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Módulo processual

João estava insone. A ponto de, em determinada hora, levantar da cama e começar a
fazer coisas aleatórias. João:

[A1] Abriu a janela

[A2] Desligou o ar condicionado

[A3] Foi até a cozinha e bebeu água

[A4] Ligou o celular e checou o whats app

[A5] Ligou a televisão

[A6] Foi no banheiro

[A1] Desligou o ar condicionado

[A2] Foi até a cozinha e bebeu água

[A3] Abriu a janela

[A4] Foi no banheiro

[A5] Ligou a televisão

[A6] Ligou o celular e checou o whats app

Esses atos formam uma sequência, mas apenas em razão de um único critério: o da
ordem temporal.

O que há em comum entre esses atos é, tão somente, que eles ocorrem em coordenadas
temporais imediatamente sucessivas.

Isto é tudo que há de “sequencial” entre eles.

Tanto é que o exato mesmo conjunto de atos poderia ser realizado numa ordem
inteiramente diversa.

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Agora, considere-se a hipótese em que Maria quer tirar sua carteira de motorista (quer
que o Detran emita a sua carteira de motorista). Para tanto, Maria realizou, basicamente,
a seguinte sequencia de atos:

[B1] Realizou a inscrição no órgão adequado.

[B2] Realizou sua inscrição numa autoescola referendada

[B3] Cursou o número de aulas determinadas

[B4] Realizou os testes de direção e de legislação

[B5] Realizou o exame de vista pelo médico credenciado.

[B6] Apresentou ao Detran os resultados para avaliação e, sendo o caso, emissão da


carteira pelo Detran.

Os atos acima também formam uma sequência, mas não uma meramente temporal: eles
formam uma sequência lógico-normativa, porque existe um vínculo normativo (e
lógico) entre eles.

Maria não poderia criar, com esses mesmos atos, uma outra sequência totalmente
diversa, na organização desses atos.

Pela seguinte razão: com exceção do primeiro e do último, cada ato tem como “requisito
normativo” a prática do que lhe antecede e é, da mesma forma, requisito normativo do
ato que lhe sucede.

É dizer:

Só é lícito praticar [B2], se [B1] for realizado, assim como só é lícito praticar [B3], se
[B2] for realizado, assim como só é lícito praticar [B4], se [B3] for realizado, e assim
sucessivamente até o último ato da sequência, qualquer que ele seja (no caso, [B6]).

Agora, quando se fala que algo é “requisito normativo” de outra coisa se está,
implicitamente, referindo a uma norma que estabeleça este vínculo entre as duas
situações. Nada é, em si mesmo, requisito normativo para qualquer outra coisa, pois isto
não é um atributo “natural”: para tanto, é ontologicamente indispensável a existência de
uma norma que estabeleça que a ocorrência de uma situação concreta – a realização de

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um ato, por exemplo – é pressuposto para tornar lícito, obrigatório, permitido etc, a
prática de um outro ato.

Assim, a sequência lógico-normativa de atos é, na realidade, a manifestação concreta de


uma sequência de normas, dotada das seguintes características:

Com exclusão da primeira e da última, cada norma prevê um ato de determinado tipo na
sua parte antecedente, e qualifica deonticamente um ato de outro tipo, na sua parte
consequente, ao mesmo tempo que uma norma sucessiva prevê a realização deste
segundo ato, na sua parte antecedente, e qualifica deonticamente um terceiro tipo de
ato, na sua parte consequente, ao passo que uma norma sucessiva prevê a realização
deste terceiro ato, na sua parte antecedente, e qualifica deonticamente um quarto tipo de
ato, na sua parte consequente, e assim sucessivamente até a última norma da sequência.

Visualmente, tem-se o seguinte:

[N1] Se I, então O[B1]

[N2] Se [B1], então O[B2]

[N3] Se [B2], então O[B3]

[N4] Se [B3], então O[B4]

[N5] Se [B4], então O[B5]

Etc...

Em outra visualização, tem-se o seguinte:

[N1] I → [N2] [B1] → [N3] [B2] → [N4] [B3] → [N5] [B4] → O[B5]
O[B1] O[B2] O[B3] O[B4]
[B1] [B2] [B3] [B4] [B5]

Esse tipo de fenômenos, sequências de atos que são reflexos de uma sequência de
normas, é extremamente difundido no direito e fora dele.

Fora do direito, alguns termos são “protocolo”, “passo a passo”, “rotina”, “método”.

No direito, os termos mais comuns para designar exemplos desse tipo são
“procedimento” e “processo”.

Há diferenças marcantes, as principais delas impostas pelo Constituição, nos diversos


exemplos mais específicos de sequências lógico-normativas de atos, na experiência

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jurídica, o que torna muito conveniente a adoção de um termo teórico neutro para se
referir a todos eles, globalmente.

Isso facilitará, justamente, tratar melhor das distinções, em particular daqueles casos em
que um ato deve ser preparado por uma sequência dessas.

Para se referir a tais sequências, sem nenhuma especificação, será adotado o termo
“módulo sequencial”.

Por outro lado, em alguns casos a Constituição em primeiro lugar, e a legislação


infraconstitucional, em segundo lugar, torna obrigatório que um ato ou atividade seja
fruto de um módulo sequencial dotado de certas características, ou seja, que as normas
da sequência sejam tais que reflitam valores constitucionais, em particular a garantia do
contraditório.

Para se referir a essa modalidade específica de módulos sequenciais (os quais são bem
diversos entre si, mas todos dotados dessa sujeição a valores constitucionais), será
adotado aqui um outro termo: “módulo processual dialético”, ou, mais simplesmente,
“módulo processual”.

Tem-se assim o seguinte:

Módulo sequencial designa qualquer sequencia lógico-normativa de atos e de normas.

Módulo processual designa os módulos sequenciais cujas normas respectivas


concretizam valores constitucionais relativos ao processo (em particular o
contraditório).

Com exceção da primeira e da última, cada norma tem na sua parte antecedente, como
hipótese de incidência, a prática de um ato que é deonticamente qualificado na parte
consequente de uma norma anterior, ao mesmo que tem aquela norma, em sua parte
consequente, a qualificação deôntica de um ato que integra a parte antecedente de uma
outra norma sucessiva, como sua hipótese de incidência

Se Ax, então OBx / Se Bx, então OCx / Se Cx, então ODx / Se Dx, então OEx

A1 / B1 / C1 / D1

Trata-se de um agir mediante uso ou aplicação de normas, pensadas para estruturar


sequências de atos, mas que pela vivência foram se tornando bastante diversificadas, a
ponto de ser, hoje, algo mais como um caleidoscópico normativo onde várias disciplinas
alternativas de sequência de atos já estão, como que potencialmente, efetivadas na lei.

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Cada norma tem como consequente, a previsão abstrata de um ato, que é por sua vez o
antecedente de uma outra norma, que tem como consequente um outro ato e assim até
um ato final, num sentido em num outro (ex. extinção sem julgamento de mérito).

A mesma norma tem, por sua vez, como antecedente, um ato que é objeto de uma outra
norma, que dele trata em seu consequente (ou seja, insttui ele como efeito de algo), de
uma outra norma, que tem outro ato como antecedente e assim sucessivamente, até
chegar ao ato inicial desta sequência lógica.

Tem-se, assim, o seguinte: como que uma cadeia de atos (inclusive apenas possíveis)
que bem pode ser descrita como uma sequência lógica e normativa de atos de usos de
determinadas normas.

Tem o dever de X

Você faz X

Se você fez X, você tem a autorização para fazer Y, que você já é obrigado a fazer (para
fazer o resto das coisas).

Você faz Y.

Se você fez Y, você tem o dever/autorização para fazer Z.

Você faz Z.

Se você faz Z, o órgão tem o dever de lhe dar a carteira.

Os atos dessa sequência são dotados da seguinte característica:

Com exceção do primeiro e do último, cada um deles está estruturado como uma
sequência lógica – ou normativa – de atos, na qual cada ato é o requisito legal do que
lhe sucede e é o efeito concreto do que lhe antecede –que lhe tem, obviamente, como o
seu pressuposto.

Isso, todavia, é o aspecto externo do fenômeno. Sempre que isso ocorre, se está diante
de um uso sistemático de normas, todas elas (com raras exceções) disciplinando mais
que os atos (isso se define rápido), a sequência ou as sequencializações possíveis entre
eles.

Vejamos.

Norma N1: Se x quer uma carteira, então x deve obter um certificado válido de ___.

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Norma N2: Se x obtém um certificado válido de ___, então x está autorizados a realizar
os testes T (T1 e T2).

Norma N: Se x realiza e tem sucesso nos testes T (T1 e T2), então o órgão tem o dever
de expedir.

Ato 1 (A1) O autor apresenta petição inicial, na qual é formulado pedido


que não decorre logicamente da causa de pedir.

Ato 2 (A2) O juiz profere sentença de indeferimento da inicial.

Ato 3 (A3) O autor apela da sentença.

Ato 4 (A4) O juiz não se retrata no prazo de cinco dias.

Ato 5 (A5) O juiz manda citar o réu para responder....

Ato 1 (a1) O autor apresenta petição inicial, na qual é formulado pedido


que não decorre logicamente da causa de pedir, o que faz este
Ato 1 atrair a incidência da norma veiculada pelo - aqui
denominada norma N1 – por se enquadrar em sua parte
antecedente, a saber a hipótese legal consistente no inc. do
dispositivo mencionado.
Ato 2 (a2) O juiz profere sentença de indeferimento da inicial, exercendo
um poder que lhe é conferido pelo consequente da norma
N1, expressa pelo art. 4, inc I do CPC (a qual incidiu no
caso concreto com a apresentação de petição eivada de
vício 1 (fato que se enquadra no antecedente de N1)) e,
com este Ato 2, atrai-se a incidência da norma aqui
denominada norma N2 por se enquadrar em sua parte
antecedente.
Ato 3 (a3) O autor apela da sentença, exercendo um direito/poder que
lhe é assegurado/conferido pela parte consequente da
norma N2, expressa pelo art. 4, inc. I do CPC (a qual
incidiu no caso concreto com o proferimento da sentença
de indeferimento); a mesma apelação, por sua vez, atrai a
incidência da norma veiculada pelo art. – norma aqui
denominada N3 – por se enquadrar em sua parte
antecedente.
Ato 4 (a4) O juiz não se retrata no prazo de cinco dias, exercendo um
poder que lhe é conferido pelo consequente da norma N3,
expressa pelo art. 4, inc. I do CPC (a qual incidiu no caso
concreto com a apresentação de apelação pelo autor (fato

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que se enquadra no antecedente de N3), ato que atrai a
incidência da norma veiculada pelo art. – norma aqui
denominada N4 – por se enquadrar em sua hipótese legal.
Ato 5 (a5) O juiz manda citar o réu para responder..., exercendo um
poder que lhe é conferido pelo consequente da norma N4,
expressa pelo art. 4, inc. I do CPC (a qual incidiu no caso
concreto com a não retratação do mesmo juiz, com relação
à sua sentença de indeferimento (fato que se enquadra no
antecedente de N4).

Como se vê, a parte em negrito corresponde a um enriquecimento bastante


significativo das descrições iniciais dos atos que integram um processo judicial
concreto, contidas na primeira tabela. Desta descrição mais robusta de cada um dos atos
da sequência indicada, portanto, extrai-se que todos eles, à exceção do Ato 1 e do Ato 5,
possuem as seguintes características ou propriedades:
i. Cada ato é um ato de exercício de uma posição subjetiva conferida pela
parte consequente de uma norma processual – portanto, um ato de uso 1
ou aplicação desta norma – a incidência concreta da qual foi causada pela
realização de outro ato processual (logicamente anterior), subsumível na
parte antecedente da mesma norma processual.
ii. Cada ato atrai a incidência de uma outra norma processual, por ser
subsumível na parte antecedente desta última, norma esta que, incidindo,
confere, em razão de sua parte consequente, uma posição subjetiva para a
realização de um outro ato (logicamente sucessivo) – para ato de uso ou
aplicação desta norma, portanto.

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Cumpre esclarecer que a noção de “uso” de uma norma, aqui utilizada, é diversa (talvez mais ampla)
daquela consistente em “cumprimento de uma norma”. Aqui se entende que um sujeito processual
diverso do juiz “usa” normas processuais, ao praticar atos processuais, na medida em que as invoca, ou
sabe que as pode invocar, como razão ou justificação do seu ato. Essa noção é importante para conferir
uma homogeneidade à relação entre os atos de todos os sujeitos processuais, juízes ou não, e as normas
que autorizam tais atos. É que se é certo que apenas quanto aos atos do juiz se poderia falar mais
comodamente em “atos de aplicação de norma”, a noção de “uso da norma” pelas partes parece
intuitiva e revela dimensão justificatória comum de todas as normas com relação aos atos processuais.

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