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NA «COROA DE FUMO» DA TEORIA DOS PRINCÍPIOS


Poderá um tratamento dos princípios como normas
servir-nos de guia?
JOSÉ MANUEL AROSO LINHARES

No ensaio «Princípios. Entre a sabedoria e a aprendizagem»1, concebido como um


fulgurante encontro de recursos discursivos distintos — um encontro que concilia o
desenho de uma conversation piece íntima, concentrada na experiência-praxis de uma Escola e
nos seus interlocutores (e então e assim recriada com a delicadeza e a naturalidade de uma
cena de Hogarth)2… com o «exercício de memória» de um intellektuelles Bildungsroman (capaz
de invocar uma dinâmica de «angústia» e de crescimento… e de a distribuir pelos «passos»
de um «calvário»3) —, o Mestre que hoje homenageamos incita-nos a mergulhar na «coroa
de fumo» e no «ambiente poluído» (conceitualmente poluído) da dogmática e da teoria dos
princípios4. É a esse apelo-exigência que me atrevo a corresponder, menos decerto para
enfrentar o diferendo a que o problema dos princípios hoje nos expõe, reconstituído na
extensão máxima do seu espectro5, do que para me concentrar numa secção limitada desse
mesmo espectro e na experimentação que esta autoriza — enquanto nos submete ao fogo
cruzado das oposições axiológico-teleológico / deontológico, ratio / intentio, juridicidade /
moralidade, universal / não universal, vinculante/não vinculante, interpretação / concretização. Uma
experimentação à qual a nossa circunstância oferece uma oportunidade única de
renovação (decerto também enquanto duvida da inescapabilidade, ou pelo menos da
unidimensionalidade, das suas alternativas)… e à qual aqui e agora gostaria de brevemente
aludir (só aludir!), também (et pour cause!) ficcionando a intimidade de uma conversa. Uma

1 Canotilho, «Princípios. Entre a sabedoria e a aprendizagem», in Ars Iudicandi. Estudos em Homenagem

ao Professor Doutor Castanheira Neves (Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, número especial),
volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pp. 375-387.
2 Intimidade que (na sua explícita projeccção plástica) é reforçada pela mobilização dos dois

parágrafos iniciais do cap. VI da II parte das Philosophische Untersuchungen de Wittgenstein (com a sua
referência final ao solipsismo dos Erlebnisse): trata-se, como sabemos, de comparar as «palavras bem
conhecidas» às «figuras» de um certo «quadro», cada uma delas a apresentar-se-nos «rodeada por cenas
delicadas, nebulosamente desenhadas» e assim mesmo envolvida numa «auréola» ou «coroa de fumo» — o
Dunstkreis ([als] «Hof» schwach angedeuteter Verwendungen) que quis evocar no meu próprio título [Wittgenstein,
Philosophische Untersuchungen (1937-1949), Frankfurt am Main, Surkamp, ed. de bolso, 1971, p. 288].
3 Canotilho, «Princípios. Entre a sabedoria e a aprendizagem», cit., pp. 380 e ss.
4 Ibidem, pp.377, 378, 380.
5Percorrer esse espectro (identificando eixos extremos exemplares) seria por exemplo contrapor as

vozes de Finnis e de Posner: uma compreensão dos princípios sustentada numa intensely active contemplation
(capaz de autonomizar um núcleo de absolutos morais indisponíveis, racional-normativisticamente pré-
determinados nas suas significações)… e uma especificação pragmática capaz de reduzir os principles a policies
(os arguments of principle a arguments of policy) e de assim mesmo inviabilizar (rejeitar) a distinção correspondente.
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conversa a inscrever-se numa série de outras conversas — das muitas autênticas conversas
com que a generosidade luminosa do Senhor Doutor Canotilho me tem beneficiado? Posso
dizer que sim. Tanto mais que os interlocutores a invocar hão de ser decerto aqueles (ou
alguns daqueles) que tais conversas recorrentemente mobilizam: Habermas, Alexy,
Castanheira Neves.

1. Trata-se muito claramente de interpelar o contraponto normas como princípios


/normas como regras, um binómio ou distribuição binária cuja produtividade (no plano da
dogmática do direito constitucional), Canotilho tem exemplarmente explorado («o sistema
jurídico do Estado de direito democrático português é um sistema normativo aberto de
regras e princípios (…), pois as normas do sistema tanto podem revelar-se sob a forma de
princípios como sob a forma de regras»6).
De o interpelar em que sentido? Perguntando directamente se a «visão binária dos
tipos normativos» que este contraponto constrói («sob o ponto de vista estrutural»)7
contribui (e com que alcance) para «despoluir» o «ambiente»»8 de indeterminação e de
instabilidade com que a teoria dos princípios (indissociada da reflexão metodológica)
persistentemente nos fere. Ou mais rigorosamente, querendo saber se (e até que ponto é
que) a articulação-distribuição assim preservada se revela produtiva, nas suas pretensões de
unidade — estas levadas a sério (como veremos) tanto no plano da concretização
normativa auto-subsistentemente compreendida quanto no plano da vinculatividade prescritiva —
quando mergulhamos na diagnosticada «coroa de fumo» e na «auréola» nebulosa que, na
perspectiva da «aplicação»-«uso» (Anwendung-Gebrauch), rodeia (enquadra) os significantes
principais do seu discurso (als ein (…) “Hof” schwach angedeuteter Verwendungen)9.
O percurso ensaiado (rememorado!) por Gomes Canotilho em «Princípios…»
pressupõe decerto esta distribuição binária e a sua relevância dogmática rigorosamente
taken for granted («dentro do processo de concretização das normas constitucionais, vamos
tomar em consideração um tipo de normas: as normas em forma de princípios…»10 ). Porque
alude com grande contenção às suas possibilidades, mas também porque expõe tais
possibilidades em planos distintos e sob o fogo de interlocutores diferenciados (Esser,
Castanheira Neves, Dworkin, Alexy) — sem hesitar em as fazer concorrer com algumas
categorias de inteligibilidade perturbadoras («fundamentação axiológico-normativa»,

6 Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, 7ª ed. , Coimbra, Almedina, 2003, p. 1159.
7 «Princípios. Entre a sabedoria e a aprendizagem», cit., p. 386.
8 Ibidem, p. 380.
9 Ver supra, nota 2.
10 «Princípios. Entre a sabedoria e a aprendizagem», cit., p.376.
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«intenção de validade», «concreta constituição»11)… e sem deixar de muito justamente


reconhecer os riscos que, «no plano metodológico», a «radicalização» da sua «estrutura
binária» acarreta (enquanto «justifica o reaparecimento encapuçado de posições
positivistas»)12 —, o percurso em causa resiste, no entanto, a dar-nos uma resposta
imediata. Nem por isso menos nos estimula a procurá-la.
É isto mesmo que vou tentar fazer, socorrendo-me dos dois núcleos de relevância
dogmático-constitucional a que acabei de aludir — aqueles com que Canotilho
persistentemente justifica esta visão binária e as suas implicações estruturais.
(A) Trata-se, num primeiro plano, de invocar o problema da «unidade material da
Constituição» e de assim mesmo fazer corresponder a lógica binária das proposições
normativas (a unidade na diferença das suas duas formas) à exigência de alimentar auto-
suficientemente um sistema interno13. De o alimentar em que termos? Conferindo-lhe uma
dinâmica específica: uma dinâmica que, sendo provocada pelas «diferenças» de «densidade
semântica» atribuídas aos diversos tipos de princípios e regras constitucionais (princípios
estruturantes, princípios constitucionais gerais, princípios constitucionais especiais e regras constitucionais),
simultaneamente se contém nas (ou é delimitada pelas) possibilidades (de articulação)
destas diferenças e dos degraus que lhes correspondem — o que significa assegurar um
cosmos normativo autónomo e distinguir um problema de «concretização» auto-subsistente
(analitica e cronologicamente anterior aos problemas da concretização legislativa e da
concretização judicial14)15.
(B) Trata-se, num segundo plano, de levar a sério a perspectiva da «positividade»
— entenda-se, a exigência de articular a «“textura aberta” da constituição com a
positividade constitucional» —, associando a mesma unidade na diferença a uma exigência
partilhada de «vinculação»16. De tal modo que tratar os princípios e as regras constitucionais
como normas signifique aqui e agora acentuar a sua indiscutível «força normativa», uma «força

11 Ibidem, pp. 383


12 Ibidem, p. 386. Ver também p. 379: «Não deixa (…) de ser estranho que a hipertrofia metódico-
principial acabe por corroer o sentido axiológico-normativo que anima a concretização pós-positivista dos
princípios constitucionais fundantes e estruturantes da República…».
13 «A articulação de princípios e regras, de diferentes tipos e características, iluminará a compreensão

da constituição como um sistema interno assente em princípios estruturantes fundamentais que, por sua vez,
assentam em subprincípios e regras constitucionais concretizadores desses mesmos princípios» (Direito constitucional e
Teoria da constituição, cit., p. 1173).
14 Ibidem, p. 1175.
15 Como se a «articulação» de normas que possam «revelar-se tanto sob a forma de princípios como

sob a forma de regras» nos aparecesse como uma condição indispensável para experimentar e realizar uma
exigência de «unidade» sem condenar esta a uma representação unidimensionalmente estática: ibidem, pp.
1173-1175 (C.).
16 Ibidem, pp. 1176-1187 (D.).
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normativa (se não justiciabilidade) independente(s) do acto de transformação» da legislação


ordinária17.

2. Se vou partir destes dois núcleos de relevância, não é no entanto para os


questionar na sua produtividade imediata (sustentada pelo universo prático-normativo da
dogmática constitucional). É antes para permitir que os topoi exemplares a que tais núcleos
nos expõem possam ser interpelados num plano metadogmático: enquanto perguntamos se a
nossa circunstância presente exige — e até que ponto é que exige… ou em nome de que
concepção ou que concepções do direito é que exige! — uma compreensão dos princípios
como normas. Preocupação que me obriga a abstrair da inter-relação que, no plano
dogmático, associa estes dois núcleos… para os distinguir ou para os questionar
separadamente. Se importa decerto acentuar que os dois núcleos em causa nos expõem à
procura de uma unidade estruturante (cumprida em nome de uma compreensão da
juridicidade), importa com efeito simultaneamente reconhecer que no primeiro destes
núcleos tal procura se dirige à possibilidade-exigência de mobilizar uma inteligibilidade
deontológica comum (auto-subsistentemente determinada), enquanto que no segundo o
denominador partilhado é já a dimensão institucional-impositiva (a compreensão autoritária
da vinculação e da voluntas, se não potestas, que nela se afirma). O que nos autoriza a
convocar duas compreensões dos princípios — ambas em condições de assumirem o
«continuum» princípios jurídicos/normas… —, tendo simultaneamente presente que estas
compreensões nos confrontam com outras tantas linhas ou tendências do discurso jurídico:
aquela que (de Jhering e/ou Bierling a Habermas) nos autoriza a falar dos princípios como
ratio… e aquela que (de Stammler e Betti a Alexy e Coleman) nos permite reconhecer os
princípios como intentio18. Duas linhas decerto internamente muito complexas, com uma
continuidade no entanto que sobrevive à diversidade dos contextos (e à heterogeneidade
dos referentes que mobilizam). E que assim podemos, em duas palavras, reconhecer…

2.1. Não será difícil acentuar a continuidade da primeira destas linhas (herdeira da
compreensão normativística dos princípios gerais de direito), respeitando simultaneamente a

17 «No seu conjunto, regras e princípios constitucionais valem como “lei”: o direito constitucional é
direito positivo…» (Ibidem, p. 1176).
18 A distinção que mobilizo e as correspondentes formulações — acrescidas daquela de que viremos

a falar infra, 3. (princípios normativos como jus) — devem-se inteiramente a Castanheira Neves, que as tem
mobilizado desde a sua fundadora lição-síntese sobre os princípios [ver Sumário de uma lição-síntese sobre «Os
princípios jurídicos como dimensão normativa do direito positivo (a superação de positivismo normativista)», policop.,
Coimbra, 1976]. A recriação que proponho no texto não seria de resto possível sem a mediação privilegiada
das suas aulas e ensinamentos orais.
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diversidade das respostas que esta autoriza (inscritas em contextos inconfundíveis).


Decerto porque a unidade estrutural invocada — aquela que vai permitir tratar os
princípios como normas (como se lhes coubesse apenas um degrau ou conjunto de degraus
num continuum intencional e categorialmente homogéneo) — é explicitamente a de um
contexto-ordem : um contexto que se baseia na identidade de um enunciado de dever-ser —
com uma racionalidade-veritas autoconstituída por exigências de universalidade-
incondicionalidade e um sentido ateleológico (capaz de submeter a acção a uma «codificação
binária») — e que assim mesmo se mostra em condições de invocar uma pretensão de
coerência ou de interrelação, internamente projectada em cada um dos enunciados —
pretensão esta que, ao rejeitar a contingência ou a particularidade de uma «configuração
flexível», faz corresponder a interrelação em causa (horizontal ou verticalmente reflectida) à
unidimensionalidade auto-subsistente de um sistema19, sistema que precisamente se quer e se
diz sistema de normas ou de proposições jurídicas20. Sendo certo que tanto aquele núcleo
racional norma (a que todos os «materiais» juridicamente relevantes deverão invariavelmente
reconduzir-se) quanto este sistema (que relacional e constitutivamente os articula) são aqui
convocados…
(a) quer como condições de possibilidade de um modo-de-vigência contra-factual e do
cosmos que este constrói — um modo-de-vigência que estabiliza expectativas de comportamento
generalizadas (que se dirige constitutivamente a todos21) na mesma medida em que , sem excluir
possíveis degraus de explicitação-objectivação (e a dinâmica interna que os relaciona), se
cumpre invariavelmrnte em abstracto (impondo uma interpretação descontextualizada do mundo
prático)… —,
(b) quer como componentes indissociáveis de um exercício específico de
autofundamentação — exercício este que, sem prejuízo de respostas relativamente distintas, se
cumpre por sua vez também sempre reconhecendo que as pretensões de universalidade e
de incondicionalidade racional (e as «qualidades» textuais ou discursivas que as traduzem)

19 Para o dizermos com as formulações exemplares de Habermas, propostas para distinguir normas e
valores (sendo os princípios explicitamente mobilizados como normas): Faktizität und Geltung. Beiträge zur
Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats, Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1992, pp. 310 e ss.
20 Aqui mobilizadas como expressões equivalentes, com o alcance que o discurso do século XIX

consagrou (estrutura hipotético-condicional, forma imediatamente prática e imperativa) e que vemos


exemplarmente associado à operação metódica da análise jurídica. Outra é como sabemos a proposta de
Kelsen, alimentada pela cisão estrutural Rechtsnormen /Rechtssätze, correspondendo as normas às prescrições
de poder conhecidas como direito-objecto e as proposições jurídicas aos enunciados da perspectiva-sujeito e
da análise descritiva que esta constrói. Para algumas especificações destas diferenças (e indicações
bibliográficas indispensáveis) vejam-se os sumários desenvolvidos de Introdução ao Direito II (Coimbra 2009,
pp. 135-144) e de Introdução ao Pensamento Jurídico Contemporâneo, Coimbra 2009 (pp.37-46) que disponibilizo no
material de apoio das páginas on line destas duas disciplinas, https://woc.uc.pt/fduc.
21 Habermas, Faktizität und Geltung. cit., p. 312
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se identificam constitutivamente com as exigências da juridicidade (com aquelas exigências-


critérios de veritas-ratio que nos permitem tratar os referidos enunciados como jurídicos)22.
Uma vez preservada esta unidade deontológica, os sinais que nos autorizam a
distinguir os princípios correspondem por fim a uma intensificação do núcleo ratio: como se
este núcleo — ao poder ser compreendido enquanto tal, sem a mediação da antecipação
hipotética (tipificadora de problemas ou situações possíveis) que sustenta as outras
normas… ou pelo menos conferindo a essa antecipação uma indeterminação
significativamente maior (como tal reconhecível ou tematizável)… — nos aparecesse
enfim restituído à pureza das suas pretensões e à fundamentação imanente que estas
garantem (e a esta última na sua postulada convergência de racionalidade e juridicidade),
permitindo que os princípios possam aparecer-nos, se não recto itinere como condições
epistemológicas de uma racionalização cognitivo-sistemática, pelo menos como as
proposições em que tais condições mais directamente se manifestam…

Importando de resto acrescentar que uma tal intensificação, assim univocamente


reconhecida (se não levada a sério como traço identificador), há-de poder justificar (tem
efectivamente justificado!) rostos e equilíbrios operatórios muito distintos (e outras tantas
concepções da norma ou desta como elemento gerador). Que rostos e que equilíbrios? Permitir-
me-ei mobilizar três exemplos (aqules a que atrás aludi), exemplos nos quais a tematização do
continuum e da diferença de grau aparece explícita (e com uma produtividade reflexiva indiscutível…
mas também com posteridades bem conhecidas).
α) Refiro-me desde logo à concepção dos princípios assumida por Jhering (inscrita no
horizonte da «ciência dogmática do direito» e da Technik que a assume23). Se o «continuum»
normas / princípios se explicita vinculando as proposições normativas e os princípios gerais à mesma
etapa de tratamento racional dos materiais jurídicos-dados (àquela primeira etapa, ainda confiada
à niedere Jurisprudenz24, que oferece como «resultado» um autêntico direito objectivo-dado), a distinção
manifesta-se reconhecendo as operações que os produzem… e que são, respectivamente, a
análise jurídica e a concentração lógica. A intensificação que atrás evocámos é aqui de resto exemplar.

22 Para uma reconstituição das exigências de fundamentação imanente assumidas pela compreensão
normativista da norma-ratio, ver Castanheira Neves, Teoria do direito. Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999,
policopiado, Coimbra 1998, (versão em fascículos) pp. 76-94, (versão em A4) pp. 42-51.
23 Trata-se de assumir a organização do discurso proposta na segunda parte do Geist des römischen

Rechts e muito especialmente a sistematização de «tarefas»-Aufgabe (e «fins»-Zwecke) proposta no § 38 («Die


Aufgabe der Technik und die Mittel zu ihrer Lösung im Allgemeinen») [Geist des römischen Rechts auf den
verschiedenen Stufen seiner Entwicklung, zweiter Teil, zweite Abteilung, 8ª edição (reimpressão da edição de 1883),
Basel, Benno Schwabe § Co, pp. 322-333]. Veja-se a síntese desta organização (concentrada num esquema
possível) que propus em «Os desafios-feridas da Allgemeine Rechtslehre. Um tempo de teoria do direito
reconhecido (reencontrado?) pela perspectiva de outro tempo de teoria», in João Lopes Alves et al., Liber
Amicorum de José de Sousa e Brito em comemoração do 70º aniversário. Estudos de Direito e Filosofia, Coimbra,
Almedina, 2009, pp. 263 e ss., 273-281, 314 (apêndice).
24 Jhering, ob. cit., p. 358.
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Trata-se muito claramente de comparar a inferência (por abstracção) do princípio — a partir de


uma prescrição legislativa isolada ou de um conjunto de prescrições legislativas (e outros
Rechtssätze), se não já de um acervo de materiais jurídicos-dados ([als] aüsseres Volummen einer Masse
Rechtsstoff)25— ao processo de descoberta-Auffindung de um centro lógico. Comparação esta que
— mobilizando o confronto logisches Zentrum / Peripherie26, mas também o contraponto prinzipielle
Gestaltung / casuistische Gestaltung27 —, nos autoriza a reconhecer que os princípios gerais do direito,
sem prejuízo de se nos poderem oferecer como «fontes» possíveis de novos Rechtssätze (outra
manifestação geneticamente exemplar do continnum princípios / normas!28), correspondem
sempre a «ideias» (Idee) e (ou) «pensamentos» (Gedanke) implicados (muitas vezes ocultos) naqueles
materiais29: «ideias» ou «pensamentos» que deverão ser «descobertos» (desimplicados) pela tarefa
puramente lógica («não jurídica») da «concentração» … e por esta precisamente enquanto
submete a «periferia» dos materiais disponíveis a um processo de «simplificação quantitativa»
(enquanto substitui aqueles «materiais» por outras formas de expressão)30. Com o «resultado»
claro de estes princípios deverem ser tratados como proposições jurídicas mais gerais que
sintetizam racionalmente os conteúdos-significações (Gedanke) de outras proposições jurídicas
menos gerais e dos conjuntos que estas formam: entenda-se, Rechtssätze obtidas a partir de
normas tout court (estas com forma imediatamente prática e imperativa)…e com o objectivo claro de
conseguir um domínio cognitivo racionalmente mais logrado destas últimas e da unidade
horizontal (por coerência) que estas constituem… — normas que assim mesmo os princípios gerais
não excedem normativamente, às quais nada acrescentam no plano das «soluções» prático-
normativas, com as quais (enquanto axiomas racionalmente imanentes) nunca entram em
confronto (às quais nunca põem exigências de validade!), cujas significações se limitam a
reproduzir-sintetizar...
ß) Refiro-me depois à conversão-expansão metadogmática justificada pela allgemeine
Rechtslehre e muito especialmente pela doutrina dos princípios de Bjerling31. A tematização explícita
da relação juridicidade /cientificidade promete-nos agora uma teoria estrutural analítica alimentada por
um cognitivismo normativista rigoroso e a correspondente exigência de universalidade. Tal
promessa — porque aspira a uma superação lograda da contingência e da «particularidade»

25 Ibidem, p.352.
26 Ibidem, pp. 353-355.
27 Ibidem, p.353.
28 «Aber nicht bloß die Konzentrierung des bereits vorhandenen Stoffs ist es, was die schließliche

Auffindung des Prinzips für die Wissenschaft so wichtig macht, sondern es gesellt sich noch der Vorteil
hinzu, daß in dem gefundenen und erkannten Prinzip zugleich eine Quelle neuer Rechtssätze erschlossen
wird…» (Ibidem, p.354).
29 «Die einzelne Rechtssätze, in denen der Gesetzgeber unbewußt ein Prinzip zur Anwendung

bringt, verhalten sich zu letzerem wie einzelne Punkte in der Kreislinie zum Zentrum. Das Prinzip ist der
Punkt, den der Gesetzgeber sucht…» (Ibidem, p. 354).
30 «Sie ist keine specifisch juristisch Operation, sondern die allgemeine logische der Abstraction eines

Prinzips aus gegebenen Einzelheiten, die Substituirung einer andern, intensiveren logischen
Ausdrucksform…» (Ibidem, p. 352)
31 Veja-se a reconstrução que (atendendendo também às concepções dos princípios de Bergbohm e

Merkel) propus em «Os desafios-feridas da Allgemeine Rechtslehre…», cit., pp. 296-303 (3.1.).
8

impostas pelo patamar normativo-dogmático… que o seja também dos «resíduos» da tradição
natural-histórica (representados pela teoria do organismo)… — obriga-nos por um lado a renunciar à
possibilidade de responsabilizar o Inbegriff metadogmático por uma produção em sentido forte
(por uma produção de «novos materiais» que de alguma forma prolongasse a inteligibilidade
constitutiva do direito-dogma), na mesma medida em que por outro lado nos expõe à inevitabilidade
de uma inferência «indutiva» pura, esta caracterizada como uma «forma especial de redução» (die
analytishe Methode, oder besser, die Methode der Reduktion32). Se tivermos presente que tal «inferência»
se quer logicamente inconfundível com um simples exercicio dogmático-interpretativo de
abstracção-generalização (como aquele que era tradicionalmente invocado a propósito da
determinação-Ermittlung dos princípios gerais de direito), poderemos facilmente concluir que tal
proposta rompe com o continuum princípios / normas sustentado pela juristische Technik. Não
deixa de o restabelecer no entanto, acompanhado da diferenciação gradativamente exigida, a
partir de um novo patamar. É que se trata de identificar a doutrina dos princípios encore à faire
com uma «representação sistemática» (nem por isso menos intrinsecamente jurídica) dos
«conceitos e princípios» comuns a todos os direitos positivos… vinculando-a assim ao problema
do conceito de direito e à Allgemeine Rechtslehre enquanto tal. Sem esquecer que se trata também (et
pour cause) de a desvincular do problema da ideia de direito (problema com o qual a Rechtsideelehre
ou Rechtsphilosophie im engere Sinn, e esta já como uma reflexão apenas ética ou ético-filosófica,
deverá ao fim e ao cabo ocupar-se). O que significa evidentemente exigir que a «concordância
com uma ideia» seja excluída (como elememto ou dimensão plausível) do processo de
determinação do direito wie es ist33.
γ) Refiro-me por fim, deixando por explorar as heranças das duas compreensões
anteriores (nas suas tensões e complementaridades) — estas têm sido com efeito
incessantemente reproduzidas (ainda que sem a problematização exemplar que as tornou
possíveis) nas propostas que preservam a inteligibilidade normativística dos princípios gerais! —, à
reinvenção singularíssima do continuum princípios jurídicos/normas assumida por Habermas. Pode
dizer-se com efeito que a defesa da juridicidade intrínseca dos princípios e o tratamento desta
enquanto racionalidade (ligada argumentativamente às exigências de uma constituição externa)
corresponde agora a uma experimentação da originariedade prático-culturalmente irredutível (e
como tal equiparável, sustentada numa presunção de igualdade-complementaridade) dos
universos discursivos da moral e do direito e destes na sua inteligibilidade pós-convencional
(exigindo uma «interpretação» descontextualizada que possa contrapor-se à particularidade e
fragmentação dos ethos substantivos)34. Inscrito neste contexto, o reconhecimento de que os

32 Bierling, Zur Kritik der juristischen Grundbegriffe, reimpressão da edição de Gotha (1877-1883), Aalen,

Scientia Verlag Aalen, 1965, II, «Einleitung», p.2.


33 Ibidem, I, pp. 153 e ss. (XI), pp. 163-167 (§§ 119-120).
34 Remeto-me para a reconstituição desta concepção dos princípios/direitos do Homem que (num

confronto directo com a abordagem de Alexy) propus em «O homo humanus do direito e o projecto inacabado
da modernidade» (a publicar em breve).
9

«princípios são normas de degrau superior», com um sentido deontológico imaculado (Prinzipien oder
höherstüfige Normen, in deren Licht andere Normen gerechtfertigt werden können, haben einen deontologischen
(…) Sinn35), passa a corresponder directamente a uma exigência de validade (e assim também à
possibilidade de uma dialéctica facticidade /validade): entenda-se, àquela compreensão da validade
(enquanto legitimidade-racionalidade) que nos autoriza a descobrir nas normas jurídicas
(enquanto artefactos prático-culturais específicos) critérios racionalmente auto-subsistentes,
comunicativo-procedimentalmente justificados, como tal aptos a serem seguidos pela sua
racionalidade36 (e de tal modo que conceber as prescrições legislativas como normas jurídicas
signifique levá-las a sério como Gesetze der Freiheit37); mas então também àquela compreensão da
validade-racionalidade (indissociada do projecto prático-cultural do direito) que responsabiliza as
normas e a sua procura de universalidade racional por uma institucionalização «hierarquizadora»
— a institucionalização capaz de distinguir-separar os «usos»-degraus da razão prática… e de
então e assim exigir que os argumentos pragmático-finalísticos (instrumental-estrategicamente
prosseguidos, quando não explicitamente determinados pela «reprodução» material dos
Systeme)… e que os argumentos éticos (alimentados pelas formas de vida substantivas e por outras
tantas representações convencionais da «vida boa»)… venham a ser submetidos ao horizonte de
integração racional (e de interrelação simetricamente responsabilizante) que só o princípio do
discurso, agora significativamente «convertido» em princípio do direito ou princípio da democracia, há-de
estar em condições de garantir (das Diskursprinzip soll erst auf dem Wege der rechtsförmigen
Institutionalisierung die Gestalt eines Demokratieprinzips annehmen38).
Com um resultado também significativo em relação ao problema que nos ocupa: aquele
que nos permite ver nos princípios jurídicos tanto especificações directas desse princípio do direito
— elas próprias auto-subsistentemente reconhecidas como regras de procedimento,
consagradoras das condições contrafácticas da situação ideal de diálogo — quanto projecções
destas regras ou produtos da construção racional que estas asseguram, traduzíveis assim numa
universalização lograda de expectativas e na prescrição que lhe corresponde (em qualquer dos
casos sempre sob o modus de uma perspectiva de participante)39. O que significa preservar a
relação decisiva do continuum normas /princípios com a categoria de inteligibilidade sistema
(«sistema de normas» versus «configurações de valores»40)… mas também perceber que a mera
diferença de grau que pode ser atribuída a estes princípios (não certamente por acaso

35 Habermas, Faktizität und Geltung. cit., pp. 310-311.


36 «Es muß wenigstens möglich sein, Rechtsnormen zu befolgen, nicht weil sie zwingen, sondern
weil sie legitim sind…» (Habermas, «Zur Legitimation durch Menschenrechte», Die postnationale Konstelation.
Politische Essays, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1998, p. 172).
37 Faktizität und Geltung, cit., p. 285. Com o outro pólo da dialéctica (o da facticidade) a ser cumprido

pelas prescrições legislativas enquanto leis da coaccção... com a possibilidade de os seus destinatários verem
nestas limites-constrangimentos fácticos ao seu Handlungsspielraum (e de assim as pressuporem para um
cálculo estratégico, atento aos efeitos de um incumprimento possível).

38 Faktizität und Geltung, cit., p. 154


39 Ibidem, pp. 310 e ss.
40 Ibidem, p. 311.
10

especialmente experimentada quando os interpelamos na perspectiva dos direitos do Homem ou


da conexão direitos humanos/ direitos constitucionais… ou quando celebramos a juridicidade
intrínseca de tais direitos) corresponde certamente a uma intensificação da universalidade e
incondicionalidade deontológicas (do «sentido» absoluto) que caracteriza o dever ser de toda e
qualquer autêntica norma jurídica (um dever ser em que «aquilo que é devido exige ser igualmente
bom para todos»). Als Normen regeln (…) Rechtsprinzipien (und Grundrechte)(…) eine Materie im
gleichermäßigen Interesse aller41.

2.2. Mais fácil ainda é reconhecer a diversidade possível das respostas inscritas na
segunda linha — a dos princípios como intentio —, decerto porque o pressuposto
partilhado (compossível com diversas manifestações de uma tal intentio ou das práticas que
a manifestam) se reconduz a uma convergência da juricidade com a vinculação autoritária e
a institucionalização correspondente. Podemos dizer, com efeito, que se trata sempre de
defender que os princípios só constituem direito vigente (só adquirirem juridicidade) se se
manifestarem em critérios positivos vinculantemente institucionalizados (a começar decerto
pelas leis constiutucionais), recebendo destes (ou da autoridade-potestas que os sustenta) a
sua força jurídica (ou a dimensão constitutiva que a traduz)42. Sendo certo que defender
esta identidade não significa recusar tarefas práticas relevantes aos princípios que ainda não são
normas, entenda-se, que ainda não são jurídicos — e que assim se nos expõem como puras
intenções regulativas! —, porque significa já antes (e em contrapartida!) confiar-lhes duas
possibilidades operatórias (possibilidades que podem ser defendidas cumulativa ou
separadamente, se não concebidas como meras diferenças de grau):
(a) a possibilidade de os conceber como manifestações de exigências discursivas, de
expectativas sociais ou de compromissos comunitários (pré-jurídicos) capazes de orientar a
construção-produção de critérios jurídicos, às quais a política legislativa deverá ser assim
particularmente sensível («função regulativa para a normativa constituição do direito
positivo»);
(b) a possibilidade de os levar a sério como «indicações orientadoras» com um
carácter metodológico — indicações que, não constituindo como tal direito vigente,
podemos convocar como apoios-arrimos (se não como cânones ou regras secundárias de
juízo ou até mesmo como razões argumentativas) quando interpretamos uma norma legal ou
um critério jurisprudencial... e muito especialmente quando temos que enfrentar um «caso

41Ibidem, p. 312.
42 Compreensão que poderá ser alargada também aos precedentes vinculantes, ainda que com
dificuldades significativas resultantes de uma compreensão não apenas institucional mas também prático-
culturalmente distinta do problema da vinculação.
11

omisso» e resolver um problema (dito) de integração («função regulativa no direito positivo


constituído» e na prática de integração ou desenvolvimento deste)43.
Poderá dizer-se que o núcleo desta convergência está na assunção explícita do
contraponto regulativo /constitutivo. ou mais rigorosamente na acentuação do carácter
puramente regulativo do «uso hipotético da razão-Vernunft» ou daquele uso que convoca
«ideias transcendentais» (er ist nur regulativ, um dadurch, so weit als es möglich ist, Einheit in die
besonderen Erkenntnisse zu bringen44). Acentuar esta herança kantiana (na sua inteligibilidade
mais ou menos explícita) permitir-nos-á de resto ainda compreender que a primeira
exploração consciente e sistemática de uma concepção dos princípios como intentio se cumpra
plenamente na doutrina do direito justo de Stammler. Trata-se, com efeito — num contraponto
polarizador com a doutrina dos princípios de Bjerling (esta, como vimos, indissociável do
plano de determinação do conceito de direito e da teoria geral que lhe corresponde) —, de
vincular os princípios do direito justo à ideia de direito (de os expor como «desdobramentos»
ou «irrradiações»-«emanações» desta45), mas então também de reconhecer que estes
princípos, levados a sério na sua «validade incondicionada e universal», não contêm na sua
«concepçao-pensamento» (Gedanken) e na sua «conformação» (Fassung) ainda nada do
«específico conteúdo de um possível direito vigente ou de um direito posto» (gesetzes Recht),
como não «contêm» (bergen) em si mesmos nada que constitua a especificidade — a
identidade, a propriedade (Eigentümlichkeit)— de um autêntico direito (de um direito
historicamente condicionado e determinado), entenda-se, «nada que possa pertencer ou
competir ao conteúdo concreto das normas históricas»46. 47

43 As formulações citadas são ainda de Castanheira Neves: ver supra, nota 18.
44 Kant, Kritik der reinen Vernunft, na edição de Wilhelm Weischedel disponível na Suhrkamp
taschenbuch wissenschaft, vol. IV, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1974, p. 567. Trata-se evidentemente de
invocar o «Anhang zur transzendentale Dialektik» na sua primeira parte («Von dem regulativen Gebrauch der
Ideen der reinen Vernunft»)
45 «Die Grundsätze […] sind Ausstrahlungen der Idee von dem richtigen Recht und wollen dieser

eine tätige Verwerdung und Herrschaft möglich machen…» (Stammler, Die Lehre von dem richtigen Rechte,
Berlin, J. Guttentag Verlagsbuchhandlung, 1902, p. 276)
46 Ibidem, pp.276-278. Trata-se muito claramente de acentuar que, sendo tais princípios «derivados»

(«desimplicados») «directamente» da «ideia de direito» e sendo esta ideia encontrada (gefunden) na (ou através
da) «consciência crítica» (kritische Besinnung) da «possibilidade de uma compreensão unitária de todo o material
empírico do direito» (empirisches Rechtstoffes) —entenda-se, através da «reconstrução crítico-transcendental» da
possibilidade de conceber estes materiais unitariamente —, o papel-tarefa que lhes cabe há-de ser
precisamente o de «directivas» ou «directrizes do nosso pensamento» (Richtlinien des Gedankens) destinadas a
um «tratamento unitário» destes materiais (für die Bearbeitung dieses Stoffes) [Ibidem, p. 276].
47 Para falar do direito enquanto tal na perspectiva de Stammler tenho, com efeito, que mobilizar a

força autoritário-prescritiva do gesetzes Recht (direito posto e imposto) [Ibidem, pp. 21 e ss. («Der Begriff der
richtigkeit eines Rechtes»]. Na realidade, só poderei falar de um «direito justo» atribuindo a «qualidade» da
justiça-justeza (Richtigkeit) a um direito posto e ao seu conteúdo querido (Willensinhalt). Se o «direito justo» é
um «modo» (uma «espécie») de «direito postivo» (legislativamente prescrito, produzido por uma voluntas),
então o direito imposto (gesetzte) «divide-se, na perspectiva das características do seu conteúdo, em duas
classes»: «ou é justo ou não é justo; e o direito justo é um direito positivo, cujo conteúdo querido (criado pela
vontade) possui a qualidade-característica (Eigenschaft) da justiça ou justeza». De tal modo que possamos
12

Reconhecido este ponto de partida e a distribuição intencional-regulativo (pré-jurídico)


/autoritário-constitutivo (jurídico) que este assegura, dir-se-ia que a convergência não fica por
aqui. Que há ainda pelo menos que acresentar ao segundo pólo a resposta-solução
constitucional, entenda-se, a acentuação de que a emergência dos princípios — a sua
determinação constitutiva tanto como princípios de direito quanto como princípios do
direito48 (sem que estes problemas afinal aqui se distingam um do outro!) — se identifica
(se confunde) com a objectivação prescritiva (e com a dimensão de vigência e de eficácia,
se não de realidade) que converte as intenções e os compromissos (eventualmente também
os direitos morais) em causa em princípios (e direitos) constitucionais49 (constitutional rights are rights
that have been recorded in a constitution with the intention of transforming human rights into positive law
(…); human rights qua moral rights (…) exist if they are justifiable (…) on the basis of discourse
theory50).. Introduzir esta especificação significa com efeito reduzir o problema dos limites
de validade das normas legais, na sua inteligibilidade puramente jurídica, a um problema de
constitucionalidade… e ver neste o problema metodológico central, o problema metodológico
por excelência («Quando uma ordem jurídica (…) atribui aos princípios um nível
constitucional, então basta que a norma seja inconciliável com o princípio para que lhe
possa ser recusada validade…»51). Não decerto necessariamente para rejeitar a
possibilidade de situações-limite em que a validade, (indiscriminadamente?) iluminada
como moralidade, imponha ela própria auto-subsistentemente a sua perspectiva (e os seus
limites)… mas para acentuar que tal possibilidade, se vier porventura a ser admitida, há de
sempre corresponder a uma assimilação ou a uma inclusão (mais ou menos excepcional) de

concluir que «o direito justo e o direito prescrito se comportam um em relação ao outro como espécie e
género» (Danach verhält sich richtiges und gesetzes Recht zu einander, wie einzelaart zur Gattung) [Ibidem, p.22]. É certo
que Stammler nos diz [Ibidem, pp. 213 e ss. («Bedeutung des Grundsätze»)] que «os princípios têm um
significado constitutivo» (sind von konstitutiver Bedeutung) relativamente às «regras do comportamento da
comunidade» (bei der Regeln des Verhaltens der Gemeinschaft); este significado diz respeito porém apenas ao
«fornecer da qualidade da jutiça ou justeza» (auf das Beschaffen der Eigenschaft der Richtigkeit) e não à «proposição
materialmente determinada» (dagegen nicht auf material bestimmte Sätze selbst). Como «em si mesmos não
produzem nada» (von sich aus bringen sie nichts hervor), «os princípios têm que esperar pelo alimento-Zuführung do
material histricamente realizado». Só quando «o material é fornecido e está pronto e à mão no seu
crescimento natural», é que os princípios são chamados a dirigi-lo (richten) e a determiná-lo (bestimmen)
[Ibidem, pp. 214-215].
48 Esta é uma distinção explorada por Castanheira Neves na citada lição-síntese e que vemos recriada

por Fernando Bronze nas Lições de introdução ao direito, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, pp. 629 e
ss., 638-639.
49 Para o dizermos já recorrendo à conhecida distribuição de Alexy em «The Dual Nature of Law»,
th
IVR 24 World Congress’s Papers (Plenary Sessions), Beijing 15-20 September 2009 («Global Harmony and Rule of
Law»), pp. 257 e ss., 265-274 («The Reconciliation of the Ideal and the Real») [texto entretanto publicado na
Ratio Juris, Volume 23 Issue 2 (June 2010), pp. 167-182]. Para uma consideração mais atenta desta distribuição
de Alexy (com as referências bibliográficas indispensáveis), remeto-me para as reflexões que propus em
«Law’s Cultural Project and the Claim to Universality or the Equivocalities of a Familiar Debate» (a publicar
em breve).
50 Alexy, «The Dual Nature of Law», cit., p.271.
51 Larenz, Richtiges Recht. Grundzüge einer Rechtsethik, München, Beck, 1979, pp.20-21.
13

intenções pré-jurídicas (como tal devidamente identificada nos seus pressupostos!) —


assimilação ou inclusão que se torna necessária para «desapossar» a norma em causa da sua
obrigatoriedade (para deixar de a legitimar com a Geltungskraft que beneficia a «ordem
jurídica como um todo»)52 e que assim mesmo deverá discutir-se para além das fronteiras
do jurídico (invocando uma experiência de injustiça crassa ou intolerável e o argumento ou
tertium comparationis ético-filosófico ou ético-político que a justifica).
Ponto de chegada que não exclui a variedade de intenções, que antes certamente a
potencia… e isto na medida em que se abre a contextos de inteligibilidade muito distintos (e a
possibilidades infinitas de gradação). Decerto porque as intenções pré-jurídicas a ter em conta
(responsáveis por mais ou menos consequentes argumentos de injustiça) hão-de poder dirigir-se-
nos…
(a)… tanto como formas puras (capazes de proporcionar a qualidade do normativamente
justo aos materiais prescritos ou historicamente determinados),
(b)… quanto como exigências materiais imputáveis a programas políticos ou a uma
compreensão politicamente comprometida do homem e da prática (se não já a uma political
morality);
(c) tanto como compromissos substantivos ético-comunitários (marcados pela
particularidade dessas comunidades e dos seus ethos narrativos),
(d) quanto como exigências (se não pragamata) de uma moralidade universal
«descontextualizada» (procedimentalmente concebida)…
Bastando-nos a distribuição por estes quatro eixos (e a concentração exemplar dos seus
núcleos, na irredutibilidade das suas concepções) para perceber que os «sinais» desta
compreensão dos princípios — combinando a herança da doutrina do direito justo com uma
assimilação (selectiva!) de mediações heterogéneas (as de Radbruch e Larenz desde logo, mas
também as de Ryffel e Kaufmann… sem excluir a lição do «middle way» de Hart!) — se
organizam hoje sobretudo em torno dos contrapontos juridicidade /moralidade, particular /universal,
ou se quisermos (para o dizermos, et pour cause, com Alexy!) discutindo uma possível tese de
moralidade (the necessary connection between law and some morality or another)53. Decerto porque o
problema passa a ser o da conexão (ou do tipo de conexão) que uma certa experiência do direito
— concentrada na eficácia performativa e na contingência prático-contextual das suas prescrições (e
precisamente porque se fecha nestas ou na identidade que estas garantem!) — deverá (e até que
ponto) estabelecer com uma possível experiência da moralidade —, como passa a ser afinal
também o da identificação desta moralidade ou da sua relevância — substantiva ou

52Ibidem, p.21.
53Alexy, Begriff und Geltung des Rechts, Freiburg / München, Karl Alber Verlag, 1994, cit. na última
versão deste texto, aquela que apareceu como The Argument from Injustice. A Reply to Legal Positivism (2001-
2002), paperback edition, Oxford University Press, New York, 2010, p.75 [Não se trata, com efeito, apenas
de uma tradução (de resto da responsabilidade de Bonnie e de Stanley Paulson), trata-se também de uma nova
versão, com diversas alterações de pormenor propostas pelo próprio Alexy].
14

procedimental, particular ou universal, ético-político ou filosófico-cultural. Problema que, assim


enfrentado, nos expõe a um espectro amplo de respostas: não decerto porque àquela
compreensão dos princípios pré-jurídicos enquanto intenções puramente regulativas
(aproblematicamente taken for granted) não corresponda aqui invariavelmente um tratamento dos
princípios jurídico-constitucionais enquanto normas, ou mais rigorosamente, uma defesa do
«continuum» princípios constitucionais / normas baseada na categoria de inteligibilidade imperativo54
— já sabemos que corresponde! —, antes porque este tratamento e a defesa correlativa (com
distintas experiências dos limites a ter em conta) são cultivados em territórios distintos
(envolvendo interlocutores inconciliáveis): bastando-nos ter presente que o postulado da
juridicidade-constitucionalidade se pode cumprir invocando versões oponentes de neo-
constitucionalismo (mobilizando num dos pólos representações discursivo-procedimentais da
constitucionalidade, contrapondo-lhe no outro concepções substantivo-dirigentes), na mesma
medida em que a exigência de «incluir» (de «incorporar») intenções pré-jurídicas na determinação
do «conceito de direito» (e de assim mesmo as tornar presentes no «continuum» princípios
constitucionais/normas, salvaguardando a inteligibilidade dos princípios como intentio) pode ser
defendida (ainda que com argumentos e soluções inconfundíveis!) tanto por uma compreensão
positivista quanto por uma compreensão não positivista (positivismo e não positivismo estes que
precisamente se dizem inclusivos)55…

3. Identificados estes dois caminhos (salvaguardada também a pluralidade das vozes


que os frequentam!), urge voltar à pergunta inicial: precisará a actual circunstância, na sua
irrecusável exigência de reinvenção do discurso jurídico, de preservar o continuum normas
/princípios — quer se trate de afivelar em alternativa aquelas duas máscaras [2.1. /2.2.], quer
se trate de as sobrepor selectivamente? A resposta que proponho, invocando o diagnóstico
de uma situação-limite e as tensões irredutíveis que a dilaceram — tensões que expõem a
celebração-consagração prescritivamente feliz da pluralidade à urgência de uma vocação
integradora —, é claramente negativa: não precisamos de uma compreensão dos princípios
como normas… precisamos pelo contrário de romper com o continuum normas /princípios
(reconhecendo sem equívocos quais são as intenções que lhe correspondem ou que este
pretende assegurar).
Contendo-me nos desafios assimilados pelas referidas máscaras (e no cruzamento
de argumentos dogmáticos e metadogmáticos que iluminam tais desafios), posso dizer com

54 Para um esclarecimento da distinção normativística entre norma e imperativo, ver pp. de Castanheira

Neves cits. supra, na nota 24.


55 Para além de Alexy, «The Dual Nature of Law», cit., pp. 267-270, ver exemplarmente Jules

Coleman, The Practice of Principle, Oxford University Thesis, 2001, pp.103 e ss. («Inclusive Legal Positivism») e
Matthew H. Kramer, Where Law and Morality Meet, Oxford University Press, 2004, pp. 2 e ss. («Inclusivism,
Incorporationism, and Exclusivism»).
15

efeito que importa rejeitar a pureza e a unidade deontológicas defendidas pela primeira linha
[2.1.] — a auto-subsistência da interrelação discursivo-proposicional que a alimenta e a
separação entre determinação-interpretação em abstracto / concretização (ou pelo menos entre níveis
de concretização) que a justifica — , sem deixar por isso de mobilizar constitutivamente a
categoria sistema e de conferir aos princípios uma inteligibilidade autonomamente jurídica
— antes libertando aquela categoria da sua unidimensionalidade normativística e esta
pretensão de autonomia da conjugação necessária com pretensões de universalidade e de
auto-subsistência racionais56. Como importa também ainda rejeitar a distribuição princípios
«morais» com carácter regulativo / princípios jurídico-constiucionais vinculantes à qual, como vimos, a
segunda linha hoje nos conduz [2.2.] — e com esta também a compreensão da viragem
teleológica a que tal desenvolvimento nos expõe (aquela que permite que, no tratamento dos
princípios como normas, se sobreponham as máscaras-perspectivas dos princípios como valores e
como comandos de optimização!57) —, sem deixar por isso de apostar no sentido
normativamente axiológico das exigências-compromissos que constituem tais princípios e
de simultaneamente reconhecer o seu carácter vinculante — antes libertando as
experiências daquele sentido e desta vinculação (e desta como positividade-vigência) das
representações (aproblematicamente) pré-determinadas que lhes associam respectivamente
uma conformação pré-jurídica e uma conexão necessária com a autoridade-potestas (e com
a prescrição-imperativo que a traduz).
Opções-apostas que nos conduzem a uma terceira linha de compreensão dos
princípios (precisamente aquela que Castanheira Neves nos ensina a reconhecer invocando
uma concepção dos princípios como jus): uma linha de desenvolvimento que podemos dizer
simultanea e incindivelmente preocupada…
(a) com o sentido metodologicamente específico da realização dos princípios
(princípios assim mesmo responsabilizados por uma dimensão-estrato, normativamente
inconfundível, de um sistema jurídico pluridimensional)…

56 O que não exclui (antes pelo contrário!) a relevância de classificar os princípios na perspectiva da

posição que estes ocupam no sistema. Para uma exploração da distinção entre princípios positivos, transpositivos e
suprapositivos assumida por Castanheira Neves [na referida lição-síntese, mas também na Metodologia Jurídica.
Problemas fundamentais, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, pp.135 e ss., 188 e ss.], veja-se Fernando Bronze,
Lições de Introdução ao direito,cit., pp. 632 e ss., e a exemplificação que proponho nos Sumários desenvolvidos
de Introdução ao Direito II, Coimbra 2009, disponível no material de apoio da página on line da respectiva
disciplina, https://woc.uc.pt/fduc/, pp. 99-104.
57 Ainda exemplarmente Alexy: ver a síntese proposta em «Sistema jurídico, principios jurídicos y

razón práctica» (conferência de San Sebastián publicada em castelhano), Doxa, número 5, 1988, pp. 139 e ss.,
145 (2.2.2.), 146 e ss. (2.2.4).
16

(b)… e com a exigência de os levar a sério como objectivações prático-


normativamente imediatas da validade juridicamente relevante — se não mesmo como
compromissos constitutivamente práticos da forma de vida que distingue o direito…
Uma linha tão diversificada quanto as anteriores? Podemos dizer que sim. Na
medida decerto em que (com equilíbrios distintos conferidos a estas duas preocupações ou
às tematizações correspondentes) a descobrimos frequentada por Esser e Bydlinski, Canaris
e Dworkin… e muito especialmente cultivada — porque explicitamente reconstruída, na
sua especificidade e nas suas diferenças (muito significativamente… nas diferenças que,
sem equívoco, a separam das outras duas linhas!) — pelo jurisprudencialismo de Castanheira
Neves. Tendo aqui e agora que nos bastar duas palavras58 para acentuar, como que a traço
grosso, essas diferenças… ou pelo menos para sublinhar o modo como tais diferenças (e a
especificidade que estas compõem) correspondem recto itinere às exigências que acabámos de
assumir.
α) Trata-se desde logo de afirmar uma compreensão axiológica dos princípios… — e
de associar esta à reinvenção inconfundível de um teleologismo de valores e de fins… —,
reconhecendo simultaneamente que a intenção à validade que assim se convoca, longe de
poder associar as suas significações quer a uma necessidade ôntica (ahistoricamente
concebida) quer a uma pré-determinação em abstracto, mas longe também de ter que as
entregar à contingência de um consenso a posteriori, se cumpre levando a sério a
autodisponibilidade (e autotranscendentalidade) prático-cultural do seu projecto… e então
e assim confiando-nos às possibilidades-desafios de um mundo prático e à circularidade
constitutiva que o iluminam59…

Uma circularidade que há-de estar em condições de assumir a validade em causa


responsabilizando-a (simultânea e incindivelmente) como um contexto-horizonte de sentido
(normativamente condutor) e como um correlato (permanentemente reconstruído ou
reinventado) de uma praxis de realização… mas então também uma circularidade que nos obrigue
a reconhecer nesta praxis — e no «pensamento» que a «pensa» ou na auto-reflexão que este lhe
proporciona… e muito especialmente no discurso metodológico que (como patamar destes

58 Para um desenvolvimento menos rudimentar (com a identificação imprescindível das obras de


Castanheira Neves a ter em conta neste núcleo temático), remeto-me para a reconstituição que propus em
«Jurisprudencialismo: uma resposta possível num tempo de pluralidade e de diferença?», in Nuno Santos
Coelho, Antônio Sá da Silva (ed.), Teoria do Direito. Direito interrogado hoje – o Jurisprudencialismo: uma resposta
possivel? Estudos em homenagem ao Senhor Doutor Antonio Castanheira Neves, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2010,
pp.146 e ss. (3.).
59 Ibidem, pp. 102 e ss., 151 e ss.
17

pensamento) criticamente a reconstrói60 — uma dimensão constitutiva da primeira (e da


vocação integradora que a onera, se não mesmo já do o sentido de juridicidade que esta
fundamenta)61.

ß) Trata-se depois de reconhecer que a dialéctica valores /princípios, cumprida na


perspectiva do projecto prático-cultural do direito — exigindo uma emergência (histórica)
dos segundos como fundamentos de uma condição específica de comparabilidade-tercialidade —,
nos remete para um insuperável território de fronteira. Aquele que nos expõe a uma
conexão-tensão entre experiências de comunidade distintas (e outros tantos contextos, ditos
geral e especificamente jurídico) — se quisermos a uma conexão entre dois diferentes modos
de reivindicar-construir um sentido comunitário62. Mas também e muito especialmente
aquele que nos confronta com um processo permanente de constituição-objectivação-
realização: aquele que experimenta as objectivações normativas (normativamernte
materiais) dos princípios enquanto as submete às exigências simultâneas de uma dimensão
axiológica (histórico-problematicamente aberta) — dimensão que postulam (cuja
experiência os constitui) e que no entanto não esgotam (porque esta os excede sempre nas
suas possibilidades normativas) — e de uma dimensão (vocação) dogmática desoneradora
(«estabilizadora») — dimensão que os absorve como seu primeiro estrato e a cujo
desenvolvimento-sistema garantem por sua vez o dinamismo constitutivo de um normans63.
γ) Trata-se enfim de mergulhar neste sistema, levando a sério a distinção fundamentos
/ critérios64… e tal distinção na sua relevância metodológica (indissociável da dialéctica de
estabilização-realização sistema/ problema)65. Ao assumir uma compreensão dos princípios

60Ver muito especialmente Castanheira Neves, Metodologia jurídica, cit., pp. 9 e ss. («O problema

metodológico-jurídico»).
61 Cfr. a síntese proposta em «Pensar o direito em tempo de perplexidade», in João Lopes Alves et

al., Liber Amicorum de José de Sousa e Brito, cit., pp.18-22.


62 Para uma compreensão da relação entre estes dois contextos e uma oportunidade única de

experimentar o «absoluto histórico» dos princípios normativo-jurídicos (e o sentido da


autotranscendentalidade prático-cultural que se leva a sério no mundo do direito), importa ter presente a
analítica da intencionalidade normativa (em três níveis ou degraus) que Castanheira Neves tem desenvolvido
ao invocar uma certa consciência jurídica geral. Analítica que não iremos considerar, para cujas estações principais
no entanto imediatamente nos remetemos. São estas: «A revolução e o direito. A situação de crise e o sentido
do direito no actual processo revolucionário», Digesta – escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua
metodologia e outros, Coimbra,Coimbra Editora, 1995,vol. 1º, pp. 207-222 (11.), «Justiça e direito», ibidem, 273 e
ss., «A unidade do sistema jurídico: o seu problema e o seu sentido (diálogo com Kelsen)», Digesta,volume
2º,cit., pp. 174-179, «Fontes do direito», ibidem, pp.58-67 («O momento de validade»), Metodologia Jurídica, cit.,
pp. 278 e ss. , «O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro», in Avelãs Nunes /
Miranda Coutinho (ed.), O direito e o futuro. O futuro do direito, Coimbra, Almedina, 2008, pp. 63-65.
63 Metodologia Jurídica, cit., pp. 155 e ss.
64 Já assim no Curso de Introdução ao estudo do direito. Lições proferidas a um curso do 1º ano da Faculdade de

Direito de Coimbra, no ano lectivo de 1971-72, cit., pp.331 e ss («Os “princípios normativos” não são “normas”»).
65 Trata-se de autonomizar no fundamento a racionalização justificativa da inteligibilidade de um certo

domínio ou compromisso prático… e neste sentido de lhe atribuir o papel de um warrant argumentativo
18

normativos como autêntico direito vigente — ao reconhecer nestes os fundamentos


constitutivos da validade do direito (em todos os planos de afirmação e experimentação da
juridicidade) —, a reconstituição jurisprudencialista não só nos expõe, efectivamente, a uma
experimentação permanente do excesso normativo dos princípios — enquanto intenções
constitutivas de um normans (inesgotáveis nos critérios e nas realizações que fundamentam)
— como também exige que ao problema do tratamento destes fundamentos corresponda
uma experiência de constituição-manifestação-realização inconfundível.
γ)’ Significa isto beneficiá-los com uma presunção de validade e iluminar assim o seu
modus específico de vigência e a vinculação que lhes corresponde66.
γ)’’ Significa isto depois levar a sério esta vinculação… exigindo a convocação dos
fundamentos como dimensão imprescindível da experimentação dos critérios — o que, no
plano das prescrições legislativas, corresponde à exploração decisiva de uma face de ratio
juris (com as implicações metodológicas que esta determina)67.

autonomamente pressuposto (o fundamento justifica uma conclusão racionalmente plausível mas não nos
propõe uma solução ou tipo de solução, não nos dispensando assim do esforço discursivo de a obter). Como
se trata ainda de invocar o critério como «operador» («técnico») disponível, um operador que pode ser
imediatamente convocado para resolver um determinado tipo de problemas e (ou) que pré-esquematiza a
solução (exigindo não obstante um esforço discursivo de concretização-realização). Como se os critérios se
nos oferecessem como «objecto(s) da interpretação» e os fundamentos como os «elementos de concludência
racional que possibilitam, condicionam ou sustentam a própria interpretação». O que nos permite reconhecer
que os princípios normativos (prolongados por algumas explicitações-objectivações da doutrina) se nos
ofereçam (e devam ser tratados metodologicamente) como fundamentos, devendo em contrapartida as normas,
os precedentes ou prejuízos jurisdicionais e a maior parte dos modelos dogmáticos ser assumidos e
experimentados como critérios. Veja-se o desenvolvimento que (mobilizando o contributo de Drucilla
Cornell e Adela Cortina) proponho em «Jurisprudencialismo: uma resposta possível num tempo de
pluralidade e de diferença?», cit., pp. 159-161 (3.3.1.1.)
66 Trata-se com efeito de distinguir os diversos estratos do sistema (e de lhes conferir modos de

vinculação-vigência institucionalmente inconfundíveis). O que implica surpreender a regressividade


problemático-constituenda deste sistema… e reconhecer um movimento partilhado (determinado pela
prioridade metodologicamente constitutiva do caso-problema ou pela perspectiva que este assegura): aquele
movimento que se cumpre levando a sério diversos tipos de presunções (ditas de validade, autoridade,
racionalidade e justeza) e inscrevendo nelas (ou na assimilação dos tipos de problemas experimentáveis) outras
tantas possibilidades (metodologicamente diferenciadas) de as refutar-ilidir (e de assumir os explícitos ou
apenas implícitos ónus de contra-argumentação). Com os princípios a beneficiarem de uma presunção de validade e a
vincularem-nos enquanto validade, as normas a beneficiarem de uma presunção de autoridade e a vincularem-
nos enquanto autoridade (político-constitucional), o direito da jurisprudência judicial a beneficiar de uma
presunção de justeza e a vincular-nos a uma realização justa (prático-concretamente adequada) e à casuística que
a objectiva, o direito da jurisprudência doutrinal enfim a beneficiar de uma presunção de racionalidade e a
vincular-nos prático-culturalmente nos limites discursivos da sua concludência ou fundamentação críticas. Neste
sentido ver Castanheira Neves, «Fontes do direito», cit., pp. 82-90 (4) e 5)), Metodologia Jurídica, cit., pp. 154 e
ss., «O direito interrogado pelo tempo presente na perspectiva do futuro», cit., pp. 66-67(b)). Ver também. o
desenvolvimento desta compreensão jurisprudencialista do sistema em geral e desta tectónica de presunções
em particular assumido por Fernando José Bronze em Lições de Introdução ao direito, 2ª edição, Coimbra,
Coimbra Editora, 2006, pp. 607-681… e ainda aquele que propus nos Sumários desenvolvidos de Introdução ao
Direito II, Coimbra 2009, disponível no material de apoio da página on line da disciplina,
https://woc.uc.pt/fduc/, pp. 86-123.
67 De tal modo que a prescrição legislativa nos apareça a respeitar os limites de validade impostos

pelos princípios normativos (dirigindo-se-nos como uma objectivação possível, entre outras objectivações
possíveis, das intenções destes princípios). O que não é senão exigir que a «decisão dogmática» que constitui a
norma se mostre «assimilável (ainda que só a posteriori) por um juízo-judicium» singular e concreto (capaz de
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γ)’’’ Significa isto também testemunhar uma especialíssima consonância prática entre
os princípios que se invocam como compromissos e projectos de ser ou de ser-com-os-outros (a
cuja orientação-condução nos submetemos) e o «conteúdo normativo-concreto» da
realização destes compromissos (indissociável dos problemas-controvérsias e do novum
irredutível que estes introduzem)68.
γ)’’’’ Como significa ainda e por fim ter presente que o percurso de emergência e
de objectivação constitutiva dos princípios (numa permenente reinvenção dos seus conteúdos
que é também indissociável da força normativa ou da justiciabilidade que lhes corresponde)
se cumpre sempre envolvendo distintas práticas de estabilização-realização (e a relação
circular com o novum problemático que cada uma delas distintamente estabelece): práticas que
não são evidentemente apenas aquelas que correspondem ao exercício contingente da
voluntas legislativa (não obstante a importância exemplar da mediação constitucional!), que
são também e decisivamente aquelas que as jurisprudências judicial e dogmática (com
outros tempos e outras dinâmicas) vão asumindo… como o são também e ainda aquelas
que as «situações institucionais» e os cânones das comunidades dos juristas (e estes como
dimensões imprescindíveis de uma realidade jurídica levada a sério como estrato do sistema)
permanentemente reinventam69.
Sendo certo que estas três últimas anotações nos ajudam enfim convergentemente a
reconhecer uma institucionalização particularmente expressiva da relação entre a
pressuposição integradora de um horizonte de validade e a abertura permanente a uma
pluralidade de contextos de realização, construída por um inconfundível mundo prático. É em
nome da especificidade deste mundo e do desafio de apostar (criticamente) na continuidade
do seu projecto cultural (abrindo essa crítica a todas as problematizações indispensáveis) que
não só temos que rejeitar uma experimentação das normas-regras que as prive da sua ratio
juris [γ)’] — uma experimentação que, insistindo na «radicalização binária regras/
princípios, interpretação/concretização-ponderação» admita por exemplo que «a

tratar-solucionar o problema-caso), juízo decisório no qual «a prescrição» convocada como critério «revele
uma racionalidade de fundamentação normativa (a racionalidade que a intenção de validade implica)»
(Metodologia jurídica, cit., p.150). Para compreender plenamente esta exigência, importa de resto ter presente
uma dialéctica de duas perspectivas e das dimensões ou faces da norma que as traduzem. Que perspectivas?
As da ratio legis e ratio juris. Sendo certo que a interrogação da ratio legis nos concentra na procura do motivo-
fim que determinou a decisão da norma — na procura da sua justificação político-social e teleológico-
estratégica (se quisermos na reconstiuição do seu argument of policy) —... e que a problematização da ratio juris
nos obriga já a confrontar esta teleologia com a coerência normativa dos princípios (e dos correspondentes
arguments of principle), na mesma medida em que nos onera com a responsabilidade constitutiva de «transcender
aquela teleologia por estes fundamentos» [Ibidem, pp. 184-195; ver também «Fontes do direito», cit., pp.75-79 (o
problema dos limites normativos da lei).]
68Castanheira Neves, Metodologia jurídica, cit., pp. 203-204
69 Remeto-me para a reconstutição que propus em «Jurisprudencialismo: uma resposta possível num

tempo de pluralidade e de diferença?», cit., pp. 164-169.


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interpretação e aplicação das regras “liberta” o intérprete da problemática política dos


“valores” inevitavelmente presente na concretização ou ponderação dos princípios»70 —,
como também e ainda devemos rejeitar uma concepção dos princípios que persista em
sacrificar a uma estrutura binária, mais ou menos inequivocamente assumida… e que assim
mesmo os conceba e experimente como normas. O que não é senão concluir., mais
rigorosamente embora, que a reabilitação dos princípios falhará (frustará as suas promessa
mais estimulantes) se os tratarmos (se persistirmos em tratá-los) como critérios… ou como
critérios mais indeterminados…

Ainda que tratá-los como critérios mais indeterminados possa já significar — nos
termos explicitamente assumidos por alguns desenvolvimentos recentes da concepção dos
princípios enquanto ratio [2.1]— ser sensível a uma certa unidade dinâmica de densificação e
aos degraus (racionalmente auto-subsistentes) que a traduzem (degraus onde reconhecemos
invariavelmente normas!); ou ainda que tratá-los como critérios possa, em alternativa,
significar também já — num território que, como sabemos, combina um não positivismo
inclusivo com uma concepção dos princípios enquanto intentio [2.2.] — fazer corresponder o
tratamento dessa indeterminação a uma pragmática de optimização de comandos (iluminada, e neste
sentido também limitada, por uma concepção moral, universal e procedimental dos «direitos
humanos»)…

Reconhecer que os princípios não são critérios (nem devem ser tratados como tal)
significa evidentemente acentuar pela negativa a sua plena identidade como fundamentos: mas
então perceber claramente que, como tais fundamentos não antecipam (não prevêem, nem
exemplificam, nem reconstroem reflexivamente) situações-problemas (tipos ou exempla ou
modelos de situações-problemas)… na mesma medida em que não propõem (não
esquematizam, nem exemplificam, nem reconstituem racionalmente) soluções, alternativas
ou tipos de soluções plausíveis para estes problemas — ao contrário precisamente do que
acontece, respectivamente, com as normas legais, os juízos-exempla jurisdicionais e os
modelos dogmáticos! —, não é admissível pensar-se que as significações das suas
exigências ou dos seus compromissos práticos possam ser determinados previamente (e
muito menos submetidos a uma interpretação em abstracto). Estas exigências ou
compromissos, com efeito, só fazem sentido (só atingem a sua integridade normativa, só
prosseguem a intencionalidade à validade que os distingue!) realizando-se — entenda-se,

70Canotilho, «Princípios. Entre a sabedoria e a aprendizagem», cit., pp. 386-387 (denunciando


precisamente o risco desta compreensão «postivista» associável à tradução metodológica dos «esquemas
principiais»)
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transformando-se… e transformando-se inevitavelmente em cada nova experimentação


concretizadora. O que nos obriga decerto a experimentar um continuum (sem soluções) de
constituição-manifestação-realização — exemplarmente distinto daqueles que os critérios
legislativos, jurisprudenciais ou dogmáticos nos impõem71 —… mas então e assim também
a descobrir um outro tratamento da singularidade. Um tratamento que não pode (nem deve)
ficar prisioneiro de uma assimilação da pluralidade previamente decidida ou experimentada
(e da violentação-domesticação do novum que todos os critérios, em termos mais ou menos
drásticos, representam)72… como não pode (nem deve) diluir-se numa celebração
incondicional desta singularidade ou do absoluto incomparável que a radicaliza. Que antes
e em contrapartida deve converter (assimilar) tal singularidade numa experiência judicativa
de concretização. O que não é senão submetê-la ao suum cuique tribuere de uma tercialidade
inconfundível73…
Coimbra, Maio de 2011

71 «[A] ausência de hipótese-previsão nos princípios ou a sua indeterminação referencial, já que

essencial para eles é só o seu regulativo compromisso axiológico e prático, não impõe apenas que a sua
normatividade se determine realizando-se, solicita ainda uma compreensão prática (não simplesmente
dogmática ou lógica) dessa sua normatividade só possível de atingir-se mobilizando a dialéctica entre o seu
regulativo, que convoca à realização , e a prática (de acção e judicativa) em que encarne e a manifeste
realizada. Se as normas são auto-suficientes no critério abstracto que hipoteticamente prescrevem, os
princípios são fundamentos “para tomar posição perante situações, a priori indeterminadas, que venham a
determinar-se concretamente” (Zagrebelski). Em síntese: as normas legais esperam a sua aplicação e em
último termo visam-na, mas podem compreender-se e determinar-se sem ela, ou seja, na sua subsistência
abstracta; não assim os princípios, já que o seu verdadeiro sentido não é determinável em abstracto, e só em
concreto, porque só em concreto logram a sua determinação, e se lhes pode atingir o seu autêntico relevo...»
(Castanheira Neves, O problema actual do direito. Um curso de filosofia do direito, policop., terceira versão, cit., pp.
59-60).
72 Partindo embora de um horizonte radicalmente distinto (comprometido com a ética da alteridade e

com a desconstrução como filosofia) — e não deixando por isso de preservar com alguma ambiguidade os topoi da
indeterminação e das diversas alternativas de resposta —, Drucilla Cornell chega a uma exigência de
diferenciação paralela (tanto mais exemplar precisamente quanto sustentada em pressupostos que
previsivelmente a levariam a trilhar um outro caminho). Tratando-se muito claramente de confrontar a
pretensão de auto-suficiência e auto-subsistência dos critérios-rules e o modo como esta legitima uma «violência contra a
singularidade» — legitimação que encontrará na compreensão do positivismo jurídico (latissimo sensu) a sua
consagração-forma (ontologicamente totalizante) — com a pretensão de universalidade dos princípios e com o
modo como esta é (ou deve ser) histórico-pragmaticamente assumida (as for which principles we adopt within the
nomos (…) of the law (…), we are left with the process of pragmatic justification based on the ability of a principle to
synchronize the competing universals embodied in the nomos) [The philosophy of the limit, London, Routledge, 1992, p.
106]. Princípios que, não deixando de perturbar a pureza do encontro ético e de «violentar» a diacronia do
jogo das significações (principles inevitably categorize, identify, and in that sense violate différence by creating analogies
between the like and the unlike) [ibidem, 105] nos aparecem não obstante a orientar uma prática racional de
«redução» da violência (e de respeito pelas diferenças). Decerto porque as exigências-compromissos que os
distinguem vão ser experimentadas na perspectiva de cada situação-problema. Sem impor o «exacto caminho
a percorrer», antes assumindo um potencial de fundamentação que supera as pretensões da resposta única. Mas
então e muito simplesmente excluindo as respostas que naquele contexto pragmaticamente reconhecível — e
naquele horizonte historicamente determinado — devam dizer-se «incompatíveis» com a realização do seu
compromisso. We can think of a principle as the light that comes from the lighthouse, a light that guides us and prevents us
from going in the wrong direction [Ibidem, 106].
73 Ver a síntese que proponho em «Law’s Cultural Project and the Claim to Universality…», cit.,

ponto 3.

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