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2º SEMINÁRIO INTERNACIONAL DIREITO E CINEMA.

VISÕES SOBRE O
DIREITO E A DITADURA – 04 e 05 de outubro de 2006

Conferência de Encerramento
04/10/2006 – noite.

Prof. Luis Alberto Warat (UNB) – transcrição e tradução

...
Os juristas, no processo de formação jurídica, no momento em que recebem o título de
bacharéis em Direito se descobrem com a sensibilidade perdida, perdida a sensibilidade.
Por isso, [só levei isso em conta tardiamente] 1, quando eu já pesava 130 kg; isso é uma
forma de perder a sensibilidade. Meu corpo denuncia o que seja ser bacharel em direito, o
que seja fazer Filosofia do Direito.

Eu confesso, e o venho dizendo reiteradamente, que a Filosofia do Direito me roubou o


corpo. Não quero ser dramático, [parece que] me roubou a vida. Mas, muita gente que
[professou] Filosofia nesse país está confessando isso. Antes de morrer, Lourival Vilanova
falou que a Filosofia do Direito o havia enganado. Nos enganaram, nos roubaram o corpo,
perdemos a sensibilidade.

Eu não sei se todos juristas são (...)2, tenho minhas dúvidas. Eu tenho uma coisa que vai
perdendo, ao se escrever sob um pensamento único, no que se chama processo
pingüinização, vira-se um pingüim.

Eu creio que a marcha anti-pingüim é uma marcha de recuperação do corpo, da


sensibilidade através das artes. E eu não generalizaria somente cinema, mas sim todas as
artes, o movimento. Através do movimento, da pedagogia do movimento é o que permitira
recuperar a sensibilidade na formação dos juristas. Porque, aqui, durante o Seminário,
sobretudo na esplêndida intervenção da professora Juliana, estão todavia as marcas de uma
epistemologia que não quer render-se. Então, esse esforço por vincular a relação de cinema
com direito constitucional. Para quê? Ou vincular o cinema com a História do direito?
Vários filmes que foram passados têm a ver a história do direito.

Mas não é essa a questão. Eu creio que o desafio primeiro é assumir a arte
provocativamente, assumir a arte – para mim – surrealisticamente. O surrealismo é um
movimento filosófico que trata de ajudar as pessoas a fugirem dos lugares comuns, dos
estereótipos, de tudo o que nos aprisiona, que nos faz prisioneiros de um pensamento único,
que nos faz fugir da pingüinização. É um movimento ante-pingüim.

Eu sempre usei a idéia do pingüim, usando uma metáfora, um desenho animado que mostra
quando os juízes ingressam na magistratura do Rio de Janeiro. (...) passa num filme, “Os
novos juízes”, sobre o pavão na organização dos pingüins, e conta a história de uns
pingüins que foram a um congresso e viram um pavão anunciando-se e que o atraíram para
1
Os colchetes trazem uma possibilidade de conteúdo de alguns trechos, vez que a gravação não se apresenta
de boa qualidade.
2
Os parênteses com reticências representam trechos inaudíveis.
a organização. Chegou o pavão e começou um a comportar-se como um pavão e os
pingüins se apavoraram. E disseram: não, não pode ser assim. Ele tem que pensar como um
pingüim, comportar-se como um pingüim, falar como um pingüim. Há que pinguinizá-lo. E
quando termina o desenho animado, os juizes velhos, os desembargadores, dizem aos juízes
que estão ingressando aqui no Rio de Janeiro: nesse estágio probatório de dois anos, vocês
vão ser pinguinizados.

E o prof. Christian me contou outra coisa que me parece muito interessante: nas colônias
africanas [da França] chamam pingüim aos africanos que vão a França formar-se em
Direito para voltar às colônias e reproduzir o direito dos colonizadores. A esses chamam
pingüins.

Isso também me parece muito interessante, um [aporte] para a marcha contra a


pinguinização, prof. Caubet, porque creio que isso também tem a ver com o que acontece
aqui, ou seja, a pinguinização que os alunos sofrem nas faculdades de Direito e no processo
da magistratura. Mas tem que ver também contra um discurso jurídico de colonizador, do
poder dominante, da dominação. Não é um direito popular, não é um direito da rua, não é
um direito dos excluídos.

Eu não me preocuparia em articular ou ver como o cinema pode ser recepcionado nas
concepções jurídicas dominantes, pelo normativismo ou pela epistemologia.

Eu creio que temos que buscar outras concepções de Direito que não sejam normativas.
Nos preocupamos tanto com o que ocorre com o cinema em respeito ao direito
constitucional, ou em relação ao que ocorre com o cinema como reconstrução do
imaginários dos juristas e não com o que ocorre com o movimento de recomposição social.
Por que é através da dança, da música, das artes que se pode gerar processos de reinserção
social. Se eu quero recuperar os meninos da rua, da exploração sexual, do tráfico ou quero
contribuir com processos, em distintas comunidades vulneráveis, de reinserção social, é
através da música, das artes, do movimento, que se pode fazer este tipo de trabalho.

Talvez tenha tanto valor o cinema como a dança. Eu, hoje, apostaria mais dança do que no
cinema por que há uma nova concepção de Direito, aparentemente alternativa, que é através
da mediação. E o que fizeram os juristas com a mediação? A normatizaram. O mais do
mesmo. Se nós vamos usar a dança ou o cinema para (...) o normativismo, não creio que é o
caminho mais adequado. Há que se usar estes instrumentos para outras coisas. E hoje existe
uma coisa que se chama a resiliência, que é uma terapia vinculada à logoterapia (...), que
usam a dança, sobretudo a dança, como uma forma de ajudar às pessoas a resistir, a dar a
volta por cima, a sair de qualquer situação por mais opressiva ou traumática que seja. Nos
cursos de resiliência que nós estamos começando a dar em um projeto de extensão da UnB,
que se chama a política do corpo, para juristas, no qual fazemos exercícios para que as
pessoas descubram das situações opressivas, as professoras de dança trazem uns tubos
elásticos que você bota no corpo e não pode mover-se, fica sem nenhum movimento, e aí,
começa a música e a pessoa tem que começar a recuperar o movimento e sair destes tubos e
começam a recuperar a liberdade e começam a entender que, por mais prisioneiro que o
corpo esteja, pode recuperar estas formas de expressão libertárias (...).
Então, eu creio que existem certas coisas que temos que reconhecer como vencidas. Todos
os professores do seminário coincidiram no fato de que o normativismo está em crise, a
concepção tradicional do Direito está em crise, que se deve buscar certos apelos para
deslocar-se um pouco.

Eu vou reconstruir um pouco a minha história quanto a este processo por que eu penso que
nisso eu me sinto um pouco como as mulheres. Eu posso me queixar do direito como se
queixam as mulheres de que não são escutadas pelos homens. Eu creio que eu, tampouco,
me sinto escutado pelo mundo jurídico. Só me escutam depois de 20, 30 anos. Então, eu
tenho que reconstruir um pouco a minha história porque muitas das coisas que vocês estão
colocando no centro da cena eu colocava com bastante insucesso nos anos 80 e 90.

Em 1984 eu fiz meu primeiro escândalo no Brasil ao propor no Mestrado da Federal de


Santa Catarina o que eu chamei de ‘a epistemologia carnavalizada’, e escrevi um livro em
1984 que se chama “A ciência jurídica e seus dois maridos” (...).

Que significa a ciência jurídica e seus dois maridos? Que significa Jorge Amado?
Brincando, eu vou repetir uma coisa que eu insisto. Eu sou o único jurista baiano deste país.
E sou o único jurista baiano porque, para mim, ser um jurista baiano é pensar o direito a
partir das categorias e do imaginário e do espírito da Bahia. Então nem Orlando Gomes,
nem Rui Barbosa, nem Machado Neto são baianos. Baiano sou eu. Como jurista sou eu, eu
fui único que pensei o direito a partir do imaginário da Bahia, a partir dos orixás, a partir do
candomblé.

Jorge Amado, da mesma forma que Julio Cortázar, encontrou a fonte de seus personagens
assim contrastantes como Vadinho e Teodoro (...) na “Origem da tragédia”, de Nietzsche. A
fonte é Nietzsche. A oposição entre Apolo e Dionísio. Vadinho é Dionísio, Teodoro é
Apolo. Os (...) são apolíneos e os (...) são dionisíacos. (...) Os deuses da arte grega. O
apolíneo, da harmonia, das formas puras, das formas harmoniosas e dionisíaco, o Deus da
desmesura, a expressão do desmesurado. (...) Teodoro é apolíneo, Vadinho se supõe que
seja dionisíaco porque Vadinho é o que um Teodoro imagina que seja um transgressor,
porque Vadinho tampouco vai muito além de Teodoro são dois (...) da mesma situação. É
bastante apolíneo o Vadinho de Jorge Amado.

E o direito aposta na desmesura do dionisíaco ou na harmonia? O direito normativismo é


dionisíaco ou apolíneo? A verdade é apolínea. Existem também alguns efeitos perversos da
verdade porque eu creio que a verdade em ciências sociais e no Direito não deixa de ser um
lugar comum. É uma [doxa] fantasiada de episteme, mas é um pensamento [dóxico]. Eu
não creio que se possa pensar em modelos das ciências naturais aplicados à compreensão
dos vínculos sociais. Eu creio que o paradigma de compreensão das ciência sociais é
hermenêutico, não é epistêmico. Não é um compromisso com a verdade, mas um
compromisso com a verossimilhança, com a interpretação, com a opinião. Não quero dizer
que isto não seja importante, mas não tem a ver com a verdade. A verdade é um efeito
retórico, como também é um efeito retórico dizer que alguém busca o verdadeiro amor. A
verdade não tem a ver com sentimento, então buscar o verdadeiro amor é um processo
delirante porque não há verdadeiro amor. Os sentimentos não podem ser verdadeiros. Eu
procuro um delírio quando procuro um verdadeiro amor, como quando procuro a verdade
no discurso jurídico.

Eu creio que o exemplo mais claro é a psicanálise. Psicanálise não é ciência, é um discurso
hermenêutico. Eu não posso dizer o que seja verdadeiro ou falso sobre o inconsciente, eu
posso fazer interpretações aproximativas quando eu sou psicólogo em um processo
terapêutico, mas o que o psicanalista me diz não é verdadeiro nem falso. É uma opinião que
me serve, que me modifica, e eu escuto e eu tomo atitudes em relação a esta opinião que
não é verdadeira nem falsa. Eu não posso dizer “O terapeuta, hoje, me falou tudo errado”
por que não tem sentido, são tudo opiniões, que me provocam ou não me provocam.

Freud era judeu e psicanálise tem a ver com judaísmo. Quando Moisés desceu das
montanhas com as tábuas, [trabalhando,] e Deus lhe disse “Nenhum judeu pode ver meu
rosto nem meu corpo. O judeu que vir a meu corpo, morrerá”. O rosto e o corpo de Deus é
inacessível e Moisés desceu da Montanha com o mandado da inacessibilidade do corpo de
Deus. E aí nasceu a Kabala. Por que se Deus é inacessível, como eu me aproximo? Por
interpretação. Às vezes tem algumas interpretações esquisitas como as do Papa, que depois
tem que pedir desculpa. Mas são interpretações do inacessível.

E todo discurso social, os vínculos sociais são inacessíveis porque todos nós temos
territórios desconhecidos, temos dragões e alguém pode se aproximar dos dragões através
de interpretações, mas ninguém pode fazer enunciados proposicionais sobre o
comportamento dos dragões. Estes são os territórios desconhecidos que constituem os
vínculos sociais. E o Direito intervém para tratar de regular positivamente territórios
desconhecidos dos vínculos sociais. Uma quimera, uma forma de dominação, mas, todavia,
dizer que tudo isso tem que ter uma pretensão de cientificidade, eu creio que, a esta altura,
no mundo, já é uma coisa bastante disparatada. Vale a pena ver de novo o sítio do picapau
amarelo.

Então, eu creio que temos que buscar outras coisas e deixar de encher o saco com essa
história de o Direito ser uma ciência ou não, não é. O paradigma do Direito é hermenêutico
e não epistemológico. Basta desta história. Eu creio que se deve renunciar a toda pretensão
epistemológica em torno do Direito.

Agora (...) dizia que a única (...) de hermenêutica é através da arte. O trabalho hermenêutico
é um trabalho sobre arte, sobre o discurso estético. O Direito é hermenêutico como a
psicanálise, por isso expressão da arte, tem a ver com o poético com o metafórico, que é
uma forma de poesia.

Também temos que contar com uma questão que também me parece importante e que não
quero deixar passar esta noite aqui. Eu tive algumas namoradas que, para mim, eram as
mais loucas, maluconas. Eu tratei de entendê-las. Então eu tive que mergulhar na doidice
delas por que se eu não mergulhasse na doidice delas, não as entendia. Assim me aproximei
do Candomblé, das magias negras, tive algumas namoradas que viajavam bastante em todo
esse tipo de coisa. Me aproximei seriamente porque era uma forma de tratar de entendê-la.
(...) Eu posso não acreditar, mas se eu não entro neste jogo, eu não me vinculo com a
diferença do outro.
Então, neste sentido eu me encontrei, na minha vida, com um discurso delirante. É o
discurso dos juristas, mas é um delírio que não constitui. Eu não posso entender um juiz, se
não entendo o delírio dele. Então se eu quero tratar de fazer algum tipo de interpretação, de
compreensão do que é um juiz, tenho que assumir que o cara é um maluco e que tenho que
entender o delírio dele. Por que é um delírio constitutivo. Há um imaginário delirante que
nos compromete a todos nós, do qual fazemos parte, o qual temos que aceitar para
podermos dialogar por que é um diálogo entre malucos os diálogos entre os juristas. Se eu
vou ao fórum e vou pedir algo a um juiz, tenho que entrar no delírio dele por que senão não
conseguirei nada. (...) Este delírio é constitutivo, inclusive com todo um processo de
coerção social. Então, forma parte do imaginário de um determinado setor social. Então,
não adianta a partir do meu imaginário questionar o delírio do imaginário do outro, por que
o meu também será delirante para outro. Então eu creio que, para entender as configurações
da sociedade, há que se entender, inclusive, das dimensões do imaginário social que são,
para um observador, contagiado de epistemologia, delirantes. Por que não ganhei nada,
durante todos esses anos, afirmando que o discurso jurídico era delirante ou mitômano.
Então, se eu tenho que me relacionar com um mitômano, tenho que entrar no jogo da
mentira dele. Por que o mitômano não é isso, forma parte desta dimensão dele, é
constitutivo da identidade dele. E se eu estou me vinculando a uma pessoa que tem uma
subjetividade mitômana, de alguma maneira eu tenho que entender este jogo dele. Eu não
vou me ofender pelas mentiras dele, por que são constitutivas de sua subjetividade.

Então, um juiz, que pertence a uma determinada classe, instituição social, e que entra no
delírio institucional, há que entendê-los. Dizem que quando várias mulheres convivem em
um mesmo lugar, todas têm TPM juntas. Quando os juízes todos convivem juntos na
instituição, têm TPM conjunta também. Todos pensam igual porque se contagiam. O
mesmo se passa com a TPM das mulheres que vivem juntas.

Então não podemos deixar isto de lado. Em nome de uma neutralidade, de uma pesquisa
epistemológica. (...) Agora, estamos vivendo um momento de [despedaçamento] teórico
que temos que reconhecer para não cair na mesma armadilha de todos estes anos.
Comentava eu com o Professor Ribas e com o professor Christian que os juristas têm uma
grande fobia ao discurso interdisciplinar, ao discurso do outro. Tudo o que não é uma
análise normativa não é jurídico, não é Direito. Tudo o que eu faço (...) que não é
interpretação de norma, ou uma análise exclusivamente normativa não é Direito para o
pensamento tradicional. Quantas vezes escutei “O Warat não é jurista”. (...) Na Estácio de
Sá em Santa Catarina me disse outro dia a coordenadora do curso “A grande diferença da
Estácio da Sá para as outras faculdades é que nós trabalhamos interdisciplinarmente.
Quando temos um problema, chamamos um penalista, um civilista ou comercialista, então
temos um olhar interdisciplinar sobre o Direito” Isto é o máximo que ocorre no Direito,
quanto a interdisciplinariedade. Se nós queremos seguir sendo interdisciplinar entre nós,
temos que acompanhar o que está passando no mundo. E no mundo está-se dando um adeus
grande ao paradigma moderno. (...) já era. Eu não sei como alguma pessoa, na
epistemologia, todavia, tem a cara de pau de dizer “vou estudar (...)”. Por que isto já era.
Estamos estudando o que? São os dinossauros da epistemologia. A epistemologia já era.

Então, quando (...) fala do paradigma da complexidade, não é (...), não é a epistemologia
moderna. O próprio Luhmann não é um paradigma moderno, é outra abordagem, diferente.
Habermas não me meto. Eu me nego a falar de Habermas e de Boaventura de Souza Santos,
por isso não quero falar. (...)

Eu, acompanhando a história da minha namorada, falei um pouco da epistemologia


carnavalizada, que é mais ou menos a idéia da complexidade. Há outra forma de falar deste
[despedaçamento] da produção do conhecimento. Guatari, que creio que seja importante,
fala do deslocamento do paradigma científico para o paradigma estético e Mafesoli introduz
esta idéia também da tensão entre a verdade e a desmesura e com todas as letras propõe a
construção do paradigma dionisíaco que eu, em letras miúdas, disse em “A ciência jurídica
e seus dois maridos”, é um pouco da idéia. Ou seja, eu, em “A ciência jurídica e seus dois
maridos” estava dizendo que no direito falta a desmesura, falta a feminilidade. Porque o
feminino representa a desmesura. Já Lacan dizia que as mulheres queriam o ‘ainda mais’. O
‘ainda mais’ é o desmesurado. Então, eu já dizia que faltava o paradigma dionisíaco no
direito e, de alguma maneira, em 1984, eu propus o caminho de um paradigma dionisíaco e
creio que temos de ir por aí e creio que seminários como este, que apontam a articulação da
arte com o direito, o cinema e o direito, apontam ou acompanham esse [despedaçamento]
de um paradigma científico a um paradigma dionisíaco, mas também acompanham um
deslocamento da concepção do direito.

Ou seja, eu não posso falar de arte ou direito e tratar de retomar qualquer tipo de
discussão em torno de qualquer elemento sobrevivente do normativismo. Como por
exemplo se preocupando sobre de que maneira o cinema pode ser fonte do direito
constitucional, por que aí é louco. Estamos abrindo outro espaço delirante por outro lado,
por que não dá para discutir desta maneira, destes lugares. Abrir espaço para a
sensibilidade, para a arte e para a poesia é dizer bye bye ao normativismo é começar a
pensar em outras concepções do direito além do normativismo. O que não quer dizer
excluir a norma por que segue havendo manifestações normativas e do direito estatal que
seguirão sendo importantes, mas em seu custo, medida e lugar. Por exemplo, é muito
importante que os juízes argentinos tenham decretado o genocídio e os delitos cometidos na
época da ditadura militar, ou seja, que haja um cara da ditadura militar que tenha sido
condenado por genocídio por um tribunal argentino é importante e deste tipo de
normativismo não se pode abrir mão, nem eu estou predicando isto. Mas o normativismo
não pode se meter em coisas como o direito de família, nos afetos, no amor.

Ou seja, creio que estamos sempre nos esquecendo (...), o normativismo nos faz
esquecer como se escreve o amor no direito. Por que eu há muitos anos venho insistindo e
perguntando aos meus alunos o que tem a ver o amor com o direito e a maioria me
responde que onde começa o direito, termina o amor. De onde tiraram isso? Como ‘onde
começa o direito, termina o amor´? A convivência humana é de amor e desamor e o direito
se ocupa disso, por que convivência de amor e desamor não é só violência, vida e morte,
também há amor e desamor e esta porção de convivência humana que nós temos, como
juristas, o dever de ajudar a uma melhor sustentabilidade dos vínculos amorosos das
pessoas, o que modifica muito o direito. Ou seja, eu sustento agora que para mim é a peça
do quebra cabeça pessoal que me faltava, que o objeto do direito é a convivência humana e
que a função do jurídico é ajudar as pessoas a encontrar melhores formas de convivência
mais amorosa, menos violentas.
Claro, você pode me dizer ‘mas se o direito se vincula com a convivência, acabou o
direito, por que que diferença haveria entre um jurista e um sociólogo?’, mas isto não me
importa, não é meu negócio. Ou seja, quem quiser ver a imagem do jurista tradicional, verá,
mas creio que se deve tratar de buscar um direito que se preocupe muito mais em ajudar as
pessoas a conviver melhor do que em puni-las por certas transgressões normativas.

Eu creio que o direito tal qual está constituído só ajuda a superar as neuroses da
classe média. Fora certas neuroses da classe média, o direito não ajuda nada.

Então, se eu tenho que buscar outros tipos de direito que me ajude, sobretudo, na
exclusão social por que há um direito popular, um direito dos excluídos que está silenciado,
que é invisível e que não existe aos olhos de ninguém. A pobreza é invisível. E é invisível
também para o direito. Eu tenho um amigo que mora em Copacabana, que saiu na rua com
uma criança no carrinho e a criança tirou o sapato e colocou no bolso e ele seguiu
caminhando com a criança com um sapato só. Todo mundo o parou para dizer: “o neném
está sem um sapato”. Mas esta gente que o parava para dizer que faltava um sapato, não vê
a falta de dois sapatos nos pés de tantos meninos nas ruas de Copacabana e Ipanema. Os
dois sapatos não dizem nada, quando falta um sapatinho só, todo mundo vê. Este é o olho
da justiça. Isto é invisível aos olhos do juiz. O normativismo não enxerga a pobreza, o
normativismo não enxerga a exclusão social. O normativismo é indiferente ao tráfico
sexual infantil. Para tudo isto necessitamos de outros tipos de respostas. Um direito que a
rua tem que construir. E precisamos terminar com o saber elitista da Universidade. Porque,
meninos, o saber universitário é mafioso. Vocês estão sendo formados em uma concepção
do direito a partir de máfias que se enfrentam entre si. E as formas de organização mafiosa
nas universidades estão piorando.

Eu fui ingênuo quando comecei a denunciar as máfias nas universidades, mas eu


dizia que a epistemologia era mafiosa, por que nós fazemos pactos de verdade com os
amigos e, [ao redor,] ficavam os inimigos. Eu, ingenuamente, falava de máfia neste sentido,
mas as máfias, hoje, são mais complicadas.

Eu não entendo os alunos, se dizem infelizes na Universidade e não se dão conta


que noventa porcento dos professores os desprezam. Ninguém é feliz em um lugar onde é
desprezado. Noventa porcento dos professores odeiam os alunos e os alunos não estão nem
aí. Sem se preocupar que somos diabos, aqui.

Então, este saber elitista tem que acabar. Cristóvão Buarque e Lula também, me
parece, falavam na campanha eleitoral de revolução educativa. Possivelmente a revolução
que determinará que as faculdades de direito deixarão de ser faculdade e passarão a se
chamar centro universitário, ou qualquer coisa no estilo. E que as coordenações deixem de
se chamar coordenações e passem a se chamar chefias de departamento, algo por aí, pois
além disso a revolução educativa não vai. Mas revolução de saber, outra concepção da
produção do conhecimento, o respeito por outros lugares de produção de conhecimento, a
abertura de acabar com a Universidade para começar a construir a ‘Multiversidade’, que dê
lugar a outros saberes que não são os saberes que oficialmente as máfias acertam, por que o
saber não legitimado pela máfia não é saber. Então, todas as terapias alternativas em
medicina, toda a cultura afro, toda cultura indígena, onde estão, dentro da Universidade?
Por que isto é interdisciplinariedade. Por que assim como os juristas falam de
interdisciplinariedade para dizer ‘temos que consultar a um civilista, a um penalista e a um
comercialista para ter uma visa interdisciplinar’. A outra interdisciplinariedade não é,
tampouco, diferente, por que quando se fala em interdisciplinariedade do saber, é um
diálogo entre as elites dominantes na Universidade. É um diálogo entre elites, é um pacto
de mafiosos. Mas a multiversidade do saber é a interdisciplinariedade que está na rua, que
está nas comunidades indígenas, que está no pensamentos dos afrodescendentes, que está
no movimento gay, no movimento feminino. Tudo isto não chega nunca à Universidade. E
esta multiversidade é que pode acionar a revolução educativa. O saber na rua, o saber da
rua, como integrante da cultura nacional. É esta a desmesura que eu falo, por aí passa o
dionisíaco e este saber é um saber sensível. É um saber que está no corpo, na sensibilidade
e no desejo das pessoas. E falar em multiversidade é aprender a escutar o corpo do outro.
Por que quando vocês mulheres se queixam de que não são escutadas, se queixam mal, por
que vocês hão de reconhecer, vocês não tem poder de síntese. Quando vocês começam a
contar algo, é duro escutá-las. Não têm poder de síntese. Quando uma de vocês começam a
relatar algo, dá vontade de pedir uma sinopse. Também vocês não tem paciência de ouvir
quando o cara vem contar do futebol, todos os detalhes sobre a partida. É difícil escutar o
relato do outro. O problema não é por aí. O que nós homens não sabemos escutar nas
mulheres, e somos bastante incompetentes nisso, é escutar o desejo do outro. Escutar o
corpo da mulher. Isso não sabemos. Em geral, não sabemos escutar o corpo do outro. É ao
saber do corpo do outro que as elites da Universidades não deram lugar.

É a multiversidade de um saber popular apoiado na estética e na sensibilidade que o


direito, em geral, tem que aprender a escutar.

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