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APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO (DA JURISPRUDÊNCIA DOS


CONCEITOS À JURISPRUDÊNCIA DOS PRINCÍPIOS) | Notes of Law
Methodology, from the "Concepts jurisprudence” up to the “Pr...

Method · March 2022


DOI: 10.13140/RG.2.2.13434.98248

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1 author:

Nuno Miguel Morujão


University of Lisbon
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APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO1

NUNO M. MORUJÃO2

Porto, 27 de março de 2022.

1 Excerto de (PDF) ESTUDO DO AC. 262/2015-T DO CAAD SEGUNDO A JURISPRUDÊNCIA DOS PRINCÍPIOS:
METODOLOGIA JURÍDICA, JUSTIÇA VERSUS LEGALIDADE, HIPÓTESE DE ADMISSIBILIDADE DE
INTEGRAÇÃO E BREVE REFERÊNCIA À INTERPRETAÇÃO (ECONÓMICA), NO DIREITO FISCAL
(researchgate.net), também disponível em (PDF) Estudo do Acórdão 262/2015-T do CAAD segundo a Jurisprudência dos
Princípios: Metodologia Jurídica, Justiça versus Legalidade, Hipótese de admissibilidade de integração, e breve referência
à interpretação (económica) no Direito Fiscal | Nuno Miguel Morujão - Academia.edu.
2 Jurista. Economista.
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

Resumo

Estes apontamentos de metodologia do Direito são parte integrante do estudo de um Acórdão, em


que foi dirimido um litígio tributário, no qual aprioristicamente as partes sustentam os seus interesses
contrapostos invocando (a Autoridade Tributária) o “princípio da legalidade” e (o Contribuinte) o
“princípio da justiça”.
Nesse estudo de Acórdão, o objetivo da abordagem adotada foi a mobilização de conhecimentos
atinentes à Metodologia do Direito, de modo que o estudo do Acórdão fosse teoricamente informado
pela doutrina atinente à “jurisprudência dos princípios” (ou “jurisprudência dos valores”). Incluímos
no estudo uma síntese da evolução histórica a que assistimos desde o séc. XIX das conceções de Direito
e suas implicações metodológicas, desde a “jurisprudência dos conceitos” à “jurisprudência dos
princípios”.

Estes apontamentos consistem resultam sobretudo do estudo das seguintes referências:

- CORTÊS, A., Jurisprudência dos princípios. Ensaio sobre os fundamentos da decisão


jurisdicional, UCE, 2010.
- LARENZ, K, Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Goulbenkian, 2014.

2
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

Índice
Lista de siglas ........................................................................................................................... 4
I- Enquadramento teórico atinente à jurisprudência dos princípios ......................................... 5
1. Evolução doutrinária até â “jurisprudência dos princípios” ........................................................ 5
2. Os limites das normas para as decisões jurisdicionais .............................................................. 14
3. A afirmação dos princípios ....................................................................................................... 16
3.1 A necessidade dos princípios e a visão pluridimensional do Direito .............................. 16
3.2 Distinção entre princípios e regras .................................................................................. 17
3.3 O modelo dos princípios e o seu papel no seio do sistema jurídico ................................ 19
4. Os princípios do direito como parâmetros normativos e referências ideias.............................. 20
4.1 Os princípios como ideias e como proposições............................................................... 20
4.2 A ausência de pressupostos tipificados ........................................................................... 21
4.3 O valor racional, ético ou axiológico .............................................................................. 22
4.4 O caráter irradiante e a força expansiva dos princípios ................................................... 23
5. A força normativa dos princípios do direito ............................................................................. 24
5.1 Força jurídica, concretização e justiciabilidade dos princípios ....................................... 24
5.2 O valor interpretativo e integrador dos princípios do Direito em face da lei .................. 26
5.3 O Estado de Direito e o pluralismo jurídico como ideias Constituintes.......................... 28
6. Princípios jurídicos e fundamentação expressa das decisões jurisdicionais ............................. 31
6.1 A fundamentação expressa das decisões na jurisprudência dos princípios ..................... 31
6.2 Densidade e estrutura da fundamentação da decisão jurisdicional.................................. 32
II- Principais referências bibliográficas .................................................................................. 35

3
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

Lista de siglas
Al. Alínea
Art. Artigo
CC Código Civil
Cf. Conforme
CPA Código do Procedimento Administrativo
CPC Código do Processo Civil
CPTA Código do Processo nos Tribunais Administrativos
CRP Constituição da República Portuguesa
N.º Número
p Página
p.e. Por exemplo
pp Páginas
TUE Tratado da União Europeia

4
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

I- Enquadramento teórico atinente à jurisprudência dos princípios

1. Evolução doutrinária até â “jurisprudência dos princípios”


As conceções de Direito adotadas têm importância e repercussões metodológicas na
aplicação do Direito ao caso concreto, designadamente quanto ao papel desempenhado pela
interpretação e integração. Justifica-se, portanto, uma breve alusão a algumas das principais
referências doutrinais atinentes à evolução das conceções de Direito verificadas na Alemanha
(com exceção da alusão final ao autor norte-americano JOHN RAWLS), na medida em que nos
capacitam para melhor compreender a conceção atual de Direito.
Em inícios do séc. XIX a letra do ordenamento jurídico era frequentemente ultrapassada
pela jurisprudência, aplicando mais o que entendia ser o espírito das normas, e não a letra da
lei. Dominava então uma grande subjetividade atribuída aos juízes, em que se privilegiava a
intuição na interpretação das leis, o que suscitava vários problemas; tal subjetividade punha
em evidência problemas de igualdade, de separação de poderes e de sindicabilidade das
decisões.
SAVIGNY3 surgiu então como um dos primeiros autores que se ocupou do problema do
método que devia ser seguido pelos juízes para decidir e fundamentar as suas decisões, de
forma que fossem generalizadamente aceites. Com este autor passou a privilegiar-se o
racionalismo, que veio propor uma abordagem predominantemente histórica e sistemática.
Considerava que os princípios não eram imutáveis, antes se afirmando como expressão do
sentimento do povo em cada época (aí se afastando do jus naturalismo, rejeitando a ideia de
um Direito natural e que a norma remeta para algo que lhe é superior), e que o ordenamento
jurídico era dotado de uma lógica sistemática, de modo que as normas se ligavam entre si por
um sentido universal de realização da justiça. Assim, para SAVIGNY a fonte de Direito é apenas
a lei positiva. No desenvolvimento da sua tese, buscando o método correto a adotar para
aplicar o Direito, vem propor elementos de interpretação, visando compreender as normas e a
sua intenção. O intérprete tem de “se colocar na posição do legislador e deixar que se formem,
por esse artifício, os respetivos ditames” e para esse fim, postula que a interpretação precisa
de três elementos: “um elemento lógico, um elemento gramatical e um elemento histórico”,
referindo-se ainda ao elemento sistemático, pois como afirmava, “a legislação só se exprime
a nível de um todo”, salientando a particular importância dos elementos histórico e

3
KELSEN, K., Ob. cit., pp. 9-19.

5
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

sistemático. É de realçar que este autor “positivista-legalista” (no sentido de sustentar uma
vinculação do intérprete ao texto da lei), rejeita qualquer tipo de interpretação “extensiva” ou
“restritiva” de acordo com o fim ou com a razão de ser da lei, que para ele não integra o
conteúdo da norma, afastando portanto uma interpretação “teleológica” (“o juiz deve atender
não ao que o legislador busca atingir, mas só ao que na realidade preceituou”). SAVIGNY vem
mais tarde a admitir a utilização da razão de ser da lei, embora sempre “com grande
precaução”. De salientar ainda que este autor enquadra a integração de lacunas não
propriamente com recurso à analogia, mas antes com o apelo ao nexo sistemático do
ordenamento jurídico no seu todo, atendendo aos princípios superiores que o integram.
Partindo da abordagem que atribuía particular ênfase aos elementos histórico e
sistemático de SAVIGNY, inicia-se uma sub-corrente do positivismo jurídico que mais tarde
veio a ser denominada “jurisprudência dos conceitos”. Num sistema “orgânico” como o
pretendiam os filósofos idealistas, os elementos constitutivos desse sistema gravitam em torno
de um centro, sendo que a “unidade” do sistema repousa na relação de todos os elementos
com esse centro. Em particular, PUCHTA4 sustentava a cientificidade do Direito (numa época
em que assumiam protagonismo as ciências experimentais, a relevância do Direito reclamava
também a sua própria cientificidade), que encarava como um sistema lógico como o de uma
“pirâmide de conceitos”, enquanto sistema meramente formal e sem conteúdo material.
Tornava-se necessário identificar os conceitos que se encontravam na base da pirâmide, os
quais se reconduziam a conceitos situados em planos superiores, e nas “viagens” entre a base
e o vértice da pirâmide idealizada, adquirem-se conceitos, demonstram-se os institutos e
alcança-se a sua compreensão. Não estão aqui em causa “viagens” que visem fundamentar a
validade de uns conceitos através de outros, mas antes a possibilidade de por esse meio serem
tiradas ilações relevantes para a interpretação, através de abstrações sucessivas, obedecendo
ao sistema lógico assim idealizado. Um outro autor incontornável no âmbito da
“jurisprudência dos conceitos” foi JHERING5, que numa primeira fase apoiou a doutrina de
PUCHTA (mas como adiante veremos, num segundo momento veio a mudar a sua opinião),
acentuando a importância da lógica e a função sistemática da ciência do Direito, a qual, por
contraposição com a função histórica e interpretativa, consiste em “desmontar cada um dos
institutos e as correspondentes proposições jurídicas nos seus elementos lógicos, em destilar
estes últimos na sua pureza [estabelecendo paralelo com outra ciência: a química] e em deles

4
KELSEN, K., Ob. cit., pp. 21-29.
5
KELSEN, K., Ob. cit., pp. 29-33.

6
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

extrair então, através de combinações, tanto as normas já conhecidas como as normas novas”,
através de um método indutivo. Com esse método, sustenta JHERING, é logrado não só a
facilitação do domínio sobre a matéria, mas também a descoberta de proposições jurídicas
anteriormente desconhecidas. Por outro lado, WINDSCHEID6 vem a afastar-se da conceção
pseudocientífico-natural que notamos em JHERING. Ciente do sentido ético do Direito,
sustentava que este servia o propósito de “preparar o terreno à ordem moral do mundo (…) só
através dele ser possível a realização dessa ordem”, sendo nítido o seu subjetivismo, ao
salientar que o Direito positivo tinha de ser “mais do que a folha, mas do que o aroma que se
dispersa no vento”. Para este autor, a lei não é apenas “uma simples expressão do poder do
legislador, um simples factum, mas a sabedoria dos séculos que nos precederam”, sendo a
fonte última do Direito não a vontade, mas “a razão dos povos”. Segundo WINDSCHEID “o
Direito é, na sua contingência histórica, algo de racional, e por conseguinte, algo suscetível
de uma elaboração científica, não apenas de caráter histórico, mas também de caráter
sistemático”, perfilhando portanto a importância atribuída aos elementos histórico e racional
de SAVIGNY e PUCHTA, mas desviando-se no entendimento da razão, que sustenta de forma
subjetiva. Este autor, portanto, sustenta um positivismo legal racionalista, mas moderado pela
crença na razão do legislador; um legislador histórico e ao mesmo tempo idealizado. Pelo que,
para si, a interpretação da lei deve determinar o sentido que “o legislador ligou às palavras por
ele utilizadas”. Tal como SAVIGNY, WINDSCHEID postula que o intérprete se coloque no lugar
do legislador e execute o seu pensamento (racional), que para si é o fundamento de validade
das proposições jurídicas para o que “deve considerar as circunstâncias jurídicas presentes no
seu espírito quando ditou a lei, quer os fins prosseguidos pelo mesmo legislador”. Vem assim
a admitir, portanto, a interpretação extensiva e restritiva, cabendo ao intérprete “extrair, por
detrás do sentido a que o legislador quis dar expressão, o seu verdadeiro pensamento”,
devendo “não apenas ajustar à expressão insuficiente da lei o sentido realmente pensado pelo
legislador, mas ainda imaginar o pensamento que o legislador não pensou até ao fim, ou seja,
deve não manter-se simplesmente no plano da vontade empírica do legislador, mas conhecer
a vontade racional desse legislador”. Também no que respeita às lacunas, defendeu que as
mesmas deveriam ser integradas não a partir de um hipotético Direito natural, mas “a partir
do espírito do Direito no seu todo”, no que se infere que o Direito é “mais do que um somatório
de imperativos, que é também uma unidade de sentido objetiva, unidade de que se podem

6
KELSEN, K., Ob. cit., pp. 34-39.

7
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

deduzir – por meio de conclusões e, particularmente, da analogia – os elos intermédios que


eventualmente faltem”.
Percebe-se portanto que na “jurisprudência dos conceitos” existe predominantemente
uma teoria “objetivista” da interpretação7, em que “historicismo” e “racionalismo” são
componentes dominantes do pensamento, manifestos não apenas em WINDSCHEID, mas em
geral na ciência do Direito do séc. XIX. Embora se considerasse o Direito como um produto
da evolução histórica positivada, via-se também no próprio Direito positivo uma ordem
racional, que como tal “era suscetível de ser compreendida e sistematizada conceptualmente”.
Assistiu-se a uma evolução, como vimos, entre SAVIGNY e PUCHTA por um lado, e
WINDSCHEID por outro, no que respeita ao elemento teleológico; enquanto os primeiros
privilegiavam a coerência lógica e formal em detrimento do conteúdo material, o último autor
enfatizou que a racionalidade resultava da teleologia das normas, admitindo que este elemento
contribuísse para a interpretação e desenvolvimento da lei, em função precisamente da razão
jurídica contida na lei. Foi esta exigência que correspondeu à “teoria objetivista” da
interpretação, preconizada por BINDING, WACH e KOHLER8. A racionalidade da lei é entendida
por estes autores não apenas em sentido formal, como um mero nexo lógico de conceitos, mas
também em sentido material como racionalidade dos fins, ou seja, uma “teleologia imanente”
(como é sobretudo expresso por KOHLER), nisso se afastando da “jurisprudência dos
conceitos”. Para KOHLER, a unidade interna da ordem jurídica repousa na validade de
princípios jurídicos gerais, como máximas ordenadoras (e não apenas como conceitos
abstratos), de forma que a interpretação tem de “trabalhar” a lei de molde a que esta traga à
luz os princípios nela contidos, “oferecendo-se cada determinação legal como ramificação de
um princípio”. Nem sempre esses princípios são perfeitamente expressos na lei, competindo
à interpretação, para este autor, desenvolver a lei incompleta ou defeituosa de acordo com os
seus princípios (e não apenas, como dizia WINDSCHEID substituir a “verdadeira” vontade do
legislador à vontade expressa na lei).
Mas como já se disse, durante (e sobretudo na parte final d)o séc. XIX ganharam relevo
as ciências naturais (experimentalistas), levando a uma diminuição da importância relativa de
outras áreas do saber, designadamente do Direito. Este reclamava portanto o seu próprio
estatuto de “cientificidade”. Como antes vimos, alguns autores ensaiaram abordagens lógicas
e sistemas formais do Direito, inclusive inspirados em algumas ciências naturais. Porém, a

7
KELSEN, K., Ob. cit., pp. 39-44.
8
KELSEN, K., Ob. cit., p. 40.

8
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

evolução doutrinária levou a que outros autores defendessem uma aproximação a outras
ciências sociais, o que conduziu a teorias da psicologia e sociologia do Direito.
Para BIERLING9, “Direito, em sentido jurídico, é tudo aquilo que as pessoas, que convivem
em qualquer comunidade, reciprocamente reconhecem como norma e regra de viver em
comum”. Desta noção sobressaem as ideias de “norma” e “reconhecimento recíproco”, que
transparecem como fenómenos do foro psicológico. Pelo que, para esse autor, todas as normas
contidas na Constituição apresentam-se “por esse simples facto como normas reconhecidas de
modo indireto, na medida em que haja um verdadeiro reconhecimento jurídico da respetiva
Constituição ou, pelo menos, dos preceitos que se referem à emissão e à obrigatoriedade das
leis”. Não perfilha o autor, portanto, uma teoria psicológica pura, na medida em que equipara
à norma efetivamente reconhecida uma norma que deve ser encarada como “consequência
logicamente necessária” de uma norma fundamental reconhecida efetivamente. Dever
jurídico, para BIERLING, traduz então uma pretensão de outrem conhecida, e reconhecida pelo
próprio obrigado, de acordo com a lógica de reciprocidade direta antes indicada (psicologia
de adesão), admitindo contudo que esse reconhecimento pode também ser indireto, em função
da legitimidade formal das normas. Este autor sustenta que sendo as normas, “expressão de
um querer que espera que outrem lhe dê execução”, “ditadas com o indubitável intuito de que
aqueles a quem se dirigem as apreendam e observem tal como realmente as pensavam e
quiseram os órgãos legiferantes”, resultam consequências metodológicas ao nível da
interpretação, sendo de privilegiar a vontade real do legislador, que ele quis exprimir com as
palavras que usou, sendo para tanto fundamental o conhecimento da história da formação da
lei (postulando portanto uma abordagem de subjetivismo histórico), admitindo que nos casos
em que o legislador não se exprima de forma perfeita, é admissível a interpretação extensiva,
e em caso de lacunas, é também admissível a analogia. De notar que, a propósito do recurso à
analogia, o autor refere-se às “intenções” do legislador, o que veio a ser desenvolvido
posteriormente, como veremos, a “jurisprudência dos interesses”.
Como antes já afirmamos, JHERING veio a mudar a sua posição quanto à “jurisprudência
dos conceitos”. Com efeito, este autor veio a protagonizar uma viragem para uma
“jurisprudência pragmática”10. Na sequência de uma conferência de KIRKCHMANN, em que
este defendia por um lado que a jurisprudência não tinha valor enquanto ciência, e por outro
criticava o facto da jurisprudência se preocupar mais com o que já está estabelecido, e menos

9
KELSEN, K., Ob. cit., pp. 44-55.
10
KELSEN, K., Ob. cit., pp. 55-63.

9
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

com o desenvolvimento do Direito (aqui se percebendo uma crítica à “jurisprudência dos


conceitos”), JHERING veio (em fins do séc. XIX) a rever a sua posição, passando a realçar a
finalidade prática das proposições jurídicas. Assim, o legislador atuava tendo em vista a
promoção dos fins da sociedade organizada, em moldes coercivos, para benefício e segurança
das suas condições de existência. Este foi o ponto de partida para o início da segunda sub-
corrente do positivismo jurídico denominada, designada “jurisprudência dos interesses” 11.
O autor mais influente desta corrente, cuja influência se faz sentir ainda hoje, foi PHILIPP
HECK (sendo também de realçar HEINRICH STOLL e RUDOLF MULLER-ERZBACH). Com efeito,
enquanto “a orientação anterior, a jurisprudência dos conceitos, limita o juiz à subsunção
lógica da matéria de facto nos conceitos jurídicos – e nessa conformidade, concebe o
ordenamento como um sistema fechado de conceitos jurídicos, requerendo assim o primado
da lógica no trabalho juscientífico – a jurisprudência dos interesses tende, ao invés, para o
primado da indagação da vida e da valoração da vida”. A missão da ciência do Direito é
“facilitar a função do juiz, de sorte a que a investigação tanto da lei como das relações da vida
prepare a decisão objetivamente adequada”, sendo a atividade judicial orientada a dar
“satisfação das necessidades da vida, a satisfação das apetências e das tendências apetitivas,
quer materiais quer ideais, presentes na comunidade jurídica”. Em suma, HECK considera o
Direito como a “tutela dos interesses”. No seu desenvolvimento, o autor afirma que cada
norma visa a proteção de interesses específicos, resultando de interesses sociais, que são
portanto a causa da norma, aí residindo o primeiro plano da sua análise – a “teoria genética
dos interesses” – sendo os interesses sociais primordiais a paz, previsibilidade e estabilidade.
Mas o autor acrescenta que há um segundo plano de análise a considerar (desenvolvido por
STOLL), atinente à valoração feita pelo legislador quanto a interesses específicos. Ou seja,
existem frequentemente interesses antinómicos merecedores de tutela, pelo que, além das
normas que têm por causa direta certos interesses sociais, outras existem que decorrem da
valoração feita pelo legislador, segundo o seu próprio juízo de valor, em que privilegia certos
interesses em detrimento de outros. Nesses casos, essa decisão psicológica é orientada pelo
bem comum, que é ele próprio um interesse. Assim, o interesse surge neste plano como critério
de ponderação de normas. Como tal, na interpretação da lei, exige-se ao intérprete a
reconstrução da ponderação de interesses feita pelo legislador.

11
KELSEN, K., Ob. cit., pp. 63-77.

10
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

Já no séc. XX, EUGEN EHRLICH12 vem negar o caráter “científico” do Direito em si mesmo
(enquanto dogmática jurídica), contrapondo que o verdadeiro caráter científico encontra-se no
domínio da sociologia do Direito, que investiga os factos sociais subjacentes ao Direito, sem
ter em vista a aplicação prática dos seus resultados pela jurisprudência dos tribunais. Será para
este autor a sociologia jurídica aquela que poderá fornecer à jurisprudência prática a sua base
científica (que não se restringe às palavras, mas se ocupa dos factos subjacentes ao Direito).
Desse modo, este autor concebe o Direito, enquanto ordem efetiva da sociedade, não em
“normas de decisão”, mas sim em “regras segundo as quais os homens, na sua vida em comum,
efetivamente se comportam”. Acrescenta que “só posteriormente, é que a jurisprudência
constrói a proposição jurídica com base na perceção dos factos da vida jurídica e na
generalização das vivências dessa perceção”, o que não obedece a um verdadeiro método
científico, visto que a generalização concretizada pelos juristas não ocorre de forma imparcial
no espírito científico, antes sendo influenciada por relações de poder, considerações de
oportunidade e tendências de justiça. Assim, o autor põe em evidência a função reguladora do
Direito, descorando no entanto a ordem normativa, em obediência de uma exigência que apela
à ideia de justiça.
Perante a conceção anterior, de que a autêntica ciência do Direito é a sociologia do
Direito, impunha-se uma tomada de consciência metodológica por parte da ciência do Direito.
O protagonista neste sentido veio a ser KELSEN13, propondo a sua “teoria pura do Direito”. O
ponto de partida da sua teoria, de autonomia metodológica da ciência do Direito, residiu na
distinção entre “juízos de ser” e “juízos de dever ser”; no primeiro caso constata-se a
concordância com factos sociologicamente verificáveis, e no segundo está em causa a
conformidade com preceitos existentes e válidos. Assim, a ciência do Direito deve ser uma
ciência pura, uma ciência de normas e não uma ciência de factos (rejeitando os “factos
sociológicos”), centrando-se na validade das normas vigentes (mais do que o seu conteúdo
concreto). O autor não aproxima a cientificidade do Direito à das ciências experimentais
(apoiadas em factos), mas sim às ciências do pensamento (como matemática, filosofia e
lógica). O que releva, segundo sustenta, é o critério de validade das normas segundo
parâmetros de lógica, postulando que a legitimidade do Direito advêm da norma e do castigo
(num ordenamento coercivo) inerente ao seu incumprimento. Estabelece assim uma específica
“lógica de normas”, mediante a qual a validade de um dado contrato advém da sua

12
KELSEN, K., Ob. cit., pp. 83-91.
13
KELSEN, K., Ob. cit., pp. 91-109.

11
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

conformidade com a lei, a validade desta advém da sua conformidade com a Constituição, e
a validade desta decorre de uma norma fundamental, que tem por “pressuposta pela ciência
do Direito”. Assim, o pensamento que legitima a ordem jurídica, a postulação da norma
fundamental, encontra assim, em último termo, a sua justificação última no facto de funcionar
como tal um certo ordenamento coercivo. Ou seja, o “dever ser” resulta, na verdade, através
do postulado teórico da “norma fundamental”, de um “ser”, que, como tal, é para este autor
alheio ao sentido e ao valor da mera facticidade. Por outras palavras, a “norma fundamental”
que em último termo concede validade a todo o ordenamento jurídico, é para si um
pressuposto, um facto, que enquanto tal, é aprioristicamente rejeitado por KELSEN na sua
construção teórica. Aqui reside o ponto fraco da sua “teoria pura”, visto que não é aceitável,
segundo a sua própria construção, deduzir normas de factos.
É então que tem lugar, no séc. XX, a renovação da filosofia Alemã do Direito, por mão
de RUDOLF STAMMLER14, que genericamente se caracteriza pelo abandono do positivismo, e
pelo início da ligação do Direito aos valores e à cultura, abrindo caminho à “jurisprudência
dos valores” ou “jurisprudência dos princípios”.
STAMMLER acentua a ideia de que o Direito não pertence às ciências exatas, mas
eventualmente às ciências do espírito (como a filosofia). Está inscrita no Direito uma ideia de
fim que deve ser prosseguido, não se tendo em vista propriamente uma atividade de
prossecução de fins, mas antes um determinado modo de pensamento. Assim, STAMMLER
estabelece a ligação entre Direito e uma ideia de “Justiça”, enquanto medida de correção do
direito positivo, sustentando que a “Justiça” não é meramente um conceito metafísico, sendo
pelo contrário apreensível pelo conhecimento de forma científica. Não obstante, tal conceito
de “Justiça” é relativo e não unívoco, o que em todo o caso não obsta a que o Direito aspire a
uma ideia de “Justiça”. Aprofundando a teoria de KELSEN, distingue o Direito formado
(“conceitos jurídicos condicionados”) de normas unívocas, e o Direito não formado
(“conceitos jurídicos puros”), que são “formas puras de pensamento” (princípios a priori de
conhecimento), constituídas designadamente por cláusulas gerais e conceitos indeterminados,
a preencher no caso concreto pelo juiz, orientado por uma ideia de “Justiça” (conceito cujo
conteúdo ainda hoje se discute, de forma inacabada). Assim, metodologicamente, os
“conceitos jurídicos condicionados” indicam soluções concretas, e os “conceitos jurídicos
puros” conferem uma margem de apreciação a aplicar no caso concreto. Desse modo, perante

14
KELSEN, K., Ob. cit., pp. 113-125.

12
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

lacunas o intérprete deverá socorrer-se de analogia, procurando a solução que se revele mais
justa, de acordo com o espírito do sistema. Por outro lado, HEINRICH RICKERT15 situa o Direito
também no âmbito das ciências do espírito, conjugado no entanto com outros métodos
científicos, para além dos métodos das ciências da natureza. Este autor perfilha da ideia de
que o Direito vigente na sociedade funda-se na cultura, resultando de fenómenos históricos,
naquilo que têm de relevância individualizadora, segundo valores reputados pelo historiador
como significativos. Não se trata de o historiador formar juízos valorativos quanto a
acontecimentos históricos, sobre eles tomando posição, mas apenas a eles reconhecer que
merecem consideração, do ponto de vista valorativo. Dessa forma, o Direito será uma ciência
de cultura, influenciada pela história. Por seu turno, GUSTAV RADBRUCK16, afirmando que
enquanto “fenómeno cultural” o Direito é para ele aquele “dado que tem o sentido de realizar
a ideia de Direito”, como algo com sentido, que não é senão a ideia de “Justiça”. Ou seja, de
certa forma há uma coincidência, para este autor, entre a ideia de Direito e a ideia de “Justiça”,
distinguindo-se de STAMMLER, que encarava a “Justiça” na estrita medida de critério de
correção do Direito positivo. RADBRUCK, define a ciência dogmática como “ciência do sentido
objetivo das ordens jurídicas positivas”, revelando-se um defensor da teoria objetiva de
interpretação, para quem esta “tem de desenvolver e tornar visível o conteúdo imanente de
uma proposição jurídica”, valorizando especialmente o elemento teleológico.
Mais recentemente, procurando concretizar ou mesmo prosseguir a ideia da “Justiça”
(pelo menos de um ponto de vista procedimental), JOHN RAWLS17 propõe alcançar a justiça (a
norma justa) mediante a dialética dentro da comunidade, desde que sobre os seus membros
seja feito cair o “véu da ignorância”, ou seja, fazer desaparecer os interesses individuais e
contingentes específicos. Através desse procedimento, segundo o autor, é alcançada a norma
justa.
De um modo geral, pode-se afirmar-se que, esta noção intuitiva de situação inicial, é a
condição que permite a escolha imparcial dos princípios de justiça. O primeiro princípio
assegura direito igual a liberdades e direitos básicos iguais para todos; o segundo princípio
refere-se as desigualdades sociais e econômicas, e deve preencher duas condições: primeiro,
possibilitar condições de justiça e igualdade de oportunidades e, segundo, proporcionar maior
vantagem para aqueles que são os desfavorecidos da sociedade.

15
KELSEN, K., Ob. cit., pp. 125-132.
16
KELSEN, K., Ob. cit., pp. 132-136.
17
RAWLS, J., A theory of Justice, Harvard Univ. Press, 1971.

13
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

Segundo a teoria de RAWLS, esta é a condição para Justiça, como a concebe, que permite
o desenvolvimento de uma sociedade bem-ordenada; os princípios adotados na posição
original deverão ser acessíveis a todos os cidadãos e orientarão as instituições, a fim de ser
possível se atingir a base de legitimidade política.

2. Os limites das normas para as decisões jurisdicionais


A doutrina tem vindo a reconhecer que é impossível decidir judicialmente segundo
normas predefinidas, o que é justificado por ALEXY18 com quatro motivos:
§ A imprecisão da linguagem do Direito;
§ A possibilidade de conflitos entre as normas;
§ A possibilidade de haver casos que exijam uma regulamentação jurídica, sem caberem
em nenhuma norma válida existente;
§ A possibilidade, em casos especiais, de uma decisão que contrarie a letra da lei.
Para tais hipóteses justifica-se encontrar parâmetros adicionais que não estão plenamente
contidos nas normas.
Segundo RAZ19, são três as fontes de dificuldade de resolução das questões jurídicas, que
concorrem para a impossibilidade de serem solucionados problemas jurídicos apenas com
normas:
§ A textura aberta da linguagem jurídica (aqui se incluindo conceitos indeterminados e
cláusulas gerais);
§ A natureza teleológica do método jurídico (interpretação teleológica, analogia); e
§ A existência de conflitos de normas ou princípios.
Por outro lado, como assinala CASTANHEIRA NEVES20, atendendo ao caráter político-
funcional de grande parte da atividade legislativa, resultam quatro limites às normas jurídicas:
§ Limites objetivos, resultantes da necessária abstração do seu enunciado;
§ Limites intencionais, decorrentes do propósito de aplicação prática;
§ Limites temporais, que poderiam implicar não só a interpretação evolutiva mas também
a própria caducidade da norma;

18
Cf. ALEXY, R., Teoria da argumentação jurídica. A teoria do discurso racional como teoria da fundamentação
jurídica, GEN, 2011, pp. 19-20.
19
Cf. RAZ, J., “Legal principles and the limits of law” in Yale Law Journal, 81, 1972, p. 846.
20
Cf. NEVES, A. C., O atual problema do Direito, Policopiado, UCP, 2006-2007, pp. 54B-54F.

14
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

§ Limites de validade, que resultariam na necessária vinculação das normas aos princípios
jurídicos fundamentais.
Segundo ANTÓNIO CORTÊS21, tem vindo a surgir uma nova visão da interpretação jurídica,
visto que o método da “hermenêutica” é reconhecido como insuficiente para a qualificação
dos factos e para a concretização das normas, assinalando ainda que nem sempre é possível
estabelecer uma hierarquia entre eles, e sublinhando que tem vindo a ganhar protagonismo a
interpretação teleológico-objetiva. Concomitantemente, acrescenta este autor, têm ganho
protagonismo as cláusulas gerais de salvaguarda que, não tipificando comportamentos e
situações jurídicas, e permitindo o afastamento ou a não aplicação de normas expressas por
outro, possibilitando novas soluções.
Por outro lado, tem-se difundido uma nova lógica de aplicação das normas e princípios
subjacente à teoria do “sistema móvel”, lançada por WALTER WILBURG22, e uma nova
compreensão do alcance da analogia no Direito. Os pressupostos de aplicação das normas e
dos princípios articular-se-iam, entre si, segundo MENEZES CORDEIRO23, de acordo com uma
geometria variável em que, mais do que a verificação de cada um dos pressupostos por si,
importa o juízo global sobre o significado dos factos.
Surge também um novo protagonismo para a analogia, a qual segundo FERNANDO
BRONZE24 se torna o “eixo à volta do qual gravita o pensamento jurídico metodologicamente
comprometido”, evidenciando esse autor que o raciocínio analógico é essencial na
interpretação da lei e no desenvolvimento judicial do Direito (inovação jurídica). Diga-se, a
este respeito, que também BAPTISTA MACHADO25 via na analogia a “espinha dorsal do
discorrer jurídico”, representando um grande avanço face ao tradicional normativismo
jurídico, e um importante instrumento de aplicação metódica dos princípios do Direito.
Importa ainda referir as teorias da “norma do caso” de FIKENTSCHER26 e da “norma
hipotética” de KRIELE27, segundo as quais o juiz deve julgar, como meio normal, segundo as
regras que ele estabeleceria se estivesse na posição de legislador (de acordo com princípios
jurídicos), ideia que tem acolhimento no Código Civil Português no n.º 3 do art. 10.º (atinente
à integração de lacunas da lei), pese embora o seu caráter excecional: “na falta de caso

21
Cf. CORTÊS, A., Jurisprudência dos princípios. Ensaio sobre os fundamentos da decisão jurisdicional, UCE,
2010, pp. 61-62.
22
Cf. WILBURG, W., Entwicklung eines beweglinchen Systems im Bürgerlinchen Recht, Graz, 1950, p. 1.
23
Cf. CORDEIRO, A. M., Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra, 1984, p. 1248.
24
Cf. BRONZE, F., Lições de Introdução ao Direito, Coimbra, 2006, pp. 941 e ss.
25
Cf. MACHADO, J. B., Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 2002, p. 326.
26
Cf. FIKENTSCHER, W., Methoden des Rechts Vol. IV, Tübingen, 1977, pp. 234 e ss.
27
Cf. KRIELE, M., Grundprobleme der Rechtsphilosophie 2. Aufl., Münster, 2004, pp. 941 e ss.

15
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse
de legislar dentro do espírito do sistema”.
ANTÓNIO CORTÊS28 destaca ainda que, na prática, se tem assistido ao aumento da
relevância jurídica dos precedentes, aquando das decisões judiciais, ainda que, entre nós, não
constituam fonte de Direito em sentido próprio.
Concluindo o mesmo autor29 que as tendências antes expostas revelam “uma nova forma
de pensar”, uma “nova ética jurídica”, que dão expressão à “força atuante dos princípios do
Direito”.

3. A afirmação dos princípios


3.1 A necessidade dos princípios e a visão pluridimensional do Direito

CASTANHEIRA NEVES30 situa o problema fundamental dos princípios no plano axiológico-


normativo do Direito, ou seja, ao nível daquilo que verdadeiramente caracteriza o Direito
enquanto “ordem de validade”, o “Direito como Direito”, referindo-se a um “principium
unitatis que se objetivaria histórico-culturalmente no seio de uma determinada comunidade,
através dos valores e dos princípios jurídico-normativos” 31 e que dariam à ideia de Direito
“concreta determinação normativa” 32.
Num plano mais prático, ANTÓNIO CORTÊS33 refere que os princípios do Direito, e dentro
deles, os princípios mais universais, são uma dimensão constituinte da prática jurídica, o que
significa que eles devem ser “efetivamente utilizados na fundamentação das soluções de
Direito”. Não obstante, o autor salienta que “a necessidade de pensar a partir de “princípios”
não põe em causa a prioridade metódica do caso (…) e a necessidade de uma ponderação
ampla dos dados empíricos”. Realça ainda que:
O Direito não perde o seu realismo (…) prático pelo facto de a experiência jurídica
se desenvolver à luz de “princípios” com um amplo grau de universalidade. Pelo
contrário. São exatamente os princípios que nos permitem resolver, adequadamente,
os casos de maior novidade e complexidade e que permitem ponderar um maior

28
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., pp. 70-71.
29
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., pp. 78-79.
30
Cf. NEVES, A. C., O Direito Hoje e com que Sentido? – O problema Atual da Autonomia do Direito,
Policopiado, Lisboa, 2002, p. 64.
31
Cf. NEVES, A. C., A Unidade do Sistema Jurídico” in Digesta, Vol. 2, p. 174.
32
Cf. NEVES, A. C., O Instituto dos “Assentos” e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, Coimbra, 1983,
p. 179.
33
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., pp. 107-108.

16
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

número de dados técnicos e científicos relevantes[, pelo que,] o caso é, de facto, o


ponto de partida da atividade dos tribunais; resolvê-lo é o seu objetivo final (…)34 [e]
só ponderando todas as circunstâncias do caso se pode obter um juízo jurídico
acertado35.

Ou seja, o conhecimento dos factos influi sobre a valorização jurídica36, mas não só os
dados do caso dão racionalidade ao Direito. Com efeito, também os princípios jurídicos devem
ser ponderados, pois segundo ANTÓNIO CORTÊS37 estes “estão mais próximos dos casos e da
realidade empírica do que as regras ou normas escritas”; dada a sua maior amplitude,
permitem ter em consideração um maior número de “circunstâncias atípicas e de dados
empíricos”.
Esse autor acrescenta que os princípios não devem situar-se num plano inacessível, sendo
passíveis de ser explicitados e tornados operantes através de “teorias”, “doutrinas”,
“conceitos”, “tipologias”, “máximas”, “testes”, “métodos” e “regras de aplicação”, aptos à sua
mobilização argumentativa pelos juristas38.
Assim, para que uma solução jurídica tenha fundamento, e para que seja ético-
juridicamente acertada, não bastará que se baseie em normas legais e nos factos relevantes,
antes se impondo a pertinente aplicação de princípios do Direito, resultando na chamada
“visão tridimensional do Direito”39, contraposta ao tradicional normativismo unidimensional.

3.2 Distinção entre princípios e regras

KANT40 afirma que “a expressão princípio é ambígua”, enunciando vários contextos


diferentes em que os juristas se referem a princípios com diferentes sentidos, incluindo
“princípios gerais de direito” (mais proximamente ligados ao sistema normativo positivado),
“princípios fundamentais do direito” (atinentes à fundamentação racional, ética e axiológica
do Direito) e “princípios constitucionais” (com referência à respetiva fonte). Em todo o caso,

34
Cf. NEVES, A. C., O Atual Problema Metodológico da Interpretação Jurídica, I, Coimbra, 2003, e Cf. NEVES,
C., Metodologia Jurídica. Problemas Fundamentais, Coimbra, 1993.
35
Cf. WILBURG, W., Ob. cit., p. 16.
36
Cf. FIKENTSCHER, W., Ob. cit., p. 192.
37
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., p. 109.
38
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., p. 111.
39
Cf. NEVES, A. C., O atual problema do Direito, Policopiado, UCP, 2006-2007, p. 54H, e Cf. REALE, M., Teoria
Tridimensional do Direito / Teoria da Justiça / Fontes e Modelos do Direito, Lisboa, 2003, p. 105.
40
Cf. KANT, I., Kritik der reinen Vernunft (1781 e 1781), hrsg. Raymund Schmidt, 3. Aufl., 1995, pp. A 300 - B
357.

17
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

quaisquer que sejam os princípios e o contexto em causa, sempre se relacionarão com a


diferença entre Direito e Direito positivado, e com o Direito face ao Estado de Direito.
Outra possibilidade classificativa, de acordo com CASTANHEIRA NEVES41, é a distinção
entre “princípios positivos” (aqueles que constituem parâmetros de validade constantes da
lei), “princípios transpositivos” (válidos para um certo ramo de Direito, e não para o seu todo)
e “princípios suprapositivos” (adquiridos civilizacionalmente, num certo tempo, e
potencialmente universalizáveis).
Cremos que mais do que desenvolver cada um dos conceitos anteriores, importa salientar
que existem diferentes níveis de conteúdo ético ou axiológico e de validade jurídica, e que se
existem por um lado “princípios jurídicos fundamentais”, com uma natureza transcendental,
outros há que se formam em torno de experiências jurídicas mais específicas.
De acordo com DWORKIN42, fundamentalmente, os princípios e as regras distinguem-se
entre si pelo seu “modo característico de aplicação”: a regra é suscetível de aplicação mediante
subsunção dos factos na sua previsão, e os princípios, por sua vez, exigem uma concretização
do seu alcance e uma ponderação de condições de facto e Direito, que eles próprios não
especificam.
Por outro lado, também se distinguem entre si em função do modo de solução das colisões
normativas. No caso das regras, as colisões são resolvidas através da prevalência de uma delas,
em função das máximas lex superior derrogat inferior, lex posterior derrogat anterior ou lex
specialis derrogat generali. Já no que respeita aos princípios, estes deverão ser resolvidos por
ponderação da sua relevância no caso concreto. De acordo com ANTÓNIO CORTÊS, inspirado
em ALEXY43, “o resultado da colisão de princípios poderia ser, depois, sumariado através de
uma regra de prevalência, formulada pelo intérprete, que teria como previsão, as condições
sob as quais um princípio prevalece sobre outro, e como estatuição, a própria prevalência
desse princípio sobre aquele outro”, ou, ainda, em função de uma otimização ou harmonização
(concordância prática).
Este autor refere44, por outro lado, que nem sempre é simples distinguir regras de
princípios, já que as regras, por serem gerais, produzem erros de inclusão, por excesso ou

41
Cf. NEVES, A. C., Metodologia Jurídica. Problemas fundamentais, Coimbra, 1993, p. 154, e Cf. NEVES, A. C.,
A crise atual da Filosofia do Direito no contexto da crise global da Filosofia. Tópicos para a possibilidade de
uma reflexiva reabilitação, Coimbra, 2003, p.108.
42
Cf. DWORKIN, R., “Is Law a System of Rules?”, in The Philosofy of Law, Oxford – New York, 1997, pp. 45 e
ss.
43
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., p. 130.
44
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., pp. 131-132.

18
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

defeito, vindo frequentemente concretizar princípios de uma forma incompleta. Por outro
lado, a qualificação de uma disposição como regra ou princípio, resulta por vezes mais de um
processo interpretativo, do que algo que esteja estabelecido na própria proposição normativa.
Como refere o autor, “só depois de interpretada a disposição (…) poderemos concluir se ela
se aplicou essencialmente segundo um esquema lógico-dedutivo ou se, pelo contrário, exigiu
uma ponderação complexa de circunstâncias, fins e interesses contrapostos”.
Acrescenta ainda que a distinção só é possível tendencialmente; é uma questão de
intensidade e de grau de tipicidade dos pressupostos e de proximidade às exigências éticas ou
axiológicas do Direito, o que releva nos seguintes planos:
§ Na clarificação do processo de aplicação do Direito; dizer que estamos perante um
princípio (só indiretamente referível ao caso) equivale a dizer que em causa está um
parâmetro ético-jurídico cuja aplicação exige ampla intervenção de mediações
dogmáticas e jurisprudenciais, mas que possui também uma força irradiante que permite
a sua aplicação em âmbitos diversos a que não está expressamente referido;
§ Na caracterização da própria atitude metodológica dos juristas e a compreensão global
que possuem do sistema jurídico.
Por fim, de realçar a advertência de GUASTINI45; os sistemas jurídicos também são
constituídos por princípios não expressos.

3.3 O modelo dos princípios e o seu papel no seio do sistema jurídico

ANTÓNIO CORTÊS46 propõe um “modelo de princípios” que exige do jurista que este
pondere, além das regras, a aplicação de princípios normativos que os textos em alguns casos
consignam (princípios jurídico-normativos) e ainda os princípios ideais que “justificam o
sistema jurídico no seu conjunto”, e que correspondem ao núcleo essencial do Direito
(princípios mais universais de Direito), que frequentemente não são escritos, ainda que com
apoio Constitucional ou sistémico.
Postula o autor que os sistemas jurídicos sejam vistos em toda a sua complexidade,
progressividade e unidade, como “sistemas de princípios”, que não exigem uma realização
plena mas tão-só uma “otimização”, de interações, e sem ter de obedecer a uma ordem

45
Cf. GUASTINI, R., Teoria e Dogmatica delle Fonti, Millano, 1998, p. 301 e GUASTINI, R., “I Principi nel Diritto
Vigente”, in BESSONE / GUASTINI (Org.), La Regola del Caso, Materiali sul Ragionamiento Giuridico, Padova,
1995.
46
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., pp. 136-146.

19
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

hierárquica perfeitamente predefinida, mas sim segundo um paradigma flexível de um


“sistema móvel” (a que já aludimos). Este sistema é necessariamente aberto (hétero-
referencial) quanto aos seus elementos, e os princípios asseguram a pretensão de justiça e
correção global.
Este modelo postula ainda um alargamento da argumentação jurídica aos princípios, em
relação de complementaridade com as regras, assumindo aqueles prioridade axiológico-
normativa, se necessário contra legem.
Sustenta o autor que, deste modo, é possível alcançar a “unidade do sistema jurídico” e
“superar as soluções localizadas em cada norma, instituto ou sistema que sejam insatisfatórias
à luz da exigência ético-jurídica ou axiológico-normativa que eles [os princípios] exprimem”.

4. Os princípios do direito como parâmetros normativos e referências ideias


4.1 Os princípios como ideias e como proposições

ANTÓNIO CORTÊS47 afirma que os princípios do Direito são as ideias fundamentais que
justificam, ou permitem justificar. um ou mais preceitos normativos “oficialmente
aprovados”, uma série de decisões judiciais, ou até o sistema jurídico na sua totalidade,
justificados por “ideias da razão prática”. Para esse autor, os princípios do Direito são ideias
constituídas da experiência, mas também em parte, constituídas nessa mesma experiência.
Como exemplos de “princípios fundamentais do Direito”, o autor refere nomeadamente,
as ideias de “dignidade humana”, “igualdade”, “proporcionalidade”, “tutela da confiança”,
“equilíbrio contratual”, e mesmo ideias mais abrangentes, como “justiça” ou “Estado de
Direito”. Tais ideias são suscetíveis de serem aplicadas em diferentes domínios, e são avessas
a uma formulação linguística precisa. Contudo, em abstrato, com maior ou menor segurança
e “aceitabilidade”, podem ser explicitadas em proposições linguísticas. Por exemplo, no que
respeita à igualdade, “tratar de modo igual o que é igual e de modo diferente o que é diferente,
na medida da diferença”. São ainda princípios do Direito, neste sentido, as proposições
sintéticas que a jurisprudência formula e que possam valer como Direito. Por exemplo: “quem
cria o risco deve tomar as providências adequadas a evitar os danos”.

47
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., p. 221.

20
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

Estes princípios não são dotados de uma formulação linguística precisa, nem definem os
pressupostos e as consequências da sua aplicação. Por outro lado, podem ter uma consagração
mais ou menos ampla, e como já vimos, serem “escritos” ou “não escritos”.
Mas esta noção, salienta o autor supra indicado, é apenas tendencial; na verdade todos os
princípios são, pelo menos em parte, não escritos. E mesmo quando um certo princípio tem
apoio expresso num texto legal ou constitucional, esse texto não esgota, no seu enunciado, o
princípio, “pois a força irradiante da ideia projeta-se para além da proposição que define as
hipóteses típicas de aplicação”.
Por fim, existem princípios que constam expressamente na legislação e/ou na
Constituição, mas mesmo nesses casos estamos perante “um parâmetro de validade ético-
jurídica”, e não apenas perante uma norma como todas as outras.

4.2 A ausência de pressupostos tipificados

No positivismo difundiu-se a ideia de que os princípios seriam uma espécie de normas


mais indeterminadas do que as outras, ou parâmetros que se obteriam por indução ou
generalização a partir das normas legais (como PUCHTA48, no âmbito da “jurisprudência dos
conceitos”). ANTÓNIO CORTÊS49 rejeita essa ideia, mencionando que os princípios não são
apenas normas mais indeterminadas, reconhecendo contudo que são “parâmetros
tendencialmente incondicionados ou submetidos a uma condicionalidade difusa e não
pontual”50. Não tipificam factos, não tipificam os seus pressupostos: são essencialmente
“diretivas de ação”51.
Nesse sentido, LARENZ salienta que os “princípios” são essencialmente “ideias diretivas”,
direcionando o pensamento sem determinar, por si mesmos, os casos a que se aplicam e as
consequências que produzem. Definir-se-iam como “ideias diretivas de uma regulamentação
existente ou possível”52. Dessa forma, explica este autor, “o princípio não contém ainda
nenhuma especificação de previsão e consequência jurídica mas só uma “ideia jurídica geral”,
pela qual se orienta a concretização ulterior como por um fio condutor” 53.

48
Cf. LARENZ K, Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Goulbenkian, 2014, pp. 21-29.
49
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., p. 226.
50
Cf. FALZEA, “Relazione introdutiva” in I Principi Generali del Diritto, Roma, 1992, p. 33.
51
Cf. PEKZENIK, “Principles of law” in Rechtstheorie, 2, 1971, p. 29.
52
Cf. LARENZ K, Richtiges Recht, Grundzüge einer Rechtsethik, München, 1979, p. 26.
53
Cf. LARENZ K, Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Goulbenkian, 2014, p. 674.

21
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

É por essa característica que segundo FIKENTSCHER54, os princípios não são suscetíveis
de aplicação analógica, no sentido tradicional do termo analogia, visto que esta pressupõe uma
certa tipicidade. Ora os princípios aplicam-se a casos concretos em função da relevância que
assumam em concreto; habitualmente, apenas após ampla experimentação casuísticas são
suscetíveis de se antever os casos a que o princípio se aplica, e a importância que têm nessas
circunstâncias. São pois a doutrina e a jurisprudência que vão fixando o alcance e o peso dos
diversos princípios jurídicos.
O que não nega que os princípios desempenhem um papel na aplicação da analogia, já
que fornecem parâmetros ético-axiológicos e valorativos que permitem identificar e aplicar
regras ou institutos análogos, aos casos omissos.

4.3 O valor racional, ético ou axiológico

Além da ausência de pressupostos tipificados, os princípios caracterizam-se também pela


sua especial intensidade ético-jurídica, exigida por um certo valor racional, ético ou
axiológico.
Segundo ANTÓNIO CORTÊS55, os princípios têm um caráter justificador das soluções de
direito que decorre do facto de eles possuírem um “valor positivo”, que primeiramente, é um
valor ético ou axiológico, e secundariamente, racional.
Segundo o autor, os princípios possuem maior conteúdo axiológico face à generalidade
das regras, sendo que esta importância acrescida advém não da sua letra ou localização
sistemática, mas da natureza fundamental do princípio convocado.
Assim, a importância fundamental dos princípios decorre do facto de poderem ser vistos,
em si mesmos, como parâmetros de “justiça, correção ou dever” (valores positivos). Não é
portanto a indeterminação das suas fórmulas ou dos casos a que se aplicam, que caracteriza a
essência dos princípios de Direito, mas sim o seu especial valor ético-deontológico ou
axiológico-normativo.
Pelo que, o valor dos princípios e a sua capacidade justificadora das regras resulta da
pretensão de “justiça, correção ou dever” que incorporam, enquanto expressão de um “dever-

54
Cf. FIKENTSCHER, W., “Die Verwendung von Analogie und allgemeinen Rechtsprinzipien in der
Rechtsprechung” in La Sentenza in Europa; Metodo, Tecnica e Stile, Padova, 1988, pp. 86 e 91.
55
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., pp. 228-231.

22
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

ser ideal” 56. Isto vale, sobretudo, para os princípios mais fundamentais, mas também para a
generalidade dos demais princípios.
É portanto compreensível que DWORKIN57 defina um princípio como uma diretiva que
deve ser tida em consideração não porque promova ou garanta uma situação económica,
política ou social tida como desejável, mas porque é uma exigência de justiça, de correção ou
de qualquer outra dimensão da moral. No mesmo sentido, CASTANHEIRA NEVES58 afirma que
os princípios são parâmetros de “validade material” da juridicidade.

4.4 O caráter irradiante e a força expansiva dos princípios

Além de se afirmarem pelo seu caráter fundamentador e pela sua importância ético-
jurídica, os princípios são dotados de uma especial “força normativa potencialmente
expansiva”59, precisamente assente na sua génese racional, ética ou axiológica.
Mas para tal dimensão fundamental, exigem um complexo trabalho dogmático e
jurisprudencial. Possuem um poder normativo acrescido, tendendo a prevalecer, mas só depois
de tudo ponderado na situação em concreto, implicando um especial ónus de argumentação
no momento da sua aplicação, dadas as características já mencionadas de ausência de
tipificação de pressupostos e consequências.
Os princípios são portanto parâmetros de validade prática, ética ou axiológica das
soluções de Direito, aplicados não obstante as dificuldades dogmáticas, dada a sua capacidade
expansiva, ou caráter irradiante.
Adicionalmente, os princípios não são apenas parâmetros subsidiários que atuem praeter
legem em caso de lacuna legal, mas parâmetros de validade ético-jurídica que podem
inclusivamente prevalecer em confronto com soluções legais expressas. Em termos práticos,
tal prevalência contra legem poderá resultar, designadamente, de se convocar a figura do
“abuso de direito” ou a afirmação da força Constitucional do princípio jurídico.

56
Cf. ALEXY, R., “Zum Begriff der Rechtsprinzips” in Recht, Vernunft, Diskurs – Studien zur Rechtsphilosophie,
Frankfurt am Main, 1995, pp. 202-205.
57
Cf. DWORKIN, R., Taking Rights Seriously, London, 1996, p. 22.
58
Cf. NEVES A. C., O atual problema metodológico da Interpretação Jurídica I, Coimbra, 2003, pp. 213-215.
59
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., pp. 231-232.

23
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

5. A força normativa dos princípios do direito


5.1 Força jurídica, concretização e justiciabilidade dos princípios

Perante uma legislação cada vez mais imbuída de cláusulas gerais e conceitos
indeterminados, os princípios mais universais vêm compensar a incerteza legislativa.
Mas os princípios não possuem uma força jurídica ilimitada, e os seus limites não são
apenas definidos pela ideia geral que os sintetiza60. Eles são objeto de concretização doutrinal
e jurisprudencial, e é sobretudo com tal concretização que os princípios valem em juízo.
Assim, na aplicação dos princípios há limites que decorrem de um sistema de precedentes,
dos critérios doutrinais formulados a respeito de cada um dos princípios e, ainda, dos critérios
processuais e institucionais de intervenção do poder jurisdicional.
Quanto aos precedentes, relevam sobretudo as decisões dos tribunais superiores, e vigora
a máxima de “onde há princípios tem de haver uma cultura do precedente que a torne
operativa”, sendo a sua importância tanto maior quanto mais complexo seja o processo. Com
efeito, a importância dos precedentes é diminuta quando o aplicador apenas repete o que
consta diretamente na lei, e é acrescida quando a base de decisão é apenas um princípio
fundamental. Assim, de acordo HENKEL61, as indeterminações da lei podem e devem ser
compensadas pela vinculação ao precedente judicial e pela uniformidade da jurisprudência, o
que tem um importante efeito estabilizador. Como refere ANTÓNIO CORTÊS62, “cada caso
resolvido por aplicação ou não aplicação de um princípio é um elemento definidor do próprio
princípio”, impondo-se, portanto, uma verdadeira cultura do precedente.
Por outro lado, a medida da justicialidade dos princípios63 (a sua força jurídica em
tribunal) resulta, em larga medida, da definição do seu próprio conteúdo, dos seus
pressupostos e requisitos64, por meio de critérios dogmáticos. Tal desenvolvimento dogmático
confere condições de aplicação do princípio, e uma estrutura comparável à previsão de um
enunciado normativo. Assim, a definição doutrinal dos princípios e a sua articulação recíproca
são decisivos no controlo da sua aplicação, funcionando os princípios com o conteúdo
conferido dogmaticamente, que é necessariamente dinâmico.

60
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., pp. 281 e ss.
61
Cf. HENKEL, H., Einführung in die Rechtsphilosophie. Grundlagen des Rechts, München, 1977, p. 443 e entre
nós Cf. ANDRADE, M., Sentido e valor da Jurisprudência (Oração de sapiência lida em 30 de Outubro de 1953),
Coimbra, 1973, p. 15.
62
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., pp. 281 e ss.
63
Cf. GARCIA, G., Da Justiça Administrativa em Portugal – Sua Origem e Evolução, Lisboa, 1994, p. 641.
64
Cf. BRONZE, F., Ob. cit., p. 640.

24
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

Adicionalmente, há que considerar condicionantes processuais à aplicação


jurisprudencial dos princípios. Por força dos condicionalismos processuais que o limitam, o
poder judicial é, fundamentalmente, um poder de impedir, um “contra-poder”, não obstante a
tendência recente, entre nós, no âmbito do Direito Administrativo, a também poder condenar
a Administração à prática do ato devido (em casos de vinculação da à lei), Cf. al. b) do n.º 2
do art. 2.º do CPTA), bem como, no âmbito do Direito Constitucional, à possibilidade de
declaração de inconstitucionalidade por omissão (Cf. art. 283.º da CRP). Ainda assim, o
tribunal tem essencialmente um papel de controlo negativo, subordinado ao Direito
constituído.
Para além desses condicionalismos, outra variável a considerar65 é a atitude do juiz, mais
“ativa” ou mais “passiva”, com influência no sentido da decisão. Com efeito, o perfil e a forma
de pensar dos juízes, o seu sentido de justiça, influencia o processo e o sentido da decisão,
fazendo-se sentir, de acordo com AHRON BARAK66, designadamente, “na escolha dos meios
de interpretação, vinculação ao precedente, utilização do método da ponderação de bens ou
interesses, rigor na apreciação de pressupostos processuais e apreciação mais ou menos audaz
da constitucionalidade”. Bem como, no peso e na relevância que se atribuem aos princípios
de Direito, em função da conceção de Direito perfilhada, e em face das fontes de Direito num
sentido técnico-jurídico.
Assim, postula ANTÓNIO CORTÊS67 que “os tribunais, enquanto fórum dos princípios,
devem ter uma atitude prudencial, ou seja, devem agir com justiça, mas também com
prudência, com coragem e temperança”, devendo assumir uma postura equilibrada, recusando
o excesso de passivismo ou de ativismo. Na prática, tudo dependerá da força persuasiva dos
precedentes judiciais e dos preceitos jurídicos pertinentes em face dos princípios em causa, da
concretização dogmática destes, e a interpretação filosófica que é dada a cada princípio e à
sua articulação com os demais. Conclui o autor que, em suma, “os tribunais devem agir com
a amplitude que decorre do “modelo de princípios” que propomos, mas também com as
condicionantes jurisprudenciais, dogmáticas, processuais e institucionais que vinculam a sua
prática efetiva”.

65
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., pp. 291-292.
66
Cf. BARAK, A., The Judge in a Democracy, Princeton, 2006, pp. 263 e ss.
67
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., p. 293.

25
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

5.2 O valor interpretativo e integrador dos princípios do Direito em face da lei

O especial valor interpretativo e integrador dos princípios de Direito em face da lei revela-
se de três formas básicas68; através:
§ Da capacidade dos princípios para determinarem o sentido das cláusulas gerais, e para
atuarem para além delas;
§ Da sua aptidão para viabilizar a reconstrução de institutos legais e a criação de novas
teorias e figuras doutrinais; e
§ Do poder que tenham para, por mediação de cláusulas gerais ou não, afastarem a
aplicação de uma regra legal expressa.
Para se compreender o valor interpretativo e integrador dos princípios, analisemos
primeiramente a estrutura normativa das leis e Constituições.
As leis e Constituições apresentam conceitos ou ideias regulativas bastante amplas: “boa
fé”, “bons costumes”, “justiça”, “Estado de Direito”, entre outros. Tais conceitos
consubstanciam aberturas explícitas e intencionais do sistema positivo a uma dimensão
transpositiva, legitimando a convocação de princípios do Direito. Mas esses princípios são
normativa e formalmente autónomos face às ideias, o que quer dizer que eles não estão
implícitos no conceito. Pelo que, segundo WIEACKER69 a “boa fé”, “justiça”, ou “Estado de
Direito” não são suscetíveis de aplicação direta e imediata, ou seja, sem ser preenchida por
parâmetros normativos, figuras dogmáticas e outras mediações que lhe confiram densidade.
Por outro lado, tanto a lei como a Constituição apresentam regras (normas em sentido técnico,
dotadas de previsão e estatuição), que devem ser conjugadas com os princípios de Direito, os
quais possuem força para as integrar ou excluir. Mas os textos jurídicos possuem vários níveis
de normatividade:
§ No nível máximo encontram-se as “grandes cláusulas de salvaguarda”, como “justiça”,
“boa fé” ou “Estado de Direito”, apelando a princípios jurídicos;
§ Depois temos normas que, pela especial relação com valores ou princípios referenciais
do ordenamento, e pela ampla indeterminação do seu âmbito de aplicação, se podem
considerar “princípios normativos escritos”;
§ E por fim, as normas em sentido técnico, que se caracterizam por possuírem uma
previsão tipificada e a correspondente estatuição.

68
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., pp. 294-311.
69
Cf. WIEACKER, F., Zur Rechtstheoretische Präzisierung des § 242, BGB, Tübingen, 1956 p. 7.

26
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

Estas normas e princípios constantes dos textos podem então constituir-se em “institutos”,
que essencialmente consistem em conjuntos ordenados de normas, em torno de uma finalidade
comum. A partir daí, há que descobrir as soluções concretas para os problemas jurídicos.
Neste âmbito, vários autores reconhecem que os princípios desempenham um papel
essencial na interpretação e na analogia70. Com efeito, os princípios podem ter uma influência
determinante na aplicação das normas legais, clarificando os conceitos indeterminados,
potenciar a aplicação analógica, influenciando a seleção da norma legal em caso de conflito
ou concurso de normas, na concretização de cláusulas gerais (por efeito de
“desdobramento”71), etc.
Os princípios podem ainda, segundo ANTÓNIO CORTÊS72, legitimar a reconstrução
dogmática dos institutos. Sendo estes “constituídos não só pelo espírito do princípio
referencial em que se baseiam, mas ainda por todas as condições legais e pressupostos
dogmáticos que lhe dão corpo”, essas condições e pressupostos permitem uma atuação segura
do princípio normativo, suscetível de moldar o instituto. Além disso, a “irradiante força
normativa autónoma” do princípio permite a expansão do âmbito de atuação do instituto, ou
até a criação de novos institutos e figuras.
Finalmente, os princípios jurídicos permitem também conjeturar novas normas jurídicas,
a inúmeras situações típicas não previstas na lei (integração de lacunas por analogia), como
sustenta ANTUNES VARELA73 ao referir que “(…) muitas outras normas poderá o intérprete
criar, à sombra do mesmo princípio ou valor encarnado no sistema, exercendo o mandato que
o n.º 3 do artigo 10.º do Código Civil lhe confere”.
Noutro plano, cumpre realçar que a autonomia normativa dos princípios jurídicos, como
já antes se aludiu, assumem especial importância quando permitem uma solução contra legem,
sempre que não se aplica uma norma específica, por força da prevalência de um princípio
jurídico de sentido contrário.

70
Cf. por todos NEVES, A. C., Metodologia Jurídica. Problemas Fundamentais, Coimbra, 1993, p. 188 e ss.
71
Note-se porém que não são as cláusulas gerais que dão validade aos princípios; estes têm autonomia normativa.
72
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., p. 302.
73
Cf. VARELA, J. M. A., “Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Julho de 1981” in
Revista de Legislação e Jurisprudência, ano n.º 116, Coimbra, 1983-1984, p. 190.

27
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

5.3 O Estado de Direito e o pluralismo jurídico como ideias Constituintes

O “Estado de Direito” é um Estado constituído e subordinado ao Direito, necessariamente


situado num dado contexto espácio-temporal, como expressão civilizacional dos seus
princípios.
Com efeito, sustenta AFONSO VAZ74 que,
Ao lado das declarações de direitos e das normas organizatórias, surgem os (…)
princípios retores da vida social (…) [tornando a Constituição] (…) num sistema de
valores político-jurídicos aceites na comunidade, [concluindo que] a Constituição
pode assim afirmar-se como o estatuto jurídico fundamental da comunidade política
enquanto recolhe valores fundamentais e aceites pela comunidade e os converte em
valores jurídicos fundamentais.

Acrescenta ainda o autor, convocando VIEIRA DE ANDRADE, que a Constituição,


Mais não é do que uma unidade de sentido cultural. Não é um mero texto, nem se
limita simplesmente a traduzir a realidade ou a cultura, antes é o conjunto ativo destes
três elementos. Esta conceção de tridimensionalidade constitucional engloba os
valores (elementos axiológicos) e a realidade (elementos políticos e sociológicos) que
caracterizam o ambiente em que o texto vai ser interpretado e aplicado75.

Ou seja, no “Estado de Direito”, o poder também está vinculado pelos princípios (valores)
de Direito aceites pela comunidade, quer aqueles mais universais, como a “dignidade da
pessoa humana”, “igualdade”, “proporcionalidade”, entre outros, quer aqueles que a doutrina
e a jurisprudência vai formulando, como o “princípio da confiança” ou o “princípio da
igualdade de armas” e “contraditório” em processo civil, entre outros, quer ainda “por aqueles
princípios de racionalidade na aplicação do Direito, sustentados nos princípios estruturantes
da razão jurídica”76, como por exemplo o “princípio da coerência”.
A este respeito, FIGUEIREDO MARCOS77 dá-nos conta que:
Na segunda metade do séc. XX ergueu-se um novo modelo de relacionamento entre a
administração e o direito. A vinculação da primeira ao segundo passou a constituir-
se em moldes diferentes (…), [visto que] já não é só o princípio do primado da lei a
impor-se a todos os atos da administração, já não é só a lei a servir de pressuposto e
fundamento de toda a atividade administrativa (…) agora, no âmbito das matérias de
reserva legislativa parlamentar, exige-se uma vinculação mais intensa da atividade
administrativa a uma legalidade densificada. Agora a discricionariedade
administrativa, mesmo a concedida por lei, está submetida ao direito e aos princípios

74
Cf. VAZ, A., Teoria da Constituição. O que é a Constituição, hoje?, Coimbra, 2012, pp. 44-45.
75
Cf. VAZ, A., Ob. Cit., p. 68.
76
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., pp. 313-314.
77
Cf. MARCOS, R. M. F., História da Administração Pública, Almedina, 2016, pp. 377-378.

28
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

jurídicos fundamentais de igualdade, imparcialidade, proporcionalidade, justiça, boa


fé e racionalidade (…).

A ideia de “Estado de Direito” como um “Estado de princípios” reflete-se em vários


níveis78:
§ A existência e a força dos Direitos deve ser considerada em função dos princípios mais
universais do Direito; há Direitos imediatamente aplicáveis que não têm de estar escritos
no catálogo dos direitos, liberdades e garantias que a Constituição apresenta, cujo caráter
incondicionado resulta da íntima conexão com o “princípio da dignidade da pessoa
humana” (génese da formulação jurisprudencial ao chamado “direito a um mínimo de
existência”), ou com o núcleo essencial da ideia de “Estado de Direito”;
§ Por outro lado, os princípios do Direito interferem ainda na delimitação do âmbito das
liberdades fundamentais. De facto, estas não são ilimitadas, e devem ser conformadas
por limites resultantes de outros princípios ou bens dignos de proteção jurídica, segundo
os princípios do pluralismo axiológico, como decorre do n.º 2 do art. 18.º da CRP,
designadamente “princípios de justiça comutativa e distributiva”79. Assim se
compreende, por exemplo, que o direito fundamental à propriedade privada (consignado
no art. 62.º da CRP), seja condicionado pela necessidade de “satisfação das necessidades
financeiras do Estado e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza” (Cf. n.º 1 do
art. 103.º da CRP), que implicam a criação de impostos;
§ A ideia de “Estado de Direito” enquanto “Estado de princípios” projeta-se também ao
nível da força e alcance dos princípios jurídicos fundamentais. Alguns destes princípios
Constitucionais, dada a sua justificação ética e axiológica, devem assumir uma função
mais exigente do que à primeira vista parecem ter. Assim, por exemplo os princípios da
“imparcialidade” e da “boa fé” que se impõe à Administração do Estado (Cf. n.º 2 do
art. 266.º da CRP), deverão assumir uma dimensão positiva (dada a relação íntima entre
“imparcialidade” e “boa fé”, doravante as referências que serão feitas à “imparcialidade”
deverão considerar-se como abrangendo igualmente a “boa fé”), de modo a tutelar de
forma efetiva a confiança na atuação da Administração. Eles não se reduzirão por
exemplo à mera afirmação negativa de ausência de impedimentos e incompatibilidades

78
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., pp. 314-318.
79
Cf. ESSER, J., Grundsatz und Norm in der Forbildung des Privatrechts. Rectsvergleichende Beiträge zur
Rechtsquellen und Interpretationslehre, 4. Aufl, Tübingen, 1990, p. 72.

29
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

formais, antes exigindo um dever de obtenção de informação, devidamente ponderada


em concreto no processo decisório, e que se cumpram no ato de fundamentação;
§ Num “Estado de Direito” como Estado que se conforma e subordina aos princípios do
Direito, não é a letra (texto) da Constituição que determina, decisivamente e por si só, a
força vinculativa de cada preceito Constitucional, mas sim a justificação ética ou
axiológica de cada preceito. Assim, por exemplo o dever de fundamentação das decisões
jurisdicionais (Cf. art. 206.º CRP) parecendo só existir “na forma prevista na lei”, na
verdade ele existe, para CASTANHEIRA NEVES80 “independentemente da lei, como
princípio jurídico-constitucional, decorrente da atual cultura jurídica de “processo
equitativo” e de “Estado de Direito”, mesmo que não tivesse consagração expressa”81.
Note-se que não se rejeita a pertinência reguladora da lei neste âmbito, apenas se
pretende sublinhar que o conteúdo nuclear do princípio não depende da lei;
§ Por fim, e na esteira do que já se mencionou a propósito da Administração, esta não está
apenas vinculada por normas legais, mas também por princípios, limitando a sua
discricionariedade. Não só aos princípios fundamentais, mas também a outros
princípios, explícitos ou não, que seja possível reconduzir às ideias primeiras de
“justiça” e “Estado de Direito”82. Pense-se por exemplo nos “princípios da proteção da
confiança”, de que o Estado não pode alegar a seu favor uma falta que é imputável a si
mesmo83, entre outros.
A respeito vinculação da Administração aos princípios, ANTÓNIO CORTÊS84 problematiza
a questão de saber se a possibilidade de recusa de aplicação de uma norma legal por ofensa a
princípios abrange a Administração, em virtude do princípio da legalidade que sobre esta recai
de forma especial85. Como afirma o autor, a vinculação à legalidade não é um fim em si
mesmo, antes vale essencialmente na medida em que superiores princípios a justificam; vale
como princípio garantístico de outros fins que a justificam, designadamente a igualdade,

80
Cf. NEVES, A. C., Questão-de-facto-Questão-de-Direito ou o problema metodológico da juridicidade (Ensaio
de uma reposição crítica), I A crise, Coimbra, 1967, p. 414.
81
No mesmo sentido, LARENZ, citando ESSER, refere: “Onde quer que a jurisprudência transcenda os quadros
traçados pela lei apelará necessariamente a “pensamentos jurídicos gerais ou “princípios” que retira ou pretende
retirar da própria lei (…) tais “pensamentos jurídicos gerais” seriam enquanto “princípios” eficazes
independentemente da lei” Cf. LARENZ, K., Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste
Goulbenkian, 2014, p. 191.
82
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., p. 321.
83
Cf. RAISCH, P., Juristische Methoden, Vom antiken Rom bis zur Gegenwart, Heidelberg, 1995, p. 174.
84
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., pp. 322-323.
85
Cf. ANDRADE, V., Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa de 1976, Coimbra,
2009, p. 215.

30
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

confiança e proteção da proteção dos direitos e interesses dos particulares. E acrescentamos


nós, em último termo, atendendo à realização da “justiça”.
AROSO DE ALMEIDA86 refere a este propósito que:
Do art. 266.º da CRP resulta, pois, que o enquadramento jurídico da administração
vai muito para além da subordinação à Constituição e às leis. A Administração
Pública é instituída como um aparelho dirigido à prossecução de uma multiplicidade
de fins – que a Constituição sintetiza no “interesse público” – e é advertida sobre os
parâmetros (“os princípios”) que deve observar, uma vez lançada na prossecução
desses fins.

Com efeito, não só a Administração está vinculada, para além (e a par) da legalidade, a
respeitar a justiça (Cf. n.º 2 do art. 266.º da CRP), como o texto fundamental foi concebido
“tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno” [sublinhado
nosso] (Cf. preâmbulo da CRP). Ora se finalisticamente a Constituição visa um país mais justo
(visa a justiça), esse elemento teleológico deve estar sempre presente na ponderação das
exigências de legalidade que recaem sobre a Administração. Acrescente-se que, também no
plano Comunitário, consta no TUE (vigente em Portugal ex vi n.º 4 do art. 8.º da CRP) o
mesmo elemento teleológico:
RESOLVIDOS a facilitar a livre circulação de pessoas, sem deixar de garantir a
segurança dos seus povos, através da criação de um espaço de liberdade, de
segurança e de justiça, nos termos das disposições do presente Tratado e do Tratado
sobre o Funcionamento da União Europeia [sublinhado nosso] (Cf. preâmbulo do
TUE).

6. Princípios jurídicos e fundamentação expressa das decisões jurisdicionais


6.1 A fundamentação expressa das decisões na jurisprudência dos princípios

ANTÓNIO CORTÊS87 refere que “a prática de uma jurisprudência dos princípios transparece
de modo paradigmático no texto das decisões judiciais. Nelas se vê até que ponto o modelo
dos princípios é, ou não, levado a sério”. Ao que acresce que os objetivos jurídico-
constitucionais de um modelo de princípios – maior justiça das decisões, e portanto, maior a
sua legitimidade – são os fins da fundamentação expressa das decisões. Como tal, em último

86
Cf. ALMEIDA, A., Sumários de Direito Administrativo – Parte I – Quadros Fundamentais, Policopiado
2015/2016, p. 31.
87
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., p. 337.

31
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

termo, o “modelo dos princípios” implica um específico “modelo de fundamentação das


decisões”.
De resto, a exigência de fundamentação de decisões judiciais (as “razões das decisões”)
é um princípio fundamental do Direito, na generalidade dos Estados; faz parte da “consciência
jurídica geral” e é indissociável da ideia de “Estado de Direito”. Nem sempre foi este o
princípio, mas a este propósito é de sublinhar que Portugal foi pioneiro na inversão da
doutrina, generalizando o dever de fundamentação a todos os tribunais88.
Contudo, a partir da segunda metade do séc. XX, a importância da fundamentação
aumentou significativamente, dado o maior protagonismo assumido pelos tribunais enquanto
instituições independentes, a par da difusão dos modelos de decisão segundo princípios.
O fim da fundamentação é, portanto, a “demonstração pública do acerto da decisão” 89 e
dessa forma adquirir a sua legitimidade90, viabilizando a sua sindicabilidade. Por outro lado,
desempenha uma função de formação futura das fontes de Direito, dando ainda indicações
úteis aos aplicadores de Direito e ao próprio legislador. Permite, por fim, criar um verdadeiro
sistema de precedentes, contribuindo para a segurança jurídica, e viabilizando desse modo um
aperfeiçoamento das decisões de Direito.

6.2 Densidade e estrutura da fundamentação da decisão jurisdicional

A fundamentação de uma decisão tem limites, e não poderá aspirar a explicitar razões que
determinem a sua adequação, com cientificidade matemática.
Não obstante, deverá concretizar os factos e as razões de Direito que foram levadas em
consideração, no processo da decisão, diretamente referidos ao litígio concretamente
analisado.
Por outro lado, no âmbito do modelo de princípios, não se deve abdicar de critérios
mediadores entre o caso e os princípios convocados.
Assim, ANTÓNIO CORTÊS91 sustenta que há três diretivas para uma fundamentação
razoavelmente suficiente em matéria de Direito:

88
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., p. 339.
89
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., p. 340.
90
Cf. SILVA, G. M., “A fundamentação das decisões judiciais. A questão da legitimidade democrática dos juízes”
in Direito e Justiça – Tomo II, UCE, 1996 pp. 21-26.
91
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., pp. 342-359.

32
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

§ Conter a descrição completa e circunstanciada dos factos relevantes em vista a todas as


regras e princípios potencialmente aplicáveis (Cf. n.º 4 do art. 607.º do CPC);
§ Ter em consideração os precedentes que dão densidade casuística às regras e princípios,
em especial quando invocados pelas partes em litígio;
§ Escalonar ou sequenciar os fundamentos da decisão, fazendo intervir os princípios de
Direito nos seus diferentes níveis de normatividade e tendo em conta, ainda, os critérios
dogmáticos que os concretizam.
Quanto à matéria de facto, poderá ser complexo, por vezes, selecionar os elementos
relevantes, visto que exige uma antecipação mental de todas as soluções plausíveis de Direito.
Ou seja, todas as normas legais, precedentes e doutrina. Por outro lado, a descrição dos factos
deve ser concreta e não vaga; ou seja, não bastará dizer que certa parte atuou com “boa fé”,
que é já um juízo de Direito, antes se exigindo a identificação de factos concretos que por sua
vez habilitem o juiz de os valorar, à luz do Direito. Por outro lado, a aplicação de princípios
implica um conhecimento mais alargado da matéria de facto, em comparação com a aplicação
de uma regra escrita. Por fim, a descrição circunstanciada dos factos é também relevante para
o funcionamento do sistema de precedentes.
Relativamente à importância dos precedentes, o autor sustenta que um “modelo princípio-
lógico (...) exige um sistema de precedentes e uma cultura do precedente”, colocando “o
tribunal permanentemente entre o passado e o futuro: a sua decisão deve ter em conta os casos
passados decididos e os casos futuros análogos”. Com efeito, o respeito pelo precedente, que
goza de uma certa “presunção de correção”92, releva por razões de segurança, de proteção da
confiança e de igualdade.
Quanto à vinculação aos precedentes judiciais, ANTÓNIO CORTÊS sustenta que estamos
“próximos do espírito tradicional da Common Law onde vigora o princípio stare decisis”.
Também KRIELE93 afirma que “os precedentes judiciais têm para o juiz continental
fundamentalmente o mesmo significado que para o juiz anglo-americano”. De resto, o tribunal
deverá ter presente que a sua decisão é, em potência, suscetível de vir a constituir precedente,
pelo que as decisões do tribunal devem ser, dentro do possível, passíveis de universalização.
Porém, nada obsta que “o juiz se possa afastar do precedente com base em diversas razões
válidas”, inexistindo atualmente, uma absoluta vinculação à regra do precedente (por

92
Cf. KRIELE, Theorie der Rechtsgewinnung entwickelt am Problem der Verfassungsinterpretation, Berlin, 1976,
pp. 160, 165, 245, 247 e ss e 258 e ss.
93
Cf. KRIELE, M., Recht und praktische Vernunft, Göttingen, 1979, p. 59.

33
APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

contraposição ao que sucedia no regime dos “assentos”)94, razão pela qual existe entre nós a
figura de recurso para “uniformização de jurisprudência” (Cf. na jurisdição administrativa,
art. 152.º do CPTA).
Porém, se é verdade que uma dada decisão judicial pode consistir na mera remissão para
o precedente, em caso de reiteração da solução, já quando se decida em sentido contrário, e
em particular quando uma das partes invoca o precedente, impõe-se uma justificação e
densidade de fundamentação, sob pena de se por em crise os princípios constitucionais da
“igualdade” (Cf. art. 13.º da CRP) e do “processo equitativo” (Cf. n.º 4 do art. 20.º da CRP).
Em qualquer caso, o precedente deve ser ponderado, sobretudo quando provém de um tribunal
superior, sem todavia se perder de vista as diferenças e similitudes, comparando o caso sub
judice e o caso do precedente.
Por fim, quanto à escalonação da fundamentação em caso de aplicação de princípios
jurídicos, a justificação da decisão deve ser feita em “mais de um grau”95. Ou seja, segundo
RAZ96, não basta a invocação genérica de um princípio de Direito ou de uma ideia regulativa.
Ideias como “dignidade humana”, “processo equitativo”, “justiça” ou “bons costumes”
poderão surgir como elemento central da fundamentação, mas segundo ESSER97, nunca como
único elemento da mesma. Essas ideias deverão ser concretizadas com critérios mais
específicos e mais operativos. Ou seja, os princípios poderão servir de “esquema principal”
de fundamentação, mas de segundo ou terceiro nível, exigindo nesse caso, um “esquema
secundário de apoio”98. Concretizando esta ideia citando ANTÓNIO CORTÊS99:
Não será suficiente afirmar, diretamente (…) que uma norma ou ato viola o princípio
do Estado de Direito (sem a mediação de nenhuns princípios ou critérios mais
específicos). Mas já seria, por exemplo, possível afirmar que uma determinada norma
ou ato viola o “princípio do contraditório” e que este é uma exigência fundamental
do “processo equitativo” constitutivo da ideia de “Estado de Direito” (explicando
naturalmente em que medida tal sucede, com a intensidade que o caso exija).

É que se por um lado o princípio permite, em função de um conteúdo tido como consensual,
abreviar a argumentação, por outro lado exige acréscimo de argumentação, caso não exista o
mesmo consenso. Todavia, sustenta ANTÓNIO CORTÊS100, já não será necessário fundamentar

94
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., p. 346.
95
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., p. 354.
96
Cf. RAZ, M., Ob. cit., p. 850.
97
Cf. ESSER, M., “Wandlungen von Billigkeit und Billigkeitrechtsprechung im modernen Privatrecht” in
Summum ius summa iniuria, Tübingen, 1963, p. 33.
98
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., p. 354, citando MACCORMICK, ALEXY e NEUMANN.
99
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., p. 355.
100
Cf. CORTÊS, A., Ob. cit., p. 355.

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APONTAMENTOS DE METODOLOGIA DO DIREITO

o próprio princípio fundamental; “raros serão os princípios que se possam considerar uma
evidência “natural”, mas muitos se tornaram uma evidência “civilizacional”.
Em suma, o que importa para este autor, é estabelecer uma relação clara entre o “caso” e
o “princípio”, através da indicação de todos os factos relevantes e das necessárias mediações
jurisprudenciais e dogmáticas, que são fulcrais para a operatividade de um modelo de
princípios.

II- Principais referências bibliográficas


- ALEXY, R., Teoria da argumentação jurídica. A teoria do discurso racional como
teoria da fundamentação jurídica, GEN, 2011.
- ANDRADE, V., Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa
de 1976, Coimbra, 2009.
- ALMEIDA, A.:
§ Sumários de Direito Administrativo – Parte I – Quadros Fundamentais,
Policopiado 2015/2016.
§ Teoria Geral do Direito Administrativo – O Novo Regime do Código do
Procedimento Administrativo, Almedina, 2015.
- BRONZE, F., Lições de Introdução ao Direito, Coimbra, 2006.
- CORTÊS, A., Jurisprudência dos princípios. Ensaio sobre os fundamentos da decisão
jurisdicional, UCE, 2010.
- LARENZ, K:
§ Metodologia da Ciência do Direito, Fundação Calouste Goulbenkian, 2014.
- MACHADO, J. B., Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 2002.
- MARCOS, R. M. F., História da Administração Pública, Almedina, 2016.
- RAWLS, J., A theory of Justice, Harvard Univ. Press, 1971.
- SOUSA, M. T., Introdução ao Estudo do Direito, Almedina, 2015.

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