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A EFICÁCIA DO DIREITO

Oscar Mellim Filho

Na arguta reflexão levada a efeito por NORBERTO BOBBIO em sua


obra “Teoria da Norma Jurídica” a respeito da universalidade do fenômeno
jurídico, constitui a eficácia uma das valorações a que se submete o Direito
Objetivo. As outras duas são a validade e a justiça. Pela validade, deve-se
entender a legitimidade formal das normas, vistas em si mesmas ou como
integrantes do ordenamento jurídico, com o qual devem manter relação de
logicidade e harmonia1. Tais questões são afetas à Teoria Geral do Direito,
ou Dogmática Jurídica. O estudo das normas sob o ponto de vista da
justiça constitui objeto de reflexão filosófica a propósito da adequação do
Direito a um ideal de Justiça que lhe seja anterior e superior, campo
apropriado, portanto, da Filosofia do Direito propriamente dita.
Quando se fala em eficácia, a questão primordial é de saber se as
normas jurídicas são ou não cumpridas pelas pessoas a quem se dirigem e,
no caso de violação, se é possível que se façam valer com meios
coercitivos de que dispõe a autoridade pública. Está-se, aqui, no campo da
pesquisa sociológica sobre o Direito, o que interessa sobremaneira para os
propósitos do presente livro.
Costuma-se dizer que as normas mais eficazes são aquelas cumpridas
de forma espontânea, sinal de que guardam vínculo real com a sociedade
que as instituiu, sendo fruto, portanto, da necessidade social. Outras
normas têm sua eficácia condicionada ao exercício da coação estatal; outras
nem assim são cumpridas pela sociedade, seja porque efetivamente não
correspondem aos anseios populares em sua totalidade ou a parcela

1
Teoria da norma jurídica, pp. 45-47.
significativa da sociedade, seja porque constituem, de fato, simples
instrumento simbólico ou programático do dever-ser social.
Segundo BOBBIO, a questão da eficácia das normas jurídicas evoca
o chamado problema fenomenológico do Direito, a apontar para o terreno
da aplicação das normas às situações pessoais concretas, qual seja, o
comportamento efetivo dos homens, seus interesses pessoais, suas ações e
reações. O estudo da eficácia das normas jurídicas dá lugar, assim, a
investigações sobre a vida do Direito, sua gênese, seu desenvolvimento e
alterações significativas, temas por excelência da Sociologia Jurídica.
Para MIGUEL REALE, “toda norma vigente destina-se a influir
efetivamente no meio social e é porque vige e influi que se torna positiva.
Daí a necessidade de se estudarem as condições empíricas da eficácia, no
âmbito da Sociologia Jurídica, assim como as suas conexões de sentido no
plano da Culturologia jurídica”2.
A eficácia do Direito, portanto, diz respeito à sua aceitação pela
sociedade como um todo ou por parte dela e à efetiva produção de efeitos,
o que traz à tona o tema das relações entre as normas postas e a sociedade,
como, por exemplo, a influência do Direito na Economia e nas relações
familiares. É possível afirmar ainda que a questão tormentosa do
pluralismo jurídico também guarda relação direta com o tema da eficácia
jurídica. A maior ou menor eficácia das normas jurídicas estatais,
notadamente em razão de deliberado desinteresse ou de inoperância das
instituições judiciárias, constitui uma das causas do alargamento do
fenômeno jurídico, levando a sociedade a criar instrumentos alternativos de
regulação social e solução dos conflitos cotidianos.
No âmbito da Filosofia do Direito, é certo que a corrente de
pensamento que reduz a validez do Direito à sua eficácia constitui o
chamado Realismo Jurídico, segundo o qual o Direito não é o que está nas

2
Filosofia do Direito, p. 607.
normas, mas sim no comportamento dos homens, vale dizer, como ele
efetivamente é existente no seio da sociedade, na aplicação das normas, sua
interpretação, seu cumprimento. Tal entendimento tem sua origem na
chamada Escola Histórica do Direito, em que avultam os nomes célebres de
SAVIGNY e PUCHTA, passando pela concepção sociológica do Direito
(KANTOROWICZ) e chegando à Escola Realista, desenvolvida
basicamente nos Estados Unidos, que tem como seus representantes mais
conhecidos os juristas OLIVER HOLMES e ROSCOE POUND.
Pode-se dizer, por outro lado, que a eficácia do Direito encontra pela
frente, como obstáculo natural, o papel modesto exercido pelas normas e
sua aplicação na solução dos problemas sociais, constituindo, portanto, um
limite fático à função crítica do Direito. Como exemplo, pode-se citar a
questão das punições criminais, que, via de regra, pouco têm contribuído
para a valorização do Direito e efetivo combate à criminalidade, mormente
nas sociedades modernas, e ainda a impossibilidade de solução de um
grande número de questões patrimoniais, como nos casos de falência ou
inadimplência em geral, ou conflitos familiares.
A discussão sobre a eficácia do Direito passa ainda pela questão da
aplicação das normas internacionais, que padecem, como se sabe, de uma
enorme dificuldade prática, em razão da inexistência de um poder
jurisdicional soberano que possa fazer valer as disposições normativas na
hipótese de conflitos entre Estados soberanos ou organizações
internacionais.
A modesta contribuição do Direito para a solução dos problemas sociais, dando
azo, aliás, ao surgimento de modelos normativos situados fora do âmbito das normas estatais, leva a
considerar também o papel simplesmente simbólico exercido pelo Direito Positivo. Há leis que são
criadas já sob o signo da ineficácia concreta, no sentido da efetiva alteração dos comportamentos das
pessoas, constituindo, porém, simples regras de polegar, apontando a direção geral a ser tomada pela
própria sociedade. Embora não sejam cumpridas, tais normas podem ser consideradas socialmente
eficazes, como ocorre com as chamadas normas programáticas inseridas nas cartas constitucionais,
destinadas, no dizer de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR., a produzir efeito de satisfação ideológica 3.
Determinadas normas, por outro lado, são atingidas pela chamada ineficácia técnica, o que significa dizer
que necessitam de outras normas para completar-se e inserir-se efetivamente no ordenamento jurídico, de
que são exemplos as normas dependentes de regulamentação, como a regra do tabelamento de juros,
existente na Constituição Federal de 1988.

É nítida ainda a existência de uma relação entre eficácia


social e os débitos do Direito com sua estrutura organizacional e com o
caráter de generalidade das soluções propostas pelas normas. A atenção a
princípios formais, como por exemplo o direito de defesa e o princípio do
devido processo legal, parece levar a uma sensação de ineficácia aparente
do edifício do Direito na sociedade. O que ocorre, porém, é que, em
determinadas situações sociais, não se constata a existência de resultado
concreto em decorrência da aplicação das normas jurídicas, gerando a
impressão de que o Direito não exerceu o seu papel de agente regulador das
condutas humanas e solução de conflitos.
A inexistência de efeitos concretos, porém, não significa ausência de
eficácia. Uma solução socialmente insatisfatória para um conflito
determinado pode querer dizer que, em nome da preservação de princípios
universais do Direito, deve-se optar por um papel modesto na atuação
pontual, ganhando assim o sistema jurídico com a sua longevidade a longo
prazo. O que se quer dizer com isso é que a satisfação imediata e particular
de determinadas demandas sociais pelo Direito não pode simplesmente ser
confundida com sua eficácia.
Essa, aliás, a reflexão encetada pelo sociólogo do Direito
MIRANDA ROSA, para quem efeitos das normas jurídicas são as suas
funções educativa, conservadora, transformadora, de instrumento da
mudança social. Sua simples existência já produz efeitos, como às vezes
sua própria revogação imediata ou sua ineficácia total. A eficácia do
Direito, porém, constitui certa qualidade do efeito, condizente com os fins

3
Introdução ao Estudo do Direito, p. 195.
para os quais foi editado ou com seus objetivos, em desacordo talvez com
novo consenso social. A eficácia é, pois, a adequação finalística da norma,
ou, melhor dizendo, do ordenamento como um todo4. Aliás, quando
NORBERTO BOBBIO fala em eficácia do Direito, está querendo referir-se
à eficácia do ordenamento e não das normas individuais5, o que parece
auxiliar-nos a compreender melhor situações de aparente ineficácia das
normas.
Ao se cuidar da eficácia do Direito, pois, não se deve esquecer que o
Direito constitui amplo instrumento oficial de controle social. Não se
destina apenas à solução de conflitos por meio da ação do Estado e de seu
poder coercitivo, oferecendo uma resposta institucional à anomia, mas
também à construção de condutas, educação e transformação da sociedade,
influindo sobre a opinião pública. É o que ocorre, por exemplo, com a
legislação eleitoral e de trânsito, onde tal característica se apresenta mais
visível, para não falar das próprias normas constitucionais, muitas delas de
natureza eminentemente programática, conforme ficou dito. Para tanto,
exercem papel importante não apenas as normas propriamente ditas mas
também os princípios jurídicos e valores solidificados ao longo da história
do Direito, como o primado da lei, a igualdade formal dos cidadãos perante
a lei, o direito ao contraditório e à defesa, a necessidade da valorização da
dignidade humana através dos direitos fundamentais etc.
Há outras hipóteses, no entanto, de obstáculos à eficácia do Direito,
de natureza econômica e social, que dizem respeito ao tema do acesso à
Justiça pelas classes populares. O custo financeiro das demandas deixa do
lado de fora do sistema de proteção jurídica uma grande quantidade de
pessoas, desprovidas de quaisquer recursos e distanciadas dos centros de
administração do Poder Judiciário e descrentes da atuação do Estado em

4
Sociologia Jurídica, pp. 71-73.
5
Teoria do ordenamento jurídico, p. 29
seu favor. MARIA LÚCIA SABADELL faz referência a vários fatores de
ineficácia do Direito, como o desconhecimento, por parte da população, de
seus direitos, fruto de carente divulgação; a pouca viabilidade prática de
soluções propostas pelas normas, dando como exemplo punições
impossíveis ou de pequena eficácia prática, que afastam a população da
busca pela atuação do Estado na solução de seus conflitos; a imperfeição
técnica das normas, bem como a falta de preparo dos operadores do
Direito6.
A reflexão sobre a eficácia do Direito leva-nos, assim, ao âmago da
Sociologia Jurídica, qual seja, ao campo das relações estreitas que ele
mantém com a sociedade, no sentido da contínua produção de influências
mútuas. Podem-se, assim, formular as seguintes perguntas: De que
maneira as transformações sociais influem no Direito, alterando a eficácia
de suas disposições? Quais as influências que a norma jurídica exerce
sobre os fatos sociais e sua evolução?
É inequívoca a influência que os fatos sociais exercem sobre as
normas de Direito. A ação da sociedade pode ser percebida seja no
momento de criação de um novo Direito Positivo, revogando disposições
antigas, seja mediante a alteração da eficácia das normas, forçando os
operadores do Direito a uma interpretação atualizadora. A ineficácia das
normas jurídicas leva a um movimento social de recriação do Direito em
duas frentes: a) a criação de um novo Direito pela sociedade, por meio da
edição de novas leis ou de alteração das leis antigas, fruto da pressão social
sobre os legisladores; b) a interpretação inovadora por parte dos operadores
do Direito na aplicação diária das normas jurídicas e na solução de
conflitos interpessoais, criando, pela via hermenêutica, um novo sentido
para o Direito Positivo.

6
Manual de Sociologia Jurídica, p. 62
A eficácia do Código Civil Francês, por exemplo, o chamado
Código Napoleão, que data de 1803, mas ainda em vigor, deve muito às
interpretações dos juristas que, ao longo de dois séculos, analisaram suas
disposições, vivificando-as e atualizando seus mandamentos. Segundo
PAULO DOURADO DE GUSMÃO, “o tempo não demonstrou ter razão
Napoleão quando, ao ter conhecimento de seu Código estar sendo objeto
de interpretação pelos civilistas, ter dito: ‘Meu Código está perdido’,
porquanto foi graças às interpretações de sucessivas gerações de civilistas
franceses que ainda está vigente”7.
Nesse sentido, exerce a Jurisprudência um grande papel criador
do Direito, tornando algumas normas antiquadas mera letra morta, dando-
lhes novo sentido. Esse o maior legado da chamada concepção realista do
Direito, desenvolvida pelos juristas norte-americanos, como HOLMES,
CARDOZO, ROSCOE POUND e outros, praticando um sociologismo
jurídico que aponta para um papel verdadeiramente construtivo do Direito
pela sociedade, através dos operadores jurídicos e dos costumes da
população, que indica a existência de uma espécie de consciência coletiva –
para usar a expressão de DURKHEIM - a sustentar aquele que deve ser o
verdadeiro Direito.
No caso brasileiro, pode-se citar como exemplo significativo a
história jurídica do concubinato, a provocar o paulatino reconhecimento
por parte do Direito estatal, a começar pela legislação previdenciária, até
culminar com o reconhecimento do instituto da união estável na
Constituição Federal de 1988, como gerador de efeitos sociais. A ineficácia
social do Código Civil de 1916, imobilizado ante a evolução da sociedade
brasileira no século XX, com a crescente industrialização, urbanização e
êxodo rural e a contribuição das correntes migratórias, levou aos poucos a
sociedade a construir, ela própria, uma nova definição de família. A força

7
Direito, objeto cultural, in “Filosofia do Direito”, p.111
da sociedade, influindo sobre os operadores do Direito, levou a Justiça a
reconhecer a juridicidade da relação concubinária e a alargar o vínculo de
adoção, culminando, por exemplo, com a abolição da diferença, perante o
Direito, entre filhos havidos dentro e fora do matrimônio.
A construção do Direito por seus operadores e pela própria
sociedade constitui, assim, fator importante a influir sobre a eficácia das
normas jurídicas. Coloca-se aqui o papel da interpretação das leis por
parte dos operadores do Direito em busca de uma resposta para os conflitos
sociais levados ao exame por parte do Poder Judiciário. Para tanto, conta-
se, por exemplo, com a regra do art. 5º da Lei de Introdução ao Código
Civil, que constitui instrumento valioso na busca de solução jurídica de
problemas sociais para além da expressão literal das normas jurídicas8.
A aceitação, por parte da população, de condutas formalmente
infracionais como consideradas normais ou de escassa censurabilidade,
como ocorre, por exemplo, com a contravenção do bicho, parece levar os
órgãos encarregados do controle social a um contínuo afrouxamento de
respostas punitivas preconizadas pelas normas incriminadoras. A
revogação social da norma, se é que se pode assim dizer para significar o
seu desuso contínuo, influi na aplicação do Direito pelo Poder Judiciário,
criando mecanismos paralelos de reconhecimento da ineficácia da norma,
de que é exemplo, na hipótese de processo criminal por prática do jogo do
bicho por simples cambista, um crescente rigor na consideração da prova
para a condenação, como a exigência de definição do apostador ou do
banqueiro ou de exame pericial grafotécnico nos papéis apreendidos.
A Jurisprudência favorável ao segurado e ao consumidor, nas
lides envolvendo conflitos com empresas seguradoras, industriais ou
comerciantes, deve reconhecer o débito histórico a um movimento social
em busca de solução para os desmandos praticados pelas empresas,

8
“Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.
servindo-se da efetiva desigualdade social entre as partes. O avanço social
da construção de soluções jurídicas favoráveis aos consumidores redundou,
como se sabe, na aprovação de legislação específica de proteção, qual seja
a Lei nº 8078/90, o chamado Código de Defesa do Consumidor, que alterou
significativamente, no Direito Civil Brasileiro, os parâmetros clássicos da
relação contratual.
A busca por parte da sociedade de maior celeridade nas
demandas, como fator de eficácia do Direito formal, implicou na criação
dos juizados especiais cíveis e criminais, previstos na Constituição de
1988, mas só implementados anos mais tarde e de atuação ainda tímida.
Trata-se, portanto, de tentativa de transposição de obstáculos burocráticos
ao acesso à Justiça e à eficácia do Direito. Diga-se o mesmo da busca de
maior rigor no combate às infrações de trânsito, cujas penas criminais se
mostravam absolutamente ineficazes, que resultou na edição da Lei
9503/97, o novo Código de Trânsito Brasileiro, com a redefinição de
condutas consideradas criminosas e a criação de novas formas de punição
administrativa, dotadas de maior eficácia, como o sistema de pontuação na
habilitação dos motoristas infratores.
Historicamente, o Direito apresenta dois tipos diferentes de sanções
para a hipótese de violação das normas. A sanção de natureza restitutiva,
própria do Direito Civil, e a sanção punitiva, específica do Direito Penal,
destinada a violações consideradas mais graves. A dicotomia já fora
apresentada por DURKHEIM, ao associar o Direito Penal à solidariedade
mecânica das sociedades antigas e, por outro lado, o Direito Civil à
solidariedade orgânica, típica das sociedades modernas, em que impera
uma complexa divisão social do trabalho.
A história do Direito Penal, no entanto, é um constante e
aprofundado questionamento da sanção criminal, cada vez mais
considerada de duvidosa utilidade. A ineficácia do Direito Penal e do
sistema penitenciário, universalmente apregoada, tem levado a sociedade a
buscar vias alternativas, identificadas com sanções punitivas que sejam
dotadas de utilidade social.
A inutilidade do castigo penal, fruto da reflexão moderna sobre a
pena, que teve início, aliás, com o Iluminismo, tem levado a sociedade a
buscar auxílio nas sanções de natureza civil, como a indenização e a
restituição, admitindo alguns países, por exemplo, a transação entre vítima
e ofensor em uma infinidade de infrações penais. No Direito Brasileiro, a
Lei 9.099/95 instituiu a possibilidade de transação em infrações de menor
potencial ofensivo, bem como de suspensão do processo já quando de sua
instauração, abarcando este último instituto maior número de infrações
penais.
O fracasso dos modelos tradicionais de resposta à criminalidade,
ancorados na idéia de retribuição – cuja fundamentação filosófica é objeto
de sério questionamento – e de prevenção – de eficácia não comprovada,
parece levar à valorização da pena criminal como simples expressão
simbólica que tem como função contradizer o significado simbólico de
hostilidade ao Direito implícito no crime9. Segundo ODONE
SANGUINÉ, em tempos de especial temor generalizado, surge uma
política criminal emocional que põe a nu a função simbólica do Direito
Penal, o qual, mesmo sem operatividade, passa a ter o sentido de uma
aparência de efetividade e proteção social, exonerando o Estado de
empreender programas mais amplos de política social10.
A propósito, dedicando-se a um trabalho de reflexão crítica do
Direito Penal e da Criminologia, ALESSANDRO BARATTA identifica o
sistema penal como instrumento de conservação e reprodução da realidade
social. Os conteúdos dos tipos penais pertencem aos valores burgueses,

9
ODONE SANGUINÉ, Função simbólica da pena.
10
idem, ibidem.
lançando para fora do Direito as ações anti-sociais das classes
hegemônicas, no que chama de zona de imunização para comportamentos
cuja danosidade se volta particularmente contra as classes subalternas11.
BARATTA está a referir-se ao caráter seletivo da eficácia penal,
situação muito conhecida no Direito Brasileiro. Cite-se, a propósito, por
exemplo, a pouca relevância prática do ressarcimento do prejuízo da vítima
ou devolução do produto subtraído, nos crimes patrimoniais comuns,
praticados pelas camadas pobres da população, constituindo mera
circunstância atenuante ou causa de redução da pena. Bem ao contrário, o
pagamento do tributo ou contribuição social antes do recebimento da
denúncia, nos crimes de sonegação fiscal, opera a extinção da punibilidade,
como dispõe a Lei 9249/95, fruto de intensa pressão legislativa por parte
dos chamados setores produtivos da sociedade.
Por outro lado, para além das soluções que o ordenamento jurídico
busca para a ineficácia da resposta às violações legais, a sociedade como
um todo tende a criar sistemas próprios de solução amigável para
problemas de natureza civil ou criminal. Pode-se situar ainda, nesse
mesmo terreno, o uso da arbitragem por corporações industriais no mundo
dos negócios, como forma de resolver os conflitos. É a busca pela eficácia
do Direito, como que à revelia das instituições jurídicas estatais, tendo a
legislação brasileira, aliás, admitido expressamente a arbitragem como
modalidade processual de solução de conflitos.
No campo penal é inevitável a menção a um movimento social de
criação de sistemas privados de proteção das pessoas e das empresas, com
nítida influência sobre a vida em sociedade e a Economia. São exemplos
de tal influência o crescimento gigantesco da indústria eletrônica de
segurança, o desenvolvimento de verdadeiras milícias privadas,
especialmente nas grandes cidades, e também a mobilização da mídia e da

11
Criminologia crítica e crítica do Direito Penal, p. 176.
própria agenda política em torno do assunto segurança pública, para além
do âmbito de atuação das normas do Direito Penal.
A pesquisa sobre a eficácia das normas penais passa também pela
consideração do caráter classista do próprio Direito e sua aplicação pelo
Estado e operadores jurídicos. A seletividade penal, que pode ser definida
como a capacidade “natural” que o sistema possui de selecionar condutas
sociais contra as quais fará incidir sua atuação efetiva, guarda relação com
o tema da eficácia do Direito. Para as classes sociais mais favorecidas
economicamente, e portanto mais próximas do poder político, torna-se mais
difícil a aplicação das normas penais.
Os chamados crimes do colarinho branco, praticados em meio a
complexas relações econômicas, comerciais e industriais, são de difícil
caracterização e tipificação. Para tanto, contribuem as descrições
genéricas da legislação e a atuação dos operadores jurídicos, em especial o
Poder Judiciário, que interpreta as ações criminosas como intercorrências
normais, de natureza civil, do mundo dos negócios. Além disso, há uma
maior possibilidade de exploração do sistema processual e de garantias por
parte dos advogados, dificultando a imputação penal. O eventual êxito no
desenvolvimento dos processos criminais por delitos de tal natureza
redundará em punições extremamente brandas, por imperativo das próprias
normas jurídicas, uma vez que o sistema busca limitar as penas mais
severas a crimes praticados com violência, como o homicídio, o latrocínio,
o roubo, o estupro etc.
A Justiça, de outra parte, com alguma facilidade, pode lançar sua
rede de atuação efetiva sobre infrações penais dotadas de maior
visibilidade, praticadas pela população economicamente desassistida, cuja
conduta é facilmente tipificável. À dificuldade na tipificação dos crime
de estelionato ou peculato, por exemplo, corresponde, em contrapartida, a
facilidade no enquadramento penal dos autores de delitos como roubo e
furto, normalmente sujeitos a penas mais severas. Contra estes, portanto,
mostra-se o Direito Penal muito mais eficaz, incidindo sobre condutas
humanas dotadas de escassas possibilidades de atuação defensiva.
A eficácia do instituto jurídico da prisão preventiva, por exemplo,
somente em situações excepcionais pode ser constatada em crimes como de
estelionato, peculato, sonegação fiscal e outros, uma vez que em tais ações
delituosas os acusados dificilmente deixam de preencher os requisitos
objetivos e subjetivos do exercício do direito à liberdade provisória. O
exercício de ocupação lícita e a existência de domicílio certo no distrito da
culpa (local da prática delituosa) constituem critérios comumente adotados
pela Jurisprudência para afastar a possibilidade da decretação da prisão
preventiva durante o processo criminal, ausente, no caso, a necessidade de
garantia da ordem pública a que se refere o art. 312 do Código de Processo
Penal.
Tais requisitos da liberdade provisória, por outro lado, são mais
dificilmente satisfeitos pelos acusados pertencentes a camadas
marginalizadas da população. Em uma sociedade com altos índices de
desemprego, a atingir a imensa parcela de trabalhadores desqualificados, é
fácil imaginar, na hipótese de violação de norma penal, por meio da prática
de crime violento, por exemplo, sobre quem recairia a espada do Direito.
Na aplicação das normas, portanto, ocorre o que se denomina
criminalização secundária. A aplicação seletiva das normas penais e
processuais penais acaba portanto por construir, por si mesma, um Direito
Penal que não coincide exatamente com o Direito existente no interior das
normas penais, abstratamente destinadas à totalidade social, tornando,
assim, manipulável o conceito de eficácia jurídica.
As normas que definem crimes ambientais constituem outro exemplo
de direcionamento seletivo da eficácia do Direito. Discute-se ainda se as
pessoas jurídicas podem ser responsabilizadas criminalmente por ofensas
ao meio ambiente, consoante previsto na Lei 9605/98, havendo ainda
grande dificuldade na imputação de crimes ambientais à atividade da
poluição industrial. Um lançar de olhos sobre a jurisprudência mais
recente revela, por outro lado, que a aplicação da nova legislação vem
atingindo maciçamente pequenos infratores rurais, como caçadores de
pequenos animais silvestres ou posseiros que se dedicam ao corte de
palmito como meio de subsistência...
No que se refere à criminalidade violenta que atinge as grandes
cidades, é possível, portanto, compreender a idéia da criação de um Direito
Penal de natureza simbólica, como desaguadouro da situação de temor
social a que se refere ODONE SANGUINÉ na obra citada.
Para além do espaço simbólico de atuação do Direito, no entanto, sua
ineficácia, no sentido da solução dos conflitos sociais, parece indisfarçável.
Segundo Ana Lucia SABADELL, em época de intensa conflitualidade,
como a que vivemos, o Direito parece apresentar-se menos eficaz,
revelando sua modéstia e incapacidade de solucionar os conflitos sociais:
“quanto menos conflitos existam em uma sociedade, em determinado
momento, e quanto mais consenso haja entre os cidadãos com relação à
política do Estado, mais forte será o grau de eficácia das normas
vigentes”12.
O que se pretende sustentar é que a possibilidade de solução de
conflitos por parte do Direito está diretamente ligada ao contexto social.
Contemporaneamente, em países de economia periférica como o Brasil,
vem ocorrendo acentuadamente um processo desagregatório no âmbito das
instituições sociais, como valores morais familiares e até religiosos, o que
em regra tem sido impulsionado por processos econômicos. Quanto mais
significativa tal desagregação, mais modesto será o papel de solução de
conflitos por parte do Direito. Em tal contexto, a própria sociedade será

12
Manual de sociologia jurídica, p. 64
levada a criar modelos normativos próprios, muitas vezes incompatíveis
com os que se apresentam no Ordenamento Jurídico, muito embora a
criação social do Direito não decorra exclusivamente da inoperância ou da
omissão do Estado, como se verá no texto seguinte.
Debruçando-se sobre a realidade de favela do Rio de Janeiro, em
pesquisa realizada nos anos setenta, BOAVENTURA SOUZA SANTOS
analisou o nascimento do fenômeno jurídico alternativo na comunidade,
fruto do distanciamento da atuação do Estado naquela localidade, nascida à
margem das normas legais. O vício de nascimento do agrupamento social,
aos olhos do Direito, levou a comunidade local a distanciar-se cada vez
mais dos mecanismos jurídicos estatais. As normas jurídicas estatais, no
que se refere a benefícios sociais destinados à totalidade da população, não
poderiam aplicar-se a pessoas em situação de ilegalidade quanto ao uso do
solo, afastando, por exemplo, o recurso à proteção da Polícia contra a
criminalidade no seio da própria comunidade. Conclui BOAVENTURA
no sentido de que, “o estatuto de ilegalidade da comunidade favelada e o
bloqueamento ideológico que lhe foi concomitante criaram uma situação
de indisponibilidade ou inacessibilidade estrutural dos mecanismos oficiais
de ordenação e controle social”13.
A ineficácia do Direito, claramente visível em segmentos da
população socialmente desfavorecida, conforme a pesquisa do sociólogo
português, constitui o embrião da criação de formas alternativas de Direito
por parte da própria comunidade, abrindo caminho ao chamado pluralismo
jurídico. O fenômeno não passa desapercebido da comunidade jurídica e
dos operadores do Direito, de que é exemplo o chamado movimento
alternativo do Direito, constituído pela ação dos juristas e operadores do
Direito em busca, por exemplo, da afirmação da eficácia das normas
programáticas que se mostram socialmente ineficazes, insatisfeitos com seu

13
Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada, in “O Direito achado na rua”, pp. 46-51.
papel meramente simbólico. O trabalho de aplicação do Direito a partir
das normas programáticas, também chamadas apaziguadoras, elaboradas
com o objetivo de serenar os ânimos das classes reivindicadoras, constitui
um dos objetos de atuação dos juristas alternativos, que realizam o que
denominam um positivismo de combate.
A ineficácia do Direito, portanto, gerando fenômenos jurídicos
plurais no seio da população, incide sobre o próprio Direito, por meio da
atuação de seus operadores, que buscam compatibilizar as normas do
Direito Positivo com os anseios da sociedade, contando, para isso, com
ferramentas do próprio universo jurídico, como o trabalho hermenêutico e o
recurso a princípios históricos do Direito. Os juristas chamados
alternativos combatem a ineficácia social do Direito Positivo, voltando os
olhos também para normas não estatais de grupos sociais à margem da
sociedade.
O que se pode concluir, portanto, é que a maior ou menor eficácia do
Direito acaba por repercutir na formulação do Direito Positivo, em sua
constituição e também em sua aplicação efetiva, como resposta da
sociedade ao próprio Estado e à atuação de seus órgãos de controle social,
num expressivo mecanismo de troca, representativo da extraordinária
riqueza existente nas relações entre o Direito e a Sociedade.

BIBLIOGRAFIA

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal.


trad.
Juarez Cirino dos Santos, Ed. Freitas Bastos, 2ª edição.
BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica, trad., São Paulo: Ed.
Edipro, 2001.
__ Teoria do Ordenamento Jurídico, trad. Maria Celeste Cordeiro Leite
dos Santos, Ed. UNB, 6ª ed.
DURKHEIM, Emile. As regras do método sociológico, trad. Margarida
Garrido Esteves, Col. “Os Pensadores”, São Paulo: Ed. Abril, 1978.
___ Da divisão do trabalho social, trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura,
Idem.
GUSMÃO, Paulo Dourado. Filosofia do Direito, Rio de Janeiro: Forense.
MIRANDA ROSA, F.A. de. Sociologia do Direito, Rio de Janeiro: 1999
Jorge Zahar Ed. 15ª ed..
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Ed. Saraiva, 2002. 20ª
ed.
SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica. São Paulo:2000.
Ed. Revista dos Tribunais.
SAMPAIO FERRAZ JR, Tércio. Introdução ao Estudo do Direito. São
Paulo, Ed. Atlas, 3ª edição.
SANTOS, Boaventura Sousa., Notas sobre a história jurídico-social de
Pasárgada, in “O Direito achado na rua”, pp. 46-51, Ed. UNB.

QUESTIONÁRIO:

1. Qual é a relação entre a eficácia das normas e a idéia de pluralismo


jurídico?
2. Por que se diz que a ausência de efeitos concretos de determinadas
normas não significa necessariamente que elas sejam ineficazes?
3. Quais os principais obstáculos sociais à eficácia do Direito?
4. O trabalho de criação do Direito pelos operadores por via da
interpretação repercute na maior ou menor eficácia das normas? Por quê?
5. Aponte alterações sociais decorrentes da ineficácia do Direito Penal
no combate à criminalidade.

LEITURA COMPLEMENTAR:

“A análise da eficácia suscita uma série de problemas que interessam


tanto à Epistemologia como à Culturologia Jurídica: um deles prende-se à
natureza do Direito costumeiro e ao delicado problema da revogação das
leis pelo desuso.
Se atentarmos ao Código Civil, veremos que os usos e costumes não
ab-rogam, nem revogam lei: é preciso, entretanto, balizar o alcance dessa
asserção nas coordenadas da Dogmática Jurídica. Todos os ordenamentos
jurídicos, e o Código Civil é um deles, põem-se como unidades técnico-
formais sem lacunas. O Código Civil, o Código Penal, são conjuntos de
preceitos lógicos que se ordenam em sistemas; todo código tem a pretensão
de ser pleno, de bastar para explicar todas as hipóteses possíveis da vida.
Um dos propósitos do legislador é o de que aquele sistema não possa
ser revogado ou modificado, a não ser por outras regras escritas, que,
implícita ou explicitamente, contenham a sua revogação. Isto, porém,
somente pode ser aceito no plano técnico-formal, ou seja, no plano da
Dogmática Jurídica.
A vida social, entretanto, é muito mais exigente e sorri dessas
pretensões técnico-formais. O que vemos, em verdade, são preceitos
jurídicos que não são vividos pelo povo, por não corresponderem às suas
tendências ou inclinações, por múltiplos motivos que não vêm ao caso
examinar.
Há um trabalho, por assim dizer, de desgaste ou de erosão das
normas jurídicas, por força do processo vital dos usos e costumes. O hábito
de viver vai aos poucos influindo sobre as normas jurídicas, mudando-lhes
o sentido, transformando-as até mesmo nos seus pontos essenciais,
ajustando-as às necessidades fundamentais da existência coletiva.
Se imaginarmos, na história da espécie, a experiência do Direito
como um curso de água, diremos que esta corrente, no seu passar,
vertiginoso ou lento, vai polindo as arestas e os excessos das normas
jurídicas, para adaptá-las, cada vez mais, aos valores humanos concretos,
porque o Direito é feito para a vida e não a vida para o Direito.
Essa mudança nos quadros espirituais ou morais da ordem social tem
um profundo significado, representando a condição geral em que
necessariamente se situa o aplicador do Direito no momento decisivo de
sua interpretação.
É por isso que dizemos que uma sentença nunca é um silogismo,
umas conclusão lógica de duas premissas, embora possa ou deva
apresentar-se em veste silogística. Toda sentença é antes a vivência
normativa de um problema, uma experiência axiológica, na qual o juiz se
serve da lei e do fato, mas coteja tais elementos com uma multiplicidade de
fatores, iluminados por elementos intrínsecos, como sejam o valor da
norma e o valor dos interesses em conflito.
Nesse particular, o problema da eficácia pode verificar-se em quatro
hipóteses: ou a lei encontra logo correspondência na vida social,
harmonizando-se vigência e eficácia; ou a lei, embora vigente e por ser
vigente, deve subordinar-se a um ‘processo fático’ para produzir todos seus
efeitos, ou então, pode dar-se um fenômeno delicado: - o das leis que
durante um certo período, mais ou menos longo, têm eficácia e depois a
perdem; e, finalmente, o caso mais delicado ainda da vigência puramente
abstrata, que não pronuncia uma experiência possível, e, como tal, sem
qualquer efetividade.
Cabe aos homens de Estado evitar o divórcio entre a realidade social
e certas normas, que não têm ou jamais tiveram razão de ser, porque em
conflito com as tendências e os legítimos interesses dominantes no seio da
coletividade. Infelizmente, muito facilmente se olvida que leis falhas ou
nocivas, além do mal que lhes é próprio, redundam no desprestígio das leis
boas.
O reajustamento permanente das leis aos fatos e às exigências da
justiça é um dever dos que legislam, mas não é dever menor por parte
daqueles que têm a missão de interpretar as leis para mantê-las em vida
autêntica”. (MIGUEL REALE, Filosofia do Direito, Ed. Saraiva, 20ª ed. 2º
vol. pp.609-611).

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