Você está na página 1de 7

Reflexão sobre a norma

As instituições educacionais reconhecem que é função precípua do ensino,


especialmente no nível fundamental, estimular e desenvolver a capacidade de
comunicação e expressão em língua portuguesa. Por isto, a orientação legal em educação
preconiza o desenvolvimento da linguagem em situações de comunicação as mais
diversas. Essencialmente encarada como atividade, uma linguagem só é o que é porque
surgiu na e da prática; como totalidade, ela é uma pragmática.
Ora, o "cultivo" de linguagens pressupõe o espontâneo, o criativo, o dinâmico.
Considerando que o ensino institucionalizado é, por princípio – tendo em vista o contexto
sócio-ideológico de sua produção – um mecanismo de pressão e de controle, é tarefa
árdua promover as condições necessárias de espontaneidade e criatividade; essa tarefa se
configura como o próprio compromisso de destruir um paradoxo.
TERWILLIGER (1974), propondo uma reflexão sobre a relatividade lingüística (que
efeitos têm as línguas, consideradas suas idiossincrasias, sobre a atividade mental de seus
usuários?), parte do pressuposto de que a linguagem humana pode ser usada como arma,
que utiliza o elemento persuasivo, e levanta algumas hipóteses sobre os comportamentos
sociais, concluindo que estes podem ser afetados pelas categorias lingüísticas de que
disponhamos. Nessa ótica, qualquer aprendizado de linguagem é uma violência, uma
forma de "lavagem cerebral", uma vez que, nesse processo, a única definição de correção
é a proporcionada pelos padrões sociais (op.cit., p. 328). Ele salienta, ainda, que "pensar é
sempre prejudicial para a manutenção de sistemas de significado estáveis e relativamente
restritos" (ibid., p. 330).
PRETI (1974), discutindo os fatores de unificação lingüística relacionados a uma norma
vigente, apresenta os meios de comunicação de massa como o elemento mais importante
atuando sobre o uso e a norma. É verdade que a mídia tem uma atuação positiva, diz ele,
na medida em que divulga a língua comum, contribuindo para nivelar estruturas e léxico;
mas, por outro lado, restringe as potencialidades do locutor, levando-o a falar, a pensar e
a agir dentro de padrões predeterminados. Pelo prestígio, os meios de comunicação
assumem o papel de modelos de práticas sociais, aí incluída a linguagem. Dá-se um
verdadeiro condicionamento lingüístico-social. A conclusão disso é que quanto mais se
vê a norma como algo a que simplesmente o sujeito deve acomodar-se, mais forte será o
condicionamento na própria articulação dos pensamentos (cf. PRETI, p. 31).
Já que a norma é um patrimônio a zelar, precisa de um zelador. E aí está uma das nobres
funções da escola. Considerada a norma, entretanto, em seu horizonte mais largo, fica
entendido que a língua não pode ser dissociada dos outros elementos que, com ela,
constituem as bases da interação simbólica na sociedade. Organizada ela mesma segundo
regras que enquadram e condicionam o comportamento social, ela impõe esquemas de
comportamento.
ALEONG (1983) propõe os seguintes tópicos para explicar as regularidades de
comportamento lingüístico numa sociedade:
I – As instituições sociais (família, escola, direito, divisão de trabalho) são as formações
básicas da organização social;
II – A vida social se constitui de interações contínuas entre indivíduos, os quais têm sua
própria identidade e uma identidade social, que lhes confere determinada posição na
estrutura hierárquica, onde assumem deveres;
III – O estado de consciência do indivíduo (a percepção de si mesmo, dos outros e do
contexto) é condicionado pela situação objetiva na qual se encontra.
Nossa reflexão, a partir deste quadro, é a que segue. Primeiro, a escola é uma formação
social de padronização do comportamento lingüístico; segundo, é na escola que se
procura inculcar com mais profundidade uma identidade social, o que dá direitos, sim,
mas também impõe muitos deveres; terceiro, a "consciência" do indivíduo em processo
de socialização vai-se moldando com base nos cânones institucionais.
A rigor, na medida em que a instituição designa uma variedade (ou uma idealidade?) de
língua como padrão – que passa a ser uma língua de referência, medida de
comportamento verbal, de correção –, estabelece-se uma imposição, e por isto mesmo
restrição nos níveis de consciência em relação a algo que é, de fato, arbitrário. Para
exercer bem este papel, ela aparece, mesmo, num dado momento, como "lei fundada na
ordem natural", ou ainda, a norma é naturalizada. Assim a norma, na sua compreensão
mais restritiva – compreendendo um conjunto de formas resultantes de elaboração
consciente (quanto?), de codificação e prescrição (IDEAL a respeitar), converte-se,
institucionalmente, numa forma de pressão. Isto, entretanto, não frustra na linguagem o
seu caráter de atividade, de pragmática.
Ao lado deste tipo de norma, porém, que se poderá chamar norma explícita, deve-se
reconhecer uma norma implícita (segundo a proposta de ALEONG). Simultaneamente
às formas codificadas, elaboradas conscientemente, existem aquelas que não são objeto
de freqüente reflexão, representando os usos concretos na sociedade imediata. Trata-se
especialmente do aparato oral, que não tem a rigidez do escrito.
Em relação ao conceito de norma implícita, somos levados a ver no comportamento
lingüístico uma manifestação de normas sociais que fundamentam toda a interação na
sociedade. As pessoas não falam ao acaso – seus usos podem ser compreendidos e
explicados seja pelo exame da história da língua, seja pela integração social dos
locutores. Diz ALEONG que a norma implícita se configura pelo real, representando o
normal na comunidade, ao passo que a norma explícita representa o normativo.
A bem da precisão teórica, há que salientar que entre normal e normativo há
imbricações – e o normativo, apresentando-se como lei imperativa, certamente terá
influência na expressão do normal. Dois universos de regras, pois, coexistem,
sobrepondo-se, estabelecendo relações entre o real e o ideal, o inconsciente e o
consciente. As regras da norma explícita serão regras entre outras, todas de caráter social.
COSERIU, num ensaio intitulado Sistema, norma e fala, elaborado na década de 50,
respeitou a idéia de ver na linguagem atividade essencialmente criadora. Apresentamos,
abaixo, uma sinopse dos três aspectos discutidos por ele (especificados no título do
ensaio), a fim de caracterizar a norma lingüística e visualizá-la paralelamente aos
conceitos acima expostos; e, posteriormente, articulá-los com a realidade da compreensão
da norma institucional referente à linguagem (norma lingüística na escola).
A linguagem como atividade, na visão de COSERIU, apresenta-se primeiramente com
um aspecto psíquico (linguagem virtual) e com um aspecto propriamente lingüístico (a
linguagem realizada). No psíquico, como potência, situa-se o saber, condição do falar, e
o que ele chama de impulso expressivo, intuição particular que pede uma expressão
concreta. Na linguagem realizada, por outro lado, pode-se encarar ou o ato lingüístico
imediato, ou o conjunto de atos lingüísticos registrados: o material lingüístico. É com
base em atos concretos que se constrói a abstração língua, entendida como um conjunto
de aspectos comuns comprovados nos atos registrados.
Os conceitos de norma e sistema são elaborados por COSERIU com base no falar
concreto, levando em conta, através da retrospecção, as relações entre os atos lingüísticos
considerados e seus modelos.
Explicando: os atos lingüísticos são, ao mesmo tempo, criações inéditas (ou seja,
acontecimentos) e atos de "re-criação" – eles se estruturam na base de modelos já
elaborados, e os superam, de alguma forma. Tais modelos aparecem cristalizados numa
"língua anterior". Assim, em certo momento, as estruturas, os acontecimentos lingüísticos
são apenas normais e tradicionais numa comunidade; compõem, pois, a norma. É só num
segundo momento que, dessa norma, se extraem elementos considerados essenciais,
formando oposições funcionais – o que comporá o sistema. A concepção de COSERIU é
representada por ele mesmo através de quadrados concêntricos: o mais exterior
representa os atos lingüísticos concretos, o intermediário representa a norma (repetição
de modelos anteriores no falar, excluindo-se o inédito, o ocasional), e o mais interior
corresponde ao sistema (com exclusão, na norma, do que não é indispensável, funcional).
Mas COSERIU reconhece, também, que não há uma norma, geral na comunidade. E
neste ponto propomos articular COSERIU com ALEONG, acima comentado.
Considerando as possibilidades estruturais de variação das línguas, a norma pode ser
encarada como
o produto de uma hierarquização das múltiplas formas variantes, possíveis segundo uma
escala de valores respeitando a ‘conveniência’ de uma forma lingüística em relação às
exigências da interação lingüística. (ALEONG, 1983, p. 260)

Em conseqüência, não há uma norma, mas várias, de acordo com os julgamentos de


valor. O termo norma, em sentido mais habitual, corresponde ao segundo termo da
dicotomia normal/normativo que ALEONG estabelece, quando analisa o
comportamento social em suas facetas. Normativo seria "um ideal definido por
julgamentos de valor e pela presença de um elemento de reflexão consciente por parte das
pessoas interessadas", e normal seria definido "no sentido matemático de freqüência real
dos comportamentos observados"(op.cit., p. 257).
Observa-se, operando uma articulação entre os autores, que o termo norma(s) em
COSERIU não inclui o conceito de norma explícita, isto é, o normativo não está
especificado no esquema lingüístico de COSERIU; diz respeito às normas sociais e à
norma "individual"; que a norma implícita é que corresponde a norma(s) em COSERIU;
que a norma "individual" não é considerada especialmente em ALEONG – parecendo
encaixar-se no que ele considera normal (norma implícita).
Mas algumas caracterizações ainda são necessárias para discutirmos, em escala real, o
problema levantado pela admissão inicial do mecanismo de pressão institucional.
O que COSERIU chama de sistema da língua aparece, para ele, não tanto como um
conjunto de "imposições", mas como um conjunto de "liberdades": o sistema teria um
caráter "consultivo", proporcionando aos sujeitos meios para sua expressão inédita, e ao
mesmo tempo compreensível aos usuários do mesmo sistema. O que, de fato, se impõe ao
sujeito é a norma; dada a sua configuração, é ela que restringe as possibilidades que o
sistema oferece: são imposições sócio-culturais.
As várias normas podem ser representadas, aqui, como linguagem familiar, linguagem
popular, língua literária, linguagem erudita, linguagem acadêmica...É verdade que a
norma é passível de alteração, podendo, ao extremo, alterar o equilíbrio do sistema. O
desconhecimento da norma pelo locutor fá-lo orientar-se pelo sistema; pode, então,
haver ou não coincidência com a norma. A rejeição da norma, por outro lado, faz o
locutor ultrapassá-la, em proveito das "liberdades" que o sistema oferece. Os efeitos
disso, é claro, podem variar muito, e vão desde a marginalização do sujeito até sua
glorificação, dependendo de um conjunto muito complexo de fatores.
Estabelecendo a distinção sistema/norma/fala, COSERIU mostra que se justificam as
várias orientações da lingüística (COSERIU, 1979,p. 79). Quando valorizamos a
originalidade expressiva temos um aspecto estético; se nos fixamos na norma (tradição
social e cultural) temos uma história da cultura.
Resumindo a discussão feita até aqui, um conjunto de pontos que vão do aspecto genérico
da questão (social-antropológico) ao aspecto específico (lingüístico) apontarão uma visão
da(s) norma(s):
1) Reconhecemos a existência de um condicionamento lingüístico-sócio-ideológico.
2) As normas sociais são, genericamente, formas de controle e pressão sobre a sociedade.
3) As normas sociais impõem esquemas de comportamento individual dentro da
sociedade.
4) As instituições sociais são a fonte, a origem dessas normas.
5) Num mundo de normas sociais, o "estado de consciência" do indivíduo é,
inelutavelmente, condicionado pela sua experiência objetiva (situações imediatas e
mediatas).
6) Condicionada a este esquema social de normas, a linguagem, encarada como atividade,
apresenta uma ordem psíquica e uma ordem lingüística, compondo uma realidade
unitária, um estreito estado de integração.
7) O conceito de norma surge como abstração a partir de atos lingüísticos concretos, pela
retenção do que é normal e tradicional na comunidade.
8) A norma é passível de variedades, de acordo com uma escala de valores que diz
respeito a exigências na interação lingüística (comunidades discursivas).
9) No campo da norma, assim estabelecido, pode-se reter a dicotomia normal /
normativo, referindo o normativo a um ideal predeterminado e, portanto, constituído
através de reflexão.
10) O normativo, a partir das premissas anteriores, situa-se em grau de formalização
maior que o normal, que, por sua vez, rigorosamente, parece situar-se em nível de
abstração menor que a norma tal como definida acima, ou seja, o normal é mais próximo
do falar concreto (teoricamente) – freqüência real em termos comportamentais.
11) A norma se impõe ao indivíduo social e culturalmente: o normal (norma implícita)
traz uma carga mais interior, mais inconsciente de imposição (pressão ideológica); o
normativo tem uma carga positiva e concreta de pressão, cristalizada, em termos de
linguagem, nas gramáticas escolares.
12) A abstração tende a separar também dois campos entrelaçados na linguagem como
atividade: a afetividade e a intelectividade, dando primazia a este nas dicotomias
vigentes.
13) A originalidade expressiva, assim, embora também possa situar-se no campo mais
abstrato da norma social, é vista mais comumente como elemento marginal na análise
lingüística. A afetividade aparece, dessa forma, como um nível "superficial",
eventualmente uma distorção na face nobre da linguagem: a sua propriedade intelectiva,
cognitiva.
Esta postura ainda é comum na ciência lingüística, que remete as questões de estilo para a
literatura, para a retórica (vista esta de uma maneira muito estrita e falha). Ao contrário, a
compreensão que se deseja de estilo, aqui, é aquela em que se aproxima estilo de
registro, correspondendo a uma variação com base na situação social em que o locutor se
encontre. Associando isto à(s) norma(s), observe-se que é convencional que haja um uso
da linguagem ajustado a um conjunto de fatores, todos vinculados às necessidades de
interação lingüística – o que se reflete nos gêneros.
Veja-se o que declara LEFEBVRE (1983, p. 329): "Escolhendo um estilo antes que um
outro, um locutor revela já uma grande quantidade de informação sobre si mesmo, a
situação na qual se encontra, o efeito que quer produzir em seu interlocutor, a relação que
quer manter com ele, etc." Dada essa realidade funcional da variação estilística, a autora
conclui pela inconveniência de uma norma única, o que seria contrário ao próprio
fundamento da interação.
Retornando ao lugar de onde partimos – a instituição escolar –, parece justificada a
preocupação de, em nível teórico e prático, repensar objetivos, concepções, metodologias
e técnicas de "ensino" de Língua Portuguesa. A julgar pelas cenas descritas, em toda
parte, de um teatro que apresenta a mesma peça dia a dia, mês a mês, ano a ano, e
considerando a resistência e a autoridade de uma poderosa central de comando, pode-se
dizer que o discurso da lei está muito distanciado da prática preconizada.
Com efeito, embora esse discurso se manifeste em textos que preconizam, e portanto
tenham sua construção parcialmente prospectiva (determinando que "no futuro" as ações
sejam de uma forma e não de outra), esse futuro, para nós, se visualiza como algo
bastante utópico. No caso da educação, é suficiente a consulta à Constituição brasileira de
1988. Em seu artigo 214 está estabelecido que o plano nacional de educação visará
à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e à integração das
ações do Poder Público que conduzam à:

I – erradicação do analfabetismo;

II – universalização do atendimento escolar;

III – melhoria da qualidade do ensino;

IV – formação para o trabalho;

V – formação humanística, científica e tecnológica do País.

Por outro lado, o artigo 206 enumera os princípios de ensino, dentre os quais relevamos
quatro:
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, [...]

[...]

VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei;

VII – garantia de padrão de qualidade.

Ressalte-se que num e noutro artigo está determinada a condução do processo


educacional pelo princípio da qualificação, sem adjetivo que discrimine o tipo ou nível
de ensino.
No entanto, se liberdade de aprender e de ensinar implica pluralismo de idéias e de
concepções pedagógicas, é difícil entender (?) que haja comprazimento na manutenção de
algumas tradições impositoras de esquemas às vezes radicais, e que servem de referência
muitas vezes para a crítica à instituição mesma. Pluralismo de idéias e de concepções
pedagógicas, alternativas de ensino, experiências e avaliações não são plantas que brotam
da noite para o dia, nem de um mês para o outro. E se aparecem, no discurso, como uma
"verdade" a prezar e a buscar, serão, na prática (durante quanto tempo?), uma utopia, uma
atemporalidade.
Daí a nossa preocupação.
________________________________
Nota: Este artigo constitui resumo do primeiro capítulo de uma pesquisa de minha
autoria, intitulada Norma, subjetividade, expressividade (1994 – Florianópolis, UFSC).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEONG, Stanley. Normes linguistiques, normes sociales, une
perspective anthropologique. In: BEDARD, Edith e MAURAIS, Jacques
(orgs.). La norme linguistique. Québec, 1983. p. 255-280.
BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO
BRASIL. 1988. São Paulo: Ed. Especial da Encyclopaedia Britannica do
Brasil.
COSERIU, Eugenio. Teoria da linguagem e lingüística geral. Trad.
Agostinho Dias Carneiro. Rio de Janeiro: Presença, 1979 (Col.
Linguagem, 3).
LEFEBVRE, Claire. Les notions de style. In: BEDARD, Edith e
MAURAIS, Jacques (orgs.). La norme linguistique. Québec, 1983. p.
305-334.
PRETI, Dino. Sociolingüística: os níveis de fala. São Paulo: Editora
Nacional, 1974.
TERWILLIGER, Robert F. Psicologia da linguagem. Trad. Leonidas
Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix / EDUSP,
1974.

back to top
| home | textos |
Erro! O nome de arquivo não foi especificado.

Você também pode gostar