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O procedimento administrativo

1) Noção de procedimento administrativo 


 

O Código do Procedimento Administrativo (CPA) apresenta, logo no nº 1 do seu artigo 1º, uma
noção de procedimento administrativo: «a sucessão ordenada de atos e formalidades relativos à
formação, manifestação e execução da vontade dos órgãos da Administração Pública». Na
doutrina portuguesa, uma noção de procedimento administrativo, não muito distinta da do CPA, foi
apresentada por ROGÉRIO SOARES: «um conjunto de atos funcionalmente ligados com vista a
produzir um certo resultado, um efeito único».
 

Em primeiro lugar, o procedimento é uma sucessão ordenada ou, como diz FREITAS DO


AMARAL, uma sequência. A atividade administrativa não se esgota na tomada de decisões,
consistindo num conjunto ordenado e num encadeamento de atos, factos e formalidades que se
prolonga no tempo e por diversas fases (exemplos: prática de atos preparatórios como estudos,
exames e averiguações a efetuar; observância de certos trâmites como registos, controlos,
notificações aos interessados, etc.). 
 

Além disso, tem como fim a formação, manifestação e execução da vontade dos órgãos da
Administração Pública. O procedimento procura preparar e exteriorizar a prática de um ato da
Administração Pública (o que engloba várias categorias: atos administrativos, regulamentos e
contratos administrativos) ou a respetiva execução. Da perspetiva de ROGÉRIO SOARES, o
procedimento visa produzir «um certo resultado, um efeito único», que é a tomada da decisão.
 

O conceito de procedimento administrativo não se confunde com o de processo contencioso: o


primeiro regula a conduta da Administração Pública no exercício da função administrativa,
enquanto o segundo, desenvolvendo-se no âmbito dos tribunais, diz respeito ao exercício da
função jurisdicional na defesa do Direito Administrativo (cfr. PAULO OTERO).

Também se deve distinguir o procedimento administrativo do processo administrativo, cuja noção


se encontra consagrada no nº 2 do artigo 1º do CPA: «o conjunto dos documentos em que se
traduzem os atos e formalidades que integram o procedimento». O termo é aqui utilizado como
sinónimo de dossier (em francês) e de file (em inglês).
 

2) Natureza jurídica do procedimento administrativo


 

Na opinião de FREITAS DO AMARAL, confrontam-se, a respeito da natureza jurídica do


procedimento administrativo enquanto processo ou não, duas teses opostas:
 

 Tese processualista: visto que «a cada uma das funções do Estado corresponde um tipo
de processo através do qual ela se desenvolve» (ALBERTO XAVIER), o procedimento
administrativo é um autêntico processo, embora diferente do processo judicial;
 Tese antiprocessualista: o procedimento não é um processo; procedimento administrativo
e processo (judicial) não são duas espécies de um mesmo género, mas sim dois géneros
diferentes, irredutíveis um ao outro (ROGÉRIO SOARES).
 
FREITAS DO AMARAL concorda que o procedimento administrativo e o processo judicial são muito
diferentes entre si. Contudo, considera que é possível reconduzir ambos ao conceito jurídico
de processo, que será a «sucessão ordenada de atos e formalidades tendentes à formação ou à
execução de uma vontade funcional». Deste modo, o procedimento administrativo será um
processo, através do qual o poder administrativo é concretizado numa série de atos e factos
sucessivos (BENVENUTI).
 

Por sua vez, FERNANDA PAULA OLIVEIRA e JOSÉ FIGUEIREDO DIAS adotam a distinção entre
duas conceções para a natureza do procedimento administrativo: a conceção substantiva e a
conceção adjetiva. Para estes autores, a primeira conceção encontra-se hoje em dia ultrapassada
e é em geral a segunda que é seguida atualmente. 
 

As conceções substantivas do procedimento administrativo são as que o concebem com um ato:


mais precisamente, estaríamos perante um ato-procedimento. Tratar-se-ia de um ato que tinha
como característica específica a colaboração entre diversos órgãos para a produção de um mesmo
resultado.
 

Por outro lado, para a conceção adjetiva do procedimento, os atos instrumentais que se
relacionam no procedimento são vistos como etapas de um percurso ou caminho ordenado
racionalmente, tendo em vista a prática de um ato último e desejado. Cada um dos atos ou
momentos do procedimento tem um fim imediato próprio e estes só mediatamente concorrem para
atingir a finalidade do ato principal, o resultado jurídico unitário que será o objetivo de todo o
procedimento.
 

3) A codificação do procedimento em Portugal


 

Em Portugal, em termos doutrinários, deve-se a MARCELLO CAETANO, em 1951, a primeira


referência e tratamento manualístico do então designado "processo administrativo
gracioso" (expressão oriunda da época em que os súbditos solicitavam ao Rei a graça, ou o favor,
de lhes conceder certos direitos ou mercês), logo seguido, em 1955, da intervenção de MARQUES
GUEDES, cabendo a este último a extensão do conceito de processo também à elaboração de
regulamentos.
 

A nível legislativo, foi a Lei de Meios para 1962 que prometeu, pela primeira vez, a elaboração do
que então se chamava «código de processo administrativo gracioso»; promessa essa que nunca foi
cumprida antes do 25 de Abril de 1974 (cfr. FREITAS DO AMARAL). Para JOÃO CAUPERS, as
origens e antecedentes do Código do Procedimento Administrativo mergulham na Parte II do
Projeto de Código Administrativo do Ultramar (1968), da autoria de RUI MACHETE, ao qual se
sucedeu depois o Projeto do Código de Processo Administrativo Gracioso de 1969, da autoria de
OSVALDO GOMES.

Alguma doutrina de Direito Administrativo não considerava necessária ou justificada a existência de


um Código do Procedimento Administrativo: «uma série de leis avulsas bem ponderadas pode,
eventualmente, satisfazer as necessidades de justiça e certeza de modo mais perfeito que o
pesado edifício de um código, com exigências sistemáticas nem sempre conciliáveis com a
prudência» (ROGÉRIO SOARES). 

 
Independentemnte das posições doutrinárias, certo é que só em 1991 é que o primeiro Código do
Procedimento Administrativo viria a ser aprovado pelo DL nº 442/91, de 15 de novembro,
elaborado por uma comissão presidida por DIOGO FREITAS DO AMARAL desde 1989 e inspirado
em anteriores projetos codificadores, tais como os da autoria de RUI MACHETE (de 1980 e 1982)
sobre o Processo Administrativo Gracioso. A entrada em vigor do CPA verificou-se em 16 de maio
de 1992. Depois, em 1996, foi feita a revisão do CPA, através de algumas dezenas de alterações,
pelo DL nº 6/96, de 31 de janeiro.
 

O CPA de 1991 viria, em 2015, e na sequência de uma lei de autorização legislativa (Lei nº
42/2014, de 11 de julho), a ser substituído por um novo Código do Procedimento
Administrativo, que foi aprovado pelo DL nº 4/2015, de 7 de janeiro, tendo entrado em vigor no
dia 7 de abril de 2015. Na opinião de PAULO OTERO, o novo CPA de 2015, «alegadamente
influenciado pelos contributos da doutrina e da jurisprudência portuguesas (...) e do Direito da
União Europeia, revela-se tendencialmente descaracterizador do sistema administrativo português,
adotando uma postura de colonização científica estrangeira e de retrocesso garantístico dos
cidadãos».
 

4) Tipos de procedimento
 

É possível identificar várias espécies de procedimentos administrativos, os quais se podem


classificar em obediência a diversos critérios.
 

Atendendo à iniciativa de desencadear o início do procedimento [artigo 53º CPA],


temos procedimentos de iniciativa pública (de início oficioso, isto é, pela própria Administração
Pública, como sucede no procedimento destinado à realização de uma obra pública)
e procedimentos de iniciativa particular (dependentes de requerimento de um particular, como
ocorre com a emissão de uma licença).
 

De seguida, e desta vez atendendo ao objeto do procedimento, podemos classificá-los


em procedimentos decisórios (visam a tomada de uma decisão administrativa)
ou procedimentos executivos (têm por finalidade «transformar o Direito em facto», isto é,
assegurar a projeção dos efeitos de uma decisão administrativa).
 

Os procedimentos decisórios podem ainda ser de primeiro grau (incidem pela primeira vez sobre
uma situação da vida; preparam a prática de um ato primário) ou de segundo grau (incidem sobre
uma decisão administrativa anteriormente tomada; visam preparar a prática de atos secundários,
tais como a reclamação, o recurso hierárquico ou o recurso tutelar).
 

Finalmente, e com base no nº 5 do artigo 2º do CPA, é possível distinguir entre procedimento


administrativo comum (aquele que é regulado pelo CPA) e procedimento administrativo
especial (regulado em legislação especial, como é o caso do procedimento de formação dos
contratos públicos que se encontra consagrado no Código dos Contratos Públicos).
 

5) Regras e princípios procedimentais da atividade administrativa


 
Seguiremos a sistematização de PAULO OTERO, que enumera os seguintes princípios-regra
quanto ao procedimento administrativo:
 

Princípio do procedimento equitativo: É uma decorrência do princípio da justiça e do Estado de


Direito Material. Este princípio determina que, em todas as matérias suscetíveis de envolver
consequências prejudiciais para os destinatários (ou, reflexivamente, para terceiros), os
procedimentos devam ser estruturados no sentido de garantir: i) a participação dos interessados na
formação das decisões ou deliberações que lhes digam respeito; ii) a efetivação do direito ao
contraditório; iii) a produção de uma decisão final com ponderação de todos os interesses e factos
constantes do procedimento, numa lógica de igualdade e imparcialidade; iv) a fundamentação da
decisão administrativa; v) a emissão de uma decisão final dentro de um prazo razoável e dotada
de publicidade; vi) o acesso à justiça administrativa, à luz do direito a uma tutela jurisdicional
efetiva. O princípio do procedimento equitativo não tem formulação expressa na nossa Constituição
nem no CPA, mas decorre do princípio da justiça da Administração Pública, que se encontra no
artigo 266º/2 CRP, e de normas do Direito Internacional, nomeadamente do artigo 41º da Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia.
 

Princípio da adequação procedimental: Encontra-se genericamente formulado no artigo 56º


CPA e reflete o entendimento de que cada tipo de decisão carece sempre de encontrar um modelo
estrutural de procedimento que se mostre adaptável e flexibilizável aos propósitos visados. A
adequação procedimental deve sempre fazer-se à luz do princípio da proibição do excesso de
formalismo. O responsável pela direção do procedimento goza de discricionariedade no sentido de
estruturar o procedimento administrativo visando a solução mais adequada e idónea para o caso
concreto. O exercício desses poderes discricionários tem como limites os princípios gerais da
atividade administrativa e a garantia das posições jurídicas substantivas dos cidadãos.
 

Princípio do inquisitório: Confere à Administração Pública a faculdade de, oficiosamente, sem


dependência da vontade ou solicitação dos interessados ou destinatários, indagar ou requerer
quaisquer diligências adequadas a apurar factos, ao esclarecimento de quaisquer matérias dentro
da respetiva esfera de ação [artigo 58º CPA].
 

Princípio da colaboração: Alguns autores, como GARCÍA DE ENTERRÍA, configuram a


colaboração como «instituição fundamental do Direito do procedimento», visto que o procedimento
administrativo assenta num esforço de colaboração ou cooperação entre diferentes intervenientes e
de integração de uma pluralidade de interesses. A colaboração procedimental envolve três distintas
manifestações: i) a colaboração da Administração com os particulares [artigo 11º CPA], que
envolve participação e postula informação [artigos 82º a 85º CPA]; ii) a colaboração dos
particulares com a Administração, baseada num princípio de cooperação e boa fé procedimental
[artigo 60º CPA]; iii) a colaboração dos órgãos administrativos entre si, através da figura do auxílio
administrativo [artigo 66º CPA].
 

Princípio da preferência pela utilização dos meios eletrónicos: A instrução dos procedimentos
deve ser feita, preferencialmente, através de meios eletrónicos [artigo 61º/1 CPA], visando um
aumento das garantias, uma melhor acessibilidade, mais eficiência e maior celeridade. A
tramitação do procedimento administrativo através de um balcão único eletrónico obedece às
regras estabelecidas no artigo 62º CPA.
 

Princípio da participação dos interessados: A participação procedimental dos interessados, seja


na forma de colaboração, seja como direito ao contraditório (envolvendo audiência prévia e a
consulta pública) ou como princípio geral da atividade administrativa [artigo 12º CPA], tem base
constitucional no artigo 267º/5 CRP, de onde resulta um direito fundamental à participação.
 

Princípio da boa administração: Encontra-se consagrado no artigo 5º CPA e envolve cinco


vertentes
nucleares: i) desburocratização; ii) eficiência; iii) economicidade; iv) celeridade; v) aproximação
dos serviços às populações. A boa administração impõe um agir administrativo flexível, dinâmico e
que garanta um procedimento justo e equitativo.
 

Princípio da decisão: Este princípio diz-nos que a toda a pretensão formulada junto da


Administração Pública corresponde sempre uma decisão, isto no sentido em que os órgãos
administrativos têm o dever de se pronunciar sobre todos os assuntos da sua competência, que
lhes sejam apresentados [artigo 13º/1 CPA]. Encontra-se também subjetivado no artigo 268º/6
CRP, de onde decorre um direito fundamental a resposta da parte da Administração aos pedidos
de informação dos cidadãos.
 

Princípio da administração aberta: O princípio da administração aberta exprime um modelo


administrativo transparente que se opõe ao de uma Administração invisível ou opaca: o artigo 17º/1
CPA, seguindo o postulado no artigo 268º/2 CRP, consagra um direito que os cidadãos têm de
acesso aos arquivos e aos registos administrativos, procurando inteirar-se da atividade
desenvolvida pelas estruturas administrativas.
 

Princípio da gratuitidade: Por via de regra, o procedimento administrativo é gratuito, salvo se a lei


impuser o pagamento de taxas por despesas, encargos ou outros custos suportados pela
Administração [artigo 15º/1 CPA].  Quaisquer atos que criem a obrigação de pagamento de uma
taxa ou de qualquer despesa procedimental, sem estar prevista em lei, são nulos [artigo 161º/2,
alínea k), CPA].
 

Princípio da cooperação leal com a União Europeia: Tendo a sua fonte no artigo 4º/3 TUE, o
princípio da cooperação leal com a União Europeia surge no artigo 19º CPA, vinculando a
Administração Pública portuguesa a relacionar-se com a Administração dos outros Estados-
membros e com a Administração da própria União Europeia. A cooperação leal pode envolver a
prestação de informações, a apresentação de propostas ou quaisquer outras formas de
colaboração entre as Administrações públicas da União e dos restantes Estados.
 

6) As fases do procedimento administrativo


 

Já vimos que o procedimento administrativo é uma sequência, um encadeamento de atos, factos e


formalidades com vista à tomada de uma decisão final e, portanto, divide-se em
várias fases ou etapas. A divisão do procedimento em fases varia bastante de autor para autor,
sendo que optámos por seguir a conceção de FREITAS DO AMARAL, que divide o procedimento
em seis fases:

1. Fase inicial: É a fase em que se dá início ao procedimento, o qual pode ser desencadeado pela
Administração ou por um particular interessado, à luz do artigo 53º CPA. Se for a Administração a
iniciar o procedimento, deverá comunicá-lo às pessoas cujos direitos e interesses legítimos possam
ser lesados no decurso do procedimento [artigo 110º/1 CPA]. Se, por outro lado, é o particular que
toma a iniciativa, deverá apresentar um requerimento escrito, ou enviado por correio eletrónico, do
qual constem as várias menções indicadas no nº1 do artigo 102º CPA. Da fase inicial pode ainda
fazer parte a tomada de medidas provisórias, nos termos do artigo 89º CPA.

2. Fase da instrução: Destina-se a averiguar os factos que interessem à decisão final e,


nomeadamente, a recolher as provas que se mostrarem necessárias [artigos 115º a 120º do CPA].
Trata-se de uma fase largamente dominada pelo princípio do inquisitório [artigo 58º CPA]. A
averiguação dos factos cujo conhecimento seja relevante para a tomada de decisão legal cabe ao
«diretor da instrução» [artigo 55º CPA], nos termos do nº1 do artigo 115º CPA.

3. Fase da audiência dos interessados: Encontra-se nos artigos 121º a 125º CPA e é uma das
mais importantes faces do princípio da colaboração da Administração com os particulares [artigo
11º/1 CPA] e o princípio da participação [artigo 12º CPA]. A audiência prévia, como refração do
princípio da democracia participativa [artigo 2º CRP], tem dignidade constitucional e merece
mesmo uma menção expressa no nº5 do artigo 267º da CRP. Trata-se da fase na qual é
assegurado aos interessados num procedimento o direito de participarem na formação das
decisões que lhes digam respeito e apenas pode ser dispensada nos termos que constam no artigo
124º CPA. A audiência poderá ser escrita ou oral, competindo ao diretor do procedimento decidir,
em cada caso, se a audiência prévia dos interessados deve ser escrita ou oral [artigo 122º/1 CPA].

4. Fase da preparação da decisão: Esta é a fase em que a Administração pondera


adequadamente o quadro traçado na fase inicial, a prova recolhida na fase de instrução, e os
argumentos aduzidos pelos particulares na fase da audiência dos interessados [artigos 125º e 126º
do CPA]. O órgão decisório pode ordenar novas diligências e solicitar novos pareceres se
considerar insuficiente a instrução [artigo 125º CPA]. É também a fase onde o órgão competente
para a decisão final elabora um relatório, nos termos do artigo 126º CPA.

5. Fase da decisão: O procedimento encaminhou-se para o seu fim principal, a decisão. E termina
com ela, ou com qualquer outro dos factos previstos no CPA [artigo 93º]. Salvo se outra coisa
resultar da lei ou da natureza das relações a estabelecer, o procedimento pode terminar com a
prática de um ato administrativo ou pela celebração de um contrato [artigo 126º CPA]. De um modo
geral, aplicam-se as regras constantes na Parte IV do CPA, correspondente aos artigos 135º e
seguintes.

6. Fase complementar: É aquela em que são praticados certos atos e formalidades posteriores à


decisão final do procedimento: registos, arquivamento de documentos, visto do Tribunal de Contas,
publicação no Diário da República ou noutro jornal oficial, etc.

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