Os efeitos da massa já haviam sido experimentados pelos homens, quando Freud
os retomou numa articulação inédita em 1921. O mundo se transformou ao longo desses anos e hoje nos perguntamos: - o que teria mudado na psicologia das massas? - O que há de novo? - Como pensar as massas virtuais? Há outra estrutura libidinal na formação dessas massas? Haverá nelas um predomínio do amor narcísico e não do amor objetal? - Como explicar a estrutura libidinal dos movimentos que se formam no anonimato das organizações em rede? O ponto de partida de Freud em seu estudo sobre as massas foi Gustav Le Bon, sociólogo e médico francês, nascido em 1841, autor da obra intitulada “Psicologia das multidões”. Para Le Bon, o mais singular dos fenômenos apresentados por uma massa é o seguinte: quaisquer que sejam os indivíduos que a compõem e por mais diversa ou semelhante que possam ser sua inteligência, ocupação etc., apenas o fato de estarem em uma massa, os dota de uma alma coletiva, a qual os faz sentir, pensar e agir de um modo diferente do que o fariam se estivessem isolados. Segundo Le Bon, pelo simples fato de formar uma massa, o homem pode ter a violência, a ferocidade e, também o entusiasmo e heroísmo dos seres primitivos (Le Bon apud Freud, 1921, p. 114). Ainda sobre as massas: um gérmen de antipatia torna-se ódio selvagem. Inclinada a todos os extremos, a massa só é excitada por estímulos desmedidos. Para influenciá-la, são necessárias imagens fortes, exagerar e repetir intensamente. A massa não tem dúvidas sobre o que é verdadeiro ou falso e o que exige de seus heróis é a força, até mesmo a violência (Freud, 1921, p. 115). Mostra-se muito influenciável pelo efeito mágico das palavras, as quais podem apaziguá-la ou excitá-la. E a palavra, neste caso, pode ser capaz de levar o sujeito numa direção que não corresponde a seu desejo. Portanto, por um lado, corroboramos, ainda nos dias de hoje, a exacerbação do amor, do ódio e da ignorância como efeitos da massa dos indivíduos que a ela pertencem. Por outro lado, as massas e suas paixões nos permitem constatar a dissensão a ser considerada entre as paixões do ser e o desejo do sujeito. Para Freud, os laços estabelecidos numa massa, sejam os laços entre os seus membros ou entre cada um deles e seu líder, são laços afetivos, alimentados pela energia psíquica nomeada como libido por Freud. A massa mantém-se coesa pelo poder de Eros e quando nela um sujeito renuncia ao que lhe é pessoal, próprio, singular, o faz por amor. Segundo Freud, as massas se constituem através de um tipo de identificação específico, no qual os sujeitos tomam um mesmo objeto como ideal do eu e, em consequência, estabelece-se entre eles uma recíproca identificação. O texto freudiano de 1921 focaliza a união observada nas massas pela via do amor. No entanto, no funcionamento das massas o ódio também está presente e Freud assim o demonstra em “Totem e Tabu” (1912). Neste mito coexistem o ódio ao pai e às suas proibições, com o amor e admiração por ele. Sabemos que o amor e o ódio são elementos fundamentais na constituição de uma massa. E para que a união se mantenha é necessário um escoamento desse ódio, o que levou Freud a formular a ideia acerca do narcisismo das pequenas diferenças, com seus desdobramentos em preconceitos e segregações. E assim, a massa mantém afastado tudo o que lhe é diferente e estranho. Lacan (1956) denominou de terror conformista, em seu escrito “Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956”, os fenômenos de grupo presentes nas associações de psicanálise que impediam questionamentos dentro da própria instituição, como condição para manter sua coesão interna. Com a expressão “terror conformista”, “Lacan acentua a subserviência ao líder na base da luta mortífera imaginária dos membros entre si, em que o outro é igual e rival” (Quinet, 2009, p. 84). Na atualidade, observamos ídolos de uma comunidade, líderes políticos, campeões desportistas, símbolos sexuais, influenciadores digitais, veiculados na mídia com o propósito de exercer um poder sobre os seus seguidores, ocupando o lugar de ideal do eu para sujeitos reunidos em torno de um objeto comum. Neste funcionamento, seguindo a lógica das massas, o sujeito paga o preço com seu desejo, com a restrição de sua singularidade. Pensar na psicologia das massas hoje, implica articulá-la com a sociedade de controle na qual vivemos. Invadidos por um sistema de controle, nossas ações, gostos, interesses, são manipulados com vistas aos objetivos de uma sociedade de consumo. O documentário americano intitulado “O dilema das redes”, de setembro de 2020, escrito e dirigido por Jeff Orlowski, através de depoimentos de frequentadores do Vale do Silício, analisa o papel das redes sociais e os danos causados por elas à sociedade. Mostra seu poder de manipulação e como os profissionais da tecnologia possuem o controle sobre o modo como pensamos, agimos e vivemos. O filme é um alerta em relação aos mercados que negociam o futuro da humanidade, pois, de início, vendem tecnologia e, depois, usuários. O documentário leva-nos a pensar acerca de uma questão ética que se impõe na comunicação contemporânea, quando o próprio sujeito é colocado como produto, objeto de consumo das mídias sociais. O que poderá fazer contraponto e oferecer resistência aos efeitos da lógica das massas? Que contrapartida oferecer frente aos turbilhões do amor e ódio? A que recorrer diante da paixão da ignorância? Como não sucumbir numa sociedade de controle? A psicanálise nos oferece a palavra, a palavra em seu estatuto de ato, como recurso principal para presentificação do sujeito do desejo que, como Fênix, pode ultrapassar obstáculos, criar e transformar, ressurgindo com sua singularidade, por meio da tessitura entre pulsão de vida e pulsão de morte.
Referências:
Deleuze, G. Conversações (1972-1990). Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
Freud, S. Psicologia de las masas y análisís dei yo (1921). ln: Obras Completas de Sígmund Freud. 2. ed. Buenos Aires: Amorrortu, 1984. v. 18. Lacan, J. (1945) “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998. Lacan, J. (1956). “Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. Lacan, J. (1967-68). O ato psicanalítico. Inédito. Quinet, A. A estranheza da psicanálise - A escola de Lacan e seus analistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2009.
Nação tarja preta: O que há por trás da conduta dos médicos, da dependência dos pacientes e da atuação da indústria farmacêutica (leia também Nação dopamina)