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Rio, 18 de setembro de 2022.

As massas e suas paixões


Gloria Sadala

Os efeitos da massa já haviam sido experimentados pelos homens, quando Freud


os retomou numa articulação inédita em 1921. O mundo se transformou ao longo desses
anos e hoje nos perguntamos:
- o que teria mudado na psicologia das massas?
- O que há de novo?
- Como pensar as massas virtuais? Há outra estrutura libidinal na formação
dessas massas? Haverá nelas um predomínio do amor narcísico e não do amor objetal?
- Como explicar a estrutura libidinal dos movimentos que se formam no
anonimato das organizações em rede?
O ponto de partida de Freud em seu estudo sobre as massas foi Gustav Le Bon,
sociólogo e médico francês, nascido em 1841, autor da obra intitulada “Psicologia das
multidões”. Para Le Bon, o mais singular dos fenômenos apresentados por uma massa é
o seguinte: quaisquer que sejam os indivíduos que a compõem e por mais diversa ou
semelhante que possam ser sua inteligência, ocupação etc., apenas o fato de estarem em
uma massa, os dota de uma alma coletiva, a qual os faz sentir, pensar e agir de um modo
diferente do que o fariam se estivessem isolados. Segundo Le Bon, pelo simples fato de
formar uma massa, o homem pode ter a violência, a ferocidade e, também o entusiasmo
e heroísmo dos seres primitivos (Le Bon apud Freud, 1921, p. 114).
Ainda sobre as massas: um gérmen de antipatia torna-se ódio selvagem.
Inclinada a todos os extremos, a massa só é excitada por estímulos desmedidos. Para
influenciá-la, são necessárias imagens fortes, exagerar e repetir intensamente. A massa
não tem dúvidas sobre o que é verdadeiro ou falso e o que exige de seus heróis é a força,
até mesmo a violência (Freud, 1921, p. 115). Mostra-se muito influenciável pelo efeito
mágico das palavras, as quais podem apaziguá-la ou excitá-la. E a palavra, neste caso,
pode ser capaz de levar o sujeito numa direção que não corresponde a seu desejo.
Portanto, por um lado, corroboramos, ainda nos dias de hoje, a exacerbação do
amor, do ódio e da ignorância como efeitos da massa dos indivíduos que a ela
pertencem. Por outro lado, as massas e suas paixões nos permitem constatar a dissensão
a ser considerada entre as paixões do ser e o desejo do sujeito.
Para Freud, os laços estabelecidos numa massa, sejam os laços entre os seus
membros ou entre cada um deles e seu líder, são laços afetivos, alimentados pela
energia psíquica nomeada como libido por Freud. A massa mantém-se coesa pelo poder
de Eros e quando nela um sujeito renuncia ao que lhe é pessoal, próprio, singular, o faz
por amor.
Segundo Freud, as massas se constituem através de um tipo de identificação
específico, no qual os sujeitos tomam um mesmo objeto como ideal do eu e, em
consequência, estabelece-se entre eles uma recíproca identificação.
O texto freudiano de 1921 focaliza a união observada nas massas pela via do
amor. No entanto, no funcionamento das massas o ódio também está presente e Freud
assim o demonstra em “Totem e Tabu” (1912). Neste mito coexistem o ódio ao pai e às
suas proibições, com o amor e admiração por ele.
Sabemos que o amor e o ódio são elementos fundamentais na constituição de
uma massa. E para que a união se mantenha é necessário um escoamento desse ódio, o
que levou Freud a formular a ideia acerca do narcisismo das pequenas diferenças, com
seus desdobramentos em preconceitos e segregações. E assim, a massa mantém afastado
tudo o que lhe é diferente e estranho.
Lacan (1956) denominou de terror conformista, em seu escrito “Situação da
psicanálise e formação do psicanalista em 1956”, os fenômenos de grupo presentes nas
associações de psicanálise que impediam questionamentos dentro da própria instituição,
como condição para manter sua coesão interna. Com a expressão “terror conformista”,
“Lacan acentua a subserviência ao líder na base da luta mortífera imaginária dos
membros entre si, em que o outro é igual e rival” (Quinet, 2009, p. 84).
Na atualidade, observamos ídolos de uma comunidade, líderes políticos,
campeões desportistas, símbolos sexuais, influenciadores digitais, veiculados na mídia
com o propósito de exercer um poder sobre os seus seguidores, ocupando o lugar de
ideal do eu para sujeitos reunidos em torno de um objeto comum. Neste funcionamento,
seguindo a lógica das massas, o sujeito paga o preço com seu desejo, com a restrição de
sua singularidade.
Pensar na psicologia das massas hoje, implica articulá-la com a sociedade de
controle na qual vivemos. Invadidos por um sistema de controle, nossas ações, gostos,
interesses, são manipulados com vistas aos objetivos de uma sociedade de consumo.
O documentário americano intitulado “O dilema das redes”, de setembro de
2020, escrito e dirigido por Jeff Orlowski, através de depoimentos de frequentadores do
Vale do Silício, analisa o papel das redes sociais e os danos causados por elas à
sociedade. Mostra seu poder de manipulação e como os profissionais da tecnologia
possuem o controle sobre o modo como pensamos, agimos e vivemos. O filme é um
alerta em relação aos mercados que negociam o futuro da humanidade, pois, de início,
vendem tecnologia e, depois, usuários. O documentário leva-nos a pensar acerca de uma
questão ética que se impõe na comunicação contemporânea, quando o próprio sujeito é
colocado como produto, objeto de consumo das mídias sociais.
O que poderá fazer contraponto e oferecer resistência aos efeitos da lógica das
massas? Que contrapartida oferecer frente aos turbilhões do amor e ódio? A que
recorrer diante da paixão da ignorância? Como não sucumbir numa sociedade de
controle?
A psicanálise nos oferece a palavra, a palavra em seu estatuto de ato, como
recurso principal para presentificação do sujeito do desejo que, como Fênix, pode
ultrapassar obstáculos, criar e transformar, ressurgindo com sua singularidade, por meio
da tessitura entre pulsão de vida e pulsão de morte.

Referências:

Deleuze, G. Conversações (1972-1990). Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.


Freud, S. Psicologia de las masas y análisís dei yo (1921). ln: Obras Completas de
Sígmund Freud. 2. ed. Buenos Aires: Amorrortu, 1984. v. 18.
Lacan, J. (1945) “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”. Escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998.
Lacan, J. (1956). “Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956”. In:
Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
Lacan, J. (1967-68). O ato psicanalítico. Inédito.
Quinet, A. A estranheza da psicanálise - A escola de Lacan e seus analistas. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2009.

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