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Notas sobre a improcedência liminar do pedido (Art. 332 do


CPC/2015)

1. Introdução

O art. 332 do CPC/2015 disciplina e amplia as hipóteses de improcedência liminar do


pedido. Em todas as hipóteses indicadas nos incisos I a IV deste dispositivo – e mesmo naquela
relativa à verificação pelo juiz da ocorrência de prescrição ou decadência, tratada no §1 º do art. 332
- a possibilidade de improcedência liminar do pedido tem, como requisito comum, a circunstância
de se tratarem de “causas que dispensem a fase instrutória”.

Tais inovações do CPC/2015 já foram objeto de várias análises e comentários, inclusive


críticos, sobretudo para apontar incoerências com o que dispõe o art. 10 do mesmo diploma. No
presente texto, pretende-se apenas (1) realizar uma interpretação atenta da expressão 'causas que
dispensem fase instrutória', ocorrente no caput do mencionado art. 332, e (2) indagar sobre a
maneira como se deve entender a “contrariedade entre pedido e enunciado de súmula do Supremo
Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça” (inc. I do art. 332 do CPC/2015).

2. Sobre a identificação de “causa que dispensa fase instrutória”

Não parece tarefa fácil aquela de determinar, com base apenas nos dados trazidos pela e com
a petição inicial, se o julgamento do pedido “dispensa a fase instrutória”. Quer dizer, mesmo que,
inicialmente, a demanda se mostre assim ao julgador, no exame unilateral feito por ele antes de
ouvir o réu, este último pode, ao se manifestar, demonstrar a necessidade de dilação probatória
quanto aos fatos alegados.

Há quem interprete a expressão ‘causas que dispensem fase instrutória’, como designando as
hipóteses em que os fatos alegados pelo autor estejam “comprovados” por prova documental, a qual
já tenha sido produzida com a inicial. Nesse sentido, a lição de Didier 1: “Causa que dispensa a fase
instrutória é aquela cuja matéria fática pode ser comprovada pela prova documental.”

Rigorosamente, esta não se revela a maneira mais adequada de se compreender a expressão


‘causa que dispensa fase instrutória’. Quando se pensa em “prova” não como “meio de prova”, mas
como “convencimento racionalmente fundamentado”, a mera produção de meio de prova
documental com a inicial não é suficiente para qualificar nenhum convencimento judicial sobre os
fatos alegados – e aos quais esses meios de prova se refiram e possam, efetivamente, servir como
razão do respectivo convencimento judicial – como racionalmente justificados. É que “fato

1 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Vol. I, 17. ed.,
Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015, p. 593.
provado” significa “fato objeto de convencimento devidamente fundamentado”. Por sua vez, um
modelo de fundamentação racional do convencimento judicial sobre fatos relevantes deve
incorporar a circunstância de ser forçosamente derrotável qualquer fundamentação racional que seja
humanamente possível oferecer a qualquer hipótese de convencimento judicial (sobre fatos
relevantes, mas também sobre as normas aplicáveis à espécie).

Este aspecto – a derrotabilidade intrínseca da justificação do assim chamado “juízo de fato”


– tem pelo menos duas consequências importantes, na disciplina do processo judicial: uma, diz
respeito ao contraditório e outra à iniciativa judicial em matéria probatória. Embora aqui não se
possa discorrer adequadamente sobre tais tópicos, ao menos sobre o primeiro deles convém
assinalar o seguinte: é a derrotabilidade intrínseca da justificação não dedutiva dos juízos de fato,
que confere, ao contraditório, um valor epistêmico em sentido estrito e não apenas um valor ético. 2
Dessa forma, justamente porque todo meio de prova pode ter a sua força probatória diminuída ou
eliminada à luz de diferentes ordens de circunstâncias fáticas, apenas por forte presunção legal seria
possível considerar como “racionalmente justificado” um convencimento judicial sobre fato
relevante, que se amparasse apenas em “prova documental” produzida sem a oportunização do
respectivo contraditório.

Por isso é que, na perspectiva da epistemologia da prova judicial, portanto, a mera


circunstância das alegações do autor contarem com meios de prova documental aptos a fundamentar
um convencimento judicial sobre a sua ocorrência, ainda não permite qualificar a respectiva causa
como “dispensando instrução probatória”. A única hipótese em que se poderia determinar, com
segurança, que se está diante de uma “causa que dispensa instrução probatória”, antes de se
oportunizar o contraditório, é aquela em que a parte alega fato notório.3

Agora, ponto que merece ser observado, sobre fato notório, é o seguinte: que a repetição de
demandas é uma das fontes de tornar determinados fatos notórios a um órgão jurisdicional, ou
mesmo a uma certa comunidade. A repetição de demandas permite que sejam conhecidas todas as
alegações possíveis que a parte passiva habitual tenha a alegar e, uma vez tendo o juiz formado seu
convencimento, em contraditório, num número suficiente de causas, a matéria fática, mesmo que
dependente de provas de outra ordem, além da documental, já se tornou notória a este juízo.

Ora, essa leitura do caput do art. 332 o tornaria muito mais próximo do art. 285-A do
CPC/1973 do que se tem considerado e poderia ser considerado, até, como um aperfeiçoamento
deste último. Ademais, esta interpretação de ‘causas que dispensem fase instrutória’ tenderia a
reduzir o alcance da nova norma, uma vez que o seu “pressuposto genérico” só ocorreria,
rigorosamente, ou nas excepcionalíssimas hipóteses de fato pura e simplesmente notório, ou
naquelas que poderiam ser chamadas de “fatos com notoriedade induzida por repetição de
demandas”.

Por outro lado, há outra maneira de se compreender a expressão ‘causas que dispensem
instrução probatória’, a qual não exclui a interpretação acima proposta, o que resulta em ampliar,
por outro viés, o alcance da norma veiculada pelo art. 332 do CPC/2015. Com efeito, aquilo que
Liebman chamou de “condições de ação” consistem em critérios para realizar um juízo de
relevância hipotética da demanda, no qual “o juiz examina o mérito ou a demanda deduzida pelo
autor em chave abstrata e hipotética (abstraindo a veracidade das alegações do autor e tomando-as
hipoteticamente como verdadeiras), a fim de determinar se há ou não a “possibilidade lógica” de

2 A possibilidade desta contribuição deveria ser levada em consideração como critério delimitador do alcance da norma
veiculada pelo art. 10 do CPC/2015
3 Impõe-se reconhecer, todavia, que a vagueza da noção “fato notório” pode trazer complicações e limitações a
interpretação do art. 332, ora proposta.
êxito do autor, ou seja, se é relevante a demanda, no sentido de ser logicamente possível o seu
acolhimento”.4[4]Com isso, o que se tem, na prática, é que as causas em que se diz,
enganadoramente, que “não estão presentes as condições da ação”, são também causas que, por isso
mesmo, “dispensam a fase instrutória”, uma vez que a demanda deve ser rejeitada com base num
mero juízo de relevância hipotética. Nessa leitura de ‘causas que dispensam prova’, portanto, o art.
332 do CPC/2015 deve ser visto como tornando explícitas algumas hipóteses daquilo que, com base
no diploma de 1973, melhor seria qualificado como hipóteses de “impossibilidade jurídica do
pedido”.

Em síntese, há duas interpretações distintas e defensáveis conjuntamente para a expressão


‘causas que dispensam prova’, ocorrente no art. 332 do CPC/2015:

a) Numa leitura, esta expressão significaria “causas que dispensam fase instrutória
porque os fatos alegados são suficientemente sabidos pelo juiz”.
b) Noutra leitura, a mesma expressão significaria “causas que dispensam fase
instrutória porque os fatos são hipoteticamente dados como verdadeiros” (e, mesmo
assim, a demanda deve ser liminarmente rejeitada, em razão de uma das hipóteses
dos incisos I a IV do mesmo art. 332).

3. Sobre a “contrariedade entre pedido e enunciado de súmula do Supremo Tribunal


Federal ou do Superior Tribunal de Justiça”

Passando agora à análise da hipótese prevista no inc. I do art. 332, este específico dispositivo
legal, tomado o seu texto no seu sentido literal, parece veicular norma contrária, a um só tempo,
àquela veiculada pelo art. 10 do CPC/2015 e àquela veiculada pelo inciso V do art. 489 do
CPC/2015, quando tais dispositivos legais são também tomados em seu sentido literal. Iniciando
pelo confronto entre o inc. I do art. 332 e o inc. V do art. 489, cumpre recordar que este último
explicita como hipótese em que uma decisão judicial não estará fundamentada, no caso em que “se
limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos
determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos”. Assim,
compreendendo a relação entre “pedido” e “precedente”, na perspectiva (correta) do mencionado
inciso V do art. 489, é forçoso reconhecer que, rigorosamente, tanto a “conformidade”, como a
“contrariedade” entre pedido e precedente não podem ser dadas de forma direta, mas tão somente
quando o precedente é compreendido à luz dos seus fundamentos.

Nessa perspectiva, impõe-se estar atento para que a aplicação do inc. I do art. 332, não
termine por permitir que seja preservada a nefasta prática de se utilizar súmulas e enunciados sem
que estes sejam examinados na perspectiva dos seus “fundamentos determinantes”, a qual pretendeu
o legislador, didaticamente, no inc. V do art. 489 do CPC/2015, explicitar como incompatível com o
dever de fundamentação das decisões judiciais, consagrado no art. 93, IX, da CF. Ora, o referido
inc. I do art. 332 autoriza que seja julgada liminarmente improcedente a demanda, “nas causas que
dispensem fase instrutória”, quando o pedido contrariar “I - enunciado de súmula do Supremo
Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça”. Contudo, quando se leva em consideração o
disposto no inc. V do art. 489 do CPC/2015, o inc. I do art. 332 mencionado deve ser entendido
como contendo uma “cláusula” complementar, resultando num texto “enriquecido” nos seguintes
termos:
4 Cf. GUERRA, Marcelo Lima. Condições da ação e mérito em Liebman e no CPC/2015
“Art. 332, IALT- enunciado de súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior
Tribunal de Justiça, na perspectiva dos fundamentos determinantes da súmula e
com a devida demonstração de que o caso sob julgamento se ajusta aos mesmos
fundamentos”.

Uma vez que seja assim “enriquecido” o texto do inciso I do art. 332, de modo a torná-lo
explícita e “textualmente” coerente com o disposto no art. 489, V, cabe indagar: haverá um espectro
suficientemente significativo de situações em que esse desajuste possa ser aferido com base tão
somente no exame das alegações do autor? Haverá alguma situação que não seja um erro
teratológico (a ponto de, com a devida interpretação, ser enquadrado como falta de possibilidade
jurídica do pedido), em que o juiz esteja diante, ao mesmo tempo, de uma causa que “dispensa fase
instrutória” e que contenha elementos bastantes para ele aferir que, à luz dos fundamentos
determinantes da súmula contrariada, a situação concreta estaria, efetivamente, fora do alcance do
entendimento firmado pela mesma súmula?

4. Breve arremate

Como se vê, para que uma decisão que julgue liminarmente improcedente uma demanda se
adeque às garantias do contraditório e da fundamentação racional das decisões judiciais, faz-se
necessário bastante esforço por parte do juiz. Para não incorrer em nenhuma nulidade, ele deve
realizar exames que, na prática, ainda costumam ser “deixados para depois”. Dessa forma, arrisca-
se dizer que, sem a devida preparação e mesmo formação de uma nova mentalidade judicial, é
provável que o uso deste instituto seja, inicialmente, uma fonte constante de violações às
mencionadas garantias e que, posteriormente, tenda a cair em desuso, optando sempre os juízes a,
na dúvida, ou por falta de tempo, deixar de se valer da possibilidade de improcedência liminar
prevista no art. 332 do CPC/2015.

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