Para tornar nossa investigação possível, tivemos como sujeito de pesquisa um
adolescente de 16 anos, autista verbal com nível de suporte 1 5, que foi acompanhado
por nós durante seis anos consecutivos, seja por meio de aulas particulares de língua
portuguesa, com foco em interpretação de texto e redação, seja por meio de tutoria
pedagógica. Durante os acompanhamentos, observamos o modo como ele
desenvolvia o manejo da linguagem figurada a partir da ficção, de modo geral, e da
poesia, de modo particular. Os registros das observações foram feitos em um diário
e acumulados durante todo o período do trabalho. Tais registros eram periodicamente
discutidos com a família do adolescente, com o próprio adolescente e com as escolas
que ele frequentou durante os anos de acompanhamento. Além disso, essas
observações nos encaminharam para a suspeita de que, para além de auxiliar na
compreensão da linguagem figurada, a ficção também permitia que ele

5
Os níveis de suporte, que variam de 1 a 3, servem para identificar com qual intensidade o sujeito
autista precisa de apoio para as atividades sociais e cotidianas. Os autistas com nível de suporte 1 são
aqueles que precisam de apoio menos significativo e os com nível de suporte 3, precisam de apoio
mais significativo.

9
experienciasse o mundo a partir de outros lugares, reconhecendo as suas diferenças
em relação aos indivíduos neurotípicos e, em simultaneidade, compreendendo as
diferenças dos indivíduos neurotípicos em relação a ele, entendendo, desse modo,
que a normalidade é um conceito relacional.
Segundo Gil (2002, p. 141), “[a] utilização de múltiplas fontes de evidência (Yin,
2001), constitui [...] o principal recurso de que se vale o estudo de caso para conferir
significância a seus resultados.” Assim, tivemos como estratégias de coleta de dados
registros em diário de campo, análise de avaliações escolares e a análise de um texto
autobiográfico escrito pelo nosso sujeito de pesquisa. Tendo por base a necessidade
de considerar o ponto de vista dos sujeitos autistas como um dado importante para o
pesquisador neurotípico, bem como a necessidade de reconhecermos a experiência
atípica como real, dividiremos esse espaço de escrita com Gumball, o nosso
adolescente, cuja voz, por vezes, se misturará às nossas.

3. Resultados

Gumball é magro e muito sorridente. Sabe sorrir com os olhos, com a boca e
com os braços que balançam em movimentos repetidos ou afagam aqueles que estão
próximos em momentos de alegria. Gumball manifesta adorar a textura das coisas e
dos cabelos das pessoas, que parecem se surpreender com seus gestos de cafuné,
às vezes fora de contexto. Gumball relata que, durante a infância, se divertia contando
os carros que passavam na rua enquanto esperava a chegada dos pais após a aula
particular de língua portuguesa. Ele apoiava os joelhos sobre o sofá, de costas para
a sala, e encostava o nariz no vidro, tapando a lateral do rosto com as mãos, como
se criasse a sua própria janela para o mundo.
Gumball diz adorar matemática e, com o tempo, tomou gosto também por
discussões políticas e filosóficas. Demonstra gostar muito de música e encontrou no
canto um espaço de expressão e aprendizado das próprias emoções. Quando
criança, ele via na disciplina de língua portuguesa o seu maior desafio - dizia não
gostar muito de ler, mas sempre se esforçava para fazer o melhor que podia. Por
conta do seu desempenho abaixo da média na disciplina em questão, os pais de
Gumball buscaram o auxílio de uma professora particular que terminaria por
encontrar, a partir da convivência com ele, o seu desejo de direcionar os estudos para
a área da psicopedagogia. Gumball fez aulas particulares de língua portuguesa com

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sua professora por 3 anos. Após esse período, o contrato entre os dois passou a ser
o de tutoria pedagógica. Eles seguem aprendendo juntos desde 2016. Selecionamos
alguns momentos-chave dos encontros entre os dois para analisar neste artigo.

3.1. O menino de asas

Naquele dia, Gumball, com 11 anos, chegou muito nervoso no espaço onde
ocorreria sua primeira aula particular. Andava em círculos na sala pequena e dizia
repetidas vezes que não queria estar ali. A professora rapidamente buscou contornar
a situação convidando Gumball para assistir a um desenho animado cujo personagem
principal, futuramente, seria escolhido por ele para nomeá-lo neste artigo. Aos
poucos, Gumball foi se acalmando e realizou a atividade proposta: escrever uma
continuação para o episódio a que tinham assistido. O seu texto era pouco coerente
em relação ao desenho, demonstrando que ele não havia compreendido o episódio
da forma como era esperado. Por cerca de dois anos, Gumball e sua professora
trabalharam exaustivamente o tópico da coerência e interpretação de textos a partir
de diversas mídias - desenhos, músicas, conversas direcionadas, textos curtos,
piadas e textos longos. Em paralelo, Gumball construía um dicionário de expressões
idiomáticas que consultava sempre que necessário. Com o tempo, ele aprendeu a
utilizar a maioria das expressões e passou a compreender melhor os textos que lia.
Suas notas subiram e Gumball apresentou excelentes resultados em redação. No
final do sétimo ano, ele se emocionou ao ler o conto sobre um menino que tinha asas
e, com elas, conseguia sobrevoar todo o vilarejo. O menino, contudo, não podia voar
baixo: as pessoas sem asas tentavam machucá-lo por ser diferente. Gumball dizia
ficar sozinho durante os intervalos da escola. Dizia que as pessoas da sua escola não
tinham asas - nessa época, ele adorava experimentar novas metáforas.
Depois das férias de julho, na metade do oitavo ano, Gumball chegou para a
aula muito feliz e animado, e emitiu um sonoro bom dia contornado por um enorme
sorriso. Você deve estar querendo saber por que estou feliz, né?, perguntou. Sua
tutora acenou positivamente com a cabeça. Você vai ficar feliz. Eu consegui ler o meu
primeiro livro inteiro, junto do meu avô.

3.2. Solidão

11
Naquele trimestre, Gumball, já no oitavo ano, estudava poemas. Ele aprendeu
que, por meio deles, poderia expressar os sentimentos por metáforas, como tanto
gostava. Os poemas também eram música, dizia Gumball, enquanto analisava as
letras compostas pelo grupo Queen.
Ele dizia se sentir como o menino de asas: sabia ser diferente. Contudo,
diferentemente do menino de asas, Gumball não sabia o porquê. Seus colegas de
sala notavam os comportamentos destoantes e transformavam seus gestos e suas
falas fora de lugar em chacota. Na sua escola, as pessoas deveriam ser todas iguais,
dizia. As tarefas eram todas muito parecidas, as provas sempre com os mesmos
formatos e, se por um lado, essa constância favorecia Gumball, por outro o impedia
de se aprofundar nas coisas que aprendia. A literatura, para ele, era uma fórmula - e
a fórmula do poema era bastante simples. Algumas metáforas, palavras que rimam,
sonoridade rítmica e atenção ao tema garantiam notas sempre excelentes.
Uma vez, Gumball escreveu um poema sobre solidão. Dizia se sentir sozinho,
como uma flor arrancada de um jardim, como uma flor obrigada a conviver com flores
que não aceitavam suas cores vibrantes. Naquela semana, ele foi o motivo de chacota
da turma: onde já se viu menino querendo ser flor? Aquele seria o último ano de
Gumball nessa escola.

3.3. Outros mundos possíveis

Na nova escola, já no ensino médio, Gumball se sentiu muito acolhido. Já sabia


que era um garoto autista e não fez questão de esconder essa sua característica: na
primeira oportunidade, explicou para toda a turma quais eram suas dificuldades e
habilidades. Gumball relata ter sido acolhido e diz que os colegas admiraram a sua
coragem. Na nova escola, parecia que todos os adolescentes tinham asas coloridas
e diferentes entre si. Lá, Gumball dizia sentir que podia ser quem sempre foi, mas não
sabia. As aulas, contudo, eram um pouco mais difíceis para ele - a ausência de
padrões fazia com que Gumball ficasse confuso e as múltiplas possibilidades de
avaliação, novas responsabilidades e novos professores, diferentes entre si, exigiam
de Gumball mais interação. Ele relatava adorar, mas também se sentir cansado. Um
dia, foi até a direção para dizer que, nessa escola, até as matérias exatas eram
humanas e que ele não entendia como isso poderia acontecer.

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Em muitos momentos, Gumball pediu ajuda para a sua tutora: as matérias
eram mais complicadas porque ele precisava aprender as coisas, e não apenas
decorar. Com o tempo, Gumball tomou gosto por esse aprendizado, passou a
organizar melhor as ideias e a obedecer a relações de sentido nas práticas textuais.
Gumball, que no sexto ano mal conseguia escrever uma resposta completa, agora
era capaz de produzir uma excelente dissertação.
Foi nessa escola que Gumball leu o seu primeiro livro sem a ajuda de ninguém.
Era um livro de literatura fantástica, que abria um novo universo de sentido, com
outras leis e outras lógicas. Gumball ficou encantado. Disse que aquela história de
não gostar de ler era passado, pois por meio dos livros podia conhecer novos mundos
e entender outras realidades. E então, Gumball perguntou: será que se eu escrevesse
uma história sobre o autismo as pessoas sem autismo conseguiriam entender a minha
realidade? Para Gumball, o mundo dos neurotípicos era como um livro de literatura
fantástica.

4. Discussão

Quando nos propusemos a escrever um estudo de caso sobre um adolescente


autista, pensamos exaustivamente sobre como não submeter o sujeito do caso à
posição de objeto. Trazer a voz de Gumball, acionada por meio da escrita
autobiográfica, foi a saída que encontramos para fazê-lo ocupar ativamente o espaço
deste artigo.
A necessidade de inserir a criança na posição de sujeito de pesquisa é
apontada por Corsaro em A sociologia da infância (2011). Para o autor, o movimento
de pesquisa deve se estabelecer com ou para as crianças, retirando-as do lugar de
objeto. Quando transpomos essa necessidade de reposicionamento para pesquisas
que observam e são observadas por crianças e adolescentes autistas, nos vemos
diante de um desafio ainda maior - para além de retirá-los do espaço de objeto que é
quase instantaneamente instituído pela relação pesquisador/sujeito de pesquisa, é
preciso estar atento para não transformar as diferenças desses sujeitos em
observações reducionistas de suas subjetividades por conta do quadro de autismo:

13
Merlleti (2018) nos chama a atenção para o que ela chama de “objetalização
da criança”, que aprisiona a criança em lugares discursivos que limitam sua
subjetivação tanto nas relações familiares, quanto nas vivências escolares e
do próprio desenvolvimento. (ALCÂNTARA, 2020)

O discurso médico-científico nos encaminha para um enquadramento das


características da criança em critérios diagnósticos que, para além de explicar o
passado e o presente, também projetam possibilidades de futuro que restringem o
desenvolvimento subjetivo do sujeito autista, como se todas as suas experiências
fossem condicionadas ou tivessem o autismo como finalidade. Ao mesmo tempo,
evitar o diagnóstico e não reconhecer as diferenças da criança autista em relação à
população neurotípica não parece ser um bom caminho, uma vez que tal conduta
pode fazer com que a criança se perceba como defeituosa ou incapaz. Desse modo,
não se submeter ao discurso médico não significa recusá-lo em sua totalidade e
reconhecer a subjetividade do sujeito autista não significa, por sua vez, abrir mão do
diagnóstico.
Conforme apontam Catão e Vivès, “no tratamento do autismo há um sujeito a
ser escutado em seu modo particular de funcionamento” (2011, p. 89), sujeito este
que estabelece uma relação diferente com a esfera da linguagem, propondo
atravessamentos que, por não se acomodarem no modelo tradicional, são, por muitas
vezes, compreendidos como recusa da própria linguagem.
Não podemos negar que há, por parte dos sujeitos autistas, uma recusa da
dimensão enunciativa da linguagem tal qual nós a concebemos - contudo, se a
linguagem se estabelece por meio de enlaces subjetivos entre um corpo que diz e um
corpo que singulariza o dito, atribuindo-o significações, a subjetividade do corpo que
se inscreve na linguagem pode mudar as formas dessa inscrição. Dito de outro modo,
talvez a questão seja, antes, o conceito de dimensão enunciativa 6 a ser considerado
quando estamos diante de sujeitos autistas, e não a sua presença ou ausência.
Assim, para que o sujeito de pesquisa ocupe de fato a posição de sujeito, é
preciso que façamos um giro de perspectiva, ativando mais de um ponto de vista

6
Por ato de enunciação compreendemos a forma como a linguagem é colocada em funcionamento
pelos sujeitos que dela fazem uso. Assim, a perspectiva enunciativa de um ato de fala ou de um texto
escrito se refere antes ao modo de dizer do que ao dito e aciona dimensões subjetivas que atravessam
a linguagem para, então torná-la singular. Nesse sentido, nos parece mais acertado buscar
compreender de que modo a dimensão enunciativa é acionada pelos sujeitos autistas do que partir do
pressuposto normativo de que, pelo simples fato de os autistas não compartilharem dos mesmos
princípios de compreensão/enunciação da linguagem, eles se encontram fora desse circuito.

14
sobre os conceitos que pretendemos trabalhar, sejam eles quais forem. Ora, não
basta nos questionarmos sobre a posição do sujeito autista no circuito da linguagem
sem antes nos perguntarmos qual é a posição do circuito da linguagem para o sujeito
autista, ou seja, como o sujeito autista percebe o circuito da linguagem do seu ponto
de vista.
Na esfera educacional, o espaço da letra se mostra muito profícuo para que
esse giro perspectivístico se estabeleça, pois a palavra constrói a si e ao sujeito que
dela partilha em simultaneidade, seja por meio da leitura, seja por meio da escrita -
sujeito este que é impelido a imprimir, na e pela letra, traços da sua constituição
subjetiva.

Poderíamos dizer que a escrita alfabética pode servir para o autista como
uma nova possibilidade de estruturação psíquica. No movimento gradual de
aquisição da escrita, pode ocorrer uma operação de linguagem de dupla
mão: uma escrita será construída, mas também um sujeito se construirá
como efeito do desenvolvimento da escrita. Ao mesmo tempo que se constrói
uma escrita, ela o constrói, em um jogo de reorganização do campo simbólico
ou da linguagem. (BASTOS, 2018)

Para que Gumball chegasse ao traçado de uma letra que não fosse puramente
representativa de dados objetivos e de cenas observáveis, foi preciso deixar a
linguagem percorrer o seu próprio caminho, atravessar a cena propondo outras
formas de enunciação. Ao conhecer sua professora, Gumball demonstrou extrema
recusa às tentativas de estabelecimento de vínculo que se deram, inicialmente, a
partir dos conteúdos escolares. Sua professora, que até então não sabia do quadro
de autismo de Gumball mas notava algumas diferenças em seu comportamento,
procurou estabelecer o vínculo por outros meios, buscando junto a Gumball
interesses compartilhados pelos dois. Ao encontrarem como assunto em comum o
gosto por desenhos animados, o menino, que andava inquieto pela sala pequena, se
sentou em uma cadeira e deitou sua cabeça no colo da professora, guiando as mãos
dela para um cafuné. Esse gesto, que acompanha a relação dos dois até hoje, parece
dizer mais do que qualquer verbalização poderia dizer, pois coloca em jogo uma
dimensão afetiva pouco acessada por Gumball através das palavras, realocando a
enunciação para um plano corpóreo e trazendo em ato a noção de voz, aqui
compreendida como aquilo entre corpo e linguagem (CAVARERO, 2011).7

7
Ao dizer que a voz é aquilo que se estabelece entre corpo e linguagem, Cavarero questiona o modo
como, na sociedade ociental, o logos, definido como phoné semantiké (voz significante), foi

15
Junto do gesto do cafuné, ecoavam as vozes animadas dos irmãos que,
naquele episódio, viviam aventuras no ambiente escolar. Gumball, muito atento,
observava as aventuras para depois transformá-las em ficções que de algum modo
se relacionariam com sua própria realidade. Se, de início, sua professora constatou
que Gumball não havia compreendido o episódio, após uma conversa entre os dois
ela notou que o menino havia sim compreendido ao que assistira, porém por um ponto
de vista de difícil acesso para ela. Por um lado, Gumball realizava saltos entre os
pedaços da história, pois acreditava que determinadas conexões não precisavam ser
explicadas. Era difícil para ele entender que o seu leitor não compartilhava dos seus
pensamentos e, portanto, precisava de explicações esmiuçadas sobre as aventuras
vividas pelos irmãos naquele episódio de desenho animado. Por outro lado, Gumball
mobilizava os elementos apresentados pelo desenho de forma diferente da
normatividade - focalizava seu pensamento em aspectos inusuais e pouco evidentes
da história, como objetos que apareciam no fundo da sala de aula, escondidos. Um
lápis, uma letra, uma lousa. Por que aquela escolha de cores?
Quando estamos diante de um objeto ficcional, construímos o sentido por meio
da relação entre a experiência proposta pelo objeto e aquela inserida no objeto por
quem o interpreta. Essas duas experiências passam a funcionar de maneira conjunta
e constroem novas possibilidades de interpretação. Assim, quando reorganizamos a
estrutura da linguagem por meio da ficção, também abrimos espaço para novas
perspectivas de sujeito, pois “é a possibilidade dada pela ficção de podermos
participar de forma subjetiva de seres ficcionais, inexistentes, que nos permite
obliquarmo-nos em outros sujeitos, humanos e não-humanos” (NODARI, 2015, p.7).
O que parecia estar em questão no gesto de interpretação do desenho - e que
depois se alargou para a maneira como Gumball percebia o texto literário - era um
processo de obliquação que, para Nodari (2019), acontece quando o leitor objetiva a
si mesmo para poder subjetivar o personagem lido por meio da sobredeterminação
entre as duas instâncias. É pelo processo de obliquação que somos capazes de ver
pela perspectiva ficcional do outro quando diante de obras de ficção, ou seja,

desvocalizado para legitimar relações de poder. Ao separar a voz da linguagem e, por consequência,
o corpo da linguagem, foi possível estabelecer, dentro da própria noção de linguagem, hierarquias
entre aqueles que falavam e aqueles cujas palavras e emissões corpóreas não eram dotadas de
significações relevantes. É essa diferenciação entre a linguagem que deve ser escutada e a linguagem
que se estabelece como ruído que faz com que, em uma sala de aula, a ecolalia da criança autista
seja entendida como um zumbido sem sentido, similar ao do mosquito que voa e perturba os ouvidos
daqueles que querem e podem aprender.

16
conseguimos nos colocar no lugar do personagem lido como se fôssemos, de fato,
aquele personagem, compartilhando das suas emoções e angústias. Ao objetivarmos
nossos afetos para dar espaço subjetivo aos afetos do personagem lido, também
subjetivamos esse personagem e reorganizamos nosso ponto de vista sobre o mundo
prosaico.
No movimento de entender a compreensão do garoto, Gumball e sua
professora criaram uma rotina que servia para ensinar o menino a traduzir a sua
realidade - era uma tarefa que exigia bastante cuidado para que o menino
conseguisse tornar seus textos adequados às propostas escolares e pedagógicas, e,
simultaneamente, não deixasse que sua criatividade pouco ortodoxa fosse anulada
por essas propostas. Após cada atividade, texto lido ou episódio assistido, tanto
Gumball quanto a sua professora deveriam descrever o que haviam compreendido a
partir de cada ponto de vista - nessa atividade, não havia hierarquias entre as
compreensões, mas sim um debate lógico acerca das possibilidades de compreensão
elencadas por eles. Esse jogo parecia sugerir um outro processo de obliquação - tanto
a professora quanto Gumball se objetivavam para subjetivar o outro, transformando a
teoria, antes aplicada apenas para a literatura, em possibilidades de interseção de
experiências diferentes da realidade. Nesse processo, os dois decidiram escrever um
dicionário de linguagem figurada, que acompanhou Gumball durante os anos finais
do ensino fundamental. Segue relato de Gumball ao rememorar o início do trabalho
com a professora:

Um dia que eu não tinha conseguido ir bem na prova de português meus pais
me colocaram em uma aula particular e eu chorei porque não queria fazer
aula pensando que era uma má consequência, mas depois de um tempo fui
criando uma boa relação com a professora e por isso gostei bastante, mas
ainda tive dificuldade na parte da interpretação principalmente, para ler e
entender o texto e a linguagem figurada. É muito difícil falar disso porque eu
preciso me lembrar de situações ruins em que eu não sabia me defender ou
não conseguia entender a conversa e eu sei que até hoje isso pode acontecer
e eu vou me lembrar das coisas que eu vivi. Eu não sei zoar e não sei
conversar sobre alguns assuntos e sinto que às vezes as pessoas fazem
piadas com isso e eu não entendo o que elas estão dizendo. Na época eu
não sabia que eu era autista, então eu achava que tinha alguma coisa de
errado comigo e que eu não era bom o bastante. (DIÁRIO DE CAMPO,
18/08/2021)

17
O modo como os sujeitos que habitam a linguagem a partir de outras lógicas
são percebidos socialmente varia de acordo com a lógica imposta pelos espaços
sociais que tais sujeitos ocupam. Essa percepção termina por influenciar o modo
como esses sujeitos se percebem diante da própria percepção de mundo,
categorizando suas diferenças pela chave do defeito/anomalia ou pela chave da
singularidade. Quando pensamos em crianças e adolescentes, não é difícil perceber
a centralidade da escola na construção dessa percepção social e os impactos que
determinadas percepções, muitas vezes reafirmadas exaustivamente no ambiente
escolar, têm na aprendizagem.
Com o apoio interpretativo e a confecção semanal do dicionário de linguagem
figurada, Gumball progredia em grande velocidade do ponto de vista dos resultados
acadêmicos. Contudo, ao analisar mais a fundo esse progresso, a professora se deu
conta de que o avanço de Gumball estava em parte associado à compreensão do
modo como a escola estruturava suas avaliações, sempre muito parecidas entre si.
Os exercícios interpretativos trabalhados no espaço da aula particular eram, em sua
maioria, muito mais difíceis do que o conteúdo cobrado pela escola, que tinha uma
proposta pedagógica mais enciclopédica do que reflexiva. Se, por um lado, o método
da escola fornecia a Gumball previsibilidade e segurança, por outro a ausência de
criticidade se tornava um impeditivo para o desenvolvimento de suas potencialidades.
Do ponto de vista social, Gumball relatou se ver cada vez mais isolado dos colegas
que, como as avaliações, eram muito parecidos entre si. Os colegas o apelidaram de
perseguidor, pois, por não saber como iniciar conversas, Gumball permanecia parado
perto de pessoas com a esperança de ser incluído por elas.
A escola, que chamaremos de Colégio Abacaxi, possuía um grande número
de alunos por sala, sistemas de avaliação regulares e um modelo de advertência
baste rígido, integrado à plataforma digital, de modo que os familiares dos estudantes
eram notificados, em tempo real, por cada tarefa atrasada ou comportamento
inadequado que eles pudessem ter. Após as avaliações, as notas dos alunos eram
divulgadas em um mural - além disso, era possível reconhecer a sua curva de
aprendizagem por meio de um gráfico de desempenho que comparava a sua nota
com a média da turma. A escola justificava o seu sistema de avaliações, punições e
recompensas pelo pressuposto de que cabia às crianças internalizarem os ideais da
sociedade em que nasceram e compreender, desde cedo, que a lógica meritocrática
rege as relações de acesso às universidades e ao mundo do trabalho.

18
O modelo de educação proposto pelo Colégio Abacaxi parece ter forte
influência do modelo social determinista, que insere a criança em posição passiva e
aponta para a “importância de uma formação explícita nas habilidades necessárias
para viver em sociedade, apoiadas em um sistema de recompensas e castigos”
(CORSARO, 2011, p.21-22). Esse modelo ignora que as crianças e adolescentes são
sujeitos complexos com mais capacidades do que apenas internalizar normas sociais
e educacionais, enquanto reforçam estigmas sociais que excluem aqueles que fogem
à norma. Como aponta Patto (2005), a escola se construiu tendo por base uma
organização social que desqualificava “os pobres, os não brancos, os contestadores
e os portadores de alguma dificuldade física ou mental que prejudicasse a capacidade
de trabalhar ou de conformar-se às regras sociais” (p. 10). O modelo social
determinista definido acima, por seu forte viés tradicionalista, termina por reforçar,
mesmo que de forma mascarada, a desqualificação dos diferentes, gerando exclusão.
Como apontam Kupfer e Petri (2000), foi por meio de uma operação discursiva
relacionada à necessidade de escolarização das crianças, que se criou o termo
“criança especial”8. O termo termina por definir também, através do contraste, quais
crianças são ou não são escolarizáveis e garantem o funcionamento da escola
enquanto instituição.
Gumball se adequava facilmente ao Colégio Abacaxi do ponto de vista
acadêmico, porém se via cada vez mais deslocado do ponto de vista social. Gumball
tentava compensar a sua inadequação social com resultados concretos nas provas,
exagerando em sua rotina de estudo, mas mesmo com notas altas, os seus colegas
não o reconheciam como parte do grupo.
O desencaixe de Gumball no ambiente escolar fazia com que ele pensasse
não ser bom o bastante, conforme relatou. Como última tentativa de encaixe social,
Gumball convidou todos os colegas da turma para o seu aniversário de 14 anos.
Durante dois meses, o tópico da festa aparecia com frequência nos momentos de
aula.
Apenas cinco colegas compareceram.

8
Apesar da roupagem positivada que a palavra “especial” traz para o termo, ele termina por reforçar a
ideia de que as pessoas com deficiência pertencem a um grupo à parte, por conseguinte, não podem
participar ativamente do corpo social. Além disso, o termo retira da pessoa com deficiência a
possibilidade de singularidade por inseri-la em grupo supostamente homogêneo - daqueles que, por
serem especiais, não pertencem à sociedade tanto quanto os ditos “normais”.

19
A criação da escola contorna então um Real e passa a dizê-lo. E, ao
contornar o Real pode passar a dizer o que ela não é, ou quem não são suas
crianças. A escola encontra seus pontos de referência identitários nesse
contorno e, o expelido pela instalação do contorno ajuda a defini-la. Assim, a
reabsorção do que ela não é ameaça a sua consolidação como instituição
(KUPFER; PETRI, 2000, p.112)

Na medida em que o ato de educar visa apresentar à criança aspectos do


mundo que existiam antes dela, o contorno do Real se faz necessário para que a
educação aconteça, pois é preciso que as crianças reconheçam os limites daquilo
que é ou não é validado simbolicamente na sociedade em que estão inseridas. Os
mecanismos de exclusão são, nesse sentido, inerentes aos ambientes escolares pois
servem como condicionantes para a existência de grupos, uma vez que um grupo só
existe em relação àqueles que não pertencem a esse grupo. Cabem às escolas
buscar alternativas para o enfrentamento desse mecanismo de exclusão,
reconhecendo-os como inerentes para modificá-los internamente.
Como o Colégio Abacaxi não se mostrava disposto a repensar os mecanismos
de exclusão reforçados pela sua proposta pedagógica 9, Gumball decidiu mudar de
escola. O processo de decisão, que teve como gota d’água o episódio do aniversário,
foi lento e complexo - para Gumball, mudanças de padrões são muito estressantes e
conhecer escolas novas, com novos cheiros, professores, configurações
arquitetônicas e metodologias de ensino, era extremamente cansativo. O seu desejo
de mudança se expressou inicialmente por meio da escrita. Gumball, como já dito,
adorava metáforas: criava correlações de sentido entre objetos e sentimentos com
frequência, ao ponto de se fazer necessário atribuir um contorno para a utilização
dessa figura, uma vez que, pela enorme quantidade de metáforas utilizadas, algumas
construções de linguagem soavam pouco compreensíveis. No ápice de seu apreço
por metáforas, Gumball começou a estudar o gênero poesia no Colégio Abacaxi. Em
sua prova de redação, precisou escrever um poema relacionado à solidão e, nesse
poema, associou o sentimento como algo inerente ao seu processo de escolarização.
Ele expressou seu desencaixe utilizando a metáfora da flor no jardim. Ele percebia

9
Enquanto Gumball estudava no Colégio Abacaxi, sua professora buscou, por diversas vezes, se
reunir com a equipe pedagógica da escola. Nas poucas vezes que conseguiu, a coordenadora
pedagógica se mostrou pouco flexível a qualquer estratégia adaptativa, baseando seu discurso na ideia
de que a escola não poderia oferecer recursos para Gumball se não iria oferecer para os outros alunos,
pois isso iria gerar constrangimento entre as famílias. Ao mesmo tempo em que, para recusar
adaptações, a coordenadora utilizava do argumento de que Gumball deveria ser tratado como as
outras crianças, reforçava a ideia de que Gumball era “um menino muito doce e especial”, e que por
isso, mesmo sem aprender a matéria, iria passar de ano.

20
ser diferente das outras flores, que se adequavam mais naturalmente aos cuidados
padronizados dos jardineiros-professores.
Junto da família, Gumball refletiu e escolheu participar da vivência em duas
escolas - a sua professora, agora tutora, também se reuniu com a equipe pedagógica
de ambas, junto da família do garoto. As reuniões seguiram normalmente até o
momento em que a mãe de Gumball expôs que seu filho era autista. Nesse momento,
as diretoras das escolas tiveram reações diferentes: enquanto a primeira diretora as
olhou com complacência e carinho, explicando como a escola era acolhedora com
essas crianças tão especiais, a segunda diretora foi direta e assertiva: perguntou
quais os apoios que Gumball precisaria para a aprendizagem, explicou os métodos
de avaliação e a pedagogia adotada, apresentou os desafios que Gumball poderia
enfrentar na nova escola e se colocou à disposição para auxiliar no processo de
adaptação. Eles escolheram, em comum acordo, a escola da segunda diretora.
Em 2020, Gumball iniciaria o ano letivo na nova escola, que iremos chamar de
Colégio Mexerica. No final do ano anterior, Gumball viria a tomar conhecimento sobre
o seu quadro de autismo. Segue o seu relato sobre os dois processos:

No nono ano, os meus pais me contaram sobre o autismo e comecei a


entender melhor, mas ao mesmo tempo eu não queria ser desse jeito e ter o
autismo. Continuava me frustrando porque ainda que eu soubesse, não
queria ser assim. Em 2020, quando comecei o Ensino Médio, mudei para o
Colégio Mexerica para dar um tempo de várias pessoas que eram escrotas
no Colégio Abacaxi e ver se eu seria mais aceito com minhas dificuldades e
meu jeito de ser. No início eu ainda tinha um foco muito grande no Colégio
Abacaxi e na questão do autismo pra ver em que dia isso seria dito pras
pessoas, eu tinha essa meta de mostrar do autismo porque eu achava que
era importante que essa diversidade fosse reconhecida. Comecei a pensar
assim porque passei a aceitar que o autismo existia e que o mundo tem que
trabalhar com isso e não só as pessoas com autismo tem que trabalhar com
o mundo.

Um dia eu cheguei na escola e passei uns dias conversando com algumas


pessoas para poder conhecer melhor a escola e as próprias pessoas e vi que
elas tinham essas questões de zuação e eu não me sentia confortável porque
não sabia como fazer e então eu resolvi falar sobre o autismo no grupo da
sala e expliquei que não me sentia bem com alguns tipos de piada. As
reações foram de parabenizar a minha coragem em assumir só que foi um
tema que eu fui deixando ao longo do tempo e no convívio me perdi um
pouco, mas de vez em quando acho bom voltar a falar sobre isso porque
meus colegas às vezes esquecem. (DIÁRIO DE CAMPO, 18/08/2021)

Poucos meses depois da mudança para a nova escola, Gumball já se


comportava diferente diante de suas dificuldades e reconhecia com tranquilidade

21
tanto a origem dessas dificuldades, como as estratégias possíveis para lidar com elas.
Reconhecer-se e apropriar-se do autismo enquanto característica do seu modo de
perceber o mundo foi um processo bastante complexo para Gumball, que envolveu,
ao mesmo tempo, reorganizar suas crenças sobre si e compreender que certas
características do seu comportamento e dificuldades sociais permaneceriam ao longo
da vida. Se, por um lado, Gumball deixava de se ver como alguém que não era bom
o bastante e se fortalecia a cada vez mais, reconhecendo suas habilidades e
aceitando seus comportamentos singulares, por outro lado, ele também passava a
compreender que muitas das suas dificuldades eram inerentes à sua constituição e,
portanto, ele teria que conviver com elas.
No Colégio Abacaxi, Gumball sentia mais facilidade nos processos avaliativos.
O Colégio Mexerica prezava pela autonomia dos professores e por métodos de
avaliação que variavam de acordo com a proposta de cada matéria: trabalhos em
grupo, textos dissertativos, reflexões, seminários, confecções de histórias em
quadrinho e participação em debates eram comuns em muitas disciplinas. As provas
eram escassas e Gumball passou a ter dificuldades para compreender o que era
esperado de seu desempenho. Além disso, o ensino se dava por uma perspectiva
reflexiva mesmo em disciplinas exatas, fazendo com que Gumball, cujas notas em
Matemática sempre foram excelentes, precisasse de apoio interpretativo inclusive
nessa disciplina. Ao mesmo tempo, a mudança para um ambiente social mais
acolhedor e consciente fez com que Gumball se visse impelido a desenvolver novas
habilidades. Como aponta Corsaro:

mudanças na sociedade, especialmente as alterações nas demandas sociais


sobre o indivíduo, exigem mudanças nas estratégias para lidar com essas
exigências. [...] Nesse sentido, interações e atividades práticas da criança
com outras pessoas levam à aquisição de novas competências e
conhecimentos, que são vistos como a transformação das habilidades e dos
conhecimentos anteriores. (CORSARO, 2011, p.26)

Assim, as dificuldades de Gumball diante da nova escola pareciam servir como


impulso para o reconhecimento de suas habilidades em reflexões filosóficas e
organização de ideias a partir de sequências lógicas em situações de debate. Pela
necessidade de enfrentar suas dificuldades, Gumball tomou conhecimento de novas
capacidades e, ao mesmo tempo, contou com apoio e adaptações nos momentos em
que tais recursos se fizeram necessários.

22
A escola parecia se apoiar no conceito de Vygotsky de zona de
desenvolvimento proximal, ou seja, reconhecia o nível potencial de desenvolvimento
de Gumball quando contava com apoio de professores para a realização de tarefas
e, aos poucos, criava estratégias para que ele alcançasse, a cada vez, mais
autonomia nessas realizações. Após um ano no novo colégio, Gumball não só se via
capaz de construir dissertações sobre assuntos socialmente importantes, como
também reconhecia de forma bastante contundente as diferenças entre seu modo de
perceber o mundo e o modo como as pessoas neurotípicas enxergavam as mesmas
situações. As dificuldades de interpretação textual, compreensão e interação social
permaneceram existindo, mas Gumball as reconhecia e conseguia pedir apoio
sempre que necessário, tanto para os colegas de turma quanto para seus
professores, para sua tutora e para seus familiares.
Em geral, Gumball se via pouco atraído pelos textos literários em prosa. Ainda
que gostasse muito de metáforas e canções, sentia que o processo de leitura era
cansativo e pouco produtivo para ele, conforme relata:

Eu não gostava de ler quando era menor porque ler é difícil pra mim. Preciso
me concentrar muito para entender todas as partes da história e às vezes
preciso ficar voltando para ver se entendi certo. Como ler não era a coisa que
eu mais fazia, quis ter a superação de poder ler um livro e gostar e ver a
história, aprender com essas histórias. No Gabriel García Márquez, por ser
uma história inversa em um mundo diferente do nosso, me fez pensar como
seria isso no mundo real e como as pessoas reagiriam a isso. Também me
fez pensar que a história dos livros pode ser importante pra gente entender
o jeito que as pessoas percebem o mundo e que coisas que são do mundo
da fantasia para algumas pessoas podem ser do mundo real para outras.
Fiquei pensando que se eu escrevesse uma história sobre como vejo o
mundo, talvez as pessoas sem autismo conseguissem entender como me
sinto. (DIÁRIO DE CAMPO, 27/09/2021)

O contato com o universo da ficção que fura os pressupostos de realidade fez


com que Gumball compreendesse importantes pressupostos da literatura. Eles
terminariam por desembocar na teoria antropológica (e por que não metafísica?)
sobre a constituição do pensamento, conforme explicaremos a seguir.
O primeiro pressuposto compreendido por Gumball foi o de que a literatura
pertence ao mundo e, por meio das palavras, abrem um furo na normatividade ao
propor outras formas de funcionamento do real. O segundo pressuposto foi o de que,
por meio da literatura, podemos nos submeter e submeter os outros a outras
percepções de mundo. Gumball e sua tutora conversaram bastante sobre teoria

23
literária durante e depois da leitura do livro de Gabriel García Márquez e, ao
compreender que os pressupostos da existência da ficção são diferentes dos
pressupostos do mundo ficcional acionado por ela, Gumball se mostrou capaz, como
podemos ver pelo seu relato, não só de discutir a história do livro, mas também de
analisar os cruzamentos dessa história com a realidade prosaica.
A compreensão dessa diferença é essencial para uma análise literária
profunda e, no caso de Gumball, pareceu essencial para a compreensão da
importância da literatura. Em outros termos, uma ficção, seja ela qual for, só é
compreendida como tal por acionar uma realidade diferente da realidade prosaica,
contudo, essa realidade pode ter muitas formas de funcionamento que ora se
distanciam, ora se aproximam daquilo que validamos como real. Suspeitamos que a
compreensão desse fundamento se fez tão importante no caso de Gumball porque o
autismo termina por submeter o sujeito a um modo de funcionamento da realidade
que escapa da norma, desse modo, compreender que a ficção funciona a partir de
duas camadas que se descolam do que compreendemos como real permite ao sujeito
autista, em um movimento duplo, ficcionalizar a realidade que lhe é imposta e
encontrar mecanismos de validação da sua própria realidade pela ficção.
Conforme discorre Eduardo Viveiros de Castro (2002), tanto os seres quanto
as percepções de mundo, para a matriz ameríndia, se dão em perspectiva relacional.
Para os ameríndios, o humano é uma forma de percepção de si mesmo, é um ponto
de vista sobre o mundo e não um corpo específico. Gostamos de pensar que a
literatura tem um quê de pensamento ameríndio: ela nos permite trocar de posição,
de ponto de vista, com outros sujeitos e nos deixa ver o mundo pela perspectiva
ficcional de outro corpo - corpo esse que passa a ser o nosso corpo no instante
mesmo da leitura. Ao viver esse processo de giro perspectivístico 10, Gumball se
mostrou capaz não só de reconhecer que o autismo, em certa medida, é também um
ponto de vista, mas também de compreender que para as pessoas neurotípicas

10
Tal giro só se fez possível pelo modo como, ao longo do acompanhamento, sua tutora se dispôs a
validar o ponto de vista de Gumball sobre o mundo e, por consequência, sobre o universo ficcional.
Desde as primeiras intervenções, que tinham a roupagem da aula particular, ela buscou construir um
espaço seguro no qual Gumball se via estimulado a dizer o que pensava sobre aquilo que lia, pois
sabia que seu ponto de vista seria validado e escutado ativamente. Esses processos se tornaram mais
conscientes à medida que sua tutora inciou os estudos em psicopedagogia, de modo que a própria
escrita desse artigo, que contou com o apoio de Gumball pelo compartilhamento de sua autobiografia
quanto, pela seleção das informações relevantes sobre sua trajetória e pela discussão dos resultados
alcançados por ele, se estruturou como uma intervenção.

24
entenderem como ele vive a realidade, seria preciso escrever. Hoje, ele segue
escrevendo.

5. Conclusão

Antes da transformação dessa história de aprendizado em uma pesquisa


acadêmica, Gumball e sua tutora conversaram muito sobre a importância de mostrar
para as pessoas a trajetória dos dois. Hoje, Gumball compreende que “o mundo tem
que trabalhar com [o autismo] e não só as pessoas com autismo têm que trabalhar
com o mundo” (DIÁRIO DE CAMPO, 27/09/2021). Ora, se conseguimos validar a
realidade de ficções fantásticas como as propostas por Gabriel García Márquez,
também conseguimos fazer um giro para compreender que a realidade é uma posição
relacional e que os sujeitos autistas não vivem em um mundo paralelo, apenas
percebem a mesmo mundo a partir de outros pressupostos, tão reais quanto os
validados por nós, neurotípicos. Como brincou Gumball, no último encontro antes da
escrita desse texto: “ah, pra mim parece que vocês que vivem em uma realidade
fantástica, onde as coisas que vocês dizem nem sempre querem dizer o que elas de
fato estão dizendo. Você já parou pra pensar como isso é absurdo? Parece aquele
conto do Mia Couto, em que o homem passeia com o peixe em volta do lago, no lugar
de colocá-lo dentro da água” (DIÁRIO DE CAMPO, 27/09/2021).

25
Referências

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que conta a sua história? Lalalingua, 2020. Disponível em:
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