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Doutoramento em Direito
29/07/2016
Índice
1. Introdução……………………………………………………...página 3
4. Conclusão……………………………………………………...página 24
5.Referências bibliográficas….…………………………………página 26
2
1. Introdução
“ (…) a palavra (o discurso, a razão, o pensamento) de odos, o caminho para algo além,
meta – é a raiz etimológica de metodologia (cfr. FIKENTSCHER, Methoden des
Rechts, IV, p. 121 e ss.).1 E nessa base poderá ela definir-se como a “lógica”, a razão (a
racionalidade) ou o pensamento de um proceder (modus, processo) que visa um fim
específico ou se propõe um certo objectivo. Mas em termos de o logos, como o
“condutor” (enquanto o fundamento, enquanto o regulativo, enquanto o determinante,
etc.) se destacar numa relação intencional do (…) (modus ou processo finalizado), e
então a metodologia é ou propõe-se ser a razão intencional de um método – a
racionalidade ou o pensamento de (ou sobre) esse método. Postulemos que no nosso
caso o objectivo ou o fim é a realização do Direito e isso implica que a metodologia
jurídica será o logos (a ratio) intencional, a racionalidade ou o pensamento do metodos
pelo qual se cumprirá essa realização.”2
Lato sensu, o método constitui um plano organizado e sistemático que regula uma
sequência de operações a executar. O método é a estratégia utilizada pelo investigador
(ou pelo intérprete jurídico) que lhe permite ultrapassar os obstáculos resultantes da
complexidade das questões e dos problemas susceptíveis de surgir.
Mais especificamente, este trabalho pretende realizar uma análise crítica a alguns dos
aspectos da obra Introdução ao Pensamento Jurídico da autoria do insigne jurista e
1
Apud NEVES, A. Castanheira, Metodologia Jurídica - Problemas Fundamentais, p. 9.
2
NEVES, A. Castanheira, op. cit., pp. 9, 10.
3
penalista Engisch, um dos grandes nomes da lógica jurídica enquanto teoria formal do
direito.
Decidimos focar o nosso exame em duas temáticas principais que constituirão o núcleo
deste trabalho:
A escolha destas temáticas leva-nos a introduzir a questão de até que ponto ambas se
encontram relacionadas entre si. Podemos considerar que a natureza imperativa que
Engisch atribui às normas jurídicas conduz necessariamente à adopção por parte deste
autor de uma metodologia analógica que negligencia o silogismo inferencial abdutivo?
Ou seja, será que a segunda temática é consequência da primeira? Adiante explicaremos
mais em detalhe esta situação e procuraremos providenciar respostas.
Na já mencionada obra de Engisch, este autor opta explicitamente pela defesa de uma
perspectiva imperativista do direito. No entanto, o imperativismo jurídico está longe de
ser uma criação de Engisch. Esta doutrina, a teoria imperativista do direito, foi já
formulada em 1832 na obra intitulada The Province of Jurisprudence Determined da
autoria do jurista Austin. Aliás, ela é uma das doutrinas que tradicionalmente têm sido
qualificadas como pertencendo à escola positivista do direito. No entanto, ela foi
sofrendo alterações ao longo dos tempos e com a mudança dos contextos histórico-
jurídicos. E se Austin é um autor do século XIX, o foco deste trabalho centrar-se-á
sobretudo no imperativismo do século XX, especificamente do pós-2ª Guerra Mundial.
4
normas e/ou leis sendo que estas são imperativos provenientes de seres humanos. Para
Larenz, a teoria imperativista crê que todas as disposições jurídicas podem reduzir-se
em última análise a proposições que prescrevem ou proíbem uma determinada conduta,
ou seja, são imperativos, e quer reservar só para estas a designação de «proposições
jurídicas».3
Para Engisch, a comunidade jurídica, o estado e o legislador, através dos seus poderes,
estabelecem uma regra de direito impositiva através de sanções dentro de um sistema
regulatório para a sua implementação eficaz, o que faz com que ela seja imediatamente
executória pela sociedade que esse legislador representa. Ou seja, para Engisch, as
regras jurídicas são expressão da vontade dos referidos agentes e são direccionadas para
uma certa conduta dos súbditos, têm como objectivo determinar a sua realização.4 E
enquanto os imperativos se encontrarem em vigor, eles têm força obrigatória e
incondicional. Engisch não hesita mesmo em defender a teoria segundo a qual o direito
é substancialmente constituído por “imperativos e só por imperativos” dos quais os
deveres e obrigações são o correlato.5
Este autor recusa também a ideia de que o carácter imperativista do direito seria
colocado em causa devido à existência de normas jurídicas revogatórias que não
possuem natureza imperativa, pois essas normas apenas diminuem a totalidade da
quantidade de imperativos sem no entanto acrescentarem preceitos jurídicos de um tipo
novo. Ou seja, Engisch nota que o que nelas sucede é que a vontade do destinatário da
norma é libertada enquanto no caso dos imperativos ela é vinculada. As normas
revogatórias somente subtraem ao domínio do direito certas condutas que são relegadas
para o espaço livre de direito, para o “espaço ajurídico”. Assim, Engisch considera que
longe de refutarem a teoria imperativista do direito, após as normas jurídicas
revogatórias exercerem a sua função o que vai restar serão sempre e apenas
imperativos.6
3
LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, p. 354.
4
ENGISCH, Karl, Introdução ao Pensamento Jurídico, p. 38.
5
Ibidem.
6
Ibidem, pp. 40, 41.
5
Estas concepções imperativistas do direito já tinham sido criticadas e refutadas por Hart.
Em meados dos anos 50, este ilustre jurista levou a cabo a árdua tarefa de tentar
reivindicar o positivismo jurídico, então desacreditado e culpado pela passividade
mostrada perante as leis iníquas estabelecidas na Alemanha nazi. Para defender o
positivismo e "purificá-lo", Hart irá tentar desconectá-lo de muitas teses que
tradicionalmente lhe estavam implícitas, deixando-o reduzido essencialmente à tese da
negação da conexão conceitual necessária entre direito e moral. E uma dessas teses é
precisamente a “teoria dos imperativos” ou do imperativismo jurídico seguida por
autores como Engisch. Hart direccionará a sua crítica contra o imperativismo tomando
como referência as teses de Austin. No entanto, notamos que se é certo que existem
diferenças entre os imperativismos de Austin e de Engisch pensamos que as críticas de
Hart poder-se-ão também aplicar ao de Engisch.
Hart defende que a teoria imperativista do direito não reconhece nem abarca certas
características notórias do sistema jurídico. E tal porque as leis-imperativos apenas se
podem reconduzir a um certo tipo de lei, nomeadamente aquele que impõe obrigações.
O exemplo mais ilustrativo são as leis penais, que impõem a realização de acções ou de
omissões sob ameaça de pena ou outro tipo de sanção.
Mas segundo Hart, para além desta espécie de normas, existem também outras com
características distintas que concedem faculdades públicas e privadas e que não impõem
obrigações. Tais normas não podem pura e simplesmente ser reduzidas a meros
imperativos. Poderemos apresentar como exemplo deste tipo de norma a lei do
casamento civil, que tem como objectivo ser um instrumento para que as partes
interessadas possam contrair matrimónio. Neste caso, a lei em questão não expressaria
nenhum imperativo.
6
Hart não deixa de reconhecer que certas normas (como por exemplo as penais) se
assemelham muito a imperativos respaldados pela ameaça de uma sanção em caso de
desobediência. Por exemplo, a lei que castiga a ofensa à integridade física ordena que
todos se abstenham de ofender a integridade física de outrem e ameaça possíveis
infractores com sanções em caso de desobediência. Neste tipo de situação, pelo menos
aparentemente, o modelo imperativista parece interpretar correctamente a natureza do
direito. No entanto, existem outros tipos de leis às quais este esquema de ordens
asseguradas por ameaças de sanções em caso de incumprimento parece não se adequar.
As regras jurídicas que determinam as formas válidas de constituição por exemplo do
direito de propriedade, da realização contractos, testamentos ou matrimónios válidos
não exigem actuações determinadas independentemente dos destinatários o desejarem
ou não.
Mas Engisch sustenta que a existência de direitos subjectivos através dos quais o direito
atribui algo e concede vantagens tão-pouco refuta a teoria imperativista. E isto porque
esses direitos subjectivos de pouco ou nada valeriam sem uma certa constituição de
imperativos que de facto os efectivam.7 Relativamente a este aspecto, Engisch aponta
como exemplo o direito de propriedade enquanto protótipo de direito subjectivo.
Segundo este autor, as vantagens e as atribuições concedidas pelo direito de propriedade
nunca se poderão verificar concretamente a não ser através de imperativos que proíbam
que se impeça seja de que forma for o proprietário de usufruir daquilo que lhe pertence,
que determinem a sua restituição ao proprietário em caso de retenção ilícita por outrem
e:
7
Ibidem, p. 43, 44.
8
Ibidem, p. 44.
7
Pelo contrário, Hart indica que este tipo de normas não impõem autênticos deveres ou
obrigações, mas apenas fornecem aos indivíduos meios, instruções e instrumentos para
que estes realizem os seus objectivos, conferem poderes jurídicos para criarem, através
de certos procedimentos específicos e sujeitos a certos condicionalismos, estruturas de
direitos e deveres.9 Ou seja, o facto de as normas jurídicas que atribuem direitos
subjectivos ou outras concessões poderem vir a implicar a aplicação de normas de tipo
imperativo sobre aqueles que violem ou coloquem em risco o exercício dos direitos
advindos dessas normas não anula o facto de que elas em si mesmas não possuem
fundamentalmente carácter imperativo. Aliás, a aplicação das mencionadas normas
imperativas sobre prevaricadores será sempre eventual, não é absolutamente necessário
e certo que suceda pois apenas ocorrerá se houver perturbação efectiva daqueles
direitos. Caso contrário nem sequer haverá lugar à utilização da “constelação de
imperativos” mencionada por Engisch.
Ainda uma outra espécie de leis que não impõem obrigações são aquelas que conferem
poderes públicos para criar, aplicar e executar as leis. As normas que estatuem
exactamente quem e de que forma se poderão criar novas leis não impõem aos seus
destinatários legisladores nenhuma obrigação de legislar. Estes apenas o farão se assim
o entenderem. Se uma norma obtém a maioria de votos para ser aprovada, isso não
significa que a maioria que votou a favor “obedeceu” à lei que exige essa maioria. Nem
a minoria que votou contra “desobedece” ao “comando” dessa mesma lei.10 Assim, caso
existissem apenas as normas imperativas que impõem obrigações sob ameaça de sanção
isso significaria que conceitos que nos são tão familiares como os de matrimónio,
testamento, contracto, normas de regulamentação dos actos de legislar, etc. estariam em
falta.11
Mas se para Hart é certo que nem todas as normas são imperativos, há-que determinar o
que têm então em comum as normas imperativas que ditam deveres e aquelas que
conferem poderes a nível público e privado. E Hart afirma que tanto umas como outras
constituem parâmetros pelos quais as acções humanas individuais podem ser objecto de
9
HART, Herbert, The Concept of Law, p. 28.
10
Ibidem, pp. 31, 32.
11
Ibidem, p. 32.
8
apreciação crítica. Hart qualifica estes parâmetros como “regras” (rules). Ou seja, o
direito não é um sistema de imperativos, mas sim um sistema de regras.
Por sua parte, Hart defende que é óbvio que a legislação pode possuir força auto-
vinculativa. É certo que tal não sucede em estados com certo tipo de organização
política como por exemplo nas monarquias absolutas, mas nos estados de direito
democráticos as leis também obrigam os próprios legisladores. Nem se argumente que
estas leis obrigariam os seus criadores apenas enquanto indivíduos e não enquanto
membros do corpo soberano. A esta ideia responde Hart que a noção de possuir
diferentes capacidades consoante alguém se posicione como indivíduo ou como
membro do grupo soberano apenas pode ser compreendida como uma admissão da
existência de regras jurídicas que conferem direitos potestativos e que não podem
portanto ser reduzidas a meras normas imperativas.13
12
AUSTIN, John, The Province of Jurisprudence Determined, p. 254.
13
HART, Herbert, op. cit., p. 43.
9
permitido em determinadas circunstâncias que o justifiquem mediante valoração
diversa.14 No entanto, estas constatações não conduzem a modificações à perspectiva de
Engisch do direito enquanto conjunto de comandos imperativos.
14
ENGISCH, Karl, op. cit., p. 46, 47.
15
AUSTIN, John, op. cit., p. 32.
16
HART, Herbert, op. cit., p. 48.
10
Devemos reconhecer que as críticas elaboradas por Hart relativamente à teoria
imperativista possuem relevância. Qualquer tentativa de conceber o direito como um
sistema de imperativos deve que ter estas críticas em consideração. Um aspecto
interessante da crítica de Hart é que esta dará lugar à sua famosa teoria da lei como uma
união de dois tipos de regras, primárias e secundárias, sendo ambos parâmetros para que
as acções humanas individuais possam ser criticamente apreciadas e para que se possam
providenciar aos sujeitos razões para agir.
Apesar de relevante, não nos parece que este argumento de Engisch seja insuperável. É
certo que as normas que concedem poderes e direitos subjectivos são pressupostos de
aplicação de imperativos. Mas tal não as torna imperativos, pelo que contrariamente ao
que sustentam autores como Engisch nem todo o direito é necessariamente imperativo.
Por exemplo, as normas que determinam quais os requisitos jurídicos que devem ser
cumpridos para que um determinado contracto seja legalmente válido constituem sem
17
ENGISCH, Karl, op. cit., pp. 72,73, anotação 3.
11
dúvida um pressuposto de imperativos, pois é através do seu cumprimento que as partes
poderão elaborar um contracto lícito do qual derivam direitos e deveres para ambas.
Mas esse conjunto de normas apenas se aplica de maneira facultativa, apenas se aplica
se as partes assim o pretenderem. E caso as partes optem por não efectuar o contracto,
elas não estão a “desobedecer” àquelas normas, tal como se optassem por o efectuar
também não lhes estariam a “obedecer”. E como é óbvio, aquele conjunto de normas
não se encontra respaldado por ameaças de sanções em caso de “incumprimento” ou
“desobediência”. Trata-se de uma situação idêntica àquela já dantes mencionada relativa
às normas de regulamentação dos actos legislativos. Ou seja, apesar dessas normas
serem pressupostos da aplicação de imperativos, elas não são em si mesmas imperativos
pelo que parece que, no essencial, a crítica de Hart ao imperativismo poderá ser
procedente.
Regressando a Hart, é também importante mencionar que este autor contradiz a teoria
imperativista seguida por Engisch porque para Hart é necessário abandonar a
perspectiva do direito como algo constituído por ordens e regras coercivas. Em seu
lugar, a legislação deve ser considerada como introdução ou modificação de critérios
gerais de comportamento a serem seguidos pela sociedade no seu todo.19
18
LARENZ, Karl, op. cit., pp. 354, 358.
19
HART, Herbert, op. cit., p. 44.
12
No entanto, esta posição de Hart é criticada por Dworkin que argumenta que as policies
(políticas) e os principles (princípios) não só não são imperativos como também não
especificam qualquer comportamento. Dworkin define policy como um parâmetro que
estabelece um objectivo a ser atingido, geralmente uma melhoria num aspecto político,
económico ou social da comunidade. Tal não invalida que alguns objectivos possam ser
negativos, no caso de se pretender preservar um determinado aspecto contra mudanças
tidas como prejudiciais. Dworkin aponta como exemplo de policy o critério geral de que
o número de acidentes de automóvel deve ser diminuído. Como outros exemplos
podemos também apresentar as directivas que são passíveis de se adaptarem a vários
comportamentos para atingir um determinado fim. As cartas de direitos sociais também
se podem considerar da mesma forma como sendo policies. Já os principles são
conceptualizados por Dworkin como constituindo também parâmetros que devem ser
observados, mas não porque vão permitir assegurar uma certa situação social,
económica ou política. Segundo Dworkin, os principles devem ser observados porque
expressam uma exigência da justiça ou de outra dimensão da moralidade. Dworkin
aponta como exemplo de principle o critério geral de que, salvo excepções, ninguém
deve poder tirar proveito das suas próprias condutas condenáveis. Por exemplo, o neto
que assassina o avô para receber a sua herança deve ser impedido de o conseguir (caso
Riggs v. Palmer).20
Obviamente que no âmbito das policies e dos principles não faz sentido colocar-se
sequer a hipótese do estabelecimento de consequências legais em casos de
“incumprimento” e/ou de “desobediência” a um qualquer suposto comando jurídico.
Contrariamente ao que ocorre com as normas, as policies e os principles não
estabelecem consequências legais que se verificam automaticamente logo que as
condições previstas estejam preenchidas.21
20
DWORKIN, Ronald, Taking Rights Seriously, pp. 22, 23.
21
Ibidem, p. 25.
13
medida em que nos permite obter um panorama mais amplo e completo da crítica contra
o imperativismo.
Por seu lado, Engisch procura conciliar a existência de princípios com o imperativismo
jurídico sustentando que aqueles se situariam num plano que já não pertenceria ao da
heurística e metodologia jurídicas. Assim, pressupõe-se que as possíveis
incompatilidades entre eles nem se colocariam por se situarem em dimensões
essencialmente diferentes. Engisch afirma que ao notar que quando a jurisprudência dos
tribunais superiores se reporta entre outros aos "princípios jurídicos gerais" trata-se
certamente em todos os casos de esforços justificados, e que importam ao jurista, de
permitir à voz do "espírito objectivo" ressonância no direito. Mas a dilucidação teorética
e a legitimação destes esforços conduz inegavelmente para além da heurística e da
metódica jurísticas enquanto tais, conduzem para o domínio do pensamento filosófico e
dos seus particulares modos de conhecimento. Este domínio tem o jurista na verdade
que o abranger no seu olhar e de o manter presente na sua visão como pano de fundo
das suas reflexões. Mas não pode atrever-se a esclarecê-lo e consolidá-lo com os seus
meios de pensamento pois deve estar ciente de que existe uma repartição de
competências entre a metódica jurística e a metódica filosófica que o teórico do direito
consciente deve respeitar.22
22
ENGISCH, Karl, op. cit., p. 387.
23
Apud KAUFMANN, Arthur, Filosofia do Direito, p. 121.
14
os critérios de aplicação da norma são encontrados a partir de um constante ir-e-vir do
olhar entre caso real e caso potencial e norma naquilo que se pode considerar como um
círculo hermenêutico.24
Por outro lado, a opção de Engisch por uma metodologia de teor analógico conduz a
que este autor apenas mencione na sua obra os tipos de inferência lógica mais
tradicionais no quadro de um modelo metodológico que podemos qualificar como
clássico. São elas precisamente a dedução, a indução e a analogia que é um misto das
duas anteriores.
Seria útil ter em consideração outros tipos de metodologia e de inferência lógica que
vão para além daqueles que Engisch contemplou. Como exemplo poderíamos apontar a
metodologia jurídica de base pragmatista que privilegia o raciocínio abdutivo no direito.
Esta tem como objectivo ultrapassar os limites inerentes às metodologias tradicionais
sem deixar eventualmente de ter em consideração as suas vantagens.
24
Apud KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, W., Introdução à Filosofia do Direito e à teoria do Direito
Contemporâneas, p. 393.
15
existem outras hipóteses de fontes legítimas alternativas de normas. Ou seja, é certo e
seguro que apenas a desobediência aos comandos contidos nas normas que provêem da
vontade do legislador implicará sanções.
No entanto, este princípio da certeza jurídica está também ligado à noção de completude
do sistema jurídico. Este conceito também faz parte do núcleo do positivismo até
porque o princípio da completude do ordenamento jurídico torna-se necessário para
justificar e basear a posição juspositivista que recusa a criação de direito pelo juiz fora
dos limites e parâmetros estabelecidos pela vontade do legislador estatal. Ou seja, é
preciso, para que se possa obter decisões sem colocar em causa essa posição, que o
ordenamento seja completo, que ele seja livre de autênticas lacunas.
Esse método será precisamente o analógico e Engisch procura justificar o seu uso e
utilidade através de um exemplo. Este autor recorre ao artigo 226a do Código Penal
então vigente na Alemanha que estatuía que as intervenções corporais tais como
operações médicas e tatuagens não constituem factos ilícitos nem ofensas corporais
desde que sejam autorizadas pelo visado. Engisch aponta a questão de se, perante a falta
de regulamentação jurídica, o mesmo se poderá aplicar à situação do estudante que pede
para ser encerrado num Instituto, durante toda a noite, para que ele possa aí trabalhar na
25
ENGISCH, Karl, op. cit., pp. 278, 279.
26
Ibidem, p. 287.
16
sua dissertação sem perturbações. Nesta situação Engisch indaga se esta lacuna também
pode ser colmatada através de um argumento de analogia tirado do artigo 226a pois tal
como a ofensa corporal com o consentimento do lesado, também a privação da
liberdade com o consentimento da vítima deve ser lícita no caso de o facto não ser
contrário aos bons costumes. 27
Segundo Engisch, para que exista uma conclusão de analogia juridicamente admissível,
requer-se a prova de que o particular, em relação ao qual a regulamentação falha (no
exemplo: a privação da liberdade com consentimento), tenha em comum com o
particular para o qual existe regulamentação (no exemplo: a ofensa corporal com
consentimento) aqueles elementos sobre os quais a regulamentação jurídica (artigo
226a) se apoia. A "semelhança" entre a ofensa corporal e a privação da liberdade
consiste precisamente no facto de que, aqui como além, são lesados bens jurídicos
pessoais que, dentro de certos limites, são confiados ao poder de disposição do
prejudicado. A analogia é lícita enquanto se verificar aquela semelhança.28
27
Ibidem, pp. 287, 288.
28
Ibidem, pp. 290, 291.
17
Ou seja, os princípios e noções com os quais o imperativismo jurídicos se entrelaça e
relaciona não se compadecem com uma forma de silogismo inferencial cuja razão de ser
se funda no achamento de factos, conhecimentos e hipóteses inovadores a partir daquilo
que já se conhece e sabe. Eles tornam-se inconciliáveis a partir do momento em que o
raciocínio abdutivo refuta por si mesmo a suposta certeza e completude do ordenamento
jurídico enquanto conjunto de normas-comandos imperativos resultantes da única fonte
legítima de direito que é a vontade do legislador. E ele fá-lo ao não apenas pressupor a
existência de hipóteses novas que extravasam e por isso recusam aquelas alegadas
certezas e completudes mas também ao propor-se como método eficaz para as
descobrir.
29
Apud TOSCANO, Fernando, Visualizing Abduction, pp. 39, 40.
18
O raciocínio abdutivo defende que a metodologia pode e deve ser tomada na perspectiva
da aplicação pelo operador jurídico. E isto porque as metodologias tradicionais possuem
deficiências e o modo de inferência abdutivo constitui o centro da proposta pragmatista
para o seu aperfeiçoamento segundo a perspectiva da lógica das consequências tal como
desenvolvida por Peirce. Aliás, as semelhanças entre a apagoge Aristotélica e a abdução
Peirceana são óbvias, até porque neste aspecto Peirce se inspirou no pensamento de
Aristóteles.
30
PEIRCE, Charles, Semiótica, p. 220.
31
Apud KAUFMANN, Arthur, op. cit., p. 118.
32
KAUFMANN, Arthur, op. cit., p. 117.
19
Conforme as próprias palavras de Peirce, o pragmatismo é a doutrina de que toda a
concepção é uma concepção de ideias práticas concebíveis.33 Assim, a determinação
pragmatista do significado de algo é aferida através do exame conjunto de todas as
consequências práticas possíveis e/ou verificáveis. Relativamente à relação entre
pragmatismo e abdução, Peirce indica que a questão do pragmatismo recobre e
corresponde à própria questão da lógica abdutiva.34 Conforme o pensamento Peirceano,
a abdução será a única inferência que permite a introdução de ideias novas. O raciocínio
abdutivo permite inferir daquilo que já se sabe algo que ainda não se conhece. 35 Desta
forma, permite a evolução e o avançar de conhecimentos inovadores. A abdução não é
validada nem a priori, nem a posteriori nem dedutivamente. Tal diferencia-a da
indução e da dedução, pois é uma inferência sintética. Usando a própria terminologia de
Peirce, o raciocínio abdutivo é falibilista, ele provém de um lampejo, de uma introvisão
(insight).36 Ele parte dos efeitos para remontar às causas e tem como propósito descobrir
a partir daquilo que se conhece algo que ainda não se domina. Esta ideia é crucial para o
pragmatismo, pois o que ele propõe não é que se atinjam concepções ultimadas, mas
sim que se façam esforços pelo aprimoramento permanente dessas mesmas concepções.
É assim que o pragmatismo possibilita que o direito tenha prosseguimento,
desenvolvimento e dinamismo.
33
PEIRCE, Charles, op. cit., p. 233.
34
Ibidem, p. 232.
35
Ibidem, p. 220.
36
Ibidem, p. 226.
20
Resultado – Logo, estas maçãs são verdes.
É de notar que a inferência abdutiva não se justifica pela mediação de um termo médio.
O princípio que habilita a abdução é antes o da heurística da descoberta de hipóteses. O
raciocínio abdutivo relaciona-se exactamente com a elaboração de uma hipótese a partir
de um discernimento. No entanto, há-que sublinhar que este discernimento é de natureza
pragmática, já que o incentivo para formular hipóteses provém dos efeitos da
experiência.
No que respeita à prática judicial, o método cuja utilização ainda hoje prevalece é o
método tradicional subsuntivo tal como se verifica desde o século XIX. Mas para se
alcançar uma maior aproximação entre o plano teórico-abstracto e a realidade prática é
necessário superar este modelo subsuntivo de forma a elaborar-se uma metodologia
jurídica mais próxima do plano concreto e factual. Tal não significa que se afaste
totalmente a metodologia tradicional apriorística-racionalista mas apenas que se procure
complementá-la. Graças à sua vocação conjectural, o pragmatismo oferece uma
21
oportunidade para o aperfeiçoamento do direito porque é um método apto a processar as
mudanças sociais. Holmes, jurista americano que chegou a ser juiz no Supremo
Tribunal dos EUA, foi um outro expoente do pragmatismo. Foi Holmes quem proferiu a
famosa afirmação que a vida do direito não tem sido lógica mas sim experiência.
Holmes sustenta que as próprias decisões judiciais não envolvem geralmente processos
inferenciais de tipo dedutivo. Para Holmes os juízes possuem em geral uma tendência
para deixarem desincorporado o âmbito sobre o qual se fundam as suas decisões já que
os motivos que autenticamente servem de base aos seus julgamentos, sejam eles de
natureza social, económica, psicológica, etc., não costumam surgir explícitos nas
decisões sendo que o papel desempenhado pelo silogismo dedutivo é realmente o de
mera justificação posterior à efectiva tomada de decisão.37
Já Kaufmann contradiz ambos os paradigmas dedutivo e indutivo, pois eles não seriam
suficientes para se atingir o direito. Como tal, é necessária uma nova metodologia
fundada na analogia que é precisamente uma inferência mista indutiva-dedutiva.
Kaufmann menciona a abdução mas não a trata em profundidade salientando até que ela
é “ainda mais insegura do que a analogia”.38 Este autor sustenta que o modelo
37
HOLMES, Oliver, The Path of Law, pp. 59, 85.
38
KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, W., op. cit., pp. 186, 187.
22
subsuntivo clássico seria sempre limitado pois a norma e a situação factual nunca são
exactamente iguais mas apenas semelhantes.
23
pensamento jurídico. E Cardozo nota que se a verdade do pragmatismo não é genuína
para o metafísico, ela é pelo menos genuína para aqueles cujo pensamento deve ser
traduzido em acção, para aqueles que não são apenas cientistas mas homens práticos
que têm de contentar-se com algo menos do que o ideal perfeito e completo.40
Ou seja, o que o pragmatismo se propõe é abolir o abismo colossal que se supõe existir
entre a existência e o pensamento. Este último encontra a sua justificação na conduta
que o agente está apto a produzir. Desta forma, o pensamento move-se num plano único
juntamente com a existência e a vida prática e factual pois ele também é um elemento
da própria realidade. Por isso é que o que constitui o significado de algo é o conjunto
dos efeitos práticos concebíveis.
Estes são alguns dos argumentos que podem ser apresentados a favor da adopção de
uma metodologia de carácter mais pragmatista-abdutiva em lugar da metodologia
essencialmente analógica proposta por Engisch.
4. Conclusão
Tal como temos vindo a constatar ao longo do trabalho, no que respeita aos silogismos
inferenciais utilizados pela metodologia jurídica, um dos aspectos da obra Introdução
ao Pensamento Jurídico de Engisch que a destaca é o facto de não mencionar a abdução
uma única vez, nela o raciocínio de base pragmatista-abdutivo é pura e simplesmente
ignorado. Outros autores como Kaufmann mencionam o raciocínio abdutivo ainda que
não o tenham desenvolvido ou sequer discorrido sobre ele de forma profunda. Engisch
poderia também tê-lo referido quanto mais não fosse para procurar proceder à sua
crítica mas tal não sucede preferindo este autor manter-se arreigado a uma concepção
metodológica tradicionalmente analógica. Este foi precisamente a característica da
referida obra de Engisch que nos incentivou a seleccionar o tema deste trabalho e
especificamente a procurar determinar o porquê desta situação.
40
CARDOZO, Benjamin, A Natureza do Processo e a Evolução do Direito, pp. 133, 179.
24
sua opção pelo método analógico e a sua recusa implícita do raciocínio abdutivo.
Aquela perspectiva e esta opção estão inevitavelmente interligadas entre si e esperamos
ter conseguido explicitar as razões desta situação de forma esclarecedora. Assim,
respondemos afirmativamente às perguntas que colocámos na introdução deste trabalho.
25
5. Referências bibliográficas
HART, Herbert, The Concept of Law, 2nd edition, New York: Oxford University
Press, 1961.
HOLMES, Oliver, The Path of Law, “The Holmes Reader”, New York: Oceana
Publications, 1955.
26
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