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Introdução

Metodologia Filosofia do
juridica Direito

Reflexão
Dogmá9ca
• Modus operandi do
juiz
• Modo como a
Reflexão
solução foi
construída (se do
efetuou uma
interpretação
extensiva,
Direito
teleológica, corrigiu
a norma em termos
de princípios).



Quais são as questões que iremos tratar nesta disciplina?
A metodologia do direito e a filosofia do direito podem ter campos distintos, tendo em comum o facto da
abordagem às mesmas não ser dogmática-doutrinas (voltada para o direito vigente) como aquela que
encontramos nas disciplinas do curso, como e direito penal- estas disciplinas trazem-nos uma perspetiva
diferente que podemos dizer meto dogmática, reflexão em que fundamentalmente em que se questiona a própria
visão do direito e que, no fundo, se pergunta de forma direta qual o sentido que deveremos atribuir ao direito
hoje, em que termos é que se esse direito se constitui e manifesta, qual o papel do direito a nível social- não
estamos a refletir o direito vigente, mas a expor o problema do sentido do direito no contexto da nossa sociedade
contemporânea, sendo uma perspetiva meto-dogmática, isto é, está para além da dogmática.

Qual é o sentido que devemos atribuir ao Direito hoje? Em que termos é que esse direito se constitui, se
realiza? Que autonomia tem o Direito da Política?
Existem fortes limites à autonomia, contudo é importante preservar o sentido específico do Direito.
Vivemos uma crise do direito que tem estado presente na 2ª parte do séc. XX na cultura ocidental, crise essa que
se fortaleceu porque um certo paradigma/modelo de pensar o direito que se tinha instalado no séc. XIX (Modelo
positivista do direito – paradigma moderno-iluminista) entrou em declínio por uma dificuldade em resolver
os problemas, o modelo não conseguia apresentar respostas. Este modelo propôs um esquema utópico do direito.
Este modelo influenciou fortemente gerações e gerações de juristas.
Ao entrar em crise fez surgir outras alternativas do que deve ser o Direito. Deixou de ser o paradigma
dominante, mas com isso temos uma dificuldade particular: no momento presente não se tem uma conceção única
e dominante do Direito – temos à nossa disposição uma série de perspetivas diferentes (conceções normativistas
e formalistas).
Atualmente, temos de lidar com um problema de pluralidade, não se tem uma única abordagem, mas sim
diferentes perspetivas com enormes reflexos na prática – reflete-se nas decisões dos juízes. (EUA – análise
económica do Direito). O facto de não haver uma única conceção do direito cria enormes dificuldades aos juristas
visto que há vários caminhos a seguir e cada um desses caminhos acarreta diferentes conclusões.

Esquema jurídico que permite sistematizar as várias linhas de abordagem do Direito – há 3 tipos de
concessões/linhas que dão intenções e exigências diferentes ao Direito:

1- Conceções Normativistas do direito: (Herdeiras do iluminismo e do positivismo normativista do séc.
XIX). Segundo estas, o direito é pensado como sendo um conjunto/sistema de normas, autossuficiente,
pensadas em abstrato e de aplicação lógica. Aqui, o direito passou a ser visto como instrumento flexível
na segunda metade do séc. XX, sem fins específicos ficando vulnerável à política e à economia!
concessão funcionalista.
Foi-se construindo a partir do séc. XVI e que teve o seu apogeu no séc. XIX, tendo um passado
representativo da cultura europeia.
Na segunda metade do século XX ganharam expressão outras concessões que pretendiam ver o direito
como um instrumento, tendo uma marca de contemporaneidade.

2. Conceções Funcionalistas: Nos meados do sec. XX, surgiram novas perspetivas, o direito deverá ser cada
experiência social o que deverá ser para a satisfação de certas necessidades, bastante vulnerável à
economia, o Direito como um instrumento das necessidades sociais! esta concessão pretende evitar a
funcionalização do direito provinda da concessão normativista do direito.

3. Conceções Jurisprudencialista: Ganharam peso na 2ª metade do séc. XX, e procurava evitar a
instrumentalização do direito. Conceção defendida por Castanheira Neves.

São estas 3 grandes linhas de pensar o direito, que irão ter implicações diferentes, geradoras de 3
compreensões muito diferentes do que é o modus operandi do juiz. O paradigma que entrou em crise foi um
modelo normativista.

Em que termos é que o paradigma matriz-normativista com matriz moderno-iluminista entrou em crise?
Porque se tornou insatisfatório?
Com esta cadeira, vamos tentar perceber porque e em que termos é que o paradigma matriz normativista que
influenciou o século XIX entrou em crise, ou seja, porque é que foi ultrapassado pelas outras concessões, porque é
que se tornou insatisfeito. No entanto, teremos de submeter esse diagnóstico de crise a uma reflexão crítica, sendo
que toda esta etapa será uma análise crítica.

Em que termos é que o paradigma moderno-normativista de matriz moderno-iluminista entrou em crise. Essa
crise pode ser explicada através de um diagnóstico. Tornou-se insatisfatório, sofreu uma erosão que se foi
tornando insustentável.
Há que fazer uma reflexão crítica da crise que este modelo sofreu (caminhos para responder aos novos problemas
que esta crise suscita).

Em seguida, coloca-se a questão de saber/realizar o diagnóstico da crise, sendo que iremos construi-lo
usando duas perspetivas:

1. Num plano macroscópico: o que nos interessa aqui é a relação entre o Direito, a sociedade e o próprio
Estado (especificação política da sociedade). Permite perceber que a conceção normativista estava ligada a
um certo modelo de Estado típico do século XIX de Direito de legalidade formal (Estado Demoliberal do séc.
XIX). Este Estado implicava uma certa conceção da lei e assim, este Estado entrou em crise nas primeiras
décadas do séc. XX que levou às experiências totalitárias que se principiaram no meio das duas grandes
guerras mundiais.
No final da 2ª Guerra Mundial desenvolveu-se um novo tipo de estado que se designa por Estado
Providência/Estado Social, sendo um estado como institucionalização política da sociedade (vamos ver o
direito na perspetiva de sociedade organizada em estado. É desta perspetiva do estado que vamos partir de
modo a que possamos ver o direito através da lei, da legalidade. O tipo de legislação que era exclusivo do
estado Demoliberal mudou com as novas conceções do Estado, surgindo uma nova visão da lei !
Diagnóstico da crise a partir da perspetiva do estado, interessando a relação do estado com o direito
(sociedade no seu plano global).

2. Perspetiva microscópica:
Esta será uma perspetiva das pessoas em concreto que têm controvérsias e que se relacionam e que pretendem
produzir certos efeitos jurídicos. Assim, trata-se de uma perspetiva do sujeito pessoa no seu ambiente concreto,
da controvérsia prática do caso jurídico. Estamos tivemos uma crise no sentido microscópico. Neste sentido, a
própria perspetiva do caso jurídico não será uma perspetiva macroscópica, mas sim microscópica. Constata-se
que a crise não foi só ao nível do Estado, mas também uma crise no modo comos se entendiam os problemas
concretos. Neste sentido, todas as questões metódicas permitem-nos dizer que também ocorreu uma crise em
sentido microscópico e a determinação dos problemas a que chegamos são diferentes- assim, chega-se à conclusão
os dois planos põem questões distintas.

Nesta perspetiva, chegamos a diferentes problemas, sendo que os dois diagnósticos se complementam. Temos
então de analisar a crise tanto num plano macroscópico como num plano microscópico, já que estes planos se
complementam para o diagnostico da crise.

Quando falamos de direito com esta pluralidade de respostas, estamos a considerar um Direito que é ele próprio
produto de uma certa cultura, civilização de matriz Ocidental. Estamos a falar de um direito que reflete uma certa
conceção do homem e uma certa evolução em termos culturais da civilização europeia.
• Primeiro, teremos de recorrer a que o paradigma moderno iluminista exigia e, em seguida,
fazermos o diagnóstico num plano macroscópico e microscópico.
Relação entre crise e a crítica

Partindo desse esquema metódico de reflexão de dizer se estamos de facto perante uma crise do
direito/pensamento jurídico que tem já atrás de si muitas décadas e que se tornou evidente no início do séc. XX
(crise de um certo paradigma de pensar o direito que dominou o séc. XIX e que realmente começou depois a ser
questionado). Contudo, se, de facto, nós pomos esse problema da crise, torna-se indispensável que não fiquemos
pelo diagnóstico da crise, ou seja, partindo deste e, deste modo, construir uma reflexão crítica. Esta reflexão
crítica, como é evidente, não nos conduz a uma única solução, mas irá permitir identificar problemas e
possibilidades de resposta a esses problemas - não se tratará de ficar pela crise, mas avançar. Por outro lado, a
crise não é só de um paradigma moderno-iluminista, mas é também a crise do próprio direito, visto que há quem
entenda efetivamente que, no nosso contexto contemporâneo, as tradicionais respostas que o direito tem para
oferecer à nossa vida em comum já não são suficientes, inclusivamente a própria contenção do homem, da pessoa
que o direito oferece, estaria datada e não seria aquela que atualmente precisaríamos no mundo complexo em que
interagem diferentes entendimentos culturais e até civilizações.

Deste modo, vamos partir da crise da normatividade jurídica, começando por identificar o que é que o paradigma
construído ao longo dos vários séculos, mas sobretudo solidificado e institucionalizado no séc. XIX, pretendia,
como é que compreendia o direito e porque é que esse paradigma entrou em crise. Sendo assim, vamos procurar,
em termos de diagnóstico, descobrir alguns sinais que nos mostram precisamente que esse paradigma entrou em
crise, que nos mostram o esgotamento desse paradigma e, portanto, que nos desafiam a pensar numa reflexão
crítica.

Quando fizermos esse diagnóstico da crise no sentido moderno-iluminista da normatividade jurídica vamos
distribuir esse diagnóstico em dois planos:

" Plano macroscópico: iremos sobretudo ver o direito na perspetiva da sociedade em termos globais e na
perspetiva do Estado. Iremos abordar o tema da própria evolução dos tipos de Estado – desde o Estado
Demoliberal, Estado Providência, Estado Regulador etc. Tentar perceber de facto o que é que nessa
mutação veio afinal condicionar o novo entendimento da normatividade jurídica/legalidade. A lei que
atua em termos prescritivos no Estado Social, tem termos diferentes daquela que, no fundo, identificava o
Estado Demoliberal.
" Plano microscópico: tem diretamente a haver com a perspetiva dos casos concretos – casos histórico-
reais aos quais, na linha de institucionalização jurídica, a jurisdição tem de dar uma resposta. O que é que
na perspetiva destes casos e na perspetiva do tratamento desses casos e exigências que estão associadas
a esse tratamento mudou que nos permite dizer que o modelo herdado do contexto moderno-iluminista
é insuficiente ou desadequado.

Duas abordagens diferentes: uma que vem de cima, do contexto institucional do Estado e outra que vem debaixo,
da própria experiência dos problemas concretos e das relações que se estabelecem entre as pessoas e que têm
relevância jurídica. Tanto no plano como noutro nós vemos sinais evidentes de crise desse paradigma moderno-
iluminista.

Precisamente por isso, torna-se inevitável recordar o que é que o tal paradigma exigia relativamente à
normatividade jurídica, o que oferecia para o entendimento/tratamento dos problemas jurídicos e, para isso, é
preciso começar por lembrar o que já conhecemos, mas que pode suscitar algumas equivocações.
# Quando estamos a identificar uma conceção do direito que foi, sobretudo, uma conceção do séc.
XIX e que entrou em crise nas primeiras décadas do séc. XX, porque é que falamos de um
paradigma moderno-iluminista?
• Tal pode parecer estranho, visto que, em termos de dinâmica temporal, o iluminismo
corresponde sobretudo ao contexto do séc. XVIII e a referência à modernidade poderá ser uma
referência que nos projeta ainda mais para trás, uma vez que estamos a falar, tanto em termos
culturais como sociais, a partir da cultura introduzida nos séc. XV e XVII.
• A resposta é simples: é que esta conceção do direito teve o apogeu nos séc. XIX ! concessão
positivista do direito – positivismo legalista.

# Evolução do direito:

Este positivismo que se institucionaliza no séc. XIX veio a ser progressivamente construído. Desde os séculos XV e
XVI, começam a ocorrer, num contexto europeu, mudanças, sendo introduzidos fatores e elementos que depois,
todos eles reunidos, vão permitir que no séc. XIX se chegue a esta conceção do direito. No fundo, a conceção
positivista do séc. XIX é uma consumação de elementos que se foram manifestando desde o séc. XV e XVI e, por
isso mesmo, para se caraterizar bem este modelo, uma vez que no séc. XIX há uma consumação de tudo isto, pode-
se dizer que é um paradigma moderno-iluminista, é um entendimento do direito que rompia com o
entendimento anterior (um entendimento pré-moderno) - rompe com a experiencia anterior à modernidade que
dominou a prática europeia desde a cultura grega e romana atá ao final da idade média (pré-modernidade).

Em seguida, existiu uma transformação que foi ocorrendo, sendo que foram introduzidos certos elementos que
foram transformando os que tínhamos da prática e do homem e essa transformação foi sempre construída.
Também não foi uma transformação linear, sendo que, especialmente neste período moderno, houve também
pensamentos, formas de atuação e práticas que reagiram negativamente a estas mudanças. A verdade é que a
leitura que retrospetivamente podemos fazer, permite-nos ver que a concessão do direito que triunfa no séc. XIX
só foi possível, porque, desde o séc. XV e XVI (modernidade), se foram introduzindo mudanças significativas que
foram sendo conjugadas. Portanto, no momento depois das revoluções francesas e das revoluções liberais,
estavam reunidas as condições, tanto no plano político como social, para autonomizar completamente essa
conceção do direito – conceção positivista legalista e normativista.

Vamos perceber em que sentido é que se pode dizer que essa conceção/prática/institucionalização do direito
entrou em crise.

Se, no fundo, quiséssemos simplificar num núcleo duro o que caracteriza esse paradigma moderno-iluminista,
sobretudo através do que o séc. XIX nos ofereceu, nós podemos dizer que o núcleo duro está exatamente numa das
qualificações/adeitos que é a qualificação normativista, sendo que esta, como a própria palavra indica, trata-se
de defender que o direito é uma ordem ou um sistema exclusivamente constituído por normas, sendo estas
fundamentalmente associadas a uma experiência de universalidade racional, ou seja, as normas aparecem como
enunciados/preposições de linguagem com determinada estrutura condicional - são normas que correspondem
sempre a um esquema de “se” e “então”, que antecipam problemas e que prescrevem soluções para esses
problemas (hipótese-estatuição e previsão-estatuição), mas também são normas no sentido de que essa previsão
se faz em termos universais. No fundo, nós temos aqui uma previsão em abstrato de problemas ou situações que
podem surgir, e temos uma resposta para essas situações também pensada num plano abstrato/universal
(generalidade e abstração que são 2 dimensões da universalidade: universalidade no plano dos sujeitos –
generalidade; e universalidade no plano das situações – abstração)

• O que é que quer dizer pensar o direito integralmente a partir de um sistema de normas?

Para o entendimento normativista, o modo de ser do direito é um modo de ser abstrato, anterior à emergência dos
problemas aos quais esse direito vai dar resposta – este direito tem de estar todo ele pré-determinado em normas,
com este programa condicional de “se” e “então”, ou seja, com esta tipificação universal e abstrata, e os problemas
ocorrerão depois e resolver esses problemas será aplicar este direito. No fundo, o direito está pré-determinado
em abstrato, uma vez que criar direito é criar normas gerais e abstratas. Deste modo, este entendimento é um
entendimento em que o paradigma do séc. XIX tornou quase natural, isto é, impôs este entendimento do direito de
tal forma que, no fundo, nós vemos gerações e gerações de juristas a repetirem isto. É um entendimento que,
mesmo a nós próprios hoje em dia, tendo já vivido muitas épocas de crise, ainda nos parece relativamente natural
pensar o direito assim - é interessante, desde logo, vermos esta ideia de que o direito constitui um sistema que é
autossuficiente em abstrato - o direito tem a ver com enunciados de linguagem que se formulam em abstrato.

Este entendimento, que podemos dizer normativista (um conjunto de preposições que racionalmente se bastam
a si próprias e assim subsistem como inteligíveis – nós podemos conhecer o direito interpretando as normas ou
dominando-as), que o séc. XIX impôs na sequência de uma evolução, entrava em rutura com o que era e com o que
tinha sido a experiência europeia anterior do direito, visto que, no fundo, tanto a cultura clássica (sobretudo a
partir da experiência romana que se começa a dar uma grande relevância aos casos) e mesmo ao longo de todo o
tratamento medieval (papel das universidades e com uma certa identificação do direito com a textualidade), toda
essa compreensão pré-moderna do direito não era uma compreensão normativista, porque o que se identificava
como direito, era sobretudo uma tarefa prática de resolução de casos, ou seja, de controvérsias, sendo que se
poderia dizer que, ao contrário desta institucionalização normativista que teve o seu apogeu no séc. XIX, todo o
período anterior (dito pré-moderno), era marcado por uma certa razão jurisprudencial do Direito – este era
sobretudo uma tarefa prática de resolução de casos – criar direito era resolver um caso concreto.

Como se vê, a acentuação era muito diferente, uma vez que todo o período pré-moderno era marcado por essa
visão jurisprudencial e o período moderno, lentamente, através das ruturas que vão sendo feitas no pensamento
jurídico europeu, vai construir uma visão do direito em que, fundamentalmente, esse direito se pensa, conhece e
interpreta primeiro em abstrato e só depois é que se aplica. Deste modo, não deixa de ser importante resolver
controvérsias, mas tal é já aplicar um direito que já esta pré-determinado em abstrato, o que efetivamente não
acontecia num contexto medieval, dado que, na época medieval, toda a ordem jurídica era como se fosse recriada
na perspetiva do caso, ou seja, para resolver um caso mobilizavam-se princípios e experiência jurisdicional
anterior e algumas leis, sendo que, nuclearmente, o momento constitutivo por excelência do direito era essa
resposta ao caso.

Sendo assim, tal vai mudar com a 1ª modernidade, através de um tipo de pensamento que se desenvolve a partir
dos finais do séc. XVI, que é o pensamento do direto natural racional, pensamento do jus racionalismo.

No fundo, a introdução desta componente racional vai trazer consigo esta necessidade de pensar primeiro numa
ordem/sistema de normas coerentes e autossuficientes em abstrato como constituindo o próprio direito em si
mesmo, relegando para um momento posterior o processo da sua aplicação (é como se dissesse que o direito já
existe completamente em abstrato) – tal não acontecia no contexto pré-moderno em que se entendia que este
direito estava a desenvolver à medida em que o direito respondia às situações.

# Esta concessão normativista, que teve o seu apogeu no séc. XIX, não é uma conceção necessária do direito,
sendo uma conceção introduzida num certo contexto cultural e, ao nível da história europeia, foi,
sobretudo, introduzida a partir do séc. XVI – introduzida com várias resistências no início, sendo que
depois foi amplificada e, no iluminismo, recebeu um grande impulso, pelo que quando chegámos ao final
do séc. XVIII, tudo estava preparado para que esta visão do direito se tornasse praticamente unânime !
por isso mesmo aparece como paradigma no séc. XIX – toda a construção no séc. XIX vai-se basear nesta
ideia que o direito existe em abstrato e depois aplicasse-o em concreto.

Com alguma simplificação, poder-se-ia dizer que a visão anterior é a de que o direito, sendo uma
tarefa prática de resolução de controvérsias, é algo que se está permanentemente a fazer em concreto.

Atualmente, isto é muito importante, visto que esta crise do paradigma do séc. XIX reabriu a possibilidade, ainda
que noutros termos, de recuperar algumas coisas que tínhamos perdido dessa etapa pré-moderna,
nomeadamente de recuperar esta referência à prioridade do caso.

" O que é que efetivamente mudou no contexto europeu nos séc. XV e XVI, do ponto de vista cultural,
político e económico, para nos permitir perceber esta mudança?

# NOTA INICIAL: Como esclarecimento, o paradigma do séc. XIX, é um paradigma de positivismo normativista
(podendo ser legalista e, por vezes, em simultâneo, legalista normativista). Na verdade, é preciso relembrar
porque é que têm significados diferentes e podem, às vezes, não convergir, embora, por vezes, se
sobreponham:
• Quando falamos de normativismo, o que estamos a dizer é que no plano do sistema jurídico, o direito é
exclusivamente constituído por normas que são universalmente racionais, sendo enunciados que se
formulam em abstrato, identificando tipos de problemas em abstrato e têm uma vocação de
universalidade que se manifesta também na relação que estabelecem com os sujeitos jurídicos. Portanto,
são enunciados abstratos que se fundamentam a si próprios, ou seja, têm autossubsistência, sendo
autoracionais (as normas bastam-se a si próprias, não tendo fundamento fora delas)
• Quando falamos de legalismo, estamos a identificar um outro problema: estamos a perguntar como é que
o direito se constitui e se manifesta. Neste caso, já não é questão de sistema jurídico, mas sim, de fonte. Se
eu defendo uma posição legalista do direito, estou a dizer que o direito se manifesta exclusivamente
através de leis (se identifica com as leis). Portanto, a única fonte de direito relevante é a prescrição
legislativa, sendo todo o direito criado a partir de atos legislativos.
$ Eu posso defender uma concessão normativista (o direito exprime-se através de normas gerais e
abstratas) e posso não ter uma perspetiva legalista – se as normas só se criam e constituem através de
leis (do poder legislativo), eu estarei a defender, para além do normativismo, o legalismo – uma parte do
positivismo dos séc. XIX, pelo menos aquela que associamos à vertente francesa com a lei de exegese, era
claramente normativista e legalista – defendia que o direito era um sistema de normas que só se podia
constituir e manifestar através de leis. Contudo, considerando a Alemanha e o positivismo conceitual,
continua a ser normativo, visto que o direito continua a ser pensado através de um esquema sofisticado
de universalidade racional e através de normas, mas já não é estritamente legalista, uma vez que na
Alemanha por influência da Escola Histórica, levou a que durante todo o séc. XIX se defendesse que, para
além da lei, também o costume era fonte de direito – pode ser normativista, visto que para compreender
os costumes tenho de extrair dessas práticas normas.

Em relação ao séc. XIX, o Doutor usa essas qualificações, mas estas nem sempre se sobrepõem: no positivismo
francês exegético que influenciou uma parte dos ordenamentos europeus, é claramente normativista e legalista
porque defende que o direito é um sistema de normas e que o direito só se constitui através de prescrições
legislativas. Já a conceção do direito, por exemplo, defendida no positivismo conceitual ou científico germânico,
existe um normativismo claro (pensa-se o direito como um sistema de normas), mas já admite, pelo menos, esta
dualidade de fontes: o direito constitui-se através de legislação e dos costumes (não há legalismo estrito).

Não deixa de ser comum a divisão normativista sendo que o direito se pensa primeiro como um sistema de
normas, não importando se essas normas foram criadas por legislação ou, então, normas que se possam extrais
das práticas consuetudinárias. Portanto, esta concessão normativista opõe-se à concessão pré-moderna que seria
uma conceção de base jurisprudencial

# Como é que este caminho se foi construindo, como é que essa mudança se deu?

Durante séculos assumiu-se uma visão do direito em que o direito era fundamentalmente assumido como uma
tarefa prática de resolução de casos e, de um momento para o outro, as cosia mudam e mudaram num plano
cultural e ate filosófico-cultural, visto que, no fundo, o que mudou na 1ª modernidade por meados do séc. XV e XVI,
foi a própria concessão do sujeito - o modo como este se vê a si próprio, na sua interação com outros sujeitos e,
sendo o direito uma dimensão dessa prática de interação, com certeza que se muda o entendimento global do
direito.

% O que é que verdadeiramente mudou?

De forma a mostrar essa transformação, é possível usar uma distinção que se tornou muito comum no séc. XX:

# Se compararmos o contexto pré-moderno anterior ao séc. XV e XVI com o contexto moderno, podemos dizer
que, na experiência europeia, o que nós tínhamos anteriormente quando se perguntava como é que os
homens se relacionavam uns com os outros, a experiencia que nos surgia era a experiencia da comunidade.
A comunidade era alguma coisa que se concebia nesse período pré-moderno, como se fosse dada ao homem,
ou, em alguns casos, imposta ao homem. Isto quer dizer que esta comunidade não era uma construção
humana - o homem emergia inserido institucionalmente numa comunidade (podia ser a pólis grega, a civitas
romana, etc). No fundo, admitia-se que essa comunidade era algo de exterior ao homem e o homem inserir-se-
ia nessa comunidade. Quando falamos nas comunidades gregas por exemplo, não estamos apenas a identificar
uma instituição político-social, ou a ordem da cidade grega, mas uma ordem de valores - quando dizemos
que o homem surge na pólis, surge inserido num contexto que, num sentido último, assume determinados
valores, exigências e determinados sentidos. Esses valores eram considerados indisponíveis, ou seja, valores
de que o homem não poderia dispor, visto que não eram entendidos como criações humanas. No fundo, esta
conceção dos valores pré-moderna, era uma concessão que, na visão europeia, aparecia associada a uma
conceção metafísica dos valores – os valores era como se existissem e fossem eles próprios entidades ou
realidade, que por existirem enquanto tal, eram necessários/imutáveis/universais – esses valores não eram
criações humanas, mas existiam na ordem dos cosmos, ou podiam ser concebidos como criações divinas e
beneficiavam de uma inteligibilidade ontológica ou metafísica. O valor é uma exigência de dever-ser, mas na
visão pré-moderna, esse valor tinha a natureza de uma entidade/realidade, era algo da ordem ser, não sendo
transformável pelo homem.

Agora, num contexto moderno, precisamente ao contrário, vai-se começar a dizer com toda a clareza que o ponto
de partida, o prios, está no homem sujeito. Deste modo, se assim o é, vamos poder compreender esse homem-
sujeito ainda sem vínculos sociais, sem vínculos estabelecidos com outros homens – vai-se poder compreendê-lo
como sujeito autónomo, como sujeito- indivíduo (linguagem do jusnaturalismo - o homem desvinculado que
aparece com prios e com origem da resposta ao problema da vida em comum).

Se podemos partir do homem como sujeito é porque a resposta ao problema da vida em comum, que é
indispensável, há-de ser uma construção humana ! as regras e as instituições vão permitir que aquele sujeito se
relacione com outros sujeitos - vão limitar a autonomia desse sujeito na sua relação com os outros sujeitos e é ela
própria uma criação humana - não esta dada na ordem do cosmos e divina e, portanto, responsabiliza o homem.

# O homem pré-moderno não pensava na relação com os outros como um problema. Deste modo, ao dizer
que tem de partir do homem sem vínculos, passa a haver um problema fundamental que é saber como é
que o homem irá se relacionar com os outros homens, existindo várias possibilidades. Daí que se comece
com toda a propriedade a usar uma outra palavra que não comunidade, que é sociedade - esse sujeito
desvinculado vai ser o ponto de partida para a construção da nova ordem, na relação desse sujeito com
outros sujeitos, e esse será tratado no processo evolutivo como se fosse precisamente um associado
(sócios) da sociedade que ele próprio vai construir - essa noção de sociedade traz-nos uma matriz
contratualista, uma vez que nós estamos a pensar em sociedade como se fosse um produto de um facto
ou de um contrato. Atualmente, quando constituímos uma sociedade, essa sociedade é constituída a partir
das vontades e dos esforços/razões individuais (esses sujeitos vão ser os sócios).

No plano filosófico-cultural, toda a prática social vai ser concebida através da ideia simples de que a societas é uma
construção do homem-sujeito e deve ser inevitavelmente pensada e reconstituída como se tivesse na sua origem
um facto social constituído pelas vontades racionais e pelos interesses dos próprios sujeitos indivíduos (o que traz
consigo uma certa dinâmica de transformação, dado que se a sociedade pudesse ser entendia como uma criação
humana, eu também posso pensar que esta é suscetível de se transformar, ou seja, que é um produto do homem).
De facto, isto traz consigo uma enorme dinâmica de mudança e traz consigo o facto de os valores serem criados
pelo próprio homem, criações culturais do homem, para se superar a si próprio, para dar sentido à sua prática, etc.

" O que se deu no contexto europeu, na viragem do séc. XVI, foi exatamente esse entendimento de que o
ponto de partida tem de estar no sujeito desvinculado e, portanto, a questão, passa a ser a da
construção da sociedade. O direito irá desempenhar um papel importante nessa construção, mas esse
direito já não poderá ser o direito tal como era experimentado num contexto pré-moderno - esse direito
vais ser repensado de forma racional, o que nos leva para a tal concessão normativista.

Se se estudar esta mudança do homem relativamente a si mesmo (fator antropológico), esta deveu-se a muitos
fatores, acompanhando todo o processo de construção da ciência, a mudança radical do que é a experiência e a
vontade, etc., mas no fundo, quando nós encontramos como denominador comum esta ideia de homem sujeito
autónomo, identificam-se três componentes que o contexto pré-moderno nunca pensou autonomizar:

1- Componente dos interesses;


2- Componente da vontade-liberdade;
3- Componente da razão - construída a partir do grande modelo da razão científica, da experiência
científica, atuando no plano analítico.

O homem dos interesses, da vontade-liberdade e da razão. De facto, estas componentes vão ser responsáveis
por vários equilíbrios diferentes, sendo que as 2 que irão ter uma maior importância são a vontade-liberdade e a
razão, sendo que se vê que a própria conceção da vontade geral de Rousseau é uma articulação de componentes
voluntaristas e específicas num contrato racional, que se exprime em termos universais.

o 1ª COMPONENTE – quando se fala de interesse, aqui fala-se de interesse económico, sendo que, quando
se diz homem dos interesses, é o homem que tem necessidades subjetivas e que se confronta com o
problema da escassez - os objetos disponíveis no mundo não são suficientes para satisfazer, em pleno, as
necessidades de um sujeito e, muito menos, as necessidades de todos os sujeitos. No fundo, o problema
dos interesses é um problema da escassez dos objetos que são instrumentalmente adequados a satisfazer
essas mesmas necessidades.

Esta emergência do homem dos interesses não surge por acaso, uma vez que se, numa espécie de jogo de
cultura geral, nos perguntassem que indicássemos o nome de um grande economista anterior ao séc. XVII,
nenhum de nós seria capaz de responder, visto que, efetivamente, o próprio discurso económico e a
própria ciência economia, não existia antes do séc. XVII. Porque é que o problema nunca se colocou antes?
Porque se entendia que o problema da escassez/distribuição dos recursos/afetação dos recursos era um
problema que estava inserido dentro da ordem da pólis ou da civitas, sendo esses os valores últimos que
deveriam orientar todas as nossas práticas e, portanto, também as práticas que afetávamos recursos e
satisfazíamos necessidades, ou seja, a ideia de que essa afetação de recursos pode corresponder a um
modelo de eficiência (modelo de custo-benefício) não existia ainda porque se entendia que a resposta
tinha de ser dada num plano global ético-comunitário, sendo que isso significava que o problema
enquanto tal, não se colocou e, por isso, é que não se discutia em termos de eficiência/hierarquização das
necessidades em termos desta afetação de recursos (perspetiva ético-comunitária, moral).

A partir da modernidade, vai poder colocar-se este problema, pois ao pensar o homem-sujeito, começa-se
a penar no homem dos interesses que tem necessidades subjetivas. Deste modo, se o Doutor disser que a
comunidade não é algo que seja dado, não existindo exigências ou valores que estejam pré-determinados
em sentidos universais, o problema pode isolar-se e autonomizar-se. Portanto, não é por acaso que todos
os grandes sociólogos e historiadores de cultura fazem coincidir esta 1ª modernidade europeia com
surgimento de um novo sistema económico, ou seja, a possibilidade de pensar autonomamente um
discurso económico. Tal surge a partir daqui, exatamente porque se pensa o problema da escassez por si
próprio e segundo critérios de eficiência e de custo-benefício.

Curiosamente, é este entendimento do homem de interesses que veio a dar um grande


impulso/acompanhar a transformação da passagem de um determinado modo de produção feudal para
um modo de produção capitalista. A emergência do capitalismo no séc. XV, tem, de facto, um impulso
muito grande cultural e discursivo com esta possibilidade de pensar o homem dos interesses. A própria
noção da ordem de mercado que vai ser muito importante para a construção de todo este processo vem
daqui, não seria pensável antes. O homem dos interesses, certamente tem menos importância no contexto
jurídico e político, porque, de facto, a ideia de que se pode pensar a sociedade global a partir da ideia do
homem dos interesses, só se encontra nos finais do séc. XVIII e inícios do séc. XIX, numa conceção
utilitarista que procurou construir toda a ordem social a partir do homem dos interesses. Mas, em geral,
não - as grandes construções jusracionalistas pensam o homem como sujeito da liberdade e da razão,
sendo com base nessas normas que se vai pensar grande parte da sociedade moderna e é delas que vai
surgir a conceção normativista do direito.

o 2ª COMPONENTE - Atendendo agora à componente racional, esta leva-nos a considerar que um dos
aspetos que mais marcou a experiencia da rutura moderna foi a construção da ciência e do discurso
cientifica dominada por 2 vertentes: uma vertente analítica (teria como grande modelo a matemática -
ciência que se vê em termos que são basicamente axiomático-dedutivos, em que o grande método é a
dedução), e a vertente experimental, que tem o seu modelo na ciência da física, que, na verdade, se pensa
privilegiadamente como uma ciência indutiva, na medida em que essa experimentação empírica vai
permitir reconstituir hipóteses de regularidade (leis cientificas), que vão estabelecer relações de
probabilidade entre os elementos factuais desses fenómenos.
Com este domínio de 2 grandes métodos: método dedutivo e indutivo, vai ser importante para
percebermos que o que vai acontecer séc. XIX (no culminar de todos este processo), é verdadeiramente
uma atitude radicalizada de cientismo. Uma coisa é dizer que, no contexto moderno, emerge a ciência com
determinadas caraterísticas, outra coisa (que vai a ser acentuada ao longos dos séculos), é dizer que o
único discurso/pensamento válido é aquele que segue este método simples, visto que todos os outros
discursos poderão ter relevâncias meramente estéticas, mas o autêntico discurso válido que importa
verdadeiramente considerar quando estão a haver problemas na ordem social, é o discurso científico. Isto
vai condicionar muito a compreensão do direito, pois realmente se abandonam por inteiro modos de
pensar o direito que o associavam à argumentação, à retorica, a uma racionalidade, para se poder pensar
integralmente o direito a partir dos modelos das ciências analíticas e empíricas.

Quando se fala em razão, é uma razão associada à episteme (uma das virtudes intelectuais utilizada por
Aristóteles), sendo que está na base de muitas das palavras que nós usamos e, ainda hoje, identificamos
componentes reflexivas dessa ciência, mas a tradução latina de episteme é, precisamente, ciência e
quando se fala nesta ciência moderna nós assistimos a um processo de redução, como se todos os
discursos racionais, para serem racionais, tivessem que passar por um processo, em que a ciência vai
aparecer como um modelo da racionalidade, ao ponto de se identificar com a própria razão, o que não
acontecia antes, visto que se admitiam vários tipos de razões. Agora nós temos um processo de domínio
da episteme relativamente ao próprio tema da racionalidade – tudo isto vai ser importante para a própria
visão normativista, uma vez que, se eu quero pensar num sistema de norma, quer pensá-lo como um
sistema racional, em que as normas aparecem associadas umas às outras com vínculos que são
racionalmente inteligíveis.

No século XIX, nós temos como que uma hipertrofia quase patológica desta identificação de racionalidade e
episteme, visto que temos a defesa em muitas correntes de um cientismo levado até às últimas consequências,
obrigando o discurso jurídico a constituir-se como uma ciência do direito com determinadas caraterísticas.

Tudo isto é importante acentuar, porque um dos sintomas da crise do paradigma do séc. XX é desencadeado por
propostas, tentativas e modos de pensamento, que procuram revalorizar para além do discurso científico, outras
possíveis manifestações da razão e, portanto, esta será uma das componentes importantes do paradigma. Este
está ligado efetivamente a uma certa visão de ciência galilaica ou cartesiana e empírica ou analítica.

• Se estamos a partir do sujeito desvinculado/sujeito-indivíduo, é preciso lembrar que, no plano mais


político-cultural com uma componente de filosófica-política acentuada, esta superação de comunidade
pela sociedade foi gerida por um pensamento contratualista moderno que, ainda hoje, continua a ser
reinventado e tem um peso importante na filosofia política contemporânea. Esta ideia de contratualismo
parte precisamente da imagem do homem desvinculado, visto que a sociedade (“societas”) vai ser
pensada a partir de um modelo de um pacto social, em que os homens se vão associar – vai ser aquela que
for determinada pela conjugação dos seus interesses, vontades e razões

No plano político, trata-se de uma relação contratualista, sendo que o contratualismo moderno vai pensar
esta relação reconstituindo uma espécie de narrativa ficcionada do ponto de vista filosófico-cultural, para,
no fundo, nos indicar com toda a clareza como é que deve ser esta sociedade. Há aqui uma narrativa que
parte da possibilidade de identificar um estado (status) natura anterior à societas, à intervenção humana.
Esta perspetiva contratualista vai invariavelmente admitir uma narrativa em que os homens como
sujeitos desvinculados aparecem a integrar um estado de natureza anterior ao pacto e à sociedade. Deste
modo, esta narrativa leva a uma situação em que os homens se veem, por várias razões, constrangidos a
sair do estado natureza e a estabelecer esse pacto do qual vai resultar um outro estado adventício (surge
depois) que tem diversas designações (estado político; social; jurídico) e que só ocorre porque entre os 2
se consumou um pacto de vontades racionais e de interesses (acordo de vontades racionais do qual
efetivamente vai resultar a sociedade). Esse estado adventício a que o homem se entrega acaba ele
próprio enquanto societas por aparecer também depois político-socialmente institucionalizado e aí é que
nos aparece também a figura do Estado. O Estado, sendo a sociedade politicamente organizada, é também
ele concebido como se fosse um artefacto construído pelo homem. O direito irá ser uma componente
decisiva desse estado adventício.
A figura do pacto não é uma novidade radical, uma vez que no conceito pré-moderno, existem várias experiências
em que súbditos de um certo monarca ou vassalos de um determinado nobre se relacionam em termos de pacto
entre eles (ex: Magna Carta). A grande diferença é que quando se fala do pacto pré-moderno, esse pacto aparece
sempre com as caraterísticas de um pacto que se diz homologador, ou seja, nós temos um determinado vínculo
institucional/social, sendo que esse vínculo resultaria da pressuposição de uma ordem que se dizia Res publica
Christiana e, portanto, quando alguém estabelece um pacto com outra pessoa neste contexto político, o que está a
fazer é a especificar ou atribuir um significado mais presente a um vínculo que já existe – o pacto está apenas a
homologar o que já existe (como se já existisse e estivesse a ser recordado).

Quando nós passamos para a modernidade, para a visão contratualista, a função do pacto passa a ser totalmente
diferente, no sentido em que não se trata de homologar um vínculo que já existia anteriormente, mas sim de criar
novos vínculos. Antes do pacto aquilo que existe é o sujeito desvinculado, sendo através do pacto que se vai criar a
societas - claro que esta abordagem é relevante para percebermos o paradigma moderno-iluminista sem esta
condição política que está associada ao contratualismo e, sem ela, não se perceberia, no fundo, a visão
normativista do direito que nos interessa e dificilmente perceberíamos o que foi a institucionalização do séc. XIX e
do Estado de Direito de legalidade. Deste modo, tem na sua base, de facto, uma conceção contratualista da
sociedade, à qual vai estar precisamente associada a conceção normativista do direito.

Até agora viu-se a importância que essa viragem europeia foi tendo numa perspetiva jusracionalista. Esta
perspetiva de direito natural racional pode transmitir à primeira vista algumas dificuldades de compreensão –
este pensamento filosófico-jurídico e filosófico-político aparentemente prolonga a herança do direito natural que
vinha da pré-modernidade, sendo que isto parece que entra um pouco em contradição com o que foi dito
anteriormente, uma vez que, na verdade, este direito natural pré-moderno era aquele que admitia que nós
podíamos associar uma ordem de valores universais indisponíveis transcendentes ao homem.

Se agora estamos a falar de um pensamento moderno que teve tanto peso na visão contratualista, como é que isto
se articula com a continuidade desse direito natural?

É importante ver que o que vai mudar, e vai mudar depois de condicionar a evolução ao ponto de podermos dizer
que, mesmo este direito natural racional, se extingue na viragem do séc. XVIII para o XIX, ou extingue grande parte
do seu conteúdo e da sua força. Contudo, a continuidade está em dizer realmente que há alguma coisa que é
indisponível e que é natural. Só que o que muda é mais importante do que aquilo que persiste, visto que o direito
natural pré-moderno acentuava a indisponibilidade de certos valores ou princípios (e mesmo de algumas regras
sociais associadas a estes), defendendo que o fundamento último desses valores estava, no fundamento grego, no
próprio cosmo e no próprio universo, fazendo parte da própria ordem e harmonia desse universo – a
indisponibilidade era pensada em termos globais/universais numa ordem em que o homem não poderia
ser responsabilizado.

O que agora vai acontecer é algo diferente, porque o que é indisponível ou que permanece indisponível, não é já
alguma coisa de exterior ao homem, mas aquilo que permanece indisponível é, no fundo, o que podemos dizer
associado à razão humana, isto é, enquanto sujeito-indivíduo esse homem tem como componente decisiva a razão
e, se ele quiser ser racional há determinadas exigências e princípios que ele tem que assumir - ele assume esses
princípios/regras não porque lhe sejam impostas exteriormente, mas porque lhe são internamente impostas pela
sua própria razão – ele tem sempre alternativa de atuar irracionalmente, mas se quiser seguir essa razão, ele está
em condições de conhecer certos princípios e certas exigências às quais deverá obediência.

Portanto, muda o palco: já não são valores e sentidos que lhe sejam impostos de fora (uma ordem ou configuração
cósmica ou divina), mas princípios que ele próprio assume se quiser conformar a sua conduta com os
ditames da razão - é algo de intrínseco/imanente ao próprio homem. Essas exigências racionais são
imanentes ao próprio homem, resultando da sua própria condição natural enquanto sujeito-indivíduo –
enquanto sujeito da razão ele está em condições de conhecer certos princípios ou certas regras. Daí que se
mantenha a noção de direto natural, mas que é um direito natural visto todo ele na perspetiva da razão !
Jusracionalismo.

No fundo, a ideia de que há princípios que a razão pode conhecer - que eu enquanto sujeito e indivíduo racional
posso conhecer e dos quais não me devo afastar, uma vez que se me afastar deles, pararei de me comportar
racionalmente, sendo que, nesse sentido, eles são indisponíveis na medida em que eu queira construir a minha
prática social em termos racionais - é um direito que a razão conhece.

Haverá depois, também, um direito criado pela vontade, mas esse direito e esta dicotomia que está na origem de
uma distinção que nos é hoje familiar entre direito natural e direito positivo. Sendo assim, nós podemos dizer que,
no campo do jusracionalismo, prevalece verdadeiramente uma separação, dado que uma coisa é o direito que a
razão conhece e outra é o direito que a vontade cria, sendo que este deve ser um direito que obedece aos ditames
da razão e às exigências da razão, devendo estar submetendo aos limites que lhe são impostos pelo direito que a
razão conhece.

Portanto, o direito natural racional estabelece claramente uma relação com um conjunto de princípios e
de normas materialmente indisponíveis que têm uma origem imanente ao próprio homem, fazendo parte
da sua própria natureza enquanto sujeito-indivíduo racional, não sendo impostos por uma ordem
exterior.

Esta ideia persistiu com muita força durante os séculos XVI e XVII, começando a existir um afastamento
progressivo no séc. XVIII relativamente a esta ideia. Esta tradição jusracionalista desenvolve-se no contexto
moderno-iluminista em duas etapas diferentes:

" 1ª Etapa (meados do séc. XVI até finais do séc. XVIII)


• Nesta etapa, ao qual estão associados os nomes de Grócio, Tomásio, Pufendorf, Wolff, Locke e,
até certo ponto, Robbes, acentua-se muito claramente a ideia de que há princípios que são
materialmente suscetíveis de serem conhecidos porque são indisponíveis e porque são
intrinsecamente racionais. Desta forma, significa que quando estamos a falar desses princípios e
dessas normas, estamos a dizer que estas põem limites no plano do conteúdo (no plano
material) às outras normas e leis que são criadas pela vontade – há uma dicotomia entre o
direito que a razão conhece e um direito que a vontade cria, sendo que o primeiro impõe limites
sob o ponto de vista material ao direito que a vontade cria. Portanto, se efetivamente se pensa
um direito criado pela mediação da lei, entende-se que esse direito tem que obedecer a certas
exigências que são determinadas pela razão. Sob o ponto de vista político, esta representação foi
inclusivamente assimilada por algumas vertentes do chamado despotismo esclarecido, no
sentido de dizer que, de facto, certas prescrições autoritárias do rei têm que obedecer, de uma
forma direta, às exigências da razão. No fundo, admite-se aqui, que esse direito que a razão
conhece funciona como um limite de ordem material ao chamado direito positivo/direito criado
pela vontade/direito criado pela autoridade do rei.
" 2ª Etapa (séc. XVIII até finais do séc. XIX)
• Há medida que entramos pelo séc. XVIII dentro, sendo que os grandes pensadores são Rousseau
e Kant, as coisas mudam significamente, visto que continua a falar-se de um direito racional e,
até nalguns casos, de um direito natural racional. No entanto, a este direito racional deixam de
estar associadas exigências materiais, ou seja, exigências que tenham a haver com conteúdos,
para passarem a estar associadas exigências formais. Assim, nós temos aqui um processo lento
de esvaziamento do próprio sentido da normatividade – o que, até então, era, sem transições,
concebido como um limite de ordem material, começa a ser progressivamente pensado como um
limite puramente formal e, portanto, isto compreende-se, uma vez que a visão iluminista no séc.
XVIII tende a dizer que tudo aquilo que é material é relativamente contingente e variável. Deste
modo, aquilo que é verdadeiramente racional é algo que nós só podemos pensar no plano da
forma, no plano duma universalidade formal. Daí que as exigências do direito que a razão
conhece tenham passado a ser, por influência direta de Rousseau e Kant e de outros autores,
exclusivamente as exigências da universalidade racional, a ponto de nós podermos dizer que o
direito pode ter qualquer conteúdo desde que se exprima através de normas que sejam gerais,
abstratas e formais. Os limites deixam de ser sob o ponto de vista substantivo/material e não se
põem limites às soluções, sendo que o que se exige é que as soluções sejam consagradas de uma
forma universal.
No fundo, a mudança é uma mudança importante porque se traduz num progressivo
esvaziamento dessas exigências materiais, passando a ser pensadas como contingentes,
mutáveis e variáveis.
Assim, esta evolução aparece-nos plenamente consumada no pensamento de Rousseau que vai
influenciar todo o discurso iluminista e que vai depois influenciar também muito a própria
conceção da lei que nós encontramos no positivismo do séc. XIX, visto que ao nível da conceção
do direito apenas se exigia que as soluções fossem construídas em termos universais (a lei pode
ter qualquer conteúdo desde que o seu conteúdo se exprima numa norma geral, formal e
abstrata, pois assim estou a aferir racionalidade àquele conteúdo).
Estas exigências até podem ser muito fortes politicamente, dado que isto vai estar associado a
exigências de igualdade do novo Estado Demoliberal que vai ser institucionalizado depois das
revoluções. O limite passa a ser mais forte, mas a atuar no plano exclusivamente formal.

Rousseau

Rousseau vai manter-se fiel à tradição em termos narrativos, que vem de Grócio, Robbes e de Locke do séc. XVII.
Vai manter a ideia de que, de facto, há um estado natureza e este é aquele em que encontramos os homens como
sujeitos-indivíduos que serão naturalmente bons, mas que vive num estado nuclearmente associal, ou seja, não
estabelece vínculos com outros homens e tem problemas com o domínio dos bens que vai levar a uma corrupção
desta natureza originária - este estado de natureza é ainda caracterizado por Rosseau numa certa linha de
continuidade com o que está para trás, ainda que a imagem seja diferente da imagem de Robbes, por exemplo, –
neste tínhamos a imagem homem é lobo do homem, um homem naturalmente egoísta que, num estado natureza,
procurava prear-se de todos os bens para satisfazer as suas necessidades e, portanto, vai entrar em conflito
inevitável com o outro homem. Em Grócio temos a ideia de sum sujeito que embora realmente desvinculado, tinha
uma apetência social. Em Pufendorf tínhamos o homem da fragilidade.

Na verdade, em Rousseau, temos esta ideia de que o homem vai ter que sair deste estado natureza, visto que essa
natureza originária é permanentemente ameaçada e corrompida pela conexão que ele vai estabelecendo com os
outros homens, tornando-se indispensável institucionalizar-se essa instituição. Tal confere à sua filosofia uma
índole fortemente revolucionária, uma vez que ele refere que os homens no estado natureza são livres e iguais,
sendo que o Doutro não conhece nenhuma ordem político-social vigente em que este estado-natureza seja
respeitado, visto que em todas as ordens o que se vê é o homem submetido à tirania (“às grilhetas da opressão”).
Nesse sentido, temos a sua identidade como ser livre e igual, que é aquilo que o carateriza sob o ponto de vista
natural, não é respeitado. Sendo assim, ele veio a dizer que nós temos que pensar numa outra forma de sociedade
em forma de associação, ou seja, num outro tipo de Estado que seja capaz de respeitar esta origem – tem uma
índole diferente do que foi desenvolvido no contexto do séc. XVII com alguns compromissos com o despotismo
esclarecido, visto que, ao dizer isto, Rousseau está a introduzir a necessidade de uma rutura com todas as ordens
políticas que ele conhece – precisamos de uma outra societas diferente desta e para concebermos que societas é
essa, torna-se indispensável ficcionar este ponto de partida.

Tal significa que Rousseau vai introduzir um desafio, que ainda hoje nos parece um pouco paradoxal, apesar do
brilho e fecundidade que veio a ter, que corresponde ao facto de termos o homem com estas caraterísticas no
estado natureza e que alternativas se têm em relação ás ordens que existem? Precisa-se de uma forma de
associação que, por um lado, proteja os seus associados na sua pessoa e nos seus bens, contra o exercício da
força, seja arbitrária exercida pelos outros sujeitos, seja da força comum que de alguma forma possa ser imposta
por poderes institucionalizados – é preciso uma forma de associação que tenha como tarefa proteger os seus
associados de toda a força comum e da prepotência do todo.

Isto não traz novidade nenhuma, uma vez que, nos finais do séc. XVI, Robbes vem dizer que o homem é lobo do
homem, sendo que precisa de uma ordem forte para proteger a sua pessoa e os seus bens. No entanto, Rousseau
agora vem dizer que essa forma de associação vai ser indispensável para proteger o sujeito na sua pessoa e nos
seus bens e tem que ser uma forma de associação na qual esse mesmo sujeito permaneça tão livre e igual quanto
era no estado natureza – tem que se construir com fundamento nessa igualdade e liberdade.

Rousseau ainda acrescenta: uma forma de associação que proteja os bens de cada associado da força comum e na
qual cada sujeito ao unir-se com todos os outros permaneça tão livre e igual ao que era antes e não obedeça
racionalmente senão a si próprio - há aqui um equilíbrio difícil de estabelecer – por um lado, uma ordem que nos
limite e, por outro, entender que essa ordem não pode condicionar essa liberdade e que estamos, de facto, a
obedecer exclusivamente a nós próprios. Era uma solução oposta à de Robbes.

Ora, exatamente para poder sustentar este desafio, Rousseau vai referir-se àquilo que ele diz que é a instituição
mais sublime que o homem criou que é a lei pensada em determinados termos como norma geral e abstrata, uma
vez que, quando ele sustenta isto, já está a libertar essa referência ao direito de todo e qualquer conteúdo de
ordem material – não vai identificar o direito como exigências valorativas que sejam materiais e que condicionem
os conteúdos, mas sim, dizer que o direito vai-se construir a partir de leis universalmente racionais.

No fundo, quando se pensa a lei, eu estou a dizer que a nova forma de associação vai encontrar o seu impulso
dinâmico naquilo que é a vontade geral e essa não é a vontade de todos, visto que esta é a soma /agregação das
vontades individuais, sendo que se somar a vontade de todos os sujeitos que integram uma determinada ordem
social, aquilo que eu obtenho é a vontade de todos e, assim, estou situado num plano contingente e empírico – são
vontades reais nos seus contextos históricos, mas marcadas também por interesses e por emoções do momento.
Desta forma, quando se pensa em minorias e maiorias, neste plano das vontades empíricas, e se admitisse que
havia uma manifestação consensual totalizante/unanimidade, o que se pode dizer ao somar as vontades é que se
está perante a vontade de todos. Esta vontade de todos só se converte em vontade geral (racionalização da
vontade de todos) quando a vontade de todos se exprimir em termos universalmente racionais, através de
normas abstratas, formais e gerais.

No fundo, quando eu penso a vontade de todos, eu estou a pensar no plano de conteúdos e estou a dizer que esse
conteúdo é contingente. Desta forma, para o tornar racional, aquilo que vou exigir é que, no fundo, aquilo que
aparece como um comando ou imperativo prescrito realmente numa maioria, se converta numa prescrição
racional autossubsistente que passa a ser universal e passa a encontrar as condições dessa juridicidade no facto
de ser geral e abstrata. É como se dissesse que não basta a vontade, visto que a vontade pode corresponder à
tirania duma maioria sobre uma minoria, o que se exige é uma verdadeira universalidade que só será conseguida
através de uma norma geral e abstrata.

Evidentemente que, tendo em conta tudo o que aconteceu durante o séc. XIX e XX, esta construção está longe de
ser suficiente, ou seja, a ideia de que uma norma geral e abstrata resolve tudo, mas, nesta época, ela fazia todo o
sentido, visto que Rousseau estava a escrever num momento histórico em que esta universalidade não existia,
como por exemplo, no regime francês que era construído através de uma divisão em estados, em estatutos
jurídicos, isto é, juridicamente as pessoas estavam diferenciadas consoante a sua origem: a nobreza obedecia a
determinadas regras, o clero outra, o povo ainda a outras – as ideias eram diferentes consoante o estado social em
que estava inserido. Assim, o que Rousseau está a dizer é que só estarei perante um autêntico critério jurídico, se
tal for universalmente racional – “um ato de todo o povo para todo o povo” – o próprio sujeito que está a legislar
em nome do povo, está a dirigir a si próprio aquele critério. Portanto, basta, no fundo, esta generalidade para
garantir que estamos perante um autêntico ato jurídico válido e intrinsecamente racional e autêntico.

As exigências deixam de ser exigências de conteúdo e passam a ser exigências de ordem puramente formal,
sendo assim que Rousseau entende que o problema se resolve – a vontade geral é a racionalização da vontade de
todos através da legalidade – duma lei que passa a ser geral e abstrata. Ele vem dizer, por exemplo, que um
comando do rei dirigido a apenas a uma pessoa ou um grupo de pessoas, não pode valer como lei em sentido
jurídico, uma vez que lhe falta a universalidade. Ou então: uma lei que resolvia problemas em termos concretos,
não sendo uma autêntica lei no seu sentido jurídico, visto que uma lei tem de ser um critério abstrato, sendo só
assim, que nós estaremos a tratar igualmente as situações e a ter uma dinâmica de previsão para o futuro que é
racional.

Aqui interessa-nos entender porque é que este paradigma normativista vem, na sequência de todos estes
pensamentos, se construir, assumindo, precisamente, uma linha de desenvolvimento que é uma linha de
esvaziamento material. No fundo, as exigências continuam a ter uma grande importância no contexto do séc. XVIII
com uma índole fortemente revolucionária – o contexto social seria hostil a um pensamento como este, vindo-se a
admitir uma rutura -, mas as exigências são puramente formais, não existindo uma palavra para o conteúdo –
basta que essas leis sejam gerais e abstratas para serem válidas, uma vez que assim estarão a ser expressão da
dita vontade geral e estarão a garantir a tal forma de associação em que cada um ao unir-se a todos os outros não
obedeça senão a si próprio e permaneça então livre e igual quanto era antes.
PARADIGMA MODERNO-ILUMINISTA

Nesta primeira etapa e antes de falarmos e fazermos referências à crise, nomeadamente no seu plano
microscópico, estamos a fazer uma reconstituição breve do significado do paradigma.

Tipos e dimensões da racionalidade do direito moderno


(proposto por TEUBNER em «Reflexives Recht...», Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, 68,
1982, 13e ss.)


Tipos Formal Material Reflexivo


Dimensões

Racionalidade Orientação pela Orientação por Orientação por
interna norma-regra: fins-efeitos: procedimentos:
programas programas finais, programas relacionais
condicionais; standards vagos e (inscrição normativa
determinação precisa claúsulas gerais; reflexiva); normas de
das características argumentação organização, de
relativas à situação de (tópica) aberta processo e de
facto e aos efeitos competência; lógica
jurídicos; formação de dos sistemas auto-
um sistema doutrinal
-reguladores

Racionalidade Proscrição: Prescrição: Facilitação:


normativa delimitação de regulação directa, Regulação indirecta e
esferas de voltada para os abstracta da auto-
autonomia para os resultados dos -regulação social

sujeitos-actores processos sociais
privados

Racionalidade Pressupostos jurídicos Instrumentos Função de integração:


sistémica estruturais para a jurídicos para as premissas jurídicas de
mobilização e alocação intervenções procedimento e de
dos recursos numa políticas do Estado organização para os

sociedade social; correcção dos processos reflexivos
(desenvolvida) de fracassos do mercado desenvolvidos pelos
mercado e medidas sociais sub-sistemas sociais
compensatórias


RACIONALIDADE INTERNA

O ponto que importa acentuar tem a ver com o modo como nós podemos dizer que, quando falamos do paradigma
moderno-iluminista, acentuando a questão da sua racionalidade interna, há um elemento que imediatamente se
torna evidente:

" Pode-se dizer que temos aqui claramente o entendimento de que o modo como o direto se relaciona com
o cidadão/sujeito, é exclusivamente através de uma norma que vai funcionar explicitamente como regra
– ao nível das caraterísticas dessa racionalidade interna poderíamos falar de uma orientação pela regra
(norma-regra).

Visão Através de
Orientação
Iluminista do Programas
pela norma
Direito condicionais

De facto, o significado desta orientação, projeta-se na própria norma, visto que quando falamos de norma estamos
a identificar inequivocamente um certo programa que é o programa condicional de “se” e “então” ! plano da
hipótese e da estatuição.

Os novos palcos em que se vai desenvolver a crise num plano macroscópio e a superação de alguns aspetos dessa
crise serão através de um enriquecimento de programas - a legislação passa a admitir outros programas, para
além daquele programa condicional.

Sendo assim, quando falamos no contexto moderno-iluminista, sobretudo, a atender à influência que o
jusracionalismo-iluminista do séc. XVIII tem, nós temos claramente uma norma cuja estrutura é
implacavelmente esta e apenas esta – a norma tem que determinar em termos hipotéticos e num plano abstrato,
as características relativas à situação de facto (tipificada) e, depois, na verdade, temos associada a esta tipificação
da situação em abstrato, a determinação de uma consequência jurídica acompanhada de uma dimensão
sancionatória – com um efeito jurídico que é a estatuição. Isto é importante visto que, quando se rompe com este
paradigma passa, por exemplo, a dar-se relevância a outros tipos de efeitos que se podem produzir no tecido
social (políticos, económicos, sociais, etc).
Este é pura e simplesmente o efeito jurídico, a estatuição – é a consequência no sentido jurídico do termo e que
está associada à própria estrutura da norma, rigorosamente pensada através desta condicionalidade ! É preciso

Se Então (Estatuição ou
(Hipótese ou previsão) injunção)
• Consequência no sen9do
• Se ocorrerem determinados
jurídico do termo, estando
acontecimentos na realidade
associada à estrutura da
— delimitados na sua
norma, rigorosamente
relevância problemá9ca e
pensada através desta
comprovados na sua
condicionalidade.
referencialidade

que se estabeleçam pressupostos (tipificação de uma situação ou de um acontecimento) – se uma situação com
estas consequências jurídicas se produzir na realidade, então, a consequência jurídica será a X. É um modelo
simples, mas que domina o entendimento iluminista do direito, sendo que todo o direito deveria apresentar-se
sobre um modo de um programa condicional.

" O modo de atuação do dever-ser do direito na realidade social através desta orientação pela
norma, é precisamente esta condicionalidade.

Esta visão das coisas vai ter muitas implicações no modo como se pensa o direito e a lei e no modo como se
entende o papel da doutrina e o papel que cabe à jurisprudência judicial na aplicação deste direito – conceção
normativista - direito todo ele pré-determinado em abstrato, sendo um direito a existir nas próprias normas
antes da projeção na realidade, sendo esta última uma mera aplicação.

No plano da racionalidade interna toda esta etapa do direito formal (corresponde ao paradigma moderno-
iluminista) fica perfeitamente esclarecida por esta referência à orientação pela norma.

As coisas mudaram na génese desta conceção da norma, sendo que ouve uma evolução no próprio pensamento
filosófico-político e falámos na evolução que distingue o jus racionalismo moderno dos séc. XVI, XVII do que
atualmente se poderá dizer jus racionalista que domina o séc. XVIII. A grande mudança que se foi acentuando nas
últimas décadas do séc. XVII e princípio do séc. XVIII e que teve a sua grande eclosão nos pensamentos de Rosseau
e Kant, está precisamente no modo como se estabelece a relação entre o direito que a razão conhece e o
direito que a vontade cria.

• Para a perspetiva do jusracionalismo do séc. XVII, quando falamos do direito que a razão conhece,
estamos a referir-nos a princípios ou normas que têm um conteúdo material e que, portanto, põem
limites no plano desse conteúdo material – põem limites ao direito que é criado pela vontade (mais tarde
será chamado direito positivo) – direito criado pela legislação – este direito obedece a certas exigências
de sentido e essas são exigências que podemos conhecer apenas porque somos sujeitos racionais, não nos
sendo impostas de fora por uma ordem transcendente como acontecia no período pré-moderno, mas são
exigências que resultam da nossa condição de sujeito racional – enquanto sujeito racional, eu estaria
em condições de conhecer determinados princípios e normas que deveriam ser respeitados, que
teriam uma identidade natural e racional ! jusracionalismo e não jusnaturalismo.
Assim existem algumas implicações: se estou a dizer que pelo simples facto de ser um sujeito dotado de
razão que conheço certas normas e princípios que devo respeitar, evidentemente estou a admitir que
esses princípios/normas são universais e são indisponíveis (não os posso alterar) – eu posso agir
irracionalmente, mas suportar as consequências de ser um sujeito irracional. Enquanto sujeito racional
tenho o conhecimento desses princípios e normas, visto que estou a exercer essa razão que aparecia
muito ligada ao modelo da racionalidade científica – conhecimento de regras que deverei seguir se quiser
ser sujeito racional.

Deste modo, o direito criado pela vontade vai ter de estar submetido aos conteúdos materiais do direito
que a razão conhece. A criação pelas autoridades de direito, sobretudo a criação da legislação pelas autoridades,
teria que ter como limite essas normas e esses princípios, não podendo consagrar soluções que violassem de uma
forma inequívoca essas normas e esses princípios.

No discurso do jusracionalismo do séc. XVII (Grócio, Tomásio, Pufendorf, Wolff e Locke), esta ideia mantem-se de
que há limites sob ponto de vista substantivo e material que estão nessas normas que a razão conhece - tudo isto
vai mudar, principalmente com Wolff que foi o último grande autor deste ciclo, sendo que já encontramos algumas
transformações. Desta forma, no séc. XVIII, tudo muda porque, quando se fala numa dimensão
racional/conhecimento racional, mesmo quando se admite que há núcleos de atividade da própria juridicidade
aos quais a racionalidade/razão tem acesso, continua a poder falar-se de direito que a razão conhece, só que esse
direito que a razão conhece é constituído exclusivamente por exigência formais. Isto porque os limites que
nós vamos de facto encontrar neste plano são aqueles que resultam da imposição de uma universalidade
racional:

" No fundo, as leis estão em condições de poderem ter o conteúdo que as vontades determinarem - não há
limites no plano do conteúdo, sendo este contingente e variável, sendo as vontades que o fixam -, isto é,
no plano material não há limites. Só que, para que esse conteúdo contingente se torne racional, ele vai
ter que se exprimir num plano universal, ou seja, não há exigências quanto ao conteúdo, mas passam a
existir exigências muito fortes num plano formal. Sendo assim, para estar num plano jurídico, terei de
estar perante uma norma desta estrutura pragmática e perante uma norma que seja geral e abstrata -
o conteúdo é contingente porque este ganha juridicidade (torna-se jurídico) ao passar por este teste da
universalidade. É um conteúdo universalizável, suscetível de ser traduzido numa norma geral, abstrata e
formal, sendo que isso basta para ver que é um conteúdo juridicamente válido.

Deste modo, mantém-se a herança jusracionalista e continua-se a falar de direito conhecido pela razão, mas tudo
muda significativamente, uma vez que deixa de fazer sentido pensar em exigências materiais que limitem a
criação do direito – vai ser a universalidade racional que passa a determinar a própria juridicidade.
Acentua-se esta tensão, típica do séc. XVII, entre um conteúdo variável, contingente e que pode ser irracional, mas
que esse conteúdo ganha racionalidade se formos capazes de o exprimir universalmente – prescrição autoritária
que seja universal.

Passa a haver
Dexia de exigências Norma deve
exis9r ser geral e Para ter
Critério validade
Racionalidade muito fortes universal
exigências no plano abstrata e
materias formal jurídica
formal


" Consequências importantes:

Nomeadamente no que diz respeito à rejeição do próprio direito que era vigente nos séc. XVIII, sendo que, neste
sentido, era habitual reconhecer ou identificar como leis, por exemplo, comandos dirigidos pelo rei a uma pessoa
ou a um grupo específico de pessoas - comandos concretos que o rei (ou outras autoridades) estabelecia a uma
pessoa em concreto - enunciados que não tinham caráter universal e que eram medidas particulares para
resolverem uma situação concreta – não se punha em causa a sua juridicidade.

% Com este discurso filosófico, que devemos sobretudo a Rousseau, pelo menos nesta clarificação máxima,
vem-se dizer que, com toda a transparência, essas medidas, ainda que com aparência legislativa de
caráter autoritário, não são autênticos critérios jurídicos, visto que não são universais. Claro que
tudo isto tinha uma razão de ser na mesma medida em que também se chocava/confrontava com a
realidade institucionalmente existente:
Antes da revolução francesa e das revoluções liberais, o estatuto jurídico das pessoas estava dependente de um
estatuto de sangue combinado com um estatuto funcional, sendo que, no fundo, tínhamos diferentes
ordens/estados que implicavam diferentes estatutos e diferentes núcleos de direitos e deveres (a nobreza, clero,
3º estado, etc). Deste modo, vir dizer que, se estivermos perante uma prescrição autoritária que se dirige
exclusivamente a um destes grupos ou a uma pessoa ou a uma família, nós não estamos perante um critério
jurídico, sendo que isto era particularmente relevante e tinha um impacto transformador/revolucionário, pois
Rosseau vem dizer que esta ordem antiga (ancient régime) implicava, na verdade, uma experiencia
intolerável de tirania e desigualdade e precisamente por isso é que é preciso ficcionar o contrato social
para que possamos perceber qual é o tipo de sociedade e de Estado que precisamos.

Quando Rousseau vem dizer que no estado-natureza somos todos iguais, é preciso criar uma forma de
associação que seja capaz de defender, proteger a pessoa e os bens de cada associado da prepotência da força
comum. Contudo, tal não chega, visto que, deste modo, a solução de Robbes seria o ideal - é preciso encontrar uma
forma de associação que seja capaz de garantir que cada um, quando se una com todos os outros,
permaneça tão livre e igual quanto era antes, o que significa que isto implicará sobre o ponto de vista
normativo, que cada um quando se une a todos os outros não vai ser senão a sociedade.

& Como é que no contexto de séc. XVIII Rosseau vai pensar (sendo a grande referência dos pensadores
contemporâneos) através do direito-lei, ou seja, de uma lei que seja geral, abstrata e formal?
$ Quando estamos a pensar na lei, estamos a pensar numa manifestação do que Rosseau
identificou como a vontade geral. Esta nova forma de associação deveria concertar razão e
vontade e devia garantir que essa articulação deveria prevalecer sobre as puras manifestações de
vontade - daí a famosa distinção entre a vontade de todos e vontade geral:
o Vontade de todos ! corresponde à soma, à agregação de vontades individuais !
falamos de um resultado contingente, uma vez que são vontades que se exercem na
realidade, ou seja, quando estou a atuar em termos de vontade, eu estou a atuar
num certo contexto debaixo de certas condições ou, por vezes, sob a pressão de
certos fatores, sendo uma opção que é contingente e contextualizada – para ela se
tornar racional, tem que passar pelo teste da universalidade – se eu somar
vontades individuais, eu tenho um produto que é tão contingente como quanto uma
delas, dado que o que se faz foi apenas agregá-las.
Assim, a vontade de todos ou a vontade das maiorias são produtos contingentes, que
estão situados num contexto específico e condicionados por esse contexto.

o Vontade geral ! Para lhes dar uma identidade racional, para lhes conferir uma
forma verdadeiramente jurídica, tenho de dar o salto para o plano da
universalidade, sendo que a vontade geral é que vai permitir isso. Para Rousseau
esta vontade geral corresponde a uma racionalização da vontade de todos – é
como se dissesse que, para que a vontade de todos se converta na vontade geral
verdadeiramente exigível no contexto social, é preciso que esta se exprima numa lei
geral e abstrata.
A partir do momento em que tenho, em função da manifestação dessa
verdade contingente, uma lei geral e abstrata, essa lei vai conferir
racionalidade a essa vontade e vai permitir tratar essa vontade de todos como
vontade geral ! uma vontade de todos ou uma vontade da maioria que se exprima
num comando dirigido apenas a certas pessoas, ou num comando que se cumpra em
concreto tratando de um problema, não é entendida como um verdadeiro critério
racional – para o ser precisa de se exprimir universalmente.
Fim da
prescrição Ar9culação entre
razão e vontade Vontade geral é
autoritária Assente na uma
dirigida a grupos, vontade geral, que deveria
Rousseaux prevalecer sobre
(Contrato social) racionalização da
fim da 9rania e liberdade e vontade de
razão as puras
desigualdade todos
existente no manifestações
de vontade
Ancien Regime


O que poderia parecer de uma dificuldade extrema, ou seja, o desafio de uma forma de associação em que cada um
permaneça tão livre e igual e não obedeça senão a si próprio; é, no pensamento de Rousseau e dos seus
contemporâneos, fundamentalmente , resolvido através da nova conceção da lei – se eu tenho uma lei que é
universalmente racional, o que tenho de exigir é que os conteúdos das vontades se exprimam através
dessa liberdade, porque assim estarei a garantir aquilo que no contexto séc. XVIII se dizia essa liberdade e essa
igualdade.

Evidentemente, atualmente, conhecendo toda a história seguinte, sabemos que esta igualdade do seu ponto de
vista puramente formal, veio depois a ser criticada – isto levou depois à própria crise do paradigma, mas no séc.
XVIII ao nível de filosofia-política e jurídica, isto foi indiscutivelmente uma grande conquista, uma vez que a
realidade que se vivia no plano institucional e o próprio direito que se praticava era outro, sendo que não estava
baseado nessa igualdade.

Agora, eu não poderei estar perante uma lei no sentido jurídico do termo, se essa lei não se dirigir a todos os
cidadãos, a todos os associados – por isso é que a visão contratualista é importante – esta visão do pacto social
em que todos nós somos associados e, nesse sentido, estamos em pé de igualdade com todas as pessoas que
formam a sociedade. A sociedade e o Estado resultaram da nossa conjugação de vontades – se somos todos
associados somos também todos iguais perante a lei, visto que esta dirige-se a todos e dirige-se também àqueles
que constituíram a própria lei – a nós pode ser estranho, vivendo há tantas décadas com uma referência
parlamentar, dizer que alguém cria uma lei e essa lei não o vincula, dirigindo-se a um determinado grupo, sendo
que era assim em grande parte no contexto anterior do Ancient Régime (leis régias que não vinculam o rei, por
exemplo) – havia uma diferença de estatutos e estados normativos que deixam de existir. As diferenças
continuavam na mesma a existir do ponto de vista político, social, económico, etc., mas, no plano jurídico, elas
deixaram de existir, visto que não estaríamos perante uma lei no sentido jurídico do termo, senão garantíssemos
que essa lei cingia todos e, portanto, também àqueles que as criaram, porque são representantes do povo e, neste
sentido estão a agir em nome do povo, mas estão ao mesmo tempo a vincular-se a si próprios.

Isto era, na visão iluminista do séc. XVIII, bastante para garantir que o conteúdo das leis fosse bom e justo, porque
ninguém iria criar uma lei que cingisse a si próprio e fosse injusta - no fundo, estou a criar uma lei para mim
próprio. Neste sentido, bastava essa universalidade no plano dos sujeitos para garantir a bondade ou a justeza
do conteúdo da própria lei, sendo que no plano material nada se interrogava, bastando que formalmente a lei o
cingisse e estaria garantida essa universalidade.

" No fundo, o que os contemporâneos de Rousseau assimilaram do pacto social, foi exatamente esta ideia
de que, para a sociedade se tornar dinâmica, e fazer atuar a sua vontade geral, ela tem que se exprimir
através de atos que representem esta mesma unidade e esta mesma universalidade, sendo por isso
mesmo que diz, de uma forma direta, que são atos de todo o povo para todo o povo e que vão estatuir
realmente sobre uma matéria que também é comum a todos.

Nós encontramos aqui um esboço do que já sabemos há muito tempo: que esta lei se identifica pela
generalidade (atos de todo o povo para todo o povo; são gerais no sujeito e gerais no destinatário –
universalidade), mas também que estatuem sobre uma matéria comum, ou seja, que estas prescrições
autoritárias não resolvem casos concretos – não são medidas que se tomem para superar uma situação
concreta, sendo sempre na verdade prescrições que preveem tipos de problemas ou situações em abstrato.
Se eu estivesse perante uma medida concreta, essa medida esgota-se em si mesma. Se, pelo contrário, estou a
tipificar, eu estou a criar uma hipótese e estou a dizer que todas as situações futuras onde se manifesta as
caraterísticas que estão previstas nessa hipótese daquele tipo, vão ter o mesmo tratamento – é a igualdade no
plano das situações.

Se a generalidade representa a igualdade no plano dos sujeitos, a abstração representa a igualdade no plano
das situações e o tratamento racional, visto que se eu tenho uma norma abstrata, eu estou a dizer que todas
as situações no futuro se venham a manifestar e tenham, por assim dizer, estas caraterísticas, estou a admitir
que aquela mesma norma vai poder ser aplicada a um número infinito de situações, desde que, nessas
situações estejam presentes as caraterísticas que o tipo fixou.

Deste modo, há uma ideia de dinâmica do futuro, pelo que Rousseau tem uma frase famosa sobre isto: “quando
todo o povo estatui sobre todo o povo, ele não está a considerar-se senão a si próprio” – ideia de circularidade de
que estas leis são criadas pelo povo, mas também são criadas para todos. Ele acrescenta: “e se forma uma relação,
essa relação é a relação do objeto inteiro sem outro ponto de vista e sem outra divisão do todo”. No fundo, é a
ideia de um círculo na totalidade em que todos acabam por ser no fundo legisladores de si próprios. É aqui que se
percebe também que ele acrescenta a matéria sobre a qual o legislador estatui, que é tão geral como a própria
vontade que estatui, ou seja, não temos que nos preocupar com essa matéria ou com esse conteúdo, bastando que
lhes atribuamos esta configuração universal, sendo que com isso, estamos-lhes a dar racionalidade e, de facto,
desta passagem famosa do livro II do “Contrato Social” (livro de Rousseau) e, depois de se referir a esta relação do
povo consigo próprio a esta circularidade, ele acrescenta que é este ato de todo o povo para todo o povo que eu
chamo de lato – lei no sentido jurídico do termo.

Estatuição de
uma matéria
Atos de todo o comum a todos
povo para todo o
(não resolvem
povo
Justeza do casos concretos,
Universalidade (generalidade, crtério da
conteúdo da lei
universalidade abstração,
no ponto de vista
igualdade no
dos sujeitos)
plano das
situações)

Realmente, havia a ideia típica deste momento, que a vontade individual é sempre movimentada por
interesses/necessidades e se eu somo apenas aquelas necessidades individuais, aquilo que eu tenho,
naturalmente, é uma soma de interesses particulares, sendo que para se poder falar de bem comum ou de
interesse comum, tenho de dar uma forma universal às soluções.

Ele acrescenta que ninguém é injusto para consigo próprio, a não ser que estejamos perante uma situação-limite
patológica, que se destinaria a ser superada.

Assim, a lei como se dirige a todos, é como se dissesse que, no fundo, vai considerar os seus destinatários quase
como classes lógicas ou categorias gerais porque na verdade ela não tem que identificar os destinatários, visto que
são todos e generalizam-se nas formas que se encontram na legislação, nomeadamente na legislação penal de
“quem” (universalidade racional). As próprias ações humanas nesta perspetiva passam a revelar, através da
mediação abstrata/tipos abstratos, com a indicação de que este direito-lei geral e abstrato, que a realidade que
interessa é a realidade que já está prevista nas hipóteses. Tudo o que não está previsto nas hipóteses não é
realidade juridicamente relevante – toda essa complexidade da trama social que não está prevista nas hipóteses,
não será relevante sob o ponto de vista jurídico, sendo isso que vai justificar que se possa pensar que o juiz
quando está a realizar direito em concreto, esteja a fazer uma aplicação lógico-dedutiva, uma vez que o juiz só tem
de perguntar se as caraterísticas que estão previstas ou não na hipótese se verificam ou não no caso e depois
aplica a norma à situação e faz um raciocínio lógico-dedutivo.

A realidade juridicamente relevante passa a ser inteiramente vista através do filtro do tipo abstrato e, por isso é
que muitas vezes se diz que este é um direito pensado em abstrato – esta visão é absolutamente decisiva para o
paradigma, o que também nos ajuda a perceber que, às vezes, quando identificamos o positivismo (sobretudo o do
séc. XIX), nós estamos a esquecer que, na base desse positivismo, está o normativismo e a intenção clara do
discurso iluminista e do próprio positivismo-normativista, não é uma intenção de politizar o direito (não é dizer
que o direito é a expressão pura das verdades contingentes), mas, pelo contrário, é uma intenção de juridicizar o
próprio poder.

Se nós temos esta visão do direito, o direito está nestas leis gerais, abstratas e formais e, se essas leis são atos de
todo o povo para todo o povo, elas têm que ser criadas por um poder que seja, pelo menos, constituído por
representantes desse povo (poder legislativo no seu sentido parlamentar) e isso envolve uma consideração de
poderes e traz consigo uma ideia do Estado de Direito, no sentido de um Estado limitado pelo próprio direito,
porque vão ser estas leis que vão constituir o padrão de atuação da própria sociedade organizada em Estado que
vai estar condicionada por esta legalidade ! era um Estado de Direito de mera legalidade, um Estado de Direito
formal, visto que efetivamente, quando se está a dizer Estado de Direito, não se estão a impor ao exercício de
poder da autoridade limites do ponto de vista substantivo ou material – o que se está a dizer é que, na verdade,
esse Estado tem de funcionar através de uma separação de poderes que permita autonomizar em pleno a
legalidade e pensar essa legalidade sobre o modo da forma, geral e abstrata.

Evidentemente que, sob o ponto de vista da filosofia de Rosseau, o próprio contrato social põe aqui algumas
dificuldades, porque Rousseau estava a conceber esta mediação legislativa como se por trás da lei houvesse
sempre um legislador extraordinário e capaz de superar o interesse individual e descobrir a vontade geral. Claro
que isto tem suscitado interpretações complexas e diversas, sendo que os contemporâneos de Rousseau
racionalizaram a ideia de que o direito existe no plano da universalidade racional em programas condicionais e
isso basta para garantir o papel decisivo do direito ao serviço da liberdade e igualdade – o Estado de Direito vai
ter que respeitar estas exigências e, desta forma, não seria concebível um Estado de Direito que preservasse a
ordem do Ancient Régime e tornasse a distinguir a ordem jurídica da nobreza, do clero e do povo, como também
não seria concebível um Estado em que o próprio rei fosse titular de uma poder legislativo e executivo, sendo que
tudo isto vai condicionar fortemente a evolução e o paradigma do séc. XIX que assenta nesta separação de
poderes, primado da lei e da lei entendida como uma norma geral e abstrata sempre com um programa
condicional.

Isto é importante porque, quando no séc. XX se supera este horizonte e passa-se para outro tipo de Estado, a lei
vai perder esta identificação, uma vez que nós temos leis que não se exprimem através de programas
condicionais e isso vai ser uma manifestação de momento, em que podemos legitimamente falar de uma crise num
sentido macroscópico.

Proscrição:
delimitação de Prescrição: Facilitação:
regulação Regulação
esferas de
directa, indirecta e
Racionalidade autonomia
Kant norma9va para os voltada para abstracta da
os resultados auto -
sujeitos-
dos processos regulação
actores
sociais social
privados

RACIONALIDADE NORMATIVA

Ao nível da racionalidade interna há um outro ponto importante para percebermos a crise e tem precisamente a
ver com o que se dirá para além da racionalidade interna, ou seja, a racionalidade normativa. Deste modo,
quando se diz racionalidade interna, estamos a identificar o direito com regras e que os cidadãos seguem, sendo
que estas trazem consigo um programa condicional. Contudo, quando falamos da racionalidade normativa,
estamos diretamente a perguntar como é que este direito-lei, já constituído por normas gerais e abstratas,
se dirige aos sujeitos jurídicos ! dirige-se a todos sem identificar problema concretos, identificando tipos
abstratos, mas dirige-se a todos procurando precisamente delimitar esferas de autonomia que permitam a
atuação dos sujeitos, sobretudo no campo do direito privado. No fundo, há aqui uma ideia de limitação – a função
do direito é uma função de proscrever no sentido de limitar, de estabelecer muros e de dizer que se pode ir até
uma certa fronteira, mas que não se pode ultrapassá-la. A função do direito, nesta perspetiva formal do paradigma
moderno-iluminista e em consonância com as caraterísticas da generalidade e da abstração, é, em grande parte,
uma tarefa delimitadora, permitindo que os arbítrios de cada um se conjuguem com os arbítrios de todos.

Esta nota obriga-nos a dar uma especial atenção ao pensamento do autor que se preocupou especialmente em
caraterizar o direito como uma compossibilidade e arbítrios, que foi precisamente Kant.

Para explorarmos o outro lado da racionalidade deste paradigma moderno-iluminista, que se poderá dizer já ao
nível de uma racionalidade normativa, importa perceber a relação que se estabelece entre as normas legais como
a expressão da vontade geral e depois os cidadãos perguntariam exatamente qual é o papel que estas normas, e
consequentemente todo o direito, têm na construção da realidade social.

Relativamente a esta racionalidade normativa, o modo como foi entendida no séc. XIX, foi um modo muito
específico que deve alguns dos seus elementos à mediação do pensamento de Kant. Realmente, do pensamento de
Kant importa reter a referência aos arbítrios e ao modo como o direito deverá garantir esses arbítrios. Este
aspeto teve um grande êxito no direito, visto que, no fundo, quando Kant distingue nos imperativos categóricos, o
imperativo categórico da moral do imperativo categórico do direito, há, desde logo, uma nota que tem a ver
com o modo como se exerce e assume a liberdade.

" O campo da moralidade tem a ver com a liberdade interna, ou seja, com as próprias exigências da
consciência, pelo que eu só estaria a agir em termos moralmente livres quando eu puder dizer que a
minha consciência adere plenamente aos motivos da ação, isto é, se convictamente, quando estou a agir,
for capaz de dizer que estou a agir porque devo agir assim. É uma adesão da própria consciência ao
plano do dever e da motivação pelo dever.

" O direito, ao contrário da moral, tem a ver com um ponto de vista externo, uma vez que aquilo que nos é
pedido sob o ponto de vista jurídico, é uma conformidade à norma do nosso comportamento, isto é,
mesmo que eu não concorde com uma norma, de facto, eu não estarei a ameaçar a liberdade externa, se
internamente apenas assumir essa discordância. No entanto, se eu exteriormente respeitar aquela
norma, obviamente que sob o ponto de vista jurídico, o meu comportamento não pode ser sancionado –
se eu não concordo com a tipificação de um certo crime, mas se na minha atuação quotidiana não pratico
esse crime, eu não sofro qualquer consequência sob o ponto de vista jurídico. Sob o ponto de vista
jurídico, tendencialmente, põe-se um problema de conformidade exterior do meu comportamento com
as normas, enquanto do ponto de vista moral (ponto de vista de Kant), exige-se muito mais do que isso –
o comportamento só será moralmente livre se, de facto, houver essa integral adesão aos próprios
motivos agir.

Impera9vos categóricos
Conjunto das condições
em que o arbitrio de um • Moral e de Direito
Kant pode concorrer com o
do outro

Direito - Liberdade externa - “age


Moral - Liberdade exteriormente de tal maneira que o
interna, consciência (ajo livre uso de teu arbítrio possa
assim porque devo agir coexis9r com a liberdade de
assim) qualquer um segundo uma lei
universal”
• Direito não estabelece finalidades,
estabelece fronteiras

Isto é importante para percebermos a racionalidade normativa, uma vez que Kant entende que o direito é o
conjunto das condições que garantem a liberdade externa (entendimento geral), ao que ele acrescenta, “pelo
meio das quais o arbítrio de um pode concorrer com o arbítrio de outro” ! isto implica uma interpretação de
Rousseau em que se mantém a nota forte da lei geral e abstrata, mas depois acrescenta à generalidade e abstração,
uma nota que vai identificar como a formalidade em sentido estrito. Esta formalidade tem a ver com esta nota
da relação com os destinatários, ou seja, o imperativo categórico do direito, numa das suas versões (nós hoje se
calhar atendemos a uma outra versão mais exigente), manifesta-se da seguinte forma: “age exteriormente de tal
maneira que o livre uso do arbítrio seja compossível/compatível com o arbítrio de todos os outros, segundo uma
lei geral de liberdade”. Aqui, fala-se de arbítrio e liberdade que, para Kant, não significam a mesma coisa, sendo
preciso distinguir e perceber a que é que ele se está na verdade a referir e o que significa:

$ Quando se fala aqui de arbítrio, este tem a ver com o tal plano contingente e racional em que nós
situamos em Rousseau as vontades individuais, ou seja, o arbítrio corresponde ás vontades individuais de
Rousseau e também, de certo modo, às vontades individuais somadas que davam origem à vontade de
todos. No fundo, o arbítrio situa-se nesse plano imediato ! quando se refere o arbítrio, refere-se o
exercício da nossa vontade em concreto (quando estamos a optar/agir).

Arbitrio: Plano
con2gênte racional -
Exercício da nossa Dis9nção entre
Kant arbitrio e liberdade
liberdade, é quando
optamos, agimos

O que Kant vem dizer é que o direito se deve preocupar em estabelecer condições para que estes arbítrios sejam
compatíveis uns com os outros – isto significa que a tarefa do direito é de estabelecer limites/fronteiras para o
exercício dos nossos arbítrios, para que o arbítrio que estou a exercer seja compatível com outro, visto que se não
tivesse fronteiras eu estaria a pôr em causa a possibilidade do outro exercer o seu arbítrio. Quando existe esta
compossibilidade, nós passamos para um plano que já não é contingente, mas sim racional ! neste plano racional,
só há liberdade externa quando os arbítrios forem compossíveis. No fundo, a liberdade passa a ser associada
à própria universalidade da compossibilidade dos arbítrios.

Como vemos, uma vez mais, aqui não estamos a estabelecer limites do ponto de vista do conteúdo ou exercício do
arbítrio, sendo que estamos apenas a dizer que esse arbítrio tem que ser compatível com o arbítrio de todos os
outros associados – é a universalização desta condição de compossibilidade que vai permitir a liberdade.
Para Kant, a tarefa do direito é a de estabelecer estes limites – o direito não atua impondo prescrições diretas à
vontade, muito menos impondo fins que as pessoas devam assumir, não estabelece fins, limitando-se a estabelecer
fronteiras no exercício desse arbítrio. Condiciona o arbítrio definindo esferas de autonomia, mas permitindo no
interior dessas esferas, que os sujeitos possam exercer plenamente o seu arbítrio – é como se a tarefa do direito
não fosse escolher fins que devem orientar o nosso comportamento, mas estabelecer limites a esse mesmo
comportamento.

Isto funciona muito melhor quando estamos a pensar no quadro do direito-privado, visto que estamos a pensar
na autonomia privada, no sujeito dos interesses, nas opções que ele vai tomar, contratando ou não contratando,
estabelecendo este vínculo ou aquele, e a tarefa do direito é aqui apenas a de estabelecer limites e não dizer como
é que o sujeito deve atuar, não se tratando pôr exigências à atuação do sujeito, mas de estabelecer limites para
essa atuação.

Nós sabemos que isto teve uma grande influência até no modo como se constituiu o direito privado – o
entendimento de que toda esta representação, é afinal uma representação de enquadramento formal, sendo que o
direito atua a construir muros ou limites, mas a permitir no interior desses muros que as opções sejam nossas.

Claro que este entendimento envolvia consequências que mais tarde foram postas em causa, como por exemplo, a
importância que vieram a ter, no âmbito de direito privado, as referências aos limites da boa-fé, às exigências da
confiança, a possibilidade de se pensar a responsabilidade pré-contratual – no fundo, estas transformações
ocorreram por se verificar o desajustamento deste ponto de vista formal e puramente individualista, tendo em
conta que isto é a consagração do individualismo liberal e do sentido que o séc. XIX dava a esse liberalismo (muito
diferente deste sentido neoliberal que hoje reconhecemos) – é o puro individualismo, uma vez que se trata de
reconhecer que efetivamente eu posso fazer escolhas, sendo que as escolhas são minhas e da minha vontade,
desde que respeite determinadas fronteiras para que as minhas escolhas sejam compatíveis com as escolhas do
outro.


% Porque é que esta visão foi tão bem recebida pelos seus contemporâneos?
& Porque sob o ponto de vista económico, não podemos esquecer que o séc. XIX é um século de
grande libertação da ordem do mercado sob o ponto de vista da consagração de um grande
capitalismo industrial e assunção plena de que não deve haver qualquer interferência na ordem
do mercado, visto que haverá uma “mão invisível” que se encarregará de garantir o bem-estar.
Isto tem a sua tradução do ponto de vista político-institucional, pelo que este Estado Demoliberal
é um Estado Não-Intervencionista, devendo apenas assegurar a liberdade dos cidadãos, sendo
que todos têm o direito à liberdade de expressão, direito ao sufrágio, etc. e, neste plano assegurar
que o arbítrio de cada um seja compatível com o arbítrio de todos os outros

! Esta é a visão essencial do Estado de Direito do séc. XIX como Estado não intervencionista - Estado
que não assume finalidades, não assume objetivos, não define políticas públicas como aquelas que
nós hoje conhecemos de educação, saúde, etc., mas um Estado que se limita essencialmente a ser uma
instituição que assegura esta compossibilidade dos arbítrios numa lei universal de liberdade. Isto é o
que os contemporâneos de Kant assimilaram no seu pensamento com projeções ao nível do direito
privado, nomeadamente, o critério do abuso de direito, uma vez que numa divisão tipicamente
formal que está aqui a ser consagrada, com esta ideia proscritiva, evidentemente que, se eu estiver a
exercer um direito e respeitar estas fronteiras, isto é, mesmo que eu esteja a exercer esse direito com
uma intenção maléfica, desde que não desrespeite essas fronteiras, esse exercício é um exercício
plenamente legítimo, visto que, efetivamente, eu não pus em causa a delimitação do arbítrio que é
aquela que resulta da própria juridicidade.

Kant diz claramente que não temos de perguntar a alguém porque é que quer celebrar aquele negócio jurídico ou,
quando o celebra, com que intenção ou propósito exerce esta faculdade – desde que ele a possa exercer (esteja
com ela a respeitar os limites formais do vínculo que estabeleceu), o seu exercício é um exercício legítimo – pode
ser censurável sob o ponto de vista social ou moral, mas juridicamente é inatacável – isto reforça o
individualismo e uma ideia de não-intervenção da sociedade e do próprio Estado e uma preservação radical da
autonomia individual. Esta visão formal neste sentido estrito, permite a Kant dizer que se alguém quiser celebrar
um contrato de compra e venda, eu não tenho de perguntar com aquela compra, qual é a necessidade que vai
satisfazer, visto que isso é da esfera do próprio indivíduo – não tenho de perguntar quais as intenções – se eu
estou a exercer uma faculdade que esse vínculo contratual me concede, não têm de me perguntar porque é que
estou a exercer ou a satisfazer uma necessidade – desde que eu respeite os limites formais delimitados pelo
direito eu estarei a exercer legitimamente.

Isto tem evidentemente consequências muito importantes porque permite-nos dizer que, voltando à
racionalidade normativa, estamos realmente a dizer que, de facto, a tarefa do direito quando se dirige aos
cidadãos, é uma tarefa proscritiva porque delimita esferas de autonomia para os sujeitos jurídicos, tendo como
modelo os sujeitos jurídicos privados.

Esta formulação do imperativo categórico de Kant não é única, porque Kant propôs outras versões do
imperativo categórico, entre as quais uma que tem sido hoje explorada na segunda metade do séc. XX quando a
palavra dignidade humana começou a estar associada diretamente às incidências do direito que, no fundo, para
Kant eram apenas versões complementares e não diferentes, uma vez que nessa outra versão diz-nos outra coisa
que para nós tem um nexo diferente e mais exigente e que é o seguinte: “age exteriormente de tal maneira que
trates a humanidade, tanto a humanidade na tua pessoa, tanto a humanidade na pessoa de todos e qualquer um
dos outros, sempre como um fim em si mesmo e nunca apenas como meio” ! realmente há aqui uma articulação
de arbítrio e liberdade, mas muito mais exigente do que aquela exterioridade que os contemporâneos de Kant
pensaram para o exercício do direito subjetivo, visto que aqui trata-se de introduzir uma nota fundamental, ou
seja, quando eu estou a considerar sob o ponto de vista jurídico a humanidade, seja a minha ou a dos outros, eu
tenho que atribuir a essa humanidade um valor próprio – ela é um fim em si mesmo, sendo que ela nunca pode ser
usada como meio ou como instrumento para atingir qualquer objetivo – a impossibilidade de eu degradar essa
humanidade, convertendo-a num instrumento para atingir um outro objetivo é um comportamento juridicamente
ilegítimo.

Isto envolve uma projeção personalista já com componentes subjetivas, bastante diferente daquela que resultaria
da compossibilidade dos arbítrios. A verdade é que, a nós interessa-nos, no paradigma moderno-iluminista, a
primeira, visto que foi esta que acabou por ter projeções diretas na institucionalização do Estado, da sociedade e
do próprio direito (nas próprias soluções do direito privado nós encontramos marcas desta conceção
individualista e formal do direito subjetivo que resulta da ideia que a tarefa do direito é de garantir que o arbítrio
de cada um de nós seja compossível com o arbítrio de cada um dos outros).

Esta formulação ia totalmente ao encontro do contexto político, ou seja, um Estado no séc. XIX era um Estado Não
intervencionista, um estado que garantia meramente as liberdades mas que não tinha uma intenção
transformadora da realidade social – não teria um outro propósito que não fosse garantir esta liberdade racional
e, perante as expectativas de um mercado que se assumia à luz de uma visão liberal, como um mercado de trocas
livres, sem obstáculos - só assim é que se realizaria uma ordem natural das ações que seria aquela exigida pela
fase de institucionalização do modo naturalista. Portanto, temos aqui uma conjugação de dimensões que
favoreciam e privilegiam a versão que nos fala de uma articulação formal dos arbítrios.

Ainda hoje é um pouco com esta inspiração que se repete: “a minha liberdade termina onde a liberdade do outro
começa” – evidentemente que, para Kant, aqui a liberdade era sobretudo o arbítrio positivo que era o exercício da
vontade – se cada um de nós tivesse uma esfera, dentro dessa esfera as opções são nossas, sendo que não
podemos ultrapassar as fronteiras – por exemplo, se eu fosse titular de um direito de propriedade e se invadem a
minha propriedade, estão a pôr em causa a possibilidade de exercer o meu arbítrio – esse comportamento seria
ilegítimo do ponto de vista jurídico nesta visão puramente formal. No entanto, se estão a respeitar os limites da
minha propriedade, eu estou a exercer o meu direito e, mesmo que o esteja a exercer com má intenção, essa
intenção de prejudicar alguém só poderia ser valorada negativamente pela moral e convenções sociais, mas não
pelo direito, pelo que no plano jurídico as fronteiras estavam a ser respeitadas – ao respeitar as fronteiras eu
estava a garantir uma plena juridicidade desse exercício – seria sem sentido falar de abuso de direito, uma vez que
implicaria admitir que, para além dos limites formais, existissem limites materiais e foi através da introdução
desses limites materiais que apareceram as referências aos bons costumes, à boa-fé e à própria finalidade do
direito que veio a ser construída pelo critério do abuso do direito.

É também formal no sentido de que nos permite concluir de que o direito que se veio a constituir no paradigma
moderno-iluminista era um direito que em si mesmo se sustentava como livre de fins ! o direito não
interfere no plano dos fins, nem tem outros fins que não sejam pura e simplesmente o propósito de garantir a
compossibilidade dos arbítrios – não tem propósitos autónomos e não assume a teleologia do direito enquanto tal,
tendo apenas a tarefa de proscrição e limitação de esferas.

Realmente isso permite extrair implicações ! Se o direito é entendido ateleologicamente, o próprio pensamento
jurídico, começando pela interpretação, também deve ser ateleológico, visto que todo o direito se assume como
uma ordem de compossibilidade formal. Todo o ponto de vista que vai dominar o séc. XIX e que vai estar presente
no paradigma (um dos aspetos da crise é precisamente discutir isto), é este caráter ateleológico, tanto do
direito como do pensamento jurídico.

RACIONALIDADE SISTÉMICA

isto iria ao encontro da tal racionalidade sistémica, que permite perceber a articulação que existe entre esta
solução e os outros fatores de ordem política do séc. XIX que são dominantes. Realmente, segundo Teubner, nós
tínhamos aqui pressupostos jurídicos estruturais para a mobilização dos recursos e a alocação se fizesse tendo
como modelo uma sociedade desenvolvida de mercado como era a sociedade típica do séc. XIX. Isso
evidentemente só seria possível porque a estrutura do Ancient Régime tinha sido posta em causa pelas revoluções
liberais, sendo que este contexto é todo ele um contexto político pós-revolucionário – sem essa viragem não seria
evidentemente possível esta libertação do mercado e este discurso que permite por o próprio direito inserido
nesta mesma lógica de libertação do próprio mercado.
Portanto, isto basta para perceber de facto o tal diagnóstico da crise, que se começará a manifestar no plano
macroscópico e dará origem a um outro tipo de compreensão da racionalidade do direito que o próprio Teubner
também autonomiza no quadro e que, ao contrário do primeiro que é um tipo formal, este já será material.

Quando nós dissemos que, no séc. XVIII, o pensamento tinha uma função transformadora e que não seria possível
nas sociedades do antigo regime, tendo que existir uma vertente revolucionária para se impor, dissemos que
tínhamos, no fundo, o projeto de Estado de Direito e, portanto, este projeto é um projeto de juridicização do
poder – tratava-se de dizer que os poderes instituídos têm que ser constituídos, legitimados e delimitados pelo
direito-lei. Por isso, é que todo este contexto, tanto no plano jurídico como num plano político-social, caracteriza-
se por um princípio de separação de poderes ! assim, associadas às caraterísticas de generalidade e abstração
estão exigências de igualdade e liberdade. Se virmos as coisas pela negativa, trata-se de dizer que um Estado que
não respeite esta separação de poderes e não garanta ao poder legislativo e aos Parlamentos a atuação que deve
ser na sua expressão de vontade geral, esse Estado não será um Estado de Direito, mas sim um Estado com
um poder autoritário e um poder tirânico que não se submete às exigências do Direito.

A ideia que o séc. XVIII traz e que vai inspirar o positivismo do séc. XIX, é a de encontrar num direito de
legalidade (num direito das normas gerais e abstratas), o grande referente para a nossa vida em sociedade - esse
direito há-de ser ele próprio um limite legitimador do exercício do sistema político. Precisamente por isso, a
sociedade politicamente organizada em Estado como Estado Demoliberal, tem de ser simultaneamente um Estado
de Direito – um Estado constituído com base no direito e que o direito apareça como legitimador e como limite.
Com certeza que isto tinha a ver também com a consagração dos direitos, liberdades e garantias, pelo menos os da
1ª geração com toda a importância que tinham – a consagração da liberdade de expressão, do livre exercício do
direito de propriedade, a liberdade de sufrágio (ainda que consagrada com bastantes limites) - toda a construção é
pensada em função da juridicidade/universalidade racional passar a ser o limite do próprio exercício do poder.

O poder para ser um poder legítimo tem que agir em conformidade com o quadro de possibilidades desta
legalidade, visto que esta lei é a expressão da vontade geral. Se nós quisermos ver neste Estado Demoliberal o
produto de um contrato/pacto social, temos que levar a sério essa ideia – a importância do poder legislativo. Não
é por caso que no discurso do séc. XIX se defende que leis (direito) só o Parlamento é que as pode constituir
exclusivamente e só aí é que podemos encontrar os representantes do povo. Portanto, a ideia de que o poder
executivo, Governo ou monarca, pudessem ter alguma interferência na constituição legislativa, era completamente
rejeitada por esse entendimento. Isto mudou radicalmente, dado que hoje em dia, a lei é o produto tanto do poder
legislativo como do executivo – os Governos assumiram funções legislativas muitos importantes. A visão do juiz
como boca da lei, assenta nesta legitimidade, nesta dimensão positiva de Kant e Rousseau – o juiz não obedece ao
poder político, nem condicionado pelo poder executivo – o juiz só deve obediência perante a lei que é a vontade
geral e, nesse sentido, deve trazer para o plano concreto aquilo que a lei diz em abstrato – ao contrário de
Montesquieu que pensava o juiz quase como um autómato. Aqui tinha a função de trazer a vontade geral para as
respostas, responsabilizando-o, o que não altera o entendimento que este método deva ser lógico-dedutivo e
formal, mas o que confere o caráter positivo a esta intervenção.

O propósito desta transformação política, social e jurídica é um propósito claro de introduzir um novo tipo de
poder que tenha no direito o seu referente principal. O novo tipo de poder que se espera do Estado
Demoliberal que tenha no direito de facto uma referência suficiente que nos permita dizer que Estado
Demoliberal é um Estado de Direito. Contudo, aquilo que prometia ser juridicização do poder, tê-lo-á sido no
plano formal no sentido de dizer que este Estado respeita um princípio de legalidade que passou a ser um
referente não só do poder executivo, mas também da Administração Pública. No entanto, o que aconteceu foi que
quando estes Estados foram institucionalizados e se invocou a herança do séc. XVIII e se invocou o exemplo de
Rousseau e de Kant, esta visão contratualista ainda atinha muita força, ma depois este contratualismo foi
perdendo a sua força ao longo do séc. XIX - foram surgindo os críticos e apresentadas novas alternativas, varias
denúncias a dizer que era um pseudo-contratualismo, sendo que o que aconteceu foi que, com a perda desta força
também se abriram portas para reconhecer outros palmos, nomeadamente o plano material (é este plano que
realmente importa quando estão em causa soluções para os problemas) – na verdade, a solução é construída
porque está consagrada aquela prescrição e não outra, sendo que, no fundo o que esta perspetiva nos permite
dizer, de um forma simplificante, é que o conteúdo pode ser qualquer um desde que se exprima através de normas
gerais e abstratas.
Deste modo, com a perda da herança contratualista, resulta um efeito que permitia aos vários autores do séc. XIX
denunciarem aquilo que prometia ser uma juridicização do poder, afinal estava a abrir as portas para uma
politização do direito ! isto parece um paradoxo, uma vez que tudo estava reunido para transformar as
estruturas do poder num verdadeiro Estado de Direito (juridicizar o poder), mas o que efetivamente acontecia é
que ao dar-se importância apenas ao plano formal, ou seja, não há exigências quanto ao conteúdo, no
fundo estava-se a admitir que esse conteúdo fosse todo ele expressão de uma vontade política (vontade
dos deputados reunidos nas Assembleias Parlamentares) - quando o paradigma contratualista tem a sua força
toda, nem se admite que se possa dizer que esta criação legislativa não tenha uma identidade puramente jurídica –
porque se diz que aqueles deputados que estão a agir em nome do Povo e estão a manifestar a vontade geral, uma
vez que o que é importante é a universalidade racional – se esta ligação contratualista diminuir um pouco, nós
podemos já dar atenção ao aspeto substantivo e aspeto material e às soluções que estão a ser consagradas pelo
Parlamento, sendo que aí podemos dizer que estas soluções são soluções que resultam inteiramente da vontade
dos compromissos, das maiorias, das vontades dos acordos dos partidos políticos. Assim, estamos já distantes da
ideia vontade geral e estas soluções parlamentares são soluções que estão a ser construídas e negociadas com
uma índole muito mais ideologicamente política do que jurídica ! a partir do momento em que se determinou
isto, nós podemos dizer que esta identificação do direito com a legalidade através da vontade geral acabou por dar
origem a um fenómeno de positivação do direito em termos integrais.

No fundo, todos os conteúdos de direito passaram a estar dependentes de vontades e de uma contingência que é
decisória – desde que eles sejam apresentados em termos abstratos e gerais, o conteúdo é diferente. Deste modo,
se eu fizer o diagnóstico acentuando estes aspetos, eu posso dizer que, na verdade, foram dados passos ao nível da
juridicização do poder, mas o resultado é frustrante, uma vez que temos uma politização do direito, pelo que os
conteúdos das leis são político-ideológicos e não há limites ao nível dos conteúdos, ou seja, temos garantias
formais de processo, mas nada mais do que isso. Portanto, este foi um dos aspetos já, de desgaste que anuncia
a crise que virá repercutir-se no séc. XX neste paradigma.

A crise irá verificar-se em pleno:

• o Estado Demoliberal entrou em declínio no final do séc. XIX, sendo que esse declínio correspondeu à
emergência da 1ª Grande Guerra – as duas primeiras décadas do séc. XX são décadas de agonia do Estado
Demoliberal confrontado com imensas dificuldades externas e internas;
• Depois tivemos um período entre as Grandes Guerras com todas as emergências totalitárias que nós
conhecemos (emergências fascistas e de socialismo-coletivização);
• Depois, temos efetivamente a 2ª Grande Guerra;

Assim, o momento em que o plano macroscópico se constrói, na primeira tentativa de um ciclo alternativo, é já um
momento de pós 2ª Guerra e, portanto, este modelo dito material que nos vai aparecer com uma primeira
grande manifestação em termos institucionais da crise do Estado Demoliberal é, no fundo, aquele que
corresponde ao modelo de Estado Social ou de Estado Providência, sendo aí que vamos encontrar uma primeira
tentativa de construir uma alternativa em que muitos destes aspetos que acabámos de falar vão ser postos em
causa, nomeadamente, a ideia de que o direito deve sempre ser livre de fins, que o Estado não possa intervir, etc…

O paradigma moderno-iluminista e a sua especificidade no contexto do Estado de Direito de legalidade do


séc. XIX

No fundo, isto permitiu-nos perceber que este paradigma está fundamentalmente alimentado por uma conceção
normativista do direito que, no plano da racionalidade interna/formal, implica uma orientação da norma como o
elemento absolutamente decisivo, sendo certo que quando falamos de orientação pela norma, estamos sempre a
falar de um programa condicional com uma determinada estrutura, hipótese e estatuição ! o direito esgota-se em
enunciados deste género – todos os enunciados juridicamente corretos e que constituem direito como direito,
correspondem inevitavelmente a programas condicionais racionalmente universais (gerais e abstratos). Essa
universalidade é o critério da própria juridicidade – aquelas normas legais são jurídicas, não porque sejam
construídas por um poder legislativo (como por vezes se pensa a propósito do positivismo do séc. XIX), mas
porque são universalmente racionais, quer dizer, porque o poder legislativo ao constituí-las, constitui-as como
normas gerais e abstratas, sendo isso que lhes confere juridicidade, garantindo automaticamente a igualdade
perante a lei e a igualdade não apenas dos sujeitos, mas também das situações – vai permitir um tratamento igual
das situações, no sentido de que todas as situações da vida onde se verifiquem as caraterísticas previstas no
programa condicional por exemplo, terão o mesmo tratamento que será aquele que também estará previsto na
estatuição - isto significa garantir uma importante exigência de igualdade no sentido que o contexto iluminista
lhes confere/atribui – a igualdade dos sujeitos perante a lei, a lei é criada pro representantes dos cidadãos, mas é
criada para todos os cidadãos, sendo que aqueles que a criam são também destinatários dessa mesma lei
(universalidade em termos de circularidade) ! isso vai garantir ao conteúdo juridicidade que não se estabelecem
exigências nem condições quanto ao conteúdo, apenas se pedindo que esse conteúdo se exprima em termos
universalmente racionais na perspetiva dos sujeitos. Depois temos uma condição racional de projeção no futuro
que é a de dizer: este programa vai prever na sua hipótese tipos de situações (prever em abstrato situações
possíveis) através de uma determinação de uma série de caraterísticas – isto significa que toda e qualquer
situação da vida onde estas caraterísticas se manifestam, virá a ter o tratamento que está previsto pela norma - a
norma, nesse sentido, tem uma vocação de projeção e aplicação a um numero indeterminado de situações e estas
situações (em nome do valor da igualdade) vão merecer um tratamento que se considera igual na perspetiva da
estatuição dessa mesma norma.

Estas 2 notas permitem construir toda uma concessão normativista do direito.

*Nota que o prof. não acentuou na semana passada, mas que vai ser importante para agora se fazer o
contraste com outras abordagens e com outros períodos da nossa evolução do Estado moderno*

! A ideia de que se estes programas são para ser levados a sério como condições de igualdade dos sujeito ou
como igualdade de tratamento, então, a previsão das situações e as soluções que são, na verdade, estabelecidas
têm que mobilizar um discurso/linguagem que seja rigorosa, significando isto que importa ao nível da própria
informação prescritiva evitar indeterminações – isto é relevante porque nos permite perceber porque é que no
contexto do séc. XIX (embora isto não tivesse sido sempre evitado) há uma forte tendência para evitar que as
normas legais recorram, na sua formulação, a cláusulas gerais ou a conceitos indeterminados ou a standards, visto
que se exige que essas normas sejam rigorosas, para terem esta possibilidade racional de projeção, tanto ao nível
dos suetos, como das situações.

Portanto, é a ideia de uma determinação precisa das caraterísticas relativas à situação de facto e relativas aos
efeitos jurídicos. Assim é preciso acentuar dois aspetos:

1º. A precisão da linguagem ! é importante acentuá-la, visto que poderíamos dizer: por mais que seja
definido o propósito de construir uma legislação com uma linguagem precisa, nunca são evitadas as
indeterminações – as normas perante as situações da vida, são sempre indeterminadas -, mas o discurso
do séc. XIX reagiu a isto, precisamente entendendo que a instância que teria de resistir a esta tese de
indeterminação (de evitá-la) seria a ciência do direito – o papel da ciência do direito nas suas expressões
superiores, no contexto do séc. XIX, tinha a sua expressão máxima, na tarefa da construção conceptual, e
entendia-se que se ciência do direito contribuísse com todo o rigor de um discurso científico para
esclarecer os significados dos conceitos que são usados pela linguagem jurídica (nomeadamente os
conceitos que são usados pelo legislador) e se a ciência desempenhasse bem a sua tarefa/função de
assumir essa construção conceptual (a ciência do direito tinha outras tarefas ao nível da interpretação,
ao nível da análise e ao nível da concentração, mas teria como tarefa principal a da construção
conceptual), entendia-se que, desse modo, o juiz ou qualquer jurista estaria em condições de interpretar
as normas, vencendo essa indeterminações — visto que, ao inserir a norma que ia ser interpretada, não
apenas no sistema das outras normas, mas também do sistema de conceitos (o sistemas das outras
normas era parte integrante do direito, mas o de conceitos seria um produto desenvolvido pela ciência
do direito que está a dirigir-se a um objeto que é o direito) – este contributo da ciência do direito, seria
imprescindível para permitir vencer as indeterminações das normas - daí que a formação dos juristas nas
universidades fosse uma formação muito voltada para esta assimilação categorial rigorosa – os juristas
aprendiam sobretudo conceitos com um máximo de rigor possível – trata-se de também sistematizar e
relacionar os conteúdos entre si.

Um dos domínios do direito onde essa herança da pandectista do séc. XIX, ou seja, onde o positivismos
conceptual é mais forte, é precisamente no Direito Privado e vê-se com que rigor ao nível, por exemplo, da
Teoria Geral do Direito Civil, os conceitos são explorados e se relacionam entre si, em termos de uma
sistematização muito clara de género e espécie – distinguimos os negócio jurídicos unilaterais dos bilaterais,
etc – é toda uma construção que foi obra sobretudo da ciência do direito do séc. XIX e que, para além de
desempenhar uma tarefa que era científica (ciência que se alimentava a si própria e que queria ser uma pura
ciência analítica), tinha uma importante projeção prática que era sustentar a interpretação, permitindo que
esta fosse cumprida pelo jurista em abstrato - o jurista pressupondo os conceitos, estaria em condições de
atribuir a cada norma, um sentido preciso.

Evidentemente, que muitos aspetos que que têm a ver com a crise do paradigma moderno-iluminista tem, de
certo modo, a ver com a ilusão desta aspiração/sonho em que a ciência do direito fosse capaz de construir um
sistema tão perfeito que seria possível interpretar as normas abstrato e atribuir-lhes sentidos precisos. Isto
fazia sentido a partir desta ideia de que o direito está todo ele previamente definido em abstrato – se tal
acontece, é preciso interpretá-lo assim e encontrar aí formulações que sejam rigorosas que só seria possível
com o contributo do tal sistema doutrinal de conceitos.

A orientação pela norma, não só exigia programas condicionais, como implicava uma determinação rigorosa das
caraterísticas do tipo de situação descrita na hipótese e, também, uma definição não menos rigorosa relativa aos
efeitos/consequências jurídicas.

2º. Os efeitos jurídicos são aqueles previstos na estatuição, ou seja, uma sanção de prisão ou a atribuição de
um direito ou um dever é um efeito – isto é relevante porque outros modos/perspetivas de nos
dirigirmos ao direito acentuam a possibilidade de distinguir dos efeitos jurídicos (aqueles que são
correlativos às estatuições – que os encontramos pré-determinados nas estatuições), outros efeitos que
são empíricos ou efeitos sociais com todas as suas implicações (podem ser feitos políticos, efeitos
económicos), efeitos estes das decisões jurídicas - efeitos tanto da decisão legislativa como da decisão
judicial – neste sentido, na verdade, efeitos que se pode dizer que são efeitos empíricos ou efeitos sociais
(não são efeitos jurídicos ou puramente jurídicos) ! se estou a considerar, por exemplo, no plano legal
normativo, os pressupostos de uma ação de despejo, estou a considerar como efeito jurídico, o próprio
despejo ou a cessação do arrendamento, sendo que depois estarei em condições de em concreto
perguntar quais são os efeitos sociais daquela decisão que declara procedente uma ação de despejo/de
determinação de falência – os efeitos podem ser muito variados consoante as circunstâncias, pelo que
pode haver efeitos económicos imediatos, efeitos muito específicos relativamente à situação de
determinados grupos sociais, relativamente ao próprio direito á habitação, etc. Assim, uma coisa são os
efeitos jurídicos que a visão normativista do séc. XIX isola, outros são os efeitos sociais que resultam do
impacto que as situações jurídicas têm na realidade social – a declaração de uma falência pode ter efeitos
muito diversos – por exemplo, se a falência diz respeito a uma grande empresa com muitos funcionários,
que domina o setor económico e até que tem um grande peso sob o ponto de vista político, esses efeitos
serão muito distintos da falência de uma pequena empresa sem grandes impactos no tecido empresarial,
no tecido económico e sem grande relevância no plano político. Tudo isto, permite distinguir o que são
efeitos jurídico e o que são efeitos sociais – as visões pragmáticas e funcionais, ao restituírem o direito à
realidade social, passam a dar atenção a esses efeitos – o que também pode ter consequências negativas
de instrumentalização do jurídico, perca de autonomia do jurídico – se nós hipertrofiarmos o peso dos
efeitos políticos ou económicos, estamos a pôr em causa a própria autonomia do direito. Seja como for, a
autonomia do direito que esta conceção formal pensa, é uma autonomia inteiramente sustentada no
enquadramento do programa condicional – se este é universal ele dá-nos uma perspetiva para
compreender a realidade, pelo que o que importa é dar atenção às situações que estão previstas e aos
efeitos jurídicos que o programa estabelece.

O professor também referiu na aula anterior que, se no plano da racionalidade interna, este modelo que culmina
no Estado Demoliberal e que corresponde à consumação do paradigma moderno iluminista, correspondia a esta
orientação pela norma nesta identidade formal por universalidade racional.

Também nos salientou o aspeto de se poder dizer que no plano da racionalidade normativa, já tendo esta a ver
com o modo como as normas se dirigem aos sujeitos de forma direta. Quando falamos da racionalidade interna
estamos a pensar no próprio sistema jurídico, sendo que é apenas constituído por normas (programas
condicionais), sendo um sistema unidimensional. No entanto, quando nos preocupamos com a racionalidade
normativa, estamos a perguntar como e que as normas se dirigem aos seus destinatários. Como sabemos, a
tendência é para acentuar uma compreensão formal em sentido estrito que se traduz num processo de proscrição.
No fundo, o direito que é constituído por um sistema de normas, dirige-se-nos fundamentalmente
circunscrevendo a nossa autonomia (delimitando esferas de autonomia para os sujeitos), o que se compreende
bem no universo do Direito Privado, que é o grande modelo de toda esta conceção do Direito - um direito-norma
que se nos dirige proscrevendo, isto é, estabelecendo limites para que os nossos arbítrios possam ser
compossíveis uns com os outros – foi exatamente para lembrar esta nota da proscrição, ao nível da racionalidade
normativa, que o professor invocou a importância que tem uma certa assimilação parcelar do pensamento de
Kant - através da referência ao imperativo categórico que nos exige que ao atuar exteriormente façamos de tal
modo que o livre uso do nosso arbítrio seja compossível com o arbítrio de todos os outros. A partir desta
compreensão do direito, o modelo acentua a ideia de que essas normas se dirigem aos seus destinatários,
sobretudo estabelecendo limites – elas não têm propósitos/objetivos/finalidades de transformação da realidade
social, mas têm exclusivamente um propositivo de oferecer condições para a liberdade externa, sendo esta aquela
que nós garantimos quando dizemos que o meu arbítrio é compossível com o arbítrio de todos os outros.

Tudo isto são peças de um puzzle que fazem plenamente sentido e que ao nível do paradigma moderno-iluminista
nos autorizam a lembrar aquilo que é a caraterística da formalidade em sentido estrito – quando se diz que é
formal, está-se a acentuar esse aspeto, ou seja, a lei dirige-se a cada um de nós sem impor fins - o jurídico será,
neste sentido, ateleológico – o direito não terá a ver com fins, nem imporá a nossa atuação de finalidades – o que o
direito faz é estabelecer quadros de atuação, no interior dos quais podemos atreve dos nossos arbítrios/vontades
individuais assumir fins - fins que são da nossa responsabilidade. Daí que isto funciona bastante melhor quando
se pensa no direito privado, no entanto, em termos de autonomia dogmática, o direito público, também estava, no
séc. XIX, a dar os seus primeiros passos. Deste modo, o grande modelo de direito continuava a ser o Direito
Privado e, neste sentido, funciona perfeitamente porque a ideia de que nos são concedidas possibilidades para nós
atuarmos (são nos atribuídos direitos), mas não nos é imposta uma finalidade específica – eu posso exercer o meu
direito para as finalidades que entender, desde que respeite os seus limites formais (desde que não interfira com o
arbítrio do outro).

Como sabemos, isto trouxe muitos problemas que o professor nos lembrou na última aula, lembrando a
importância que teve em meados do séc. XIX a abertura para um problema diferente: a possibilidade de estar a
exercer o meu direito em termos formalmente legítimos e estar a exercê-lo para propósitos que, no plano
material, eram realmente censuráveis – por exemplo, o problema do abuso do direito – o exercício abusivo de
direito é um exercício que é formalmente legítimo, mas que é materialmente abusivo – esse problema não se
punha no contexto desse paradigma e não devia pôr-se, porque o modo como o direito se nos dirigia era, neste
sentido, marcado por esta conceção individualista e formal – o direito limita-se a interferir na delimitação das
esferas de autonomia para os sujeitos.

Evidentemente que, se para além da racionalidade interna e da normativa, admitimos perguntar como é que este
direito, no fundo, se articulava com outras dimensões da prática e como é que este sistema jurídico se articulava
com outros sistemas sociais, nomeadamente o sistema político e o sistema económico, então, havia aqui um
entendimento que era o de dizer que se pensarmos assim o direito estaremos a garantir a possibilidade da
institucionalização de um Estado (institucionalização da sociedade organizada em Estado), na qual o direito seja
uma referência e, portanto, se poderá dizer Estado de Direito – exatamente porque o Direito está nessas normas
gerais e abstratas que asseguram a igualdade e a liberdade externa (compossibilidade dos arbítrios) – o direito é
um referente dessa organização política, sendo que temos um Estado que vai depender do direito para atuar e,
portanto, um Estado que vai obedecer a um princípio de separação de poderes e a um princípio de legalidade, que
vai, no fundo, institucionalizar/consagrar direitos fundamentais, sendo que estaremos perante um Estado de
Direito.

Claro que quando consideramos historicamente todas as experiências europeias, vemos que a consagração deste
Estado de Direito foi sendo paulatina e, por vezes, deixava bastante a desejar, visto que a igualdade não passava,
muitas vezes, de uma aspiração com variadíssimos limites. Contudo, seja como for, o que progressivamente se foi
discutindo foi exatamente a relevância que o conteúdo (plano material) podia ter, visto que esta conceção do
direito cuidava apenas do aspeto formal, ou seja, desde que estivessem garantidas essas condições de
universalidade racional, generalidade, abstração e formalidade, estávamos perante o critério jurídico que seria um
critério justo, tendo em conta que, de facto, não eram as exigências de conteúdo que dominavam, mas sim as
pretensões de universalidade racional.

Sendo assim, o que foi acontecendo ao longo do séc. XIX (em termos de discurso económico, literário, jurídico, etc)
foi dizer que há aspetos que são muito importantes e que têm exclusivamente a ver com um palmo material e
substantivo, que não são salvaguardados no plano formal, sendo que esses aspetos têm, em grande parte, a ver
com as desigualdade que nos separam no plano material em termos políticos, económicos, de acesso à própria
educação – é evidentemente um patamar indispensável a assegurar a igualdade perante a lei. No entanto, tal não
resolve tudo aquilo que é relevante do ponto de vista jurídico – a igualdade perante a lei pode significar uma
consagração no plano material e concreto de tratamentos distintos e pode mesmo até agravar as desigualdades –
isto foi particularmente acentuado pelo discurso literário, mas depois também pelo discurso sindical emergente,
mostrando que, de facto, não bastava, ao nível dos contratos de trabalho, assegurar que o empregador e o
trabalhador eram iguais perante a lei – era preciso, na verdade, proteger o trabalhador, visto que as condições em
que ele se encontrava ao nível da constituição da sua declaração de vontade, eram condições fortemente adversas
– na verdade, a liberdade de contratar ou não, a liberdade de modelar o conteúdo do contrato era muito distinta
consoante consumada uma posição ou outra, sobretudo se tivermos em atenção o que aconteceu no séc. XIX com
todos os efeitos de industrialização, ou seja, uma mão de obra muito numerosa e que, nesse sentido, se oferecia
em termos muito abaixo de toda a dignidade – este é um exemplo entre outros, tendo em conta que a grande
questão é que no séc. XIX no discurso económico, de economia-política, a literatura que começou a emergir era
exatamente esta: sem dúvida que a racionalidade universal é importante, mas não resolve os problemas todos,
sendo que existem alguns problemas que se agravam com esta afirmação de igualdade formal – agravam-se
porque não permitem um tratamento desigual de situações que são substancialmente desiguais – se estou a
equiparar a essas situações, à luz de uma norma geral e abstrata, eu não garanto um tratamento desigual dessas
situações, contribuindo para que essas desigualdades persistam.

No fundo, esta denúncia permitia ao mesmo tempo também, sob o ponto de vista do discurso da economia política
e do discurso político, dizer que esta conceção do direito tinha uma racionalidade específica na sua relação com o
sistema político e económico, porque esta conceção era também uma peça importante (num discurso marxista
dir-se-ia uma peça da superestrutura) para preservar a infraestrutura económica, ou seja, o modo de produção
capitalista e uma sociedade desenvolvida de mercado. Todas estas denúncias com sentidos muito diferentes umas
das outras, contribuíram para mostra que o que aconteceu sobre o impulso deste Estado de Direito de Legalidade,
não obstante o progresso enorme que representa relativamente ao Ancient Régime, foi u ma tendência progressiva
para problematizar o direito e não para garantir a juridicização poder – esta estava presente na exigência da
separação dos poderes, na exigência do princípio da legalidade e num tratamento igual num plano formal, mas
realmente tudo o que dizia a respeito a escolhas de soluções, passava cada vez mais a estra dependente da
vontade politica, visto que o que efetivamente se exigia era que essa vontade exprimisse as suas prescrições em
normas gerais e abstratas, não se pondo limites no plano do conteúdo a essa vontade – as soluções seriam aquelas
que essa vontade fosse determinar.

A partir do momento em que deixamos de ter uma visão tão luminosa do Parlamento como expressão da vontade
geral, passamos a ver que o Parlamento é também um palco de lutas políticas e de lutas de interesses, isto vai-nos
permitir entender que o conteúdo das prescrições legislativas, não obstante a sua forma ser uma forma
universalmente racional, vincula essas prescrições legislativas a intenções ideológicas, o que significa que estamos
a assistir a um fenómeno paradoxal – o que devia ser uma juridicização do poder acaba por se converter numa
politização do direito – o conteúdo do direito passa a estar exclusivamente dependente de prescrições autoritária
legislativas, que não serão ou não podem ser entendidas tão luminosamente, como acontecia com Rousseau como
autênticas expressões da volunté génerale .

# Tudo isto prepara a viragem para um novo ciclo:


o Este novo ciclo emerge depois da 2ª Grande Guerra, uma vez que o colapso no plano macroscópico
do Estado Demoliberal, acontece no final da 1ª Guerra com alguns prolongamentos que conhecemos
nalguns espaços/palcos - esse foi um período de emergência de Estados totalitários que se
afirmavam antiliberais e tinham num dos seus inimigos, em termos de construção ideológica, o
Estado Demoliberal do séc. XIX. Foi esta emergência do totalitarismo dos vários quadrantes, tanto de
direita como de esquerda, que precipitou o segundo conflito mundial.

o É só depois da 2ª GG, no final da década de 40, a partir da segunda metade do séc. XX, que
efetivamente se reuniram condições para, continuando a assumir a mudança moderno-iluminista,
repensar macroscopicamente (foi um repensar ao nível da conceção Estado/sociedade que se
traduziu fundamentalmente numa acentuação da crise – a própria conceção da lei, passou a ser
posta em causa, sendo que o paradigma desmoronou-se neste plano macroscópico, ainda que a
intenção fosse preservar o património que vinha de trás, nomeadamente o património relativo á
exigência da liberdade e da igualdade).

o Este novo ciclo, que também foi sujeito a experiências na Europa Continental que levaram muito
mais longe esta construção do que outras e nos países nórdicos que sempre representaram um
modelo de institucionalização deste Estado Social levado tão longe como é possível (algo que não
aconteceu com os países do Sul da Europa), este novo modelo que acabou por se expandir num
contexto europeu, vamos encontrar aqui num plano macroscópico, uma manifestação evidente da
crise do paradigma moderno-iluminista, não obstante da intenção de preservar o seu núcleo duro/o
seu grande património de luta pela liberdade e igualdade, que se baseia no tipo de Estado que se vai
construir e no modo como esse tipo de Estado se relaciona com o direito, vermos que houve aqui
mudanças absolutamente drásticas e substanciais. Portanto, esse Estado Social ou Estado
Providência vai trazer consigo mudanças muito significativas – aquilo que nos interessa é acentuar a
relação macroscópica com o direito, nomeadamente através da experiência da lei.

Assim, se quisermos manter aquelas perguntas e aquela estrutura do quadro que o professor propôs, vamos ver
como é que este Estado se distingue do ciclo anterior, atendendo aos três níveis falados anteriormente:

1) Racionalidade Interna
• Se nós tínhamos no ciclo anterior uma orientação pela norma e um direito inteiramente pensado
como um sistema autossubsistente racionalmente universal de normas que eram programas
condicionais, nós agora vamos ter uma afirmação muito clara ao nível do próprio direito de uma
orientação por efeitos e por fins (acentuação da dimensão teleológica) – quando se está a falar
de fins e efeitos está-se a falar num certo contínuo, uma vez que o fim/objetivo é um propósito
que eu vou relacionar diretamente com o efeito (eu posso dizer que, no fundo, o efeito é um efeito
social, empiricamente produzido na realidade) – um fim é a antecipação racional/intelectual de
um efeito que ainda não se produziu – eu tenho o propósito de produzir na realidade este efeito
e, portanto, eu tenho um fim que vai orientar a minha intervenção.
• Isto significa que a intervenção do direito na realidade social passa a ser orientada por fins e por
efeitos e, mais significativamente que isso, fins e efeitos que têm a ver macroscopicamente com
todo o tecido social e, portanto, não posso dizer que são fins e efeito jurídicos. São fins e efeitos
sociais que, muitas vezes, aparecem sob as máscaras de fins e efeitos políticos ou económicos.
Deste modo, nós temos aqui um movimento claramente oposto ao do paradigma moderno-
iluminista – se este apostava no isolamento formal pelo direito, esta viragem vai exigir uma
mobilização pragmática e instrumental do direito – o direito vai estar ao serviço de fins e
expetativas da realidade social e, portanto, vai intervir e orientar por estes fins. É uma mudança
radical, visto que não se está a pensar que o estado deve ele próprio assumir fins (o que não
acontecia com o Estado Demoliberal – este não tinha uma tarefa para além do propósito global de
garantir a liberdade e igualdade)- este Estado vai assumir finalidades e uma política cultural, de
orientação, de saúde, etc. – temos um Estado que assume fins e esse assunção do Estado de fins
como função de intervenção e transformação, vai determinar que o direito-lei seja explicitamente
mobilizado como instrumento, entre outros, para a realização desses mesmos fins – seu eu quero
alterar a minha política ambiental, eu altero em primeiro a legislação – a legislação vai aparecer
como um instrumento da intervenção do próprio Estado – instrumento de próprio governo – isso
dá uma índole completamente diferente à relação Estado-Direito, sobretudo porque estamos a
ver o direito macroscopicamente – estamos a ver o direito como direito-lei, através das
prescrições autoritárias do poder – não estamos a considerar outras aspetos relevantes da
experiência do direito que têm a ver com a realização em concreto desse direito. Quando
consideramos o direito-lei, dizemos que, ao mudar esta relação, muda também a índole do
direito-lei:

A 1ª transformação mais clara é dizer ao lado dos programas condicionais que continuam a existir, vão surgir
outro tipo de programas legislativos adaptados ao novo tipo de Estado – estes programas são os chamados
programas finais – vamos ter leis que já não obedecem á estrutura hipotético-condicional e que obedecem a uma
estrutura diferente que é a estrutura teleológica – o que eu tenho, quando estou a considerar aquela lei, é, no
próprio diploma legislativo, um enunciado tão rigoroso quanto possível de efeitos que se pretendem atingir, ou
seja, de fins – os objetivos desta prescrição legislativa são estes – sabemos que basta folhear o Diário da República
para encontramos leis com esta estrutura – uma determinação de objetivos a atingir, depois uma seleção dos
meios que vão ser considerados indispensáveis para os atingir e, finalmente, alguma antecipação de possíveis
decisões alternativas que se virão a verificar na prossecução desses objetivos e na determinação desses efeitos –
alternativas possíveis de decisão que depois vão ser avaliadas na sua maior ou menos ineficiência de adaptação á
estratégia. No fundo, eu posso dizer que estas leis constroem programas de fins (definindo fins, selecionando
meios e antecipando alternativas de decisão mais ou menos eficientes) e não só obedecem a uma estrutura que é
claramente diferente, como têm realmente uma índole nuclearmente diferente.

Isto vai-nos ajudar a perceber outra coisa que tem a ver com a formulação das leis. No entanto, no plano
institucional há aqui diferenças, ou seja, se eu digo: a lei deixa de ser apenas o estatuto da compossibilidade dos
arbítrios para passar a ser também, em nome de exigências de justiça distributiva e substantivas de proteção dos
mais indefesos e redução das desigualdades, nomeadamente da libertação das carências, para além de ser o
estatuto da liberdade formal, passa a ser um instrumento flexível ao serviço das intervenções na realidade social –
instrumento do Governo. A partir do momento em que assim é, deixa de fazer sentido que se preserve a ideia de
que estas leis devam ser expressão exclusiva dos Parlamentos, visto que o Estado Demoliberal vivia desta
exigência porque via na lei uma expressão da vontade geral (no sentido de Rousseau) – neste sentido só a
mediação parlamentar estaria em condições de criar Direito, uma vez que aí é que se encontravam os
representantes do povo. A partir do momento em que dizemos que a lei pode ter outras expressões, visto que não
é exclusivamente um estatuto racional de liberdades – a lei é um instrumento ao serviço da transformação social -
passam a admitir-se, e já não como exceções, competências legislativas que estão para além dos Parlamentos, o
que significa que o nós temos é um fenómeno que nós conhecemos muito bem e que generalizou-se e
sistematizou-se só a partir da segunda metade do séc. XX, que é o fenómeno dos próprios Governos legislarem –
nós temos Leis e Decretos-Leis que são realmente produzidos por Governos e que são produzidos com uma
intenção clara de transformação – como instrumento claro da própria política de governação.

Evidentemente, isto leva à necessidade que foi assumida no contexto de emergência do estado de Providência, a
necessidade de repensar o princípio da separação de poderes – este já não pode ser defendido naquele sentido
formalmente e estritamente orgânico que o Estado Demoliberal consagrou – nós temos que manter plenamente o
princípio da separação de poderes e o seu significado, mas essa separação é uma separação terá de se pensar em
termos funcionais e já não através de uma delimitação de órgãos, nomeadamente, estas tarefas legislativas
passam a caber a diferentes órgãos, como o Governo (são competências delegadas, mas vão poder criar leis e
Decretos-Leis). Ao mesmo tempo que temos a emergência dos programas finais – apareceram ao lado dos
programas condicionais e, embora estes últimos tenham continuado a existir, num plano metodológico, a visão
que é dominante é também uma visão teleológica, isto é, mesmo as leis que se exprimem através de programas
condicionais de “se “e “então”, devem ser interpretadas dando uma grande relevância ao elemento teleológico, à
finalidade prática dessa lei – seu eu estou a fazer isso, embora a lei tenha um programa condicional, eu estou a
interpretá-la dando-lhe uma configuração teleológica que as aproxima dos programas finais, sendo que o
programa final passa a ser o modelo - eu tenho leis que obedecem estritamente à estrutura do programa final e
tenho outras leis, nomeadamente as leis que sobrevivem nos Códigos com uma estrutura hipotética-condicional,
mas que passam também a ser teleologicamente e interpretadas, uma vez que, no fundo, aqui temos esta
representação de que o direito está ao serviço das expetativas sociais que forem sendo democraticamente
definidas pelos Estados.

Relativamente àquela ideia das leis como programas condicionais no ciclo formal, terem de ser muito rigorosas,
sabemos bem que a partir da 2ª GG, nós temos um fenómeno de recurso deliberado pelo legislador - quando se
trata de formular as leis o legislador vai recorrer a uma forma crescente a formulações indeterminadas – este é
um caminho completamente diferente, uma vez que na verdade, o contexto Demoliberal rejeitava as fórmulas
indeterminadas, embora não as conseguisse de todo superar, uma vez que existiam sempre indeterminações,
sendo que agora o que temos é a acentuação a ideia de que eu conseguirei esta realização pragmática do direito
mais adequadamente se a própria lei, no seu programa final, recorrer a standards, cláusulas gerais e a conceitos
indeterminados. Isto porque o legislador tem que ser claro e preciso na determinação dos fins a atingir, mas
quando seleciona os meios ou quando antecipa algumas alternativas de decisão, tem de o fazer em termos muito
flexíveis, para permitir que ou o administrador ou o juiz que estão no terreno, possam realizar o mais
eficientemente possível este programa de fins. Assim, se o programa de fins estivesse pronto, definido em abstrato
com muito rigor, ele não será suficientemente flexível para se adaptar às condições do terreno e, portanto, o
administrador e juiz, não estariam em condições de realizar eficientemente – quilo que se espera do juiz ou do
administrador já não é que ele seja a mera boca da lei, mas sim um executor inteligente, taticamente autónomo
das grandes estratégias que vão sendo definidas pelo legislador.

Neste sentido, tal como acontece no plano militar, a estratégia não pode estar definida em todos pormenores, visto
que se isso acontecesse, os táticos (são aqueles que estão a atuar no terreno), não seriam na verdade de dar
resposta eficientemente às circunstâncias – para tal e para poder realizar melhor a estratégia, é preciso que o
tático seja autónomo. Deste modo, para ele ser autónomo, o programa de fins tem que estar definido como
matéria de flexibilidade, daí que se justifique a utilização no programa de fins de conceitos indeterminados, de
standards, de fórmulas vagas, permitindo uma realização/execução desses critérios que seja orientada para os
efeitos reais no terreno! eu tenho que realizar esse fim, mas esse fim, para o realizar em termos eficientes (para
que esse fim represente os menores custos e os máximos benefícios), vou ter que ter, efetivamente, alguma
flexibilidade no terreno, sendo que essa flexibilidade só será garantida se eu, num plano abstrato, abrir algumas
portas e, portanto, preservar a indeterminação. Claro que, a razão pela qual, nomeadamente o nosso CC de 1966
encontramos várias cláusulas gerais e conceitos indeterminados, não é exatamente este, visto que poderá ter
outras razões que têm já a ver com a tal experiência microscópica, com a referência aos princípios que legitimam
também a abertura deliberada das prescrições legislativas – não é só a visão tática da visão judicial que determina
essa abertura.

No quadro macroscópico em que nos estamos a situar e vendo as coisas a partir da estratégia do Estado Social, nós
podemos dizer que esta flexibilização das próprias normas legais em termos de indeterminação propositada,
inserindo standards vagos e cláusulas gerais, tem um objetivo muito nítido de permitir que a orientação por fins e
pelos efeitos resulte verdadeiramente de um terreno com uma orientação eficiente – não se trata de realizar
eficazmente (de usar os melhores meios para atingir os fins, visto que isso está garantido pelo programa
legislativo), mas trata-se de realizar/executar eficientemente esse programa legislativo, o que só é possível
fazendo um cálculo de custo se benefícios no terreno perante as circunstâncias específicas e que vão mudando.

O que o professor nos disse ao nível da racionalidade interna pode agora ser repetido ao nível da racionalidade
normativa, visto que já podemos facilmente perceber se ao nível da racionalidade interna, o Estado Demoliberal se
caraterizava pela tal dimensão proscritiva, agora temos vocação proscritiva de transformação - há ali uma
intenção de transformação - há aqui uma vontade de uma regulação direta dos próprios fenféns sociais, isto é,
enquanto que, o ciclo formal ficava pela garantia do tratamento igual da garantia da compossibilidade dos
arbítrios, agora temos a ideia da intervenção – é preciso intervir para corrigir desigualdades, para libertar alguns
dos seus cidadãos de situações de carência extrema, para generalizar uma certa política de habitação ou ambiental
– neste sentido, esta ideia da intervenção, traduz-se na vocação para uma regulação direta que está toda ela
voltada para resultados/efeitos no sentido social – começa a generalizar-se uma designação que atualmente é
muito comum de origem anglo-saxónica, que é políticas públicas (public policies), sendo que tem a ver com a
definição destas estratégias de intervenção – política de saúde que cria um serviço nacional; política cultural que
protege determinado tipo de manifestação artística; política ambiental; política de segurança social – tudo isto são
novidades do Estado Social e são novidades que o Direito vai acompanhar transformando radicalmente a própria
compreensão da lei – a lei passa a ser também um instrumento ao serviço dessas mesmas políticas.

Deste modo, no momento em que emerge o Estado Social, em contraste ao nível do que acontecia ao nível da
racionalidade sistémica com o Estado Demoliberal, existe agora a ideia de que o que é preciso fazer é corrigir os
fracassos do mercado – se, no fundo, no Estado Demoliberal, a sua racionalidade sistémica assentava nos
recursos, na alocação numa sociedade desenvolvida de mercado – agora temos esta representação de que há
fracassos do mercado que têm de ser corrigidos através da intervenção do próprio sistema político e a lei é um
instrumento direto desta regulação direta – temos desigualdades muito vincadas que é preciso atenuar, sendo
preciso introduzir uma série de medidas compensatórias em termos sociais – a lei vai ser um instrumento da
implantação e desenvolvimento destas medidas -temos, de facto, uma mudança radical, tanto racionalidade
interna, como no plano da racionalidade normativa e tanto no plano da racionalidade sistémica. Então, poder-se-á
dizer que a índole passou a ser, ao contrário do que acontecia com o Estado Demoliberal, uma índole material,
pelo que podemos falar de um ciclo de neomaterialização. Contudo, é necessário ter algum cuidado, uma vez
que, no plano macroscópico, quando se fala de uma racionalidade material, é preciso ver que essa é integralmente
pensada ao nível dos fins e dos efeitos – não estamos numa perspetiva exclusivamente pragmática de fins, para
objetivos a tingir e efeitos sociais a desencadear – a neomaterialização tem exatamente a ver com isso, sendo
estes objetivos pensados sempre como expressões de necessidades subjetivas, seja dos indivíduos, seja dos
grupos – é uma questão de exigir a satisfação dessas necessidades e de ter de escolher, visto que vivendo nós
permanentemente numa situação de escassez económica, nem todas as necessidades podem ser satisfeitas e,
portanto, tem que haver uma hierarquização dessas necessidades – é um tratamento ao nível dos fins e dos
efeitos. No plano material, isto não representou propriamente de forma direta uma recuperação de uma
dimensão de valores, até porque, quando nós falamos de exigências valorativas, elas são normalmente assumidas
numa ligação muito forte com intenções ideológicas, sendo que não temos um caminho facilitado para pensar a
autonomia do direito – há, de certo modo, uma tendência, para a flexibilização do direito como instrumento –
tendência para uma funcionalização do direito e não propriamente para a preservação – até porque estávamos a
reagir aos excessos do normativismo que tinha transformado a autonomia do direito no isolamento formal.

Será melhor ver esse ciclo da neomaterialização, até para perceber porque é que hoje, no nosso tempo, se
fala tanto desta crise do próprio Estado Social.

Nós hoje não podemos dizer, com transparência, que estamos a viver o apogeu do ciclo do Estado Social – fala-se
da crise do Estado Social e quais as razões dessa crise.

Precisamente por isso, vamos entender alguns aspetos do Estado Social (estão no texto “o problema atual do
direito” – páginas 35 e 36) e da neomaterialização político-social do direito:

Ao nível da condição política, esta remete-nos para o Estado Social e para as transformações produzidas por
este. Claro que, evidentemente, a intervenção do Estado Social veio permitir medidas legislativas, não só confiadas
ao poder executivo, mas também medidas legislativas que não encontram o seu modelo já na universalidade
racional, visto que a própria universalidade racional admite, na verdade, ser questionada relativamente a
determinados pontos específicos de atuação da legislação. Isto que dizer que é a possibilidade de falarmos de leis
que já não são gerais e abstratas, sendo medidas legislativas correspondentes á ideia da lei providência que
podem traduzir intervenções diretas para resolver problemas que são singulares e concretos – podem dirigir-se
exclusivamente a um grupo ou a determinados sujeitos numa determinada situação muito específica – nós temos
aí muito evidentemente uma demonstração dessa flexibilização do direito – a lei já não será o estatuto
universalmente racional das liberdades, podendo ser uma medida de intervenção localizada e, portanto, as
próprias caraterísticas da generalidade e da abstração admitem exceções que não têm de ser justificadas como tal
– são modos de atuação perfeitamente normais de um Estado Social. NO período de crepúsculo do Estado
demoliberal foram-se admitindo algumas medidas de intervenção legislativa com um caráter concreto e singular,
mas essas são realmente medidas absolutamente excecionais e que eram justificadas como tais – agora são modos
de atuação – a lei pode assumir diversos tipos descritivos desde que realmente ela seja legitimada político-
socialmente.

Um ponto que faltou acentuar e que é importante para percebermos o sentido da neomaterialização, mas também
algumas razões da crise que esta neomaterialização, no nosso momento presente, está a viver é que, para além
desta condição politica do Estado Social (associada a ela), temos aquilo que se poderá dizer uma condição social,
num sentido, em que nos permite falar aqui de uma verdadeira emergência do social ! é a possibilidade de
dizermos que a sociedade passa a ser o território de todos os problemas humanamente significativos, mas mais
que isso é o campo onde se manifestam esses problemas humanos – passa a ser o critério de todos os problemas
humanos, sendo que isso significa uma tendência que, para nós, é quase uma tendência natural porque vivemos
nesse enquadramento do Estado Social ou, pelo menos, sob a influência em termos normativos, das experiências
do Estado Social e, portanto, para nós é habitual esta identificação. Contudo, esta identificação não faria sentido se
nós as puséssemos assim num outro contexto histórico como o séc. XIX – é podermos dizer que todos os
problemas humanamente significativos são, ou tendem a ser problemas sociais – problemas da sociedade -é como
se nós postulássemos que todos os problemas humanos, do nascimento à sobrevivência, da educação ao ensino,
da saúde à habitação, do emprego ao nível de vida, etc. fossem problemas da sociedade e que por serem
problemas sociais, é a própria sociedade que os deve resolver.

Esta é uma nota interessante, dado que não faria sentido no discurso do séc. XIX, seria algo de estranho. Algo que
para nós é extremamente natural, visto que esta lógica de neomaterialização trouxe consigo esta socialização dos
problemas. Realmente, no fundo, poder-se-á dizer que a sociedade como um todo (enquanto societas, enquanto
forma de associação criada pelo homem, mas longe de puramente contratualista), tem a possibilidade de resolver
estes problemas e são problemas, pelos quais essa sociedade como um todo é responsável.
Evidentemente que esta socialização dos problemas (esta emergência do social que nos permite dizer que todos
os problemas humanos são problemas sociais e que a sociedade tem que resolver enquanto tal) tem uma intenção
(protegida por algumas abordagens politico-ideológicas) benéfica de dizer que há que existir um esforço coletivo,
no qual a sociedade como um todo vai assumir esses problemas e que os vai resolver (Ex: o problema da saúde
não é um problema individual e é um problema coletivo). No entanto, trouxe consigo esta excessiva socialização
que, sem ser problematizada e sem ser refletida, trouxe consigo um efeito relativamente negativo ao nível da
própria mentalidade individual, visto que trouxe consigo o efeito de dizer assim: se esses problemas são da
sociedade como um todo, então, não são meus enquanto indivíduo e, se não são meus, eu não sou responsável pela
resolução desses problemas – eu posso colocar-me numa situação de beneficiário que reivindica, em que digo que
a sociedade tem de me resolver esse problema e que tenho direito a essa prestação de saúde ! isso significa que
se estabelece uma quase fratura entre uma representação global que vai assumir exigências de solidariedade e de
justiça distributiva e, depois, uma assimilação individual que se vai tornando paradoxalmente cada vez mais
individualista, dado que os sujeitos aparecem fundamentalmente a assumirem essa posição que, por exemplo,
Milton Friedman diz: “do berço à sepultura” (página 37) eles são apenas beneficiários reivindicantes” – no fundo,
a sociedade tem que desenvolver as prestações e com algumas consequências relevantes:

1- Relativa falta de articulação entre uma experiência coletiva de bens de interesse comum que
responsabiliza a sociedade;

2- Modo como cada um dos sujeitos indivíduos integrantes dessa sociedade leva a sério esse objetivo – aí há
uma discrepância porque a socialização dos problemas leva a que cada sujeito se veja pura e
simplesmente, como um dos tais beneficiários reivindicantes.

No plano dos tais problemas humanos, se construi, como que antropologicamente, uma certa intenção à
felicidade ! isto tem origens no plano cultural das experiências do utilitarismo do final do séc. XVIII e início do
séc. XIX ! esta intenção que emerge e que marca antropologicamente este sujeito social do Estado Social, é uma
intenção que se vai medir na perspetiva do homem dos interesses – é como se disséssemos que o problema da
razão, da vontade e da liberdade já estão resolvidos através das estruturas que foram herdadas do Estado
Demoliberal dos direitos da 1ª geração, sendo que o que é preciso agora é garantir a todos o direito à felicidade.
Contudo, para isso pensa-se num modelo que quer ser um modelo de societas, ou seja, um modelo que terá de ser
relativamente livre de valores, visto que se entende, na verdade, que os valores são convicções dos indivíduos e,
quando estamos a falar do todo social, estamos sobretudo a falar em situações de necessidades subjetivas e de
carência. Isso significa que esta intenção á felicidade é realmente inteiramente pensada, de uma forma que é
redutora, a partir de padrões de desenvolvimento económico-social, isto é, a intenção à felicidade é traduzida num
progresso económico e num progresso científico-tecnológico – há aqui uma ideia de bem-estar que nos torna
sujeitos de necessidades subjetivas independentemente do contexto cultural em que estamos inseridos – deixa de
ser relevante a referência a uma comunidade de valores ou tradições em que estamos inseridos, para passar a ser
decisiva uma ideia de progresso que seria universal e comum a todos, não dependendo destes contextos culturais
e civilizacionais, e que seria inteiramente determinada pela própria dinâmica da técnico-ciência – o progresso
traduzir-se-ia na fruição, n consumo, no aumento do rendimento per capita – uma felicidade que se esgota na
representação de um desenvolvimento económico-social, sendo que isto vai influenciar tudo – se pensarmos na
relação do sujeito com a sociedade inevitavelmente vamos também pensar o direito como uma dimensão da
realização estratégico-tática desse modelo de bem estar.

Daí que o próprio Estado Social apareça muitas vezes designado de Estado de Bem-Estar (Welfare State) e,
realmente, de facto, o que aparece inteiramente acentuado como problema social é a disponibilização de
prestações que garantam uma maior igualdade de oportunidades e que garantam também a libertação da carência
(libertar os mais desfavorecidos das carências que eles efetivamente sustentam). O modelo de justiça distributiva,
que não querendo assumir propriamente um padrão valorativo, passa fundamentalmente a pensar-se num certo
sistema económico e na relação desse sistema com o sistema político. Há aqui uma alguma economicização da
política que vai ser perturbadora, visto que o Estado Social tinha começado por ser uma afirmação
assumidamente político-ideológica e assunção inequívoca de exigências de solidariedade, sendo que, depois, tudo
isso é perturbado pela receção individual, sendo que os sujeitos são cada vez menos sensíveis a essa
referência à solidariedade e cada vez mais preocupados em assumir essa posição reivindicativa das
próprias prestações e, por outro lado, alguma redução do entendimento que será esse bem-estar. Realmente,
como F. Werner diz (num texto citado pelo Doutor Castanheira Neves): Daí que, por um lado, “ninguém deve ser
infeliz” e o destino que socialmente diferencie ou se ofereça como carência individual não seja ele próprio mais do
que um dano social político-juridicamente acionável – no fundo, poder-se-ia dizer que há aqui um direito comum à
felicidade pensada através de um modelo das necessidades subjetivas e se alguém que não consegue satisfazer as
suas necessidades, tal deve ser pensado como um dano político-social e, como tal, deve ser afastado através do
próprio sistema. Este tratamento pode ser perigoso porque tende a desagregar o património e aposta na
solidariedade social que marcou a emergência do próprio Estado Social – há toda uma série de elementos
contraditórios que afetam o êxito da institucionalização, não obstante a sua força inicial.

Realmente, o Estado Social aparece com uma intenção muito marcada de realização de justiça distributiva, e
inclusivamente assume-se uma defesa de que essa justiça distributiva pode ser pensada juridicamente,
independentemente de modelos puramente políticos, mas há, no modo como vai ser construída a resposta (esta
institucionalização), toda uma série da fatores que vão acabar por se contrapor uns aos outros e permitem
introduzir aqui uma certa tendência desagregadora que afeta o êxito desta institucionalização deste Estado Social.
Assim, o que no início aparecia como uma opção marcadamente política (é preciso um Estado de Direito que, para
além das garantias de liberdade e igualdade, se realize também como modelo de justiça distributiva –
responsabilidade por solidariedade que é defensável em termos jurídicos, embora seja difícil estabelecer as
fronteiras do que é a responsabilidade por solidariedade e o que é que será o entendimento político-ideológico
dessa solidariedade), ou seja, o que começou por ser um apelo a uma responsabilidade por solidariedade, acabou
progressivamente por se transformar num processo que levou à construção de um fortíssimo aparelho
burocrático que, ao ser marcado por essas exigências de eficiência no tratamento dos problemas, levou àquilo que
alguns dizem: uma economicização da política – houve mesmo alguns autores que disseram que foi uma
“despolitização da política”, visto que o Estado passou a ser um aparelho técnico, instrumental em face da
sociedade. O próprio Estado ao serviço das expetativas sociais, o que significa o mesmo que dizer um Estado
prestador, que presta serviços, que desenvolve prestações de saúde, educação, cultura, política ambiental e que,
sendo a sociedade diretamente beneficiária dessas prestações.

Esta referência a uma “despolitização da política”, pode ter um efeito desagregador da intenção originária de
construção de uma nova ordem social marcada pela justiça distributiva – o aparelho que se construiu ao serviço
dessa justiça distributiva, acabou por ganhar um excesso de autonomia, por se tornar como se autossuficiente, e
de condicionar a própria relação que se estabelece entre o Direito e o Estado. É exatamente nesta linha de uma
certa economicização da política, que inclusivamente se diz que se calhar nós já não precisávamos do direito –
aquilo que precisamos verdadeiramente é de uma engenharia social. No fundo, de uma área de conhecimento
que possa fazer o catálogo das necessidades que devam ser satisfeitas, dos desequilíbrios com que essas
necessidades são satisfeitas, das opções estratégicas que há-de tomar, sendo que, depois, na verdade, o que se diz
habitualmente do direito: deve desempenhar essas tarefas racionalmente construindo as tais políticas públicas e
permitindo que o juiz se assuma como tático destas estratégias. Neste caso, já não teríamos o direito como
referência daquilo que é justo ou injusto, visto que teríamos um direito sobretudo como um instrumento de
realização de expetativas sociais. Nós vamos ter oportunidade de ver como é que a acentuação desta tendência
que não surgiu pela primeira vez no Estado Providência, mas sim antes no pragmatismo norte-americano,
nomeadamente, com POUND que é o autor desta expressão “social engineering”, mas vamos ver que a
acentuação desta tendência de dizer que precisamos de uma certa ordem de possibilidade científico-
tecnologicamente sustentada e que é mais importante que o direito tradicional, tal vai levar ao que nós veremos
na parte final do curso, que é poder autonomizar-se como uma das alternativas ao direito – alternativa da ciência
! engenharia social.

Contudo, se em termos de condição social, o que nós temos é esta emergência do social, por um lado, e, por outro
lado, uma certa recondução do homem-sujeito à condição antropológica do homo socialis – aquele que vai poder
transferir os seus problemas para a sociedade e exigir que essa sociedade lhe resolva esses problemas, quase
como se não tivesse problemas para além daqueles que podem ser ditos problemas sociais – inclusivamente, os
problemas que surgem da sua infelicidade são problemas que se admite que as suas sociedades têm condição de
os resolver. O que vai acontecer é que às duas primeiras condições, à condição política e à condição social, acresce
uma dimensão cultural que nos ajuda de facto a entender melhor as outras duas e a entender porque é que se
poderá falar de uma discrepância entre esse contexto global e a experiência individual.

No contexto da relação entre Direito e Estado (aberto por esta neomaterialização), deu-se um novo impulso a um
fator que tinha sido muito importante já no discurso do séc. XIX, mas que aqui permanece intocado e que, agora, é
reforçado com novos elementos ! esse fator é o que tem a ver com a racionalidade, sendo que esta, no contexto
do séc. XIX, se passou a pensar sobretudo através do modelo da racionalidade científica. Um discurso racional é
um discurso que obedece aos esquemas e métodos das ciências analíticas e das ciências empíricas – um discurso
jurídico, se quiser ser racional, tem de ser ele próprio um discurso científico – esta visão das coisas alargou-se a
todos os campos do pensamento e da ação.

Na segunda metade do séc. XX, este cientismo teve curiosamente um reforço que foi determinado pelo próprio
êxito das conquistas da ciência, êxito da técnico-ciência – os êxitos da técnica que nos permitem, em poucas
décadas, de beneficiar de instrumentos e de recursos absolutamente insuspeitados (que na década anterior nós
não suspeitaríamos que pudessem emergir) – este desenvolvimento exponenciado dos recursos técnicos trouxe
consigo um novo impulso para admitir que a salvação está na racionalidade científico-tecnológica – está no
tratamento científico dos problemas, inclusivamente até nesta referência que um tratamento racional e científico
pode evitar que certas opções sejam tomadas do ponto de vista político-ideológico, quer dizer, haverá problemas
que passam a encontrar a sua solução independentemente das convicções politico-ideológicas com que os
diagnosticamos e, portanto, passa a ter uma solução ao nível do discurso científico.

Claro que isto é uma tendência, mas é uma tendência que aparece conjugada com outras que a contradizem: se a
segunda metade do séc. XX deu este novo fôlego ao cientismo, através da ideia da racionalidade científico-
tecnológica que está efetivamente associada a essa possibilidade de pensar na engenharia social, o certo é que a
segunda metade do séc. XX trouxe também outras reabilitações dos pensamentos práticos que questionam essa
primazia do discurso científico. Deste modo, não há dúvida que temos aqui um ciclo muito fértil em contradições,
sendo que algumas delas são contradições/tensões internas que condicionaram a própria construção do Estado
Social. Estas tensões (tendo em conta que vimos apenas um lado menos positivo do Estado Social, sendo que todos
sabemos que o Estado Social trouxe consigo nas primeiras décadas enormes conquistas, nomeadamente, o
alargamento exponenciado dos direitos económicos, sociais e culturais, com todas as consequências que tem tido;
o desenvolvimento das politicas públicas, etc.), mas nós temos que perceber porque é que será que hoje, no nosso
contexto contemporâneo, não podemos ficar por aqui – não podemos apontar que houve um momento de crise no
estado Demoliberal que correspondeu à explosão da neomaterialização – a verdade é que a situação atual é uma
situação particularmente mais complexa e é uma situação que nos permite falar de crise também do próprio
Estado Providência – nós estaríamos neste momento a viver uma situação complexa, em que há diversos sinais de
crise, sendo alguns mais fortes que outros que são interpretados de várias maneiras e há quem entenda, na
verdade, que a situação que nós estamos a viver na atualidade, mesmo nos Estados que levaram mais longe o
modelo do Estado Providência, já não é aquela que correspondia à neomaterialização do pós-guerra, sendo que
estaremos já outra situação – preservaram-se certas estruturas, tendo-se preservado, em muitos casos, a
possibilidade de recorrer à lei como programa final, mas o horizonte institucional em que isto se desenvolve e as
expetativas que são assumidas já não são exatamente as mesmas. Isto leva-nos a tentar perceber aquilo que
alguns dizem: nós hoje já não vivemos num ciclo de neomaterialização, mas sim num período pós-instrumental
(página 41) relativamente ao Estado Social. Tal não quer dizer que não haja muitas das estruturas do Estado
Social e manifestas conquistas deste, só que já houve transformações realmente significativas.

Desta forma, aquilo que se invoca em primeiro lugar é:

1º - Tema da crise do Estado Providência

# Por vezes, esta é uma questão em que as palavras têm o seu peso, visto que inclusivamente há quem diga
que o Estado Social como modelo é a nossa condição, ou seja , o nosso destino, como foi experimentado no
contexto do pós-guerra, só que o que temos de evitar é um Estado Social hipertrofiado, ou seja, um estado
Social excessivamente gordo como alguns dizem – que não tenha um excesso de intervenção.
Por vezes até a palavra Providência é usada com um sentido perjurativo ! dizer que o Estado não queira
assumir todos os problemas como se fossem seus e que queira prestar e desenvolver todos os serviços e
prestações – o Estado não deve deixar de ser um Estado Social, mas não deve ter essa pretensão
totalizante que teve o Estado no pós-guerra.

Realmente, quando nós falamos da crise do Estado Providência, tendo em atenção a relação com a juridicidade e
legalidade, há aqui vários aspetos da crise que nós teremos de considerar:
# Evidentemente que o mais visível aspeto da crise do Estado Social (e já o era no texto em que foi escrito,
sendo que hoje é muito mais, visto que hoje se tornou quase num tema do nosso quotidiano) é, antes de
mais nada, um problema económico-financeiro ! os Estados deixaram de conseguir mobilizar os
meios e os recursos indispensáveis, para prosseguirem todas as tarefas que se tinham na verdade
comprometido a assumir – todas as políticas públicas e com o grau de intervenção que elas queriam
assumir – é aqui que entra, muitas vezes, que entra o argumento de dizer que temos de recuar, ou seja,
ainda que continuamos a poder defender o Estado Social, este Estado tem que se institucionalizar com
menos Estado, com menos intervenções, não podendo ser tão ambicioso nas suas prestações. Realmente,
de facto, há aqui um elemento muito importante que todos conhecem que tinha a ver com uma das notas
originárias do Estado Social: quando este foi implantado, se pensarmos sobretudo no contexto dos países
nórdicos, há uma diferença claríssima de uma universalidade das prestações, sendo universais
(prestações para todos os cidadãos – de saúde, culturais, que estão ligadas a estas diferentes politicas) e,
ao mesmo, tempo se acentua uma ideia de que estas prestações e os serviços que estão por trás delas
devem ser total ou quase totalmente gratuitos – sabemos que esta é uma das matérias do Estado Social –
o Estado presta estes serviços gratuitamente. Evidentemente que isto surge no modelo inicial, sendo
várias vezes reformulado – a gratuidade pode ser também um elemento de desigualdade e, portanto,
passa a admitir-se a possibilidade de alguns destes serviços não serem inteiramente gratuitos par aqueles
que têm maiores recursos, sendo introduzidas estas pequenas correções -, mas há o modelo em que se
pensa essa gratuidade. Ora, se nós estamos a pensar num crescimento exponencial das prestações,
intervindo em maior número e em mais espaços da nossa vida, se elas são gratuitas evidentemente que o
Estado não tem recursos para as sustentar ou os recursos com que a sustentam são os recursos que, mais
uma vez, mobilizam os impostos – podia-se dizer que há aqui a possibilidade de instrumentalizar o
próprio Direito Fiscal ao serviço da correção das injustiças e, portanto, essa mobilização dos impostos
estaria a ser, ela própria, um recurso para garantir uma maior igualdade entre os cidadãos. Contudo, o
excesso de prestações atingiu um ponto tal que efetivamente o próprio caminho dos impostos se tornou
ineficiente para resolver o problema. Como se diz, sem grande rigor, mas com alguma ironia, é como se o
Estado Providência quisesse de facto ir tão longe que faliu e não foi capaz de corresponder ás suas
expetativas ! plano económico-financeiro – é impossível que o Estado assuma todos estes serviços,
uma vez que não tem meios para isso.
# Há um fator que tem sido particularmente estudado que é um fator institucional-administrativo
(página 41) – para corresponder a todas estas ambições de intervenção e de prestações e de políticas-
públicas, o Estado criou uma máquina que não existia – uma máquina burocrática e administrativa é
como se esta tivesse ganhado vida e assim se tornasse opaca e realmente numa espécie de um efeito de
elefantíase organizatória, levou a que, na verdade, o que tinha sido construído para dar uma resposta
lograda aos problemas, se tenha progressivamente transformado numa obstrução à satisfação célere
desses problemas. Foi criada uma máquina para desenvolver essas prestações, mas essa máquina tornou-
se excessivamente pesada e paradoxalmente, passou ela própria a constituir um obstáculo à eficiência e
ao modo como as próprias políticas públicas se realizam - um aparelho excessivamente burocratizado
que impede que as estratégias previamente delineadas e que podem ser boas, não sejam efetivamente
executadas ou não sejam executadas como pretendiam, mas, pelo contrário, sejam executadas em termos
morosos, com grandes distorções, abrindo caminho à criação de nichos de ineficiência preocupantes,
sendo que, ao mesmo tempo, gerando todo o efeito que já tinha sido denunciado por Max Weber, que é
este efeito de opacidade, que dizer, aquela máquina é como se tivesse finalidades específicas e como se
não tivesse ao serviço das intenções com que foi criada – ideia de que a máquina cria algo de irracional,
uma espécie de overstrain irracional que, de facto, torna aquilo que deveria ser eficiente, célere e leve, em
algo pesado e complexo. Isto foi o que aconteceu em quase todos os Estados europeus no contexto do
Estado Social – os próprios Estados que levaram mais longe a institucionalização do Estado Social tiveram
e têm feito reformas no sentido de tornar mais leve esta máquina 8torná-la menos exigente).
Este fator acrescenta mais uma dificuldade, ou seja, mesmo introduzindo muitos recursos, a máquina
burocrática que foi construída para dar resposta ás expetativas sociais, é ela própria devastadora quanto
a uma parte significativa desses recursos – esses recursos não são todos gastos em benefício dos
cidadãos, sendo também assimilados pela própria máquina. Isto significa que, no fundo, dever-se-á
introduzir fortes reformas para evitar o risco desta máquina se tornar um obstáculo.

# Mais profundo do que estes dois fatores, são outros que têm, por um lado, a ver com alguma erosão do
património ideológico que está na base do Estado Social (página 42)– é evidente que este Estado
apareceu numa situação complexa e numa situação em que prometia superar as carências do Estado
Demoliberal, mas, ao mesmo tempo, aparecia com a força de uma entidade que realmente se afirmava
também em relação, não apenas em relação ao Estado Demoliberal, mas a experiências totalitárias,
nomeadamente, a experiências totalitárias de socialização integral ou de coletivização dos meios de
produção. No fundo, o Estado Social quando aparece no contexto europeu, aparece também assumindo
uma parte do património que vinha do socialismo democrático, da social democracia e de outros
movimentos, mas, no fundo, dizendo que não iam seguir o caminho do dito socialismo coletivista e do
socialismo científico, visto que isso implica uma privação das liberdades e implica um sistema totalitário.
Desta forma, temos um desafio de construir um novo tipo de Estado em que se vão prestar serviços aos
cidadãos, mas não se vai coletivizar a economia, continuando-se a observar uma ordem de mercado – por
isso mesmo, os críticos na frente marxista dirão que o Estado Social foi uma tentativa do próprio
capitalismo se renovar e vencer as suas contradições internas, sendo que o Estado Social não é senão uma
expressão da ordem de mercado, etc. De facto, há aqui esta forte referência pela negativa dizendo: assim,
vamos procurar resolver os problemas da desigualdade, da carência, mas não através de uma
coletivização dos meios de produção, sendo que essa será possível se renunciarmos às liberdades
políticas, sendo que essas são muito importantes. No fundo, os direitos, liberdades e garantias que estão
associados à primeira geração, são aqui de preservar por inteiro, não sendo possível realizar direitos
sociais ou culturais sem os primeiros e, esse terá sido o erro do socialismo científico – ao apostar nessa
coletivização integral, para que ela fosse possível, teve que renunciar a essas garantias e a essas
liberdades.
Nós sabemos que, na verdade, as coisas foram-se tornando cada vez menos claras, ao nível desta
referência e, depois da queda do muro de Berlim e do socialismo científico do comunismo representar
neste sentido, uma referência no próprio território europeu a leste, digamos que houve aqui uma relativa
erosão das ideologias – perda de força progressiva que se veio a refletir curiosamente no tal fator de
ordem antropológica, ou seja, havia aqui uma aposta na existência de libertar os mais desfavorecidos das
carências (libertação das necessidades – freedom from want) que estava na base de uma
responsabilidade por solidariedade. No entanto, aquilo que era afirmado no plano coletivo que nos
permitia pensar o Estado assim, sem dar o passo para a tal coletivização dos meios de produção, mas
entendendo que o Estado passa a ser um Estado prestador, aquilo que estava a ser defendido era
defendido em nome de uma exigência de justiça distributiva e da introdução de uma nova dimensão de
responsabilidade que seria pensável juridicamente e que era a da responsabilidade por solidariedade –
no fundo, não somos apenas responsáveis comutativamente pelos vínculos que estabelecemos uns com os
outros ao nível do direito privado, não somos só corresponsáveis pela proteção de um bem jurídico como
acontece ao nível do direito penal, não somos só responsáveis pelos danos que as nossas condutas,
voluntária ou involuntariamente provocam ao nível desse equilíbrio pela integração, nós também
passamos a ser responsáveis em termos de contribuição para um bem-estar da
comunidade/sociedade pensada como um todo. Isso significa que vamos passar a assumir uma
condição de sujeitos que não são amenas beneficiários, mas que também são sujeitos que assumem certos
sacrifícios – se eu me assumo como responsável em termos de solidariedade, nós vamos que ter que
contribuir para a realização dessas prestações, não apenas através dos impostos, mas através de
sacrifícios que nos são impostos (a correção das desigualdades implica que aqueles que tenham mais
recursos que tenham naturalmente que contribuir mais para o todo – ideia de sacrifício que acresce à
ideia do benefício).
Evidentemente que isto pressuponha sob o ponto de vista cultural, ao nível da mentalidade, uma
verdadeira vocação no sentido dessa responsabilidade por solidariedade, ou seja, cada um de nós, sentir-
se, perante ser corresponsável pela proteção de certos bens jurídicos como acontece a nível do direito
penal, sentir-se também responsável, por uma contribuição para o todo da realidade social – agora
através de um modelo de realização de uma certa justiça social ou distributiva – havia que criar condições
para que cada sujeito assumisse em pleno essa responsabilidade de contribuição que se diria ou poderia
dizer, uma responsabilidade por solidariedade.

O que vai acontecer é que nestes 50 anos em que o Estado Social se desenvolve, sendo que há momentos que
foram diagnosticados como momentos mais graves, o que acontece é que há verdadeiramente uma situação de
discrepância entre o que esta afirmação global, em termos ideológicos de sustentação do providencialismo
político-social, e o que é a atitude dos cidadãos. Porque efetivamente o que nós temos, no final dos anos 80, é uma
acentuação do individualismo e de um individualismo consumista, muito diferente do individualismo que marcou
o homem burguês do séc. XIX, sendo que este é, todo ele, sustentado na nota das necessidades e das apetências
individuais em que cada um vai procurar satisfazer o mais plenamente possível as suas necessidades subjetivas, o
que significa pensar na tal felicidade em termos de consumo (satisfação imediata das necessidades) e,
simultaneamente, significa também uma recusa da solidariedade e uma recusa do sacrifício, que deixam de ter, na
verdade, sentido.

Há aqui um processo que assenta em duas perspetivas inconciliáveis:

# Modelo da sociedade e da relação da sociedade com o Estado, da relação do Estado com a sociedade é o
modelo da solidariedade – só ela é que nos permite pensar essas prestações coletivas, públicas e que
garantam a tal libertação das necessidades dos mais desfavorecidos;

# Num plano individual, um afastamento cada vez maior dessas exigências ou desses ideais de
solidariedade, que se vai traduzir na emergência de um novo tipo de individualismo egoísta/rasteiro -
não é um individualismo da compossibilidade dos arbítrios que sustentou a institucionalização inicial do
Estado Demoliberal, assentando, por sua vez, fortemente na exigência da satisfação das necessidades
individuais.

# Por vezes, há outros fenómenos que também perturbam este entendimento do que é o interesse comum,
do que é o bem comum – que é também uma lógica mais forte nalgumas experiências do que noutras, mas
que também aconteceu na segunda metade do séc. XX que é uma certa lógica de perturbação da
integração social, através da integração em grupos. No fundo, grupos profissionais, de interesses, de
pressão, etc., o que leva a que, ao assumirem as próprias necessidades e interesses específicos, tendem a
constituírem também um obstáculo ao entendimento do que deva ser o próprio bem comum – não é só
individualmente uma resistência egoísta a assumir essa solidariedade, é também uma leitura diferente
que os diversos grupos fazem com muita força do que é essa responsabilidade comum, o que leva a que
não haja ou que haja dificuldade em estabelecer verdadeiramente consensos quanto ao que será esse
dever de participação no todo.

Isto é realmente desagregador – torna contraditório os fatores que deviam conciliar-se e que deviam ser
potenciados para permitir este tipo de solidariedade concebida no Estado Social, sendo que estes fatores de
ordem cultural, estabelecendo esta discrepância do que é a exigência de solidariedade e o crescimento
absolutamente hipertrofiado de um individualismo egoísta (é uma das marcas do nosso tempo) terá sido também
um dos fatores que explica a crise do Estado Social.

Neste percurso pela crise macroscópica do paradigma moderno-iluminista, centrada no problema do Estado e da
legislação, falámos do que correspondeu ao chamado ciclo da neomaterialização – o ciclo que corresponde no
plano político-institucional à emergência/estabilização do Estado Social. Na verdade, esta institucionalização
trouxe consigo, não só uma nova compreensão do Estado com as suas funções e prestações, mas também uma
nova conceção antropológica de um certo homo sociallis, que é de certo modo o sujeito destinatário e
reivindicante desse Estado Social, com a particularidade de todos os problemas humanos passarem a ser
perspetivados por esta referência macroscópica à societas, passando a ser vistos como problemas sociais e como
problemas que a sociedade organizada em Estado vai ter de solucionar e responder.

Contudo, não foi só uma transformação antropológica, mas também uma ema transformação muito significativa
da própria conceção da legalidade que passa a admitir, mesmo até a assumir, como nuclear o recurso a programas
finais. Portanto, neste sentido, se o paradigma moderno-iluminista reduzia a legalidade e, assim, também, a
juridicidade à condicionalidade (programas condicionais – não tínhamos critério jurídicos se não estivéssemos
perante critérios hipótese e estatuição na sua universalidade racional – generalidade, abstração e formalidade –
garantiriam a compossibilidade dos arbítrios), se este paradigma moderno-iluminista assumia a exclusividade
constitutiva em termos de direito dos programas condicionais, o quadro do Estado Social na segunda metade do
séc. XX, vem introduzir a inevitabilidade dos programas finais e mesmo a assumir que esses programas finais
serão ou passarão a ser núcleo de identidade do direito ou, pelo menos, da função que se espera que o direito
desempenhe enquanto servidor das expetativas sociais – o direito integrado na realidade social – os programas
finais passam a prescrever uma série de objetivos a atingir que têm de ser claros.

Contudo, a seleção dos recursos numa relação instrumental com esses fins e em situação possível de alternativas
de decisão que vão caber ao juiz ou ao administrador, essa seleção de recursos e essa antecipação de alternativas
de decisão, essa pode e deve recorrer para a sua formulação a standards de cláusulas gerais/fórmulas
abertas/conceitos indeterminados (talvez a expressão cláusula geral não seja a mais adequada uma vez que
estamos a assumir uma certa perspetiva mais pragmática do Direito e do próprio Estado) – pode-se dizer, em
termos gerais, uma linguagem que é deliberadamente aberta/indeterminada para que o uso dos recursos e
sobretudo, as alternativas de decisão em concreto, possam oferecer aos operadores no terreno (administrador ou
juiz) possibilidades de maximizar a estratégia que lhes é comunicada – o que nos levaria a pensar tanto o
administrador como o juiz, como táticos da estratégia social que lhes é comunicada.

Deste modo, em oposição ao que eram os programas condicionais, temos, deliberadamente, uma mobilização do
direito para prosseguir estratégias sociais – o direito como instrumento de realização de estratégias sociais e de
politicas públicas e, nesse sentido, exigindo que as leis passem a, num plano geral, admitir programas finais
(continuando a existir programas condicionais), passando estes a ser o grande instrumento de intervenção no
direito na realidade social e passam a ser plenamente assumidos, o que não acontecia no contexto do séc. XIX em
que eram rejeitados, pelo que se houve algumas evoluções neste século em que essas dimensões foram
introduzidas, na verdade, elas eram sempre excecionalmente pensadas e sempre lançadas para o plano da política
– entendia-se que não eram propriamente critérios jurídicos, mas sim medidas de intervenção excecional a que os
governos podiam recorrer.

Assim, como se generalizam os programas finais, também se flexibiliza a própria universalidade da lei, passando-
se a ter leis que sejam medidas de intervenção singular e concreta – medidas que são respostas no plano
legislativo para determinados problemas – isto torna-se também indissociável da abertura do processo de
constituição das leis aos governos – possibilidade de os governos assumirem os seus problemas, prescrevendo
legislativamente, com competências legislativas, o que era inconcebível no paradigma moderno-iluminista. Se
atribuirmos aos governos esse papel, estaríamos inevitavelmente a pôr em causa o princípio de separação de
poderes tal como era entendido pelo paradigma moderno-iluminista, como uma separação rigorosamente
orgânica. Portanto, tudo isto leva à necessidade de reinventar o princípio, ou seja, manter o princípio e dar-lhe um
sentido diferente, em que a separação já não é uma separação orgânica, mas uma separação funcional (como se
conhece no âmbito do direito constitucional).

Essas são as transformações que importam para perceber a própria crise do paradigma – são introduzidos novos
elementos que vêm alterar aquilo que era fundamental.

Para além disso, a situação que vivemos, sob o ponto de vista macroscópico, está longe de ser uma situação
tranquila em que se pudesse dizer que este Estado Social com algumas transformações foi fazendo o seu caminho,
mas é, na verdade, a referência que importa reconhecer. É certo que se pode continuar a afirmar isto, as é preciso
ter algum cuidado, visto que, como já vimos, a partir do final dos anos 80 e princípio dos anos 90 do séc. XX,
começam a surgir várias vozes com distintas origens e correspondendo a diferentes linhas do pensamento que se
dirigem criticamente a esta neomaterialização político-social do Direito. Realmente, as razões para esta crítica
repousam também, até certo ponto, num diagnóstico de crise do próprio Estado Social - senão do Estado Social
enquanto tal, pelo menos relativa ao modo como este Estado tem sido desenvolvido, sobretudo alguma hipertrofia
de componentes deste Estado, ou seja, algum crescimento excessivo de componentes que não teriam sido
acompanhadas devidamente por outras dimensões que também estariam ou deveriam efetivamente estar
presentes.

• No plano da condição política, vimos que as razões da crise seriam:



1. Em 1º lugar, a questão económico-financeira (sobretudo explodiu na crise financeira do nosso
tempo) – não recursos possíveis/há um impasse financeiro, sendo impossível de mobilizar meios
para que o Estado prossiga todas estas atividades, pelo que terá que existir menos Estado/menos
prestações. O projeto inicial do Estado Social era que a maior parte destas prestações (de saúde, de
política-ambiental, ao nível da habitação, da educação, etc) envolvessem, por um lado, uma certa
universalidade dos serviços relativamente a todos os cidadãos e, por outro lado, ao mesmo tempo,
consagrassem como modelo (admitindo algumas prestações), um modelo tendencial de gratuitidade
destas prestações. Evidentemente, que num contexto de um impasse financeiro a continuar a existir a
gratuitidade seria obviamente insustentável, pelo que isso levou a recuos significativos à introdução
no quadro do próprio Estado-Providência de várias soluções em que, não apenas essa dimensão
gratuita, mas também as universalidades começaram a ser corrigidas, introduzindo critérios que
podem estar na origem da crise do Estado Providência.

2. Crescimento excessivo do aparelho burocrático que assegura estas prestações – a ponto de este
se transformar numa máquina que não só é financeiramente insustentável, como é uma máquina que
vai criando dificuldades à própria produção de feitos, criando opacidades e resistindo de uma forma
um pouco irracional a situações de não produção de efeitos, ou seja, de ineficiência – admitindo que o
modelo era do Estado Social, admite-se que este gerou um aparelho que pareceu insustentável para
prosseguir as suas finalidades, mas estes aparelho, por uma lógica de complexidade no plano
administrativo que implicou a tal hipertrofia burocrática, impediu a realização lograda dos efeitos.

3. Um dos problemas mais significativos tem a ver com dois planos que, de facto, são indissociáveis:

o Plano mais ideológico

o Plano mais cultural

Estes estão associados porque o providencialismo político-social surgiu na Europa na segunda metade do séc. XX,
após a 2ª Guerra Mundial (a partir dos anos 40 e princípio dos anos 50) e surge claramente associado a uma
tentativa que preserva a ordem do mercado e que preserva a democracia política, mas que, ao mesmo tempo, quer
ser uma resposta ao problema que os chamados Estados Socialistas do socialismo-científico (Estados comunistas)
tinham procurado resolver – no fundo, uma exigência de igualdade (sobretudo, igualdades de oportunidade), mas
uma institucionalização dessa igualdade que envolva uma correção das injustiças e que, ao mesmo tempo,
preserve a liberdade politica e, do ponto de vista económico, a ordem de mercado. Evidentemente, na perspetiva
desse socialismo científico de base marxista, esta seria uma tentativa do próprio modo de produção capitalista de
se reforçar, adaptando-se às novas circunstâncias – não se abdicava desse modo de produção capitalista, não se
abdicava da liberdade burguesa associada ao Estado Demoliberal, mas procurava-se corrigir algumas das
injustiças que tinham potenciadas por essa liberdade do mercado – correção das injustiças que se traduzia sob o
ponto de vista de uma racionalidade sistémica, na ideia de que o direito-lei dos programas finais vai poder
intervir, corrigindo os fracassos do mercado introduzindo medidas sociais que sejam compensatórias para esses
fracassos do mercado, mas, ao mesmo tempo, preservando a lógica do mercado.

Isso envolveria uma intervenção/regulação direta voltada para os efeitos.

A procura desta via que seria diferente da via liberal do séc. XIX e a via do socialismo científico que estava a ser
experimentada a partir da revolução russa, estava sustentada num modelo que era ele próprio ideológico no
sentido que se tratava de introduzir na realidade social um princípio de responsabilidade que se pudesse acrescer
às outras responsabilidades que já conhecemos, um novo tipo de responsabilidade que seria a responsabilidade
por solidariedade: todos os cidadãos são responsáveis pelas condições (desenvolvimento) globais da sociedade
como um todo, sendo que essa responsabilidade não é apenas a responsabilidade penal que se vê pela negativa,
como um dever de abstenção de não violar certos bens ou valores jurídicos, mas é uma responsabilidade que se
traduz pela positiva numa cooperação, exigindo de nós ações que poderão ser positivas ou ser sacrifícios, como
por exemplo, exigem que alguns de nós, para garantir essa correção das injustiças, suportem mais sacrifícios do
que os outros - realmente, havia aqui, de facto, uma preocupação de igualitarismo, mas um igualitarismo
associado a esta responsabilidade de solidariedade que evidentemente era apresentada, muitas vezes, como uma
tentativa de finalmente corresponder àquilo que a filosofia prática desde a antiguidade assumia que era um
grande modelo de justiça distributiva – introduzi-la como elemento do próprio problema do direito.

Isso significaria uma correção através de medidas compensatórias de desigualdades, mas também aquilo que se
diz a libertação das necessidades, ou seja, procurar que os cidadãos com menos benefícios (que à partida são
desfavorecidos) viessem a libertar-se através de condições mínimas desse estado de necessidade absoluta que os
impedia de satisfazer o mínimo.

O que acontece é que esta ideologia da solidariedade que é indispensável ao Estado Social (tem sido repetida
ainda que num contexto de correção de algumas das suas dimensões),tem encontrado um forte obstáculo, a partir
dos anos 80, naquilo que é um novo ciclo de individualismo associado a uma projeção do sistema económico
associado ao consumismo – individualismo esse que já não é um individualismo ideológico como o do séc. XIX,
visto que esse era sustentada quase como uma condição da própria justiça social - Kant diz-nos que a tarefa do
Estado é preservar a liberdade, compossibilidade dos arbítrios e que o Direito deve ser a condição por excelência
desta liberdade exterior, pelo que existe aqui a defesa de uma visão individualista – o Estado não intervém senão
para estabelecer fronteiras entre as esferas de autonomia dos sujeitos individuais, mas é uma defesa num plano
fortemente marcado por uma conceção filosófica ou depois ideológica.

Os fenómenos que vão marcar os anos 80 e 90 e que continuam a repercutir-se hoje com uma grande intensidade,
são fenómenos de um individualismo que não tem o seu fundamento numa visão do mundo, mas
fundamentalmente um individualismo pragmático e egoísta, visto que está associado à própria ordem
económica da ordem da satisfação das necessidades – cada sujeito procura satisfazer as suas necessidades e,
nesse sentido, o apelo a uma responsabilidade por solidariedade começa a tornar-se cada vez mais distante ou a
ganhar um cunho puramente retórico – é uma retórica que o Estado se serve para persistir no seu percurso de
institucionalização, mas que tem cada vez menos influência nos cidadãos – os cidadãos estão cada vez mais
divorciados dessa responsabilidade por solidariedade e reagem em termos negativos às manifestações em que
essa responsabilidade por solidariedade impõem diretamente sacrifícios:

% Daqui resulta que a própria realidade social se torna opaca à compreensão do próprio
objetivo da responsabilidade por solidariedade. Talvez seja um pouco exagerado, mas não
deixa de ser verdadeiro relativamente a uma tendência que se manifesta no nosso tempo e
que cresceu fortemente nas últimas décadas do séc. XX com efeitos diversos – de facto, ela
foi acompanha também de experiências políticas em que o regresso a esse individualismo e
a um certo liberalismo se tornou evidente, como por exemplo, o Tatchenarismo em
Inglaterra ou o Reggaenismo nos EUA, que tiveram uma forte repercussão no modo de
entender a relação entre a sociedade e o Estado.

A questão pode ser ainda mais complexa: se, por um lado, temos esse individualismo egoísta do sujeito que quer
satisfazer as suas necessidades, no seu sentido mais assumidamente pragmático e que está ligado aos diversos
fenómenos do consumismo e de criação inclusivamente de necessidades artificiais do próprio sistema económico
e ligado também a uma distinção de degraus de necessidades que são graus de necessidades que variam muito
significamente de ordem social para ordem social, mesmo no interior dessa ordem social; mas também porque na
segunda metade do séc. XX, por razões que também podem ser compreendidas do ponto de vista político e
económico, houve uma acentuação da importância do grupo (pode ser paradoxal por se acentuar o
individualismo e a componente de grupo), sendo que esta acentua-se, mas um grupo que resiste à identidade
social na sua totalidade, ou seja, um grupo que se afirma, sobretudo a um nível de afinidades de ordem
profissional, cultural e de ordem religiosa e que se fecha à compreensão daquilo a que se pretendia ou dizia o bem
comum, visto que se fecha nos seus interesses específicos de grupo (de interesses, de profissão, de partido, etc).
Na verdade, isto significa que se introduz aqui um vetor que é intermédio, uma vez que a pertinência ao grupo
passa a ser também uma marca de identidade – aquele sujeito indivíduo egoísta também é um sujeito inserido
num grupo ou em vários grupos, mas esses grupos tendem a divergir no entendimento que têm da ordem de
preferências de necessidades que devem ser satisfeitas. Deste modo, pode-se dizer que esses grupos manifestam
relativamente à possibilidade de falar no interesse comum, uma tendência desagregadora – não há um interesse
comum, mas um interesse dos grupos – este responsabilizante interesse comum é lido de forma diferente pelos
diferentes grupos – há uma manutenção da referência do interesse comum, mas uma manutenção que nos traz
compreensões distintas e inconciliáveis do que é esse interesse comum. O que, de certa forma, parecia confirmar
uma previsão/prenúncio de Proudhon no séc. XIX, quando dizia que todo o interesse do grupos em termos de
associação, é como que a manifestação de uma coligação contra o interesse comum, visto que o grupo vai passar a
ter uma leitura desse interesse comum que é inevitavelmente a sua e que vai entrar em conflito com a do outro
grupo.
Em suma, são fenómenos complexos que nos permitem realmente perceber porque é que se diz que este homo
socialis tal como foi introduzido pelo Estado Providência a partir dos anos 40 acabou por ter como um dos seus
efeitos um efeito não pretendido, um efeito de fragmentarização da identidade social – tanto fragmentarização dos
fenómenos individualista, tanto deste fenómenos de divisão de grupos.

Nesse sentido, levou a que essa sociedade como um todo aparecesse desintegrada, o que é paradoxal, uma vez que
a sociedade que se queria organizar para prosseguir fins, essa unidade perde-se e está ameaçada.

Realmente de facto, começam a surgir tentativas que são reedições da visão liberal (ainda que num outro
contexto), que assentam na convocação das exigências da liberdade e da autodeterminação em confronto com a
exigência da igualdade, chamando atenção para as tensões que existem entre liberdade e igualdade, insistindo que
à liberdades básicas que podem ser postas em causa se se tiver uma pretensão totalizante de igualitarismo.
Realmente, esta emergência acrescida à dificuldade sob o ponto de vista político-social de preservar essa
coerência vai ter efeitos relevantes.

Portanto, temos aqui uma conjugação de um plano que se poderá dizer ideológico, sendo que alguns vão ao ponto
de dizer que é a quebra da ideologia e a quebra da utopia do Estado Social que não a conseguiu preservar porque,
no fundo, isto conduz a uma recondução deste homo socialis a uma posição de sujeito reivindicante – um sujeito
que compreenderá cada vez menos responsabilidades e que passa, nesse sentido, a levar a sério os seus direitos
como se esses direitos fossem posições de interesses (com uma espécie de colonização do sistema económico) ou
posições de reivindicação política, perdendo-se a identidade jurídica desses direitos – se acentuarmos a
identidade jurídica destes direitos, nós vemos esses direitos sempre como coroados no dever e responsabilidades,
mas se os pensarmos num contexto em que o filtro é, por um lado, o sistema económico e, pelo outro lado, o
político, nós tendemos a reduzir esses direitos por afirmações de posições de interesses na primeira
referência ao sistema económico e pelas posições reivindicativas que dizem respeito ao sistema político.
Isto é um efeito perverso não pretendido pela institucionalização do Estado Social, mas que pode efetivamente ser
comprometedor da sua identidade e da sua continuidade.

Neste plano dos direitos, generalizam-se os diagnósticos porque houve uma intermutação excessiva do sistema
jurídico, político ou económico – houve, por um lado uma economicização da politica, mas a política também
interfere excessivamente no plano do direito – isso significa que o direito estava no projeto iluminista a um certo
mundo da vida que seria autónomo do sistema político e económico, passa agora a ser fortemente colonizada por
esses. O tratamento dos direitos, nomeadamente dos direitos sociais/posições de interesse como posições de
reivindicação, seria uma manifestação clara desta colonização – o caminho que estava a ser desenvolvido era
perigoso para a própria compreensão autónoma do direito e, mais do isso, para a possibilidade de na realidade
social, preservar algum equilíbrio entre mundo da vida e sistema político e económico.

Admitamos que este diagnóstico tenha algum sentido, ainda que é um diagnóstico que acentua alguns sinais
(inquietantes) que se começaram a manifestar nas sociedades europeias e norte-americanas a partir das últimas
décadas do séc. XX, sendo que persistiram e, alguns deles foram mesmo agravados pela crise aberta pela Lehman
brothers. Deste modo, se se levar a sério estes sinais como sinais de crise da própria neomaterialização que está
ligada ao Estado Social e que levou à proliferação das leis como programas de fins, poder-se-ia perguntar como
reagir perante estes sinais?

# É difícil fazer um esquema dado que ainda estamos a viver esta circunstância, sendo que temos
claramente presente, também no nosso contexto, que a experiência da sociedade organizada em Estado
que vivemos, mesmo na ordem jurídica portuguesa, é claramente marcada por este ciclo de
neomaterialização. Nós temos uma forte consagração em termos prescritivos na CRP de direitos
económicos sociais e culturais, uma compreensão orgânica da relação entre os poderes públicos que
aponta exatamente para o modelo do Estado Social – são muitas manifestações de referência a esse
Estado Social tanto na CRP como nas leis – e evidentemente o que tem acontecido como resultado da
própria falência financeira, é mais uma atenuação/recuo/diminuição de modelo do que propriamente a
substituição desse modelo por outro. Inclusivamente mesmo nos Estados ou se assistia a um maior recuo
as leis não deixam de ser finais e o entendimento da separação de poderes continuou a ser aquele que o
Estado Social consagrou, não se alterando.
Relativamente ao diagnóstico, pode-se dizer em 1º lugar dizer que se manifestam no nosso tempo movimentos
que são movimentos contrários – pode-se dizer que há uma série de sinais inquietantes, que, contudo, não nos
levam a ter que substituir o quadro político-institucional do Estado Social, levando-nos a reconhecer que o modo
como esse Estado Social foi reconstruído foi ineficaz.

1. Aquilo que este primeiro movimento defende é o seguinte: continua-se a apostar no Estado Social, mas
pensemo-lo noutros termos potenciando a sua eficiência.

o Há quem diga que tal é uma autêntica “fuga para a frente”, uma vez que os diagnósticos mostram
sinais inquietantes relativos à institucionalização doestado Social e, este movimento persiste de
uma forma muito intensa na afirmação de que o nosso destino está no Estado Social, não
existindo alternativa. Não havendo alternativa, aquilo que temos que fazer é potenciar a sua
eficiência.

o Ao nível do senso comum e mesmo no plano ideológico-político encontramos muitas vezes
defendida esta posição, mas, sob o ponto de vista da teoria do direito ou da filosofia política, isto
pode levar-nos mais longe, visto que se pode dizer que há uma insistência no Estado Social, mas
um Estado Social que se nos aparece privado das suas cores ideológicas – no fundo, da matriz
ideológica que o constitui. Desta forma, aquilo que vamos encontrar no limite desta “fuga para a
frente”, é uma verdadeira e plena funcionalização pragmática do direito levada às últimas
consequências, pelo que é como se se dissesse que o Estado Social permitiu isso ao consagrar
estes programas de fins e ao exigir que o julgador seja um maximizador destas estratégias destes
programas de fins, mas agora trata-se de dizer que o direito deve ser mesmo instrumentalizado,
não existindo lugar para a autonomia do direito – o direito deve ser um instrumento pragmático
da institucionalização social e, portanto, devemos deixar o discurso da autonomia do direito,
sendo que este deve ser função exclusiva desta institucionalização social. Assim, a tendência
levada ao extremo diz-nos que o direito se converte numa engenharia social sem valores
específicos, sem finalidades próprias, apenas como um instrumento ao serviço da realização de
um certo modelo neomaterial de Estado, que assenta precisamente na eficiência – numa
produção de feitos que seja maximizadora.

o Isto traduz-se numa fuga para a frente, visto que se trata do Estado Social, mas perde-se muito,
tendo em conta que se perde alguns dos aspetos mais luminosos e positivos do Estado Social,
nomeadamente a ideologia da correção das injustiças ou da solidariedade. Tudo isto é, de facto,
subalternizado em nome da eficiência. Com isso, dá-se o passo verdadeiramente para converter o
direito no Estado Providência numa verdadeira engenharia social, que alguns diriam que é uma
evolução indispensável que deverá sacrificar diversos aspetos tradicionais da compreensão do
direito, mas uma transformação indispensável que as sociedades da informação, da comunicação,
da cibernética do nosso tempo exigem. De certo modo, poder-se-ia dizer que há aqui uma
preservação da tal neomaterialização ao nível dos interesses e dos fins (o direito ao serviço dos
interesses e fins sociais), privando-nos essa evolução da componente que seria realmente a
componente mais positiva do Estado Social.

o Claro que a única questão que havia a considerar seria a questão da eficiência, visto que aquilo
que era indispensável era mobilizar o melhor possível os recursos que assim existem e fornecem
– se mobilizarmos esses recursos e, nomeadamente, a previsão que as ciências sociais podem
fazer dos efeitos que os instrumentos políticos e legislativos introduzem, se tudo isto for tratado
de outra forma pelo discurso científico, inevitavelmente a produção de efeitos torna-se mais
racional, pelo que isso leva efetivamente a uma melhor previsão e utilização dos recursos que
temo à nossa disposição.

o Importa ainda referir que, se levarmos até ao extremo esta ideia já não estaremos perante uma
ordem de Direito, uma vez que perderemos muita coisa à custa da eficiência ganha e, por isso,
vamos estudar, mais à frente, um modelo proposto por uma certa visão tecnológica e por um
certo teologismo tecnológico de um autor alemão que é o Hans Albert (ainda vivo) – estudaremos
isto na última etapa do curso. Verdadeiramente o que nós temos neste modelo de engenharia
social não está aí o modelo pensado, só existindo sinais dele, mas é um modelo em que diversas
exigências que costumamos associar ao direito, como a própria compreensão da pessoalidade,
alguns princípios jurídicos como o caso julgado, são relatividades em nome de uma construção
dominada pela ciência.

No fundo, tínhamos um movimento que nos diria para persistir neste aparelho tornando-o mais eficiente,
prescindindo da ideologia, para que a produção dos efeitos seja o mais racional possível e o mais objetiva possível.
Contudo, há um movimento contrário, sendo que, num plano microscópico, existem mais alternativas a ter em
conta, sobretudo em relação ao problema da realização em concreto do direito e da resposta que se deve dar ás
controvérsias e do papel em que aí poderá ter o direito autónomo.
2. Movimento contrário:
o Estamos a pensar apenas ao nível das saídas macroscópicas, sendo que uma delas é a de dizer
que estes sinais de desajustamento ou de excesso de regulação provocados pelo Estado
Providência devem-nos obrigar a recuar, o que significa renunciar à neomaterialização,
pondo em causa o modelo que esse Estado Social introduziu. Ainda que por vezes isto não se
diga assim claramente, a intenção é esta – trata-se de dizer que, pelo menos, há uma ideia de
retração forte dos objetivos político-sociais – não se trata de voltar ao Estado do séc. XIX porque
tal não seria possível, tendo em conta que atualmente os problemas são outros, mas esse Estado
deverá tendencialmente esquecer muitas das suas formas de intervenção – poderá continuar a
ser um Estado Intervencionista, mas um Estado muito mais magro do que foi o Estado Social.

o Como é que isto é possível? Praticamente, desde o início da implantação na Europa do Estado
Social a partir dos anos 50 do séc. XX, tinham-se manifestado várias vozes críticas da planificação
estratégica do Estado Social em si, algumas com grande peso por autores como F. A. Hayek, R.
Nozick e Buchanan – são autores que construíram a sua teoria do direito e a sua filosofia política
muito a partir de uma formação económica e que insistem, claramente, na falência deste modelo
e na falência da programação estratégica, por ser uma programação que acaba por violentar
algumas manifestações de ordem que são espontâneas, a começar pela ordem do mercado –
entender que a ordem do direito tem caraterísticas espontâneas que não podem ser
funcionalizadas pragmaticamente a uma programação estratégica.

o Assim, neste movimento de reação ao Estado Social (reação negativa de retração), aqui dir-se-ia que há
várias possibilidades, sendo que uma delas é precisamente a do neoliberalismo – vai-se libertar a
sociedade civil que foi esmagada pelo Estado Social que nos converteu a todos em sujeitos reivindicantes
e também libertar o mercado, tendo em conta que esta ordem do mercado, recuperando vários
argumentos que vêm do liberalismo do séc. XIX e da sua assimilação dos discursos do séc. XVIII, vamos,
no fundo, permitir que a mão invisível do mercado atue e que essa ordem espontânea do mercado se
realize, visto que é a única que garantirá um bom funcionamento da ordem social – estes autores
neoliberais não deixam de querer defender uma certa conceção de justiça que passaria por essa ordem do
mercado.

o Realmente, este neoliberalismo quando se projeta no direito, se se quiser simplificar projeta-se:

& Por um lado, na ideia de que tem que existir um regresso áquilo que se perdeu, falando-se de uma
reformalização do direito – se o ciclo do Estado Social nos permitiu falar na neomaterialização
e se o ciclo anterior é um ciclo formalista típico do Estado do séc. XIX (o tal ciclo que existia em
que o direito é a tal ordem de liberdade externa, não devendo interferir nos nossos arbítrios
individuais, devendo apenas compossibilitá-los uns com os outros – ideia do direito forma que se
relaciona com os cidadãos garantindo as condições da liberdade externa), essa é uma das vias.
Claro que nem Nozick nem Hayek defendiam exatamente isto, mas, de certa forma, abrem o
caminho para isso, existindo uma ideia de regresso ao passado – é um regresso sempre muito
condicionado tendo em conta que os nosso problemas são outros e os instrumento das atuação
da nossa sociedade são outros, mas, de qualquer modo, voltar a essa ideia de forma de que,
quando estamos a falar de direito, devemos preservar a autonomia desse direito relativamente
aos sistemas políticos e económicos e preservar esta autonomia é preservar uma ideia de direito
formal – uma ideia de direito que se isola das próprias condições da realidade social para se
efetivamente oferecer como uma grande forma de compossibilidade entre os arbítrios – o direito
a não interferir e a não transformar, simplesmente assegurando que as nossas autonomias
individuais são compossíveis umas com as outras, só intervindo quando se põem a autonomia e a
liberdade do outro em causa.

& É, assim, uma ideia de reformalização, o que significa insistir na necessidade de evitar que o
direito se exprime através de programas finais, voltando-se aos programas condicionais, sendo
que o direito deve ser uma ordem de normas gerias e abstratas formais com programas
hipotético-condicionais – senão se podem evitar os programas finais, pelo menos, a interpretação
que se espera dos juristas quando estão a considerar esses programas finais é uma interpretação
que os converta em programas condicionais, ou seja, o juiz não deve ser um agente das
estratégias sociais que vêm do sistema político-económico, devendo ser um garante da
autonomia do direito, sendo que essa é em grande parte a autonomia de um isolamento
formalista, ou seja, de um certo regresso ao universos do séc. XIX (estamos a pensar em termos
jurídicos, o que significa que não estamos a dar atenção aos efeitos sociais) – uma acentuação na
autonomia do direito, que é uma falsa autonomia, tendo em conta que é uma “autonomia porém”,
não tendo nada a ver com conteúdos, tendo a ver exclusivamente com a preservação com as
formas interrelacionais do direito, sendo por isso mesmo que se fala numa reformalização do
direito.

& “De novo, pois, o “direito formal” ou o direito só como forma de ação social, de que fosse assim alheia a
teleologia de um material compromisso social” - o direito não deve ter esse compromisso, sendo que isso
significa evidentemente um sacrifício das intenções da justiça distributiva, voltando-se a um direito de
forma – a intenção é recuperar a autonomia do direito, mas a autonomia de um direito marcado por um
novo individualismo que seja separado desse compromisso da transformação social – é como se
pudéssemos dizer: se houver transformação social, ela cabe ao sistema político, mas não ao direito – claro
que, estas vozes neoliberais tenderão a dizer que a intervenção do sistema político deve se ruma
intervenção mínima, mas, de qualquer modo, mesmo que não o diga impede o direito de participar nisso,
sendo que este deve assegurar as condições da liberdade externa através das normas gerias e abstratas
que possamos determinar na sua universalidade racional antes da ação.

Realmente isto é uma manifestação hoje evidente nalguns setores do sistema jurídico.
Contudo, há outras saídas, nomeadamente, uma que ajuda completar o quadro de Teubner, tendo em conta que
nesse quadro tinha-se 3 racionalidades (racionalidade interna, normativa e sistémica), uma racionalidade formal,
depois um material e, as seguir, se fôssemos por esta via neoliberal, iríamos ter de novo uma racionalidade formal.
Claro que isto é a introdução de uma dinâmica de projeção daquilo que ainda não está verdadeiramente projetado,
uma vez que, no fundo, é uma tentativa de construir uma saída para o diagnóstico do presente, que poderá ser um
diagnóstico de crise da tal neomaterialização. Contudo, é possível vermos aqui uma alternativa que não vai ser
cultivada por uma visão neoliberal, mas por uma que leva a alguns resultados paralelos (porque são resultados
também críticos da lógica do Estado Social), mas que, de facto, têm uma outra índole, visto que tem a sua origem
numa teoria científica ligada à sociologia/teoria dos sistemas sociais. No fundo, trata-se de defender que o Estado
Social falhou roque levou a sua regulação tão longe que não foi capaz de assegurar a autodiferenciação que tem de
existir entre os sistemas sociais, ou seja, provocou uma série de efeitos perversos não saudáveis porque, de facto,
foi incapaz de assegurar a autonomia ou autodiferenciação do sistema político, jurídico e económico – essa
incapacidade traduziu-se numa série de efeitos perversos e, portanto, aquilo que temos que recuperar, não em
nome de uma ideologia liberal, mas em nome deste diagnóstico científico que a teoria dos sistemas nos permite (é
uma teoria muito particular que acentua o caráter autorreferencial ou autopoiético).
No fundo, esta proposta vem-nos dizer que há aqui um caminho possível (sobretudo aquele que é acentuado por
Teubner) que nos leva já não a regressar a avançar para um direito formal, mas a avançar para um direito
diferente que seria um direito reflexivo.
Antes de começarmos a falar nesta visão ligada à teoria dos sistemas autopoiéticos, é importante acentuarmos um
ponto presente nos nossos textos que tem exatamente a ver com um certo paralelo entre esta neoformalização
que é defendida sob o ponto de vista teórico e alguns fenómenos que assistimos da prática, que não têm que ter
uma inspiração direta nesses contextos teóricos, mas que, de facto, são fenómenos que marcaram o nosso tempo,
marcando a passagem do séc. XX para o séc. XXI e em que, de certo modo, se assistiu a uma menor intervenção do
direito nalguns campos. São fenómenos que podemos realmente dizer que são fenómenos de “deslegalização” - a
projetar-se também na descriminalização, nomeadamente, de determinadas condutas que eram tipificadas como
crimes que deixam de o ser (deixam de ser pressupostos de incriminação, embora possam ter outras
consequências jurídicas). Esta descriminalização pode levar a um fenómeno mais significativo que é o fenómeno
da deslegalização, ou seja, de facto, há esferas da nossa prática que têm sido, de alguma forma, libertadas da
interferência das prescrições legislativas, o que não quer dizer que passem a ser juridicamente irrelevantes, mas,
pelo menos, deixam de estar sustentadas numa referência direta à lei. ****tem outros fatores, mas não é preciso
estudar****
Um outro fenómeno também do nosso tempo, tendo significado também muito grande, é o fenómeno da chamada
“dejurisdicionalização” (sim, é assim, não interessa o que o livro diz, o prof disse assim), que significa sobretudo,
uma expansão dos modos alternativos de resolução dos conflitos – o crescimento do recurso, a formas de
mediação, de arbitragem, etc. – por um lado, ter-se-ia na sua projeção na realidade social um recuo da própria
prescrição legislativa, que deixa de abranger alguns fenómenos, e, por outro lado, ter-se-ia estes fenómenos de
pensar que tem que haver alguma alternativa há resolução jurisdicional dos conflitos que tem levado, por várias
razões, ainda que também com mais eficácia nalguns domínios do direito que outros, a este recurso a formas
alternativas de resolução de conflitos.
Evidentemente que estas formas alternativas, ao assentarem no modelo que é, sobretudo, da mediação, em que
temos um mediador entre partes que vão construir consensos, havendo uma ideia de negociação que não está
presente no universo da decisão jurisdicional, tem levado a alguns autores a dizer que é, na verdade, uma forma
de resolução de conflitos que já não é especificamente jurídica, sendo uma forma que, ela própria, introduz uma
certa alternativa no modo de entender o direito.
Relativamente ao crescimento, nalgumas áreas muitos expressivas como o Direito Comercial, que é muito
expressivo de um direito que não tem matriz estadual ou legislativa – é assente em práticas que têm a ver com o
próprio comércio jurídico, existindo uma certa resistência a determiná-las de outra forma.
Isto seriam tendências do nosso tempo que não têm de ser lidas que a tendência neoliberal, dado que essa é uma
leitura ideológica ou no campo da filosofia social, dirigida aos eventuais fracassos do Estado Providência. O que
aqui encontramos são tendências que resultam de fatores muito mais complexos, não existindo aqui uma direta
interferência ideológica.
Obviamente que estas tendências, por vezes, são compensadas por outras – se nós assistimos a uma
deslegalização ou a uma descriminalização ou a uma dejurisdicionalização também vamos assistindo, por outro
lado, todos os dias, a um excesso de regulação legislativa, o que significa que se mantém, ainda que renunciando
ao modelo, essa herança, que foi uma herança das mudanças introduzidas pela neomaterialização.

Condição Social
O Direito, pensado como inserido na realidade social e já não formalmente autonomizado nos termos que o
neoliberalismo poderá exigir, não sendo uma mera reformalização, uma vez de que não se trata de pensar o
cosmos do direito numa visão puramente normativista (visão do séc. XIX), mas trata-se, no fundo, de dizer que o
direito está inserido na realidade social e tem que ser estudado nessa inserção. Tal poderá representar nós
adotarmos um certo modelo ou uma certa perspetiva que será a tal teoria dos sistemas que se quer
autorreferencial e autopoiética - se o direito for abordado nesta perspetiva da teoria dos sistemas nós vamos ter
um diagnóstico que mostra também a crise do Estado Social, mas mostra de uma maneira diversa, tendo em conta
que, de acordo com esta visão o Estado Social não terá sido capaz de garantir a autodiferenciação do sistema
jurídico, político e económico (é umas das marcas de água desta teoria dos sistemas). Essa teoria dos sistemas vai
permitir, pelo menos, através da leitura de Teubner, constituir um novo modelo para o direito no plano
macroscópico, que já não seria direito formal como do séc. XIX, nem o direito material do Estado Social, mas um
direito reflexivo e puramente procedimental.
Assim, importa referir em que consiste esta teoria dos sistemas de modelo autorreferencial ou autopoiético. A
ideia base é uma ideia muito simples:
# Quando falamos da sociedade e das relações sociais, estas relações relevam como comunicações que
estabelecemos uns com os outros ou que eventuais grupos sociais estabelecem com outros grupos sociais
e quando se está a falar de comunicação, está-se a falar de um certo conteúdo informativo que é emitido e
que depois vai ser difundido e depois recebido ou aceite por um destinatário. A ideia de que se transmite
alguma coisa e que essa tenha um certo processo de mediação ou difusão e que depois há um momento de
compreensão e aceitação.
Tudo isto é simples, visto que, no fundo, resulta a ideia de que estas comunicações que nós fazemos
(comunicações através de texto ou gestos/atitudes/reações), transmitem alguma coisa a outro que compreende,
sendo que que se pensarmos dessa forma a realidade social, podemos perceber que uma comunicação que
fazemos, como por exemplo, quando declaro que quero comprar um determinado bem imóvel, esta é uma
declaração de vontade que pode ser lida de maneiras diferentes se a perspetiva de que eu também partir for
diferente, por exemplo: se a perspetiva que eu também parti for a perspetiva do sistema económico, a leitura será
uma, se for a partir do sistema jurídico a leitura será outra, etc. – por exemplo, uma sentença judicial que declara
procedente uma determinada ação de falência de uma sociedade de uma empresa – esta comunicação será lida
com relevâncias e significados diferentes, se o meu ponto de vista for um ponto de vista estritamente jurídico ou
se a minha leitura for feita num plano do sistema económico ou num plano político.
A realidade social é constituída por sistemas e esses sistemas caraterizam-se por serem sistemas
autorreferenciais e autopoiéticos. Esta inspiração é muito estranha, visto que a origem vem curiosamente da
biologia ou também de certas projeções da biologia no campo da biologia (autores da teoria dos sistemas –
professores Maturana e Varela), sendo que encontra-se organizações que são efetivamente sistemas e que são
sistemas autorreferenciais e autopoiéticos porque não comunicam com o exterior, encontrando a sua unidade em
si mesmo e vão-se reproduzindo a partir de si próprios (vão-se reproduzindo por elementos interiores), tendo
uma lógica de autorreprodução. O que acontece é que isso fará sentido nesses organismos vivos porque haverá
uma necessidade, tornando-se muito difícil transpor um modelo que foi corroborado por organismos vivos para
as organizações sociais, onde muito daquilo que se produz não tem nada de vinculante, sendo perfeitamente
contingente, notável e produto de interações humanas, faltando-lhe a tal vinculação topológica que carateriza os
organismos vivos e converte esta autorreferência numa necessidade – não deixa de ser uma tentativa difícil
transpor os modelos que foram pensados para os organismos vivos para as instituições humanas
Temos um principal responsável por esta transposição que é um dos maiores sociólogos do séc. XX cujo é Nicholas
Luhman – este, tendo uma grande influência nalgumas das construções dogmáticas do direito penal, partiu deste
pressuposto, sendo que os sistemas sociais são sistemas de comunicações e são marcados pela tal autopoiésis e
autorreferência.
Porque é nós dizemos que o sistema político, económico, da educação, jurídico, etc., são sistemas
autorreferenciais? Isto é defendido num plano de conhecimento, dado que não se trata de dizer que eles devem
ser autorreferenciais, mas sim num âmbito de conhecimento científico.
# Ser autorreferencial significa que o sistema é capaz de produzir a sua própria unidade – essa unidade é
produzida por ele próprio, não sendo produzida a partir de uma ideia ou de uma referência exterior ou
mesmo de uma referência totalizante – no que diz respeito ao direito, significa para Luhmann que nós
devemos rejeitar em particular a ideia de que a unidade do direito esteja assente numa ideia ou num
princípio, mesmo que esse tenha um sentido filosoficamente muito positivo – Luhmann recusará que a
unidade de direito esteja assente num direito ou princípio de direito, seja o princípio da dignidade da
pessoa humana ou outro. A unidade do direito está numa espécie de circularidade que existe entre os
elementos que compõem o sistema jurídico, ou seja, estes são muitos e variados, podendo ir das decisões
judicias, às decisões legislativas, aos nossos comportamentos enquanto sujeitos privados, etc – toda esta
complexidade de elementos que compõem o sistema jurídico, ao interrelacionarem-se entre si constituem
essa unidade, pelo que esta não é dada por uma ideia ou princípio, mas sim pela própria circularidade que
é emanante aos próprios elementos que compõem o sistema jurídico -os próprios elementos teriam uma
autorganização constituindo assim a unidade, visto que associado aos elementos estaria uma certa nota
de invariância, ou seja, o modo como eles se relacionam uns com os outros há certas conexões que
persistem. Isto é rejeição de todo e qualquer tentativa de ver o direito à luz de uma ideia ou de um
princípio.

# Mais importante do que isso, é a ideia da autopoiésis, que significa criação. Assim, este sistema não é só
referencial por criar a unidade como circularidade dos seus próprios elementos, mas é também
autopoiético, visto que ele é capaz de produzir e constituir todos os elementos que precisa, a partir dos
elementos que já dispõem – significa que há uma autocriação. Daí que se diga que o sistema jurídico é um
sistema que, no plano cognitivo, será aberto (evidentemente que o direito responde a problemas sociais),
mas no plano normativo, ele é fechado, visto que as funções que vai construindo para estes problemas são
as suas, não devendo ser as soluções da economia ou da política – são as suas e são aqueles que ele gera
no plano estritamente normativo do dever-ser que é o seu.

Isto pode parecer um pouco isotérico, não acrescentando nada ao nível da compreensão do direito (sendo isso que
Luhmann pretende) – há aqui uma lógica interna de autopoiésis que permite ao direito preservar a sua
autodiferenciação relativamente ao sistema político e económico.
Luhmann quando apareceu nos anos 70 ou 80 a defender que os sistemas sociais são todos autopoiéticos e
autorreferenciais, havia, no fundo, uma reação ao entendimento dos sistemas sociais que era o entendimento
cibernético dos sistemas sociais. Uma ideia que temos muito comum, mas que foi sobretudo popularizada pelas
visões epistemológicas da cibernética, consiste no facto de dizer que um sistema social é uma organização que
recebe inputs do meio ambiente – há a ideia de que o sistema está a dialogar com o meio que está em si – se nós
temos um sistema jurídico, esse está inserido num certo meio (que é a própria prática social) e esse sistema está
permanentemente a receber inputs (questões que se suscitam, problemas que exigem resposta, etc).
Se tivermos um entendimento cibernético do sistema jurídico, nós dizemos que o que o sistema jurídico vai fazer é
responder aos inputs numa intenção que é uma intenção de adaptação covariante ao meio (o sistema deve fazer
um esforço para corresponder a toadas as dimensões da alteração) – o sistema vai procurar converter todos os
inputs que lhe são fornecidos em outputs. No meio ambiente convergem todas as outra perspetivas,
nomeadamente, políticas, económicas, culturais, etc. O direito vai reagir convertendo todos esses inputs em
outputs, mas, ao fazê-lo procura adaptar-se ao meio e ser uma resposta tão fiel quanto possível a todas as
exigências do meio – por sua vez, esses outputs que poderão ser decisões judiciais, novas leis, alteração ao nível da
doutrina de uma corrente dominante para responder aos problemas; a verdade, é que esses outputs vão voltar ao
ambiente – a ideia da cibernética é esta de circulação permanente – quando voltam ao meio ambiente, vão, de
facto, provocar reações nesse meio – se há um problema que se coloca e o direito entende dever tipificar esse
problema em termos legislativos e propor uma resposta, obviamente que essa resposta vai produzir efeitos e,
esses efeitos vão-se repercutir no ambiente social. Então, pode-se dizer que pode haver depois, por parte das
próprias forças sociais e dos seus modos de manifestação, uma reação ao output do direito.

Ora, esta reação, em termos cibernéticos, emprega uma designação que hoje vemos completamente banalizada, ou
seja, uma alimentação que o meio ambiente vai desenvolver sob a forma de novos inputs que são, por sua vez,
reação aos outputs do sistema jurídico. Portanto, a visão cibernética aposta nesta circularidade, visto que o
feedback se vai converter em novos outputs e esses vão gerar um novo feedback, o que é uma circulação infinita.
Sendo uma circulação infinita e se se disser que o que o direito deve fazer é adaptar-se ao meio ambiente, de
acordo com a visão de Luhmann isto pode levar a uma situação perigosa tanto para o direito como para os outros
sistemas, que é uma perda de identidade, de diferenças e de autodiferenciação, visto que se todos os sistemas se
adaptam integralmente ao meio ambiente, eles vão-se tornando cada vez mais indiferenciados, havendo cada vez
menos possibilidades de distinguir aquele meio ambiente – como este é constituído pelas comunicações de todos
os outros sistemas, o direito tende, neste sentido, a perder a sua identidade. Assim, Luhmann vem dizer que os
sistemas sociais não se manifestam nem comunicam assim – para que o tecido social seja um tecido saudável, é
preciso que cada sistema social seja autodiferenciado – tenha o seu código, os seus programas e mantenha a sua
força distintiva – só assim é que teremos uma sociedade saudável.
Em relação às questões da neomaterialização, o que nos interessa vem pela via de Luhmann, mas tem mais a ver
com Teubner, uma vez que Luhmann, ao defender que os sistemas são autodiferenciados, ele procura mostrar que
cada sistema social se dirige às comunicações a partir da perspetiva de um código que é diferente, que têm em
comum serem códigos baseados num certo binómio (códigos binominais) que criam alguns paradoxos.
Assim, Luhmann associa o direito ao código que é constituído por duas valências – valência positiva e valência
negativa-, sendo um Código sobretudo pensado através de rest e unrest – a tradução exata é valorado
positivamente pelo direito e valorado negativamente pelo direito – será que não quer dizer apenas lícito ou ilícito?
Pode ser, mas licitude ou a ilicitude é apenas uma das manifestações desta valência positiva ou negativa, sendo
que nós sabemos que o modo do direito se dirigir a um comportamento ou uma ação valorando-a positivamente
não se esgota na ilicitude, podendo cingir-se a esses comportamentos num sentido mais específico, dizendo que
esses comportamentos são ilegais ou não ilegais; ou pode dirigir-se a estes num sentido mais ambicioso dizendo
que esses comportamento são comportamentos de acordo com um certo modelo de justiça, sendo justos ou
injusto – tudo isto faz sentido nas valorações positivas e negativas do direito.
No fundo, o que Luhmann nos diz é que o sistema jurídico quando se dirige às comunicações sociais fá-lo sempre
através deste código -se esses comportamentos são relevantes do ponto de vista jurídico, então ou são valorados
positivamente ou negativamente. Claro que existem aqui alguns paradoxos como a possibilidade de se falar numa
terceira valência que seria a indeterminação (o que não interessa vermos).
Dir-se-ia que isto é completamente redundante, não acrescentando nada que tenha consequências – o direito
quando se dirige à realidade social, valorando positiva ou negativamente, tal não acrescenta nada de significativo.
Contudo, Luhmann extrai uma consequência que nos interessa, sendo que ele ao dizer que: o Código do direito é
este e o direito é um sistema auto poético, está a dizer que esse sistema deve ser pensado através de uma ideia de
fechamento, mas essa clausura do sistema, não é um caráter de isolamento, mas é uma clausura que se especifica
em certos desafios e que atua na realidade social ! clausura operativa.
Deste modo, esta baseia-se numa distinção entre expetativas cognitivas e expetativas normativas. Assim, quanto
tenho um enunciado e digo: este enunciado é um enunciado através do qual eu estou a dirigir uma expetativa
cognitiva -, pelo que bastará comprovar que há algum elemento que, na realidade, falhe, para aquele ser ferido na
sua validade – há uma expetativa de verdade, de conhecimento verdadeiro – aquele enunciado é falso. Um
enunciado construído de acordo com as exigências ou expetativas cognitivas, sendo que, no fundo, estou a
descrever/explicar uma determinada realidade – se disser que a porta está aberta, é um enunciado no qual eu
ponho expetativas cognitivas, bastando comprovar que a porta está fechada (em termos empíricos para se dizer
que esse enunciado é um enunciados falso, visto que quando o enunciado é baseado em expetativas cognitivas,
que exprimem uma certa qualidade relacionada com esse saber, em termos de explicação ou descrição, basta, na
verdade, que haja um qualquer elemento do fenómeno que apareça como negativo relativamente ao enunciado,
para se poder dizer que esse enunciado está ferido na sua validade.
Luhmann diz que, de facto, se se tiver uma perspetiva cognitiva, basta que ela seja desmentida pela realidade para
essa expetativa cair completamente.
Desta forma, se se construir um novo enunciado ao lado do primeiro: a porta deve estar fechada (sendo que a
porta está aberta) – este enunciado não é baseado numa expetativa cognitiva (visto que não se está a dizer que a
porta está fechada, mas que “deve”) – a este enunciado está associado uma perspetiva normativa de dever-ser – se
se disser que a porta deve estar fechada, mesmo que esteja aberta, tal facto não põe em causa a validade do
enunciado. Deste modo, não se está a descrever uma realidade, mas sim a associar a determinados pressupostos
de facto ou à projeção na realidade, uma certa validade que é normativa.

Se se transpuser isto para o plano do direito, é fácil de compreender, sendo que se se tiver uma norma de direito
penal que pune o crime de homicídio, não é pelo facto de existirem diversos homicídios, que eu posso dizer que a
norma perde a sua validade – se se tivesse a pôr nessa norma uma expetativa cognitiva, o argumento de pura
ineficácia poderia afetar a validade da norma. Contudo, se se está a viver numa realidade social em que há muitos
homicídios, a norma ainda se vê reforçada nas suas exigências – o direito ajuda a perceber, tendo em conta que é
um direito de última rácio e porque se tratam de expetativas contra-factuais no sentido de dizer que são
expetativas que se assumem normativamente, num plano de dever-ser – por exemplo, o valor da vida não deve ser
violado – a validade desta afirmação não deve ser posta em causa por factos que põem esses valores ou bem
jurídicos em perigo, sendo que, pelo contrário, essa validade até pode ser acentuada porque a importância de
propor um enunciado desse género aumenta, tendo em conta a realidade na qual esses bens são decisivos.
Sendo assim, o que Luhmann nos diz é que uma expetativa beneficia sempre de uma qualidade normativa sempre
que ao compreendê-la, se determina que também que la não terá que ser alterada quando se experimenta a sua
violação, frustração ou a sua não realização. Desta forma, quando se diz que a porta deve estar aberta (a porta está
fechada) – o facto de a porta estar fechada não implica que eu deva alterar a minha expetativa. Ela beneficia de
uma realidade normativa, sempre que ao compreendê-la se determina também que ela não terá que ser alterada
quando se experimenta a sua frustração/violação.
Isto é importante para o direito, uma vez que, segundo Luhmann, o direito deve ser cognitivamente aberto, sendo
que se o direito está inserido numa realidade social tem que assimilar os problemas que se manifestam nessa
realidade social. Contudo, através do direito penal, só para ver as coisas, o que vai acontecer é que, na construção
da norma penal, aquele problema que se manifesta na realidade vai sofrer uma filtragem, visto que o problema, na
norma penal, não aparece como na realidade, mas sim tipificado. Há aqui uma escolha de certas caraterísticas que
identificam aquele problema.

Para além disso, vai-se dar uma resposta a esse problema. Portanto, mesmo que se admita que a hipótese é uma
transposição do problema, o que nunca é porque há uma escola que é normativa, em que o legislador vai
privilegiar certas caraterísticas que vão identificar a hipótese, não sendo uma transposição imediata dos
problemas que se manifestam na realidade-social, existindo uma construção normativa. E há sobretudo a
assunção de uma expetativa normativa, quando se estabelece a solução/resposta do direito/estatuição, pelo que
aí se está a dizer que a resposta que o direito vai dar a este problema é esta.
Assim, de acordo com a visão dos sistemas autopoiéticos, quando eu produzo enunciados que beneficiam de uma
expetativa normativa, esses enunciados são internos ao sistema jurídico, tendo uma lógica interna, sendo que não
estão efetivamente condicionados aí pelo ambiente, aparecendo como manifestações diretas da própria clausura
do sistema. Sendo assim, é neste sentido que Luhmann diz que os sistemas devem ser cognitivamente abertos e
normativamente fechados, visto que as soluções são geradas pelo próprio sistema jurídico na sua unidade e na sua
autorreferência. Porque é que o sistema é normativamente fechado? O sistema jurídico é livre de fins, sendo que o
sistema jurídico tem uma certa função de estabilização de expetativas normativas – o que o sistema jurídico faz é
estabilizar expetativas normativas ou regular o processo que, no plano temporal, material e social generalizem
estas expetativa – o plano do direito é estabilizar expetativas normativas, traduzindo-se num sistema de fontes,
modos de produção, etc – ao estabilizar as expetativas normativas, o sistema é um sistema fechado, tendo em
conta que ele abre-se apenas para identificar os problemas, sendo que depois fecha-se quando circunscreve a
importância dos problemas e quando atribui uma certa resposta a esses problemas.

Em termos de programa, vê-se imediatamente que Luhmann, quando está a dizer isto, está a dizer que a única
maneira adequada de o direito se exprimir através do seu código é através de programas condicionais. O que é
que é isto de dizer que o direito é cognitivamente aberto e normativamente fechado? Luhmann está a pensar na
relação do “se” e no “então” – quando se constrói a hipótese com certeza que nos estamos a voltar para a realidade
exterior, consoante uma lógica de condicionalidade. No fundo, ele está a admitir que o grande programa que
alimenta o direito e que o torna diferente dos outros sistemas (político e económico) onde se recorre a estratégias
e programas finais, é o programa condicional – cognitivamente aberto (“se”) e normativamente fechado (“então”)
– mesmo que a estrutura da norma não esteja presente através da lei, tendo em conta que Luhmann nesse plano,
tem uma teoria das fontes bastante ampla que envolve a dogmática e a jurisprudência, diz sempre que a estrutura
é uma estrutura condicional, indo ao ponto de referir que o juiz tem que estar no centro do sistema para estar
protegido das irritações que vêm de fora (do sistema político, económico) – tem de estar no centro do sistema e
protegido por programas condicionais. Assim, ele vai ao ponto de dizer que:

- A legislação tem que estar no centro, enquanto que a legislação está na periferia, visto que essa está em contacto
direto com o sistema político e económico. Quando isso chega ao julgador que vai responde às controvérsias, ele
só pode-lhes responder com base no programa condicional, pelo que ele já não está a considerar os
fins/estratégias que sustentam o sistema económico e o sistema político.

Evidentemente que isto é muito discutível, sendo que nos interessa menos Luhmann, uma vez que se ficássemos
por este, poder-se-ia que o paradigma moderno-iluminista começou por programas condicionais, depois o Estado
Social abriu-se aos programas finais e, agora, parece que temos de regressar aos programas condicionais para
garantir a autodiferenciação do direito. Tal não vai acontecer assim, visto que Teubner vai ver as coisas de uma
maneira relativamente diferente, embora na mesma linha de pensamento (o sistema jurídico tem que se
autodiferenciar e ser um sistema que tem a sua identidade, o seu código e os seus programas), chegando a uma
conclusão diferente em que o programa já não é um programa condicional, mas um programa relacional,
puramente procedimental, em que existe alguma regulação, mas uma regulação sempre indireta/mediata.

A atenção a essa perspetiva vai-se fazer a partir da consideração do que foi a herança do Estado Providência – ele
vai fazer um diagnóstico severo dirigido a alguns dos efeitos do Estado Providência, acentuando esta ideia de que
sempre que há um excesso de regulação no Estado Providência, nós somos reconduzidos a uma situação sem
saída. Ele vai falar aqui de um verdadeiro trilema, sendo que temos três manifestações claras dessas situações sem
saída e, portanto, será preciso pensar de maneira diferente o direito – isto envolve vários pressupostos
(perspetiva do Teubner – problema regulatória e as consequências que daqui resultam – é com base nesta
perspetiva que se chegará ao fim deste traçado da crise macroscópica).

Ainda no plano da crítica macroscópica, estávamos a considerar um último ultimo ciclo indispensável ao qual
temos que atender que é um ciclo já pós-instrumental, que vem depois do ciclo da neomaterialização e procura
reagir em termos diferentes e variáveis com várias possibilidades de resposta, procura reagir às possíveis ou
pertenças dificuldades que esse ciclo de neomaterialização gerou no que diz respeito à atuação do Estado de
Direito e à concessão da lei.

Essa denúncia da crise da neomaterialização, com a consequente denúncia também das estruturas do estado
social, levaram a um diagnóstico, mas levaram a admitir também, partindo das possibilidades abertas por esse
diagnóstico, várias alternativas. Essas alternativas poder-se-iam tratar em vários planos:
• Ou se tratava de prosseguir uma instrumentalização material plenamente assumida, seguindo o
caminho aberto pela neomaterialização e fortalecendo a sua eficiência – uma “fuga para a frente” que nos
levaria a uma engenharia social ou de funcionalização pragmática;

• Outro dos caminhos apostava num tratamento mais assumidamente ideológico, propondo-nos
um regresso (noutros termos) à formalização (aquilo que se poderia dizer uma reformalização) e essa
formulação é quase sempre sustentada numa matriz neoliberal (isso envolvia que o papel do direito
passasse de novo a ser de uma papel de enquadramento e garantia das liberdades e menos um papel
instrumental na prossecução de objetivos do Estado). Associada a esta compreensão está evidentemente
clara a noção de que o direito ao recuperar a formalidade passaria também a recuperar a sua identidade
como forma de ação social, alheia a quaisquer teleologias – é um caminho que não vamos tratar em
pormenor, visto passaria por considerar algumas conceções do direito relativamente complexas de Hayek
e Nozick. Evidentemente que esta reformalização poderia ser fortalecida por um processo de
deslegalização/desjuralização de alguns domínios aos quais a neomaterialização tinha alargado o campo
temático do direito – já não é só a questão de diz que vamos compreender o direito de forma a que
enquadre as ações, mas sim dizer que vamos retirar do território do direito algumas situações/problemas
incluídas pelo movimento da neomaterialização.

• Assim sendo, importava atender a uma terceira possibilidade/alternativa, que, no fundo, faz o
diagnóstico da neomaterialização, um diagnóstico negativo (da crise da NM) procurando mostrar que o
que aconteceu nesse ciclo, sem prejuízo das suas aquisições (algumas das quais podemos preservar
dando-lhes um sentido diferente), sendo que o que falhou nesse ciclo foi a preservação da
autodiferenciação (autonomia) dos sistema sociais. Ou seja, o modelo como o que foi ensaiado sobre a
capa do estado social, no que diz respeito às relações imediatas do jurídico com o económico, político,
social, etc., leva a um progressivo declínio da diferenciação que deveria distinguir esses planos de
intervenção - isso é avaliado negativamente, visto que, no fundo, a autodiferenciação dos sistemas sociais
é tido em conta como sinal de uma sociabilidade saudável - se se perder essa identidade diferenciadora
dos sistemas, nós estaremos a correr riscos no plano dessa sociabilidade, sendo que há que assegurar essa
autodiferenciação que seria um sinal de uma articulação saudável entre as várias dimensões da realidade
social, pelo que se não houver autodiferenciação vão multiplicar-se efeitos diversos e indesejáveis.
Realmente, vimos que, precisamente para percebermos o sentido deste diagnóstico, sendo que a NM
favorece uma certa contaminação daquilo que é específico de cada sistema (favorece efeitos de perda de
autodiferenciação), pelo que tivemos a considerar, em termos breves, a perspetiva que pode dar sentido a
este diagnóstico/a esta afirmação. Essa perspetiva é a perspetiva do funcionalismo sistémico, pelo que
vimos que quando falamos de sistema, falamos de sistema de funcionalismo sistémico autopoiético e está-
se a convocar uma teoria sociológica sustentada num modelo de autorreferência e autopoiésis – sistemas
que encontram a sua unidade em si próprios e nos elementos que os integram e que também vão
igualmente ter uma dinâmica de produtividade e de criação de novos elementos sempre condicionada
pelos elementos que já o compõem. Nesse sentido, a primeira matriz é um paradigma de autopoiésis, que
vimos que foi inspirado com Luhmann e Teubner pela epistemologia e biologia através dos modelos de
sistemas fechados que caracterizam alguns organismos vivos e algumas das componentes dos nossos
neurónios – ensaiou-se uma projeção deste paradigma epistémico, uma projeção no universo da realidade
social, pensando essa realidade como uma emas comunicações com sentido que são transmitidas entre os
sujeitos, devem ser todas elas sustentadas na perspetiva de sistemas que serão fechados, ainda que
eficazmente fechados naquilo que se poderá dizer numa clausura operativa, não sendo sistemas abertos,
como se vê no exemplo conceção cibernética dos sistemas que acentuava a circularidade entre meio
ambiente e sistema, também são sistemas fechados de clausura operativa.

Com efeito, isso, no plano do sistema jurídico, implicava que se estabelecesse um contraponto entre
expectativas cognitivas e expectativas normativas, o que permitia dizer que o sistema jurídico, que é denominado
por um código juridicamente positivo ou negativo, pelo que essa representação da clausula operativa no plano do
direito implica defender que o sistema jurídico é um sistema cognitivamente aberto e normativamente fechado.

Evidentemente que, como sabemos, quando estou perante uma comunicação que beneficia de uma
expectativa cognitiva, essa comunicação é uma comunicação que será posta em causa se a realidade exterior não
corresponder a essa afirmação, visto que uma afirmação sustentada em expectativas cognitivas é uma afirmação
baseada numa representação em termos de verdade-falsidade e sustentada numa pretensão de descrição ou de
explicação - se os fenómenos ou os factos do mundo exterior não corresponderem à preposição – a preposição não
é comprova, sendo falsificada pela realidade (é posta em causa pela realidade), perdendo a sua validade (porque
esta sustentada numa pretensão de verdade - para percebermos bem o que é uma perspetiva cognitiva vimos o
exemplo da afirmação em que a porta está aberta, sendo que se esta está fechada, essa afirmação é falsificada pela
experiência. Contudo, como contraponto para se perceber a expetativa normativa, se se disse que a porta deve
estar fechada e ela estiver aberta, esse facto não falsifica a minha nem põem em causa a pretensão de validade da
primeira, até podendo reforça-la se, efetivamente, em correspondência com essa pretensão de validade se se
poder extrair daqui o camando ou um ato de execução que leve a fechar a porta enunciação - se eu disser que a
porta deve estar aberta e ela está fechada, o facto dela estar fechada não põe em causa a validade da afirmação.

Isto é só para percebermos que o acontece de acordo com a visão de Luhmann e depois de Teubner que
assimilou todo este modelo da autopoieses, é que o sistema jurídico é aberto às comunicações do mundo exterior,
sendo que nessas comunicações temos expectativas que são também elas construídas de acordo com os códigos e
programas do sistema politico, económico, religioso, de educação, etc., porque são comunicações provenientes do
ambiente, mas depois, o sistema jurídico, vai convertê-las, associando às comunicações que são específicas do
sistema pretensões que já são normativas, inclusivamente logo na própria tipificação – se pensarmos numa
construção de uma hipótese de uma norma, de um tipo em direito penal, poderemos dizer que, na verdade, há
aqui uma receção de informações cognitivas exteriores que vão permitir reconhecer situações acontecimento que
podem ocorrer na realidade, mas depois quando se constrói o tipo, porque se vão selecionar certas caraterísticas,
vai-se estabelecer um filtro de relevância – o comportamento já não aparece com todas as notas diferenciadoras
que o distinguem na realidade, aparecendo só através de uma série de caraterísticas que são fixadas – essas
caraterísticas vão estar depois diretamente associadas à reação/resposta do direito e, nesse sentido, elas já têm
uma exigibilidade que é uma exigibilidade normativa. De facto, é fácil de perceber porque se temos uma norma
fixada num tipo de crime, certamente que a prática desse crime não põe em causa essa hipótese, não tendo de ser
reaberto porque ela tem uma exigibilidade que é normativa, suscitando uma reação do direito. Portanto, se se
disser que uma norma de direito penal pune um crime de homicídio, sendo que, na realidade, praticam-se muitos
homicídios - será que a validade desta norma é posta em causa pela verificação desses factos? Não, porque essa
tipificação e seleção, em termos de caraterísticas, já ganha uma identidade normativa.

Deste modo, importa percebermos porque é que essa perspetiva, sendo sociológica (sustentada num
paradigma muito especial que é o paradigma dos sistemas autopoiéticos), dirige uma crítica tão clara à articulação
de comunicações que podemos reconhecer no ciclo da neomaterialização. Porque que ela se afasta, não assumindo
uma identidade ideológica como acontece com as visões neoliberais? Temos, pelo contrário, uma tentativa de
construir um discurso que aparece num discurso puramente científico, que não manifesta no seu núcleo opções de
caráter ideológico. Realmente temos uma convergência com as perspetivas neoliberais na crítica ao estado social.
Porque será assim? De acordo com esta representação, o Estado Social não terá conseguido manter a
autodiferenciação dos sistemas e, desde logo, esse ponto faz-nos regressar ao quadro das racionalidades de
Teubner e a relação delas com o direito e com o Estado. Quando, no fundo, se sustenta a ideia de que temos que
abandonar esse ciclo de neomaterialização, um dos pontos fundamentais é exatamente o de acentuar que os
programas finais que esse clico consagrou (não é uma consagração exclusiva, visto que, ao seu lado, continuaram a
existir programas finais), esses programas legislativos finais trazendo consigo através de standards, opções claras
quanto aos objetivos a atingir e quanto aos meios a mobilizar com alguma antecipação flexível de alternativas a
tomar no terreno, essa representação que a lei pode obedecer ao esquema dos programas finais, que era uma
possibilidade recusada pelo Estado Liberal e pelo paradigma moderno-iluminista na sua natureza, essa abertura
aos programas finais trouxe consigo o risco de uma intervenção excessiva no plano do sistema jurídico de
referências exteriores que, na perspetiva do direito sistémico, são exatamente tratadas como heteroreferências
que é preciso controlar e dominar. Desta forma, trouxe consigo esse tal perigo de um comprometimento de
autodiferenciação que deve sustentar o sistema jurídico.

Exatamente porque a alternativa que se pensa, no fundo (de modo a esclarecer as coisas nesta etapa pós-
instrumental), trata-se de dizer assim relativamente a todas as propostas que surgem no sistema jurídico -
distinção entre a proposta de Luhmann e de Teubner:
• A proposta de Luhmann é “o que carateriza o sistema jurídico, são os programas condicionais” e,
portanto, esta tentativa de projetar no direito programas finais, trouxe consigo uma contaminação do
sistema politico e económico, sendo que estes são sistemas sociais que se caraterizam pelo uso de
programas finais, de estratégias que se projetam na realidade e que se desenvolvem como táticas - crer
que o universo do direito faça corresponder ao seu código um programa final será comprometer a
autorreferenciação do direito, condenando inevitavelmente esse direito a uma instrumentalização
política, económica, social – será visto, pela negativa, como uma perde de autonomia/autodiferenciação.
Luhmann insiste que um código binário justo ou injusto, lícito ou ilícito, legal ou ilegal, precisa de
programas para se projetar, mas esses programas devem corresponder com toda a proeza à estrutura
hipotético-condicional, porque só esta estrutura é que consegue preservar bem essa relação de equilíbrio
entre as expetativas cognitivas e as expetativas normativas, ou seja, essa relação de equilíbrio entre uma
abertura cognitiva do sistema e a sua clausura normativa. No fundo, as normas que obedecem a
programas condicionais, partindo dessa formulação de “se” e “então”, estão a dizer que se opõem a
determinada situação, então, a resposta do direito será esta, Temos uma articulação, por um lado, de
expetativas cognitivas e expetativas normativas e temos, por outro lado, simultaneamente, uma garantia
de pura identidade ou clausura normativa do sistema, uma vez que o sistema ao tratar de expetativas
cognitivas, vai defini-las e conferir-lhes uma determinada identidade que vai ser indispensável para
estabelecer a resposta do direito – se estivéssemos no modelo iluminista da norma do “se” e “então”
(hipótese e estatuição) – o grande programa identificador do direito – se as prescrições legislativas
recorrem a outro tipo de programa, nós temos comprometida a autodiferenciação do sistema.

• Teubner não vai tao longe, porque, no fundo, a sua proposta não é uma proposta de regresso ao
programa condicional e não é, porque, de acordo com o dignóstico que ele faz da realidade onde os
problemas são outros, seguramente muito mais complexos que condenam o direito a ter que enfrentar
fenómenos muito plurais. Inclusivamente, Teubner é sensível ao reconhecimento de que não temos uma
única ordem jurídica, sendo que temos várias, sendo que ele própria defende uma conceção de pluralismo
no plano dos sistemas jurídicos. Portanto, para enfrentar essas dificuldades todas, não basta um regresso
ao horizonte normativo do ciclo formal (ciclo sustentado no paradigma moderno-iluminista). Ele vai, na
verdade propor um outro tipo de programa, sendo esse programa relacional o que vai abrir as portas para
um novo ciclo de compreensão do direito e da relação do direito com o estado e da relação entre direito e
a legalidade, sendo o ciclo que ele designa de direito reflexivo. Portanto, o programa relacional que abriria
as portas para repensar a relação do direito e do estado, através de um modelo do qual já tínhamos alguns
sinais ao nível do direito privado (comercial), mas que importaria pensar globalmente para todos os
domínios do direito ! Direito reflexivo

Desta maneira, esta alternativa do direito refletivo é, a partir da página 45 do livro relativa à condição social,
que é a complexidade das sociedades atuais, sendo vista aí através do diagnóstico que Teubner faz. Assim, para se
perceber esta resposta de Teubner, é preciso ter presente os pressupostos do racionalismo do sistema, sendo
preciso ter presente a ideia de que o sistema jurídico deve ser um sistema autorreferencial e que deve preservar a
sua clausura operativa, não podendo estar sujeito a uma erosão permanente e instrumental dos outros sistemas.
Por outro lado, uma novidade que Teubner vai introduzir é a de dizer que não só o sistema jurídico deve estar
diferenciável (deve manter a sua autopoiesis/autoreferência) – o que pode ser particularmente difícil num
contexto como o nosso, sendo que Teubner escrevia na segunda metade do séc. XX e continua a defender esta
perspetiva contemporânea nossa, projetada em várias correntes dogmáticas.

No fundo, para se perceber esta alternativa do direito reflexivo não só se exige que o direito preserve a sua
autodiferenciação, a sua clausula operativa, o sistema sendo fechado sob o ponto de vista normativo, mas, mais do
que isso, torna-se hoje indispensável que o direito recupere a posição de referência na realidade social que terá
tido no paradigma moderno-iluminista quando se falava no Estado de Direito de legalidade e se exigia que esse
estado de Direito cumprisse até ao fim o modelo de juridicização do poder a partir de uma certa representação do
direito como um sistema de normas gerais, abstratas e formais, portanto, todo o processo institucional de
separação de poderes e da invenção do Estado de Direito dos séc. XIX obedeceu a esta referência ao direito. Assim,
há que fortalecer a referência do direito que o Estado Social tinha posto em causa ao admitir que o direito é
sobretudo um instrumento para a realização/prossecução de expetativas de interesses sociais, devendo fazer com
que o direito recuperasse essa posição de referência.
Como é que o direito poderá recuperar essa posição de referência? Através de uma responsabilização muito
especial: o sistema jurídico não só deveria preservar a sua própria diferenciação, mas deveria ser também
responsável pela preservação da autodiferenciação social no seu sentido global, ou seja, o sistema jurídico estaria
em condições de intervir para garantir que o sistema politico, económico, cultural, religioso, preservam em cada
um deles a sua autodiferenciação – o sistema jurídico, através dos seus programas relacionais, iria intervir para
evitar que um desses sistemas se imponha a um ou a outros, privando esses outros da sua diferenciação ! Não é
só uma exigência de autodiferenciação, mas sim uma exigência de contribuir para o próprio equilíbrio das
autodiferenciações sociais, evitando fenómenos perversos de colonização de um sistema social para outro sistema
social. O direito deveria estar preocupado com o seu próprio sistema, mas também fundamentalmente não
deixando de oferecer recursos que permitam combater processos em que essa autodiferenciação social esteja
ameaçada (processos em que estejam envolvidos outros sistemas).

Para entendermos também esta perpetiva de Teubner, antes de insistirmos no diagnóstico que ele vai fazer no
Estado Social, é também preciso perceber uma diferença introduzida pela perspetiva de Teubner relativamente à
perspetiva de Luhmann:

# Enquanto Luhmann, no fundo, ao referir-se à autopoiesis defende a ideia de que ou há


autopoiesis ou não há, ou seja, ou um sistema social está em condições de se reproduzir a si próprio a partir
dos elementos que já dispõe e a partir de uma certa experiência autorreferencial do sistema ou não está e
assim, não há, sendo um argumento de tudo ou de nada – ou estamos perante um sistema que preserva
integralmente essa capacidade de se gerar a si próprio ou não estamos.
# Teubner, exatamente porque parte de um diagnóstico de pluralismo jurídico, entendendo que,
para além da ordem estadual há outras ordens sociais às quais podemos atribuir a qualidade de ordens de
direito e que tenham uma identidade diferente das ordens estaduais – ordens, por exemplo, associadas a
pequenas comunidades ou a certos movimentos sociais seriam ordens de direito que beneficiariam do código
valorado positivamente e que , no fundo, seriam, neste sentido ordens de direito, mas no desenvolvimento
dos seus programas podem não corresponder rem pleno às exigências de autopoiesis que reconhecemos, por
exemplo, na ordem jurídica estadual – o que Teubner defende é que estes fenómenos da autopoiésis emitam
projeções parciais, ou seja, podemos estar perante uma possibilidade de autopoiésis parciais, em que vamos
tendo sinais de uma autonomização ou de uma autodiferenciação gradual, pelo que aí já podemos falar de
autopoiésis - a visão não será tão radical como a de Luhmann que diria que se não existe esses fenómenos em
pleno, não existe o tal hiperciclo reprodutor, não estamos perante a autopoiésis, sendo que Teubner admite
que estamos, e isso é importante para poder atribuir a entidade de ordens de direito - se não são
autodiferenciáveis, então, não podemos ver nelas ordens de direito – Teubner reconhece isto, pelo que
defende que há várias ordens de direito que depois podem entrar em concorrência umas com as outras e,
portanto, há aqui um processo de autodiferenciação, sendo que Teubner admite há aqui uma espécie de
processo por etapas, que permitiriam, na verdade, abordar bem esses fenómenos de pluralismo e, realmente,
Teubner entende que há três fases posições de construção de autopoiesis e do ciclo que lhe corresponde:

o teríamos uma primeira fase que seria a fase que corresponde à experiência de um direito
socialmente difuso - realmente ele próprio diz que tem componentes sistémicas que são, ainda, em
grande parte produzidas pela sociedade em geral, quer dizer, que têm elementos discursivos que
se confundem com a comunicação geral da comunidade, ou seja, a ideia de há aqui um direito que,
em grande parte, não é autoreferencialmente, mas heteroreferencialmente produzido – produzido
fora daquilo que virão a ser as estruturas discursivas do próprio direito, mas que já existirá
nalgumas comunidades em que o direito não se autonomizou em pleno, em que há já uma certa
representação do conflito/controvérsia/litígio e a ideia de que é preciso superar essa controvérsia
e é preciso a intervenção de um terceiro que vai assimilar as controvérsias, existindo nessas
comunidades, mas que a nível dos referentes não há ainda uma separação. No fundo, isto
aconteceria ainda hoje nalgumas comunidades de povos originários na América do Sul e na
Austrália em que as respostas ainda não são autodiferenciáveis, sendo respostas onde convergem
em contínuo em visões morais ou religiosas – tudo isso intervém na determinação das soluções.
Contudo já há uma certa estrutura de controvérsia, pelo que já se pensa que, na verdade, há ali um
problema que tem de ser resolvido por um terceiro e depois, o terceiro, os critérios que ele vai
mobilizar refletem ainda o lismo contínuo entre outras dimensões religiosas ou narrativas ou
éticas ou ético-comunitárias – ainda não há uma autonomização do direito.

o Depois, a seguir a esta fase de um direito socialmente difuso (embrião da autopoiésis),
passamos para a fase do direito parcialmente autónomo em que já há um autentico processo, sendo
que já temos normas, uma certa consciência doutrinária e, esta segunda fase, aparece sobretudo
quando, na ordem de causa, se nos impõe critérios/regras secundárias muito claras, por exemplo,
regras que procuram dominar concorrência entre as outras, regras que instituem procedimentos
ou que criam órgãos. De facto, aqui realmente há já um certo plano de auto-observação, de
autodescrição e de autoconstituição do direito – ainda não teremos um direito realmente
autopoiético em pleno, mas já um direito parcialmente autónomo. Realmente, o direito
autopoiético só o teríamos quando, de facto, aquele ciclo de positividade da norma ou ciclo de
vigilância da dogmática do processo atinge a sua plenitude inserindo-se ou encaminhando-se numa
espécie de hiperciclo reprodutor, numa certa veia de reciprocidades que vai permitir dizer que o
direito encontra aí o seu motor para se autorreproduzir.

Não é preciso nos preocuparmos com estas etapas, mas é importante referi-las para mostrar que há aqui uma
visão mais flexível do que é a autopoiésis. De acordo com a visão de Luhmann, nós só teríamos verdadeira
autopoiésis quando estivermos perante este último hiperciclo reprodutor. No fundo, o sistema jurídico só seria o
sistema estadual, pelo que todos os outros sistemas seriam, mesmo aqueles que correspondem por exemplo a
modelos consuetudinários ou a umas certas experiências específicas de pequenas comunidades, imaginando o
direito, por exemplo, das comunidades do Brasil nas favelas – essas ordens, de acordo com esta perspetiva
formalista de Teubner, correspondem à segunda etapa/fase, em que não temos ainda um verdadeiro direito
autopoiético, mas um direito parcialmente autónomo, já existindo regras de conduta, processos, sanções etc., e,
portanto, isto legitima que possamos aí considerar verdadeiras ordens de direito - não serão ainda ordens
plenamente autopoiéticas, mas que corresponderão à ideia de um direito parcialmente autônomo, sendo eu isto é,
na verdade importante para perceber como Teubner sustenta esse pluralismo jurídico.

Assim sendo, mais relevante, concentrando-nos no nosso tema será: porque é que, no fundo, Teubner,
partindo de todos estes pressupostos e de toda esta visão que tem do direito, qual é o diagnóstico que ele faz do
direito produzido pelo Estado Social na sua fase constitutiva ligado a um ciclo de neomaterialização do direito?
Porque é que ele faz um diagnóstico negativo?

# Como visto anteriormente, Teubner vai-nos falar aqui de uma situação criada pelo Estado Social, em que
quando fala do direito produzido pelo Estado Social ele fala da criação de um direito regulatório – no
fundo, para mostrar a diferença que separa este direito daquele que era produzido num Estado
Demoliberal, ele fala aqui de um direito regulatório, sendo que essa expressão de direito regulatório capta
exatamente a ideia que vai absorvendo novas teleologias e que vai regulando esses campos com as
instituições, sanções e consequências que vai estabelecendo. Temos um Direito regulatório porque aquilo
que ele forneceria seriam sobretudo as instituições, os órgãos, as sanções, visto que os conteúdos seriam,
em grande parte, determinados pela referência às exigências sociais e seriam heteroreferências. Isso
permitir-nos-ia pensar no alargamento do direito, porque o direito não teria uma identidade material,
mas seria toda e qualquer regulação do campo social, regulação com uma certa identidade que resultaria
de recursos que o próprio direito disponibiliza, mas o conteúdo/fundamento/sentido seria fornecido pelo
próprio campo social que o direito está a regular. Para percebermos esta expansão regulatória, basta
darmos atenção a alguns novos domínios do direito que surgiram no póstumo da guerra e que se têm
desenvolvido mais nas últimas décadas, como por exemplo, o direito do ambiente, o direito da bioética –
no fundo, fala-se aqui de direito porque há uma intervenção regulativa em determinados campos que
fornecem a esse mesmo direito os conteúdos e a teleologia. Em rigor, estamos para além da afirmação dos
domínios tradicionais do direito e aqui toda a determinação de conteúdo é como que imposta pelo campo
ou território que o direito está a ocupar. No fundo, o direito vai fornecer possibilidades regulatórias que
poderão ser absorvidas por todos os domínios da nossa prática social e, portanto, aparecerá aqui como
uma prática e um discurso sem limites neste sentido, mas perdendo autonomia, visto que o que o direito
fornece é apenas essa possibilidade regulatória – é por isso que a possibilidade regulatória em si mesma
não tem um sentido e exigências materiais autênticas.
Assim, o que Teubner nos diz é que este excesso de regulação ultrapassa frequentemente os limites desejáveis
- esta intervenção regulatória do jurídico, na nossa situação atual foi gerada pelas possibilidades abertas pelo
Estado Social – esta intervenção regulatória do jurídico, ultrapassa frequentemente os limites desejáveis.

Quais limites? Os limites da autorregulação, da autoconservação e da autodiferenciação que são exigíveis e


que devem ser respeitados relativamente a todos os sistemas ou subsistemas desenvolvidos. Portanto, a partir
desta nota que a intervenção regulatória jurídica, muitas vezes excessiva, vai construir aquilo que diz um trilema
regulatório – este não é mais do que um diagnóstico concentrado nos efeitos indesejáveis da regulação ou da
intervenção regulatória. Ele vai dizer, na verdade, que toda a intervenção regulatória no jurídico que, enquanto
influência exterior, ultrapassa os limites da autorregulação e da autoconservação dos sistemas envolvidos, ou
provoca efeitos de integração que afetam o mercado social regulado ou provocam efeitos de integração que
englobam o próprio direito.

No fundo, estão esboçados três caminhos que teriam sido prosseguidos por esse direito regulatório e que são
considerados indesejáveis, visto que conduzem a efeitos perversos, formando, assim, um trilema – três caminhos
sem saída, que são de evitar – são provocados, sem alternativa, pelos excessos de regulação – estes levam-nos a
três caminhos que não funcionam como alternativas uns dos outros, sendo que todos eles são, na verdade,
indesejáveis, embora sejam diferentes.

Claro que este diagnóstico é seguramente excessivo, mas não deixa de encontrar apoio em alguns fenómenos
que conhecemos bem, podendo ser, precisamente por isso, persuasivo, visto que, de facto, o ciclo da
neomaterialização, por razões suas que têm que ver com um racionalismo histórico-global, levou a um excesso de
intervenção legislativa, ou seja, no fundo, a uma produção hipertrofiada de leis ! vivemos num tempo de muita
leis e pouco, num tempo de excesso de regulação em que todos produzem prescrições legislativas que vão ser
utilizadas para regular outras que já foram reguladas anteriormente.

Nesse sentido, não será difícil a Teubner para sustentar o seu diagnóstico, encontrar exemplos destes três
caminhos sem saída. No fundo, o que ele diz é que se estivermos numa intervenção regulatória do jurídico que
ultrapasse os limites desejáveis, podemos ter o quê?

# 1º caminho: Em primeiro lugar, um problema de inconcorrência, ou seja, nós temos uma intensa
produção legislativa, sendo que essa produção alimenta-se internamente de uma sequencia complexa de
intervenções, isto é, há necessidade de perante a primeira lei ou DL que é produzido e depois produzir
outro que regule o primeiro – um ciclo completo de regulações -, pelo que na verdade, o que acontece é
que, embora se cria ali sob o ponto de vista jurídico, uma determinada disciplina nova, como por exemplo,
as legislações contemporâneas que nos oferecem nalgumas ordens jurídicas têm a ver com as leis
anticorrupção, em que temos muitas leis ou um regulamento muito complexo e depois poder-se-á dizer
que esse regulamento na maior parte das ordens sociais permanece improdutivo, visto que não é capaz de
ser assimilado verdadeiramente pela realidade social. Portanto, poder-se-á dar outros exemplos: dir-se-á
que uma produção legislativa não produz os seus efeitos – muitas vezes, nós dizemos que temos uma lei,
mas ela não é aplicada. Teríamos aqui o que ele diz uma situação de indiferença –a lei quer intervir no
sistema politico, procurando aumentar a transparência nas práticas partidárias ou nas relações que essas
têm com grupos de pressão, sendo que essa lei é ineficaz, pelo que estamos perante uma situação de
indiferença, não sendo a lei assimilada – ou um excesso de regulação leva ao paradoxo de não haver
consequências na própria legislação – teríamos essas situações incongruência ou, então, de indiferença
mútua) ou sistema econômico (uma prescrição legislativa quer intervir ao nível do mercado corrigindo
algumas das instruções do mercado e não consegue, não tendo eficácia, sendo que os fenómenos do
mercado resistem a essa intervenção – o sistema económico impõe-se à intervenção legislativa e esta
permanece verdadeiro direito dos livros sem projeção na realidade). Esse seria um fenómeno de facto
responsável por alguns efeitos perversos ao nível da nossa situação atual do primeiro caminho: da
incongruência ou da indiferença mútua. Indiferença relativamente aos sistemas, uma vez que temos o
sistema jurídico a querer intervir no sistema económico e a não conseguir, pelo que isto gera fenómenos
de indiferença, sendo que é como se estivéssemos de facto a produzir sem que se desenvolva verdadeira
uma articulação entre os diversos sistemas, visto que, no fundo, a clausura operativa exige essa atuação,
não sendo uma situação de total fechamento – a clausura tem que ser operativa e, aqui, nem sequer temos
isso, temos fenómenos de verdadeira indiferença.

# 2º caminho: Este não é o caminho que, na verdade, corresponde às intervenções regulatórias mais
frequentes, uma vez que essas podem ter outros efeitos entendidos indesejáveis. Portanto, um outro
efeito de Teubner serão diversos exemplos de intervenção do direito no campo das comunicações sociais
que podem ter também efeitos negativos, agora, por razões e em termos que são claramente opostos ao
primeiro – agora, o que nós temos é um excesso de intervenção que vai ter um efeito desintegrador do
próprio tecido social, ou seja, o direito passa a querer intervir, a partir desta assunção de fins, em
domínios que, até então estariam reservados a uma certa ética comunitária, a uma integridade da família,
etc., no fundo, o direito que ao deixar de ter exigências de sentido unificadoras e que passa a ter uma
dinâmica regulatória condicionada por outras teleologias, pode intervir em quaisquer territórios - quando
intervém nesses territórios, por exemplo, está a intervir numa prática que era orientada por regras ou
modelos consuetudinários, sendo que o direito legislativo quer intervir aí alterando tudo radicalmente,
tendo um efeito desintegrador – as relações que se estabeleciam naturalmente entre as pessoas, deixam
de se estabelecer – há uma disciplina estranha que se quer impor e essa também não é assimilada pelas
práticas, visto que estas tinham um outro referendo que, entretanto perderam – deixa de atuar o antigo
referendo, porque o primeiro se impôs e, ao mesmo tempo, este deixa de ter e não consegue ter a eficácia
que o outro tinha anteriormente – há uma desintegração ao nível do campo social – muitas vezes esta fase
da crítica a este efeito de desintegração, admitindo que, de facto, estamos perante um fenómeno de
sobrelegalização – uma intervenção do direito que é excessiva e que vai pôr em causa modelos de conduta
que até á intervenção do direito, foram plenamente eficazes e que depois deixam de ser, pelo que, neste
sentido, a intervenção do direito, tem um efeito de desintegrar o campo social que vem intervir sem se
preocupar com o referendo que seja igualmente eficaz. Portanto, intervém, põe em causa o padrão de
conduta vigente naquele contexto social, desintegra-o e depois substitui-o por outro, mas esse outro como
é completamente estranho às práticas envolvidas no campo social, não é suficientemente assimilado e não
se torna eficaz ! tínhamos aqui um fenómeno de sobrelegalização, ou seja, o direito a provocar efeitos de
desintegração que afetam o próprio campo social. Isto pode traduzir-se mesmo em situações em que a
intervenção do direito, em nome de exigências ou de fins/estratégias sociais, possa projetar-se em
campos que estariam reservados à intimidade pessoal, familiar, etc., ou que seriam campos ocupados por
padrões vigentes, mas que, de facto, não precisavam dessa intervenção do direito, sendo que com essa
perde-se a referência que existia anteriormente e ela não era substituída – a ideia de que o direito pode
ter um efeito perverso e desintegral.

# 3º caminho: Finalmente, o terceiro dos caminhos é aquele que corresponde a fenómenos que nós mais
habitualmente observamos e que, no fundo, têm preocupado outros diagnósticos semelhantes e qual é?
Como não podia deixar de ser, o professor está-se a referir aos fenómenos de instrumentalização do
direito, pelo que, até agora, nós vimos o direito a intervir sem o conseguir fazer gerando indiferença;
vimos o direito a intervir demais e a desintegrar (a ter o efeito desagregador no campo social);
finalmente, temos efeito de intervenção regulatória que afetam o próprio direito. Ou seja, isto pode
parecer um paradoxo, mas o direito a intervir excessivamente no campo da política ou economia, vai
fornecer a esses campos apenas as formas, os processos, os recursos coativos, mas não fornece a esses
campos nada que seja substancialmente identificador do próprio direito, tornando-se o direito, nesse
sentido, um instrumento desse sistema. Aqui teríamos efeitos de desintegração resultantes da deploração
que afeta o próprio direito, isto é, o direito quando vai intervir no campo da política ou economia,
intervém assumindo padrões e referências que são os dos próprio sistema económico ou do próprio
sistema politico e, esses padrões passam depois a refletir-se/repercutir-se internamente no âmbito do
próprio direito, o que leva a que possamos falar de sobresocialização do direito, em vez do fenómeno de
uma sobrelegalização – aqui falamos de uma sobresocialização do direito ou, melhor dizendo, uma
desintegração do direito pela sociedade. Portanto, o 2º caminho seria uma espécie de desintegração da
sociedade pelo direito e aqui teríamos uma desintegração do próprio direito pela sociedade, ainda que
sob a aparência de uma intervenção mais intensa do direito, mas essa acaba por assimilar os programas e
códigos desses outros campos sociais – nós vimos aqui um fenómeno que é mais frequentemente
diagnosticado, que é o de dizer que assistimos aqui a uma politização do direito ou economicização do
direito, ou até a fenómenos de economicização da política que depois se repercutem no direito – muitas
vezes, ouve-se fazer referência a essas situações. Ora, este seria o terceiro dos caminhos.
Em suma, Teubner, repetindo globalmente o diagnóstico do trilema regulatório, diz-nos que toda a
intervenção regulatória do jurídico que, enquanto influência exterior ultrapasse as linhas e limites da
autoconservação e autorregulação dos subsistemas envolvidos, ou não é pertinente (incongruência ou indiferença
mútua) ou provoca efeitos de desintegração que afetam o campo social regulado - seriam os fenómenos da
sobrelegalização, ou, então, provoca efeitos de desintegração que afetam o próprio direito regulatório, sendo que
aqui teríamos o caminho da sobresocialização do direito ou desintegração do direito pela realidade social. Assim,
faz-se um diagnóstico que nos diz que o direito regulatório, conduzindo na aparência uma mera intervenção do
direito, conduz a uma intervenção que tem efeitos perversos e, sempre que se ultrapassam certos limites e se põe
em causa a autodiferenciação do sistema jurídico, a intervenção ou é indiferente, leva a uma desintegração do
campo social ou do próprio direito. Como se evita isso? Não bastam os caminhos que têm sido pensados, nem da
“fuga para a frente”, nem o caminho da pura formalização (não bastará dizer que o programa tem que recuperar o
programa condicional), visto que Teubner entende que isso não é possível porque temos uma realidade muito
complexa, multicultural, sendo plural no plano dos ordenamentos jurídicos e, de facto, a regresso a uma pura
formalização, à ideia de que o direito deve ser apenas a condição exterior da liberdade e que terá como tarefa
compossibilitar os arbítrios, sendo que essa saída não resultou – precisamos de uma qualquer interversão do
direito só que essa intervenção não pode ser a intervenção no plano substantivo que o Estado Social define.

Como vimos, recorremos ao quadro visto que foi todo ele pensado para esclarecer a alternativa para a
compreensão do direito. Nesse quadro, temos o contraponto entre um tipo formal, um tipo material e reflexivo do
direito. Agora, a construção da última coluna, aquela que diz respeito ao direito reflexivo, vai-se fazer por
contraponto com aquilo que fomos vendo tanto no ciclo formal típico do Estado Demoliberal do século XIX, quanto
no ciclo material correspondente, no fundo, ao modelo do Estado Providência. Assim, nesse quadro, nós tínhamos
na coluna referida ao direito formal referente ao modelo do paradigma moderno-iluminista, nós tínhamos uma
orientação pela norma-regra, orientação que estava associada aos programas condicionais e, no fundo, à qual se
contrapunha , no que diz respeito à coluna material do Estado Social, tínhamos uma orientação por fins e efeitos,
que levava a uma abertura aos programas finais e a uma utilização de uma linguagem flexível que mobilizasse
formulações deliberadamente abertas, como standards, cláusulas gerais, que, por sua vez, conduzissem à
possibilidade de uma argumentação aberta que seria sustentada pelo juiz tático. Portanto, se agora quisermos
perceber que ao nível desta racionalidade interna, tendo presente a distinção entre o programa condicional e o
programa final com orientação respetiva pela norma-regra e orientação pelos efeitos, se quisermos perceber o
que será o direito reflexivo de que Teubner nos fala e que o professor propõe como alternativa desejável
para garantir a tal autodiferenciação do sistema, nós teríamos uma orientação por procedimentos.

Assim sendo, uma orientação por procedimentos que implicaria a generalização dos chamados programas
relacionais (nem programas finais, nem condicionais). A ideia, por contraponto com o ciclo da neomaterialização,
seria evitar precisamente a tentativa da regulação direta que é um dos problemas do direito regulatório (levar a
àqueles três caminhos indesejáveis) – terá de se evitar a regulação sem renunciar completamente à regulação,
visto que se voltássemos à etapa da formalização tínhamos uma delimitação de esferas de arbítrio, de autonomia
para sujeitos privados. Agora, é preciso, tendo em conta a complexidade da vida social que nós vivemos, nós
precisamos de uma regulação, só que não podemos persistir no equívoco da regulação direta, porque este quer
interferir nos próprios efeitos sociais, desencadeando efeitos, sendo que precisamos, sobretudo, de uma regulação
indireta que seja capaz de garantir a tal autodiferenciação e autorregulação social.

A que é que poderá corresponder este programa relacional? O que é que distingue este programa relacional
dos outros? Trata-se, de facto, de seguir uma orientação que ao nível do discurso, do pensamento prático, hoje
habitualmente reconhecemos quando se fala de uma racionalidade procedimental. Há aqui uma distinção por base
a estabelecer: a distinção entre racionalidade material e racionalidade procedimental. Assim, em termos
exemplificativos para perceber o que Teubner pretende em âmbito de programas relacionais, quando eu estou a
construir uma decisão, no fundo, que pode ser a própria decisão judicial, eu estarei perante uma racionalidade
material quando pressupuser um elenco de fundamentos ou de critérios, por exemplo, quando eu disser que
tenho a minha disposição estes materiais que são estes princípios ou normas ou critérios de jurisprudência que
têm determinado conteúdo (por isso se diz que a racionalidade é material/substantiva) e a solução que vou
construir com a minha decisão é uma solução que eu obtenho a partir desse conteúdo, ou, pelo menos, que
obtenha em dialética com o conteúdo. Eu vou levar a sérios esses critérios nas suas significações materiais, ou
seja, nos seus conteúdos e vou tentar obter em concreto uma solução que seja verdadeiramente a
projeção/realização, perante uma controvérsia real, dos conteúdos desses mesmos fundamentos. A solução é
obtida partindo, de facto, desses pressupostos, do seu conteúdo – estou com que a pressupor um certo sistema
jurídico e vou querer construir uma solução que, no fundo, encontre nesse sistema o seu fundamento ou padrão.

Quando, na verdade, estou perante uma racionalidade de tipo procedimental, o que acontece é que que aquilo
que vou pressupor são regras de procedimentos para a tomada de decisão e não conteúdos materiais que
fundamentem essa mesma decisão. Portanto, a decisão poderá ser materialmente qualquer uma, desde que
respeite certas regras de processo e seja constituída de acordo com certas exigências de abertura – se eu, por
exemplo, disser que a decisão que vai ser obtida, numa situação em que vai ser possível estabelecer um possível
acordo entre as partes, a solução pode ser qualquer uma desde que se respeitem certas regras de procedimento,
ou seja, desde que as partes sejam todas ouvidas, que tenham a possibilidade de mobilizar os seus argumentos,
desde que efetivamente se evite que uma das partes que tem uma grande influência sobre a outra exerça essa
influência, isto é, desde que se garantam condições de liberdade a todos os intervenientes. Deste modo, poder-se-á
dizer: eu estarei perante uma racionalidade material quando, no fundo, a solução que vou construir racionalmente
é uma decisão baseada num fundamento substantivo e no mérito e conteúdo de determinados princípios ou
normas – essa solução que vai ser obtida é uma projeção desse conteúdo. O conteúdo aparece de facto nos próprio
critérios e quando estou a construir a solução eu levo a sério esse conteúdo e procuro que ela seja compatível com
esse conteúdo – ainda que possa dar uma grande relevo ao caso e possa estabelecer uma certa dialética entre o
caso e o sistema, no entanto, eu vou ao modelo partindo desse conteúdo e respeitando, efetivamente, esse
conteúdo. Nesse sentido, eu cheguei à solução obedecendo ás exigências desse princípio. Este tipo de
racionalidade é uma racionalidade normativa. Se, pelo contrário disser que o conteúdo pode ser qualquer um, o
que é importante, é que, de uma forma muito rigorosa, se respeite o procedimento. Claro que se pode dizer que o
procedimento tem sempre uma inspiração substantiva por trás, mas, em rigor, a solução não é obtida a partir
desses conteúdos materiais, sendo obtido pelo consenso, pela própria discussão e aquilo que se observa como
relevante sob o ponto de vista jurídico são certos pressupostos.

Neste contexto, temos no universo do direito várias manifestações desta racionalidade procedimental, a
começar nos processos e a acabar nos meios alternativos de resolução de conflitos que têm esta identidade – as
mediações, as arbitragens, as intervenções dos juízos privados normalmente fazem-se através de um modelo
procedimental – todos os espaços que no processo são criados para negociação entre as partes e para se obter
uma solução consensual, aí poder-se-á dizer que o papel do julgador é, normalmente, um papel de um mediador
que está pura e simplesmente a vigiar se aa regras de procedimento estão ou não a ser cumpridas. No entanto, o
que Teubner pretende é generalizar este tipo de discurso procedimental a todo o sistema jurídico, ou seja, é como
se disséssemos que o direito renunciaria a exigência de conteúdo material para fundamentalmente se
estabilizarem em torno de exigências muito rigorosas de carácter procedimental - todo o direito se converteria
num gigantesco processo e as tomadas de decisão passariam a estar dependentes de regras de procedimento
muito rigorosas que tivessem a preocupação fundamental de permitir que todos os pontos de vista que fossem
ouvidos, sem que a identidade do direito passasse propriamente pela imposição de conteúdos. Essa uma visão que
se adapta a uma ideia de que vivemos numa sociedade multicultural, dividida e que, portanto, temos cada vez
menos referentes comuns e as soluções devem ser obtidas por consenso desde que se respeitem determinadas
regras de procedimento. Há uma transferência dum plano substantivo e material para um plano procedimental.
Deste modo, o ciclo da neomaterialização, envolvia um discurso material, ainda que não fosse propriamente um
discurso de fundamentação, visto que era um discurso de efeitos que são, em si, projeções na realidade e,
portanto, são materiais nesse sentido.

Portanto, na verdade, quando Teubner diz que o direito em vez de regular a material determinação da ação ou
dos comportamentos, deve sobretudo prescreve regras sobre a organização, o processo e as competências para a
decisão para a ação, no fundo, o que passo a ter, são normas sobre as condições de aquisição, ou seja, não tenho as
normas sob o conteúdo da ação ou da decisão, mas tenho normas ou regras sobre as condições da ação ou da
decisão, as condições que essas devem respeitar para serem jurídicas, sendo que essas condições são de
procedimento – se eu agir contra determinadas regras de procedimento, eu estarei efetivamente a corresponder a
uma dimensão de juridicidade. Portanto, há aqui uma deslocação integral para um plano do procedimento, sendo
essa a razão pela qual se encontra no texto referida a ideia de uma procedimentariazação ou processualização,
porque este diagnóstico de Teubner (contrário ao de Luhmann que envolveria um regresso praticamente acrítico
ao contexto do Estado Demoliberal e do paradigma moderno-iluminista), embora renunciando a um componente
material, procura precisamente responder diretamente aos desafios que são postos por essa pluralidade,
tramitação, por essa complexidade da vida contemporânea. O direito estaria condenado a oferecer pura e
simplesmente regras de procedimento. Ele diz que no plano material, as coisas são variáveis, contingentes, nós
temos diferentes entendimentos do que é o mundo, a vida, temos diferentes concessões políticas, filosóficas,
éticas, etc., e, portanto, não é possível encontrar referentes, quer ao nível do conteúdo, que sejam
verdadeiramente comuns – nesse sentido, é preferível apostar em regras de procedimento, porque essas regras
vão permitir o diálogo autêntico entre as pessoas, uma vez que se não houver regras de procedimento, não há
autêntico diálogo nem consenso – se alguém estiver em condições de usar a sua situação de poder sobre o outro,
certamente que a decisão que vai ser obtida vai ser um falso consenso, uma vez que vai estar a usar a sua
persuasão/influência para obter para si próprio determinadas vantagens desproporcionadas. Ora, aí o direito
deve intervir para garantir que, no plano procedimental, todos tenham as mesmas possibilidades de intervenção e
essas situações de desigualdade argumentativa de poder de um dos elementos envolvidos, possam ser
efetivamente corrigidas pela própria regra de procedimento. No fundo, nós estaríamos sujeitos a essa regra da
contingência sob o ponto de vista substantivo ou material, sendo que tudo muda, mas essa contingência na
perspetiva dos sistemas autopoiéticos, seria até perfeitamente compreensível, dado que esse sistema é um
sistema que se está a refazer permanentemente e, portanto, vai criando os seus próprios modelos ele próprio. No
entanto, ao mesmo tempo tem que haver uma certa invariância de procedimentos, para garantir que essa
juridicidade possa ser reconhecida – portanto, tem que haver condições e modos pré-definidos ao nível dos
procedimentos que garantam que as tomadas de decisões, embora materialmente contingentes, possam ser
procedimentalmente corretas, pelo que seria esse o sentido do direito reflexivo.

Seguidamente, certamente que haveria aqui alguma especificação do que é esse direito reflexivo, mas basta
esta ideia para perceber porque é que este modelo ou desempenho normativo que ele reivindica, se pretende
inconfundível com os modelos da racionalização pelo Estado Demoliberal e pelo Estado Providência. A propósito
do Estado Demoliberal, vimos que ao nível da racionalidade normativa nós tínhamos fundamentalmente uma
intenção de proscrição, na medida em que o papel do direito era delimitar esferas de arbítrios (não intervir
diretamente na ação, mas estabelecer condições para que se possa exercer o meu arbítrio sem interferir no
arbítrio do outro – estabelecer limites pela negativa) e vimos que a perspectiva da NM era, ao contrário, uma
perspectiva de prescrição, regular diretamente os resultados dos processos sociais – de racionalidade material e
instrumental – não é um puro material dos fundamentos de validade, mas é um material referido a interesses e a
fins. Assim, essa prescritiva seria legitimada por uma certa exigência político-ideológica.

De facto, a intenção não é a intenção de delimitar essas esferas, nem a intenção de regular os campos sociais,
mas antes o que Teubner diz de regular indiretamente, ainda que num certo plano abstrato, porque agora a
intervenção vai se fazer ao nível dos processos de autorregulação e autorreflexão dos sistemas sociais. Claro que,
realmente há aqui algumas dificuldades, sendo evidente que nós, num domínio dogmático, pensaríamos
imediatamente no direito comercial internacional, porque sabemos que este direito que não é um direito que se
pense de acordo com o direito estadual, o que nós temos são, muitas vezes, regras de procedimento e a resolução
de conflitos, nomeadamente, através da arbitragem. Isso remete para um modelo em que os grandes referentes
deixam de ser normas ou princípios com conteúdos específicos para passarem a ser regras de procedimento.
Claro que isto não é bem assim, visto que algumas destas regras de procedimento são a tradução no tal plano
puramente procedimental, de algumas exigências que seguravam o direito material – não deixamos de ter
presente uma regra que exija a participação de todas as partes envolvidas em igualdade de circunstâncias, o
princípio da igualdas ou o princípio do contraditório, sendo que agora traduzidos num plano puramente
procedimental de dizer que as soluções poderão ser quaisquer umas, sendo as soluções que resultam do consenso
racional que respeita estes procedimentos. Portanto, a relação não se faz diretamente entre as soluções que vão
ser construídas e os pressupostos que se assumiram no plano material dos sistemas, mas através das regras de
procedimento – ele próprio diz num texto que o professor enviará: “a racionalidade interna do direito reflexivo não
se baseia com efeito nem num sistema de normas nem de sistemas jurídicos definidos com precisão, nem na lógica ou
fim dos programas jurídicos matérias – o direito reflexivo tende, antes, a objetivar-se em programas reflexivos
procedimentais mais abstratos, que se dirigem tanto ao metanível da regulação dos processos quanto à repartição e
definição dos direito de controlo e das consequências de decisão” – evidentemente que este direito reflexivo teria
com principal preocupação, primeiro definir quais são as situações institucionais, ou seja, os órgãos e as
competências de cada sujeito envolvido, mas os critérios para obter as decisões seriam critérios, na verdade,
procedimentais/regras de procedimento.

Concluindo esta referência BREVE ao direito reflexivo, convém esclarecer que podem pôr-se aqui diversas
dificuldades:
# De acordo com avisão de Teubner, este não será apenas o caminho adequado para que o direito preserve
a sua autodiferenciação, mas será o caminho adequado para que o direito contribua para que, na realidade social, os
outros sistemas jurídicos também permaneçam autorreferenciados, o que pode suscitar alguma perplexidade: como
é que o direito vai intervir quando estão em causa problemas resultantes da colisão, da concorrência e do conflito
que, no fundo, poderá ocorrer entre os diversos sistemas? Realmente, o modo como Teubner entende essas
relações levar-nos-ia a distinguir aqui vários pontos, ainda que o último nos interesse mais para perceber essa
tarefa do direito na realidade social.

Nós teríamos, de facto, em primeiro lugar, que atender, admitido no fundo que este direito é um direito reflexivo e
admitindo que, no fundo, se põe a questão de existir concorrência entre os outros sistemas sociais, como o político,
económico, social, etc. Haverá, em primeiro lugar, perceber que esse direito reflexível é compatível com o que se
poderá dizer com uma certa hipótese de incorporação, que se traduz numa espécie de reentrada de materiais
exteriores ao direito, ao sistema jurídico, que são provenientes de comunicações do ambiente, do sistema
económico, politico, religioso, cultural, etc., mas essas comunicações exteriores vão ser tratadas de facto pelo
próprio sistema jurídico, não sendo isso novidade (é o Luhmann nos diz: o sistema é cognitivamente aberto e
normativamente fechado). Só que, a novidade consiste nisto: enquanto que para Luhmann bastava ter essa garantia
de que o sistema é cognitivamente aberto e normativamente fechado (se eu estou a tratar de materiais exterior, eu
vou convertê-los em componentes do próprio sistema jurídico, sendo que aqui o problema fica resolvido), Teubner
entende que na nossa circunstância atual isto não é assim. No fundo, o que acontece é que o direito não pode ser
insensível ao facto de as comunicações que ele constrói através de normas jurídicas ou decisões judiciais, essas
decisões/comunicações legislativas ou judiciais vão depois projetar-se na realidade. Como se vão projetar na
realidade, elas vão inevitavelmente ser compreendidas/lidas na perspetiva dos outros sistemas, sendo projetadas
de novo no ambiente. Ora, se eu defender uma perspectiva de pura clausura normativa, o direito do sistema jurídico
é indiferente a essa projeção – no fundo, o sistema jurídico, recebe informações, comunicações, sendo aberto
cognitivamente, mas depois fecha-se normativamente sendo indiferente aos efeitos sociais que sejam
desencadeados pelas suas decisões legislativas ou judicias.

Teubner entende que, atualmente, isso não é possível, visto que uma norma jurídica quando é projetada de novo no
ambiente -projetada na realidade - ela como que vai ser interpretada por códigos diferentes, pelo código do sistema
político, pelo código do sistema económico, etc. Então, realmente, essa tradução que vai ser na perspectiva do
sistema político e económico. Ora, os resultados desta interpretação/tradução política ou económica dos efeitos
socias que são produzidos, por exemplo, segundo as decisões legislativas ou segundo as decisões judiciais deverão,
de acordo com a visão de Teubner, reentrar no sistema jurídico como interpretação – no fundo, é uma pretensão
que é dirigida por essas comunicações com base em heteroreferências, mas que é dirigida ao sistema jurídico.
Portanto, o sistema jurídico não pode ser indiferente a essas interpretações, sendo que vai de novo assimilá-las
dando-lhes de novo, uma resposta normativa. No entanto, ao contrário do que acontecia numa visão puramente
cibernética em que a intenção era uma de adaptação ao ambiente (o SJ deveria adaptar-se de uma forma covariante,
adaptando-se o mais possível ao ambiente), aqui ele tem a autonomia de responder a essas expectativas que estão a
ser formuladas através da interpretação dos efeitos sociais das decisões jurídicas. No fundo, constroem
determinadas expetativas em torno das decisões legislativas ou judiciais e o sistema jurídico como que vai de novo,
considerar essas expetativas, abrindo-se cognitivamente a elas e vai de novo convertê-las em expetativas
normativas ou vai desassociar expetativas normativas. Claro que o que aqui temos é uma espécie de contraponto
entre jogos de linguagem com códigos diferentes. No fundo, quando o direito vai absorver as interpretações que
possivelmente o sistema político ou económico tem de uma determinada lei, dos efeitos que essa lei produz, aí o
sistema jurídico se entende que deve reagir a essas interpretações, vai, por sua vez, submeter essas interpretações
ao seu próprio código, traduzindo-as na linguagem e nas exigências do próprio sistema jurídico e, portanto, aquilo
que ele está a fazer é aquilo que o Teubner diz, com caráter de pertinência, que o que estão aqui a fazer são
interpretações distintas com base em cada código, porque cada sistema vai interpretar as comunicações do outro a
partir dos seus próprios códigos e não dos códigos em que essas informações foram geradas - nós temos sempre um
pouco mecanismos de tradução, porque quando traduzo uma expressão de uma língua estrangeira eu vou traduzi-la
com os códigos da minha língua, o que automaticamente altera o conteúdo – por mais fiel que a tradução seja, não
deixa de ser uma traição porque envolve códigos que não são os seus e códigos linguísticos e formas de expressão
que não são as suas. Portanto, vai submeter formas estranhas às suas próprias formas.

Aqui aconteceria a mesma coisa: no fundo, o sistema jurídico iria ler as respostas que os sistemas económicos e
políticos teriam dado aos efeitos da sua própria comunicação, mas quando vai ler isso, vai lê-lo na sua própria
perspetiva de sistema jurídico, fazendo a tal interpretação produtiva. É dessa maneira que ele se vai apercebendo
das consequências que têm as suas decisões, mas sempre reivindicando a possibilidade de tratar a reação a essas
consequências sob o ponto de vista jurídico e, portanto, garantindo a autodiferenciação – não se trata, no fundo, de
ceder a essa interpretação dizendo que esta é única interpretação possível e que eu vou assumir essa interpretação.
Trata-se de traduzir essa interpretação no contexto do próprio sistema jurídico e lhe dar uma exigibilidade que é
jurídica. Assim, no fundo, eu estaria a desenvolver uma hipótese de incorporação – ele fala de um certo
inconsequencialismo limitado. Esta insistência tem a razão de ser que resulta de quando eu estou a falar de
programas finais no quadro da neomaterialização, o tipo de orientação é por os efeitos, sendo os efeitos sociais que
vão determinar todo o procedimento, sendo que aqui não: na verdade, os efeitos sociais vão ser lidos pelo próprio
sistema e o próprio sistema vai ter acesso às informações que resultam de leituras sobre esses mesmos efeitos –
não se trata de ser diretamente orientado por efeito, mas de dar atenção às informações que vão sendo
desenvolvidas como reação aos seus próprios efeitos.

Isto não é tao complicado quanto parece à primeira vista, sendo mais difícil de exprimir do que propriamente de
compreender porque, de facto, é uma ideia de que, atenção às consequências sim, mas de uma forma limitada e na
medida em que o próprio sistema jurídico impõe essa atenção às consequência s – não é , portanto, a pura
consideração dos efeitos sociais, políticos ou económicos, sendo é, realmente, uma leitura de segundo grau que o
sistema jurídico faz dessas outras leituras que o sistema político ou económico também estará em condições de
fazer.

Com efeito, depois desta incorporação, haveria também a possibilidade de o sistema jurídico intervir impondo
limites muito importantes aos outros sistemas, desenvolvendo aquilo que, de acordo com Teubner, seriam certas
contrainstituições. Realmente, essas contrainstituições seriam capazes de contrariar certas pretensões totalitárias
de outros sistemas envolvidos. Como por exemplo, como é que Teubner mantém uma referência à importância
dos direitos do Homem? Nós podíamos dizer que se ele defende uma conceção puramente procedimental dos
direitos do Homem, não estou a atribuir exigências materiais ou substantivas, só os estando a ver projetados
através de um discurso procedimental, estou a debilitá-los e a dar-lhes menor importâncias, sendo que os estou a
pensar procedimentalmente – consequências processuais desses direitos e não o conteúdo forte deles. Teubner
diz que não: os direitos do homem funcionam aqui como uma espécie de contrainstituição que o sistema jurídico
pode oferecer para limitar certas opções impostas pelo sistema político, quer dizer, o sistema político na sua
lógica de eficiência ou assumindo determinados programas ideológicos, não poderá nas suas funções nunca pôr
em causa esse património dos direitos do homem, não propriamente por razões substantivas, mas porque , no
fundo, essa representação funcional dos direito do Homem, seria, na verdade, a única que estaria em condições de
garantir que cada um de nós como sujeito não fosse vítima de discriminação impostas pela sua relação global com
todos os sistemas sociais. No fundo, esto é uma tentativa de desmaterializar o conteúdo dos direito do Homem,
preservando, no fundo, as suas aquisições pela via procedimental, pelo que o direito está a interferir, no fundo,
nas decisões do sistema político que têm a sua lógica - se se dissesse que têm a sua autodiferenciação poderia
levar, em nome de uma eficácia e de intenções ideológicas, ao sacrifício dos direitos do Homem - se se pensasse
em termos de pura lógica do sistema politico, o sistema jurídico tem que interferir com o sistema politico
oferecendo este tipo de contrainstituição que é, no fundo, traduzível em outros tantos esquemas procedimentais.

O mesmo aconteceria também com o sistema económico, como por exemplo, impondo determinado tipo de
cláusulas contratuais gerais, impedindo que, de facto, os negócios jurídicos estejam inteiramente submetidos à
lógica do mercado – estabelecem-se um conjunto de condições que estes negócios jurídicos têm que obedecer –
condições essas que são no fundo condições que são traduzidas procedimentalmente. Evidentemente, isto é muito
discutível, sendo uma tentativa de ver todo o direito procedimentalmente, preservando algumas coisas que, no
fundo, nós associamos ao universo do direito material.

Mais interessante do que isto, porque seria aqui que se poderia perceber a ideia de Teubner que o direito
reflexivo teria um contributo importante para o próprio equilíbrio social. No fundo, Teubner dá um exemplo de
que o direito deve ser ele próprio, uma garantia da policontextualidade social, ou seja, de um sistema social em
que todos os sistemas ou subsistemas envolvidos preservem à sua maneira, a sua autodiferenciação – o único
direito, que, nas regras que ele estabelece, que deverá contribuir para isso. É através de regra de procedimento
que, no fundo, encontram o seu modelo num exemplo muito simples, mas que seria: para pensarmos nessa
intervenção meramente a título processual do direito, Teubner pede-nos para imaginar a situação de uma
comissão de ética que, por exemplo, esteja inserida num grande hospital universitário. Essa comissão de ética,
terá com certeza, na sua composição, diversos representantes dos interesses que estão envolvidos num hospital
universitário – será constituída por membros que, no fundo, aparecem a representar esses interesses. Então,
teríamos naturalmente na comissão de ética, representantes do Estado, da Administração Hospitalar que tragam
uma perspetiva económica, de gestão ou do próprio hospital, dos médios, dos pacientes – uma representação
largada de todos os interesses envolvidos.

Além desses todos, estaria um jurista. O que este está lá a fazer? A tarefa do jurista seria garantir que a
discussão entre os outros participantes se desenvolva com base em regras de procedimentos adequadas – que
todos são ouvidos, que todos conseguem sem distorções fazer valer as suas posições e, portanto, o papel do jurista
ao vigiar a realização da execução dessas regras de procedimento, seria também garantir que nenhum dos
sistemas representados se impusesse ao outro arbitrariamente, ou seja, no fundo, o papel que o direito deveria
desempenhar na nossa policontextualidade social seria esse, o de se fortalecer com um sistema de procedimentos
que garanta que quando surjam problemas, não haja uma intervenção excessiva do sistema político sobre o
sistema económico, do sistema económico sobre o sistema politico ou sobre o sistema da educação, etc. No fundo,
o direto, à imagem da comissão de ética, ou seja, do papel que o jurista desempenha na comissão de ética, possui
uma interferência puramente procedimental, garantindo assim, de facto, um contributo imprescindível hoje,
tendo em conta que seria o único sistema que estaria em condições de garantir esse contributo para a
autodiferenciação dos próprios sistemas sociais.

Evidentemente que esta acentuação é indiscutível e que nos permite perceber melhor o que significa o próprio
direito reflexivo e porque é que há aqui uma pretensão de contribuir de uma forma decisiva para a
autodiferenciação dos diversos sistemas sociais.

Isto leva-nos, no fundo, a concluir toda esta primeira secção crítica macroscópica ao paradigma moderno-
iluminista. (conclusão da matéria)

Nós vimos no plano macroscópico, que quando estamos a falar de direitos, estamos a falar na perspetiva do
Estado e da sociedade, e vemos esse direito sobretudo como legislação, daí que a nossa preocupação tenha sido
em distinguir programas legislativos e, por isso mesmo temos como um dos temas fortes desta reflexão
macroscópica, o contraponto entre leis que são programas condicionais, finais, relacionais, através desta
referência ao direito reflexivo.

No entanto, alguns dos aspetos mais relevantes da crítica ao paradigma moderno-iluminista e que foram,
portanto, responsáveis pela ilusão deste paradigma e na situação em que nós nos encontramos no panorama pós-
paradigmático, uma parte muito importante dessas críticas que foi desenvolvida pelo paradigma moderno-
iluminista não é suscetível de ser incluída de uma forma imediata neste plano macroscópico, porque essa crítica é
uma crítica que foi, sobretudo dirigida ao modelo de aplicação do direito legitimado/consagrado no paradigma
moderno-iluminista, porque é um modelo sustentado na exigência forte, sendo o direito um sistema de normas
autossuficiente em abstrato, todo o direito está pré-determinado em abstrato (o modo de ser do direito, é um
modo de ser em abstrato e, portanto, a aplicação seria exatamente isso – uma projeção na realidade de acordo
com as regras da lógica de normas – teria o seu grande modelo no silogismo subsuntivo – seria
fundamentalmente, uma aplicação que não acrescentaria nada de juridicamente relevante ou que já estava pré-
determinado – o direito era um sistema completo de significações (o direito existe na normas -platonismo de
regras) e, depois, a projeção na realidade é uma mera aplicação lógico-dedutiva ! grande modelo do positivismo-
normativista do séc. XIX.

Evidentemente aqui nós estamos num outro plano, que se poderá dizer microscópico, porque se trata de
compreender como é que o direito responde à controvérsia, aos casos concretos na sua especificidade.
Exatamente, a partir daqui vai desenvolver-se todo um conjunto de reflexões críticas, mostrando de uma forma
clara que, não só não deve ser assim, como também mesmo no discurso do século XIX se defendia que era assim,
na realidade também não era assim – os juízes não estavam a decidir apenas seguindo as regras da lógica formal,
visto que se seguissem não chegariam a decisão nenhuma. No fundo, esta crítica microscópica, começa
precisamente a construir-se a partir da experiência da controvérsia – claro que associada á perspetiva da
controvérsia está aqui associada também a perspetiva do homem, do sujeito e o modo como devemos entender (o
que é que é a pessoalidade juridicamente relevante) – problemas completamente diferentes daqueles que nós
vimos refletidos no plano macroscópico na estrutura do Estado ou em relação ao pape da legislação. Agora, vamos
atender ao direito como realização em concreto no plano da jurisdição bem como às exigências de repensar
doutra maneira o sistema jurídico e até a questão das fontes para poder perceber doutra maneira o problema da
realização do direito em concreto.

Perspetiva microscópica

Depois de termos concluído na última aula, o nosso percurso longo pelo plano macroscópico – pelo plano em que
a crítica ao paradigma moderno-iluminista nos aparece sobretudo perspetivada pelos problemas da relação entre
a sociedade e o Estado, dizendo respeito às questões da legalidade – vamos agora passar para um outro plano
completamente diferente que também será, na verdade, um plano em que se irá desenvolver uma crítica ao
paradigma moderno-iluminista, e um plano em que, como tínhamos desde o início apontado, se trata de partir de
uma outra perspetiva, que já não é a perspetiva macroscópica da sociedade e do Estado, mas da perspetiva
microscópica associada, por um lado, ao homem (à conceção do homem-sujeito) que é, sobretudo, a perspetiva
desse sujeito-pessoa situado numa controvérsia, ou seja, situado num caso real ou virtual, situado na história e na
prática, por referência a um problema que tem relevância jurídica. Não é uma qualquer contextualização do
homem-sujeito, mas é uma contextualização do homem-sujeito referida à controvérsia prática juridicamente
relevante e, portanto, referida diretamente ao caso. Portanto, a prática que se dirá, por um lado, uma prática
pessoalmente titulada, mas também uma prática historicamente concreta, mas com uma estrutura que nos remete
já para um problema, ou para um tipo de problema que se dirá jurídico, com a sua estrutura de bilateralidade e
com a referência inevitável a uma dimensão de comparação – de intervenção de um terceiro que é também
manifestação de um sistema jurídico vigente.

No fundo, esta será a perspetiva em que, a partir de agora, com resultados muitos diferentes daquela esboçada no
plano macroscópico, será a perspetiva microscópica.

O que é que nós podemos dizer, em termos gerais, é que em contraste com o que foi experimentado no plano
macroscópico, vamos, agora, no plano microscópico, testemunhar uma certa recuperação de uma certa
intencionalidade material ou de um certo tipo de intencionalidade material. Nós concluímos que o percurso no
plano microscópio levou-nos a considerar uma espécie de esvaziamento, ou seja, vimos que o próprio paradigma
culminava na referência a um direito forma, que era abordado por um pensamento jurídico que, por sua vez,
queria ser formalista (pensamento jurídico normativista que também queria ser formalista); vimos também que,
num plano macroscópico, a partir das experiências do Estado Providência, se introduziu um ciclo em que
realmente se trata de reconhecer a integralidade de uma materialização, mas vimos que essa materialização (do
tal ciclo da neomaterialização), se traduziu no plano macroscópico, sobretudo numa acentuação dos interesses,
das expetativas, das necessidades sociais e de uma certa dinâmica de efeitos que se procurava que fossem
atingidos.

Portanto, o que ela se traduziu foi, fundamentalmente, no reconhecimento de uma porta para a
instrumentalização do direito – o direito passará a ser usado (sobretudo o direito-lei – prescrito legislativamente
– direito que nos aparece nos programas finais) como instrumento ao serviço das necessidades sociais.
Realmente, poder-se-á dizer que há, por uma lado, uma recuperação de uma projeção do direito na sociedade em
termos materiais (há uma preocupação com os fins, uma preocupação com efeitos reais), mas há também
simultaneamente uma perda clara, ou, pelo menos, um prolongamento claro (não supera o que vinha de trás) de
uma identidade cultural/axiológica do direito - nós deixamos de associar a finalidades específicas, ou a favores
específicos ou a uma identidade autónoma, para passar a ver o direito como instrumento. Deste modo, o que
poderia ser, pelo menos, uma correção do formalismo anterior, acaba aqui por se traduzir na persistência desse
esvaziamento, porque o direito admite ser um relativo social compatível com qualquer conteúdo, sendo que os
conteúdos serão, no fundo, determinados pelas necessidades sociais e pelas decisões sobre essas necessidades
sociais - o direito, à partida, não tem uma identidade material/substantiva, não tendo exigências próprias, nem
sentidos que sejam específicos.

Portanto, este ciclo da neomaterialização no plano macroscópico, apesar de projetar o direito na realidade,
corrigindo, de uma forma drástica, uma das principais dificuldades do normativismo que inspirava o paradigma
moderno-iluminista, que era pensar, no fundo, pensar o direito isolado, como um sistema de normas
autossubsistente que estava isolado da realidade. No fundo, esta neomaterialização permitiu realmente corrigir
esse isolamento, mas pagando o preço de uma funcionalização/institucionalização do direito, sendo que o direito
regressa à realidade social, mas perdendo a sua identidade e a sua autonomia, convertendo-se num instrumento
flexível, o que não é exatamente assim logo no início da institucionalização do Estado Providência, mas que não
deixa de estar presente como uma porta que se vai abrir para radicalizações que serão precisamente aquelas onde
veremos melhor na segunda parte do curso, que correspondem aos funcionalismos materiais.

É verdade que, nas últimas aulas, vimos que a própria crise do Estado Social ou alguns sinais de crise, permitiram
desenvolver perspetivas pós-instrumentais, em que essa funcionalização é questionada, mas essas perspetivas,
apesar de acentuarem, como vimos nas últimas aulas, a importância que o direito seja um sistema social
autodiferenciado (completamente diferente do sistema politico, económico, religioso, cultural, etc.) em termos
autorreferenciais e autopoiéticos, acaba por fazer concentrar também essa autodiferenciação num plano formal
ou procedimental, não tendo a haver com conteúdos, mas com regras de tomada de decisão e com a persistência
de algumas formas que são recuperadas da linha normativista típica do séc. XIX. Deste modo, apesar de haver uma
aposta, de novo na autonomia do direito (uma autonomia com autodiferenciação), o esvaziamento é um
esvaziamento que se mantém e até que é acentuado, tendo em conta que para estas perspetivas autopoiéticas
tudo o que é material é contingente/variável, sendo que tudo o que persiste são códigos e programas que
permitem garantir a autodiferenciação do direito – aquele código de valoração positiva ou negativa que estivemos
a ver (valorar positivamente o direito ou negativamente), sendo que isso significa que, realmente, os conteúdos
substantivos são variáveis, podendo ser quaisquer uns desde que o sistema preserve a sua autorreferência e a sua
criação autónoma, pelo que estes são conteúdos contingentes.

Sendo assim, no plano microscópico, apesar de termos visto que foram sempre introduzidas diferentes
perspetivas e composições da lei (a lei como puro programa condicional no programa moderno-iluminista, a lei
como programa final no ciclo da neomaterialização e a lei como programa relacional no ciclo pós-instrumental
como um mero programa de procedimentos associados, especialmente á proposta de Teubner), agora, o que
acontece, é que persiste esse esvaziamento.

No plano microscópico, há com certeza tentativas que nos aproximam dos modelos de materialização semelhantes
aos dos Estado Social, mas há outras recuperações de uma intencionalidade normativa racional, que já não tem
nada a ver com essa programação macroscópica e que, essas sim, nos vão restituir uma distinção que tinha sido
posta em causa pelo paradigma moderno-iluminista e que é a distinção entre lei e direito. Na verdade, o
paradigma moderno-iluminista, tinha, ao partir de uma certa compreensão da lei como norma geral, abstrata e
formal e como grande critério de universalidade racional (como se vê em Rousseau e em Kant), sobretudo no seu
modelo racionalista e na sua vertente de influência francesa, tinha reforçado essa identificação entre a
juridicidade e a legalidade (isto não terá acontecido exatamente assim na Alemanha porque a Escola Histórica
continuou a dar importância ao costume, ainda que não tenha deixado de apostar no normativismo e de ver o
direito como um sistema de normas autossubsistentes em abstrato, sendo que, por isso, os dois positivismos
exegético e científico abaram por convergir claramente num normativismo – o positivismo científico não é
integralmente legalista).

Portanto, o que vai acontecer é que nós, agora, vamos assistir, em diferentes momentos e níveis com diferentes
consequências, desde o final do séc. XIX até hoje, a várias manifestações, algumas delas com o caráter
verdadeiramente de propostas alternativas, que questionam o paradigma moderno-iluminista e que contribuem
decisivamente para a sua superação. Vamos esquecer o plano macroscópico e vamos ver como é que é a esse nível
microscópico se recuperou o que o outro plano não conseguiu recuperar, que é uma intencionalidade normativa
material, sendo que essa foi fundamentalmente recuperada a partir da distinção entre direito e lei, entre ius e lex
(matéria de distinção de vem de direito romano que afirmava que ius era muito mais vasto que a lex, sendo que
esta era uma manifestação do ius). Na verdade, o que vai acontecer é que, a partir do séc. XIX, desenvolvendo-se
todo este percurso em frentes muito distintas até hoje, que se vai recuperar esta distinção entre o direito e a lei.

Vamos procurar aqui distinguir algumas coisas, não com uma preocupação propriamente cronológica, sendo que
não vamos reconstituir toda essa superação, mas vamos organizar os sinais crise e que manifestam já essa
exigência de superação, distinguindo vários níveis (páginas 54 e seguintes do problema atual do direito – neste
texto encontram-se os sinais sistematizados, pelo que valerá a pena respeitar essa sistematização, embora dando
algumas indicações relevantes exteriores).

Poderemos dizer que um dos planos em que o paradigma moderno-iluminista começou por ser questionado, já
nas ultimas décadas do século XIX (no plano microscópico as coisas começaram a manifestar-se mais cedo), foi o
primeiro grande momento da crise, ou seja, o momento do questionamento do Estado Demoliberal, aparecendo
com a emergência do Estado Social (já depois da 2ª Guerra Mundial), pelo que já estamos praticamente quase na
segunda metade do séc. XX e foi aí que, duma forma perfeitamente autónoma se manifestou a crise no plano
macroscópico, subsistuindo o tipo de Estado anterior por um novo tipo de Estado. A crise, no plano microscópico,
começou a manifestar-se de uma forma menos visível, mas muito mais cedo, ainda em pleno séc. XIX e começou a
fazê-lo a um nível que se pode dizer metodológico, no sentido de ter a ver com a reflexão sobre o método da
realização em concreto da realização do direito, tendo a ver com o método do modos operandi do juiz – na
verdade, quando se fala numa reflexão metodológica, trata-se de pensar a realização em concreto do direito, ou
seja, realização jurisdicional do direito.

Portanto, não se pode ter uma manifestação mais clara do plano microscópio, sendo que o juiz pode e deve
responder às controvérsias práticas. Como é que, no fundo, vai tratar dos materiais e experimentar os materiais
jurídicos para encontrar neles uma resposta para os problemas concretos que são juridicamente relevantes. De
facto, o paradigma moderno-iluminista através do seu método jurídico do séc. XIX, tinha definido um modelo que
era o paradigma da aplicação, consistindo na ideia de que aa normas jurídicas deviam ser tratadas como
premissas para raciocínios que seriam, fundamentalmente, de tipo formal e lógico-dedutivo (os tais silogismos
subsuntivos). O grande modelo metódico do paradigma moderno-iluminista, influenciado também por dimensões
políticas que têm a ver com a separação dos poderes e com a ideia de que o juiz só seria plenamente independente
, nomeadamente do poder executivo, se obedecesse à vontade geral (está, em Rousseau aparecia como
fundamento da lei, sendo que esta era uma expressão da vontade geral por ser universalmente racional, geral,
abstrata e formal) - se o juiz deve ser aquele que, em concreto, pronuncia perante os casos, resolvendo esses
casos, a voz da própria vontade geral, entendia-se que o modo de cumprir essa promessa, à luz de uma perspetiva
normativista seria usar as regras da lógica formal, ou seja, ser um técnico de deduções, uma vez que, estando a
defender-se uma conceção normativista do direito, era como se disséssemos que o direito está definido
plenamente em abstrato – o direito existe nas normas. Todas as significações jurídicas importantes estão contidas
nas normas no seu plano de exigibilidade em abstrato – se é assim, é possível conhecer o direito plenamente e em
abstrato e, inclusivamente, a própria tarefa de interpretação foi concebida no séc. XIX no direito de menores, como
se fosse uma interpretarão em abstrato, isto é, uma interpretação que não fazia progredir a perspetiva do caso, em
que o próprio interprete devia abstrair-se do caso, mesmo que ele fosse juiz e tivesse que resolver um caso, no
momento em que estava a interpretar a norma que tinha selecionado, ele tinha que esclarecer esse caso para
respeitar a tal universalidade da norma nos seus diversos aspetos (universalidade quanto aos sujeitos, quanto aos
problemas).

Assim, havia realmente a ideia de que o problema metodológico propriamente dito era um problema que vinha
depois: em primeiro, eu poderia conhecer cientificamente o direito (conhecer o direito seria-o conhecer como um
sistema de normas, não havendo nenhuma intervenção de casos) - o próprio problema que será um dos
problemas do modus operandi, ou seja, o problema da interpretação, que deveria ser também ele tratado num
total isolamento em abstrato – eu seria capaz de interpretar uma norma sem pensar em qualquer problema (mais
do que isso, eu deveria abstrair-me quando estava preocupado, quando estava a atribuir à norma um sentido). De
facto, havia aqui o pressuposto de que o direito estava todo ele dado em abstrato e que se eu acrescentasse
qualquer ponderação prático-concreto, já estaria a “contaminar” /perturbar esse direito e a produzir um elemento
arbitrário que poderia ser perigoso na realização em concreto, sendo que esta iria ser a projeção pura e sempres
destes conteúdos. Por isso é que, desde cedo, pareceu ao pensamento moderno que o recurso que tínhamos aqui
que mobilizar seria a lógica formal, uma vez que esta era a dedução e aquela que, de acordo com regras
absolutamente necessárias, sem permitir que existam variações que tenham a ver com a personalidade do sujeito
e com as diferenças do sujeito – há todo um conjunto de regras necessárias que se forem corretamente
mobilizadas, são exatamente as mesmas em qualquer circunstância - através do uso dessas regras, eu seria capaz
de extrair do direito tal como estava pré-determinado em abstrato, tudo aquilo que precisaria para resolver os
casos sem acrescentar muito que fosse juridicamente relevante, porque se acrescentasse alguma cosa eu estaria,
desde logo, a comprometer a possibilidade de independência do poder judicial e da sua objetividade, sendo que
estaria a abrir portas a um perigoso arbítrio dos próprios juízes – havia claramente esta acentuação que
culminava no tal paradigma de aplicação.

No fundo, a norma legal já cientificamente explorada na perspetiva dos conceitos e já devidamente interpretada
em abstrato, ou seja, a norma já com um sentido fixado que tinha sido atribuído pela interpretação vai funcionar
como a premissa maior de um silogismo. Portanto, a própria norma é a premissa maior e, por isso mesmo, a
premissa menor pode ser, de facto, a tal subsunção – premissa menor é perguntar se as características que estão
previstas na hipótese da norma (qualidades ou caraterísticas) ao identificar um tipo de situação/problema estão
ou não estão, de facto, presentes nos factos que eu tenho enquanto julgador considerado – os factos já aprovados
aparecem-me a constituir o problema que eu tenho de considerar. O que se pergunta é se as características que
estão previstas na hipótese estão ou não presentes nos factos, pelo que se estiverem, está-se em condições que
dizer que, então, pode-se subsumir estes factos na hipótese da norma, ou seja, estes factos concretos e empíricos,
se me são apresentados num certo quadro institucional como já comprovados, estes factos são exemplares e
manifestações dos tipos de situações que a norma prevê em abstrato. Assim, se eu pudesse dizer isto, eu
construiria a premissa menor, que seria aquela que me permitiria dizer que os factos em causa são uma espécie do
género que a hipótese da norma prevê – no fundo, a ideia da subsunção é dizer isto mesmo: os factos são
subsumíveis na hipótese da norma. Se esses factos estão contidos na hipótese, então eu posso dar a estes factos
uma resposta que a própria norma dá em abstratos, ou seja, eu posso, no fundo, projetar naqueles factos a
estatuição que a norma determina ! No seu núcleo, é este o entendimento do paradigma moderno-iluminista que
presidia à realização do direito em concreto – o modus operandi do juiz iria ser diferente: interpretar as normas
de direito em abstrato e, depois de determinado o sentido da norma, tratar a norma como um premissa maior de
um silogismo subsuntivo.

O que é que vai acontecer, recordando que é este o paradigma, no final do século XIX? Vão começar a surgir
algumas vozes discordantes que apostam, em termos convergentes ou alternativos, em 2 possibilidades:

1. A prática jurídica de resolução de controvérsias não é uma prática que se possa desenvolver em
raciocínios lógico-dedutivos e formais. Mesmo que por motivos de ordem cultural ou politica, se entendesse-se
que seria desejável ser assim, isto não acontece assim assim, uma vez que se está perante uma prática humana
e perante problemas da vida muito complexos, pelo que não haverá juiz algum que seja capaz de resolver esses
problemas usando apenas as regras da lógica formal - todos os juízes, mais ou menos, acabam por mobilizar
ponderações práticas, ou seja, juízos voltados para teleologias e planos de fins, mesmo que o ocultem atrás de
um esquema lógico-formal, sendo que nenhum juiz seria capaz de chegar a uma verdadeira solução de um
problema através da lógica formal. Portanto, quando muito, este silogismo pode ser usado, mas à posteriori –
depois do juiz obter a decisão pode-se sempre dizer que o juiz chegou à decisão partindo desta norma,
subsumindo os factos nesta norma e extraindo desta norma esta visão como base da sua solução. No entanto,
aquilo que é verdadeiramente importante no processo decisório do direito não está nesta exposição do
silogismo, visto que o que é, desde logo, relevante, não é o entendimento das premissas, mas sim a obtenção
delas.

Como é que o juiz chegou àquela norma? Na resposta, quando se estava a perguntar as caraterísticas das
hipóteses que estão previstas nos factos será que ele conseguia responder a isto sem avaliar consequências
práticas e sem avaliar a projeção de intenções materiais? Essa observação de caraterísticas não é uma
observação neutra, puramente cognitiva, mas algo que exige do julgador uma atenção muito específica á
realidade e ás diferentes dimensões dessa realidade, exigindo sobretudo uma certa valoração, tendo que
ponderar aquilo que é mais importante ou menos – terá que fazer escolhas que, no fundo, estão todas
ocultadas. Portanto, aquilo que o método pretende oferecer como garantia da objetividade é, afinal, um
engano, porque não oferece objetividade nenhuma, oferecendo apenas uma máscara/capa que o juiz pode
sempre invocar para se proteger. Na verdade, aquilo que é mais importante é o percurso que o juiz teve de
desenvolver para obter estas premissas, para chegar àquela norma, para chegar á conclusão que os factos se
integram na hipótese, para, assim, construir a solução a partir da estatuição. Tudo isto era desconsiderado pelo
método jurídico do séc. XIX, pelo que havia aqui algo de paradoxal, sendo que oferecia um esquema muito
rigoroso mas esse esquema não ajudava o julgador a resolver os problemas, sendo que pura e simplesmente
aparecia como uma máscara que o julgador podia apresentar no final para dizer que seguiu este caminho e
este é um caminho racional em que foi plenamente objetivo – na realidade não tinha sido, porque senão não
teria nunca conseguido responder às questões abertas pelas premissas. A ideia era um bocadinho esta: mesmo
que sob o ponto de vista político, se desejasse que o método jurídico se cumprisse assim e que todos os
julgadores fossem técnicos de subsunções, isso não seria possível, visto que a prática de resolução dos casos, é
uma prática que envolve decisões e valorações, pelo que essas têm de ser cumpridas com base em outras
intenções e não aquelas que correspondem ao tratamento da norma como uma mera premissa.

2. Por outro lado, mesmo que fosse possível, não seria desejável, porque, na verdade, a tarefa do julgador
para ser verdadeiramente aquele que traz o direito aos casos concretos, tem que ser outra e que tem que estar
atenta a toda uma outra série de dimensões que também são importantes para o direito - o direito não é
apenas constituído por normas ou enunciados linguísticos que sirvam como premissas, sendo que tem todo
um conjunto de intenções práticas de realização que têm de estar presentes quando os casos vão ser tratados.
Este segundo lado, que nos diz que é desejável outro acordo sob o ponto de vista metodológico, é aquele
que é mais importante, porque, na verdade, abriu as portas para alternativas sob o ponto de vista metódico. O
primeiro não oferece propriamente alternativas, uma vez que diz que é assim e só pode ser assim. Contudo, na
viragem do séc. XIX para o séc. XX, tanto na Europa Ocidental como nos EUA, começaram a questionar estes
modelos metódicos procurando oferecer, na verdade, alternativas, sendo alguma delas pensadas de acordo
com outros modelos da racionalidade que já não a racionalidade lógico-dedutiva. Poderíamos aqui explorar
vários desses movimentos, mas não o faremos, apenas relembrando alguns que já conhecemos. Na europa
continental, o grande responsável pela viragem é um grande autor que também tinha estado ligado ao
positivismo concetual e à Escola do positivismo concetual herdeira da Escola Histórica, mas que, numa fase
final, da sua produção e da sua obra começa a insistir muito na importância dos fins e dos objetivos - o direito
não deve ser um modelo de fins como pretendia a proposta formalista dominante do paradigma moderno-
iluminista. O direito deve ele próprio estar comprometido com finalidades que têm de ser práticas e sociais,
sendo que o professor se está a referir a Ihering e á segunda etapa da evolução do pensamento de Ihering que
escreveu uma obra com grande impacto, tanto no positivo como negativo – “O fim do direito”. Esta proposta de
Ihering que foi, em grande parte, também assumida nos EUA, por um grande jurista também ligado ao
pragmatismo que é Hobbes – no contexto europeu fala-se sempre de Ihering, mas, na verdade, se formos a
considerar os vários desenvolvimentos das escolas e dos movimentos no contexto dos EUA, vemos que todos
eles, de alguma forma (os que superam o formalismo), reivindicam a herança de Hobbes, sendo este uma
espécie de correspondente no contexto norte-americano de Ihering – claro que os pressupostos são diferentes
e as leituras que fazem são diferentes, mas têm em comum essa ideia de que o direito é uma prática e uma
prática ao serviço de finalidades, pelo que não faz sentido continuarem a insistir que o próprio direito deve ser
tratado e deve concebido como uma forma alheia a fins.
Isto tem uma influencia muito grande no método, porque, na teoria da interpretação tradicional dos séc.
XIX, o elemento teleológico tinha uma importância muito reduzida, quando não era mesmo diretamente
rejeitado – seria impossível utilizar o elemento teleológico para determinar o sentido da norma e, portanto, o
que vai acontecer é que também no plano da interpretação, em alternativa a esse método jurídico do séc. XIX,
se começam a desenvolver tentativas de pensar a interpretação teleologicamente – dar, portanto, uma grande
relevância a elementos que já não são apenas elementos textuais, tendo em conta que os elementos histórico,
sistemático e gramatical (elementos intratextuais) eram todos eles tratados como elementos textuais, sendo
que agora trata-se de dizer que não se vai dar um grande relevo aos elementos extratextuais, sendo que estes
têm a haver com a finalidade prática da norma e com os interesses que essa norma procurou proteger.
Temos aqui uma valorização do elemento teleológico que vai dar origem, tanto na Europa Continental
como nos EUA, a novos movimentos:
# Na europa continental, temos o movimento do direito livre, a livre investigação científica do direito e,
sobretudo a jurisprudência dos interesses, sendo um dos grandes movimentos de passagem do séc.
XIX para o séc. XX, que questionou de forma completamente inovadora o método jurídico dos séc. XIX.
# Se víssemos do outro lado do atlântico, veríamos também as jurisprudências sociológicas e o realismo
norte-americano.

Tudo isso são movimentos que apontam para essa importância da teleologia, ao ponto de podermos falar
de uma verdadeira viragem de objeto. Trata-se de questionar num plano microscópico o que é que o
paradigma moderno-iluminista defendia relativamente a este problema da realização do direito.

De facto, há aqui um ponto importante a acentuar, uma vez que houve aqui uma viragem para os fins e
uma mobilização muito grande do elemento teleológico, mas será preciso acrescentar que à medida que dá
importância à interpretação teleológica, também se começa a questionar a distinção entre interpretação e
aplicação. No fundo, a ideia de que a interpretação é uma atividade prévia que pode ser cumprida em abstrato
e que depois fica como que fechada (compartimento que encerra a atividade de interpretação em abstrato) e
só depois de acabar a tarefa é que se tem o problema da aplicação.

Isto começa a ser questionado, visto que, no fundo, passa a defender-se uma ideia diferente de que o juiz
selecionou uma norma, mas quando a vai interpretar, aquilo que ele está a fazer é a procurar encontrar
naquela norma o critério para aquele caso que ele tem que resolver. Portanto, a interpretação que ele vai fazer
da norma não é uma interpretação que se cumpra independentemente do caso – a perspetiva que o vai
conduzir é a perspetiva do próprio caso – no fundo, o que ele está a fazer é experimentar aquela norma para
ver se consegue extrair dela uma solução que seja capaz de assimilar a relevância do seu caso. Deste modo, a
distinção entre uma interpretação em abstrato e uma aplicação é uma distinção artificial, visto que há aqui
uma continuidade, em que o juiz experimenta a norma para resolver o caso, dirigido à norma perguntas
formuladas na perspetiva do caso que ele tem que resolver. Isto significa que até chegar à resposta definitiva
para o caso, o juiz está permanentemente a interpretar a norma num certo contexto de realização daquele caso
(não estando a interpretar em abstrato). Há aqui uma forte crítica ao paradigma moderno-iluminista que
apostava na distinção entre interpretação e aplicação, como algo de absolutamente inquestionável –
interpretar era interpretar em abstrato, sendo que senão os elementos do caso concreto contaminavam o
direito, o que seria um perigo para a universalidade racional do direito -, pelo que, só depois de terminada a
tarefa, é que eu poderia aplicar aquela norma, visto que só aí é que eu estaria em condições de a tratar como
premissa.

Porque é que isto é tão importante para o método jurídico do séc. XIX? Se eu pudesse dizer que a
interpretação é a atividade prévia, mas que quando chego ao fim da interpretação ainda estou com dúvidas,
pelo que a norma pode ser interpretada desta maneira ou daquela – se admitisse isto na linha do séc. XIX,
quando é que se chegava ao fim da interpretação? Se eu não chegasse a um resultado absolutamente
concludente sobre o sentido desta norma em abstrato, eu estaria autorizado a construir vários silogismos, uma
vez que, no fundo, com uma das minhas interpretações da norma ia construir uma premissa, com outra dessas
interpretações construía outra premissa e, portanto, o resultado final tinha de ser diferente, o que era algo de
insustentável para a ideia de que o juiz tinha de ser plenamente objetivo e tinha de ser a boca que pronunciava
as palavras da lei. Deste modo, tudo o que era relevante tinha que ser resolvido num plano de abstrato, em ide
de interpretação e, só depois, é que começava a aplicação.

Agora, nós temos uma acentuação de toda a interpretação, que deve ser resolvida na perspetiva do caso
concreto – eu estou a interpretar aquela norma para resolver um caso (a questão que se coloca é relativa ao
modus operando do juiz). Daí que a jurisprudência dos interesses tenha ido muito longe, antecipando
acontecimentos que só se vieram a verificar depois, ao admitir que em certas situações limite, o juiz esteja
autorizado a corrigir a norma e a interpretar corretivamente a norma, ou seja, que esteja autorizado a atribuir
á norma um sentido que será um sentido incompatível com o elemento gramatical – quando estou a
interpretar corretivamente, eu estou a atribuir à norma um sentido que o elemento gramatical se se
considerasse só por si, rejeitaria. Estou, no fundo, a atribuir esse sentido para preservar em pleno o sentido
teleológico – quando eu tenho um conflito insanável entre o elemento gramatical e o elemento teleológico,
desde que eu possa mostrar que conflito é esse que resulta da atipicidade do caso, eu vou ser capaz de poder
atribuir à norma um sentido que não tenha na letra qualquer correspondência, para respeitar o elemento
teleológico.

Desta forma, está-se já muito longe, embora estejamos no início do séc. XX, do modelo do normativismo-
legalista, o que não quer dizer que não continuassem muitos contemporâneos a defender o positivismo do séc.
XIX.

Portanto, por uma lado, a importância da perspetiva que o caso passa a ter (não sendo apenas um
elemento que tenha de considerar quando esteja a construir ou obter a premissa menor) – o caso concreto a
resolver vai ser uma verdadeira perspetiva metodológica, fornecendo uma espécie de prius para eu poder
desenvolver todo o processo metodológico, sendo que o juiz quando está a ultimar os materiais jurídicos para
responder ao caso, ele vai fazê-lo partindo do caso – toda interpretação se desenvolve em concreto, pelo que
não há ,e rigor, uma primeira interpretação em abstrato e depois aplicação – há toda um exercício de
experimentação da norma que é desenvolvido em concreto.

Por outro lado, uma outra nota importante é perceber que esta viragem para os fins, que foi um dos
grandes impulsos da crítica ao paradigma moderno-iluminista - não só o direito era entendido como um
direito formal, como o próprio pensamento jurídico e a ciência analítica de normas de direito tinha de ser
formal – agora temos uma viragem teleológica, sendo que o direito deve estar ao serviço da vida e entende-se
que o pensamento jurídico, nomeadamente, ao nível da interpretação teleológica, está preocupado com a
reconstituição dos fins -, mas é preciso ver que este teologismo e esta viragem para os fins, não é unívoca, ou
seja, não significa sempre a mesma coisa. É preciso estabelecer aqui uma distinção:
# Há certos autores que apostam num teologismo de puros fins e há outras vozes/autores (que se
começam a desenvolver mais tarde mas que passam a ter uma grande influência também) que
discordam destes, porque, apesar de entenderem que o teologismo deve ser um teologismo de fins,
para além dos fins propriamente disto (que estão associados às necessidades subjetivas), temos de
considerar valores, sendo que, realmente, uma referência aos valores é diferente de uma referência
aos fins, pelo que enquanto se refere a fins, está-se sempre a referir a necessidades subjetivas a
apetências, quase num sentido económico e ao problema que resulta de nós termos muitas
necessidades e os recursos serem escassos, não sendo suficientes para satisfazerem em pleno as
nossas necessidades. Em relação aos valores, estes são, na verdade, referências, sentidos, exigências
ou aspirações que são partilhadas pelas pessoas em comunidade.
# Isto significa que há diversas correntes metodológicas que apostaram muito mais no núcleo dos fins e
houve a partir de um determinado momento do séc. XX no pensamento metodológico, a consciência
de que era preciso introduzir aqui algumas correções e essas passavam pela distinção entre o plano
dos fins e dos interesses, por um lado, e plano dos valores, por outro lado – quando se diz valores
também se refere aos princípios, uma vez que, na verdade, os princípios serão as expressões
normativas dos valores. Portanto, no fundo, não basta atender aos interesses e à organização dos
interesses, sendo preciso que o direito tenha a ver com valores e princípios, e que esses princípios, já
nos ajudam só por si a hierarquizar os interesses – os interesses não são todos equivalente, nem
todos iguais, sendo suscetíveis de ser procurados em termos diferentes – para valorar os interesses
eu vou precisar de um outro plano/patamar que é oferecido por valores e por princípios.

Assim, desenvolvem-se 2 tendências no plano da metodologia jurídica:

o Uma delas fica confinada à ideia pragmática que o que importa são os fins e os interesses;
o E outra que insiste que, para além dos fins e dos interesses, eu tenho de considerar também
valores e, portanto, os valores vão ter que entrar em dialética com os fins e com os interesses,
sendo certo que os fins e os interesses estão ligados a uma perspetiva puramente societária, os
valores e os princípios, com a sua carga axiológica, já nos remetem para um certo plano de
experiência comunitária.

Esta distinção é relevante, mas se admitirmos essa dualização (fins e valores) percebemos que a
atitude da relação com o outro sujeito é diferente se a partir de uma perspetiva dos fins ou se partir já
para uma perspetiva em que exijo que esses fins e interesses entrem, por sua vez, em dialética com os
valores e sejam submetidos á perspetiva destes. A diferença está nisto: quando penso nos fins e
interesses digo que a sociedade é constituída por muitos sujeitos, sendo que alguns deles podem até
ser mesmo grupos (sujeitos coletivos), e todos esses sujeitos têm necessidades que têm que ser
satisfeitas. Deste modo, estou a pensar nos fins como a projeção destas necessidades – estou a
procurar produzir um efeito na realidade social que se traduza na satisfação da respetiva
necessidade.

Ora, em toda a experiencia de vida em comum, eu confronto-me com um gravíssimo problema que é
de: se o meu horizonte é constituído por fins e interesses, não existindo outro, eu tenho à partida que
dizer estes fins são tos equivalentes. Mas, a verdade é que estes fins não podem ser, eles todos
satisfeitos, visto que sendo os recursos escassos não há na realidade social meios para satisfazer estas
necessidades todas e para as satisfazer no grau que porventura aquele sujeito desejaria – nós somos
muitos, temos muitas necessidades e queremos satisfazê-las, mas não temos recursos para as
satisfazer.

Desta forma, vai ter que haver aqui decisões que se pensam, sobretudo no quadro das sociedades
plurais, ou de pluralismo político, sendo que as decisões têm que ser decisões legislativas, na maior
parte, que no fundo, estabeleçam prioridades quanto às necessidades que têm de ser satisfeitas, etc.

No entanto, se tivermos só esse horizonte, há aqui, no nosso tratamento do outro sujeito, um


momento importante a atender e que depois se pode refletir nas soluções: quando eu parto de uma
perspetiva puramente de interesses (a lógica desta é satisfazer as necessidades) , o outro sujeito só
pode ser visto de 2 maneiras: ou é ele próprio um instrumento para a satisfação das minhas
necessidades (desde logo, ao nível da divisão do trabalho), sendo uma instrumentalização do outro.
No entanto, ao mesmo também, há um outro fator importante que é que esse outro sujeito é visto
como um obstáculo, visto que, de facto, se o outro não existisse, eu teria com certeza mais recursos
para satisfazer as minhas necessidades.

Assim, se a minha perspetiva for uma perspetiva exclusivamente centrada nos seus interesses, o
outro ou é um instrumento ou é um obstáculo. Se, pelo contrário, eu partir para uma perspetiva de
valores, como os valores estão partilhados pelos vários sujeitos, os valores já não os dividem como os
interesses, tendo em conta que estes dividem-nos, uma vez que cada um de nós quer potenciar a
satisfação dos seus próprios interesses. Os valores são, realmente, visões do mundo, sentidos,
exigências e aspirações que são partilhadas por várias pessoas, nas quais estas convergem e que,
portanto, têm uma força e um poder – os valores integram-nos, enquanto que os fins nos dividem.

Desta forma, pode-se dizer que se se reconhece a importância a um princípio da igualdade ou a um


princípio da proibição do excesso, essas exigências não são exigências que nos dividam e que nos
sujeitam a uma situação de escassez, sendo que são antes, sentidos prático-culturais que partilhamos
por sermos membros de uma certa comunidade, o que significa que, quando eu estou a considerar
esses valores e esses princípios, o outro sujeito aparece sempre como um interlocutor, sendo alguém
que partilha comigo esse modo de compreender a vida e o mundo - na verdade, esse outro aparece
claramente aqui como um sujeito que estabelece uma comunicação/diálogo comigo (situa-se num
plano de igualdas, não sendo nem um instrumento nem um obstáculo), sendo um participante na
comunidade que reconhece nessa determinados valores. Portanto, isto é só para esclarecer que, falar
na viragem para os fins, pode não significar sempre a mesma coisa, uma vez que eu posso apostar na
viragem para os fins, assentada apenas pelos fins ou interesses, ou posso apostar numa viragem para
os fins em que distinga os fins e os interesses de valores, visto que nós vamos ver que, tendo em
atenção aquelas perspetivas de compreensão do direito já faladas, como por exemplo, a perspetiva do
funcionalismo material, é uma perspetiva que assenta (praticamente em termos exclusivos) num
teologismo de puros fins, que, muitas vezes, se pode designar de um teologismo tecnológico ou
tecnologismo, enquanto que a perspetiva jurisprudencionalista, é uma perspetiva que, ao dar uma
grande relevância aos princípios, insiste no facto de ter que existir uma dialética entre interesses e
valores que poderão servir para por limites aos interesses e para hierarquizar esses mesmo,
inclusivamente – a hierarquia dos interesses já não é o resultado de uma decisão contingente, mas
sim de uma perspetiva que os princípios nos ajudam a construir.

Continuação da exploração dos sinais da crise em sentido microscópico

O tema a explorar em seguida, e que já se conhece da matéria de 1º ano de Introdução ao Direito, que é o no
fundo um plano que já não é metodológico, mas sim um plano dogmático. Neste plano dogmático, existem várias
coisas a salientar:

• Um progressivo reconhecimento, desde os finais do sec. XIX até hoje, dos limites da própria lei, limites num
plano privilegiadamente metodológico e normativo, ou seja, trata-se no fundo de reconhecer que quando
estou a realizar direito em concreto e procuro mobilizar a norma legal, damo-nos conta de diversos
problemas. E este diagnostico dos limites da lei, é um diagnostico importante porque na medida que põe em
causa a identificação lex e iuris, e irá contribuir para a tal distinção da intencionalidade material do direito e
a lei.
No fundo a questão que aqui se coloca, não é de conceção do direito de forma direta, embora que as
conceções de direito estejam implicadas, mas é uma questão metodológica, porque quando estamos a tentar
responder a uma controvérsia, confrontamo-nos com insuficiências no plano normativo da própria lei e isso
significa que realmente se abrem novos desafios e possibilidades, que têm de ser exploradas.
Relativamente a estes limites, recordemos que podemos sistematizar da forma que encontramos nas
páginas 54-B e seguintes. Vamos encontrar questões associadas a quadro grandes problemas principais,
sendo que três destes problemas podem estar presentes ou não, mas haverá um quarto problema que passa a
ser reconhecido como um problema decisivo, porque estará sempre presente, seja qual for o caso em que se
tenha em consideração (reconhecimento unanimo) .
A 1º insuficiência, o 1º limite, que é o primeiro a ser invocado de uma forma mais intensa, em
contraponto com o modo como positivismo conceitual pretendia resolver o problema das lacunas. Em que,
muitas vezes temos uma controvérsia prática, judicialmente relevante, sob o ponto de vista da estrutura do
problema e da identidade do problema não há dúvidas que estamos perante um problema jurídico, mas não
se consegue encontrar uma norma no sistema que assimile a relevância daquele problema. No fundo a
questão que aqui se coloca, é aquela que podemos dizer que é uma questão de distinção, onde o limite de
extensão da própria lei é extensivamente limitada, não cobre todos os casos possíveis e podemos dizer que é
um problema de limites normativo-objetivos da lei, que tem a ver com os casos jurídicos. E esses casos que
são juridicamente relevantes e estes pressupõem que o modo de estabelecer essa relevância já é um modo
autónomo, não passa pela pura perspetivação da lei, mas sim trata-se de reconhecer que é um caso jurídico,
que precisa de uma resposta e não tem resposta, nos substratos das normas legais, porque não se encontra
uma norma que o assimile.
E este problema, dir-se-á que é um problema de lacunas da lei, mas é na verdade um problema de
lacunas da lei mas posto de uma maneira diferentes, porque o problema das lacunas, no sex. XIX e utilizando
esta expressão “lacunas” de acordo com o que o positivismo, que colocou esse problema e explicou como ele
se solucionava, partia do pressuposto que o sistema das normas gozava de uma plenitude logica e portanto
quando estávamos perante uma situação de lacuna ou uma situação de pré-defeito do próprio sistema, o
próprio sistema tinha capacidade de, mobilizando os seus próprios recursos, se assimilar nessa lacuna e
estrutura-la.
E foi precisamente nesse sentido, que os autores do sec. XIX, sobretudo no campo positivista-
normativo, desenvolveram aqueles métodos que conhecemos, da analogia legis e analogia iuris, que são
métodos que se pensam a partir da plenitude logica do sistema.
Se o sistema não tem resposta para o caso irá obter essa resposta numa outra norma que prevê um
caso análogo ou até encontrando essa resposta em princípios gerais que são extraídos nos conjuntos
institucionais das normas do próprio sistema.
Na viragem no sec. XIX para o séc. XX, temos muitos movimentos a chamar a atenção para o número
crescente de casos omissos, e isso era particularmente interessante verificar que toda a sociedade ocidental
estava em grande mudança e por isso surgiram novos grandes problemas, absolutamente imprevisíveis, que
não encontravam nas normas legais quaisquer respostas. E portanto, isto quer dizer que na verdade a
juridicidade está para além da legalidade, e portanto vamos ter de encontrar respostas para estes
problemas sem as normas, exigindo assim uma autónoma constituição do direito, que no fundo exige
sobretudo, e é por isso as coisas estão implicadas todas umas nas outras, que tenhamos uma conceção no
direito já não puramente unidimensional, mas pluridimensional.
Se numa conceção do direito unidimensional só tem normas que se encontrem em normas, estou
perante um problema dos estratos.
Mas se dizermos que o sistema jurídico é também constituído por princípios, por critérios da doutrina
e por critérios da jurisprudência, já estamos em condições de dizer que pese embora não encontremos
resposta no estrato das normas legais, podemos a encontrar num outro estrato, ou seja, uma resposta
encontrada através da constituição de uma norma baseada num princípio.
Em suma, enquanto que no sec. XIX a lacuna significa defeito no próprio sistema de normas num
sistema unidimensional, onde é o próprio sistema a solucionar a lacuna. Agora temos também uma conceção
diferente, porque se diz que o direito não se esgota nas normas legais, o direito é constituído por outras
dimensões e portanto a solução irá se encontrar noutra dimensão.
Agora nesta nova conceção do direito a expressão lacuna já não tem o mesmo significado, aqui
diremos que quando estamos perante uma lacuna, estamos perante uma caso omisso que não se consegue
resolver com a mediação de uma norma, ou seja, estamos perante um sistema jurídico aberto,
pluridimensional que tem outros recursos a nível dos princípios e da doutrina, que vão permitir tratar
daquele caso.
Existem muitos mais problemas legais que não se encontram tipificados, por isso temos de
apostar numa juridicidade para alem da legalidade.
Este é um limite que pode ocorrer ou não, porque podemos estar perante um caso previsto que o
sistema assimila na norma.
Este problema só emerge naquelas perspetivas que apostam num teologismo de fins e de valores,
ou seja, quando se dá importância aos princípios, quando aposto numa jurisprudência de princípios, em que
se acredita que as normas legais devem ser objetivações de princípios, e que os princípios são elementos
fundantes de qualquer sistema jurídico, os princípios são uma entidade axiológica ainda que projetada
normativamente sendo que temos de levar a sério esses princípios.
Uma das questões que se coloca é se a lei baseada nos princípios, se consideram esses princípios
como direito vigente, e se consideramos que todo o sistema jurídico deve encontrar nos princípios o seu
fundamentos, a sua inspiração fundamental, então concluímos que as próprias normas legais sofrem de
insuficiências dos limites na perspetiva dos princípios, ou seja, temos de levar a sério, porque já não é uma
questão do limite da extensão da norma, é uma questão que, ainda que experimentada em concreto a partir do
caso, permite-nos dizer que por vezes temos de selecionar uma norma para resolver o caso e essa norma
quando experimentada em concreto, ou seja, quando se pensa da solução que essa norma poderá de facto
fundamentar, dá-se conta que a solução que se vai dar ao caso, é uma solução em concreto, para aquela
solução em concreto, para os sujeitos daquela situação concreta, usar a norma para resolver o caso poderá
significar frustrar algumas das intenções fundamentais de um principio, do principio que inspira todo
aquele domínio do direito que se está a por em ação, ou seja, no fundo trata-se de reconhecer que podem
surgir problemas em concreto para casos de incompatibilização entre as normas legais e os princípios. Isto só
será possível defender assim, se se sustentar naturalmente a distinção entre lex e iuris, que na
verdade o sistema jurídico não é só unidimensional, mas é também um sistema de princípios, sendo
que estes princípios são direito vigente e as normas tem de se submeter aos limites de validade
impostos pelos princípios.
Isto é um problema, que surgiu com os movimentos da jurisprudência da valoração, da jurisprudência
dos princípios, em que se começou a chamar a atenção para as insuficiências da lei, que resultaram
precisamente da necessidade em concreto de quando estou a utilizar uma norma, de se fazer esta experiencia
de perceber sempre a norma na perspetiva dos princípios, perceber a sua ratio iuris. Podendo através
desta experiência, dar conta, em concreto também, destas situações de concorrência de incompatibilidade
mais ou menos grave da norma com o princípio. Se se dizer que se vai utilizar a norma para resolver o caso, se
chegar a esta conclusão, vai-se com esta solução (em concreto) para estas pessoas e para esta situação, violar
ou frustrar a situação dos princípios, passa evidentemente a ser um problema evidentemente decisivo que
vai estimular, no seu ponto de vista sociológico, o surgimento de novos planos de interpretação, a chamada –
interpretação conforme princípios que admite várias modalidades, de correção, de superação e de pretensão.

Um outro tipo de limite é os limites temporais. O paradigma moderno iluminista, tendia a pensar a
lei, a norma legal isolada no seu cosmos de normas, no fundo o direito era um sistema de normas,
autossubsistente em abstrato e, portanto, no fundo todas as opções quanto à projeção da realidade eram
determinadas exclusivamente pela norma, porque a norma na sua hipótese, previa tipos de situações com
certas caraterísticas, e isso significava que afinal a perspetiva exclusiva em que a realidade era considerada
como juridicamente relevante, era através do filtro da norma, ou seja, através do grau que a norma tinha, que
permitia no fundo, representar, sendo que se via a realidade a partir das hipóteses, ou das visões das normas,
e só essa previsão, com essas caraterísticas, é que verdadeiramente interessariam.

As abordagens críticas dizem que é preciso ver o direito integrado na realidade social e não faz
sentido nenhum ver o direito como um cosmos, em abstrato, separado. E ao vermos o direito integrado na
realidade social, temos também de levar a sério os problemas que resultem da passagem do tempo, das
mudanças introduzidas nessa realidade e que resultam da própria dinâmica social, e isso, significa muito
claramente que, há normas que permanecem vigentes, sob o ponto de vista formal, mas que materialmente
vão perdendo a sua vigência.
Porque é que perdem a sua vigência? A razão pode ser uma de duas.
1. Na verdade, pode-se dizer que existe uma norma no corpus iuris que não foi revogada, nem caducou, que está
la em pleno, mas que, no entanto, essa norma é uma norma absolutamente ineficaz. Porque essa norma previa
um determinado problema em determinados termos e esse problema deixou de existir, ou esse problema
deixou de existir tal como a norma previa. Deixou de existir porque a realidade na verdade tem a sua dinâmica,
e o problema deixou de se pôr.
Quando se diz que a norma é vigente sob o ponto de vista formal, mas perde a sua vigência no plano
material, porque perdeu a sua eficácia, está-se a admitir aqui um problema metodológico, que é precisamente o
problema da obsolescência. Ou seja, tornou-se obsoleta porque embora esteja no corpus iuris, e embora não
esteja caducada formalmente, nem foi revogada, mas de facto ela foi ultrapassada por uma nova realidade. É como
se disséssemos que as normas têm uma projeção na realidade, ou seja, intencionam uma certa realidade, pois as
normas não são meras premissas, são normas problemas e portanto essas normas como estão, a configurar ao
nível da sua hipótese uma tipo de situação que pode ocorrer, se efetivamente essa situação deixar de correr assim,
a norma obviamente é superada por uma nova realidade, tornando-se ineficaz.

Isto é muito importante na realização do direito, sendo que, o juiz pode chegar a conclusão que aquela
norma que selecionou e que estava no corpus iuris, é uma norma obsoleta, e, portanto, não vai poder responder ao
caso com aquela norma, porque é uma norma ineficaz, é uma norma que foi superada pela realidade.

2. Mas pode acontecer uma outra coisa mais complexa ao nível temporal, pode-se ter uma norma que foi
publicada é uma norma inteiramente adaptada as exigência de um principio, principio que é sustentado pelo
limite normativo em que essa norma se inseria, mas houve depois uma transformação, sob o ponto de vista
cultural, social, que progressivamente foi inserindo alterações ao nível do principio, ou seja, o principio mantem
a mesma designação, manterá o mesmo núcleo de exigência, mas foi ganhando sentido diferente.
Isto não tem nada de estranho, porque por exemplo, o princípio da autonomia privada, tinha
significados diferentes, no contexto do séc. XIX, naquela visão formalista e individualista, daqueles que tem
hoje. A relevância que vieram a ter, tanto as referências à boa-fé, à responsabilidade pré-contratual, tudo isso,
foi decisivo na transformação do princípio da autonomia privada.

Outro exemplo, o princípio da legalidade do tribunal também evoluiu, hoje não é defendido nos mesmo
termos que era defendido pelo pelas realidades defendidas por F B na viragem do sec. XVI e XIX, quer dizer que
os princípios vão evoluindo nos seus conteúdos, porque as práticas mudam, o contexto social passa a ser outro.
E não é difícil imaginar uma situação em que eu tenho uma norma no corpus iuris, e esta norma no
momento que surgiu estava plenamente fundamentada e apoiada num princípio e hoje deixou de estar, porque
embora o princípio seja o mesmo, passou a ser entendido de forma diferente. A solução que a norma consagra é
uma solução que já não é compatível com a nova conceção do princípio. Aqui a norma não é obsoleta, aqui a
norma perdeu validade. Perdeu validade porque deixou de estar sustentada na compreensão que tem
hoje o princípio. Podemos aqui falar em caducidade, mas não formal ao nível da cessação da vigência das leis,
mas sim caducidade material. Porque da verdade a norma não caducou nem foi revogada, ela continua lá, o
que perdeu foi o seu fundamento, perdeu o suporte que ela tinha no princípio, porque o princípio passou a
ser entendido de forma diferente.
Existe até uma norma ferida de caducidade no código de Seabra (1867), sendo que aquela norma quando
surgiu, embora já houvesse pensamentos desviantes, e já tivesse havido exemplos, os famosos exemplos judiciais
que levaram à formação do critério do abuso de direito, essa norma repetia claramente que quem está a exercer
o seu direito, exerce-o respeitando os limites formais desse direito, não pode ser responsabilizado pelos danos
que esse exercício causar, ou seja, se a pessoa está a exercer o seu direito e se respeita os limites formais desse, de
facto os danos que vier a causar não lhe podem ser imputados.

Esta é uma regra que resulta de uma visão fortemente individualista no exercício dos direitos subjetivos
que no fundo era a visão que inspirava o princípio da autonomia privado da primeira metade do sec. XIX.

É curioso de ver que essa norma esteve em vigor entre nos entre 1867 e 1966 quando surgiu o novo
código civil e a vigência dessa norma não impediu, que os nossos tribunais usassem a referência a um critério
doutrinário de abuso direito a partir dos anos 20 ,30 do sec. XX. Não havia nenhuma referência no código de
Seabra, havia esta indicação de quem esta a cumprir o seu direito não pode ser responsabilizado por danos, que
poderá ocorrer num exercício abusivo.

Um exercício abusivo, é um exercício materialmente abusivo, pode-se estar a respeitar direitos formais e
estar a respeitá-los com uma intenção maléfica de prejudicar alguém, então aí estar-se-á a abusar do direito não
num sentido formal, mas sim material. E realmente nos vemos que os nossos tribunais nos anos 20 e 30
chegaram a algumas conclusões que usaram o critério que a doutrina dominante defendia que o exercício de um
direito, ainda que formalmente correto, que ultrapassa-se os limites impostos pela doutrina, respeitar os
limites do direito e estar a exerce-lo com uma intenção de prejudicar alguém, estar a exerce-lo com uma
total indiferença em relação aos outros, portanto ultrapassando os limites da boa-fé. Isso seria possível, a
nossa jurisprudência tive invocada este resultado de interpretação, mas isto só seria possível procurando a
caducidade no seu ponto de vista substantivo deste critério. O critério continua a ser um critério formalmente
vigente, não foi revogado, mas ele foi superado pela compreensão que eu tenho pelos princípios, ou seja, foi
superado por caducidade.
De facto, temos 3 limites que podem acontecer ou não, depende dos seus problemas e das normas
mencionadas, mas que haveria um 4 limite que ocorre sempre, esse 4 limite é aquele que resulta de uma
consciência muito aguda sobre o seu ponto de vista metodológico que começa-se a desenvolver na sua passagem
do sec. XIX para o sec. XX, é exatamente aquela que chama atenção para o facto que as normas legais sofreram
quando nos as confrontamos com os casos, com o problema tipificado da norma com os problemas que divergem
da realidade.

Nos damos conta daquilo que poderá ser o limite intencional da norma, a norma prevê um tipo de
situação através de um conjunto de caraterísticas. Os casos nunca se apresentam assim , apresentação com muitas
dimensões, a norma será sempre limitada em relação aos casos da realidade, mesmo que a norma preveja o caso
num plano abstrato, dizemos que foram fortemente limitados por confronto da experiencia da realidade que o juiz
vai considerar, o juiz não tem de antecipar tipos de situações, tem entre si casos concretos, onde se cruzam varias
dimensões, e portanto a uma distancia que tem de ser cumprido entre a verificação em abstrato disponibilizada
pela norma e o plano em concreto que é um plano complexo onde se reconhece varias dimensões.

Tudo isto suscita o reconhecimento que as normas são sempre limitadas no ponto de vista intencional.
Pronto eu posso dizer que as normas de uma forma mais ou menos intensa sofrem sempre de indeterminações
quando eu as considero na perspetiva do caso. Quando eu interrogo a norma na perspetiva do caso, eu dou
sempre conta que a norma tem aberturas, determinações, variedades que só depois da perspetiva do caso em
articulação com os outros estratos do sistema jurídico irá permitir vencer. Em termos muito simples, trata-se de
insistir numa certa tese de incerteza, de qualquer modo, é um modo acentuado que permite dizer que a norma
será sempre insuficiente para os casos situando um outro plano jurídico de formulação, ou seja, ela sofre de
indeterminações que geram incertezas.

Evidentemente que estas indeterminações que geram incertezas que podem ser maiores ou menores e
por vezes nos sabemos que sobretudo pela evolução critica do paradigma que se passou mesmo admitir e a
defender que os planos legislativos deviam ser abertos, indeterminados, no fundo para permitir assim
que o juiz atue em concreto, mas realmente, podemos dizer em termos gerais a conclusão que se extrai
daqui de um paradigma moderno iluminismo é que as normas são sempre indeterminadas, e essas
incertezas terão de ser superadas mobilizando outras dimensões do direito ou outros estratos do
sistemas que estão para alem das normas.

Não podemos considerar as normas como si mesmas para vencer a sua indeterminação, temos de
perguntar a jurisdição, a jurisprudência, a ordem jurídica que tem usado aquela norma.

Usamos aquelas decisões como exemplo, para puder vencer as indeterminações da norma em abstrato já
projetada num critério da jurisprudência judicial. Ou então, estas indeterminações são por vezes superadas
recorrendo à doutrina dominante que nos ajuda a interpretar as normas e a vencer as incertezas que algumas
normas geram.

Portanto, estes limites intencionais só seriam claramente invencíveis se eu continuasse a persistir numa conceção
do sistema fechado e unidimensional, se é um sistema de normas. O sistema jurídico tem mais divisões, eu posso
quanto aos princípios, quanto a doutrina e jurisprudência indo vencendo estas indeterminações, até porque não
estão em concreto, mas estou no fundo a considerá-las. Até porque as sentenças com a leitura de acórdãos vemos
muitas vezes a interpretação da norma do juiz é a doutrina dominante entre nos, no fundo estamos no fundo a
vencer a indeterminação que a norma gera recorrendo a um critério da doutrina estabilizada na ordem jurídica
em causa.

De facto, se o paradigma moderno iluminista num sistema fechado de normas agora a crise estará
exatamente no reconhecimento e que as normas são todas limitadas sob o seu limite intencional. Efetivamente,
estes níveis dos limites da lei, ajuda-nos a reconhecer se a lei é insuficiente em vários planos, no plano da
extensão, objetivo, intencional, validade e temporal, no fundo remete-nos para um pensamento jurídico que
confrontou- se ao longo do sec. XX várias vezes e com respostas diferentes.

Por um lado, no fundo uma questão de uma forma muito direta nos remetia para a necessidade de rever o
problema das fontes. Eu tenho de rever o problema das fontes e dar uma forte relevância aquilo que
podemos dizer, a chamada experiência jurisdicional de constituição do direito, para alem de dar
relevância aos princípios.
O direito não esta só a ser constituído quando se prescreve normas gerais e abstratos, o direito também
esta a ser constituído quando se resolve casos e isso significa estar a dar um relevo muito especial à experiencia
jurisdicional de constituição do direito. Mas, também, ao mesmo tempo que a teoria das fontes, mesmo no
contexto de civil law ao nível dos critérios da jurisprudência. Temos o entendimento que o direito também se
constitui ao nível jurisdicional, sobretudo essa teoria faz fontes vai num contexto romano-germânico dar um
relevo muito especial ao direito dos juristas, e o direito dos juristas, não é só o direito dos juízes quando se resolve
problemas em concreto, é também o direito que resulta da articulação entre a jurisprudência judicial e a
jurisprudência doutrinal.

Este direito dos juristas é de facto em grande parte em sentido amplo para abranger esta dialética em
termos constitutivos e dialética entre a doutrina e a jurisprudência porque se virmos o direito dos juristas esta
sempre invocado por correntes doutrinarias do direito, correntes doutrinarias de jurisprudência. Por exemplo, os
conteúdos dos princípios, não temos nenhuma instância que declare o conteúdo dos princípios, temos diversas
ajudas, temos a formação do legislador que usou na constituição, temos também as manifestações nas leis
ordinárias desses princípios, mas temos sobretudo esta experiencia de realização dos princípios que se vai fazer
na jurisprudência judicial e que a doutrina vai trabalhando e vem refletindo sob essa experiencia casualista e vai
dando um sentido mais racional também muitas vezes, a doutrina antecipa-se em termos de soluções de
jurisprudência e à uma espécie de certo, dialética. Este direito dos juristas, não é só o direito dos juristas que
fazem jurisprudência, é uma espécie de resultado das interações recíprocas que eles poderão desenvolver, e não é
possível termos uma experiência jurídica forte sem termos um autêntico direito dos juristas.

A pratica do direito impõe que ao reconhecermos essa diferença de lei do direito, um dos modos
privilegiados de intervenção e ate mesmo, alguns autores vão ao ponto de dizer que consciência jurídica da
comunidades, nos encontramos nesse tal direito dos juristas para vencermos todos os limites da lei de forma a
encontrar respostas, que sejam convincentes nos casos, nos precisamos do direito de um jurista forte, esse direito
é obra da jurisprudência, isto é atenuante na prática, nós relemos um acórdão para verificarmos o peso que tem
no fundamento da referencia à jurisprudência ou à doutrina dominante, e isto é decisivo desde logo, até para nós
mesmo o conteúdo que tem o principio que podemos associar a um principio de competência global, principio da
igualdade, principio da culpa , principio da igualdade criminal, nos podemos identifica-lo, mas depois sabermos
identificar as implicações e o conteúdo que ele tem, isso não resulta apenas das leis ordinárias que o consagra, isto
resulta da praticas de realização desses princípios e do modo que a doutrina tem trabalhado essas praticas.
Estamos perante uma prática jurídica forte e autónoma, e que para isso, nos precisamos de um autêntico direito
dos juristas.

Este contributo era esquecido deliberadamente pelo método jurídico do sec. XIX, ao entender que o
direito se esgotava na legalidade, e ao exigir que o juiz fosse mero técnico de soluções e ao quer que a doutrina
fosse ciência do direito como matéria neutra de construção consensual e complexa, estávamos a esquecer essa
mediação.

Quando este direito dos juristas pode servir de ajuda aquelas presunções que já falamos em Introdução ao
Direito, dizer que os principais critérios da jurisprudência judicial invoca-los através de uma presunção de
justeza e racionalidade. Quando o jurista afasta esses critérios de uma jurisprudência fixada, ele passa a ter o
ónus da contra argumentação e assim se percebe que é uma vinculação metodológica para construir uma boa
decisão, esta afastar uma posição doutrinaria que é dominante na sua ordem jurídica e que ele tem de facto
reconhecer que se esta afastar da posição dominante e tem de dizer porque e fundamentar a solução, e isso
significa que estará a desenvolver adequadamente do ponto de vista metodológico o ónus de contra
argumentação.

Nada disto seria possível, os limites da lei e o reconhecimento de novas experiências de constituição do
direito e manifestação do direito, isto não faria sendo se não estivéssemos uma nova conceção do sistema jurídico
e do conteúdo do direito.

O direito não se esgota nas normas legais, são apenas um dos extratos do sistema e isso significa, que o
sistema deve ser reconstituído não como um sistema unidimensional, mas sim como um sistema
pluridimensional, não como um sistema fechado, mas sim como um sistema aberto, isso envolve que devemos
considerar que nos parecemos princípios, claro que aqui devemos recordar uma conceção do sistema defendida
sobretudo na perspetiva Jurisprudencialista, que significa que implica vários extratos diferentes nuns dos outros,
com diferentes presunções de vinculação e que os princípios normativos, normas de validade, normas legais que
beneficiam de uma presunção de autoridade, critérios da jurisprudência judicial com presunção de justeza,
critérios da doutrina com uma presunção de racionalidade, e depois finalmente um extrato de realidade jurídico
de que o direito se cumpre.

A Matéria do teste sai até ao Problema atual do direito- página 54 J

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