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13ª Lição | Págs.

459-577 fundamentante; e do positivismo jurídico obtém o seu carácter


histórico.
DETERMINAÇÃO DO ACTUAL Todavia, verifica-se aqui um aparente paradoxo – sendo o absoluto
PRINCÍPIO NORMATIVO DO DIREITO aquilo que se desliga do tempo, como pode ele encontrar-se na
história? Ora, se o direito se traduz numa validade, não podemos
assumir as suas exigências como sendo entidades metafísicas; o direito
vai antes assumir as suas exigências de acordo com a conjuntura
histórica em que vigora. Todavia, coloca-se agora a seguinte questão –
Esta décima terceira lição configura-se como o culminar da análise não se verifica algum princípio que limite essa sua validade? A
do sentido específico do direito. Como assim foi referido no anterior resposta é negativa, uma vez que o direito vai reconhecendo
capítulo, a superação do positivismo legalista radicou essencialmente, historicamente este princípio normativo, podendo mesmo vir a ser
entre outros aspectos, na derradeira alienação entre as concepções de historicamente superado. É possível relacionar o projecto do direito
lei (lex) e direito (ius), que se encontravam convergidas num conceito com os próprios projectos pessoais – tal como as pessoas, o direito vai
unitário, isto é, verificava-se uma redução do direito à lei, ideário este tentar realizar as suas naturais exigências culturais. Contudo, o direito
que vigorou durante todo o século XIX até à superação desta cátedra nunca alcança de forma plena e acabada os seus objectivos, isto é, o
doutrinal, já no decorrer do século passado. seu próprio absoluto – todas as circunstâncias que soldam a forma
O direito é então entendido como um projecto autónomo de procura como pretendemos alcançar um objectivo vai transformar essa mesma
de uma certa humanidade – a pessoa humana surge agora como o finalidade; por outro lado, esse objectivo vai-se distanciando cada vez
fundamento último do específico sentido do direito, sendo que este se mais, uma vez que o absoluto se vai tornando cada vez mais exigente
apresenta como sendo uma especial ordem de validade. (pois como afirmou SALVADOR DALÍ, Não tenhais medo da perfeição,
Mas qual o conteúdo desta mencionada validade? Ora, teremos de nunca a ireis atingir).
introduzir agora um discurso meramente filosófico, fundamental e Resta agora explorar a matéria do sistema normativo do direito –
crucial para compreender a finalidade última do próprio direito. onde se encontra este princípio normativo objectivado? Ora, ele
É possível afirmar que todo o sistema jurídico é pluridimensional, encontra-se positivado na consciência jurídica geral, que não é mais do
ou seja, ele possui vários estratos axiológicos. que a síntese dos valores e princípios normativos que conferem
Identificamos o primeiro como o sentido específico do direito, na sentido de direito ao próprio direito. Esta expressão traduz uma carga
medida em que o direito surge como a base fundamental de todo o objectiva e outra subjectiva – o conceito revelador de uma carga
sistema jurídico. Segundo A. CASTANHEIRA NEVES, este princípio subjectiva é a consciência, associada à criação humana; já a carga
identifica-se como o fundamental princípio normativo, uma vez que subjectiva manifesta-se pelo termo geral – significa isto que esta
ele é o fundamentante e constitutivamente último do direito. consciência, uma vez passível de tematização, deverá ser convocada
Para além do jusnaturalismo e do positivismo jurídico, este como referente crítico em toda e qualquer reflexão sobre o direito.
princípio normativo do direito surge como um terceiro género
(tertium genus) – do jusnaturalismo ele colhe a intenção
Importa agora distinguir os três patamares desta já mencionada Já no terceiro e último patamar da consciência jurídica geral
consciência jurídica geral. encontramos o plano da dimensão axiológica última do direito. É a
O primeiro nível é o mais geral e imediato, correspondendo ao pessoa humana o fundamento último de uma ordem de direito; e ela
conjunto de padrões culturais histórico-comunitariamente assumidos transporta consigo duas dimensões – o polo suum (ela é dotada de
– aqui é possível encontrar valores, exigências éticas e morais, opções liberdade, autonomia e igualdade) e o polo commune (a pessoa
político-económicas, etc., que no fundo constituem o ethos de cada humana é responsável e participa comunitariamente. A pessoa
comunidade concreta, ou seja, cada sociedade possui um conjunto de humana é vista hoje como uma cateogria onto-axiológica e já não como
valores que são partilhados por todos os seus membros, identificando uma categoria onto-biológica – só somos verdadeiramente pessoas se
culturalmente essa comunidade. Nesta relação entre esta exigência assumirmos estas duas dimensões: o eu singular (polo suum), em que a
cultural e o direito verifica-se um continuum, de tal forma que o direito pessoa é dotada de liberdade, autonomia e igualdade (esta última
vai assumir todos estes parâmetros como que naturalmento, ou seja, assumida como o reconhecinimento mútuo entre sujeitos portadores
ele ele assimila estas exigências diluindo-se nelas – verifica-se aqui de uma inviolável dignidade ética), que terá de estar em dialéctica com
uma enorma contingência às demais dimensões da prática; contudo, com o eu social; ou seja, apenas somos uns com os outros – verifica-se
terá de funcionar assim, sob pena de aquela comunidade histórico- aqui uma dimensão constitutiva da pessoa humana, implicando outro
concreta não se rever naquela ordem de direito. Mas o direito corre tipo de exegências, que são a responsabilidade e a participação
ainda o sério risco de perder a sua autonomia perante as outras comunitárias. Neste terceiro patamar observa-se já uma contingência
dimensões da prática, transformando-se numa pura variável, e assim muitíssimo menor do que aquela que se verifica nos outros dois níveis,
assumir exigências alheias. Esta linha contínua verifica-se não apenas mas existente; quer isto dizer que as exigências últimas que
em épocas de estabilidade, mas também em épocas de ruptura – veja- caracterizam a pessoa humana não podem ser aniquiladas, através de
se o caso da revolução de Abril de 1974, em que o direito assimilou a uma destruição da ordem de direito, uma vez que esta mesma ordem
alteração dos comportamentos através da alteração de normas civis e vai variando ao longo do tempo, conduzindo a uma maior
constitucionais. contingência.
No segundo nível, contingência é agora menor. Aqui encontramos os Ora, será possível afirmar que existe um equilíbrio perfeito entre o
princípios jurídicos fundamentais, que correspondem a aquisições polo suum e o polo commune? A resposta é negativa – apesar de certas
culturais irrenunciáveis – uma vez assumido esse princípio, ele torna- divergências no seio da doutrina, cujo pensamento varia consoante a
se irrenunciável, isto é, já não é qualquer ruptura que dita que esses área dogmática, a maior parte dos autores defende que nunca se
princípios se desliguem da história, estando sujeitos a modificações ao poderá destruir qualquer um dos dois polos, sob pena de aquela
longo do tempo, sem que nunca sejam afastados da ordem de direito comunidade concreta mergulhar num regime totalitário ou anarquista;
(v.g. princípios do Estado de Direito, princípio da independência e deste equilíbrio nasce o valor da responsabilidade, que se pode
judicial, princípio do contraditório, princípio de pacta sunt servanda, revestir das mais variadas faces.
princípio da responsabilidade por danos causados...). Veja-se os exemplos da co-responsabilidade, que se traduz na
preservação dos valores que os membros de uma comunidade
concreta entendem que devem ser preservados (v.g. direito à vida, à
integridade física e psicológica...), cuja violação é alvo de uma
reprovação comunitária; a responsabilidade social ou de
solidariedade, como é o caso do combate às carências e a
implementação de políticas e edificação de estruturas necessárias à
melhoria das condições de vida dos cidadãos (v.g. política sócio-
económica levada a cabo pelo Welfare State); ou a responsabilidade
comutativa, isto é, a responsabilidade assumida pelos indivíduos
quando se encontram uns perante os outros, através de um câmbio de
prestações – ora, conclui-se que terá de se verificar um equilíbrio
dialéctico entre os vários géneros de responsabilidade existentes com
o primordial e fundamental intuito de não apagar a dimensão da
pessoa humana e o seu peso activo e necessário na sociedade.
14ª Lição | Págs. 581-606
O MODO DE EXISTÊNCIA DO DIREITO

Na primeira parte desta obra, intitulada O Problema do Direito, de


acordo com a obra-mãe Lições de Introdução ao Direito (FERNANDO JOSÉ
BRONZE), discutiu-se a problemática da determinação do sentido geral
e específico do direito; contudo, a normatividade jurídica não se reduz
somente a estes dois sentidos, mas manifesta-se de igual modo como
uma autêntica realidade, isto é, como um ser cultural que se encontra
TOMO II
efectivado na prática.
O MODO-DE-SER DO DIREITO
1. Modalidades de existência do direito – a vigência e as
suas relações com a validade e a eficácia

O direito existe sendo vigente (como já fora referido in nauseum ao


longo da presente epítome, de novo se repete a tradicional máxima:
direito só há um, aquele que se poderá dizer vigente e mais nenhum);
significa isto que o direito apenas será direito quando se possa dizer
simultaneamente válido e eficaz. Logo, o modo de existência da
normatividade jurídica é a sua vigência – num sentido mais amplo, ele
será o modo de vigência de todo e qualquer movimento cultural;
significa isto que uma cultura configurar-se-á vigente quando se
revelar uma dimensão efectiva e social da nossa praxis comunitária.
A vigência traduz-se numa síntese de duas dimensões que se
articulam dialecticamente – a dimensão da validade e a dimensão da
eficácia; quer isto dizer que o direito apenas se poderá dizer vigente se
for revestido destas duas dimensões, isto é, se for válido eficaz.
Quando se afirma que o direito se reveste de uma dimensão de
validade, pretende-se transmitir a ideia de que ele se encontra de
acordo com o conjunto de valores que histórico-culturalmente 2. Modalidades normativas do direito – direito objectivo e
radicam numa comunidade concreta – esta dimensão traduz-se na face direito subjectivo
ideal da vigência ou na sua dimensão axiológica; ou seja, o direito é um
dever ser. Contudo, esta dimensão axiológica não é suficiente para Em primeiro lugar, o direito objectivo corresponde à intelecção de
mostrar que o direito se reveste de vigência numa determinada um determinado corpus iuris como histórico-culturalmente ente
comunidade concreta. O direito não se encontra flutuante nas nuvens; fenoménico que aí radica, traduzindo portanto a consideração da
ele radica na terra – como afirma A. CASTANHEIRA NEVES, o direito é um normatividade jurídica vigente como um ser que devém. Logo, o
ser que é; ou seja, a normatividade jurídica não se concretiza histórico- direito não é apenas um conjunto de normas legais (v.g. direito
concretamente na prática. Assim sendo, é aqui acentuada a dimensão português, direito europeu... enfim, qualquer área dogmático-jurídica).
sociológica do direito, isto é, a sua face empírica ou factual – a Aqui, nós, enquanto cidadãos, aparecemos sempre como destinatários
dimensão da eficácia, que se traduz na efectivação do direito na prática deste direito objectivo, ou seja, de um determinado corpus iuris.
sob pena de não ser vigente. Por outro lado, nós somos também titulares de direitos, estes tidos
Ora, não podendo o direito ser uma pura idealidade, porventura como direitos em sentido subjectivo – o direito subjectivo traduz-se no
poderá ele ser uma mera ordem de eficácia? A resposta é negativa – no poder jurídico de livremente exigir ou pretender de outrém um
mundo do direito não nos encontramos perante simples expectactivas determinado comportamento positivo (uma acção, um facere) ou
cognitivas que não admitem qualquer género de transgressões; as negativo (uma omissão, um non facere); ou ainda de, através de um
expectativas normativas são antes contra-factuais, isto é, não é pelo acto livre de vontade, só de per si ou integrado por um acto de uma
facto de se verificarem certas violações que elas se vão anular. Logo, o autoridade pública, desencadear determinados efeitos jurídicos que se
direito admite, em certa medida, a ocorrência de transgressões; aliás, impõem inelutavelmente à contra-parte.
quanto maior for a carga de tolerância do direito a essas ofensas, mais Ora, o direito subjectivo, perspectivado num sentido amplo, poderá
vigente ele será. ser diluído em duas partes distintas – o direito subjectivo stricto sensu,
Mas como se torna possível conhecer qual a margem de tolerância até à compreensão do positivismo jurídico; e o direito potestativo. Mas
às preterições? Ora, essa margem será sempre desconhecida – existem analisemos melhor cada uma destas duas variantes.
valores que saem do universo jurídico por falta de eficácia do próprio No direito subjectivo stricto sensu é possível encontrar violações, na
direito; todavia, isto não se verifica com todos os valores (v.g. excepção medida em que ele depende sempre de uma acção ou omissão por
do direito à vida), na medida em que a comunidade concreta já não se parte do outro sujeito, identificando-se este género de direito
revê naqueles valores. subjectivo com obrigações naturais e morais, deveres e direitos.
Assim, conclui-se que a normatividade jurídica, para se configurar Todavia, ele desmembra-se ainda em direitos relativos e direitos
como vigente, terá de se revestir de validade e eficácia. absolutos, importando distinguir estes dois conceitos – enquanto que
os direitos relativos se opõem ou impoõem a uma ou várias pessoas
determinadas (v.g. os direitos de crédito que emergem de um
contrato), os direitos absolutos são aqueles que se opõem ou impõem
a todos os membros de uma comunidade concreta, ou seja, sobre ela o que realmente importava na época era a integração harmoniosa das
cai um dever geral de abstenção ou obrigação passiva universal (v.g. referentes posições na ordem comunitária, uma vez que o homem,
direitos de personalidade, direitos reais). apenas em referência à civitas romana, se compreendia com sentido.
Pelo contrário, os direitos potestativos são, por definição, Na Idade Média, com a separação entre a Igreja e o século – e
invioláveis, uma vez que o seu exercício não depende de uma acção ou associado a isto a ideia teológica de que Deus e o homem (ou seja, o
omissão por parte do outro sujeito da relação – esse sujeito encontra- criador e a criatura) são ontologicamente distintos, na medida em que
se num estado de sujeição, querendo isto dizer que ele nada poderá o humano, integrando uma comunidade concreta, vai desintegrá-la
fazer para impedir o exercício do direito potestativo. Já quanto aos pois ele também se autonomiza em relação ao cosmos englobante –,
efeitos que este género de direito subjectivo pretende produzir, eles estavam criadas as condições para se relativizar a importância da
poderão ser de tipo constitutivo – sempre que ele cria uma relação ordem objectiva; e foi esta conjuntura que permitiu, ainda que de
nova que não existia (v.g. artigou 1370º C.C. – comunhão forçada de de forma incipiente, pensar no fenómeno da titularidade de direitos
paredes e muros de meação; artigo 1550º C.C. – direito de servidão); subjectivos.
modificativo – sempre que se opera uma alteração numa relação Seria apenas na Época Moderna que os direitos subjectivos se
jurídica já existente (v.g. artigo 1568º - mudança de servidão; 1794º - assumiriam de forma plena – o homem afirmou a sua autonomia
separação judicial de pessoas e bens); ou extintivo – sempre que se perante as ordens comunitárias. Foi o contratualismo, pactuado ao
termina uma relação jurídica pré-existente (v.g. artigo 1773º - direito individualismo, que permitiu esta nova visão do direito; por isso, a
ao divórcio). ordem jurídica passou a identificar o conjunto de direitos
subjectivamente titulados. É, então, ao jusnaturalismo moderno que se
3. Épocas de direito objectivo e épocas de direito sujectivo – deve a criação de sistemas de direitos subjectivos – com esta doutrina
a sua evolução numa perspectiva histórica jurídica, o homem passou a compreender-se como indivíduo de uma
autónoma subjectividade prática juridicamente projectado nos
Importa realçar agora algumas notas históricas acerca das épocas direitos subjectivos de que somos titulares.
em que vigorou o direito objectivo e as épocas em que vigorou o Todavia, esta perspectiva não marcou exclusivamente o
direito subjectivo, assim como a sua evolução ao longo da cronologia. pensamento jurídico oitocentista; aliás, é possível identificar, neste
O direito subjectivo começou por não existir; ele emergiu aspecto, o século XIX como dualista, uma vez que neste tempo
incipientemente na Idade Média, afirmou-se comunitariamente na emergiram duas linhas diferentes, uma objectiva e outra subjectiva. A
Idade Moderna e foi conceitualmente tematizado apenas no século XIX. primeira é a linha normativista e legalista, que se afirmou por
O direito subjectivo existe desde o nascimento da ciência jurídica, influência de JEAN-JACQUES ROUSSEAU e CHARLES DE MONTESQUIEU, e que
ainda na era romana. Para o pensamento jurídico romano, o direito defendia que apenas existiriam direitos fundamentais se fossem
apresentava-se como sendo uma ordem objectiva que definia o reconhecidos pelo direito objectivo; a segunda é a linha liberal,
estatuto das pessoas e determinava a situação das coisas; contudo, isto defendida por JOHN LOCKE e IMMANUEL KANT, que acentua a importância
não significa que o fenómeno da titularidade de direitos não existisse –
dos direitos fundamentais materiais, como o direito à liberdade ou o subjectivos, ela terá sempre de respeitar o seu fundamento material
direito de propriedade. para não cair numa situação de abuso de direito, isto é, manipulações
deliberadamente realizadas nas diversas posições jurídicas.
4. Relação entre o problema do sentido normativo-
constitutivo do direito e o fundamento último da
normatividade jurídica – a consideração exemplar do
abuso do direito

Ora, chegamos agora à conclusão que quanto maior for a


intensidade da afirmação da individualidade e da autonomia da pessoa
humana, maior será a afirmação dos direitos subjectivos e maior será
ainda a desintegração do sistema objectivamente consagrado –
significa isto que enquanto o direito subjectivo está associado ao polo
suum, o direito objectivo encontra-se pactuado com o polo commune;
outro significado reside no facto de podermos designar o direito
objectivo como uma pulsão centrífuga, na medida em que ele nos suga
para a sociedade, e o direito subjectivo como uma pressão centrípeta,
pois repele-nos para a nossa autonomia e individualidade.
Assim sendo, a normatividade jurídica resulta da dialéctica entre as
duas modalidades, mas a mais ou menos acentuada hipertrofia de um
dos pratos da balança conduz a uma prática desiquilibrada – se a
hipertrofiação acentuada e a afirmação do individualismo, com o
apagamento da comunidade, leva a uma anomia anárquica, a
hipertrofia do direito objectivo, em que a importância da integração
comunitária se sobrepõe à autonomia e à manutenção da
individualidade, poderá conduzir a um totalitarismo repressor.
Concluindo, a célebre critério do abuso do direito (vide artigo 334º
C.C.) sintetiza a dialéctica entre o direito subjectivo e o direito
objectivo – ele surgiu no término do positivismo jurídico, doutrina esta
em que os direitos subjectivos se encontravam limitados aos
formalmente normativos; significa isto que, mesmo que a pessoa
humana possua as capacidades necessárias para ser titular de direitos
15ª Lição | Págs. 607-681 Importa agora realçar algumas notas históricas. Enquanto que o
sistema jurídIco positivista, que vigorou praticamente durante todo o
A OBJECTIVAÇÃO DA NORMATIVIDADE século XIX e ainda no transcurso da primeira metado do século
JURÍDICA – O SISTEMA JURÍDICO passado, era um sistema unidimensional, ou seja, ele surgia fechado
para se apresentar pronto e acabado com o intuito de ser
posteriormente utilizado e era composto por normas (preposições que
apresentam uma estrutura hipotético-condicional) e por imperativos
(comandos emitidos pelo poder legislativo); nasce agora um sistema
1. O direito como sistema jurídico que se configura completamente antagónico ao anterior sistema
jurídico vigente. Este novo sistema jurídico apresenta características
Como tem vindo a ser referido ad nauseum ao longo de toda inéditas; ora vejamos: em primeiro lugar, ele é aberto, contrariando o
esta obra, e nomeadamente com particular intensidade no anterior típico sistema fechado do positivismo – é um sistema mais receptivo à
capítulo (O modo de existência do direito), o direito apenas poderá ser novidade dos problemas juridicamente relevantes; em segundo lugar,
reconhecido enquanto tal se nos encontrarmos em condições de o é um sistema material, opondo-se ao formalismo positivista – agora as
dizer positivo (e mais uma vez nos deparamos com a característica exigências de sentido integram também o sistema jurídico; em terceiro
afirmação de FERNANDO JOSÉ BRONZE: direito há só um, o que se pode lugar, ele é pluridimensional – o sistema é composto por vários
dizer vigente e mais nenhum). Ora, importa agora neste crucial e estratos, todos eles vinculantes do jurista; em quarto e último lugar, o
fundamental capítulo descortinar onde se encontra objectivado o novo sistema é regressivo, sendo contrário ao sistema progressivo
conteúdo da normatividade jurídica – a vigência do direito consagra-se característico do positivismo jurídico – ele vai-se reconstituindo da
num sistema jurídico. frente para trás, através de uma dialéctica em que se verifica uma
A ordem jurídica, perspectivada de modo formal, surge relação entre sistema e problema, isto é, tem de pressupor um sistema
intencionalmente num sistema jurídico; e como sistema que é, ela para resolver um problema e será o problema que irá fundamentar a
possui obviamente as notas de coerência e unidade, ideias estas que reconstituição do sistema jurídico. Todavia, o problema poderá de ser
desenham qualquer género de sistema – será então sob as vestes que o tal modo inédito que o sistema seja incapaz de o resolver; mas terá de
configuram como ordem que o direito irá regular o encontro ser sempre capaz de o colocar – ele terá de possuir a força necessária
mundanal dos homens no seio da comunidade em que se encontram que lhe permita encontrar algo no sistema que arrisque qualificar o
integrados, recusando o caos resultante do seu choque uns com os problema como juridicamente relevante, ou seja, transgressões que
outros e, pelo contrário, adoptando um mecanismo regulador da sua violem e coloquem em causa os valores da liberdade, da autonomia e
vida societária. Esta nota caracterizadora da unidade poderá ainda da igualdade.
dizer-se especial, na medida em que é conseguida na dialéctica em que Mas o que é que permite ao sistema colocar o problema? Ora, será o
se encontram entretecidos todos os estratos que compõem o sistema sentido do direito. O sistema jurídico tem a árdua tarefa de
jurídico – esta nota de unidade será alcançada na pluralidade compatibilizar duas exigências contrárias, mas não contraditórias – o
dimensional do sistema jurídico.
problema e a ordem. O problema é sempre uma interrogação que tem género de pensamento que devem mobilizar para resolver os
um carácter desintegrador, uma questão animada por uma força problemas juridicamente relevantes – esta primeira questão remete,
centrífuga, na medida em que os problemas são sempre singulares, portanto, para o problema da racionalidade. Já a segunda interrogação
únicos, irrepetíveis – enfim, eles são sempre uma novidade. Já a ordem traduz-se nos passos que o jurista terá de dar desde o confronto inicial
traduz uma unitária racionalização deliberadamente integrante e, por com o caso até à resposta prático-normativamenten adequada do
isso, é animada por uma força centrípeta, chamando-nos a ela – sendo mesmo – estamos agora perante o problema do esquema metódico;
o sistema contrário, mas não contraditório, ele irá ser mobilizado para significa isto que o jurista, na sua árdua tarefa de resolução dos
apaziguar esta incompatibilidade. problemas juridicamente relevantes, e empenhando-se em
intersubjectivizar a sua subjectividade (fundamentação e objectivação
2. A relevânica metodológica do sistema jurídico das respostas que o jurista confere aos problemas), terá sempre de
atender ao pensamento jurídico, para saber quais os passos que terá
O sistema jurídico traduz-se numa unitária complexidade que de dar para alcançar a resolução das preterições; e ao sistema, para
assenta numa simplicidade primordial (como classificam os saber o que deverá pressupor para as conseguir solucionar.
darwinistas o ser humano). Assim, a relevância metodológica do Assim sendo, nunca poderemos identificar a resolução de um
sistema jurídico efectiva-se num sistema de legislação como é o nosso problema com uma mera resposta ou decisão – ela está lá, é
– o sistema jurídico português é um sistema de legislação na medida ineliminável; contudo, a decisão configura-se apenas como a
em que ele é maioritariamente composto apenas por normas legais, manifestação de uma voluntas, uma simples solução entre várias
embora não exclusivamente. E esta relevância não é mínima; ela é alternativas, encontrando-se lá sempre com uma carga de
máxima. Mas importa , antes de mais, decifrar o sentido do conceito de subjectividade, uma vez que ela é fruto da pessoa humana. A decisão
metodologia. Este desmembra-se em três termos que lhe conferem terá de ser sempre comprimida pelo segmento do juízo, logo, as
significado: meta (fim) – o direito visa resolver um problema; odos sentenças são fundamentalmente juízos decisórios ou decisões
caminho) – os passos que o jurista tem de dar para a resolução do judicativas – um juízo traduz-se numa ponderação prudencial de
problema; e logos (racionalidade) – tipo de pensamento a mobilizar realização concreta orientada por uma fundamentação
para alcançar essa resolução. circunstancialmente adequada, argumentativamente convincente e
No campo da historicidade, vigorou exlusivamente durante o século jurídico-normativamente mencionada. Este segmento do juízo remete
XIX o método lógico-dedutivo, característico da doutrina positivista; para uma fundamentação e o juiz encontra-o no sistema jurídico
actualmente, esse método é analógico, na medida em que se verifica adequadamente compreendido.
uma inferência do particular para o particular, isto é, uma relação Embora o sistema jurídico nacional seja de legislação, qualquer
entre o sistema e o problema, que se encontram no mesmo patamar. decisão não pode passar por remissões a meras normas legais – o
Mas quais as questões nucleares da metodologia jurídica? Ora, primeiro passo normal é procurar a resposta ao problema na lei;
existem duas interrogações centrais; analisar-lo-emas de seguida. Em contudo, essa resolução pretende que mobilizemos essas normas
primeiro lugar, o jurista e em particular o juiz têm de conhecer qual o como autênticas – uma norma tem de ser na sua ratio legis, isto é, terá
de ser prática; mas também na sua ratio iuris, ou seja, no seu mecanismo capaz de solucionar o problema, mas ele terá de ser
fundamento. Todas as normas terão de ser, portanto, a objectivação de sempre capaz de o colocar.
um fundamento, não bastando a prática; é sempre necessária a sua Assim sendo, a presunção de referencialidade do estrato do sentido
fundamentação. A fundantação de qualquer decisão judicativa passa do direito identifica os referentes últimos de uma ordem de direito – o
sempre pela convocação do sistema adequadamente compreendido, sentido da normatividade jurídica é proteger o rosto humano, sendo
ou seja, de todos os estratos articulados. que a pessoa humana se configura como o fundamento último do
Todos os estratos que compõem o sistema jurídico correpondem ou direito.
a um fundamento ou a um critério; e consoante seja, ele será diferente.
Um critério traduz-se num modelo operatório que confere uma 3.2. Estrato dos princípios normativos
resposta directa e imediatra a um problema jurídico, formando-se
então um esquema de solução. Já o fundamento não dá uma resposta Importa, antes de mais, dizer o que se entende por princípio
directa e imediata ao problema, mas orienta o jurista e permite-lhe normativo – eles são exigências de sentido que exprimem as intenções
justificar a decisão tomada - eles são exigências de sentido e sem elas e os valores que o direito deve assumir e em que se deve empenhar em
o jurista será incapaz de dar uma resposta jurídico-concreta aos realizar. Se o sentido do direito corresponde à validade predicativo de
problemas juridicamente relevantes que deve tentar resolver. uma ordem de direito, os princípios normativos são a imediata
caracterização dessa matriz, isto é, a primeira projecção já regulativa.
3. Análise do sistema jurídico na sua compreensão e Daí a importância de distinguir os princípios normativos dos valores –
composição actuais enquanto que os princípios possuem uma dimensão regulativa do
sentido do direito, os valores têm uma mediata dimensão axiológica,
3.1. Estrato do sentido do direito ou seja, uma dimensão de validade assumida pelo sentido do direito.
Outra distinção importante é o confronto entre os princípios
O primeiro estrato constituinte do sistema jurídico integra o normativos e os princípios gerais de direito.
próprio direito, identificando o fundamento último da normatividade Os princípios normativos são exigências de sentido axiológico-
jurídica e o rosto jurídico da pessoa humana; e as exigências últimas onormativo em que radica a validade do sistema – eles identificam os
que caracterizam a pessoa humana são a sua face individual (polo autênticos étimos da validade prático-normativa do sistema;
suum) e a sua face comunitária (polo commune), como tem vindo a ser constituem-se como fundamentos nos quais o juiz se deve apoiar para
intensivamente referido ao longo de toda a obra. apresentar uma solução acerca de um problema com o qual se
O presente estrato surge, na maioria dos casos, de forma mediata, confronte, não conferindo respostas directas e imediatas, e são
prespassando todos os estratos do sistema jurídico, sendo o espírito mobilizados no processo metodológico como fundamento de uma
que os anima; mas também se verificam casos em que ele é convocado resolução passível de uma preterição. Eles apontam o odos como a luz
imediatamente quando não é possível encontrar no sistema um de um farol na resolução dos problemas, são fundamentos abertos a
várias soluções e intenções práticas a seguir na resolução de um caso.
Por outro lado, os princípios gerais de direito são mais gerais e Segundo o problema da juridicidade, encontramo-nos diante de um
abstractos do que as normas locais de uma determinada comunidade princípio de direito quando ele apresenta três características – em
jurídica e não são entendidos como exigências de sentido – eles não primeiro lugar, uma consonância de fundamentação – para ser um
passam de meras normas legais. Segundo a visão positivista do século princípio normativo, ele terá de estar de acordo com as exigências
XIX, que se manteve até à jurisprudência dos interesses inclusive, em últimas do direito, ou seja, terá de ser a expressão das exigências que
que ambas as categorias se encontravam fundidas, os princípios gerais predicam uma ordem de direito; em segundo lugar, uma consonância
de direito são condições epistemológicas do objecto do direito dado e problemática – o princípio normativo terá de possuir uma serventia
o seu conteúdo não transcendia o cerne das normas legais; antes os prática, susceptível de ser mobilizado para solucionar um problema
tornava mais inteligíveis – eles eram critérios prontos e fechados. jurídico, e de ser uma exigência orientadora de resposta a essa mesma
Ora, os princípios normativos são fundamentais para a orientação preterição; e em terceiro lugar, um carácter integrante – ele não
do jurista na resolução dos problemas juridicamente relevantes, não poderá admitir qualquer tipo de descriminações não justificadas
conferindo uma solução; eles permitem antes justificar a conclusão. jurídico-normativamente, visto que uma das funções da ordem de
Portanto, eles possuem uma efectiva relevância metodológica – devem direito e do próprio sistema jurídico é a integração comunitária;
ser mobilizados enquanto fundamento para a resolução de problemas todavia, a descriminação poderá ser feita desde que cumpra os
concretos. Assim, todas as normas legais são limitadas pelos requisitos de reversibilidade. Por outro lado, um princípio apenas será
princípios, sob pena de não serem válidas; se assim não fosse, o jurista de direito quando respeitar o sentido da normatividade jurídica, ou
deparar-se-ia com critérios inválidos e não com o direito. seja, a validade e a eficácia dos princípios normativos.
Importa agora analisar a origem dos princípios normativos. Eles não Já de acordo com o problema das justiciabilidade, um princípio para
se encontram nefelibaticamente nas nuvens, como defendia o ser de direito terá de ser justiciável, isto é, susceptível de controlo em
pensamento jurídico jusnaturalista; eles são antes experiencialmente juízo pelos tribunais. No entanto, torna-se premente a existência de
concretizados na terra através da sua escogitação pelo pensamento mecanismos que controlem essa exigência operatória; e eles
jurídico aquando da reflexão acerca das soluções para a resolução dos traduzem-se em duas dimensões – uma dimensão formal, em que o
problemas juridicamente relevantes que emergem no horizonte controlo é operado pelas regras processuais; e uma dimensão material,
comunitário e que vão contra o próprio sistema jurídico – eles um mecanismo mais exigente que remete para uma reflexão
constituem-se a partir das exigências de sentido oriundas dos metodológica, cujo principal intuito é conhecer quais as exigências
problemas ocorrridos. Por outro lado, os princípios normativos são normativas que nos permite mobilizar para resolver problemas
ainda marcados pela nota da historicidade, sendo alvo da erosão do concretos e, consequentemente, controlar a operatividade em juízo.
tempo e variando ao longo dos anos de acordo com a conjuntura da Para concluir, os princípios normativos poderão ter três
época em que radicam. classificações. Eles podem ser positivos – aqueles que são consagrados
Mas quando nos encontramos perante autênticos princípios pelo direito de forma expressa ou implícita, geralmente numa norma
normativos? legal; transpositivos – traduzem-se na marca de água de uma
determinada área dogmática, ou seja, eles são a condição sine qua non
sem a qual qualquer cátedra dogmática deixa de fazer sentido; ou agora a revelação do arché (fundamento) e da telos (finalidade) da
suprapositivos – aqueles que fundamentam todos os outros e sem os norma, isto é, a sua compreensão arqueteológica.
quais o direito deixa também de possuir qualquer sentido, A função das normas, ao fundamentarem-se a si próprias e ao
encontrando-se num plano mais exigente e estando associado ao polo fundamentarem o próprio sistema, é fazer cumprir na prática
suum e ao polo commune. comunitária as exigências constitutivas do princípio da igualdade e
Consoante a perspectiva, qualquer princípio normativo poderá resolver os problemas juridicamente relevantes.
revestir-se simultaneamente de qualquer uma das classificações As normas legais são constituídas por duas dimensões. A primeira é
acima referidas. a sua dimensão imperativa ou de comando – quando as normas legais
Quanto à sua presunção, os princípios normativos vinculam o atendem ao seu telos, que são os seus problemas juridicamente
jurista através de uma presunção de validade, ou seja, encontramo-nos relevantes; a segunda é a sua dimensão racional ou de fundamento –
vinculados aos princípios porque presumimos que eles são válidos. quando as normas legais atendem ao seu arché, que mais não são que
os fundamentos em que se radica a problematização da ratio iuris (a
3.3. Estrato das normas legais verificação dos princípios fundamentais da norma).
Durante o positivismo jurídico, as normas eram premissas, eram
Considera-se este estrato o paradigmático momento de objectivação prius præcritivus; todavia, elas são hoje critérios jurídico-normativos,
do sistema jurídico, sendo ele composto por normas jurídicas legais. ou seja, são posterius. No entanto, a norma legal é transcendida a
As normas traduzem-se em critérios (e não fundamentos) jurídicos montante pelos princípios normativos e a juzante problemas que a
gerais e abstractos que conferem uma resposta imediata ao problema, originam.
possuindo uma estrutura hipotético-condicional – elas integram uma Importa ainda salientar o facto de que até à jurisprudência dos
hipótese (prevendo um tipo de problema) e uma estatuição (elas interesses a norma servia como o ponto de partida da reflexão
conferem abstractamente uma resposta ao problema formulado na metodológica, apesar de ela já assumir a norma como um critério
hipótese). Contudo, uma norma jurídica legal apenas ganha sentido jurídico-normativo.
quando é referida ao seu específico fundamento de validade, isto é, ao Este estrato vincula o jurista na medida em que beneficia de uma
seu princípio normativo. presunção de autoridade, de potestas política, visto que as normas
Numa óptica prático-normativa, isto é, num sistema de legislação legais são emanadas pelo poder político, sendo que tanto as leis como
como é o nosso, a norma poderá ser encarada como um critério de a própria política possuem uma autoridade político-constitucional.
acção – quando são imediatamente inteligíveis e aproblematicamente
assumidas (não é estritamente necessário que exista um problema 3.4. Estrato da jurisprudência judicial
prático para sermos capazes de as entender); mas elas tornam-se
sempre problemáticas de valoração, o que realça a sua dimensão O presente estrato possui uma relevante importância no papel de
semântica e sintáctico-gramatical. Por outro lado, poderá ser ainda redensificação do desenvolvimento do direito.
visto como um critério prático-judicativo de valoração – verifica-se
Um grande conjunto de problemas são gerados nos processos, Ora, a função da dogmática é descrever o direito vigente e propôr
conduzindo à criação de novas normas e/ou à escogitação de modelos de solução para os problemas que vão surgindo no horizonte
princípios. Este estrato também reconstitui a normatividade jurídica, comunitário.
uma vez que, através de problemas suscitados nos processos, ele faz a Durante o positivismo jurídico, estavamos perante uma dogmática
mediação da realização da normatividade – é esta a dimensão reprodutiva; já actualmente, a domgmática configura-se como sendo
constitutiva da normatividade jurídica que vai integrando o sistema. autenticamente constitutiva – ela é o modo de constituição da
Este estrato da jurisprudência judicial realiza judicativo- normatividade jurídica vigente, sendo que para tal mobiliza os
decisoriamente a juridicidade vigente, reconstituindo-a e diversos estratos do sistema jurídico.
desenvolvendo-a através de precedentes jurisdicionais – os No entanto, torna-se premente fazer uma distinção entre dogmática
precedentes constitutivos passam a ser critérios mobilizáveis no de autoridade e dogmática de fundamentação. Enquanto a primeira se
futuro para a resolução de casos posteriores semelhantes. Ele manifestava como sendo uma dogmática puramente reprodutiva,
disponibiliza ainda critérios e compreende a sentença como um juízo limitando-se a descrever o direito e a sistematizá-lo, construindo
decisório, enquanto exemplo de resposta a um caso concreto. conceitos; a segunda era uma dogmática autenticamente constitutiva e
Num sentido positivo, o juiz responde ao problema de acordo com as disponibilizava critérios e modelos de solução que os juízes poderiam
decisões tomadas pela doutrina maioritária, não necessitando lançar mão para resolver os problemas com que se confrontassem, e
portanto de justificar a sua decisão; o juiz remete, então, para essa ainda fundamentos sempre que explicita princípios.
corrente por analogia. Já num sentido negativo, o juiz, contrariando a A doutrina possui quatro tarefas essenciais; vejamos. Em primeiro
doutrina maioritária, vai assumir o ónus da contra-argumentação para lugar, uma função estabilizadora – ela institucionaliza o sistema,
fundamentar a razão pela qual apresentou decisões diferentes da equilibrando-o conforme a sua abertura; em segundo lugar, uma
restante doutrina judiciária, colocando em causa os princípios da função técnica – permite que o jurista compreenda as exigências de
igualdade de tratamento, da segurança dos cidadãos e da inércia. sentido, facilitando a sua tarefa; em terceiro lugar, uma função
Quanto à sua vinculação do jurista, o estrato da jurisprudência desoneradora – liberta o jurista de uma problematização infindável; e
judicial beneficia da presunção de justeza, na medida em que por último uma função de controlo – a doutrina poderá controlar se as
presumimos que a resposta/sentença é justa e juridicamente sanções que aplica são ou não justas.
adequada. Este estrato beneficia de uma presunção de racionalidade,
compreendendo-se de forma semelhante à presunção de justeza, uma
3.5. Estrato da jurisprudência dogmático-doutrinal vez que também aqui se verifica a formação de correntes, neste caso
doutrinais, e com semelhantes processos.
O presente estrato do sistema jurídico situa-se num plano
intermédio entre as normas legais e as sentenças – ele manifesta a
sistematicidade do direito.
3.6. Estrato da realidade jurídica 16ª Lição | Págs. 683-746
A realidade jurídica não é apenas um campo inerte de aplicação do O MODO DE CONSTITUIÇÃO DA
direito. De facto, o modo como o direito é levado à prática pelos seus
destinatários vai reconstituindo a normatividade jurídica vigente.
NORMATIVIDADE JURÍDICA VIGENTE
Por outro lado, ela é ainda composta por três tipos de realidade – AS FONTES DO DIREITO
realidade económica, realidade política e realidade cultural.
Este estrato beneficia de uma presunção de eficácia, na medida em
que sem a realidade jurídica o direito não se poderia dizer positivo.
1. O problema e a perspectiva da consideração das fontes do
3.7. Estrato da dimensão procedimental direito – perspectiva político-constitucional e perspectiva
fenomenológico-normativa
A dimensão procedimental traduz-se no derradeiro cumprimento
dos operadores técnico-argumentativos a que o jurista deverá A palavra fonte, originária de Cícero nos primórdios da ciência
recorrer com o primordial intuito de fazer cumprir adequadamente a jurídica romana, configura-se uma expressão equívoca, na medida em
tarefa de que está incumbido – esse objectivo reflecte-se na realização que a sua interpretação pode enveredar por vários caminhos e cuja
judicativo-decisória do direito. análise poderá culminar em vários sentidos.
Este estrato da dimensão procedimental da normatividade jurídica Contudo, importa agora contrapôr duas perspectivas do problema
beneficia de uma presunção de justabilidade ou prestabilidade. das fontes do direito – por um lado, uma perspectiva político-
constitucional (a teoria tradicional do pensamento jurídico positivista),
que será superada por uma perspectiva fenomenológico-normativa (a
teoria defendida no curso). Ora, analisar-lo-emas de seguida.
A perspectiva político-constitucional, altamente influenciada pelo
positivismo jurídico, encontra-se polarizada no poder – é ao legislador
a quem se incumbe exclusivamente a crucial tarefa de criar o direito e
de conhecer quais os mecanismos que poderão ser autenticamente
considerados fontes de direito. Para além da lei, considerada uma
fonte jurídica directa e imediata, qualquer outra fonte depende
também em exclusivo da voluntas do poder legislativo; e estas são
tidas como fontes indirectas e mediatas. No entanto, esta é uma
perspectiva contraditória e empobrecedora, ela não é totalmente
adequada – esta óptica é polarizada no poder e o direito apenas existe institutos dependem da realidade (veja-se, a título de exemplo, o
quando se puder dizer positivo. instituto da família – o direito nunca poderá impôr uma visão global de
Já de acordo com a posterior perspectiva fenomenológico-normativa, família ignorando as questões actuais que se lhe colocam, como é o
a teoria que realmente interessa neste nosso curso e que vem superar caso das famílias monoparentais ou do casamento entre pessoas do
a óptica anterior, o problema das fontes do direito é agora encarada a mesmo sexo).
partir da categoria vigência. É agora colocada a seguinte questão –
qual é o modo ou os modos de constituição da normatividade jurídica 2.2. Momento de validade
vigente? Ora, o direito é um dever ser que é, ele é uma validade que se
tem de efectivar na prática comunitária. Perguntar pela vigência do Não podemos ficar pelo primeiro momento, uma vez que o direito
direito é questionar qual é o direito que é efectivamente assimilado não pretende dar uma resposta puramente eficaz aos problemas com
pela praxis de uma comunidade concreta, isto é, qual é o conjunto de relevo jurídico, pois ele não se constitui como uma variável puramente
critérios e fundamentos que uma determinada comunidade assimila revestida de eficácia – surge agora o momento de validade.
como sendo seus e sem os quais, com ou sem direito, não seria a O direito pretende antes conferir uma resposta válida aos
mesma. Esta é uma perspectiva normativa porque o direito é uma problemas que surgem no horizonte da prática comunitária. O direito
validade; e é fenomenológica porque encaramos o direito como um terá de considerar a realidade para conferir respostas
autêntico fenómeno naquele contexto histórico-concreto. normativamente adequadas aos problemas juridicamente relevantes,
mas essa resposta terá de atender sempre aos fundamentos e
2. A experiência constituinte do direito – momento exigências de sentido que conformam e caracterizam uma ordem de
material, momento de validade e momento constituinte direito – é este fenómeno que garante a autonomia do direito, uma vez
que ele impõe limites às dimensões da prática; mas nunca poderá ficar
A resposta à pergunta suscitada por esta segunda perspectiva (qual somente pela validade, pois assim ele não seria eficaz.
o modo ou os modos pelos quais se constui a normatividade jurídica
vigente?) depende da análise de quatro momentos que se articulam 2.3. Momento constituinte
dialecticamente – são eles o momento material, o momento de validade,
o momento constituinte e o momento de objectivação. É neste terceiro momento da experiência constituinte da
normatividade jurídica vigente, o momento constituinte, que vamos
2.1. Momento material ou da realidade social concreta perceber de que modo o direito verdadeiramente se constitui e como
emerge na realidade, e ainda qual é a instância a que primacialmente
O primeiro é o momento material ou da realidade social concreta – é reconhecemos legitimidade para tomar em mãos a dialéctica em que
aqui que emergem os problemas juridicamente relevantes e que se enredam os dois primeiros momentos.
requerem ao direito uma solução. A realidade influencia e co- A interrogação que aqui se coloca é a seguinte – qual é a instância
determina fortíssimamente aquilo que o direito é; e os próprios que vai constituir o direito em termos primordiais naquela
comunidade concreta? Ora, nunca existe apenas uma instância com É ainda importante salientar que foi com o Estado de Direito de
exclusiva legitimidade, ou seja, nunca há somente um modo de criação legalidade formal que a normatividade jurídica se viu reduzida à mera
da normatividade jurídica vigente. legislação.
Importa confrontar quais as experiências constituintes da Este tipo de experiência de constituição da normatividade jurídica
juridicidade – experiência consuetudinária, experiência legislativa e vigente apresenta determinadas características:
experiência jurisprudencial 1.  o direito objectiva-se em normas ou regras que fornecem critérios
abstractos susceptíveis de os regulamentar;
2.3.1. Experiência jurídica consuetudinária  essas normas ou regras pressupõem uma decisão e a racionalidade
que as predica assenta na sua inserção num quadro sistemático;
Este tipo de experiência constituinte da juridicidade já não existe.  elas têm ainda no texto em que se encontram consagradas a sua
Nas sociedades tradicionais, que se reviam no passado, o direito dimensão constitutiva, garante da sua racionalidade prosseguida;
manifestava-se como costume jurídico – um comportamento  as normas ou regras são dotadas de um poder que assume uma
comunitariamente estabilizado, reiteradamente observado e determinada estratégia e que concorre para a politização do direito.
intersubjectivamente vinculante. Significa isto que esta experiência
jurídica consuetudinária beneficia de uma índole social, uma vez que se 2.3.3. Experiência jurídica jurisdicional
afirma o passado.
Verifica-se aqui um processo constituinte que parte de uma Esta experiência constitutiva do direito beneficia de uma índole
orientação paradigmática e que se repete até se observar apenas o prudencial, implica uma autonomização da normatividade jurídica e do
irredutível – este tipo de experiência constituinte é uma autêntica pensamento que a reflecte e a dimensão temporal privilegiada é o
normatividade jurídica que se observa. presente.
Aqui, a constituição do direito ocorre aquando da resolução dos
2.3.2. Experiência jurídica legislativa problemas juridicamente relevantes – isto implica a intervenção de um
mediador a quem compete proferir uma decisão judicativa, devendo
A experiência jurídica beneficia de uma índole estatal, na medida em essa solução ser adequada ao cerne da controvérsia.
que remete para o poder político, cumpre-se na prescrição de normas O mediador poderá ser objectivo, quando é chamado a projectar a
ou regras e visa projectar-se no futuro, devido ao seu carácter político- validade pressuposta no problema que visa solucionar; e subjectivo,
finilisticamente reformador. uma vez que lhe compete ajuizar do mérito jurídico das pretensões das
A constituição do direito destaca-se da sociedade e afirma-se como partes conflituantes.
uma estratégia politicamente orientada e que vai ser assumida por um Podemos encontrar sempre numa comunidade concreta uma
Governo ou por um Parlamento. experiência polarizadora, nomeadamente nas sociedades
contemporâneas. Nas famílias romano-germânicas verifica-se uma
(1) vide J. M. AROSO LINHARES, Sumários Desenvolvidos. experiência legislativa – o direito constitui-se e manifesta-se
primacialmente enquanto se prescreve num sistema de legislação ou as desempenhar – não existe outro modo de criação do direito que
de civil law (como é o nosso); já nas famílias anglo-saxónicas observa- desempenhe as mesmas funções, consideradas essenciais e
se uma experiência jurisdicional – a normatividade jurídica constitui- determinantes. São elas as funções ordenadoras e reformadoras –
se e manifesta-se enquanto se realiza num sistema de precedentes ou apenas a legislação apresenta as condições necessárias para garantir
de common law. No entanto, estes dois sistemas diferentes têm-se uma ordenação no plano político-social, requeridas pelas sociedades
vindo a aproximar juridicamente. actuais que constantemente clama por reformas estruturais; e as
Por outro lado, o costume jurídico, nas sociedades actuais, já não se funções planificadores e regulamentadoras – a ordenação político-
configura como um critério primordial em nenhuma comunidade social implica uma programação para o futuro e há que instituir
concreta – ele continua a ter relevo e importância, mas já não é uma órgãos, atribuir-lhes competências, e que por sua vez vão assumir
experiência polarizadora, embora continue a revelar-se crucial na área funções regulamentares que garantem a tal planificação para os
do direito internacional público. tempos posteriores. Estas duas são funções essencialmente políticas,
na medida em que a legislação é o único modo de constituição da
2.3.4. Especial referência à legislação juridicidade que consegue prescrever o futuro.
No entanto, verificam-se ainda duas outras funções que são
a) A importância da legislação na constituição da juridicidade essencialmente jurídicas. Em primeiro lugar, uma função de integração
– encontramo-nos inseridos em sociedades plurais e fragmentadas,
No âmbito do nosso corpus iuris, a legislação é o modo constituinte nas quais não se observa uma autêntica partilha de valores. Ora, se os
por excelência da juridicidade, destacando-se diversas razões de indíviduos não chegam a um acordo quanto à matéria dos valores, terá
variadas índoles. de ser a legislação a dizer-lhes aquilo que é lícito e o que é ilícito; e esta
De acordo com razões de índole política, todos nós somos herdeiros distinção é importante porque existem cada vez mais problemas
do Estado de Direito de legalidade formal, ou seja, da visão localizados nas designadas zonas cinzentas (v.g. caso do aborto). Em
normativista do direito – segundo esta óptica, um dos princípios mais segundo lugar, uma função de garantia, associada ao direito penal de
importantes era o da separação dos poderes, que acentua a relevância forma acentuada pois é a cátedra jurídico-dogmática que mais afecta
da legislação, que era assumida como supreme power e se sobrepunha os indívíduos, podendo mesmo, em último recurso, retirar-lhes a
perante os demais poderes do Estado (executivo e judicial). liberdade. Torna-se então premente que o direito nos diga quais os
As razões de índole sociológica salientam que as sociedades comportamentos que são considerados crimes para sabermos
contemporâneas, contrariamente às sociedades pré-modernas, antecipadamente quais as consequências dos actos que praticamos.
possuem um fortíssimo carácter planificador que impõe uma Uma vez prevendo para o futuro, apenas a legislação nos garante uma
institucionalização e uma regulamentação – apenas a legislação pode certa segurança; e caso essa segurança não existisse, tornar-no-íamos
planificar e, assim, prever para o futuro. num autêntico objecto da prepotência do poder político.
Segundo as razões de índole funcional, existem determinadas
funções que apenas o poder legislativo se encontra em condições para
Não obstante as importantíssimas funções que acabámos de referir, tem a capacidade necessária para prever todos os problemas que
a verdade é que a lesgilação apresenta limites e, por isso, ela não pode existem na prática comunitária – surgem constantemente problemas
assumir-se como o único modo de constituição da normatividade para os quais o legislador não previu um critério.
jurídica vigente – ao contrário do que defendia o positivismo jurídico, Este pensamento foi gerado pelo positivismo jurídico. A primeira
existem outras fontes do direito para além da legislação. tentação dos positivistas foi afirmar que esses problemas não eram
jurídicos, ou seja, sempre que se verificasse uma preterição sem uma
b) Os limites funcionais e normativos da legislação norma pré-criada para a solucionar, esse problema não era
considerado jurídico – este fenómeno ocorria porque o sistema era
Importa também distinguir os limites que este modo constituinte da fechado e acabado.
normatividade jurídica vigente apresenta – os limites formais e os Actualmente, falamos de limites normativos objectivos porque
limites normativos. compreendemos o sistema jurídico como aberto - não existem
De acordo com os limites formais da legislação, existem lacunas, mas o reconhecimento de que há um problema para o qual o
determinadas situações jurídicas nas quais o legislador não pode legislador não disponibilizou um critério solucionador. Se para o
intervir apesar de o direito o poder fazer. O legislador encontra-se pensamento tradicional este era um grave problema, para o legislador
limitado no plano funcional – ele não pode pretender regular todas as contemporâneo não o é – no caso de não existir uma nnorma pré-
matérias com relevo jurídico. Apesar de o direito se poder imiscuir em disponibilizada, o jurista procura uma resposta ao problema nos
certas relações, por terem uma relevância jurídica, nessas mesmas demais estratos do sistema jurídico, ou seja, busca um critério na
relações o legislador não poderá intervir infinitamente e em todos os jurisprudência e na doutrina. No limite, se não existir mesmo um
limites – existem domínios que se encontram limitados à legislação e critério, ele terá de construir direito ex novo através do estrato dos
não ao direito. princípios normativos e do sentido do direito.
Por outro lado, existem os limites normativos, através dos quais o
legislador pode intervir; contudo, a legislação encontra-se limitada a  Limites normativos de validade
vários níveis. Vejamos.
As normas encontram-se limitadas no plano da validade pelos
 Limites normativos objectivos princípios normativos. Todas as normas terão de ser a objectivação de
um ou mais princípios – se isto não se verificar, elas não serão normas
Este tipo de limite normativo da legislação corresponde ao válidadas e, consequentemente, não serão vigentes.
tradicional problema das lacunas da lei – existem casos concretos, A norma terá de ser trabalhada no seu telos e na sua arché. Se uma
susceptíveis de serem qualificados como juridicamente relevantes, norma frustrar princípios, encontramo-nos perante uma lei injusta, um
para os quais não há uma norma legal pré-disponibilizada pelo sistema problema transistemático que raramente se coloca no actual Estado de
que assuma a sua relevância, ou seja, existe um problema mas não uma Direito. Por outro lado, verifica-se já com mais frequência situações
norma que o solucione. A imaginação do legislador é limitada, ele não concretas em que se torna necessário adaptar a norma aos princípios
em concreto, sob pena de os frustrar – é o problema da reflexão Se podemos reconhecer ou não um limite objectivo, temporal ou de
metodológica, no qual se considera que a mobilização dessa norma validade, o mesmo não sucede em relação aos limites intencionais –
conduz os homens a frustrar os princípios que aquela norma assume. estes estão sempre presentes quando mobilizamos normas jurídicas.
Reconhecer um limite intencional significa reconhecer que existe
 Limites normativos temporais sempre uma distância que separa a norma, enquanto critério geral e
abstracto, e o caso concreto e individual. Mas esta distância não é uma
Este género de limites da legislação implicam a consideração da zona tranquila; é um autêntico campo de tensões – é sempre
passagem do tempo. Teremos então de destinguir dois problemas – o necessário realizar juízos de valor quando se confere uma resposta a
das normas caducas e o das normas obsoletas. um problema jurídico concreto.
Estamos perante uma norma caduca quando esta foi superada no Torna-se premente determinar o mérito autónomo do problema
plano da validade – uma norma é caduca quando quando já não está concreto porque cada caso é sempre uma experiência única e
em consonância com os princípios normativos e essa superação deriva irrepetível; determinar a intencionalidade problemática da norma
do facto de os princípios se encontrarem sujeitos à erosão do tempo; já invocada, ou seja, a sua intencionalidade problemática (o seu telos); e
nos encontramos diante de uma norma obsoleta quando ela foi ainda determinar a intencionalidade axiológica da norma, isto é, o seu
superada no plano da realidade jurídica – aqui a realidade concreta já fundamento (o seu arché).
não convoca estas normas para resolver problemas jurídicos. O positivismo procurava garantir que o juiz respondia aos
O relevo jurídico da norma obsoleta depende da consideração da problemas imparcialmente, através de um silogismo lógico-
instituição e do modo como ela é compreendida ao longo do tempo. substantivo; todavia, esta garantia fracassou, uma vez que se percebeu
Antes de o jurista proceder à alteração da norma, ele já sabia que que o juiz teria de realizar ponderações. Mas como é que o juiz
aquela norma era obsoleta e que já não tinha eficácia – aqui atravessa esse caminho entre o caso abstracto e o caso concreto sem
confrontamos o estrato das normas legais com o estrato da realidade tomar decisões arbitrárias? Ora, será através da compreesnão de todos
jurídica. os estratos articulados, isto é, do sistema jurídico adequadamente
Já no caso das normas caducas, estamos a confrontar o estrato das compreendido; e é assim que o juiz fundamenta a sua decisão.
normas legais com o estrato dos princípios normativos. Este tipo de
norma distingue-se do limite de validade devido à importância da 2.4. Momento de objectivação
passagem do tempo que veio alterar a sua compreensão; mas isto não
se coloca no caso dos limites de validade, que são independentes da Finalmente, o último momento de constituição da normatividade
erosão do tempo – estamos então a procurar realizar os princípios que jurídica vigente é o derradeiro momento de objectivação.
a norma objectiva em abstracto , não considerando uma mutação da Depois de se constituir, o direito terá de ser integrado num
visão global daquele princípio. determinado corpus iuris, objectivando-se no sistema jurídico
 Limites normativos intencionais adequadamente compreendido.
Essa integração do direito poderá ser explícita ou formal – quando é Contudo, devido às circinstâncias dos casos, o juiz tinha de assumir
projectada em critérios jurídicos específicos; ou meramente implícita uma tarefa interpretativa. Durgiam então decisões contraditórias que
ou material – quando é reconstitutiva do sentido da normatividade tinham de ser ultrapassadas para não pôr em causa os valores da
jurídica vigente. igualdade e da segurança – assim, justificou-se a criação da figura dos
No entanto, apenas nos encontraremos diante de um autêntico assentos, que viria a ser revogada, em Portugal, pelo Código de
direito quando se afirmar uma específica validade como Processo Civil de 1995.
societariamente eficaz. Os assentos visavam dar uma resposta à problemática da
contradição de julgados – para se respeitar o princípio da igualdade,
3. A jurisprudência judicial enquanto fonte de direito – a não se poderia admitir que um tribunal tomasse decisões contrárias
particular problemática dos assentos e a sua revogação sobre a mesma matéria e no âmbito da mesma legislação. Sempre que
pelo Código de Processo Civil (1995) se verificassem duas decisões contrárias, proferidas pelo Supremo
Tribunal de Justiça ou por um Tribunal da Relação, era possível
Apesar de o legislador ter uma importante prerrogativa na criação recorrer da segunda decisão para o tribunal hierarquicamente
do direito nos sistemas de legislação como o nosso, a verdade é que ele superior, de forma a uniformizar a jurisprudência e não permitir mais
não detém o monopólio da criação da juridicidade, na medida em que contradições de casos julgados.
a legislação apresenta vários limites e, por isso, teremos de reconhecer Mas como actuava o Supremo Tribunal de Justiça? Em primeiro
outros modos de constituição da normatividade jurídica vigente. lugar, respondia ao problema concreto fundamentando a decisão
A jurisprudência judicial tida como fonte do direito é uma matéria adoptada – estamos perante um modo de constituição da juridicidade.
muito discutível. Em que termos a jurisprudência judicial cria direito? Em segundo lugar, o STJ estava obrigado a retirar daquela decisão uma
Ela remete para uma presunção de justeza e é em função disso que a norma legal que valesse para todos os casos de natureza análoga que
jurisprudência nos vincula. Se o juiz aderir àquela corrente, não terá surgissem no futuro – criava-se assim um assento, que mais não era
de justificar as suas decisões, uma vez que respeita os princípios da que uma norma geral e abstracta com força obrigatória geral. Neste
inércia, da igualdade de tratamento e da segurança jurídica. No caso, encontramo-nos perante um modo de constituição do direito
entanto, se pretender conferir uma resposta contrária, ele terá de anómalo, uma vez que o tribunal assume a tarefa do legislador,
fundamentar o seu afastamento daquela corrente apresentando o ónus violando o princípio da separação de poderes (J. GOMES CANOTILHO).
da contra-argumentação. Actualmente, não existem assentos, mas observam-se dois institutos
Quando caracterizámos o pensamento jurídico positivista, vimos que visam responder ao problema das contradições dos julgados. Em
que ele era formalista – pretendia acentuar os valores da igualdade primeiro lugar, o processo civil – acentua a uniformização da
perante a lei e da segurança do direito. A tarefa do juiz era aplicar o jurisprudência, conduzindo a que a unidade do direito não ponha em
direito à prática, não estando incumbido de criar direito – o direito era causa o facto de o juiz contrariar uma decisão uniformizada (vide
pré-escrito pelo legislador e o jurista deveria aplicá-lo lógico- artigos 732º/a ss. e 763º ss. do CPP). Em segundo lugar, o processo
dedutivamente. penal – não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais, mas
estes deverão fundamentar as divergências relativas à jurisprudência 17ª Lição | Págs. 747-832
fixada naquela decisão apresentando o ónus da contra-argumentação,
recorrendo ao estrato da jurisprudência judicial e beneficiando de uma A METODOMOLOGIA DO DIREITO
presunção de justeza (artigos 437º ss. e 445º/3 do CPP). Estes
institutos são a prova acabada de que a jurisprudência também é um
A CONCORRÊNCIA DAS NORMAS NO TEMPO
mecanismo criador da normatividade jurídica vigente; mas também
poderão ser considerados como modos constituintes da juridicidade a
jurisprudência doutrinal e a autonomia privada.
1. Notas preliminares sobre o objecto fundamental da
Para concluir, o problema das fontes do direito tem uma metodomologia do direito
importância teorética para combater a visão tradicional. Mas tem
também uma relevânica prático-problemática – a jurisprudência A metodomologia ocupa-se da problemática da racionalizada
reconstitui a normatividade jurídica vigente, mas existem situações em realização judicativo-decisória do direito. A proposta de compreensão
que ela cria direito ex novo; e a doutrina pode ainda criar direito de do exercício metodológico deste curso é pós-positivista – não é uma
raiz, respondendo do zero a um problema que pressupõe, implicado perspectiva funcionalista, uma vez que não se centra na decisão; mas
que a instância que co cria passe pelo crivo dos quatro momentos jurisprudencialista, pois centra-se no juízo.
constituintes da juridicidade. Ora, para constituir o direito teremos de As duas questões nuncleares da motologia são o tipo de pensamento
pressupor o sentido do direito para arriscar qualificar o problema que o jurista deve mobilizar para encontrar uma solução
como juridicamente relevante. adequadamente compreendida para o problema concreto e os passos
que ele deve dar desde o confronto com o caso até à sua resolução
definitiva.

2. O positivismo exegético francês e o positivismo


sistemático-conceitual germânico – referência e
caracterização geral do método jurídico

O positivismo jurídico procurou pré-escrever um método à prática,


fenómeno que até então nunca se havia verificado – em Roma, o
pensamento jurídico era jurisprudencial doutrinal , baseado nas
opiniões dos jurisconsultos romanos; na Idade Média, esse
pensamento era hermenêutico, baseado na mera exegese dos textos
jurídicos. Já na modernidade, o pensamento jurídico deixa de ser
jurisprudencial para ser axiomático-dedutivo.
O pensamento jurídico alienou-se do direito e assumiu-se como uma Em França, depois da revolução de 1789, o direito passou a estar
ciência que tinha um objecto que devia conhecer identificado com a lei, já inserida de forma estabilizada num código.
epistemologicamente. Se dantes o direito era um problema da filosofia Verificou-se então uma proliferação de códigos jurídicos e uma
prática e da doutrina do bem e do justo, com a modernidade convergência entre o normativismo e o legalismo.
encontramo-nos perante um sistema pronto, acabado e fechado de Na Alemanha, obsevou-se uma reacção ao positivismo exegético
normas e imperativos. francês – contrariamente àquilo que defendia a corrente francesa, a
Ora, o pensamento positivista procurou prescrever um método à Escola Histórica de FRIEDRICH VON SAVIGNY afirmava que o direito não
prática – surgiu então o método jurídico por autonomásia. A partir do se reduzia à lei; o direito era o resultado do espírito do povo,
momento em que se ambicionou que o direito fosse ciência ao lado das procurando-o nas instituições e no costume de cada comunidade
outras, o pensamento jurídico pensou imediatamente em tratar o concreta. A Escola Histórica contribui para este método, mesmo
direito como jurídico, assumindo uma concepção científico-jurídica e, contestando a redução do direito à lei, degenerando num
consequentemente, um discurso próprio e autónomo. Havia uma conceitualismo – na Alemanha, sofreu-se uma grande influência do
intenção prescritiva, em que o próprio legislador pré-escrevia regras normativismo e a Escola Histórica pretendeu converter os materiais
sobre o método; e normativa, em que as regras vinculavam dispersos em normas legais. Pelo contrário, o pensamento
obrigatoriamente todos os juristas. positivístico-exegético francês foi influenciado por uma visão científica
O grande objectivo dos positivistas era dominar teoreticamente a da juridicidade.
prática, tornando-a onjectiva e racionalizando-a; mas a prática resistiu. O método jurídico possui três dimensões – uma dimensão
O pensamento jurídico tinha duas grandes ambições – conhecer hermenêutica, tipicamente francesa; uma dimensão epistemológica,
cientificamente o direito para posteriormente racionalizar a sua característica do positivismo germânico; e ainda uma dimensão
realização concreta. Para que tal se verificasse, era necessário que os técnica, partilhada pelos dois positivismos. Este último momento do
juristas seguissem de forma rigorosa toda uma série de etapas, para método jurídico, de aplicação do direito à prática, beneficiava de um
que no final se garantisse uma aplicação lógico-dedutiva da juridicade, silogismo subsuntivo; e esse método dividia-se em três momentos.
ou seja, para que fosse garantido o silogismo subsuntivo. Nessa
premissa maior, deveria aparecer uma única norma já interpretada em 2.1. Momento científico
abstracto e com um único sentido – apenas assim se garantia que o juiz
era um mero pronunciador da letra da lei; se tal não se verificasse, Neste primeiro momento do método jurídico estamos a conhecer
corria-se o risco de o juiz responder de forma arbitrária aos epistemologicamente a normatividade jurídica; e aqui encontramos
problemas, tornando-se necessário garantir a sua neutralidade. diferenças entre os dois positivismos tradicionais – para o positivismo
Esse método jurídico traduz-se na síntese de dois positivismos – o exegético francês, o objecto dado pelo direito era a lei já inserida no
positivismo exegético francês e o positivismo sistemático-conceitual código (Código Civil Francês, de 1804); mas este não era o momento
alemão. mais importante, antes era o posterior momento hermenêutico, uma
vez que o direito já se encontrava ali vertido nos códigos; já para o
pensamento positivista sistemático-conceitual alemão, este já era o Tratava-se de esclarecer o sentido e o verdadeiro significado dos
momento mais importante, sobretudo a tarefa da construção e conceitos utilizados nas normas e princípios mobilizados para
sistematização de conceitos, na medida em que o direito não se solucionar um problema concreto.
encontrava reduzido à legislação. Esta configurava-se a tarefa mais relevante e cientificamente última
O jurista teria, portanto, de cumprir uma série de tarefas do momento científico do desenvolvimento do método jurídico –
cronologicamente e racionalmente orientadas. passamos agora a ter o direito dogma, isto é, uma rede de conceitos
que permite ao jurista conhecer devidamente e de forma completa o
2.1.1. Tarefa da análise direito. E depois de terminada esta terceira tarefa, passava-se como
que naturalmente para o momento seguinte.
Esta primeira tarefa do jurista no momento científico do
desenvolvimento do método jurídico cabia à jurisprudência inferior. 2.2. Momento hermenêutico ou da interpretação stricto sensu – a
No fundo, pretendia-se converter todos os materiais dispersos em teoria tradicional da interpretação
normas jurídicas; e para isso era necessário separar tudo aquilo que
era singular de tudo o que fosse geral, abstracto e racional. No término Este segundo momento do método jurídico era considerado o mais
desta alienação, não o jurista não volta a lidar com documentos importante pelo positivismo exegético francês. Aqui inclui-se não
dispersos, mas sim com normas jurídicas. apenas a interpretação, mas também a integração das lacunas da lei.
Interpretar traduz-se na inserção da norma numa rede de conceitos
2.1.2. Tarefa da concentração lógica já estabilizada pela jurisprudência superior – esta é uma autêntica
interpretação dogmática, na medida em que se assume o direito como
Esta segunda tarefa do jurista no momento científico cabia também um dogma sem o questionar.
à jurisprudência inferior. Neste momento hermenêutico teremos de remeter para a teoria
Nesta segunda etapa, as normas são assumidas como círculos tradicional da interpretação 2.
lógicos e, mediante um processo de generalização e de síntese,
procurava-se elaborar um princípio geral de direito que se limitava a 2.2.1. Objecto da interpretação
tornar o conjunto de normas mais intelígiveis. Estes princípios eram
normas, simplesmente eram mais gerais e abstractas para que os O objecto da interpretação é a norma vista como um texto. Desde
juristas pudessem conhecer o direito de forma plena e acabada. logo, não existe direito antes daquele texto – a letra da norma é
autenticamente constitutiva da normativididade jurídica.
2.1.3. Tarefa da construção e sistematização de conceitos

Nesta última etapa, a tarefa de construção e sistematização de


conceitos cabia já à jurisprudência superior.
(2)vide Lições 19ª e 20ª – A interpretação jurídica; Teoria tradicional da interpretação,
Distinguia-se ainda a situação metodológica normal, em que se
que procurou tratar de quatro temas fundamentais: o objecto, os objectivos, os encontrava no seu estado saudável e não sofria indeterminações,
elementos e os resultados, pp. (?) sendo possível, através da mobilização exclusiva dos elementos intra-
Neste contexto, realiza-se uma compreensão global do texto – o textuais, determinar o sentido último daquela norma; e a situação
positivismo não reduziu as normas à letra, pois o texto é mais que a metodológica excepcional, em que a norma surgia com demasiadas
letra; falamos na letra para identificar o elemento gramatical e no indeterminações e não era possível determinar o seu sentido último,
espírito quando nos referimos aos restantes elementos. sendo apenas necessário mobilizar muito cautelosamente o elemento
Fazia-se ainda uma divisão entre os elementos intra-textuais e os teleológico.
elementos extra-textuais. Ora, a letra identifica o elemento gramatical e o espírito assume os
Os elementos intra-textuais traduziam-se no elemento gramatical, restantes elementos. Mas como se chegava a um único sentido através
que era a letra da lei; o elemento histórico, que era o texto na sua da interpretação? Era fundamental alcançar para casa norma um
relevância histórica e em que era necessário compreender o contexto sentido em abstracto – interpretar uma norma era inseri-la naquela
histórico daquela lei (a designada occasio legis), observando rede de conceitos disponibilizada pela jurisprudência superior. Era
documentos da sua época para entender o contexto político-social importante garantir um único sentido com o intuito de garantir a
daquela norma; o elemento sistemático, classificação apresentada por segurança no momento da aplicação do direito através de um
SAVIGNY, que distinguiu o elemento lógico – a racionalidade intrínseca silogismo subsuntivo – partir de uma premissa, que era a norma
daquela norma, considerando-a na sua estrutura hipotético- interpretada em abstracto com um único sentido; se ela não possuísse
condicional – e o elemento sistemático – consideração da norma um só sentido, colocava-se em causa o pensamento formalista, pois
inserida num sistema de normas, rodeada por outras normas, e inseri- verificavam-se premissas maiores e diferentes conclusões e era
la numa rede de conceitos; estes dois elementos acabaram por se necessário evitar este fenómeno a fim de garantir a imparcialidade e a
fundir pois considerou-se que era impossível separar a racionalidade neutralidade do juiz.
intrínseca da norma de uma compreensão de outras normas. Todavia, As tarefas da jurisprudência inferior eram assumidas de forma
torna-se premente atentar em duas considerações – quando olhamos rigorosa e teriam de ser cronologicamente orientadas.
para a norma a partir de outras normas que estão inseridas no mesmo
instituto, falamos de lugares contínuos, pois mobilizamos argumentos a) Tarefa de exclusão
sistemáticos; já sempre que consideramos normas que se encontram
inseridas em institutos afins, estamos perante lugares paralelos. Nesta primeira tarefa do jurista quanto à interpretação da norma, o
Por outro lado, os elementos extra-textuais não devem ser elemento gramatical vai actuar sozinho e em termos vinculativos. Este
considerados, uma vez que estaríamos a colocar em causa a visão é a designada função negativa, uma vez que olhamos para o elemento
formalista do direito – falava-se antes do elemento racional, que gramatical e procuramos quais são os sentidos incompatíveis com a
acabou por ser designado de elemento teleológico, uma vez que se letra da lei, isto é, quais os significados a atribuir aos conceitos.
atendia ao fim da norma.
Dentro dos sentidos admitidos pela letra temos de distinguir dois negócio jurídico. A nulidade poderá ainda ser absoluta, quando se
géneros – o candidato positivo, o sentido que a letra inequivocamente verifica um vício mais grave; ou relativa, quando se observa a
abrange, pelo que estamos no âmbito da certeza positiva; e o candidato anulabilidade do contrato. Seria então através da articulação com os
neutro, que são os sentidos menos naturais, mas que a letra ainda demais elementos que iríamos descobrir o sentido. O ideial seria optar
admite, encontrando-se no âmbito da dúvida permitida. Já fora deste por um candidato positivo, mas no caso da existência de argumentos
círculo de sentidos admitidos pela letra encontram-se os candidatos fortes poder-se-á optar por um candidato neutro.
negativos, que são os sentidos que contrariam a letra e, por isso, a letra
não os admite e, consequentemente, exclui-os definitivamente – eles 2.2.2. Objectivos da interpretação
não poderão ser novamente convocados.
A letra assume um papel capital, uma vez que vai possibilitar as A finalidade da interpretação da legislação poderá ser encarada
possibilidades de interpretação, surgindo duas posições distintas – através da mobilização de três tipos de correntes distintas – as teorias
uma defende que a lei é uma autêntica fronteira de interpretação, subjectivistas, as teorias objectivas e as teorias mistas.
sendo impossível admitir algo contra a sua letra; outra afirmava que
terá de haver um mínimo de correspondência entre o sentido que é a) Teorias subjectivistas
atribuído à norma e o teor verbal do seu texto.
Assim, no término desta tarefa de exclusão, temos sentidos As teorias subjectivistas defendiam que o objecto da interpretação
absolutamente excluídos e um círculo de sentidos positivos. era determinar a vontade real do legislador historicamente autor da
mesma – o mens legislatoris. Apenas assim se garantia o valor da
b) Tarefa de selecção segurança que permitia afirmar que os homens não obedeceriam
senão a eles próprios, significando isto que a vontade do legislador era
Nesta segunda tarefa da interpretação da norma, a letra já não irá procurar a vontade da maioria (vide teoria da vontade geral de JEAN-
actuar sozinha; ela terá de actuar agora num jogo com outros JACQUES ROUSSEAU).
elementos – o elemento histórico, o elemento sistemático e Dentro destas teorias temos de distinguir uma orientação mais
eventualmente o elemento teleológico, apenas em situações radical, que defendia que se devia procurar a vontade real no sentido
excepcionais e de forma cautelosa. Por outro lado, falamos agora de estrito da vontade psicológica do legislador; e a mais moderada, que
uma função positiva, na medida em que se procura o sentido último a argumentava que se teria de verificar uma conjugação entre a vontade
atribuir à norma. real e o texto da norma.
Em título de exemplo, o artigo 261º do Código Civil afirma que “é
nulo o negócio jurídico celebrado pelo representante consigo mesmo”. b) Teorias objectivas
Atentemos na palavra nulidade – se o teor verbal do texto nos diz que
o contrato é nulo, qual será o sentido incompatível que iremos As teorias objectivas vieram criticar esta procura pela intenção do
excluir? Será a validade, pois nunca poderá ser válido este tipo de legislador e argumentaram que o intérprete não deveria considerar a
mens legislatoris porque isso geraria insegurança. Agora, não existia Quando optássemos por um sentido, estaríamos em condições de
apenas um legislador; havia muitos porque existiam inúmeros qualificar um resultado. O resultado ideal era a interpretação
projectos e discussões parlamentares. declarativa – quando, no término da tarefa de selecção, conjugados
Esta doutrina afirmou que o objectivo era então determinar a todos os elementos, se tinha optado por um candidato positivo, isto é,
vontade da própria norma desligada do seu autor – assim, procurava- pelo sentido mais natural daquelas palavras.
se a intenção da lei, a mens legis. Por exemplo, uma postura autárquica que afirma que “a câmara
Deveria-se ficcionar um legislador razoável e a partir dessa ficção municipal pode alienar bens imóveis até determinado montante” – a
realizar determinadas presunções – presumia-se que o legislador se palavra alienar tem um sentido polissémico, mas ela possui um
havia exprimido da melhor forma (plano expressivo) e que tinha sentido técnico-jurídico específico, que sempre que existe deve ser
adoptado as melhores soluções (plano do conteúdo). adoptado. Em termos jurídicos, alienar significa a transmissão da
Ainda dentro da doutrina objectivista, verificam-se duas orientações propriedade que pode realizada a título gratuito ou oneroso, pelo que
– os históricos, que defendiam que a norma deveria ser interpretada podemos falar de compra e venda ou de uma doação. Se através da
tendo em conta o contexto histórico do seu nascimento; e os tarefa de selecção desembocarmos nesta conclusão, o resultado
actualistas, que acrescentavam às duas presunções anteriores uma interpretativo será uma interpretação declarativa porque optámos por
terceira – era necessário que o legislador tenha dotado o texto de um candidato positivo, ou seja, pelo seu sentido mais natural.
flexibilidade suficiente para se adaptar a novas circunstâncias. Mas imaginemos que possuímos fortes argumentos que nos levem a
O nosso Código Civil, no seu artigo 9º/1, não tomou nenhuma opção, optar pelo candidato neutro, ou seja, que nos dizem que o sentido a
tendo-se feito apenas uma referência ao pensamento legislativo. atribuir à norma é mais restrito, uma vez que alienar diz respeito
Todavia, mais à frente, no nº 3 do mesmo artigo, encontramos apenas ao contrato da compra e venda – ora aqui estamos perante
claramente consagrada a teoria objectivista – este artigo indica uma uma interpretação restritiva; logo, conclui-se que todos os resultados
actuação claramente actualista no nº 1 in fine. Os elementos que não derivam de uma interpretação declarativa implicam a
encontram-se todos plasmados noa rtigo 9º/1. Estes artigos mobilização de um candidato neutro.
receberam uma fortíssima influência de MANUEL DE ANDRADE, acérrimo Noutro exemplo, a palavra utilizada foi venda; como se classifica o
defensor da jurisprudência dos interesses. resultado? Será através de uma interpretação declarativa porque
optámos por um candidato positivo. No entanto, se com argumentos
Para concluir, uma breve referência às teorias mistas – estas convincentes chegássemos à conclusão de que o legislador quis dizer
procuraram consolidar os aspectos positivos das duas teorias acima alienar apesar de a norma dizer venda, o resultado seria uma
referidas, na medida em que os argumentos de ambas as doutrinas são iterpretação extensiva, na medida em que a interpretação realizada é
considerados frágeis e reversíveis. mais ampla. Já a interpretação enunciativa é a exegese do sentido
logicamente implícito na letra da lei, através da mobilização de
2.2.3. Resultados da interpretação ou qualificação argumentos lógicos – v.g. se a câmara municipal pode alienar, também
poderá onerar, uma vez que se admite o resultado mais oneroso e o do pensamento tradicional. Todavia, este persiste no início do século
menos oneroso. XX e é aqui que vem beber a jurisprudência dos interesses.
Para chegarmos à anulabilidade temos que realizar uma
interpretação extensiva, ampliando o sentido da palavra nulidade,
porque o sentido mais natural é a nulidade absoluta e temos de 3.1. Jurisprudência dos interesses
ampliar o seu sentido; apenas depois fazemos uma interpretação
restritiva para chegarmos à nulidade relativa. A jurisprudência dos interesses (na sua designação original, a
interessenjurisprudenz) nasceu entre um fogo cruzado, uma vez que
3. A superação do método jurídico – a livre investigação combateu em duas frentes – se por um lado pretendeu superar o
científica em França e o movimento do direito livre na positivismo conceitual, por outro não quis cair nos excessos do
Alemanha; a jurisprudência dos interesses e a sua derrota movimento do direito livre. Esta corrente tem no jurista alemão
PHILIPP HECK o seu maior representante.
Com o designado movimento do direito livre, que se verificou na Segundo HECK, o direito não poderia ser mais uma ciência fechada
Alemanha, o juiz deveria resolver as controvérsias tendo em conta o nos conceitos, na medida em que deveria servir a vida – verifica-se
seu sentido de justiça, vindo reagir contra o pensamento tradicional e então uma viragem finalista que se iniciou ainda no século XIX, mas
demonstrar claramente as suas fragilidades. Esta corrente coloca a que se concretizou plenamente já no século XX. Torna-se premente
tónica no caso concreto – defende uma interpretação contra a lei e em substituir uma causalidade determinada por conceitos por uma
defesa da própria justiça. No entanto, o referido movimento não foi determinada por finalidades. O direito deveria ser ainda uma ciência
além do exercício destes mecanismos, uma vez que não propôs prático-normativa e salientou-se a importância do caso concreto e da
nenhum método inédito que constituisse uma autêntica alternativa à decisão judicial.
teoria tradicional da interpretação. Contudo, o movimento do direito Se por um lado, o jurista alemão apresentou esta teoria, de acordo
livre contribuiu fortemente para a viragem finalista da normatividade com uma visão sociológica da realidade, ele apresentou como primeiro
jurídica – o direito deve defender a vida. pressuposto da sua proposta metodológica a obediência do julgador à
Logo em pleno século XX, começaram a surgir críticas ao lei, colocando uma grande ênfase nesta sua ideia utilizando um
pensamento tradicional e ao positivismo jurídico. Estas mesmas discurso meramente legalista – o legislador é o legítimo representante
críticas vieram inclusive de onde menos se esperava – elas eram da comunidade jurídica e daí que o julgador lhe deva obediência; no
oriundas de RUDOLF VON JHERING, um dos principais protagonistas do entanto, esta obediência não é cega, mas sim uma obediência pensante.
método jurídico, isto numa segunda fase do seu pensamento. O jurista Mas apesar de tudo isto, a jurisprudência dos interesses representou a
alemão publicou uma obra, intitulada A Finalidade do Direito, onde superação plena do pensamento tradicional, isto é, da anterior
afirma que o direito deve servir a vida – o direito não deverá ser jurisprudência dos conceitos (bergriffsjurisprudenz).
compreendido daquela forma fechada, sem a consideração da prática;
ele deve estar ao serviço dos fins, operando-se uma viragem finalista
3.1.1. A norma como prescritiva solução valoradora de interesses Esta proposta não reconheceu os limites de validade e ainda os
e a actuação do decidente limites temporais quanto às normas caducas; reconheceu já os limites
intencionais e temporais quanto às normas obsoletas, embora tenha
De acordo com PHILIPP HECK, a norma traduzia-se numa solução reconhecido de forma explícita os limites objectivos, afirmando que as
valoradora de um conflito de interesses e os casos concretos são, lacunas eram efectivamente reais.
portanto, conflitos de interesses – ora, a jurisprudência dos interesses
veio reduzir tudo aos interesses. 3.1.2. O método proposto para a interpretação da lei
O julgador deveria actuar como um puro colaborador do legislador,
procurando reproduzir em concreto o juízo de valor que o legislador A jurisprudência dos interesses entendia que a norma deveria ser
fez em abstracto para o problema que tipificou e devendo privilegiar o interpretada seguindo toda uma série de imagens intermédias até
interesse ao qual ele deu preferência. Ao apresentar assim os factos, chegar à imagem definitiva. PHILIPP HECK falava em subjectivismo, mas
HECK veio defender um juízo analógico – compara-se um conflito de não se tratava de um subjectivismo real – ele próprio defendia que se
interesses concreto com aquilo que é previsto em abstracto. Uma vez deveria fazer uma investigação histórica dos elementos causais, mas
realizado este juízo analógico, opta-se por aquele que o legislador quis não visava reconstruir a vontade real do legislador historicamente
priveligiar na norma em abstracto. autor da norma; visava-se antes a reconstrução da vontade normativa
A norma tem duas faces – uma face de imperativo ou comando e – um subjectivismo teleológico orientado para a procura da vontade
outra face de interesses. A primeira face, a de imperativo ou comando, normativa, que mais não era do que o juízo de valor operado pelo
traduz-se na dimensão estrutural da norma, sendo que o imperativo se legislador acerca do conflito de interesses tipificado na hipóteses da
exprime através do elemento gramatical; simplesmente, esta análise norma legal. É esta vontade normativa a imagem definitiva; e para
do comando terá de ser feita à luz da face dos interesses. Portanto, esta alcançá-la, é necessário passar pelo crivo das imagens intermédias.
segunda face da norma configura-se a sua dimensão material ou A primeira imagem intermédia é a imagem de comando ou
fisiológica. O elemento capital passa a ser o elemento heurístico, em imperativo, expresso na letra da norma jurídica. Depois de o
detrimento do elemento gramatical que caracterizava a primeira face, compreender, segue-se a imagem dos motivos causais, que conferiram
e que vai auxiliar o juiz. Mas o elemento mais importante passa a ser o uma causa àquela norma que surge como uma solução valoradora de
elemento teleológico – o jurista deve preocupar-se em determinar a um conflito de interesses; aqui encontramo-nos à procura da vontade
finalidade prática da norma que estava sempre relacionada com os do legislador. Depois passamos para a última, a imagem dos interesses,
interesses; e estes são todas as necessidades subjectivas, as na qual o intérprete considera os interesses em confronto num conflito
expectativas sociais, todos os impulsos e motivos que se manifestem tipificado pelo legislador na hipótese da norma – apenas aqui
na realidade, sejam elas realidades de tipo biológico ou de tipo real. Os chegamos à imagem definitiva, que é a vontade normativa do
princípios não são autênticas exigências de sentido, não são legislador, isto é, o interesse que ele privilegiou em detrimento de
autónomos – ora, não se considerou aqui o plano da ratio iuris. outro.
Quando se alcança esta vontade, pede-se ao julgador que privilegie, Em terceiro lugar, é necessário verificar-se a existência de uma
em concreto e num conflito de interesses real, o interesse a que o incongruência, se não mesmo de um conflito, no interior da norma. Se
legislador deu prevalência na hipótese da norma. O legislador deverá mobilizarmos aquela norma para resolver um conflito de interesses
obdecer inteligentemente ao comando, sempre orientado pela em concreto, estamos em condições de encontrar uma incongruência –
finalidade prática da norma, e por isso é que falamos de uma esta manifesta-se através do conflito insuperável entre o comando
subjectividade teleológica. No fundo, ao assistir-se a esta passagem, expresso no teor verbal do texto (elemento gramatical) e a finalidade
estamos também a assistir a uma superação da cisão entre o momento prática da norma (elemento teleológico). Ora, terá de se tratar desta
hermenêutico (da interpretação) e o momento da aplicação da norma situação limite de incompatibilidade absoluta, de tal forma que se
– reconhece-se que existe um continuum da realização do direito em obedecermos ao elemento gramatical isso irá desrespeitar o elemento
concreto, o que significa que a tarefa interpretativa apenas termina teleológico, e vice-versa. Para exemplificar este terceiro pressuposto,
quando se dá uma resposta ao problema concreto. HECK apresenta vários casos; vamos atender ao célebre caso da
Quando se considerava o sistema jurídico, ele não era considerado enfermeira.
um sistema de conceitos – para HECK, o verdadeiro era o sistema É dada uma ordem a uma enfermeira para às ɤ horas dar ao doente
jurídico interno, um sistema composto por um nexo objectivo entre os que não consegue adormecer o soporífero ɣ. Contudo, quando a
problemas concretos e as soluções a dar a essas preterições. O caso enfermeira chega diante do doente à hora prevista, este já se encontra
concreto é determinante em todo o processo metodológico e de nada a dormir; o que fazer? Para obedecer ao comando, a enfermeira teria
serve o esquema de conceitos se não forem considerados os de obrigar o paciente a acordar para depois o voltar a adormecer; por
problemas concretos. outro lado, se ela pretender obedecer inteligentemente ao comando,
Ao nível dos resultados da interpretação da lei verificou-se uma irá desrespeitar o comando para não desrespeitar a sua finalidade
evolução significativa – a jurisprudência dos interesses apresentou um prática – aqui privilegia-se o elemento teleológico, uma vez que se
resultado novo, a que HECK apenas admitia recorrer quando se trata de uma situação in extremis.
observassem certos pressupostos. Ora, quando interpretamos a norma, temos sempre de considerar a
Em primeiro lugar, era necessário que o conflito de interesses real sua ratio iuris, isto é, a sua realidade prática, o que para HECK era
fosse do mesmo tipo que o conflito de interesses previsto pelo considerar o conflito de interesses resolvido em abstracto pela norma
legislador na forma legal – deríamos encontrar-nos em condições de legal – ou seja, apurar a verdade normativa do legislador.
realizar um juízo de anaologia entre estes dois conflitos de interesses. Outros resultados interpretativos se seguiram, que no fundo são
Em segundo lugar, era necessário que se identificasse em concreto corolários da interpretação correctiva – a extensão teleológica e a
uma situação atípica, ou seja, apesar do problema do conflito de redução teleológica.
interesses real ser análogo ao conflito de interesses previsto na norma, A título de exemplo, considere-se o seguinte caso: Luís, ao actuar
os interesses em concreto deveriam apresentar-se de forma diferente. enquanto tutor de Maria, vende um bem a si mesmo, intervindo
Resumindo, a posição relativa dos interesses é diferente daquela que o simultaneamente como vendedor e comprador – este negócio vai ser
legislador previu – daí ser uma situação atípica. considerado nulo. Aqui, o sentido mais natural é a nulidade absoluta e
o menos natural é a nulidade relativa; será através do jogo entre desobedecer a um para obedecer a outro ou vice-versa. Assim sendo,
outros elementos que saberemos qual destes devermos optar – estamos autorizados a mobilizar o candidato negativo que a
realiza-se uma interpretação declarativa. Se fosse apenas a nulidade interpretação tradicional excluía, uma vez que é conferida relevância
relativa, devido à existência de argumentos fortes, poderíamos ao elemento teleológico em detrimento do elemento gramatical. Em
defender este resultado – assim, teríamos de realizar uma nome da vontade normativa do legislador, estamos autorizados a
interpretação extensiva para incluirmos a nulidade relativa. mobilizar um candidato negativo para considerarmos aquele negócio
Chegamos, portanto, a um sentido de nulidade amplo, que abrange as válido – verifica-se uma frustração do elemento gramatical na prática.
duas nulidades e apenas depois fazemos uma interpretação restritiva. Neste caso estávamos a fazer uma redução teleológica, isto é, excluir do
Imaginemos agora que Luís pretende doar a sua biblioteca a Maria. âmbito da norma um caso que à luz da função delimitadora da letra
Como a doação implica a aceitação por parte do donatário, Luís essa norma abrangeria – neste caso, vamos excluir do âmbito da
intervém como doador e vai receber a doação. norma o caso da doação.
À luz da visão tradicional da interpretação é possível considerar Já a extensão teleológica significa incluir no âmbito da norma um
esta doação válida? A letra exclui o sentido de validade porque a caso que essa regra não abrange à luz da função delimitadora da letra.
interpretação surge sem atender ao caso concreto e a letra tem uma Por exemplo, poderemos afirmar que um urso pode entrar num
função negativa - assim, não é válido à luz da teoria tradicional. Já de comboio, uma vez que se encontra fora do sentido delimitado pela
acordo com a teoria da jurisprudência dos interesses, que confere letra – “proibida a entrada a cães”. Ora, para incluirmos este caso
relevo ao elemento teleológico, os interesses que se encontram em teríamos de realizar uma extensão teleológica, de modo a incluir o
conflito são o próprio Luís (que pretende doar a sua biblioteca) e urso naquela norma.
Maria (que a vai receber). O artigo 9º do nosso Código Civil é o resultado de uma influência do
Qual é então o interesse que o legislador privilegia em detrimento do normativismo e da jurisprudência dos interesses. Estes resultados da
outro? Ora, ele privilegia o interesse do representado em abstracto – extensão teleológica e da redução teleológica são admitidos entre nós?
portanto, o legislador terá de ser orientado por essa finalidade prática. O nosso legislador consagrou a teoria da alusão, que conduz aos
Estamos então em condições de fazer um juízo de analogia entre os mesmos resultados práticos que a visão mais radical – terá de haver
interesses em abstracto e os interesses do caso concreto. um mínimo de sentido entre o significado que se atribui à norma e a
Estamos perante uma situação atípica? Sim, pois a situação prevista letra da lei.
pelo legislador é diferente da prevista em abstracto – Maria poderá vir Embora já se verifique alguma influência clara da jurisprudência
a beneficiar deste acto de doação generoso e o seu interesse não está a dos interesses, não se admitiu os resultados mais ousados, que
ser colocado em causa. chegavam a sentidos que a letra excluía.
Resta ainda verificar o terceiro pressuposto – verifica-se alguma Devemos sentir a vinculação deste artigo da mesma forma que
incongruência? Isto é, um confronto insuperável entre o elemento vinculam os critérios primários? A resposta é negativa – actualmente,
gramatical e o elemento teleológico – apenas se pode realizar a já se considera que as regras de interpretação são autênticos cânones
interpretação correctiva se for uma situação insuperável, isto é, metódicos, que não vinculam nos mesmos termos que as restantes
normas; mas podemos fazer estas interpretações porque o As críticas filosóficas afirmavam que a jurisprudência dos interesses
pensamento jurídico hoje é diferente do que aquele que consagrou apenas reconheceu os interesses empiricamente comprovados – o
aquelas primeiras normas do nosso Código Civil. direito não possui somente uma dimensão empírica; ele tem uma
importantíssima dimensão de idealidade, isto é, ele é um dever ser.
Estas críticas justificaram a superação desta proposta feita pela
jurisprudência dos interesses – surgiu então a jurisprudência da
3.2. As críticas dirigidas a Philipp Heck e a consequente valoração, que coloca a tónica na importância dos princípios e na
superação da teoria da jurisprudência dos interesses pela consideração da fundamentação da norma para além da sua finalidade
jurisprudência da valoração prática.
Esta teoria preocupa-se com os princípios que fundamentam as
São apontados quatro géneros de críticas à teoria da jurisprudência normas e dos quais depende a sua validade. Não podemos considerar
dos interesses defendida por PHILIPP HECK. apenas o elemento teleológico no âmbito da ratio legis, que passa a
As críticas sociológicas defendiam que mesmo do ponto de vista integrar também a problematização da sua ratio iuris.
sociológico é discutível que se possa reduzir toda a realidade a Confronta-se a norma com o estrato dos princípios e assim
conflitos de interesses. Os interesses não surgem sempre em conflito; reconhecem-se novos resultados interpretativos. Em primeiro lugar, a
muitas vezes verificam-se interesses convergentes (v.g. os interesses interpretação conforme aos princípios, que pode assumir várias
dos sócios de uma mesma empresa). modalidades – a correcção da norma conforme os princípios, situação
As críticas criteriológicas vieram afirmar que para a jurisprudência limite em que somos obrigados a afastar-nos da norma a favor do
dos interesses o objecto e o fundamento da valoração era o mesmo – princípio; a preterição, em que nos afastamos da norma porque o
os interesses. Segundo estes autores, não se conseguiu distanciar o princípio beneficia de uma presunção de validade; e a superação da
suficiente para julgar criticamente a valoração que se fazia. norma conforme aos princípios (nas duas primeiras estávamos a
Consequentemente, o julgador não estava em condições de procurar o reconhecer os limites de validade, enquanto nesta terceira falamos do
fundamento daquele juízo de valor, assumindo-o acriticamente e não o limite temporal, que é a superação por caducidade).
discutindo. A referida doutrina afirma ainda que se considerou a ratio Isto veio rasgar o caminho para a afirmação de uma visão
legis, mas que se ignorou completamente a referência aos princípios, jurisprudencialista do direito, que é a visão do nosso curso – obriga-
que foram tratados nos planos dos interesses, ignorando portanto a nos a considerar os princípios normativos, a pluridimensionalidade do
ratio iuris. sistema e a distinção entre critérios e fundamento. Reconhece-se de
As críticas sistemáticas argumentavam que a jurisprudência dos forma explícita que se verifica um continuum na realização do direito
interesses continuou apenas a referir-se a um sistema unidimensional em concreto, criticando-se a separação entre o momento da criação e o
do sistema jurídico, não reconhecendo a sua pluridimensionalidade. momento da aplicação do direito. A tarefa interpretativa não esgota a
Por outro lado, afirmava que esta teoria não confrontou critérios e reflexão metodológica – esta é mais ampla do que o problema.
fundamentos e apenas reconheceu o estrato das normas legais. Acentua-se ainda que a racionalidade a considerar é um pensamento
analógico – a inferência de particular para particular, isto é, a
dialéctica entre o problema concreto e o sistema assumido na sua
intencionalidade problemática. Assim, realizamos um juízo de
comparação sempre por referência a um termo de comparação que é a
juridicidade. Isto explica que esta visão coloca a tónica no caso
concreto e que este passa a ser o ponto de partida para a resolução do
caso concreto (prius) e também a própria perspectiva (posterius) – 19ª e 20ª Lições | Págs. 875-976
teremos de convocar o sistema jurídico na perspectiva do caso
concreto e de mobilizar o sistema adequadamente compreendido. A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

Tendo já sido feita referência à teoria tradicional da interpretação,


quando da análise do momento hermenêutico do desenvolvimento do
método jurídico, vamos agora centrar a nossa atenção na
contraposição entre a teoria tradicional da interpretação à perspectiva
prático-normativa, que é a do nosso curso. Veremos, então, e que
forma é que esta perspectiva aborda os seguintes temas.

1. O objecto da interpretação

Na teoria tradicional da interpretação, o objecto era a norma


jurídica entendida como um texto, nas dimensões da letra e do
espírito. Já na perspectiva prático-normativa, é o objecto de
interpretação passa a ser a norma-problema, entendida na sua
intencionalidade problemática.
O caso concreto passa a ser inserido nas circunstâncias e a norma
passa a ser entendida como um problema – por isso, é possível
falarmos num juízo analógico, uma inferência de particular para
particular; e numa racionalidade de comparação, uma vez que se
compara o problema resolvido em abstracto pela norma e o problema
concreto que se procura resolver.
O termo de comparação é a juridicidade – temos de ter uma norma 3. Os objectivos da interpretação
jurídica vigente e o problema tem que ser jurídico. O estrato do
sistema jurídico que nos permite identificar o problema como A contraposição entre objectivismo e subjectivismo é substituída
juridicamente relevante é o sentido do direito – o sistema terá de ser por uma outra – interpretação dogmática e interpretação teleológica. A
suficiente para colocar o problema, apesar de não ter de o ser para o primeira não é uma dogmática conceitual, mas sim de fundamentação
solucionar. – verifica-se a inserção da norma no corpus iuris vigente, isto é, num
2. Os factores ou elementos de interpretação sistema jurídico adequadamente compreendido; já a interpretação
teleológica acentua a finalidade prática da norma (o seu telos) –
A letra da lei perde a relevância autónoma e prescritiva que tinha, inicialmente apenas o telos e mais tarde a sua arché, o seu fundamento.
deixando de ser o elemento capital e de assumir uma função negativa Ora, devemos optar por qual? Devemos saber articular
de exclusão de resultados – ela passa a ser um elemento a ter em conta dialecticamente estas duas interpretações, pois como afirma FERNANDO
ao lado dos outros. JOSÉ BRONZE, elas são a face e a contra-face da mesma medalha. Se
O elemento sistemático sofre uma evolução – no contexto do atendermos a uma delas estamos a revelar imediatamente algo que a
positivismo considerava-se a inserção da norma num sitema outra revela mediatamente e vice-versa – a dogmática revela
unidimensional, em que as normas se inseriam em autênticas redes de imediatamente os fundamentos de uma ordem de direito, mas
conceitos; actualmente, o sistema é considerado pluridimensional, em mediatamente encontra-se lá também a finalidade prática, uma vez
que todos os estratos são vinculantes do jurista. que os principios são experiencialmente radicados, e têm uma
Seria possível convocar um princípio como sendo um elemento relevância problemática pois se isso não acontecesse não eram
sistemático na jurisprudência dos interesses? A resposta é princípios; já a teleológica já está imediatamente a considerar a
inequivocamente negativa, na medida em que a jurisprudência dos finalidade prática, a relevância problemática, mas mediatamente
interesses tratou os princípios como autênticos interesses – nunca temos igualmente que considerar a fundamentação, ou seja, a
problematizou a norma no plano da ratio iuris. referência aos fundamentos.
Por isso mesmo, o elemento teleológico também sofreu uma
evolução. Se à luz da jurisprudência dos interesses este elemento 4. Os resultados da interpretação
significava exclusivamente a consideração da finalidade prática da
norma, que não se desprendia dos interesses, era o juízo de valor que o Com os resultados obtidos a partir da jurisprudência dos interesses
legislador fez naquela norma – ela teve desde sempre esta – a interpretação correctiva e os seus corolários (redução e extensão
consideração voltada para os fins, problematizando a norma apenas no teleológica), que procuram a finalidade prática da norma. Já com a
plano da ratio legis. Ao invés de considerar apenas a finalidade prática superação desta corrente, pudemos observar outros resultados que
da norma, deve igualmente ter-se em consideração o seu fundamento procuram valorizar a arché, como a interpretação conforme aos
– este elemento passa a ser a ratio legis mais a ratio iuris. princípios e a procura dos princípios que aquela norma objectiva.
Dentro desta temos a correcção, a superação e a preterição.
Comparámos ainda o mérito autónomo do caso com a relevância
problemática da norma – a adaptação restritiva e a extensiva assentam
numa visão mais estática das coisas; a extensão teleológica e redução
teleológica assentam numa visão mais dinâmica, considerando os fins
que o legislador considerou e os fins que devemos mobilizar no nosso
caso concreto.
Confrontam-se agora a interpretação extensiva e restritiva com a
adaptação extensiva e a redução teleológica – confronto entre a letra e
o espírito através da função delimitadora da letra, estamos a
pressupor a letra nos resultados de interpretação, não consideramos a
grandeza das letras e do espírito - podemos mobilizar um candidato
negativo a propósito destes dois resultados.
- adaptação extensiva/ adaptação restritiva com a extensão/ redução
teleológica: relevância problemática da norma vs consideração do
telos da norma, a sua finalidade prática.

[EM FALTA: ANALOGIA LEGIS E ANALOGIA IURIS]


vide J.M. AROSO LINHARES, Sumários Desenvolvidos

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