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1. Introdução
Costuma-se considerar que Liebman2 propôs uma teoria da ação que seria uma
solução de compromisso entre uma teoria (concreta) da ação como direito (autônomo) a
uma sentença favorável ao autor (reconhecendo o direito por ele afirmado) e uma teoria
(abstrata) da ação como direito a uma sentença qualquer. O diferencial da teoria de
Liebman foi propor a ação como direito a uma sentença de mérito, ou seja, que julga o
pedido, seja para acolhê-lo, seja para rejeitá-lo. Para Liebman, portanto, nem toda
sentença, necessariamente, encerra o processo com prestação de tutela jurisdicional,
como é o caso, inquestionável, daquela que extingue por falta de um dos requisitos de
constituição de desenvolvimento válido e regular do processo. Propõe ele, portanto, que
o direito de ação, entendido como direito à sentença de mérito, seja condicionado a
requisitos que se submeteriam a um regime análogo ao dos pressupostos processuais, e
cuja ausência dispensaria (ou impediria) o juiz de proferir sentença de mérito, ou seja,
declarar existente ou inexistente o direito afirmado. Tais requisitos são as “condições da
ação”, mais precisamente, o interesse processual e a legitimação para agir. 3
Liebman4 definiu o interesse processual, como uma das condições da ação, nos
seguintes termos:
1
A “parcialidade” aqui referida diz respeito à omissão do legislador em elencar, como condições da ação,
ao lado do interesse e da legitimidade, a possibilidade jurídica do pedido. A discussão sobre isso, no
entanto, não será aqui enfrentada, embora o que se vier a concluir aqui, revela-se decisivo no
enfrentamento da questão: o reconhecimento da impossibilidade jurídica do pedido, tal como ela é
definida por Liebman, deve ser considerado como julgamento de mérito, no CPC/2015?
2
Cf. LIEBMAN, Enrico T. L´azione nella teoria del processo civile. In Problemi del Processo Civile.
Napoli : Ed. Morano, 1962, p. 25-53; LIEBMAN, Enrico T. Manual de Direito Processual Civil, vol. I,
DINAMARCO, Cândido R. (trad.), Rio de Janeiro: Forense, 1984.
3
Na primeira exposição completa de sua teoria da ação (em “L’azione…”, cit.), Liebman distinguia três
condições da ação, incluindo a possibilidade jurídica do pedido ao lado do interesse e da legitimidade.
Contudo, a partir da 3ª edição do seu Manuale, Liebman passou a considerar a impossibilidade jurídica do
pedido, nos termos em que ele definia essa noção, como um caso especial de falta de interesse processual.
Cf. a nota 106 de Dinamarco, em LIEBMAN, Manual, cit., p. 160-161.
4
LIEBMAN, E., Manual, cit., p. 155.
O interesse de agir decorre da necessidade de obter através do processo a proteção do
interesse substancial; pressupõe, por isso, a assertiva de lesão desse interesse e a aptidão
do provimento pedido a protegê-lo e satisfazê-lo. Seria uma inutilidade proceder ao
exame do pedido para conceder (ou negar) o provimento postulado, quando na situação
de fato apresentada não se encontrasse afirmada uma lesão ao direito ou interesse que se
ostenta perante a parte contrária, ou quando os efeitos jurídicos que se esperam do
provimento já tivessem sido obtidos, ou ainda quando o provimento pedido fosse em si
mesmo inadequado ou inidôneo a remover a lesão, ou, finalmente, quando ele não
pudesse ser proferido, porque não admitido pela lei. Naturalmente, o reconhecimento da
ocorrência do interesse de agir ainda não significa que o autor tenha razão: quer dizer
apenas que o seu pedido se apresenta merecedor de exame. Ao mérito, e não ao
interesse de agir, pertence toda e qualquer questão de fato e de direito relativa à
procedência do pedido, ou seja, à juridicidade da proteção que se pretende para o
interesse substancial.
Já a legitimidade ou legitimação para agir, foi por ele definida nos seguintes
termos:
A legitimação, como requisito da ação, é uma condição para o pronunciamento sobre o
mérito do pedido; indica, pois, para cada processo, as justas partes, as partes legítimas,
isto é, as pessoas que devem estar presentes para que o juiz possa julgar sobre
determinado objeto.
(…)
Como direito de invocar a tutela jurisdicional, a ação apenas pode pertencer àquele que
a invoca para si, com referência a uma relação jurídica da qual seja possível pretender
uma razão dse tutela a seu favor. Já se disse logo acima que o interesse de agir se
destina a remover a lesão de um interesse substancial que se diz protegido pelo direito;
ele só pode, pois, ser invocado [fatto valere] por aquele que se afirma titular do interesse
substancial cuja tutela vem pedir em juízo.5
5
LIEBMAN, E., Manual, cit., p. 157-158.
O que faz alguém ao afirmar ser titular do direito a algo, ou seja, ao afirmar que
existe um direito seu a algo? Como analisar, do modo mais informativo possível, a
tradicional noção de “afirmação de direito”? Parece razoável reconhecer que alguém, ao
se dizer “titular do direito a algo” (uma prestação Px), faz algo que pode ser descrito
mais ricamente nos seguintes termos:
b) Afirma que existe uma norma segundo a qual sempre que ocorrer um
fato do tipo TF, indicado nessa norma, se está autorizado ou legitimado a
considerar devida uma conduta do tipo TC, tipo esse também indicado na
mesma norma.
Assim, por exemplo, a citação nula é o mesmo que a não ocorrência de ato que
corresponda ao tipo legal “citação válida”; o mesmo se deve dizer com relação à petição
inválida por não atendimento dos requisitos específicos: não ocorrência do fato
consistente na apresentação de petição conforme ao tipo legal “petição válida”.
Como se viu, requisitos legais são fatos ou estados de coisas, à ocorrência dos
quais, alguma norma condiciona sua incidência concreta, isto é, a produção em concreto
do efeito que ele abstratamente associa à ocorrência daqueles fatos, genérica e
abstratamente descritos na mesma norma. A quais fatos Liebman se refere, em sua
definição de interesse processual? Ora, aquilo que ele apresenta como “sendo” o
interesse processual consiste, como ele mesmo diz, em uma propriedade ou seja, em um
atributo, a saber “a relação de utilidade entre a afirmada lesão de um direito e o
provimento de tutela jurisdicional pedido”. Uma lesão de um direito é um fato; a
afirmação de lesão de um direito é um outro fato (de outra ordem, é certo, de ordem
linguístico-jurídico), assim como são fatos o pedido que a parte formula no sentido de
obter certa tutela jurisdicional e a tutela jurisdicional eventualmente prestada. Porém, a
“relação de utilidade” apontada por Liebman, assim como qualquer relação de utilidade
entre quaisquer dois itens, simplesmente, não é um fato, mas uma propriedade de um
fato ou estado de coisas. A utilidade de X é a aptidão de X satisfazer uma necessidade
N do sujeito S. Portanto, isso não é um estado de coisas, embora seja um aspecto de um
estado de coisas.
À luz do que já se disse, resta manifesto que o que se examina para saber se há
ou não uma apenas afirmada “lesão ao direito ou interesse que se ostenta perante a parte
contrária, ou quando os efeitos jurídicos que se esperam do provimento já tivessem sido
obtidos, ou ainda quando o provimento pedido fosse em si mesmo inadequado ou
inidôneo a remover a lesão, ou, finalmente, quando ele não pudesse ser proferido,
porque não admitido pela lei”? O que se examina é, precisamente, o pedido formulado
pelo autor, assim como os fatos e fundamentos jurídicos invocados em sua causa de
pedir, ou seja, o próprio mérito da causa. Não há um outro quid a ser examinado, na
“verificação da ocorrência” do interesse de agir, senão a própria demanda deduzida em
juízo.
Note-se, en passant, que com essa distinção surge uma noção mais restrita de
julgamento de mérito, a saber: aquele julgamento que o juiz realiza após a
oportunização e a eventual ocorrência de instrução probatória.
Não obstante os erros de categoria cometidos por Liebman, ele deu uma
contribuição de extremo valor e, devidamente compreendidas suas ideias, de um valor
perene. Com efeito, Liebman explicitou os critérios de realização de uma gestão
processual, para usar um termo da moda, de maneira a possibilitar ao juiz distinguir,
através de um exame abstrato e hipotético da demanda, as causas que mereceriam ser
instruídas plenamente, daquelas que não mereceriam, pois jamais poderiam ter êxito,
qualquer que fosse o resultado da instrução. Nesse sentido, ele foi um pioneiro, embora
ele próprio não tenha tido explícita consciência disso.