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«LAW IS POLITICS»:
PROPOSTAS DO CRITICAL LEGAL STUDIES MOVEMENT*

1. ORIGENS E DESENVOLVIMENTOS DO CRITICAL LEGAL STUDIES


MOVEMENT

1.1. As diversas gerações de Scholars

O Critical Legal Studies Movement surgiu, como movimento, a partir da


realização da Conference on Critical Legal Studies, em Maio de 19771. A questão de
saber se é um autêntico movimento intelectual relativo ao direito suscitou várias
opiniões. Mark TUSHNET considera que os Critical Legal Studies são menos um
movimento intelectual relativo ao direito – embora também o sejam –, do que uma
posição política2. De acordo com esta opinião, o projecto dos Critical Legal Studies
não tem qualquer componente intelectual essencial e comum a todos os seus
membros. E isso não teria nada de surpreendente, para TUSHNET, uma vez que, para
a maior parte dos Critical Legal Scholars, o direito é política3. Porém, Martha
MINOW entende que o movimento Critical Legal Studies é mais do que uma posição
política, e considera o movimento reconhecível pelo compromisso de expor o
carácter “open-textured” dos princípios e das doutrinas jurídicas, capazes de
sustentar resultados contraditórios, e de denunciar a possibilidade que as decisões
legais apresentam de expressar a dinâmica interna da cultura jurídica, contingente
nas preferências históricas por posições e valores seleccionados4.
Para Duncan KENNEDY o Critical Legal Studies Movement assume quatro
expressões distintas5: existiu como um “movimento”, mais do que como um
“projecto”, embora também o fosse, enquanto actividade prática orientada por
objectivos6; existe uma “escola”7; existe uma “teoria do direito” designada Critical

*No presente texto, tenha-se sobretudo em conta, para efeitos de estudo, os pontos 1., 2., 4.1.,
4.2. e 4.3..
1
A carta de convocatória, datada de 17 de Janeiro de 1977, foi enviada por um comité então
organizado, de que faziam parte Mark TUSHNET e Roberto Mangabeira UNGER. Nessa convocatória é
patente o objecto da reunião: uma reunião de colegas que se encontravam a adoptar, autonomamente, uma
perspectiva política para o estudo do direito na sociedade. – Juan A. PÉREZ LLEDÓ, El Movimiento
Critical Legal Studies, Madrid, 1996, p. 51.
2
Vide Mark TUSHNET, “Critical Legal Studies: a Political History”, in The Yale Law Journal,
vol. 100, n.º 5, 1991, p. 1515-1544, p. 1515.
3
Ibidem, p. 1516-1517.
4
Martha MINOW é uma legal feminist e CLS fellow-traveler na Harvard Law School. Vide Gary
MINDA, “Critical Legal Studies”, in Postmodern Legal Movements – Law and Jurisprudence at
Century’s End, New York, London, 1995, p. 108.
5
Duncan KENNEDY, A Critique of Adjudication (Fin de Siècle), Harvard University Press, 1998,
p. 8-11.
6
«By a “movement” I mean a “project” in just the sense I described above – a goal-oriented
practical activity of a loosely identifiable group carried out in light of an analysis contained in a literature
of shifting content. The people in the cls were overwhelmingly legal academics; the goals were constested
within the group, but my version was that we were trying to create a left legal academic intelligentsia as a
new social grouping that would influence both its own workplaces and the general political culture. […]
Cls was a movement rather than just a project because the ideas of “change”, “growth”, and “opposition”
were built into it, in the sense of being conscious collective purposes». – Idem, p. 9.
2

Legal Studies8; existe ainda, frequentemente, um media “factoid” chamado Critical


Legal Studies, em que se relatam os factos constitutivos da sua evolução, domínio
em que relevam os constrangimentos próprios das narrativas 9. Os pilares comuns do
pensamento dos autores participantes na Conference permitem identificar o Critical
Legal Studies Movement precisamente como um movimento, mais do que como uma
Escola, segundo Mark TUSHNET, que considera que o Critical Legal Studies
Movement, mais do que um movimento intelectual no direito, é uma political
location, usando a palavra location para significar que os Critical Legal Studies são
um lugar onde pessoas com um amplo âmbito de perspectivas políticas referentes a
diversos domínios da vida social podem reunir-se10.
Após “The Conference on Critical Legal Studies”11, os projectos intelectuais
dos diversos autores estabeleceram o núcleo temático deste movimento, uma vez
que os “Crits” apenas partilham a relutância relativamente às perspectivas
tradicionais do direito, não advogando um método ou perspectiva comum acerca do
saber jurídico (legal scholarship).
O movimento Critical Legal Studies desenvolveu-se em diferentes gerações
– uma geração inicial, moderna, surgida em meados dos anos 70 e projectando-se no
início dos anos 80 do século passado, e uma geração posterior, pós-moderna, a partir
da segunda metade dos anos 80 daquele século. Uma eventual terceira geração
consiste na ramificação do núcleo dos Scholars por diversas Jurisprudences
temáticas, sob a mesma orientação crítica.
Os primeiros Critical Legal Scholars ergueram como ponto de partida a
denúncia da concepção “neutral” do direito presente no pensamento jurídico liberal,
opondo-lhe que o direito é “racional” e “objectivo” apenas porque aparece a
conformar uma particular ideologia política liberal – ideologia esta a pretender
configurar as desvantagens e privilégios de raça, classe e género como

7
«Cls as a school of thought is like the movement in that it is a project, but it is the strictly
academic project of developing a network of writers and teachers who share a set of ideas, rather than the
academic/political project of transforming society by transforming legal education. The members of the
school share the goal of expanding its membership and influence, and they critique mainstream legal
scholarship more or less aggressively, but they do so without trying to challenge the rules of the game or
the balance of power in their institutions. […] The school, unlike the movement, is institutionalized at a
small number of law faculties and continues to reproduce itself socially and to develop intellectually over
time». – Idem, p. 9-10.
8
«Cls as a theory of law exists in the very different form of a canon, a list of texts that “are” cls,
along with commentaries and critiques. […] Cls as a theory of law is very much alive, “on the map” of
generally recognized rival theories, and it continues to develop as people write “cls articles” and others
comment on and critique “the” theory». – Idem, p. 10.
9
«… an entity in the “spectacle” that the mass media provide for our amusement and edification.
In the spectacle, cls “is” what journalists decide it is. […] The spectacle is a continuing current history of
the world, and the journalists who construct it obey narrative constraints. Once cls developed a factoid or
virtual existence in the spectacle, later accounts of cls “doings” had to preserve the earlier character
(journalists research only what earlier journalists have said about cls), though in the narrative the
character can change (“cls has lost its combative edge with age”, for example). […] … I was surprised by
how little events on the screen corresponded to what I thought was happening in the “real world” I had
access to off-screen, and by the increasing divergence as narrative constraint took hold. This just shows
that I was myself a typical member of the audience of the spectacle». – Idem, p. 10-11.
10
Mark TUSHNET, “Critical Legal Studies: a Political History”, cit., p. 1515-1544, p. 1515, e
ibidem, n. 2.
11
Gary MINDA, “Critical Legal Studies”, cit.; PÉREZ LLEDÓ (op. cit., p. 168-194) adopta também
esta periodização. Vide ainda Mark TUSHNET, “Critical Legal Studies: a Political History”, cit., p. 1515-
1544.
3

consequências lógicas da escolha racional privada. Em meados dos anos 80 do


século XX, um importante número de Critical Legal Studies aplicou as críticas pós-
modernas da descontrução ao pensamento e aos casos jurídicos, o que implica o
reconhecimento de uma Second-Generation Critical Legal Studies Scholarship 12. O
objectivo seria agora o de demonstrar que toda a interpretação jurídica de textos
jurídicos privilegia um sentido relativamente a outros possíveis significados. Os
Critical Legal Scholars desconstrutivistas defendem que todas as hierarquias, no
pensamento jurídico, mesmo as que proclamam a existência de uma contradição
fundamental, podem ser destruídas e invertidas por uma leitura desconstrutivista. No
final dos anos 80 do século XX, período de Late Critical Legal Studies, o
movimento sofreu um fenómeno de ramificação, tendo dado origem a múltiplas
correntes de pensamento crítico, entre as quais a “Feminist Legal Analysis” e a
“Critical Race Theory”. Ramificações essas que, em diálogo com a filosofia pós-
moderna, apresentam desenvolvimentos actuais fundados numa ética alternativa,
baseada no respeito pela diferença.
Os Critical Legal Scholars propunham-se, no início dos anos 80, a
demonstração da indeterminação da doutrina jurídica, no sentido de afirmar que
qualquer conjunto dado de princípios pode ser usado para sustentar resultados
concorrentes ou contraditórios; o empenhamento na análise histórica e sócio-
económica para identificar os modos pelos quais grupos de interesses particulares,
classes sociais, ou instituições económicas entrincheiradas beneficiam das decisões
jurídicas apesar da indeterminação das doutrinas jurídicas; a tentativa de expor como
a cultura e o pensamento jurídicos mistificam (iludem) elementos estranhos
(intrusos-outsiders) e legitimam os seus resultados; a possibilidade de explicar novas
ou previamente desfavorecidas perspectivas sociais e lutar pela sua realização na
prática jurídica ou política, inserindo-as no discurso jurídico13.
O Critical Legal Studies Movement perfilha uma perspectiva política de
esquerda radical, considerando as democracias liberais de tipo ocidental como
sustentadoras de ilegítimas hierarquias de poder e de privilégios. Relativamente à
concepção liberal do direito, os Critical Legal Studies, entre os quais Roberto
UNGER e Duncan KENNEDY, criticam as dicotomias próprias do Estado de Direito
Liberal, tais como a separação entre Estado e sociedade civil, bem como entre
público e privado, e apontam, criticamente, as suas consequências. No caso de
UNGER, é fundamental para a construção do seu projecto de reforma do pensamento
jurídico a comprovação de que essas dicotomias não são necessárias, e cumpre
mesmo eliminá-las, em nome da igualdade e da justiça.
Perante as inumeráveis orientações e ramificações teóricas e práticas dos
autores que se assumem como Crits, ou, pelo menos, que se identificam com os
ideais perfilhados pelo movimento, pretender definir uma homogeneidade de
orientação teórica e metodológica afigura-se uma tarefa árdua14. Apesar de tudo,
pelo menos duas afirmações são inequivocamente identificadoras do movimento.
Em primeiro lugar, a de que “Law is politics”. Depois, a da existência de uma linha

12
Vide Gary MINDA, “Critical Legal Studies”, cit., p. 116.
13
Vide idem, p. 108.
14
Juan A. PÉREZ LLEDÓ, op. cit., p. 20-21, 34.
4

orientadora comum a todo o movimento: a crítica ao carácter autónomo do


pensamento jurídico15.
Ainda fundamental é o carácter anti-formalista do direito, traduzido de modo
diverso nos vários autores do movimento, e tendo como núcleo essencial a crítica à
pretensão de que o pensamento jurídico é a-político, científico e não admite
qualquer conteúdo ideológico, e de que, e consequentemente, a aplicação do direito
se traduz num juízo lógico-dedutivo. Assumindo uma posição crítica, os autores do
Critical Legal Studies Movement denunciam o carácter ideológico dissimulado do
pensamento jurídico liberal, e a pretensão de ocultar esse carácter, e defendem que a
decisão judicial não é politicamente neutra, mas antes uma versão estilizada do
discurso político. Neste sentido, ideológica seria não só a afirmação do carácter
neutro da legalidade como também a própria índole da decisão judicial.

2. O JURÍDICO
E A POLÍTICA: UMA PERSPECTIVAÇÃO IDEOLÓGICO-
-POLÍTICA DA DOGMÁTICA JURÍDICA

2.1. A DOGMÁTICA JURÍDICA COMO INSTRUMENTO DE INTERVENÇÃO


POLÍTICA

2.1.1. A perspectivação caleidoscópica das categorias de


inteligibilidade e o movimento centro/periferia: a dogmática jurídica
como instrumento de inversão da orientação doutrinal dominante

Assumida a rejeição do pensamento jurídico liberal, propõem os Critical


Legal Scholars, em diversas frentes, a crítica e superação das suas pretensas
neutralidade, cientificidade e imparcialidade. O pensamento jurídico é agora
compreendido como instrumento ao serviço de exigências de realização moral e
política na sociedade. O problema coloca-se precisamente na relação entre a
ideologia dominante, colocada no centro da sociedade como opção necessária, e
ideologias alternativas, relegadas para a periferia. Alternativa, ao nível da
dogmática jurídica, que se revelaria na substituição dessas pretensas neutralidade,
apoliticidade e necessidade das deduções lógicas próprias da prática jurídica
dominante – e que constituem o seu núcleo actual – pela exploração de novos
sentidos e novas intenções que se encontram actualmente na periferia,
legitimamente convocáveis como possibilidade de realização do direito, no
momento da decisão judicial (adjudication), com vista à reconstrução do
pensamento jurídico e das suas implicações sociais.

15
Idem, p. 88, n. 2. Os Critical Legal Studies surgem, então, como uma espécie de composto de
Realismo Jurídico, New Left e crítica literária. Neste sentido, James BOYLE, “The Politics of Reason:
Critical Legal Theory and Local Social Thought”, in University of Pennsylvania Law Review, vol. 133,
Abril 1985, p. 685-780, p. 688 (publicado em http://www.law.duke.edu/boylesite/politics.htm, e em
James BOYLE, Critical Legal Studies, Dartmouth, 1992, p. 505-600).
5

A proposta de Roberto Mangabeira UNGER para a dogmática jurídica implica


precisamente a movimentação de doutrinas periféricas para o centro e de doutrinas
centrais para a periferia, o que seria possível sem alterações substanciais nos
critérios jurídicos, apenas com a deslocação/inversão do seu sentido, da sua posição
no quadro da estrutura dogmática16. Porém, Duncan KENNEDY, diferentemente,
embora também afirmando a politização do discurso jurídico 17, parece sugerir que a
dogmática jurídica não tem uma estrutura independente da concepção individual que
dela se tenha: a dogmática jurídica é ela própria casuística, dependente dos
objectivos que o jurista decidente pretenda atingir em cada caso, bem como da sua
formação e das suas experiências pessoais18. Não haveria, neste sentido, um centro e
uma periferia, pois na resolução de cada controvérsia concreta surgiria sempre o
conflito, a mediar, entre individualismo e altruísmo19-20. Não obstante, KENNEDY
sugere que haveria uma alteração radical na compreensão do direito privado se se
invertessem as suas polaridades éticas do domínio do individualismo para o do
altruísmo21.
A convocação de princípios e contra-princípios far-se-ia, na proposta de
UNGER, sob uma de duas perspectivas: uma dominante e outra “deviationist”22. Na
perspectiva dominante os contra-princípios surgem como anomalias23. Os princípios
representam o centro operacional e conceitual da doutrina. Os contra-princípios
representam a periferia conceitual e operacional: podem ser aplicados em situações
excepcionais (embora exista uma presunção contra a sua aplicabilidade), e
desempenham um papel relativamente marginal no funcionamento do direito. O
objectivo da perspectiva “deviationist” consiste em alterar a estrutura da dogmática
do direito contratual, de modo a que os contra-princípios sejam centrais e os
princípios sejam casos periféricos especiais. A dogmática é agora compreendida em
função dos sentidos seleccionados para constituir parte do seu centro (“core”) e
parte da sua periferia (“periphery”) – consoante a perspectiva assumida, assim se

16
Andrew ALTMAN, Critical Legal Studies. A Liberal Critique, Princeton University Press, 1990,
p. 131. «...the resolution of the problem of modernity requires us to discover the relationship between a
dominant ideology that puts impersonal law at the center of society and a day-to-day experience for
which such law stands at the periphery of social life». – Roberto Mangabeira UNGER, Law in Modern
Society, New York, London, 1976, p. 43-44.
17
Duncan KENNEDY, A Critique of Adjudication..., cit., p. 370.
18
Idem, p. 338.
19
«My own view is that the ideologists offer a convincing description of reality when they
answer that there is no core. Every occasion for lawmaking will raise the fundamental conflict of
individualism and altruism, on both a substantive and a formal level. It would be convenient, indeed
providential, if there really were a core, but if one ever existed it has long since been devoured by the
encroaching periphery». – Duncan KENNEDY, “Form and Substance in Private Law Adjudication”, in
Harvard Law Review, vol. 89, 1976, p. 1685-1778, p. 1766, também cit. por Andrew ALTMAN, op. cit., p.
131. ALTMAN enfatiza o facto de o contexto em que estas palavras de KENNEDY surgem mostrar que,
quando KENNEDY se refere a lawmaking, tem em mente o caselawmaking realizado pelos juízes. –
Andrew ALTMAN, op. cit., n. 36, p. 131, 138.
20
Duncan KENNEDY, A Critique of Adjudication…, cit., p. 129-130.
21
Duncan KENNEDY, “Form and Substance in Private Law Adjudication”, cit., p. 1775.
22
Vide Roberto Mangabeira UNGER, “The Critical Legal Studies Movement”, in Harvard Law
Review, vol. 96, January 1983, n.º 3, p. 563-675 (também publicado pela Harvard University Press,
1986), p. 616-648.
23
«The dominant view treats the existing institutional structure as given. It regards the
imaginative scheme of models of possible and desirable human association, including the contrast of
contract to community, as rigidly defined». – Roberto Mangabeira UNGER, “The Critical Legal Studies
Movement”, cit., p. 633.
6

projectaria a imagem dos critérios jurídicos-rules, como que caleidoscopicamente,


podendo o mesmo critério apresentar sentidos diferentes – o que traduz uma duck-
rabbit thesis24-25. A perspectivação dos princípios e dos critérios jurídicos
determinaria o seu sentido na argumentação jurídica. Do que se pode concluir que a
orientação da dogmática jurídica seria ditada pelo ponto de partida ético adoptado.
A própria diferença entre individualismo e altruísmo revela-se no direito, não
na incompatibilidade de normas dogmáticas (“doctrinal norms”) particulares com
um ou outro destes dois pontos de vista éticos mas no modo como essas normas são
estruturadas quanto à sua relativa centralidade para o domínio do direito em
questão. Enquanto o individualismo implica uma determinada estruturação da
dogmática, o altruísmo implica uma sua estruturação inversa. O altruísmo e a
pressuposição de uma comunidade, enquanto perspectiva ética alternativa,
encontrar-se-iam actualmente na periferia enquanto perspectiva da construção da
sociedade, cujo centro é de cariz individualista liberal.

2.2. O confronto super-theory/ultra-theory

Na consideração do projecto positivo dos Critical Legal Scholars cumpre


reconhecer dois programas distintos: a ultra-theory – que inclui Mark TUSHNET,
Peter GABEL, Duncan KENNEDY e Robert GORDON – e a super-theory – cujo mais
notável representante é o próprio UNGER26. A super-theory de UNGER assenta em
duas generalizações cruciais acerca da sociedade: as sociedades resultam de
conflitos inter-individuais, e, quando estabilizadas, compreendem uma estrutura (de
regras sociais) condicionante do comportamento e pensamento individual. Por sua
vez, a ultra-theory, embora aceitando as duas generalizações básicas da super-
theory, rejeita uma perspectiva macroscópica, de abordagem geral das estruturas
sociais27.

24
«Thus, law is viewed not as a patchwork of conflicting norms derived from incompatible
ethical viewpoints but as analogous to the duck-rabbit figure which, without any alteration in the lines
that compose it, can change its overall appearance, depending on how one perceives it». – Andrew
ALTMAN, op. cit., p. 130. «The duck-rabbit metaphor can be misleading, at least with regard to the way
Unger understands the thesis, but it does provide a vivid way of distinguishing this claim from the
patchwork thesis criticized in the previous section». – Ibidem.
25
A imagem “duck-rabbit” aqui convocada reporta-se à figura de JASTROW que simultaneamente
representa um pato e um coelho, sobrepostos, sendo possível ver um e outro daqueles animais, e que
Ludwig WITTGENSTEIN mobiliza em Philosophische Untersuchungen, para concluir que é sempre
possível perspectivar de diversos modos um objecto. Vide Philosophische Untersuchungen (1954),
Frankfurt am Main, 1971, p. 309.
26
Os termos ultra-theory e super-theory são de UNGER; nos ultra-theorists inclui os autores cujas
ideias podem ser vistas como representativas daquilo que assim classifica, não são os autores que se auto-
intitulam. – Andrew ALTMAN, op. cit., n. 20, p. 164. «The form of ultra-theory adopted by Mark Tushnet
and company is an extension of the rule skepticism of the radical wing of legal realism. Super-theory is a
sophisticated elaboration of the view that a complete account of social reality must include room for the
idea that rules can constrain and mold individuals and the idea that individuals can meaningfully
transcend any body of rules that govern their present social life». – Idem, p. 164.
27
«Ultra-theory insists that we remain at the level of the particular framework and rejects any
move toward a generalizable account as a betrayal of the insight that society is an artifact». – Idem, p.
165.
7

Tal como os super-theorists, também os ultra-theorists acentuam a ideia da


contingência social e a concepção da sociedade como artefacto. A diferença reside
no ponto de partida, que naqueles é uma explicação global da sociedade, a fim de
apresentar propostas macroscópicas de reconstrução social, e nestes não é já a
construção de um programa, antes defendendo que as práticas críticas e
reconstrutivas não necessitam de nem são assimiláveis por um qualquer sistema
teórico.
A reificação e a hierarquia são temáticas comuns à super-theory e à ultra-
theory, também esta ciente do poder que os indivíduos podem exercer uns sobre os
outros, no domínio das ideias, incluindo as ideias jurídicas (legal ideas)28.
A ultra-theory funda-se na tese da indeterminação radical, e recusa a
existência de uma estrutura objectiva para o direito ou para o discurso jurídico, tal
como para qualquer domínio da realidade social. Consequentemente, afirma a
ausência de qualquer estrutura doutrinal independente do modo como um indivíduo
opta por perspectivar as relações entre as várias regras doutrinais destrói a
determinação jurídica. A própria posição de um critério não será um dado, mas antes
algo a construir pelo modo como e no momento em que se cria a doutrina. Por força
da importância dos contextos formativos, a super-theory de UNGER pretende
constituir uma possibilidade de teoria social (ao contrário dos ultra-theorists, que
tendem a negar aquelas estruturas)29.
Existe divergência entre UNGER e os ultra-theorists quanto ao que deve
constituir uma bem sucedida política libertadora dos constrangimentos liberais.
UNGER é tão crítico da distinção entre direito e política quanto os ultra-theorists, e,
apesar da evolução do seu pensamento, não abandona este criticismo. Embora
UNGER fale de “total critism” relativamente ao liberalismo, acaba por não pretender
significar “total rejection”30. Os ultra-theorists afirmam que estas inconsistências
resultam do facto de este não levar até ao fim a rejeição da teoria liberal do direito, e
que a política nunca será adequadamente libertada do seu “undue liberal
confinement” até que se desista da ideia de que o direito, ou qualquer outro sistema
de regras, possa objectivamente controlar a acção e o pensamento individual.
Para os Critical Legal Scholars, não seriam a determinação do direito nem o
facto de a doutrina ter uma estrutura objectiva pressuposta que implicariam a
uniformidade das posições assumidas pelos juristas, mas antes o facto de estes terem
bases sócio-económicas semelhantes e de partilharem princípios básicos, posições
éticas e políticas similares31.

28
Idem, p. 168.
29
Kevin WALTON, “A realistic vision? Roberto Unger on law and politics”, in Res Publica, vol.
5, n.º 2, 1999, p. 139-159.
30
«As Unger uses the term, a total criticism of liberalism is one that sees liberalism as a whole, as
a single, interconnected system of principles and postulates about human psychology, morality, law and
politics. Unger explicitly states that the liberal value of individual freedom is a part of the liberal system
that must be cherished and preserved». – Andrew ALTMAN, op. cit., p. 17; vide também Roberto
Mangabeira UNGER, Knowledge and Politics, New York, 1975, p. 1-3, 10, 15, 17-18.
31
Neste sentido, vide também Joseph SINGER, “The Player and the Cards: Nihilism and Legal
Theory”, in The Yale Law Journal, vol. 94, n.º 1, November 1984, p. 1-70, p. 22.
8

2.2.1. A super-theory

2.2.1.1. Crítica da pretensa neutralidade e sistematicidade


do jurídico no âmbito da rationalizing legal analysis

Contra a teoria e sociedade liberais, e a respectiva consideração dos valores


como afirmações “subjectivas”, contrapõe UNGER a impossibilidade de fundar o
direito independentemente do indivíduo, num sentido eventualmente objectivo32 e
neutro a partir daquela assumida subjectividade. A partilha de valores, no seio da
sociedade liberal, e para a teoria liberal, seria meramente acidental, e não resultado
da correcção objectiva desse valores. Assim, dependendo a criação – e,
necessariamente, a interpretação do direito –, dos valores liberais assumidos, a
afirmada neutralidade seria impossível33.
Da análise do pensamento jurídico dominante, que UNGER diz rationalizing
legal analysis, resultariam, através da sua auto-subversão, os meios para a
transformação do pensamento jurídico num instrumento de institutional
imagination34. Rationalizing legal analysis pretende ser uma designação genérica
para significar todo o pensamento jurídico formalista e objectivo, cujos sentidos
infra se referem.
UNGER distingue, historicamente, três momentos da consciência jurídica,
determinantes do estado actual da rationalizing legal analysis, com base na
experiência dos Estados Unidos da América 35. O critério desta periodização implica
a tomada de consciência de que a concepção do direito tem como correspondente um
modelo de pensamento, e ainda do carácter dialéctico da sucessão desses modelos,
de modo que o último não substituiria integralmente o primeiro, e,
consequentemente, manteria características daquele – herança (que não repetição)
do neomarxismo, e, por intermédio deste, do materialismo dialéctico marxista.
O primeiro momento seria o da ciência jurídica do século XIX, com os seus
característicos formalismo e conceitualismo: o pensamento jurídico seria um modo
de revelação de uma ordem política e económica livre, cujo conteúdo consistiria
num sistema fundado no direito de propriedade e em direitos contratuais, portanto,
de direito privado, e num sistema de critérios (arrangements and entitlements) de
direito público, visando a salvaguarda da ordem privada.
A demonstração mais importante da continuidade do projecto da ciência
jurídica tradicional é a rationalizing legal analysis, que superou a ciência jurídica
do século XIX, ao mesmo tempo que continua dependente de muitas das suas
concepções, e mantendo muitas das suas ambições.

32
Por valores (values) UNGER pretende significar simultaneamente os fins e objectivos (goals)
prosseguidos pelo homem na sua existência e as concepções acerca do bem e do mal. – Andrew ALTMAN,
op. cit., p. 59.
33
Idem, p. 60-66, 70-71. Vide ainda Roberto Mangabeira UNGER, Law in Modern Society, cit., p.
180. Vide também Mark KELMAN, A Guide to Critical Legal Studies, Harvard University Press, 1987, p.
83-84.
34
«By connecting the criticism of this discourse (rationalizing legal analysis) to an understand of
its work from its own viewpoint we can hope to gain access to its internal imaginative world». – Roberto
Mangabeira UNGER, What Should Legal Analysis Become?, London, New York, 1996, p. 58.
35
Idem, p. 41 ss..
9

O segundo momento seria o da rationalizing legal analysis propriamente


dita: um pensamento jurídico orientado por programas de acção (policies) e fundado
em princípios (principles) que estabelece uma ligação entre o pensamento jurídico e
a imputação de objectivos. Este discurso generalizante acerca do direito,
mobilizador de princípios e policy interligados, não foi, todavia, o único sucessor do
anterior projecto de ciência jurídica. Para UNGER, surgiram pelo menos dois tipos de
vocabulário diferentes, como consequência daquele projecto36: um primeiro tipo,
traduzido numa concepção do direito que reflecte uma série de compromissos num
conflito ordenado de interesses organizados – concepção designada por “interest-
group pluralism”, e a conduzir a uma compreensão do direito como uma série de
contratos regulados entre grupos de interesses; e um segundo tipo, traduzido numa
concepção do direito como uma tentativa, ainda que imperfeita, de corporizar ideais
impessoais de bem-estar e de justiça, uma visão do direito como uma expressão
parcial de propósitos gerais idealizados37.
O terceiro momento seria o da redefinição do tipo de discurso jurídico
baseado em princípios e orientado por programas de acção (policies) como uma
táctica ao serviço de distintos projectos políticos. UNGER designa este conjunto de
projectos políticos por conservative reformism: a prossecução de objectivos
programáticos (tais como maior competição económica e maior igualdade de
oportunidades práticas) no quadro dos limites impostos pela ordem institucional
estabelecida. Uma versão de conservative reformism que influencia especialmente a
consciência jurídica contemporânea será aquele a que UNGER dá o nome de
progressive pessimistic reformism, definido por duas convicções principais: a
convicção, que faz deste uma espécie de conservative reformism, de que nenhuma
mudança institucional é previsível, isto é, previamente determinável; e a convicção,
que o torna pessimist, de que, ao nível da política legislativa, a vontade da maioria se
sobrepõe, em regra, aos grupos marginalizados. Para UNGER, mesmo no âmbito da
rationalizing legal analysis, a correcção das injustiças na redistribuição de bens e
recursos seria possível através de uma interpretação jurídica “idealista”. Porém, a
rationalizing legal analysis apenas se adequa a uma política institucionalmente
conservadora, que renuncia à improvisação a partir da estrutura institucional
existente, e procura, em vez disso, operar de acordo com essa estrutura. Na
configuração da consciência jurídica actual, UNGER conclui não corresponder ela
especificamente a qualquer destes três momentos, constituindo antes uma
combinação dos três.
O rationalizing vocabulary of policy and principle e o seu maior rival – e,
simultaneamente, complemento – na cultura jurídica e política contemporâneas, o
vocabulary of interests and interest groups, embora incompatíveis, parecem
coexistir mais ou menos pacificamente na cultura jurídica e política contemporâneas.
Ambas as acepções, apesar das diferenças que as separam, convergem na
dissociação entre a legal analysis e a institutional imagination. Esta convergência
torna possível aquela coexistência pacífica.
O Interest-group pluralism representa o direito como o produto da
negociação e conflito entre grupos de interesses organizados, o que tem implicações
não só a nível legislativo, mas também administrativo e judicial. Neste sentido, cada

36
Idem, p. 46-52.
37
«... the latter approach rather than the former has achieved canonical status in professional and
academic legal culture ...». – Idem, p. 46.
10

fragmento do direito representaria um momento de consenso no conflito contínuo


existente entre grupos de interesses. Sob este vocabulário alternativo, dever-se-ia
interpretar a lei identificando a negociação subjacente à criação do direito. O direito
seria, assim, uma expressão episódica de um compromisso prático na presença de
um conflito real de perspectivas e interesses. Assim descrito, o Interest-group
pluralism será, tal como a própria rationalizing legal analysis, um discurso
prescritivo, conferindo um conjunto de modos de legitimação e representação do
direito38.
A assunção da rationalizing legal analysis como paradigma sintético dos
modelos de pensamento jurídico historicamente conhecidos implica que sob esta
designação se recolha um número demasiado amplo de propostas diversas. Do que
cumpre concluir que aquela designação considera como semelhantes orientações
completamente diferentes, assumindo como critério de comparação apenas o
objectivo de neutralidade. Assim, tanto seria rationalizing legal analysis o
positivismo legalista do século XIX como as actuais propostas, completamente
diversas, do funcionalismo económico e do jurisprudencialismo de Ronald
DWORKIN. Embora se reconheça a diferença entre Zweckrationalität e
Wertrationalität, e se pretenda afastar aquela, ainda que não necessária e
imediatamente para assumir esta, acaba por ver-se na pretensa neutralidade um pólo
aglutinador que vem a tratar como semelhantes compreensões do direito
completamente diversas, e que, elas próprias, recusam liminarmente qualquer
associação entre si.
A prática da rationalizing legal analysis e a posição do juiz são duas
realidades imersas na variação histórica e na contingência, e não podem ser tornadas
menos variáveis nem menos contingentes por serem, de algum modo, impostas,
como se naturalmente existissem juntas ou pertencessem uma à outra 39.
UNGER, na sua proposta de superação da rationalizing legal analysis, defende
a atenuação da oposição lawman/layman, exigindo o abandono da ideia de que os
juízes são os principais agentes do pensamento jurídico, e a despromoção do papel
do poder judicial, cuja responsabilidade se entende dever passar a ser especializada,
excepcional e secundária40. O corpo de cidadãos, como um todo, é que deveria
tornar-se o interlocutor privilegiado da legal analysis, bem como a instância de
controlo do pensamento jurídico. O principal papel do jurista deveria ser o de servir
de assistente técnico do cidadão. O juiz deveria, então, tornar-se assistente do
cidadão41. A prática judicial deveria deixar em aberto, e disponível, um espaço em
que a reforma social pudesse ocorrer. A própria linguagem jurídica deveria tornar-se
acessível à compreensão geral.

38
Idem, p. 52-59.
39
Idem, p. 110-119.
40
Andrew ALTMAN, op. cit., p. 174-175.
41
Roberto Mangabeira UNGER, What Should Legal analysis Become?, cit., p. 113.
11

2.2.1.2. Formalismo e objectivismo

2.2.1.2.1. Crítica negativa

À neutralidade proclamada e atribuída à rule of law corresponde uma


formalidade que, na leitura de UNGER, se radicaliza num formalismo e um
correspondente objectivismo.
Se, tradicionalmente, formalismo significa que as regras jurídicas formam um
todo completo e consistente do qual a resposta a qualquer questão jurídica poderia
ser logicamente deduzida, para UNGER este seria apenas o caso extremo de uma
perspectiva muito mais amplamente defendida entre os juristas liberais. A noção de
formalismo que apresenta é, assim, muito mais ampla, pelo que, nas suas
formulações menos extremas, o formalismo significaria que a interpretação das
regras jurídicas poderia e deveria ser uma operação autónoma relativamente às
controvérsias jurídicas – e, portanto, a perspectiva que garante a possibilidade
daquilo que ALTMAN definiu como sendo a legal neutrality, a neutralidade
tradicionalmente atribuída ao processo da interpretação jurídica –, ou seja, a
interpretação jurídica deveria e poderia operar-se na base da distinção entre direito e
política42. Portanto, o agora considerado conceito de formalismo transpõe as
fronteiras da crítica ao normativismo legalista, incluindo todas as perspectivas de
consideração do pensamento jurídico, e da própria formação do direito, que o
concebem como um processo ideológica e politicamente neutro. Com o que abrange
ainda o já mencionado pensamento de DWORKIN, a proposta da “law and
economics” e o funcionalismo jurídico tecnológico.
O formalismo, no seu sentido convencional – a procura de um método lógico-
dedutivo no quadro de um sistema pleno – seria meramente o caso anómalo, limite,
deste modo de pensar o direito. Pode ainda acrescentar-se uma segunda tese
formalista distinta: só através de um método de análise restrito, relativamente
apolítico, como este, a doutrina jurídica seria possível; além de que, para o
formalismo, a criação e a aplicação da lei divergem quer na sua realização quer na
justificação dos seus resultados43.
A crítica ao formalismo, de um ponto de vista negativo, implica a denúncia
do carácter ideológico do pensamento jurídico formalista, e, consequentemente, da
indeterminação dos fundamentos, critérios e categorias de inteligibilidade daquele
pensamento. De um ponto de vista positivo, construtivo, a crítica ao formalismo
projectou-se numa “deviationist doctrine”, uma reflexão dogmática “alargada”,
com pressupostos e resultados inovadores para a dogmática e a prática jurídicas 44. A
dogmática jurídica surge, assim, como elemento para uma reforma das instituições
políticas, sendo a proposta política da empowered democracy o correlato prático da
revisão45 do papel da dogmática jurídica no direito. O programa de reforma de

42
Nesta ampla definição, o formalismo envolveria «... a commitment to, and therefore also a
belief in the possibility of, a method legal justification that contrasts with open-ended disputes about the
basic terms of social life, disputes that people call ideological, philosophical, or visionary». Roberto
Mangabeira UNGER, “The Critical Legal Studies Movement”, cit., p. 564.
43
Ibidem.
44
Idem, p. 581-583.
45
UNGER não perfilha uma revolução, mas antes uma reforma revolucionária, pois constrói
(rectior, reconstrói) a dogmática jurídica a partir da caracterização do pensamento jurídico e da alteração
12

UNGER parte da estrutura existente, através da “deviatonist doctrine”, em vez de


exigir a substituição de toda a estrutura jurídica por meio de revolução.
Pressuposto por este formalismo encontra-se um objectivismo – a
pressuposição da existência de uma “ordem inteligível” e auto-subsistente, um
sistema, que constitua o fundamento legitimante e forneça os critérios da decisão
judicial –, pois aquele deriva deste, e não seria coerente admitir que as decisões
judiciais são neutras se não se defendesse, simultaneamente, a base sistemática
pressuposta que as legitima enquanto tal46. De um ponto de vista negativo, UNGER
rejeita a pretensão objectivista de sustentar um sistema pressuposto que legitime as
soluções judiciais, e, sobretudo, opõe-se ao compromisso ideológico e político que
aquela pressuposição implica, designadamente a antinomia direito/sociedade. Já de
um ponto de vista positivo, rectior, construtivo, da crítica ao objectivismo resultaria
a reestruturação da democracia, a implicar uma alteração institucional e uma nova
concepção da específica relação entre o direito e a sociedade, consubstanciada numa
empowered democracy, a construir progressivamente, com base numa nova
concepção de comunidade47.

2.2.1.2.2. Proposta de uma “deviationist doctrine”

UNGER reconhece, no quadro da rationalizing legal analysis, um conjunto de


projectos políticos possíveis que designa por pessimistic progressive reformism, e
em que o pensamento jurídico é mobilizado como um instrumento de realização de
objectivos sociais, constatada a impossibilidade da neutralidade da rule of law. A
característica distintiva do reformismo conservador é o compromisso entre
conservadorismo institucional e objectivos programáticos, entendidos estes últimos
como compromissos ideológicos que definem as posições principais nos debates
políticos e jurídicos contemporâneos. No discurso do reformismo conservador, esses
ideais hão-de ser definidos e executados de acordo com a estrutura das instituições
estabelecidas, designadamente as formas institucionais da democracia
representativa, economia de mercado e sociedade civil livre. Para UNGER, os dois
exemplos mais importantes do reformismo conservador são o compromisso social-
democrata e a prática da reconstrução racional no pensamento jurídico (legal

do significado das suas categorias de inteligibilidade, pelo que, em último termo, acaba por não negar
completamente a concepção do direito e do pensamento jurídico tradicionais.
46
Idem, p. 565-566, 567-576, 583-602.
47
Da crítica ao objectivismo resulta uma “visão programática da sociedade”, pensada, não em
termos revolucionários, mas antes como uma revolutionary reform, e a exigir uma reforma institucional.
A projecção prática da proposta construção do pensamento jurídico – a deviationist doctrine – encontrar-
se-ia, assim, num experimentalismo democrático, enquanto reformulação macroscopicamente
perspectivada da sociedade. UNGER é acusado, por vários autores, de tentar reduzir o direito à política. É
o caso de CHRISTODOULIDIS que, por outro lado, reconhece no projecto de UNGER um objectivismo da
mesma índole do que critica, o que o colocaria em auto-contradição (self-contradiction). Kevin WALTON,
quanto àquela primeira crítica, entende que UNGER não faz tal redução, e, quanto à segunda, que este
criticismo reside numa incompreensão. Todavia, WALTON também tenta objectar às propostas
substantivas de UNGER, preferindo uma consideração pluralista de valor. – Vide Kevin WALTON, “A
realistic vision? Roberto Unger on law and politics”, cit., p. 139-159. UNGER segue o entendimento de
que o pensamento jurídico (legal reasoning) se deve distinguir do pensamento judicial (judicial
reasoning). Este artigo foca, sobretudo, o problema do pensamento jurídico (legal reasoning) – Idem, p.
140, nota 3.
13

analysis), por unificarem os compromissos ideais com o conservadorismo


institucional ao nível da política48.
Perante o fracasso da rationalizing legal analysis na distinção entre o debate
jurídico e a controvérsia política, UNGER propõe uma concepção alternativa do
pensamento jurídico. Designa-a por “legal analysis as institutional imgination” ou
“deviationist doctrine”, uma conexão assumida do direito com a política,
derrubando a barreira erigida pela rationalizing legal analysis49. Abordar o problema
do papel desempenhado pela dogmática jurídica e do confronto entre a concepção
que esta assume na rationalizing legal analysis e a que deve assumir no projecto de
UNGER implica considerar que, enquanto para o formalismo tradicional do
pensamento jurídico a dogmática constitui uma conceitualização neutral cuja
operatória se traduz numa abstracção generalizante, para UNGER a dogmática
jurídica, ou a dogmática “noutros termos”, surge como uma reflexão alargada, com
responsabilidades na evolução e na orientação do pensamento jurídico e da decisão
judicial50. Uma nova acepção da dogmática jurídica que propõe uma diversa
consideração dos caminhos a seguir no momento desta decisão, explorando novos
sentidos para os materiais jurídicos. O que prossegue oferecendo aquela alternativa
“deviationist”, convocando os precedentes judiciais, bem como a statute law, de
acordo com uma pré-definição de resultados inovadores que se pretendem obter
através da decisão judicial. A “deviationist doctrine” de UNGER envolve, então, a
deslocação das doutrinas periféricas para o centro e das doutrinas nucleares para a
periferia51.
A abordagem que UNGER faz do pensamento jurídico liberal leva implícita
uma série de padrões, guias para a re-orientação do pensamento jurídico, padrões
estes que convergem para apoiar a ideia de um pensamento jurídico como
“institutional imagination” 52. Esta nova concepção de pensamento jurídico
desenvolve-se em dois momentos, dialecticamente interligados: mapping e
criticism53. Por mapping designa-se a exploração da estrutura institucional detalhada
da sociedade, tal como é juridicamente definida. O ponto crucial deste diagnóstico-
mapping é produzir uma análise jurídico-institucional detalhada, embora
fragmentária. Mapping será, assim, um diagnóstico, a tentativa de descrever
detalhadamente a micro-estrutura institucional juridicamente definida da sociedade
em relação com os seus ideais juridicamente articulados. O que leva implícita uma
denúncia fundamental para a superação do formalismo da rationalizing legal
analysis – com implicações e projecções fundamentais na proposta da deviationist
doctrine –, a de que cada princípio, definido pelo sentido que a doutrina tradicional
lhe confere, se depara com o seu correspondente – senão mesmo o seu contra-
reflexo – contra-princípio, a designar a leitura crítica daquele mesmo princípio, o
48
Roberto Mangabeira UNGER, What Should Legal Analysis Become?, cit., p. 63-65.
49
Kevin WALTON, “A realistic vision? Roberto Unger on law and politics”, cit., p. 139-159.
Roberto Mangabeira UNGER, What Should Legal Analysis Become?, cit., p. 36, 58-59.
50
Roberto Mangabeira UNGER, Law in Modern Society, cit., p. 43-44.
51
O que, segundo UNGER, é possível sem mudanças dramáticas na regras específicas que
constituem a doutrina do direito privado (sobretudo, porque não implica a alteração das próprias regras,
mas apenas da posição da doutrina que, tradicionalmente, se considera que as regras existentes traduzem):
«...the resolution of the problem of modernity requires us to discover the relationship between a dominant
ideology that puts impersonal law at the center of society and a day-to-day experience for which such law
stands at the periphery of social life» . – Ibidem.
52
Roberto Mangabeira UNGER, What Should Legal Analysis Become?, cit., p. 129-134.
53
Idem, p. 130.
14

desvelar do sentido que a definição atribuída pela teoria tradicional permitiu ocultar,
com vista a uma interpretação do mesmo num sentido de emancipação, capaz de
uma utilização ideológica que permita a denúncia e destruição das hierarquias54. O
segundo momento desta prática analítica, o criticism, designa a versão revista do
pensamento jurídico que implica a denúncia do conflito ideológico subjacente. A sua
função é explorar a relação entre as organizações institucionais da sociedade tal
como representadas no direito, e os ideais professados ou os programas que essas
organizações frustram e realizam. O mapping requer o redimensionamento radical
do quadro social, em geral, e do direito, em particular, partindo do ponto de vista do
criticism. O mapping serve o propósito do criticism, é uma análise que exibe as
instituições formativas da sociedade como uma estrutura distinta e, acima de tudo,
como uma estrutura que pode ser revista por sectores. Uma das tarefas das práticas
combinadas de mapping e criticism seria contribuir para o desenvolvimento de
trajectórias alternativas de mudança política e institucional55.
A primeira tarefa – a do momento de diagnóstico-mapping – é compreender a
situação institucional existente como a estrutura complexa e contraditória que ela
realmente constitui. O núcleo do mapping é a tentativa de construir um quadro das
instituições – governo, economia, família – fora do domínio do direito e da
dogmática jurídica. A perspectiva orientadora é a que serve os propósitos do
segundo momento desta prática analítica, o momento de criticism; quando se coloca
a tónica nas desarmonias do direito e no modo como as concepções ideais, expressas
em policies and principles, ou o grupo de interesses representado por programas e
estratégias, ficam truncados no seu preenchimento e empobrecidos no seu
significado e nas suas formas institucionais admitidas.
Mapping e criticism são indissolúveis, são aspectos ou momentos da mesma
prática. Quando o mapping fornece materiais ao criticism, isso já é feito tendo em
mente os interesses do criticism. A “legal analisys as institutional imagination”,
através da prática de “mapping”, revela a diversidade de rules and principles e,
assim, alarga o objectivo do pensamento jurídico para lá do que é praticado pelas
escolas que perfilham a “rationalizing legal analysis”. “Mapping” é a tentativa de
descrever em detalhe a micro-estrutura institucional da sociedade juridicamente
definida, em relação com os seus ideais juridicamente articulados 56. Trata-se da
recuperação dos contra-princípios previamente ignorados, salientando o conflito que
existente no núcleo substancial do direito. O movimento crucial consiste em
conectar esta desunião com a política. Para UNGER, isto seria o “criticism”: o
“criticism” explora a interacção entre as organizações da sociedade tal como

54
Roberto Mangabeira UNGER, Law in Modern Society, cit., p. 210.
55
«The second moment of this revised practice of legal analysis is criticism. Criticism explores
the disharmonies between the professed social ideals and programmatic commitments of society, as well
as the recognized group interests, and the detailed institutional arrangements that not only constrain the
realization of those ideals, programs, and interests but also give them their developed meaning … The
relation between criticism and mapping can now come more clearly into focus. Mapping provides
materials for criticism, and criticism sets the perspective and the agenda for mapping». – Idem, p. 132.
56
Roberto Mangabeira UNGER, What Should Legal Analysis Become?, cit., p. 130, cit. por Kevin
WALTON, “A realistic vision? Roberto Unger on law and politics”, cit., p. 142 («... the attempt to
describe in detail the legally defined institutional microstructure of society in relation to its legally
articulated ideals»).
15

representadas pelo direito, e os ideais ou programas que essas organizações frustram


e realizam57.
Mapping e criticism formam uma unidade dialéctica – «Mapping provides
materials for criticism, and criticism sets the perspective and the agenda for
mapping»58–, transformando a dogmática jurídica em controvérsia política por meio
de um terceiro passo, o “internal development”, que constitui o método da
deviationist doctrine enquanto expanded legal analysis59.
Assim, a alternativa deviationist, ao nível da dogmática jurídica, revelar-se-ia
na substituição da pretensa neutralidade e necessidade das deduções lógicas que
caracterizam a prática jurídica que UNGER diz dominante, e que constituem o seu
núcleo actual, pela exploração de novos sentidos e novas intenções que, por se
encontrarem fora daquele núcleo, se encontram actualmente na periferia, sendo,
porém, legitimamente convocáveis como possibilidade de realização do direito, na
decisão judicial (adjudication), com vista à reconstrução do pensamento jurídico e
das suas implicações sociais na construção de uma empowered democracy.
A projecção prática desta construção do pensamento jurídico encontrar-se-ia,
para UNGER, num experimentalismo democrático, que visa libertar a sociedade das
hierarquias entrincheiradas, colocando a tónica nas relações interpessoais. Por força
da importância dos contextos formativos, a“super-theory” de Unger pretende
constituir uma possibilidade de explicação das estruturas sociais (ao contrário dos
“ultra-theorists”, que tendem a negá-las)60.

2.2.1.2.3. O internal development como modelo


operativo

UNGER apresenta um programa de reconstrução do Estado e da restante


estrutura institucional da sociedade, com base num “internal development”, a partir
da crítica das práticas e dos ideais institucionais existentes, especialmente os ideais e
as práticas democráticas. Este programa teria o seu domínio de eleição em três
frentes: a organização do governo, a estruturação da economia e a criação de um
novo sistema de direitos61. Assim, estaria em causa uma transformação das relações
pessoais, como micro-estrutura da vida social normalmente constrangida, quando
não activamente formada, pela ordem institucional, no sentido da supressão das
hierarquias.
A proposta de UNGER, de acordo com a sua posição assumida de super-
theorist, traduz-se no desenvolvimento global da sociedade, em todos os seus
quadrantes, no sentido de um experimentalismo democrático62. Propõe, como
alternativa às actuais organizações democráticas, um Estado livre de qualquer
esquema assente em divisão e hierarquia, o que exige uma transformação da ordem

57
«...explores the interplay between the detailed institutional arrangements of society as
represented in law, and the professed ideals or programs these arrangements frustrate and make real». –
Roberto Mangabeira UNGER, What Should Legal Analysis Become?, cit., p. 142.
58
Idem, p. 132.
59
Roberto Mangabeira UNGER,“The Critical Legal Studies Movement”, cit., p. 581-583.
60
Kevin WALTON, “A realistic vision? Roberto Unger on law and politics”, cit., p. 139-159.
61
Roberto Mangabeira UNGER, “The Critical Legal Studies Movement”, cit., p. 597-616.
62
Idem, p. 586-597 e 601-675.
16

institucional existente. As organizações transformadas poderiam, então, sugerir uma


revisão do ideal democrático, avançando para uma concepção de uma estrutura
institucional auto-revisível, que proporcionasse situações constantes de ruptura,
rejeitando qualquer estrutura fixa de poder. O objectivo de UNGER não é o de levar a
cabo uma revolução, antes o de operar uma reforma revolucionária (a revolutionary
reform), que represente o ajustamento de um sistema institucional historicamente
localizado com base numa série de ideais dados, e, não obstante, e simultaneamente,
auto-correctivos (self-correcting).
A par desta transformação social apresenta UNGER uma concepção de direito
e da sua relação (desirable relation) com a sociedade. Historicamente, as etapas
desta relação direito/sociedade, reconstruídas pelo internal development63, seriam as
seguintes: uma primeira, a etapa pré-iluminista, pré-revolucionária, em que o direito
surgiria como uma expressão e uma defesa de uma “ordem de divisões e de
hierarquias sociais” – este sistema de direitos exibiria, na sua superfície, a estrutura
estratificada da sociedade64; uma segunda, a etapa iluminista-liberal, em que o
direito é apresentado como «... um processo de atribuição universal de direitos
subjectivos, independentes da ordem de posições e de hierarquias sociais...» 65; uma
terceira, a etapa da reflexão proposta pelo Critical Legal Studies Movement, com
uma nova concepção da relação direito/sociedade, em que o direito e a Constituição
representam «... the reverse of what prerevolutionary theory demanded...» 66,
portanto, uma “recusa frontal do efeito da divisão e das hierarquias”67, em que o
objectivo ideal do sistema de direitos seria o de servir de counterprogram
relativamente à manutenção daquelas divisões e hierarquias, e a reflectir-se num
experimentalismo democrático.
Para compreender o potencial do pensamento jurídico enquanto instrumento
da institutional imagination numa sociedade democrática, cumpre considerar o que
de mais distintivo acerca do direito e do pensamento jurídico existe nas democracias
industriais contemporâneas, designadamente o compromisso com uma ordem
política e económica livre, combinando direitos com rules delineadas para assegurar
o seu efectivo gozo68. A superação destas concepções por uma alternativa,
deviationist, capaz de realizar efectivamente a justiça, no quadro de uma empowered
democracy, exige transformações no âmbito da organização social, em geral, e do
pensamento jurídico, em particular, susceptíveis de serem realizadas parcialmente,

63
Idem, p. 585-586. Vide ainda José Manuel AROSO LINHARES, Sumários Desenvolvidos (A), “As
alternativas da ‘violência mística’ e da ‘escolha racional’ – I. A Correcção Situada das Injustiças ou a
Procura Frustrada de uma Violência Mística?”, Coimbra, 2001-2002, p. 16-17 (6.1.2.2.).
64
«...the constitution and the law should describe the basic possible dealings among people, as
property owners and citizens, without regard to the place individuals occupy within the social order». –
Roberto Mangabeira UNGER, “The Critical Legal Studies Movement”, cit., p. 585.
65
José Manuel AROSO LINHARES, Sumários Desenvolvidos (A), cit., p. 16. «...the system of rights
would rise above the real social order. Rights would work either as if this order did not exist or as if it
could be adequately tamed and justified by the mere expedient of treating it as nonexistent for purposes of
rights definition». – Roberto Mangabeira UNGER,“The Critical Legal Studies Movement”, cit., loc. cit..
Ainda a considerar, criticamente, como consequência da caracterização do que designa por Liberty of
Contract Era (baseada na dicotomia público/privado), que o Estado é o resultado de um contrato social
estabelecido entre indivíduos-particulares livres, a implicar que a esfera privada seja prévia à definição do
âmbito público, Gary PELLER, “The Metaphysics of American Law”, in California Law Review, 73, 1985,
p. 1151 ss. (também publicado em James BOYLE, Critical Legal Studies, Dartmouth, 1992), p. 1209.
66
Roberto Mangabeira UNGER,“The Critical Legal Studies Movement”, cit., loc.cit..
67
José Manuel AROSO LINHARES, Sumários Desenvolvidos (A), cit., loc cit.
68
Roberto Mangabeira UNGER, What Should Legal Analysis Become?, cit., p. 26-40.
17

em determinados domínios, utilizando mecanismos processuais, designadamente


através da decisão judicial (adjudication), desde que os agentes (juízes) ponham em
prática a denúncia da subjugação, tradicionalmente oculta sob a aparência de
coordenação, investigando os factores que originam a subjugação. Assim, no quadro
do Estado actual, não existindo qualquer agente politicamente legitimado nem com
capacidade prática para levar a cabo a tarefa de reconstrução estrutural e episódica,
seria necessário criar um novo agente, um novo ramo de governo ou um outro poder
estatal, designado, eleito e incumbido de assegurar o exercício dos direitos. Uma tal
modificação, todavia, requereria uma verdadeira abertura ao experimentalismo
institucional, no qual o direito e as democracias contemporâneos se mostraram tão
marcadamente deficientes. O que, por sua vez, requereria, quer dos juízes quer dos
cidadãos, que fosse completado um primeiro passo, atingido já na insistência para a
efectivação do gozo de direitos, com um segundo passo, que está, para UNGER, por
dar, de re-imaginação e re-construção institucional69.

2.2.1.2.4. O direito como dimensão de um projecto


político macroscópico: a proposta de experimentalismo
democrático de Roberto Mangabeira UNGER

O experimentalismo democrático proposto por UNGER pretende ser uma


reinterpretação da causa democrática, cujo primeiro objectivo seria encontrar a área
de sobreposição entre as condições do progresso prático e as exigências da
emancipação individual70. Por sua vez, a emancipação individual refere-se à
inversão (libertação-emancipação) dos “entrincheirados” papéis, divisões e
hierarquias sociais. O experimentalista democrático, no âmbito deste primeiro
objectivo, afirma que o progresso prático e a emancipação individual são
adequáveis, através de uma nova compreensão da estrutura interna dos interesses
subjacentes a cada uma daquelas dimensões71. Partindo do princípio de que a
humanidade ainda não teria atingido a emancipação no sentido postulado, propõe

69
Idem, p. 58-59.
70
Em “Democracy Realized: The Progressive Alternative”, UNGER vem actualizar a sua
proposta, já enunciada em “The Critical Legal Studies Movement”, mantendo a tónica num
experimentalismo democrático que torne efectivas as instituições e as estruturas democráticas que a
organização liberal do Estado inibe. Assim, o foco do conflito ideológico estaria, actualmente, a deslocar-
-se da antiga disputa entre Estado e mercado, para uma mais promissora rivalidade entre formas
institucionais de pluralismo económico, social e político. A premissa básica deste novo conflito seria a de
que as economias de mercado, as sociedades civis livres, e as democracias representativas poderiam
assumir formas institucionais diversas, com consequências radicalmente diferentes para a sociedade. –
Roberto Mangabeira UNGER, Democracy Realized: The Progressive Alternative, London, New York,
1998, p. 3-5.
71
Nas palavras de UNGER, assumindo abertamente um projecto de emancipação da dignidade
humana, na linha do que tinha postulado no seu manifesto de 1976, “The Critical Legal Studies
Movement”, e em referência directa ao significado da emancipação: «Our capacity for love and solidarity
grows through the strengthening of our ability to recognize and to accept the otherness of other people. It
is in love, the love least dependent upon idealization or similarity, that we most radically accept one
another as the original, context-transcending beings we really are, rather than as placeholders in a social
scheme, acting out a script we never devised and barely understand». – Roberto Mangabeira UNGER,
Democracy Realized …, cit. p. 9.
18

UNGER como meio para a atingir um aprofundamento da democracia, reconciliando,


dialecticamente, aquelas exigências opostas de auto-afirmação.
UNGER classifica a organização social e institucional instalada, normalmente
apresentada como uma estrutura natural e necessária, como uma falsa necessidade.
A contingência do desenvolvimento histórico e a divisibilidade das estruturas
institucionais são, para este autor, instrumentos fundamentais para a reformulação
do conceito de democracia, como democratic experimentalism. Este
experimentalismo – a progressive alternative – desenvolve-se em duas grandes
fases: o early program e o later program. Este último, visando realizar um projecto
transformador alternativo ao neoliberalismo, pretende estimular o experimentalismo
democrático em cada uma das principais esferas da sociedade. O primeiro, ao
contrário, mantém-se próximo das instituições estabelecidas. Em particular, o early
program satisfaz três conjuntos de condições: a primeira condição a ser satisfeita
seria económica, a segunda política e a terceira cultural. Inicialmente, a alternativa
progressiva tenta preencher estas condições com um mínimo de inovação
institucional. O early program abre as portas a diversas possibilidades, dentre as
quais UNGER destaca uma extended social democracy e uma radical polyharchy72. O
later program representa uma consequência diferente: mantém a pressão da
inovação institucional e coloca mais próximas as condições do progresso material e
da emancipação individual. UNGER não pretende que a sua proposta represente uma
alternativa necessária ao neoliberalismo, mas apenas uma dentre várias possíveis 73.

2.2.1.2.4.1. A organização do Estado e da economia

As hierarquias que caracterizam a organização da sociedade liberal,


quer a nível público quer privado, implicariam uma perda profunda do sentido
de conexão social, de interligação, deitando por terra qualquer possibilidade de
existência de uma comunidade real74. Em alternativa à organização hierárquica
fechada da sociedade liberal, seria possível propor uma organização aberta75.
UNGER apresenta um conjunto de directrizes susceptíveis de tornar este projecto
realizável: os ramos de governo deveriam ser multiplicados, a fim de responder
de modo mais eficaz às necessidades sociais; os conflitos entre os diversos
ramos de governo deveriam ser dirimidos através da devolução para o
eleitorado; o núcleo programático do governo deveria ter uma possibilidade real
de experimentar os seus programas.
A segmentação da economia em grandes e pequenas empresas e a
regulação do confronto entre capital e trabalho através de acordos privados e
públicos, bem como da sindicalização dos trabalhores, determinantes da

72
Roberto Mangabeira UNGER, What should legal analysis become?, cit., p. 135-170.
73
«The democratizing alternative to neoliberalism described here is far from being the only
plausible way in which to advance democratic and experimentalist ideals. It is simply one of several
directions of departure from presente institutional arrangements». O autor reforça a mesma ideia quando
afirma o seguinte: «The alternative to neoliberalism and traditional social democracy explored in this
book describes one among several possible directons for the deepening of democracy». – Roberto
Mangabeira UNGER, Democracy Realized…, cit., p. 241. Vide idem, p. 241-246.
74
Peter GABEL e Paul HARRIS, “Building Power and Breaking Images: Critical Legal Theory
and the Practice of Law”, in Review of Law and Social Change, 11, p. 369-411 (publicado em James
BOYLE, Critical Legal Studies, Dartmouth, 1992, p. 363-405), p. 371; Roberto Mangabeira UNGER, “The
Critical Legal Studies Movement”, cit., p. 586-597.
75
Roberto Mangabeira UNGER, Law in Modern Society, cit., p. 170-171.
19

fragmentação da força de trabalho, seriam, nesta perspectiva, determinantes do


surgimento de grupos, entrincheirados em lugares relativamente fixos na
divisão do trabalho, e em posições largamente díspares no que diz respeito ao
acesso às vantagens da auto-organização colectiva. Neste sentido, ao mesmo
tempo que põe em perigo a liberdade económica, a forma dominante de
organização do mercado restringiria o progresso económico por meio de uma
série de efeitos sobrepostos, pois a ordem de mercado existente actuaria como
um elemento impeditivo sobre o progresso económico, por subordinar as
oportunidades de inovação ao interesse dos privilégios, e por ofender a
maleabilidade dos capitais e recursos. UNGER propõe, diversamente, um
sistema que pretende mais descentralizado e maleável. O princípio fundamental
seria o estabelecimento de um fundo rotativo de capital, administrado para
manter um fluxo constante de novos participantes nos mercados. O correlativo
legal do fundo rotativo de capital seria a desagregação do consolidado direito de
propriedade. Efectivamente, para UNGER, o direito de propriedade seria apenas
um conjunto de faculdades heterogéneas, susceptíveis de fragmentação e
consequente atribuição a sujeitos diversos. Assim, no sistema de mercado
revisto, algumas das faculdades que agora constituem a propriedade poderiam
ser atribuídas a agências democráticas que definissem os termos do acesso ao
capital enquanto outras seriam exercidas pelos próprios tomantes do capital76.

2.2.1.2.4.2. A definição de um novo sistema de


direitos

Os Critical Legal Scholars não negam a importância da liberdade


individual, o que negam é que a rule of law liberal proteja, ou possa proteger,
uma tal liberdade, afirmando que devem ser inventados outros mecanismos
sociais para uma tal protecção. Ao lado da organização do governo e da
economia, o sistema de direitos constitui ainda outro domínio da reconstrução
institucional, na proposta de UNGER.
Na sua forma presente, este sistema causaria dois problemas principais
para o programa da empowered democracy. Em primeiro lugar, a protecção
individual assenta em dois suportes: o sistema de direitos de propriedade, que
ameaça reduzir alguns indivíduos à directa dependência de outros; e o conjunto
de direitos (rights) civis e políticos e direitos (entitlements) de bem-estar, que
não apresentam tal ameaça. Em segundo lugar, a ausência de princípios
jurídicos e de direitos (entitlements) capazes de informar a vida comunitária –
aquelas áreas da existência social nas quais as pessoas se encontram numa
relação de elevada vulnerabilidade e responsabilidade mútua.
Por um lado, a concepção dominante do direito define-o como uma
zona de discrição do seu titular, uma zona cujas fronteiras são mais ou menos
rigidamente fixadas ao tempo da definição inicial do direito. Mas a convivência
comunitária e a sua preocupação característica com o real efeito de qualquer
decisão sobre o outro são incompatíveis com aquela concepção do direito. A
questão dos direitos e da comunidade surge em conexão íntima com o programa
da empowered democracy, numa proposta reformadora da experiência
comunitária. O sistema de direitos proposto por UNGER pressuporia e seria
pressuposto pelos princípios de organização económica e governamental. Todos
os tipos de direitos enunciados partilham, não obstante, de certos atributos
fundamentais. Cada um deles estabelece uma forma específica de

76
Roberto Mangabeira UNGER,“The Critical Legal Studies Movement”, cit., p. 596-597.
20

intersubjectividade que contribui para um esquema de collective self-


government e resiste à influência da divisão social e da hierarquia.
A primeira categoria consistiria nos direitos de imunidade77, direitos
que estabelecem a reivindicação quase absoluta do indivíduo por segurança
perante o Estado, outras organizações, e outros indivíduos. Estes direitos
constituem o ponto fixo do sistema. Como direitos políticos e cívicos (de
organização, expressão, e participação), como direitos de bem-estar, e como
opções para retrair funcionalmente, e mesmo territorialmente, a ordem social
estabilizada, dão ao indivíduo o sentido fundamental de segurança que lhe
possibilita o confronto com o colectivo sem ver a sua segurança posta em
perigo. O sistema de direitos de imunidade na empowered democracy difere das
normais defesas individuais, quer pelas propostas alargadas oportunidades de os
exercer quer pela escrupulosa fuga às garantias de segurança que, como a
propriedade, ajudariam a defender as ordens de poder contra as políticas
democráticas78.
A segunda categoria de direitos, a dos direitos de desestabilização,
traduz-se num conjunto de direitos que exigem a ruptura com as instituições
estabelecidas e as práticas sociais que permitiram a cristalização das hierarquias
sociais e da divisão que a empowered democracy quer evitar. Esta é a grande
inovação do sistema de direitos proposto79. Os direitos de desestabilização
desempenhariam funções fundamentais no quadro da equal protection80. Desde
logo, no domínio do generality-requiring principle – a protecção do indivíduo
ou de pequenos grupos relativamente a eventuais agressões provenientes do
poder governamental; depois, também no domínio do generality-correcting
principle – evitando a elaboração de leis ofensivas do indivíduo81. O objectivo
central dos direitos de desestabilização seria exigir ao poder governamental
uma ruptura com a manutenção de formas de divisão e hierarquia que apenas
logram manter formalmente a estabilidade social. O carácter expansivo dos
direitos de desestabilização permitiria tornar mais efectivas as exigências
colocadas ao Estado82.
Como terceira categoria, surgem os direitos de mercado83. Estes direitos
representam as reivindicações condicionais e provisórias a porções divisíveis de
capital. A forma e substância destes direitos, como sucessores do direito de
propriedade absoluto, são sugeridas pelo referido modo alternativo proposto de
organizar o mercado. Qualquer que seja a sua definição, todavia, eles devem ser

77
Idem, p. 599-600.
78
Tal como os liberais, UNGER insiste que a política opera sob determinados constrangimentos
significativos: «Unger’s immunity rights remove certain issues from the realm of normal political debate
in just the manner that the liberal endorses. Moreover, he insists that politics continue to operate under the
rule of law. Thus, Unger believes that not every liberal constraint on politics is undue and that politics can
be freed from undue liberal constraints without giving up the liberal idea of individual rights secured by
the rule of law. He seeks to integrate certain liberal constraints into a social-political system, that of
empowered democracy, where democratic politics would have an increased power to transform basic
social institutions and public debate and deliberation would not be confined by turning political issues
into esoteric legal ones». – Andrew ALTMAN, op. cit., p. 173.
79
Roberto Mangabeira UNGER, “The Critical Legal Studies Movement”, cit., p. 600.
80
Idem, p. 602-616.
81
Idem, p. 603-604.
82
Os direitos de desestabilização poderiam operar através da directa invalidação do direito
estabelecido, ou contestando ordens de poder em instituições particulares ou áreas específicas da prática
social. A harmonização da afirmação dos direitos de estabilização com os projectos do Estado seria feita
através dos princípios informadores da organização social e económica da empowered democracy. –
Idem, p. 613-616.
83
Idem, p. 600.
21

tratados como uma sub-categoria do direito, e não já como um tipo exemplar de


direitos (entitlements) ao qual todos os outros têm de ser assimilados.
Por último, UNGER apresenta os direitos de solidariedade84. Estes são
os direitos relativos à vida comunitária, dão força jurídica a muitas das
expectativas que surgem das relações de mútua confiança e
vulnerabilidade/dependência que não foram totalmente articuladas pela vontade,
nem unilateralmente constituídas pelo Estado, e que, por isso, correspondem ao
regresso à comunidade (compreendida em termos pós-modernos) proposta por
UNGER. Cada direito de solidariedade apresenta-se em dois planos: o momento
inicial do direito consiste numa sua definição incompleta que incorpora regras
de boa-fé, lealdade e responsabilidade. O segundo momento é a definição
completada através daquilo que os próprios titulares do direito (ou os juízes, se
os titulares do direito falharem) colocam no concreto contexto do seu exercício.

2.2.2. A ultra-theory

2.2.2.1. Crítica e rejeição do pensamento


jurídico como estrutura: a teoria local

Se alguns Crits, tal como UNGER, embora critiquem a estrutura objectiva do


sistema jurídico, assumem, não obstante, uma estrutura, um sistema de base
enquadrante das decisões judiciais, e fundamentais à legitimidade destas – e,
portanto, no fundo, substituem um sistema por outro – outros, influenciados
sobretudo por uma orientação desconstrutivista pós-moderna, tal como Duncan
KENNEDY, Mark TUSHNET e Gary PELLER, rejeitam qualquer possibilidade de
sistematização do direito, remetendo-se para uma análise localizada das
controvérsias jurídicas. O estabelecimento de qualquer sistema de direito
automaticamente violaria o compromisso liberal com a neutralidade.
A teoria e a prática influenciam-se, também aqui, reciprocamente, mas nunca
se conformam completamente uma com a outra. Os objectivos deste projecto
político de esquerda pretendem mudar o sistema de hierarquia social existente,
incluindo as suas dimensões de classe, raça e género, na direcção de uma maior
igualdade e de uma maior participação nos domínios público e privado. KENNEDY
critica a injustiça e o carácter opressivo das estruturas existentes, pretendendo
apresentar as razões que conduziram a esta situação e estabelecer uma alternativa. A
proposta modernismo/pós-modernismo (mpm) é um projecto que tem por objectivo
adquirir experiências transcendentes estéticas, emocionais, intelectuais, nas margens
e nos vãos de uma “grelha racional fracturada”. A actividade prática do mpm
centra-se no artefacto, algo criado ou construído (pode ser arte, ou um qualquer
objecto, ou a desconstrução de um texto...).

84
Ibidem.
22

2.2.2.2. Individualismo e altruísmo

Entre uma perspectiva individualista e uma outra, altruísta, quer quanto ao


conteúdo das private law rules, quer quanto à opção entre a convocação de rules ou
de standards no momento da adjudication, KENNEDY opta claramente por esta
última85.

Historicamente, seria possível distinguir três fases, com base no critério


do conflito entre individualismo e altruísmo: um período Antebellum (1800-
1870): Morality vs. Policy – o individualismo não seria uma ética em conflito
com a ética altruísta, mas antes um conjunto de argumentos pragmáticos em
conflito com a ética em geral; um período de Classical Individualism (1850-
1940): Free Will – é o período do pensamento moderno, em que desaparece
totalmente a argumentação de cariz religioso e é negada qualquer relação entre
o altruísmo e as doutrinas jurídicas; um período de Modern Legal Thought
(1900 até ao presente): The Sense of Contradiction – em que se rejeita o
período anterior, pelos princípios formais e pela lógica dedutiva que o
caracterizam, colocando no lugar dos princípios e da lógica, de novo, a
moralidade e a policy; porém, esta moralidade não é já inequivocamente
altruísta, existe um conflito de moralidades, tal como a policy não é já
inequivocamente individualista, existe um conflito entre policies, surgindo os
argumentos de colectivismo, intervencionismo, o Estado-Providência,
juntamente com a teoria do desenvolvimento económico baseada na livre
circulação86.

A essência do individualismo seria a distinção precisa entre os interesses de


um sujeito e os dos outros, combinada com a convicção de que a preferência por
uma conduta no próprio interesse é legítima desde que respeite a coexistência com
os interesses individuais dos outros. A forma de conduta associada a este
individualismo seria a self-reliance, isto é, a definição e prossecução autónomas de
objectivos, sem qualquer dependência relativamente a outrem 87. A perspectiva
individualista clássica (Classical individualist vision of the nature and function of
the legal doctrine), a que se poderá, segundo KENNEDY, chamar “the ‘rule of law’
model”, teria como operações fundamentais a dedução das legal rules de first
principles, e a aplicação mecânica das rules a situações de facto, com a possibilidade
de, do mesmo modo, fazer frente às eventuais lacunas (elaborando dedutivamente
novas regras a partir dos princípios). Cada uma destas operações seria estritamente
racional e objectiva; o juiz poderia e deveria abstrair dos seus valores económicos e
morais no momento do julgamento 88. O juiz apenas poderia assumir um papel
constitutivo em áreas marginais e intersticiais do sistema jurídico, em que não
existisse indicação inequívoca, ou pelo menos extremamente sugestiva de vontade
legislativa, e desde que não adopte uma orientação pelos resultados 89. Para o
altruísmo, nesta situação o juiz não poderá deixar de assumir a responsabilidade pelo

85
Duncan KENNEDY, “Form and Substance in Private Law Adjudication”, cit., p. 1713-1720. «I
believe that there really is an altruist and an individualist mode of argument». – Idem, p. 1723.
86
Idem, p. 1732-1737.
87
Idem, p. 1713-1715, 1768, 1770.
88
Idem, p. 1753-1754, 1770.
89
Idem, p. 1760-1761.
23

resultado “político” da sua actividade 90. Embora o individualismo moderno


reconheça que a pretensão clássica de encontrar uma resposta para todos os casos no
sistema pré-constituído foi uma falha, não reconhece uma total liberdade ao juiz,
pois continua a existir uma presunção a favor da não intervenção
(nonintervention)91.
O carácter hegemónico da doutrina individualista tornaria quase impossível a
apresentação de uma contra-ética. Porém, KENNEDY apresenta uma ética de
alteridade, baseada naquilo que diz altruísmo, e cuja essência consistiria na
convicção de que não se deve tolerar uma preferência estrita por um interesse
próprio em detrimento dos interesses dos outros. O altruísmo não seria, por sua vez,
confundível com selflessness or saintliness92.

3. A ideologia como hierarquia e o pensamento jurídico como


projecto: sentidos e projecções da asserção “Law is politics”

Assumida como fundamentalmente caracterizadora e pressuposto de todo o


discurso dos Critical Legal Studies, a asserção “Law is politics” 93 constitui o núcleo
temático aglutinador das propostas deste movimento. O pensamento jurídico é
compreendido como meio de legitimação política, um pensamento ideológico
jurídico-político. O projecto político respectivo pretende transformar a hierarquia
social existente, incluindo as suas dimensões de classe, raça e género, tendo em vista
uma maior igualdade e participação democrática. Um projecto, enfim, que justapõe
propostas liberais e conservadoras, bem como as “radicais” dos revolucionários
marxistas, anarquistas, nacionalistas negros, feministas radicais, e gays
liberationists. O que, de certo modo, configura um regresso, embora nem total nem
acrítico, ao contributo do marxismo. Regresso este expresso na convocação da
categoria ideologia, fundamental na concepção marxista do direito, a traduzir uma
igualdade de tratamento para situações desiguais, legitimante de hierarquias. O
pensamento jurídico legalista-liberal é apresentado, ele próprio, como uma forma
ideológica de pensamento, fundada na pressuposição da existência e a legitimidade
das instituições. Com o que se reconhece a possibilidade e necessidade de politizar o
jurídico.
Na análise do problema das hierarquias sociais94, e das possibilidades da sua
superação, UNGER observa nas sociedades actuais uma ordem de graduação que
assume a forma de distribuição hierárquica de grupos sociais com dois tipos de
graduação: um primeiro tipo, fechado e restritivo, rígido, próprio das sociedade

90
Idem, p. 1761. «In order to decide cases, the judge will have to align herself one way or the
other. But there can be no justification for her choice – other than a circular statement of commitment to
one or the other of the conflicting visions». – Idem, p. 1762.
91
Idem, p. 1766-1772.
92
Idem, p. 1717-1719.
93
Vide Andrew ALTMAN, op. cit., p. 171-172. Vide ainda, entre outros, John P. MCCORMICK,
“Schmittian Positions on Law and Politics?: CLS and Derrida”, in Cardozo Law Review, vol. 21, 2000,
p. 1693-1722, p. 1696 ss.
94
Roberto Mangabeira UNGER, Law in Modern Society, cit., p. 170-172.
24

aristocráticas; e um segundo tipo, aberto, em que é possível alguma mobilidade na


ordem de graduação. Em comparação com uma ordem aristocrática, a sociedade
liberal seria um sistema de graduação relativamente aberto – por permitir uma certa
mobilidade entre os diferentes graus hierárquicos da ordem – e parcial – porque
existem múltiplos lugares na ordem de graduação95.
Noutros termos, mas com o mesmo objectivo, a crítica do “entrincheiramento”
das hierarquias, proposta por KENNEDY, agora de um ponto de vista localizado – a
significar a denúncia de que o pensamento jurídico tradicional, através das suas
categorias e formalismo, constitui um meio privilegiado de legitimação e manutenção
das diferenças sociais –, pretende ter por consequência a inversão dessas hierarquias96.
Surge agora a hierarquia como conceito relacional, uma hierarquia assumida nas
relações individuais – estabelecidas ao nível das corporate cells da sociedade, mais do
que em qualquer classe ou grupo, e, portanto, num conceito local, contribuindo,
simultaneamente, para o funcionamento do todo de que fazem parte. No que vai
expressa uma convocação nítida do conceito imanente de poder de FOUCAULT97, numa
perspectiva de saber local, com a consequente consideração microscópica do jurídico,
isto é, das hierarquias, das controvérsias, naquilo que têm de irrepetível, e das
desigualdades, ao nível das relações individuais. O fio condutor do pensamento de
KENNEDY é, tal como em UNGER, o da superação das hierarquias, por meio da denúncia
das desigualdades e da inversão daquelas hierarquias 98.

95
Nas palavras de UNGER, «A relatively open and partial rank order creates the possibility of a
widening gap between the existence and the felt legitimacy of hierarchy. This is precisely the situation
one finds in liberal society. The subordination of classes and roles is sufficiently closed and inclusive to
determine, and to be perceived as determining, much of the individual’s social condition. Yet it is also
open and partial enough to be viewed as something contingent and indeed arbitrary, ultimately without
any basis in the nature of things». Consequentemente, e com vista à dissolução dessas hierarquias, «... it is
precisely in these conditions of dissolving hierarchy and moral confusion that the need to find a basis for
the exercise of power, and to distinguish its legitimate uses from its illegitimate ones, appears more
urgent». – Ibidem.
96
Duncan KENNEDY, “The politics of hierarchy”, capítulo VII de “Legal Education and the
Reproduction of Hierarchy: a Polemic Against the System”, p. 78-97 (publicado em James BOYLE,
Critical Legal Studies, cit., p. 427-446), p. 79. KENNEDY considera a hierarquia jurídica um mal
desnecessário. Nem todas as formas de hierarquia são, porém, assim classificadas por KENNEDY. Desde
logo, há certas hierarquias que devem ser mantidas, como seja a hieraquia entre pais e filhos e a
hierarquia entre professor e aluno. Quanto às hierarquias sociais, KENNEDY afirma que atitudes,
comportamentos e relações associadas com a hierarquia jurídica constituem, em si próprias, uma
perversão social. – Vide ainda Duncan KENNEDY, A Critique of Adjudication…, p. 364-368.
97
«This essay is more a rude appropriation of text-fragments of Hale and Foucault than a study of
their thought. The motive of the appropriation is to get help in developing a method for analyzing the role
of law in the reproduction of social injustice in late capitalist societies». – Duncan KENNEDY, “The Stakes
of Law, or Hale and Foucault!”, in Sexy Dressing, Etc. – Essays on the Power and Politics of Cultural
Identity, Harvard University Press, 1993, p. 83-125, p. 84. «I don’t find Foucault’s assertion of “absolute
heterogeneity” between legal and disciplinary discourse convincing, nor his very tight connection
between law and sovereignty, nor his call to fight disciplinary power through “a new form of law, one
which must indeed be anti-disciplinarian, but at the same time liberated from the principle of
sovereignty”». – Idem, p. 118-119. «… Foucault’s typical formulation of the role of legal rules in
domination effaces legal institutions as loci of power/knowledge in their own right». – Idem, p. 119. Vide
ainda idem, p. 121-123.
98
Apresenta-se aqui, portanto, «...uma das exigências condutoras (se não a exigência) condutora
do movimento dos Critical Legal Scholars (preservada em todas as etapas e máscaras que o fraccionam).
Que outra exigência senão a de decifrar a prática jurídica como uma teia (multidireccional) de poderes e
de resistências… e de assim a reconstituir na interdependência polimórfica das suas hierarquias e nos
processos de «entrincheiramento» que estas (e as células contingentes que as reflectem) estabilizam ou
reproduzem? Sem esquecer que a hierarquia exprime sempre uma relação (hierarchy as a relational
concept) e que esta só pode ser determinada e problematizada em concreto: à luz (ou em função) dos
25

Em KENNEDY, uma descrição cuidada da total estrutura hierárquica da


sociedade, da qual a hierarquia jurídica seria uma parte, teria de levar em conta
os seguintes traços: tal estrutura tem mais forma de diamante do que dicotómica
ou piramidal, com mais pessoas no meio do que no topo ou no fundo; a um
dado nível, o regionalismo e a divisão do trabalho, juntamente com a raça e o
sexo, criam fendas acentuadas nos gostos, capacidades e valores; o todo está
organizado em células combinadas (corporate cells), cada uma das quais inclui
pessoas de diferentes estratos realizando diferentes tarefas; em certo ponto, as
pessoas identificam-se mais com “a sua” célula combinada do que com a sua
posição de classe; cada uma das células combinadas espelha, ainda que
insuficientemente, a organização hierárquica interna de todas as outras, e da
hierarquia vista como um todo; cada um destes elementos internamente
hierárquicos suporta, por analogia, a legitimidade de cada um dos outros, ao
mesmo tempo contribuindo para o funcionamento do todo através do que
produz; não há partes “primárias” ou “fundamentais” desta estrutura, nenhuma
parte que seja “material”, oposta a “super-estrutural”, e cada parte é constituída
por uma complexa combinação de uso ou ameaça da força com co-optação
(cooptation) ideológica. Esta concepção do mundo social alargado implica
desistir da noção de que o sistema total de hierarquia tem uma estrutura
poderosa que é a chave, quer para o compreender quer para o modificar. Isto
significa renunciar às pretensões teóricas quer do marxismo ortodoxo quer da
crítica esquerdista liberal da hierarquia, uma vez que nem a classe trabalhadora
organizada nem o Estado têm uma posição privilegiada na totalidade 99. Não
obstante, para KENNEDY a ideologia política – quer o “liberalism” quer o
“conservatism”100 –, desempenha um papel fundamental no âmbito de
lawmaking101-102.

efeitos empíricos que tanto a construção hipotética do problema quanto a previsão das alternativas de
decisão (que o eliminam como tal) permitem reconhecer. Mas sem esquecer também que os efeitos aqui e
agora relevantes (iluminados por um controle intersubjectivo, se não mesmo conversacional) são
precisamente aqueles que produzem ou manifestam «clivagens, desequilíbrios, processos de
discriminação, desigualdades», ou se quisermos, uma «hipertrofia intolerável da diferença». Bastando-nos
aqui e agora evocar o texto decisivo de Duncan KENNEDY [«The Politics of Hierarchy» (o capítulo VII
de Legal Education and the Reproduction of Hierarchy), in BOYLE (ed.) Critical Legal Studies,
Dartmouth 1992, 427 e ss]… mas também o modo como UNGER (mobilizando embora uma perturbante
rights language, se não rights solution) caracteriza os chamados direitos de desestabilização
[«Destabilization rights represent claims to disrupt established institutions and forms of social practice
that have achieved the insulation and have encouraged the entrenchment of social hierarchy and division
that the entire Constitution wants to avoid…» (Roberto UNGER, The Critical Legal Studies Movement,
Harvard 1986, 39)]». – José Manuel AROSO LINHARES, “O Logos da Juridicidade sob o Fogo Cruzado
do Ethos e do Pathos – Da Convergência com a Literatura (Law as Literature, Literature as Law) à
Analogia com uma Poiêsis-Technê de Realização (Law as Musical and Dramatic Performance)”, in
Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXX, Coimbra, 2004, p. 59-135, n.
128, p. 114.
99
Vide Duncan KENNEDY, “The politics of hierarchy”, cit., p. 86, 94, 97.
100
Duncan KENNEDY, A Critique of Adjudication…, cit., p. 56.
101
Duncan KENNEDY, “Strategizing Strategic Behavior in Legal Interpretation”, in Utah Law
Review, 1996, p. 785-825, p. 785. (Este artigo foi depois publicado, com algumas alterações formais,
mantendo o mesmo título, como capítulo de A Critique of Adjudication..., cit., p. 180-212).
102
«I define an ideology as a universalization projection of an intelligentsia that sees itself as
acting “for” a group with interests in conflict with those of other groups. Liberalism and conservatism are
the primary examples of American ideology. An important characteristic of these ideologies is that they
have both a similar general structure and similar argumentative elements so that the difference between
them is in the way the elements are deployed or “spoken” with respect to a range of issues.
With respect to any particular legal question, we can identify the ‘stakes’ for the participants
who understand the question in ideological terms. These may or may not be distinct from the stakes as the
legal parties understand them …». – Idem, p. 786.
26

4. Os critérios mobilizáveis para a adjudication

4.1. A maleabilidade dos materiais jurídicos disponíveis

Os Critical Legal Scholars propõem uma convocação do policy argument


como oposto da dedução103, a permitir a inclusão de opções ideológicas na decisão
judicial104. A definição do domínio da juridicidade permitiria agora estabelecer um
continuum entre realização do direito e political morality: os critérios mobilizáveis
no momento da resolução da controvérsia juridicamente relevante seriam variáveis,
consoante o objectivo prosseguido pelo decidente: rules, standards, principles,
policies, politics... como alternativas legítimas igualmente convocáveis enquanto
critério normativo para a decisão.
A decisão judicial, configurada como decisão constitutiva, e não meramente
declarativa do direito pré-posto, caminha no sentido de – quer num primeiro nível, o
da selecção dos critérios jurídicos (seja a statute law sejam as rules e standards da
common law), quer num segundo, o da interpretação dos critérios seleccionados –
conduzir a soluções (não necessárias) casuisticamente determinadas pela realização
de um objectivo político de emancipação.
Uma decisão judicial que se afirma agora como instrumento de realização de
objectivos de emancipação política, mas que rejeita, simultaneamente, um conceito
de decisão em sentido estrito – enquanto opção entre alternativas possíveis orientada
a um fim e aferida pelos efeitos105-106 – para a compreender como meio de realização
de uma political morality107, e não tanto de uma ideologia político-partidária.
Political morality esta que pressupõe as expectativas conflituais de uma
multiplicidade de grupos coexistentes, e se traduz na realização empírica de uma
específica concepção do sentido do homem, da comunidade e dos valores: um
conceito que se encontra num continuum prático indeterminado, sem fronteiras...
situado entre a relevância axiológica da moral e a relevância programática da
política, e referenciado a um conceito de poder que se desdobra – na convocação de
FOUCAULT – como omnipresente nas relações intersubjectivas, desde as particulares
às de confrontação inter-grupos. E que se projecta na decisão judicial como
horizonte simultaneamente fundamentante (foundational) e final.
Se se afirma que a decisão judicial admite a convocação privilegiada de rules,
principles e policies, não se oferece aqui, porém, uma descrição compreensiva do
conteúdo e legitimidade dos principles e das policies. A policy seria uma porta de

103
O deductive argument traduz a procura do significado (único) da norma (rule) para a aplicar
ao caso. – Duncan KENNEDY, A Critique of Adjudication…, cit., p. 98.
104
Idem, p. 97. Vide ainda Duncan KENNEDY, “Freedom and Constraint in Adjudication: a
Critical Phenomenology”, in Journal of Legal Education, 36, p. 518-562 (publicado em James BOYLE,
Critical Legal Studies, cit., p. 45-89), p. 533-537.
105
SINGER sintetiza o sentido da decisão judicial para os Crits: «When judges decide cases, they
should do what we all do when we face a moral decision. We identify a limited set of alternatives; we
predict the most likely consequences of following different courses of action; we articulate the values that
are important in the context of the decision and the ways in which they conflict with each other; we see
what relevant people (judges, scholars) have said about similar issues; we talk with our friends; we drink
enormous amounts of coffee; we choose what to do». – Joseph SINGER, “The Player and the Cards…”,
cit., p. 65.
106
A. CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito, Lições proferidas no ano lectivo de 1998/99,
policop., Coimbra 1998, p. 179-180.
107
Duncan KENNEDY, A Critique of Adjudication…, cit., p. 13.
27

entrada de argumentos ideológicos na decisão judicial: os argumentos jurídicos


neutros ou objectivos e os argumentos ideológicos constituiriam argumentos
interpenetrantes e dificilmente distinguíveis108. Os valores sociais – direitos,
moralidade, utilidade – a que a argumentação baseada em policies apela são a
matéria-prima da universalização de projectos ideológicos 109. Pelo que as policies
serão traduções de posições ideológicas. Mais. As policies são instrumentos da
ideologia. Diferentemente da política (politics), embora também esta estivesse
presente no projecto dos Crits, as policies constituem, neste sentido, intenções
programáticas de índole moral e social. Esta abordagem da ideologia não implica,
para KENNEDY, uma definição controversa de “direito”, antes pretende que a sua
theory of ideology in adjudication seja efectiva, construída com elementos
plausíveis, pelo que reitera a sua definição de “validade”: para KENNEDY, uma legal
rule é a que é “válida” no sentido muito limitado «...of being agreed by just about
everyone to be in force, meaning in force in the very limited sense of expected by
just about everyone to be applied by the top court in a jurisdiction when lawyers
argue it to that court»110.
A decisão judicial seria, privilegiadamente, um forum de ideologia (e não
tanto “o” forum dos princípios)111. A actividade juridicamente constitutiva do juiz
tem lugar num específico contexto de critérios jurídicos, perante uma particular
lacuna, conflito ou ambiguidade; o juiz resolve problemas interpretativos através de
uma operação de reformulação dos critérios, que depois justifica
argumentativamente: a influência mais importante da ideologia na decisão judicial
resultaria da interpenetração entre esta técnica retórica específica de justificação
jurídica e a retórica política geral própria de um determinado momento 112.
A convocação livre de rules, standards, principles, policies e values,
desprovida de uma afirmação prévia da sua natureza, conteúdo e relevância jurídica,
implica uma insuficiência de critérios que os Crits não relevam, mas que se projecta
vertiginosamente em múltiplas dificuldades daí decorrentes. Desde logo, sem a
apresentação de uma base – mesmo que política, ideológica, ou axiológica, ainda
que enquanto political morality – não é possível assegurar uma justificação racional
das opções mobilizadas quer para a compreensão do direito quer para a sua
realização judicial113. Para além disso, sem uma assimilação material que permita
conhecer o conteúdo daqueles principles e policies – e, sobretudo, perante a sua
convocação livre e indiferenciada, não é possível concluir da legitimidade da
fundamentação, que os Crits parecem situar entre a axiologia comunitária e a
realização de um projecto social (em qualquer dos casos, com uma base que convoca
valores). Sem que se possa deixar de mencionar uma ausência crucial: a de uma

108
Idem, p. 133.
109
«An ideological universalization project (liberalism, conservatism) restates the interests of
groups as claims on the whole society by casting them in the language of rights, morality, or utility.
Particular families of rules and particular arguments about them have histories and ideological
pedigrees». – Idem, p. 148.
110
Idem, p. 62, e n. 15, p. 383.
111
Idem, p. 69.
112
Idem, p. 1. Vide ainda Duncan KENNEDY, “The Stakes of Law, or Hale and Foucault!”, in
Sexy Dressing, Etc. …, cit., p. 110-111.
113
Vide Joseph SINGER, “The Player and the Cards…”, cit., p. 57, 66.
28

referência da decisão judicial a um sistema jurídico que sustente a coerência jurídica


das decisões114.

4.2. As opções políticas

A intencionalidade política da decisão judicial não implica necessariamente,


para KENNEDY, que o juiz esteja politicamente comprometido – embora conclua
neste sentido –, mas sim que a ideologia influencia a decisão judicial 115. O juiz não
poderá, então, ser neutro, e isto não porque os conceitos mobilizados, tais como os
de liberdade, equidade e justiça, que o devem influenciar, sejam totalmente
desprovidos de sentido ou de capacidade de influenciar o seu comportamento. O
problema é que aqueles conceitos permitem duas compreensões do mundo, uma
altruísta e outra individualista, o que é válido quer para as questões de forma quer
para as de substância116.
O juiz estaria consciente da possibilidade de prosseguir estratégias
ideológicas117. O juiz proposto por KENNEDY, assumindo um projecto ideológico,
não é, portanto, um manipulador radical dos critérios jurídicos, nem um puro e
simples aplicador de critérios, independentemente dos resultados, antes escolhe os
critérios jurídicos que considera justos118. E, por isso, nem propriamente um
dedutivista, nem um estratega em sentido próprio, pois mobiliza como horizonte
justificativo da sua decisão uma densificação comunitária, ainda que alternativa, de
valores e opções ideológicas.

4.3. A experiência do juiz-advogado

A relevância da personalidade do juiz, herança realista, projecta-se na


configuração de um juiz comprometido com os resultados políticos da sua decisão.
Neste território privilegiado de reconstrução fenomenológica do processo de
decisão, o juiz revela-se como uma espécie de juiz-advogado, que decide a partir de
um determinado ponto, confrontando o seu projecto de vida com os materiais
jurídicos disponíveis e com as diversas possibilidades de decisão que oferecem, com

114
Para um confronto com uma perspectiva jurisprudencialista de sistema jurídico – como
sistema aberto e pluridimensional, a analisar em múltiplos estratos interligados (princípios normativos,
normas jurídicas, jurisprudência judicial, dogmática jurídica, realidade jurídica e regras procedimentais) –
, enquanto referente fundamental da realização concreta do direito, vide, entre outros, A. CASTANHEIRA
NEVES, “A unidade do sistema jurídico: o seu problema e o seu sentido”, cit., p. 95-180; Idem, “Entre o
‘legislador’, a ‘sociedade’ e o ‘juiz’ ou entre ‘sistema’, ‘função’ e ‘problema’ – os modelos actualmente
alternativos da realização jurisdicional do Direito”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3883
(também in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXIV, Coimbra, 1998,
p. 1-44); Idem, “O actual problema metodológico da realização do direito”, in Separata do número
especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor
António Arruda Ferrer Correia, 1984 (também in Digesta – Escritos acerca do Direito, do Pensamento
Jurídico, da Metodologia e Outros, Coimbra, 1995, vol. II, p. 249-282); Fernando José PINTO BRONZE,
Lições de Introdução ao Direito, Coimbra, 2002, p. 567-623.
115
Duncan KENNEDY, “Strategizing Strategic Behavior in Legal Interpretation”, cit., p. 808-825.
116
Duncan KENNEDY, “Form and Substance…”, cit., p. 1766.
117
Duncan KENNEDY, A Critique of Adjudication…, cit., p. 55.
118
Idem, p. 158-159.
29

a factualidade concreta sub judice119, bem como com a sua própria formação cultural
e académica, e ainda com os auditórios reais envolvidos, e, por outro lado, a
comprometer-se com as opções argumentativas adoptadas a partir daqueles
materiais, e a avaliar os seus efeitos (políticos e morais)120. O desenvolvimento
argumentativo a partir da intuição inicial dos materiais jurídicos é contingente e
influenciado por uma multiplicidade de factores que o juiz tem de contabilizar nas
suas opções121.

4.4. A previsão das repercussões nas comunidades interpretativas

O juiz, como membro de uma comunidade interpretativa – compreendida


como horizonte-contexto legitimante da orientação do sentido da decisão judicial –,
projecta na sua decisão as concepções nela pressupostas e releva as eventuais
projecções da sua decisão nessa comunidade. O juiz é nela um participante, influi na
reacção dessa comunidade à interpretação. Esta experiência de constrição é, de certo
modo, “interior”122.
O intérprete está, portanto, sempre vinculado pelas expectativas da
comunidade interpretativa – numa ligação com a concepção narrativa do texto
jurídico123. Comunidade esta convocada também, de certo modo, por UNGER, e ainda
por TUSHNET124 e mesmo por LEVINSON e BALKIN – estes últimos a reconhecer a
comunidade interpretativa (auditório) como a «identidade» colectiva125 –
destinatário dos cânones e da sua realização prática 126 – «...de uma comunidade
interpretativa mais ou menos contingente, enfim já reconhecida na sua “estrutura
justificatória” interna (...), mas também a de uma escola de pensamento e a da
teoria que esta estabiliza (...); ainda e muito especialmente a de um grupo
narrativamente determinado (...)»127.

ANA MARGARIDA GAUDÊNCIO

119
Duncan KENNEDY, “Freedom and Constraint in Adjudication…”, cit., p. 559.
120
Idem, p. 530, 545, 559. «The judge has to decide what to do from a position. That positions
depends on the givens of the judge’s life-project, on the body of legal materials and the facts of the case
as grasped at the beginning of the process, and on the work the judge has done on those materials and
facts. In deciding, the judge risks but may also gain credibility, depending on the obviousness gap
between the common perception of “the law” and HIWTCO». – Idem, p. 559.
121
Idem, p. 562.
122
Duncan KENNEDY, A Critique of Adjudication…, cit., p. 161-162.
123
O carácter vinculativo da comunidade interpretativa e da sua relevância para a decisão judicial
é desenvolvida pelos adeptos da Law and Literature, e muito especialmente, por Stanley FISH.
124
Mark TUSHNET, Red, White, and Blue: A Critical Analysis of Constitutional Law, Harvard
University Press, 1988, n. 110, p. 56-57.
125
José Manuel AROSO LINHARES, O Logos da Juridicidade sob o Fogo Cruzado do Ethos e do
Pathos..., cit., p. 102-107.
126
J. M. BALKIN e Sanford LEVINSON (Ed.), Legal Canons, New York, London, 2000, p. 8-11.
127
José Manuel AROSO LINHARES, O Logos da Juridicidade sob o Fogo Cruzado do Ethos e do
Pathos..., cit., p. 107.

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