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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA – PROARQ

ESPAÇO VIVIDO FAVELA


brincadeiras infantis nos espaços livres da Rocinha

GLAUCINEIDE DO NASCIMENTO COELHO

Dissertação de Mestrado apresentado ao Programa de Pós-Graduação em


Arquitetura – PROARQ, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Orientadora: Drª, Profª Cristiane Rose Duarte

Co-Orientadora: Drª, Profª Vera M. R. de Vasconcellos

Rio de Janeiro, RJ – Brasil


2004
ESPAÇO VIVIDO FAVELA
brincadeiras infantis nos espaços livres da Rocinha

Glaucineide do Nascimento Coelho

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-


graduação em Arquitetura, Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como requisitos necessários à obtenção do título de Mestre
em Ciências em Arquitetura, área de concentração em
Teoria e Projeto.

Aprovada por:

Orientadora: Cristiane Rose Duarte


Arquiteta, Drª, Profª Titular FAU/PROARQ/UFRJ

Co-Orientadora: Vera M. R. de Vasconcellos


Psicóloga, Drª, Profª Titular Faculdade de Educação/UERJ

Luciana da Silva Andrade


Arquiteta, Drª, Profª Titular FAU/PROURB/UFRJ

Rio de Janeiro
2004
Capa: Vista da Rocinha
Foto: Glauci Coelho - setembro de 2003

COELHO. Glaucineide do Nascimento


ESPAÇO VIVIDO FAVELA: brincadeiras infantis nos espaços livres da
Rocinha / Glaucineide do Nascimento Coelho – Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.
211p; 27,9 cm. 1 CD-ROM.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro/PROARQ,
2004.

Bibliografia

1. Complexidade. 2. Espaço Vivido. 3. Território. 4. Favela. 5. Brincar.


I. UFRJ/PROARQ. II. Título.
RESUMO
Este trabalho se desenvolve em torno das interações eco-
auto-organizáveis indivíduo-meio e adota os espaços livres da
favela como lugares apropriáveis pelas brincadeiras das crianças.
Apresentamos como estudo de caso a favela da Rocinha, situada
no sopé do morro Dois Irmãos, entre os Bairros de São Conrado e
Gávea, na cidade do Rio de Janeiro.

A investigação parte de dados coletados em conversas


informais, observações de campo, fotografias e desenhos de
crianças, orientando-se como uma pesquisa qualitativa.

Pretendemos assimilar a construção da identidade da


criança na interação complexa da brincadeira com o espaço
vivido favela, considerando-o como uma cultura inserida e
materializada na cidade através do tempo.

Partimos das formas de brincadeiras infantis que se


apropriam dos espaços livres da favela, transformando-os em
espaços de afetividade, admitindo tais interações como parte
constitutiva da identidade do indivíduo, a partir do momento que
se reconhece no seu meio.

Para tanto, baseamo-nos nos estudos de Morin (2002),


Tuan (1983, 1980), Fischer (1994), e Vigotski (2002).
Acreditamos que este entendimento destes mecanismos sócio-
espaciais poderá subsidiar intervenções nos espaços de favela,
destacando a importância da ação das crianças na construção e
identificação do lugar.
v

RESUMO
RÉSUMÉE
Ce travail se développe autour des interactions écho-auto-
organisées entre individu et milieu environnant et adopte les
espaces libres de la ‘favela’ comme des endroits passibles
d´appropriations par des jeux d´enfants. Nous présentons comme
étude de cas la ‘favela Rocinha’, située dans la colline ‘Dois
Irmãos’, entre les quartiers ‘São Conrado’ et ‘Gávea’, dans la ville
de Rio de Janeiro.

La recherche se base dans des données rassemblées par le


biais de conversations informelles, observations participatives,
analyse et quête d´images et de dessins d'enfants, ainsi qu´à une
quête de données essentiellement qualitatives.

Nous avons voulu connaître la construction de l'identité de


l'enfant dans l'interaction complexe entre le jeu et l'espace vécu
‘favela’; considérant cette interaction comme étant une culture
insérée et matérialisée dans la ville à travers le temps.

Nous avons analysé les façons de jouer et le type


d´appropriation de l´espace faite par l´enfant qui reconnaît ses
territoires et se sent appartenir à ce quartier tout en
transformant les coins de la favela en des lieux d´affectivité et en
une base de la construction de son identité.

Pour cela, nous nous sommes basées sur des études de


Morin (2002), Tuan (1983, 1980), Fischer (1994), et Vigotski
(2002). Nous croyons que la compréhension de ces mécanismes
socio-spatiaux peut contribuer dans les projets d'interventions
dans les ‘favela’, en soulignant l'importance de l'action des
enfants dans la construction et identification des lieux.
vi

RÉSUMÉE
ABSTRACT
This work is developed considering the eco-auto-organising
interactions individual-environment and adopts the free spaces of
“favelas” (shantytown) as appropriative places by children plays.
We present as study-case the one of “favela” “Rocinha”, situated
on the slope of the “Morro Dois Irmãos” among “São Conrado”
and “Gávea” districts within Rio de Janeiro

The investigation is based on collected data from informal


conversations, field observations, photographs and children
drawings, as orientation for a qualitative search.

We wish to integrate the construction of the child identity


in the complex interaction of the playing with the life within the
"favela", considering it as an inserted culture and materialised in
town throughout time.

As point of depart we used the different forms of child


playing which appropriates the free areas of the "favela"
transforming it in spaces of affectivity, admitting such interaction
as a constructive part of the individual identity, from the moment
that is recognised as his environment.

For that, we worked on the studies of Morin (2002), Tuan


(1983, 1980), Fischer (1994), and Vigotski (2002). We believe this
understanding of such social spatial mechanisms may subsidise
interventions within "favela" areas, pointing out the importance of
the action of children on the construction and identification of
the place.
vii

ABSTRACT
AGRADECIMENTOS
Chegou a parte mais difícil do trabalho: não esquecer de
agradecer a todos que contribuíram direta ou indiretamente para a
construção desta pesquisa. Antes de fazer referência a qualquer pessoa,
lembro que chegar até aqui não foi fácil, um percurso feito entre
encontros e desencontros que contribuíram para o meu crescimento
pessoal, transformando o meu entendimento a respeito do outro e as
ricas possibilidades que este entendimento pode nos oferecer.
Assim gostaria de agradecer primeiramente a minha orientadora
Cristiane Rose de Siqueira Duarte, por ter acreditado nas
potencialidades deste tema, agindo objetivamente e de forma segura
para que a pesquisa se delineasse.
No mesmo sentido agradeço a co-orientação de Vera
Vasconcellos que, sempre desejosa de novos desafios acadêmicos,
entrou no campo da arquitetura aprendendo junto a delinear os
caminhos da interdisciplinaridade entre arquitetura e psicologia.
As minhas amigas e companheiras de mestrado Alessandra
Ghilardi e Ethel Pinheiro agradeço os geniais “palpites” incorporados ao
longo do trabalho.
A amiga e arquiteta Luísa Beatriz dos Santos que no dia-a-dia
ouviu-me pacientemente e com zelo, trouxe-me a revisora de texto, sua
mãe e professora de português Ivone Diniz Barbosa.
Outros igualmente contribuíram e, em especial, devo a eles o
meu contato com a Rocinha e o cotidiano de sua gente: o Grupo de
Estudos e Ação sobre o Menor da PUC/RJ, através da professora
Marina Lamette Moreira e da pesquisadora Maria Luiza Silveira e
Alburqueque (in memória) e a Dona Elisa e sua equipe de recreadores e
crianças do Centro Comunitário da Rua 1, que se tornaram grandes
amigos abrindo os caminhos para o conhecimento do lugar.
Agradeço principalmente aos meus pais Roberto e Miriam, que
com paciência e carinho souberam conduzir a mim e a meu irmão
Frederico pelos caminhos da vida, em momentos de realização e
conhecimento, deixando claro que o aprendizado nunca termina.
Enfim, agradeço a Deus que por meios secretos atuou para que
todos estes encontros se realizassem, possibilitando a materialização
deste trabalho.
A todos,
muito obrigada.
viii

AGRADECIMENTOS
SUMÁRIO
RESUMO v
RÉSUMÉE vi
ABSTRACT vii
AGRADECIMENTOS viii
APRESENTAÇÃO 1
PARTE I – O ESPAÇO VIVIDO ROCINHA 12
Capítulo I – IMPRESSÕES NO TEMPO 13
1.1. “Quando inabitadas eras...” 15
1.2. “Agora, começou a Rocinha” 19
1.3. “Hoje vemos em ti...” 29
1.4. Cenas dos últimos capítulos 31
Capítulo II – LUGAR E COTIDIANO 42
2.1. A opção pela Complexidade 43
2.2. A estrutura intramuros 49
2.3. Tensões entre casa e rua na favela da Rocinha 62
PARTE II - INTERAÇÕES NO ESPAÇO 68
Capítulo III - O ESPAÇO VIVIDO:
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA 69
3.1. O Complexo Favela: a imagem do espaço vivido 70
3.2. Tensões do espaço vivido 76
3.3. O Espaço livre de mediação: a casa e a rua entre o
público e o privado na favela 81
ix

SUMÁRIO
Capítulo IV – TERRITÓRIO E INFÂNCIA:
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS 87
4.1. As interações com o território-favela na constituição
das identidades 88
4.2. Topofilia: a afetividade com o espaço vivido 94
4.3. Construindo identidade no brincar 97
4.4. Os territórios da infância na Rocinha 104
PARTE III – BRINCAR NA FAVELA DA ROCINHA 109
Capítulo V – OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIÇÃO NO
BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA 110
5.1. O Brincar na favela da Rocinha 111
5.1.1. a influência do poder paralelo no brincar 116
5.2. A laje, o beco e tudo mais dentro da Rocinha 118
5.3. Laboriaux: a floresta no limite com a favela 136
5.4. A descoberta da praia 140
Capitulo VI – INTERAÇÕES CRIANÇA-FAVELA
O ESPAÇO VIVIDO ECO-AUTO-ORGANIZÁVEL 147
BIBLIOGRAFIA CITADA 155
ANEXO 1
Entrevista 162
ANEXO 2
Diário de Campo 166
x

SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
O tema desta pesquisa remete-se aos espaços livres
de favelas não urbanizadas, apropriadas pelas crianças em
brincadeiras na cidade do Rio de Janeiro, abordada através
das interações indivíduo[criança]-meio[favela]. Nosso
interesse é tratar das relações afetivas que a criança da
favela estabelece com seu espaço vivido, experimentado, no
ato da brincadeira, admitindo que este processo traduz o
grau de enraizamento da criança com o lugar, localizando-a
no espaço e descrevendo o lugar a que ela pertence.

Destacamos como teoria que a afetividade vivenciada


com o espaço gera níveis de complexidade organizacionais,
tanto ao que se refere às hierarquias nas relações humanas,
como aos usos que no espaço-tempo caracterizam o lugar.
O resultado se revela na emersão de usos variados para o
lugar da brincadeira, ressaltando ora a dimensão pública,
ora na dimensão privada, evidenciando as tensões espaciais
que caracterizam a complexidade recursiva do espaço da
favela.

Construímos uma análise em torno da complexidade


da favela na interação com a criança, entendendo este
indivíduo como parte indissociável do seu meio cultural,
numa lógica ecológica onde um constrói o outro,
2

APRESENTAÇÃO
simultaneamente, à medida que a criança identifica, através
das brincadeiras, o cotidiano a que pertence.

A partir desta pesquisa pretendemos trazer à tona


questões que apontem para a importância do espaço como
um dos suportes na construção da identidade do indivíduo,
destacando que em espaços informais como as favelas,
crianças podem subverter, no cotidiano da brincadeira,
significados de usos que constroem o lugar real, em
confronto com o lugar idealizado.

O que nos levou a construir este tema nasceu da


inquietude que se originou ao identificarmos, em pesquisas
anteriores, que nas conformações urbanas que refletem
parte da pobreza do país - as favelas- crianças passavam a
maior parte do tempo nas ruas, muita vezes privando-se
dos espaços da casa e brincando a sua maneira. Surge
então as questões: que espaço seria este? Como brincavam
neles? E como a interação brincar criança-favela contribuiria
para a experiência afetiva e identificação dela no todo da
cidade?

O Objetivo
O objetivo central é abordar as interações indivíduo-
meio, nos níveis contraditórios de significações espaciais na
relação da criança com seus lugares de brincadeira na
favela.
3

APRESENTAÇÃO
Acreditamos ser de extrema importância o olhar sobre
o lugar da criança na cidade, por representar parte do
suporte ao seu desenvolvimento afetivo, físico e social, uma
vez que o espaço se configura como elemento material1, que
irá estimular a percepção e a curiosidade infantil.

Este tema ainda encontra pouca abordagem nas


escolas de arquitetura, mesmo possuindo um valor
considerável na atuação do profissional de arquitetura e
urbanismo, no momento de pensar e projetar o espaço
arquitetural. Assim, se pretende aqui levantar questões que
desperte o pensar do arquiteto no seu ato projetual,
englobando considerações sobre as significações dos
espaços vivenciados da favela, através da criança no
brincar, dentro da lógica recursiva em que indivíduo e
espaço são constituídos em suas interações.

O Objeto
No intento de empreender o tema transformando o
empirismo num esboço científico, concluímos ser a favela
da Rocinha, na encosta do Morro Dois Irmãos, após várias
incursões em favelas cariocas, o lugar potencial para
nossas análises.

1 Segundo Lima o espaço material é um pano de fundo, sobre o qual as


sensações se revelam e produzem marcas profundas que permanecem, mesmo
quando as pessoas deixam de ser crianças. LIMA, 1989. Op.Cit. p.13.
4

APRESENTAÇÃO
A favela começou a se estruturar ainda nos anos de
1920, no sopé do Morro Dois Irmãos, crescendo em direção
à então reserva Florestal da Tijuca, através da estrada da
Gávea. A população que originou o lugar e que ainda
representa a sua maioria é oriunda do nordeste do Brasil.

A escolha da Rocinha levou em consideração duas


questões principais. A primeira levanta que a estrutura
morfológica do espaço seria fundamental para a análise,
uma vez que buscávamos as interações das crianças com os
espaços livres em assentamentos informais.

Para tanto entendemos que a relação entre as partes


pública e privada, rua e casa, submetida às normas
culturais e construída no processo histórico que consolida o
lugar, aproxima nos conflitos verificados nos usos
apropriados nos espaços o cotidiano das partes rua e casa,
onde:

“A oposição casa e rua tem aspectos complexos. É uma


oposição que nada tem de estática e de absoluta. Ao
contrário, é dinâmica e relativa porque, na gramaticidade
dos espaços brasileiros, rua e casa se produzem
mutuamente, posto que há espaços na rua que podem ser
fechados ou apropriados por um grupo, categoria social ou
pessoas, tornando-se sua casa, ou seu ponto. (...) a rua
pode ter locais ocupados permanentemente por categorias
sociais que ali ‘vivem’ com ‘se estivessem em casa’”.
(DaMatta, 2000: 55).

O segundo foi relevante e definitivo e se define após o


nosso contato com duas favelas cariocas. A Favela de Mata
5

APRESENTAÇÃO
Machado no Alto de Boa Vista, que descartamos por
representar uma área urbanizada pelo Programa Favela-
Bairro, tendo seus problemas de infraestrutura
minimizados, integrando parcialmente a favela à malha
formal da cidade, além de não observar mais os conflitos
espaciais entre público e privado das áreas informais. A
favela Parque Primavera no Complexo de Manguinhos,
apesar de ser uma área potencial, teve nosso acesso
contínuo à favela dificultado e controlado pelo “poder local”
do tráfico de drogas, convertendo-se em área de risco.

A Rocinha surge através do contato e apoio do Núcleo


de Estudos e Ação sobre o Menor (NEAM), veiculado à Sub-
Reitoria da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-RJ), através da Professora Marina Lamette
Moreira e da pesquisadora Maria Luiza Silveira e
Albuquerque (in memória) que nos apresentaram à
comunidade da Rocinha. Dentro desta Comunidade, fomos
recebidos pela creche comunitária da Rua 1, associada ao
NEAM e coordenada por Dona Elisa que atua desde o início
deste projeto junto à PUC-RJ.

A complexidade dos espaços da Rocinha logo se


revelou caracterizando-o como local ideal para nossas
pesquisas, por apresentar na tensão entre seus espaços
livres públicos e privados as características procuradas.
Ressaltamos que nosso intuito na comunidade foi observar
6

APRESENTAÇÃO
através da brincadeira da criança, a percepção do espaço
em que se insere, relacionando-o a sua identidade por meio
dos significados e das relações afetivas com o lugar.

O Método
Neste contexto, o paradigma da complexidade embasa
o método para entender e decifrar essa teia de inter-
relações entre indivíduo[criança] e meio[favela] na
apropriação brincar, por ser um pensamento que permite
reunir “contextualizar, globalizar, mas ao mesmo tempo
reconhecer o singular, o individual, o concreto”. (Morin, 2000:
213).

Reunimos assim temas através de uma abordagem


interdisciplinar que considera as áreas de arquitetura,
urbanismo, psicologia, geografia, filosofia e antropologia,
fundamentais ao processo de estudo sobre as interações
homem-meio, que leva em consideração as relações afetivas
com o lugar. A interdisciplinaridade é fundamental a um
entendimento científico que toma o paradigma da
complexidade como princípio.

Neste sentido, as informações contidas nas diversas


disciplinas de interesse tecem um conhecimento que, ao
mesmo tempo em que se ancoram nestas, constituem sua
singularidade exatamente pela concepção ampla e
complexa. Esta abordagem transcende “a ciência clássica
7

APRESENTAÇÃO
da racionalidade que se fundamentou nos pilares da certeza”
(Morin, 2000: 95), que simplifica, reduz e separa o objeto do
seu observador e do seu meio ambiente.

A abordagem complexa dos espaços da Rocinha nos


permitiu reunir todas as informações, diário de campo,
entrevistas, conversas informais, fotografias e desenhos
infantis, para distinguir a posteriori, onde a interpretação
foi contextualizada com seu meio, levando em consideração
o processo histórico, bem como a experiência e o processo
de conhecimento dos pesquisadores e dos informantes na
interpretação dos fatos. Isto permitiu ainda que a teoria
científica não se colocasse de forma ditatorial, como
verdade absoluta do cientista, e sim, como citado por Morin
(2000: 106), apresentasse a possibilidade de ser refutada.

Ressaltamos que uma abordagem complexa do


conhecimento não exclui a lógica, mas sim a combina
dialogicamente “entre sua utilização segmentos por
segmentos e à sua transgressão” (Morin, 2000: 123). Assim,
o reconhecimento científico na complexidade da Rocinha
constituiu-se em reunir acontecimentos.

Nesta perspectiva, o campo de pesquisa – Favela da


Rocinha – será abordado como o espaço vivido, aquele
experimentado e (re)-organizado em seu cotidiano, através
das interações nas brincadeiras das crianças com os
8

APRESENTAÇÃO
espaços livres, constituindo identidade, localizando seu
pertencimento na favela, através da experiência afetiva com
o lugar.

Em seguida delineamos em torno da análise


qualitativa numa abordagem complexa, o relato da imagem
do lugar que tomou como base o diário de campo, na rede
de relações interpessoais estabelecidas hoje na favela e que
representa a forma como o lugar é percebido tanto pelo
morador como pelos pesquisadores.

O arcabouço teórico sob o qual a pesquisa se


estruturou, destacando a favela como um espaço vivido,
experimentado, tomou como referência os estudos de Morin
(2000, 2002), Lefebvre (2000), Gallais (2002), Venturi (1985)
e Morin (2000, 2002) tecendo a correlação do espaço vivido
como espaço de complexidade. Através do entendimento da
complexidade do espaço da favela emergem os espaços de
tensão que convencionamos como espaços livres de
mediação entre o público e o privado, e que tomam a casa e
a rua de DaMatta (1987) como referência.

O desenvolvimento teórico apontado acima serve para


identificar quais os espaços de brincadeiras seriam
abordados na pesquisa, os entendidos como espaços livres
das ruas, becos, escadarias e lajes e tudo mais revelado no
transcorrer do trabalho.
9

APRESENTAÇÃO
Delimitado o espaço de abordagem, o vivido no
conflito do público com o privado, delimitamos que este
enquanto espaço material, e território denominado nas
brincadeiras infantis, seria fundamental para a construção
da identidade criança-favela em uma interação ecológica, e
que novamente parte dos princípios da complexidade de
Morin (2000, 2002) à noção de território e lugar nas
relações afetivas de Fischer (1994) e Tuan (1980, 1983)
consecutivamente.

Concluindo o arcabouço teórico nos referenciamos em


Vigotski (2002), Morin (2000, 2002), Tuan (1980, 1983) e
Freire (2002), ressaltando que o brincar se apresenta como
uma das possibilidades encontrada pela criança para
estruturar sua identidade em interações com o espaço que
demonstrem sua percepção e grau de afetividade com o
lugar, identificando quais seriam os espaços livres de
brincar na Rocinha.

O Escopo
Tomando todas as considerações iniciais expostas
nesta apresentação, estruturamos esta pesquisa em três
partes:

A Parte I contextualiza em dois capítulos a dinâmica


do espaço vivido Rocinha destacando o método de
abordagem de campo. O primeiro capítulo localiza
10

APRESENTAÇÃO
historicamente como os espaços da favela da Rocinha se
estruturaram, chegando a ter a imagem dos dias atuais,
através das relações políticas e pessoais entre morro e
asfalto.

A Parte II demonstra análises efetuadas sobre um


arcabouço teórico, fundamentado em autores voltados para
o entendimento da psico-sociologia e da pesquisa
qualitativa, conforme comentado acima.

A Parte III, apresenta, com base no desenvolvimento


teórico, os espaços livres de brincadeira revelados das
crianças da Rocinha que vieram à tona no trabalho de
campo, fotos e desenhos. Através da análise destes dados
foi possível identificar a relação afetiva que as crianças da
Rocinha estabelecem com o seu lugar, em relação ao
entorno formal da cidade, destacando a identidade das
partes indivíduo-meio.

Acreditamos que este trabalho possa contribuir para


os estudos que se referem às interações das crianças com
os espaços no brincar na cidade, como forma de mediar a
constituição das identidades indivíduo-espaço, colaborando
em pesquisas e atuação profissional no pensar a cidade.
11

APRESENTAÇÃO
IMPRESSÕES NO TEMPO
I
Rocinha, quando tu começou?
difícil, não sei...
pergunte aos antigos,
Ó, morador!
Poxa, parece banal.
A história desse lugar
seria sensacional.
Se tu tens quarenta anos,
isso procurarei saber.
Começaste, suponho eu,
muito antes de meu pai nascer.
Ah! não parece nada,
os anos passam e não se vê.
Sei que futuramente
falarão muito de você...
Rocinha, quando tu começou?
Há muito tempo,
quando inabitadas eras,
aqui alguém se instalou.
Hoje vemos em ti
algo que jamais se imaginou.
(Manoel Quintino In Segala, 1983: 29).

Em nosso primeiro contato com a favela da Rocinha


percebemos um lugar impregnado de história, contada a
cada beco, porta e janela pelos seus habitantes que não se
cansam de reviver nos seus contos os momentos do
passado que fizeram através do tempo a Rocinha crescer,
tomar forma e hoje ser a vitória de alguns e a esperança de
algo melhor para outros.
13

IMPRESSÕES NO TEMPO
Apesar de não ser o centro desta pesquisa, no
transcorrer do trabalho de campo, à medida que íamos nos
interando da estrutura organizacional do espaço e seu
tempo, sentimos necessidade de resgatar de forma breve o
que seria a “Rocinha histórica”, para melhor entender os
porquês dos sentimentos de enraizamento e intimidade dos
moradores com algumas de suas áreas, tornando mais
legível como o espaço se organizou em seu cotidiano,
apreendendo o que ela realmente é, enquanto espaço vivido
nos dias atuais.

Assim colocamos de forma sucinta os aspectos


históricos do espaço Rocinha, subdividindo o presente
capítulo em quatro momentos. Dois deles, o primeiro e o
terceiro fazem referência ao poema de Manoel Quintino,
citado acima. “Quando inabitadas eras...” traz o período em
que ainda era um simples matagal por entre as encostas de
morros, “Hoje vemos em ti...” que descreve a Rocinha que
culminou nos dias atuais. Funcionando como elo entre
estes dois momentos discorremos em “Agora, começo a
Rocinha” uma parte da imbricada rede de relações pessoais
e políticas que consolidaram o espaço como a maior favela
da América Latina. O último item chama a atenção para “As
cenas dos últimos capítulos” que torna a organização física
e hierárquica do espaço Rocinha mais legível.
14

IMPRESSÕES NO TEMPO
1.1. “Quando inabitadas eras...”
A favela da Rocinha conformava-se por entre o Morro
dos Dois Irmãos em direção à Estrada da Gávea, que não
passava de um caminho de terra. Esse momento era então
os anos iniciais da década de 1920. Alguns relatos fazem
referências à origem de seu nome que, segundo Segala
(1991: 71), tem como importantes duas versões que podem
ser sintetizadas como relatos míticos principais. A primeira
é contada por Ismael Elias da Silva e a segunda por Ivan
Martins, ambas destacadas do Livro “Varal de Lembranças”
de Lygia Segala (1983). A primeira versão:

Segundo informações de um morador que já é falecido, o


Seu José Pia, aqui residiam umas primas, parentas dele
longe. Eram espanholas.

Isso aqui era uma chácara, não existia essa comunidade


favelada. A estrada da Gávea era um caminho por onde
passavam aqueles vendedores de frutas que vinham de
Jacarepaguá, com aquelas tropas de cavalos e burros.
Elas, como eram plantadoras de hortaliças, chamavam
esse pessoal:

– Venham ver minha rocinha!” (1983: 30).

A outra versão seria:

Na época de Estácio de Sá, morava aqui uma mocinha


muito bonita, muito loura, que chamavam de Russinha.
As caravelas atracavam aqui, na praia do Pepino, para ir
na Igreja de São Conrado e vir visitar a Russinha. Aí veio
se passando a história e ficou o nome de Rocinha. Não
tinha nenhuma roça aqui. (1983: 30).
15

IMPRESSÕES NO TEMPO
Segundo Segala (1991: 73) a primeira versão é mais
reproduzida pelos moradores, caracterizando esta idéia de
Seu José Pia como “um sistema narrativo fechado, mítico”
que passa para a história “enquanto um sistema aberto de
interpretações”2.

A Rocinha tem sua origem marcada pelos aspectos


míticos rurais do lugar em que as primeiras famílias são
registradas a partir de 1927. Segundo depoimento de
Guilhermina Coelho da Silva, encontrado em Segala (1983),
o lugar é descrito como uma região coberta por mato, uma
roça, onde se era possível brincar ao redor:

Em 1927 aqui não tinha eletricidade, era lampião de


carbureto. Do alto da Gávea para cá era escuro. (...) Era
apenas uma mata virgem para gente andar e rodar.

As crianças tinham um candeeirozinho [que levavam pra


rua], (...) uma bengalinha, porque tinha muito sapo, muita
cobra (...). O resto era capim.

As meninas ficavam brincando de roda, brincando de


peteca e quando era tempo de lua também brincavam de
peteca com o luar. (1983: 41-43).

Luciana Andrade (2002: 55) lembra que as


características rurais nas décadas de 1920 e 1930 eram
demarcadas como uma época “com produção de

2 A autora Lygia Segala (1991: 73) em nota de rodapé, justifica que estes
aspectos que costuram a história da Rocinha estão baseados “na abordagem de
Lévi-Strauss (1981) sobre o caráter aberto da história, assegurado pelas
inumeráveis maneiras de compor e recompor as células mitológicas ou células
explicativas originalmente mitológicas”.
16

IMPRESSÕES NO TEMPO
subsistência e pouca atividade comercial”, já que o que
conhecemos hoje por Rocinha estruturou-se a partir de um
loteamento que caracterizava a região como área formal.

Fig. 1.1: Mapa do


antigo
loteamento da
Firma Castro
Guidon e Cia.

Fonte: Segala, Op.


Cit. (1983: 36)
[Fig. 1.1]

A respeito disso encontramos em Segala (1991: 82) a


descrição de uma Rocinha que era uma fazenda com
550.000m2 que foi dividida em lotes de cerca de 270m2 para
serem vendidos em longo prazo. A mesma autora lembra
(1983: 36) que esse loteamento estava a cargo da
Companhia Castro Guidon que traçou uma planta da
Rocinha [Fig. 1.1], com ruas demarcadas que existem até hoje,
caracterizando os setores das:

Ruas 1, 2, 3 e 4 (...) com a conseqüente formação de


grupos sociais bem diversos entre si, como por exemplo, o
pessoal da Rua 1. (Segala, 1983: 36).

Parece-nos que nestes idos, a Rocinha não se


assinalava como favela, uma vez que as construções
buscavam cumprir os alinhamentos das ruas e as
17

IMPRESSÕES NO TEMPO
implantações das casas eram esparsas, configurando
chácaras e roçados.

Fig. 1.2: Foto da


Rocinha em 1931
na altura do
Largo do
Boiadeiro.

Fonte: Abreu, Op.


Cit. (1997: 90)
[Fig. 1.2]

Em 1937 entra em falência a Companhia Castro


Guidon através de uma intervenção do Estado3. Nesse
processo alguns moradores não haviam conseguido a
escritura de seus terrenos e acabaram por permanecer no
lugar de forma ilegal.

No ano seguinte, em 1938, outra intervenção do


Estado: desta vez para asfaltar a Estrada da Gávea que
cortava o loteamento, um dos fatores que favoreceu a
ocupação irregular da Rocinha:

A área passou a ser conhecida, tornando-se a estrada via


pública e espalhando-se a notícia de que, naquela região,
havia terras do Governo, isto é, terras que podiam ser
ocupadas sem necessidade de título de propriedade (...).
(Segala, 1991: 87).

3 O primeiro embargo do Estado na área da Rocinha em 1937 é devido ao fato

deste identificar que o arruamento não era previsto, portanto tal era ilegal.
(Segala, 1991: 87).
18

IMPRESSÕES NO TEMPO
Segundo a autora (1991), neste momento inicia-se
um processo de conflito de terras entre os donos, posseiros
e invasores, com a desvalorização das terras num processo
irreversível. Começa-se então efetivamente o “tempo dos
barracos”4 construídos da noite para o dia, mudando toda a
dinâmica das relações do lugar e abrindo espaço para
aquilo que os posseiros entenderiam como suas habitações
provisórias5 – os barracos6.

1.2. “Agora, começou a Rocinha...”


Os barracos, com a pavimentação da Estrada da
Gávea, se tornavam cada vez mais constante no cenário,
marcando-se como os elementos construídos principais que
irão conformar e caracterizar o espaço Rocinha.

As primeiras invasões geralmente não eram feitas por


famílias, mas sim por homens solteiros ou casados com
“famílias no Norte, no interior do Estado ou em outros bairros

4 O livro Varal de Lembranças (Op. Cit.) divide a história da Rocinha em seis

tempos: “o tempo de antes da vinda pra Rocinha”, “tempo dos barracos cobertos
com telha de papelão pichado”, “tempo dos políticos”, “o tempo das enchentes”,
“tempo do medo da remoção”, “tempo do mutirão”, “tempo de hoje em dia”
(Segala, 1983: 6-7).
5 Andrade (2002: 54) observa a dualidade que existia entre os proprietários de

lotes e migrantes. Os primeiros tinham um sentido de fixação no local,


enquanto os outros entendiam sua moradia como lugar intermediário, a idéia
destes era a de estabelecerem-se na favela provisoriamente para buscarem
condições melhores e somente depois disto trazerem suas famílias ou
constituírem-nas.
6 A respeito do início da favelização da Rocinha, Andrade (2002: 53-54) lembra

que apesar de Lygia Segala (1991) identificá-la após a falência da Companhia


Castro Guidon, em 1933 o Censo Predial identifica 354 casebres na Estrada da
Gávea e 13 no Caminho do Laboriaux.
19

IMPRESSÕES NO TEMPO
da cidade” (Segala, 1991: 90). Neste momento aparecem os
primeiros conflitos entre proprietários de lotes e invasores
que, segundo a autora (1991: 87), ora se amparam das leis
escritas do asfalto, ora no “jeitinho”, que passaria a
caracterizar a “lógica do morro”, calcado nas mediações
local nas negociações dos lotes.

Agora, começou a Rocinha quando alguns proprietários


venderam terrenos, lotes. Tem gente que ainda mora aqui
por intermédio desse loteamento que foi feito. Depois
desapareceu tudo. (Segala, 1983: 51).

Um aspecto importante desse momento, observado


por Segala (1991: 91-98), é que este processo de arbitragem
e acordos informais nas mediações dos lotes é estendido
para as resoluções de conflitos entre vizinhos, contribuindo
para delinear a “lei do morro7”.

Com igual importância, destaca Andrade (2002), o


processo de legitimação do morro como lugar de moradia
que, segundo a autora, é fortalecido por associações
voluntárias e principalmente religiosas. “Este foi o caso, por

7 Segundo Segala (1991: 122), “a lei do morro é fundada no princípio da


consideração e do respeito, no ajuste de interesse, caso por caso, entre pessoas.
Pressupõe uma pluralidade de mediadores – presidentes de associações,
comerciantes, pais-de-santo, cabos eleitorais -, escolhidos por confiança pelas
partes e que arbitram os conflitos segundo diferentes lógicas e com diferentes
retóricas ainda que adotando uma linguagem ordinária. (...). Na maior parte dos
casos (...), a figura de centro arbitra as querelas buscando o acordo, a garantia
de continuidade de relações entre as partes, exatamente por não dispor do
poder de sanção através do qual pudesse impor sua decisão”. A autora
complementa em nota que “o fortalecimento dos grupos ligados às bocas, ao
narcotráfico, nos anos 1980, vêm redefinindo este modelo, uma vez que,
chamados para arbitrar conflitos, possuem, ao contrário de outras figuras de
centro, poder de sanção”.
20

IMPRESSÕES NO TEMPO
exemplo, da construção da capela da Rocinha inaugurada
em 1939”. (55).

Já nos meados da década de 1940, tem início ao que


veio marcar o período como o “tempo dos políticos”. Com o
fim do Estado Novo, o país vislumbra um processo de
democratização e as favelas passam a ser alvos de políticos,
por configurarem-se em importantes redutos eleitorais.
Segala (1991) aponta que naquele momento, além do
empobrecimento da população, dois aspectos contribuíram
para a consolidação das favelas como alternativa
habitacional; a primeira foi as relações estabelecidas entre
favelado e político, aproximando morro e asfalto e a
segunda foi a atuação da Fundação Leão XIII8 “criada com o
objetivo de realizar um amplo trabalho de recuperação dos
favelados” (1991: 99-100).

Foi nesta época que a Rocinha apresenta seu segundo


momento de crescimento acelerado, devido ao aparecimento
na área de um homem chamado Renato Caruso.
Apresentando-se como dono das terras, distribuiu terrenos,
principalmente entre migrantes nordestinos. Mais tarde
viria a candidatar-se ao cargo de vereador, mas mesmo

8 Segundo Duarte (2004: 303-305), “em 1946 é criada a Fundação da Casa


Popular e, no ano seguinte, a Fundação Leão XIII. Esta última, na forma de
entidade religiosa privada, interveio em 34 favelas entre 1947 e 1954 facilitando
a instalação de água, luz e esgoto, além de criar os Centros de Ação Social.
Alguns autores sustentam que, por ser vinculada à igreja, a Fundação buscava
também frear a disseminação do comunismo junto à população favelada”.
21

IMPRESSÕES NO TEMPO
perdendo as eleições, a Rocinha não viu seu crescimento
desacelerado.

Isso tudo aqui era mato. Com o passar dos anos, veio o
Renato Caruso. Dizia que era dono, que tinha comprado
do Durão, um grande empreiteiro, dono de grandes terras.
Passou um ano, e uma época, o Caruso era candidato a
vereador e me chamou para trabalhar com ele. Na época
ele me autorizou a deixar fazer estes barracos todos aí, no
morro, a mando dele. Mas depois ele perdeu, porque não
pagou os impostos, perdeu pro Estado. (Segala, 1983: 66).

Este período de ocupação intensa se desenvolveu


entre as décadas de 1950 e 1960, com a Rocinha crescendo
vertiginosamente, suplantando suas fronteiras físicas,
passando de 4.513 habitantes para 14.793 (Segala,
1991:110), numa época em que as favelas foram
politizadas, dando lugar a novas relações interpessoais de
parentescos que cedem lugar às diversas organizações
sociais que se misturam no morro.

A nova política desenvolve-se nas favelas estendendo


o “tempo dos políticos” até meados de 1960. No transcorrer
do período, o governo toma iniciativas para a urbanização
de favelas com a criação em 1956 da SERPHA9, onde “a
perspectiva de remoções de favelas, da forma como viria a
ser implantada na década seguinte, não tinha assumido um
perfil sistemático” (Andrade, 2002: 56).

9 Serviço Especial de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas.


22

IMPRESSÕES NO TEMPO
Na Rocinha começa-se a desenhar relações de poder
mais complexas. Como observa Segala (1991: 119), estas
são marcadas pela passagem da coordenação da Fundação
Leão XIII para o Governo do Estado, com o intuito de
controlar as tensões entre a igreja e a administração
Lacerda e a criação em 1961 da UPMMR10.

Quando Lacerda autorizou que se fundasse associação na


favela, mandou que se compusesse uma equipe de doze
homens para que dirigisse a Associação. (...).

Então a Associação passou a funcionar dando licença. O


povo precisava endireitar seus barracões ou até mesmo
fazer uma puxada de acordo com o local, sem ocupar
grandes espaços, com madeira e telhas francesa... Nós
dávamos a licença e o pessoal executava a sua obra. (...).
(Segala, 1983: 87).

Naquele momento, a urbanização da Rocinha, que


vinha ocorrendo de forma crescente, é desacelerada pelos
novos rumos da política habitacional, num contexto que
apontava para a transformação dos barracos de madeira em
casas de alvenaria.

Então veio a reforma de 1962, com a SERFHA


cedendo lugar à COHAB11, que em 1964 fica vinculada ao
BNH12, atuando no “suporte à onda de remoções” (Andrade,
2002: 58). A ideologia desta nova política habitacional era a
da casa própria, através da construção de conjuntos

10 União Pró-Melhoramentos de Moradores da Rocinha.


11 Companhia de Habitação.
12 Banco Nacional de Habitação
24

IMPRESSÕES NO TEMPO
habitacionais em maior escala nos subúrbios da Central e
Leopoldina, que absorveriam as favelas da zona sul.

Ali era tudo habitado depois desmancharam para fazer a


obra do túnel [1970] (...).

Moravam muitas famílias mesmo, era até lá embaixo.


Eram barracos de dois andares de tábuas. Depois alguns
foram fazendo de alvenaria, modificando. (...) esse pessoal
foi (...) remanejado. Não, foram jogados lá pra Santa Cruz,
pra outros lados distantes. Já voltaram quase todos, já
estão aqui na Rocinha novamente. (...). todos foram para
os conjuntos do BNH e o que acontece? O pessoal voltou
(...) a prestação da casa lá é de morte. (Segala, 1983: 101).

Segundo a mesma autora, no início dessa política de


remoções, dois acontecimentos merecem destaque na
Rocinha. O primeiro é que, contrário aos interesses
dominantes, se iniciavam projetos de urbanização parcial
na localidade e o segundo diz respeito ao restabelecimento
do padrão formal de ocupação, mediante loteamentos. Esta
retomada se deve ao fato do terreno que abrange o Bairro
Barcelos, área mais baixa da favela que incorpora a Via
Ápia (Fig. 1.3.) e parte da Auto-Estrada Lagoa-Barra, ter sido
identificado como herança, em seguida loteado a pedido dos
herdeiros, dando origem ao bairro13 com lotes de 80m2.
Novamente a tentativa de formalização da área é embargada
pelo governo, patrocinando os conflitos entre posseiros e

13 Novamente o Estado intervêm de forma negativa impedindo a legalização do

loteamento, pois este não estava conforme o Código de Obras que obrigava um
lote mínimo ter 12x30m. Tal iniciativa não afugentou os interessados e ao final
de quatro anos não havia mais lotes a serem vendidos (Segala, 1991: 132).
25

IMPRESSÕES NO TEMPO
dono, segregando áreas entre as categorias bairro e favela
(Segala, 1991: 132).

É importante destacar e retomar que, em meio a estes


fatos e as políticas habitacionais colocadas, a Rocinha
passou por três remoções parciais. A primeira já relatada
acima quando da construção da Auto-Estrada Lagoa-Barra;
a segunda veio em 1971, transferindo moradores do Morro
do Laboriaux, um dos setores da Rocinha localizado na
parte mais alta, no limite com a reserva florestal da Tijuca
(Fig. 1.3), para um conjunto habitacional em Osvaldo Cruz. Os
moradores removidos retornaram, posteriormente, pelos
mesmos motivos que levaram os primeiros a voltarem para
a favela.

A terceira remoção ocorre em 1975, numa nova


tentativa da COHAB em remover quarenta famílias do
Laboriaux e oito do setor Faz Depressa, também conhecido
como 19914.

O quadro demográfico desse momento é assinalado


por uma publicação no Jornal do Brasil a vinte de janeiro
de 1975 (Segala, 1983: 104) que menciona residirem na
Rocinha cerca de 50.000 pessoas distribuídas em 10 mil

14 O nome “199” que denomina um dos setores da Rocinha tem origem por ser
esta área ocupada no que anteriormente era conhecido como o número 199 da
estrada da Gávea e que foi progressivamente tomado pelos moradores da favela.
Similar ocorre com a localidade conhecida como “Portão Vermelho”, cor do
portão de uma propriedade privada da estrada da Gávea e “Paula Brito”, nome
de uma das escolas municipais da Rocinha.
26

IMPRESSÕES NO TEMPO
barracos, considerada na época a segunda maior favela da
Guanabara, perdendo para a favela do Jacarezinho.

Vem novamente um período de transformações após a


comprovação do fracasso das políticas de remoções por
seus custosos valores. Em meio a isto, o processo de
favelização acentua-se no Rio de Janeiro, abrindo espaço a
uma nova política para as favelas que não criassem uma
ruptura tão drástica com o cotidiano desses espaços como
as anteriores.

Vem então o PROMORAR em 1979, que atua em


âmbito Federal, com a criação do “primeiro estudo para a
formulação de diretrizes para intervenção em favelas”
(IPLANRIO, 1988: 30). As novas propostas de urbanização
vinham através da SMD15, também criada em 1979 e ligada
ao PROMORAR e propunham exatamente o contrário das
políticas anteriores, impedindo as remoções.

Em 1980, no abarco a essas idéias, a Rocinha foi


escolhida como piloto de um programa de urbanização de
favelas. Andrade (2002: 62-63) destaca que o “Projeto
Rocinha”, desenvolvido pela SMD foi implantado por entre
acordos políticos em detrimento aos aspectos técnicos,
abrindo com o que seria um dos principais pontos do
programa, a participação popular.

15 Secretaria Municipal de Desenvolvimento.


27

IMPRESSÕES NO TEMPO
Contudo o Programa Rocinha implantou vários
serviços, dentre eles um conjunto habitacional que daria
forma ao já ocupado setor do Laboriaux, com casas
construídas para desabrigados da área do Valão. O novo
bairro tinha rua calçada, rede de esgotos, água encanada e
energia elétrica. Destacam-se também intervenções de
contenções de encostas e melhorias no Largo dos
Boiadeiros, consolidando-o como um ponto de referência
comercial.

Segundo Andrade (2002: 63), nesse momento a favela


ocupava 453.440m2. A diversidade espacial já era
vislumbrada em seus espaços livres exíguos, ocasionando
construções em cima de valas e sobre becos. Percebemos
então que o espaço que hoje se configura já estava a se
estruturar em torno das casas de alvenaria, muitas delas
advindas do crescente mercado imobiliário interno, sob o
qual empreendedores construíam casas para negociarem.

Ainda no transcorrer dos anos 80, uma nova forma de


organização social surge na Rocinha com a fundação em
1982 da AMABB16. Esta década é marcada como um
momento quando se verifica o aumento da violência local,
com o surgimento de organizações criminosas ligadas ao
tráfico de drogas.

16 Associação de Moradores e Amigos do Bairro Barcellos.


28

IMPRESSÕES NO TEMPO
Inicia-se a década de 1990 que delineia a Rocinha dos
dias atuais. Um espaço que absorve cotidianamente uma
população carente de moradia, comportando nas suas
novas redes de relação de poder, os conflitos entre morro e
asfalto, através da privatização e hierarquização dos seus
espaços aquartelados pelo crime organizado, do qual
trataremos no capítulo II. Por agora nos deteremos aos
aspectos históricos e sócio-econômicos que estruturam seu
espaço delimitando-o como bairro.

1.3. “Hoje vemos em ti...”


Os anos de 1990 iniciam-se com uma Rocinha que
burocraticamente deixou de ser favela em 1986, através do
Decreto 6.011, transformando-a em Região Administrativa –
XXVII RA. Mas somente em 1993, por meio da Lei 1.995, a
Rocinha tomou conhecimento de seus limites físicos reais.
Neste período os debates sobre as questões ambientais da
favela voltam à tona com a criação, em 1994, da Secretaria
Municipal de Habitação - SMH.

Ressurge o debate sobre a qualidade ambiental das


favelas materializando-se no Programa Favela-Bairro, que
buscava a urbanização das áreas informais, sobre o
pretexto do resgate da auto-estima do “favelado”17. As

17 O termo “favelado” traz em si um sentido pejorativo que estigmatiza aquela

que mora na favela, por entender historicamente que estes espaços de ocupação
informais são ambientes sujos ou o lugar propício ao desenvolvimento da
malandragem e qualquer tipo de atividade escusa.
29

IMPRESSÕES NO TEMPO
questões sociais foram consideradas como umas das
principais formas de exclusão, por isto tomadas como ponto
inicial deste programa de urbanização que, além de tudo,
pretendia a regularização fundiária.

O que se observa é que na Rocinha e em favelas de


uma forma geral, as questões legais da terra continuam
atreladas as leis internas do morro. Esta maneira de se
relacionar com o espaço descreve no tempo a imagem de
um lugar que se auto-constrói na ilegalidade e a forma legal
encontrada para regular tais questões fundiárias na
Rocinha foi a criação do Balcão de Direitos, que atuou em
conjunto com a Região Administrativa, até determinado
momento.

Após a separação destes dois órgãos, vem em 1998 o


Decreto 17.217 que cria o POT - Posto de Orientação
Técnica do Bairro da Rocinha (Andrade, 2002: 75). Contudo
esta mais nova tentativa do Governo Municipal para
implantar as leis do asfalto no morro não foi muito bem
materializada, uma vez que este espaço neste momento já
estava sujeito à imposição do “poder paralelo”18, observando
ainda que a comunidade, de uma forma geral, se reporta às
associações de moradores quando pretende mediar
questões edilícias. Assim, a Rocinha continua seu processo

18 O “Poder Paralelo” ou “Poder Local”, é como se denomina comumente a


presença do tráfico de drogas e armas nas favelas.
30

IMPRESSÕES NO TEMPO
acelerado de crescimento, com migrantes ainda vindo do
nordeste a cada semana.

[sic] Pra você ter idéia, é dia de quinta ou sexta, não sei
bem ao certo, cinco horas da manhã vem um ônibus direto
do Ceará e despeja aqui. Esse povo do cabeção trabalha e
eles são maioria aqui, nos somos só 20%. (MP, Diário de
Campo: 10º Dia).

1.4. Cenas dos últimos capítulos


As informações mais atuais sobre os dados
demográficos da Rocinha são contraditórias, o site
rocinha.com.br19 nos fala de uma população residente de
200 mil habitantes em fevereiro de 2004. Contudo os dados
oficiais do governo fornecidos pelo IPP – Instituto Pereira
Passos, nos mostram um quadro populacional de 45.585
habitantes em 1996, ou seja, somente 23% do estimado
pelo site, e a mesma estimada pelo Jornal do Brasil há vinte
anos atrás. Já o Censo 2000 do IBGE20 classifica a Rocinha
como a terceira maior favela do Estado com 56.338
habitantes, atrás do Complexo da Maré com 113.807 e do
Complexo do Alemão com 65.026 habitantes.

Tomando como base os dados oficiais do Município


através do IPP a população de 45.585 habitantes estaria
distribuída em 13.491 domicílios o que contabiliza uma
média de três a quatro habitantes por residência. Dentro

19 Ver site www.rocinha.com.br/portugues/pessoas/numeros/indice.htm


20 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
31

IMPRESSÕES NO TEMPO
desta margem populacional a maioria concentra-se entre as
idades de 15 a 29 anos, em segundo lugar estão as crianças
de 0 a 14 anos e as populações entre 45 e 60, que
representam a memória da Rocinha, juntas somam apenas
14,1% [Gráfico 1]. Observamos em campo que estas faixas
etárias se fazem mais permanentes na comunidade, os
adolescentes e adultos buscam trabalhos no próprio lugar
ou nas imediações, e na maioria das vezes, são eles de
caráter temporário.

GRÁFICO 1 - CARACTERÍSTICAS SOCIAIS - POPULAÇÃO


População residente na Rocinha segundo faixa etária - 1996

60 ou mais ignorado
45-59 anos 4,2% 0,7% 0-14 anos
9,9% 28,5%

30-44 anos
24,4%
15-29 anos
32,2%

Fonte: Tabela 1.2.3. do Anuário Estatístico da Cidade do Rio de Janeiro 95-97/Versão CD-Rom.

As crianças de 0-6 anos raramente estudam fora,


uma vez que geralmente dependem de suas mães ou
parentes para levarem e buscarem demandando tempo e
recursos financeiros. Umas das primeiras soluções
encontradas para as crianças de famílias de menor posse21

21 Dentro da favela da Rocinha existe uma pirâmide social própria que se


subdivide entre os “ricos da favela”, geralmente morando à beira da Estrada da
Gávea ou nas partes altas do Laboriaux e Rua 1, os “médios” que são a maioria
e os “miseráveis” em barracos de madeira no alto da Vila Verde, Cachopa e
Macega.
32

IMPRESSÕES NO TEMPO
dentro da Rocinha foram as creches ou centros
comunitários [Fig. 1.4], que se iniciam por intermédio de
alguma mulher da comunidade que passa a tomar conta
das crianças de sua localidade enquanto as mães
trabalham. Denominadas de “crecheiras” ampliam seus
negócios buscando incentivos através de projetos dos
Governos Municipal e Estadual.

Fig. 1.4: Crianças


no centro
Comunitário da
Rua 1.

Fonte: Glauci Coelho


Out. 2003.
[Fig. 1.4]

As outras alternativas se dividem entre as escolas


públicas Municipais e particulares, mas neste caso as
crianças ocupam apenas um período do dia, manhã ou
tarde, com atividades dirigidas. No período restante elas
permanecem nos becos correndo, jogando bola, brincando
das mais diversas formas. Os espaços livres são buscados
para as brincadeiras e (re)-inventados por elas
constantemente.

Observamos e nossa pesquisa destaca a falta de


espaços formais como praças e parquinhos na favela,
restando às crianças tomarem os ambientes livres e que são
33

IMPRESSÕES NO TEMPO
próprios a este tipo de organização urbana, os becos e lajes,
para as suas brincadeiras. A respeito disso destacaremos,
mais explicitamente, quais são estes espaços e como são
estabelecidas neles as interações da brincadeira no Capítulo
V.

O bairro da Rocinha hoje é destacado na mídia pelos


aspectos da violência em relação ao tráfico de drogas. O
cenário que se formou em abril de 2004 foi o de uma
Rocinha do medo [Fig. 1.5], com conflitos armados entre
facções criminosas rivais pela tomada de poder dos pontos
de drogas de um lado e a polícia do Estado no outro.

Fig. 1.5: Manchete


do Jornal O
GLOBO.

Fonte: O GLOBO, Op.


Cit. (13/04/2004: capa)
[Fig 1.5]

A tensão estabelecida começou a se delinear em


meados de 2003, e até que este terminasse, a rotina
tranqüila da favela não se alteraria. Os moradores
transitavam livremente pelo lugar e nenhum tipo de
movimentação que fizesse alusão à possibilidade de uma
guerra era percebido claramente. No final deste ano o
cotidiano começa a ser alterado, com invasões esporádicas
34

IMPRESSÕES NO TEMPO
do grupo criminoso rival, transformando a imagem
tranqüila da Rocinha com a presença de armas nos becos e
ruas, fato que passa a ser constante.

A rotina pacífica, característica da Rocinha, passa


então a ser ameaçada diariamente. Os moradores
modificam seus hábitos, permanecendo menos tempo na
rua e retornando para suas casas cada vez mais cedo.
Cercados pelo medo os moradores são forçados a conviver
com “apagões”, produzidos pelo “poder paralelo”, com o
intuito de dificultar a incursão do grupo criminoso rival.
Quando da ocorrência deste evento, os moradores que se
encontravam em suas casas e barracos não ousavam sair,
sempre procurando os lugares mais improváveis para uma
eventual “bala perdida”, já os que se encontravam fora da
favela procuravam refúgio na solidariedade de amigos e
parentes, ou então se arriscavam sob o medo por entre os
becos escuros.

O conflito observado na Rocinha em abril de 2004 fez


toda a sociedade pensar em formas de intervenções e ações
urbanas no lugar. Dentro de tais perspectivas, os governos
Municipal e Estadual chamam toda a coletividade a
interagir nesse processo. Observa-se neste período a
participação do VIVA RIO, com um núcleo já instalado
dentro da Rocinha, organizando reuniões com lideranças da
35

IMPRESSÕES NO TEMPO
comunidade, empresários e educadores em busca de formas
para se construir um trabalho em conjunto.

Instala-se assim o Fórum Dois Irmãos em abril de


2004, que se lança com um ato de solidariedade
denominado “Dia do Carinho”. O objetivo do Fórum é a
construção de projetos que primem pelo desenvolvimento
social da Rocinha através da implantação na favela de
programas educacionais.

“(...) O da FIRJAN22 visa a erradicar o analfabetismo na


Rocinha, Já o VIVA RIO, com o apoio da Fundação Roberto
Marinho, criará dez telessalas de ensino médio. A PUC
dará sua contribuição na área de informática” (O Globo:
17/04/2004, 21).

Paralelo a isso o Estado busca construir, também em


reuniões com a comunidade, diretrizes de ações para a
inserção do Governo Estadual na favela. O resultado aponta
para a criação da ADL23 Rocinha, desvinculada da então
ADL São Conrado, Gávea, Vidigal e Rocinha; a licitação de
um Plano Diretor para a Rocinha; e ainda, a implantação de
uma escola técnica encaminhada pela FAETEC24 que “prevê
a instalação, inicialmente, de dois cursos: informática e
hotelaria”. (Jornal do Brasil, 12/05/2004: A16)

22 Fundação da Indústria e Comércio do Rio de Janeiro.


23 Agência de Desenvolvimento Local.
24 Fundação de Apoio à Escola Técnica.
36

IMPRESSÕES NO TEMPO
Até que se conformasse tal cenário, diversas idéias
despontaram como solucionadoras dos problemas da
Rocinha, todas elas expressas em jornais cariocas indo da
retrograda idéia de remoção dos “pobres” das encostas
privilegiadas da cidade à transformação da cidade em
território federal [Figs. 1.6, 1.7, 1.8 & 1.9].

[Fig.1.6] [Fig.1.7]

Figs. 1.6, 1.7 &


1.8: Cartas de
leitores
publicadas no
jornal O GLOBO.

Fonte: O GLOBO, Op.


Cit. (13/04/2004: 6)

Fig. 1.9 Carta de


leitor publicada
no jornal O
GLOBO.

Fonte: O GLOBO, Op.


Cit. (10/04/2004: 6)
[Fig.1.8] [Fig.1.9]

O debate mais polêmico criou-se em torno da idéia da


construção de um muro [Fig. 1.10] para cercar a favela,
anunciada pelo Estado, que supostamente impediria seu
crescimento. A tentativa de se criar limites na Rocinha já foi
intentado em 2001 pela Prefeitura, através da SMA -
37

IMPRESSÕES NO TEMPO
Secretaria de Meio Ambiente, com a implantação de cercas
de cabos de aço, denominadas de Eco-Limites25 na área da
Macega. Hoje se verifica que este limite foi ignorado pelos
moradores, estando a área além desta ocupada por
barracos de madeira [Fig. 1.11].

Concomitante a essa realidade vive na Rocinha um


outro lado que busca superar no cotidiano a falta de
recursos e infra-estrutura, através de ações comunitárias e
da produção cultural e social para além de suas fronteiras e
do Brasil.

A exemplo disto temos a COOPAROCA26 que


desenvolve trabalho de criação em moda, com as
costureiras locais tendo seu trabalho reconhecido
internacionalmente, e o MUVUKA27, que atua junto à
comunidade tentando destacar os principais problemas e
trabalhar soluções que buscam o apoio dos Governos e da
sociedade como um todo, distribuindo cestas básicas e leite
para as famílias mais carentes, e ainda, grupos teatrais
como o “Roça Caça Cultura” e “Cia. de Teatro”.

25 O Eco-Limite foi idealizado pelo Secretário Municipal de Meio Ambiente

Eduardo Paes em 2001, e é constituído por trilhos interligados por cabos de aço
que impedem as favelas de crescerem sobre as áreas verdes. Inicialmente era
implantado somente nas áreas do Favela-Bairro. Hoje se encontra instalado em
mais de quarenta comunidades e continuam sendo usados como alternativa
pela Prefeitura.
26 Cooperativa de Costureiras da Rocinha.

27 MUVUKA Rocinha Grupo de Ação Social.


38

IMPRESSÕES NO TEMPO
Fig. 1.10 Mapa do
Limite do Moro
sugerido pela
Prefeitura
publicado no jornal
O GLOBO.

Fonte: O GLOBO, Op.


Cit. (12/04/2004: 12)
[Fig. 1.10]

Além da Rocinha organizada socialmente e


culturalmente, ainda em março de 2004 é deflagrada a
eleição comunitária para a Associação de Moradores do
Laboriaux [Fig. 1.12], tendo sido concretizada somente em
maio. Este fato ocorre após o pleito no final de 2003 para a
nova direção da UPPMR, que se desenvolveu em torno da
disputa entre quatro chapas, e que levou para o pátio da
Igreja da Boa Viagem na Estrada da Gávea “quase quatro
mil pessoas que compareceram ao local de votação”.
(Rocinha Notícias, março/abril 2004: 6).
39

IMPRESSÕES NO TEMPO
Fig. 1.11: Eco-
Limite
implantado pela
Prefeitura na
Macega em 2001.

Foto: Glauci Coelho


set. de 2003. [Fig. 1.11]

As eleições em 2003 para a UPPMR trazem à tona a


Rocinha política, destacando a disputa acirrada ocorrida
entre duas das chapas concorrentes, caracterizadas como
representantes locais dos governos Municipal e Estadual. O
primeiro se fazendo presente naquele momento dentro da
favela através da construção do Mercado Popular da
Rocinha e o Centro Cidadania Rinaldo Delamare, já o
Estado constrói sua relação com o lugar por meio da
presença de obras da CEDAE que tem um posto na Rua 1 e
em ações sociais de distribuição de cestas básicas.

Fig. 1.12: Chamada


às eleições para a
Associação de
Moradores do
Laboriaux.

Fonte: Rocinha
Notícias, Op. Cit.
(março/abril de 2004).
[Fig. 1.12]
40

IMPRESSÕES NO TEMPO
Apesar de oficialmente ser um bairro da cidade, a
Rocinha ainda apresenta características físicas de favela e
mais ainda, volta a representar o território do medo com a
presença da violência do tráfico de drogas, mas pretende
através dos seus meios sociais, culturais e comerciais de
organização superar este estigma, configurando-se como
uma mini cidade onde é possível morar, estudar, trabalhar
e praticar o lazer, cobrindo desta forma, ainda que de
maneira precária, as necessidades básicas de sua
população que se organiza no dia-a-dia de um espaço com
vida própria.

41

IMPRESSÕES NO TEMPO
LUGAR E COTIDIANO
II
A Rocinha é uma cidade, a verdade é essa, eu tenho um
pensamento comigo. Se hoje cercassem a Rocinha com
grade e colocassem um portãozinho lá embaixo e outro lá
em cima, a Rocinha viveria só com as próprias pernas (...).
Eu me lembro que eu era pequeno, não existia Vila Verde,
a Cachopa estava crescendo, a Cachopinha nem em sonho
e ela foi crescendo e crescendo. (MP, Diário de Campo:
04/11/2003).

As palavras colocadas por um dos guias da


comunidade, expressam de forma resumida a complexidade
da dinâmica que hoje marca a Rocinha. Uma cidade dentro
da cidade, caracterizada pela peculiaridade de ser a maior
área de ocupação informal da América Latina, construída
ao longo do tempo, apresentado no capítulo I, e que hoje se
caracteriza por ter sua própria realidade, onde podemos
associar, a forma deste tipo de organização urbana, às
cidades de Calvino, onde:

Depois de um ano, já está grande como um limão; depois,


como um cogumelo, depois como um prato de sopa. E eis
que se torna uma cidade do tamanho natural, contida na
primeira cidade: uma nova cidade que abre espaço em
meio à primeira cidade e impele-a para fora. (Calvino,
2001: 119).

As impressões destacadas da percepção do guia


associadas às cidades de Calvino (2001), traduzem um
lugar impregnado de memória, que no seu cotidiano guarda
42

LUGAR E COTIDIANO
a chave para a leitura da sua realidade. Um lugar que
cresce nas suas relações internas entre indivíduo-espaço
consolidando-se como um lugar complexo, e que se exclui
do resto da cidade, ao suprir suas necessidades mínimas no
dia a dia. É assim um bairro que ainda conserva uma infra-
estrutura urbana precária com ocupações irregulares que a
marcam enquanto favela.

Um estudo aprofundado sobre as interações que


organizam o espaço complexo da Rocinha faz-se pertinente
através da observação participativa do lugar, que busca o
entendimento de suas complexidades, marcadas no
cotidiano, descrevendo através das relações mais íntimas
dos seus moradores e das observações de campo a
realidade do seu espaço vivo.

2.1. A Opção pela complexidade


Para a construção e constatação dos pontos desta
pesquisa buscou-se uma abordagem interdisciplinar que
considera as áreas de arquitetura, urbanismo, psicologia,
geografia, filosofia e antropologia, fundamentais ao processo
de estudo sobre a construção e percepção do complexo
favela pela ação do indivíduo-criança na brincadeira. A
interdisciplinaridade é fundamental a um entendimento
científico que toma o paradigma da complexidade como
princípio.
43

LUGAR E COTIDIANO
Neste sentido, as informações contidas nas diversas
disciplinas de interesse, tecem um conhecimento que, ao
mesmo tempo em que se ancoram nestas, preservam sua
singularidade exatamente pela concepção ampla e
complexa. Esta abordagem transcende “a ciência clássica
da racionalidade que se fundamentou nos pilares da certeza”
(Morin, 2000: 95) que simplifica, reduz e separa objeto do
seu observador e do seu meio-ambiente.

A abordagem complexa nos permite reunir todas as


informações e percepções para distinguir a posteriori na
interpretação de um objeto que deve estar contextualizado
com seu meio, bem como com a experiência e o processo de
conhecimento de quem interpreta os fatos. Isto permite
ainda, que a teoria científica não se coloque de forma
ditatorial, como verdade absoluta, e sim, como citado por
Morin (2000: 106) apresente a possibilidade de ser refutada.

Ressaltamos que uma abordagem complexa do


conhecimento não exclui a lógica, mas sim a combina
dialogicamente28 “entre sua utilização segmentos por
segmentos e à sua transgressão” (Morin, 2000: 123). Assim,
o reconhecimento científico na complexidade está em reunir
acontecimentos:

O global ao parcial, a autonomia à dependência, o


elemento organizado à organização. (...) reunir a

28 Termo definido no Capítulo III, item 3.2 desta Dissertação.


44

LUGAR E COTIDIANO
organização àquilo que ela organiza, a observação ao
observador, a concepção ao conceituador, o conhecimento
ao conhecedor. (...) Restituir as relações, as
interdependências, unindo a inseparabilidade na
separabilidade e vice-versa. (Morin, 2000: 134-135).

Por isso as observações de comportamento e valores


como método de pesquisa da Antropologia Social ou
Cultural29 (ou etnologia) e que “diz respeito a tudo que
constitui uma sociedade: seus modos de produção
econômica, suas técnicas, sua organização política e jurídica,
seus sistemas de parentesco, seus sistemas de
conhecimento, suas crenças religiosas, sua língua, sua
psicologia, suas criações artísticas” (Laplantine, 2000, 19),
se coloca como o meio mais apropriado para o seguimento
deste trabalho que estuda as interações complexas
indivíduo-espaço, entendendo que através deste método “o
pesquisador deve ele mesmo efetuar no campo sua própria
pesquisa” reunindo a teoria à observação (Laplantine,
2000:73-78).

O trabalho do etnógrafo, de levantamento de registros


etnográficos em observações participativas, ocorre

29 Segundo Laplantine (2000, Op.Cit.), a primeira segue um eixo de pesquisa no


qual podem ser estudados o pensamento, o conhecimento, a emoção, a
linguagem, e tomou impulso na Inglaterra de Malinowski. Já a antropologia
cultural tem suas bases no empirismo que privilegia o sentido em detrimento da
norma e do sistema, verificando-se várias correntes que se diferenciam pelo
critério da continuidade e descontinuidade entre a natureza e a cultura de um
lado, e entre as próprias culturas de outro, em resumo o cultural seria nada
mais do que o próprio social, mas considerados pelo que distingue os
comportamentos individuais, bem como suas produções originais. O importante
é que ambas tem o mesmo campo de pesquisa usando os mesmos métodos de
acesso ao objeto, a etnografia.
45

LUGAR E COTIDIANO
justamente na relação humana que envolve afetividade, por
isso, segundo Laplantine (2000) o modelo de objetividade da
ciência clássica que isola o objeto pesquisado e exclui o
observador, não pode dar conta nesta relação de pesquisa.

Não pode ser conveniente para compreender


comportamentos humanos que veiculam sempre
significações, sentimentos e valores (2000: 172).

A consonância da complexidade à etnografia


enriquece o trabalho ao propiciar a observação do objeto de
pesquisa favela da Rocinha, através da subjetivação do
observador, indo do estranhamento deste ao estranhamento
do outro (observado), até a acomodação das partes, se
reconhecendo sem rejeição.

A importância dessa conjunção foi confirmada numa


conversa sobre amenidades com os professores do “Projeto
Curumim”30, quando eles fizeram a exclamação que a
pesquisadora já se sentia como parte do ambiente.

[sic] “acho que a tia gostou, daqui ela não sai mais!”
(Diário de Campo: 01/10/2003).

Percebemos que eles nos consideravam quase como


membros do grupo, pois a partir de então passamos a ser

30 O Projeto Curumim é um programa implantado pelo Governo Estadual


através da FIA (Fundação da Infância e Adolescência) em comunidades de baixa
renda. Na favela da Rocinha duas creches comunitárias tiveram este programa,
mas do início do trabalho de campo até os dias atuais, somente a creche
comunitária da Rua 1, dirigida por Dona Elisa, ainda desenvolve tal projeto,
numa sede apropriada a esta finalidade em parceria com o Grupo NEAM-
PUC/RJ (Núcleo de Estudos e Ação sobre o Menor), coordenado pela Professora
Marina Lamette Moreira.
46

LUGAR E COTIDIANO
convidados a fazer parte da rotina do lugar sem reservas,
através de um primeiro convite a permanecer e jantar com
eles após o lanche das crianças no prédio do Curumim
localizado na Rua 1. Neste instante a pesquisa de campo
ficou mais fácil, com o acesso às áreas sendo aos poucos
permitidos, revelando a realidade da comunidade.

Incluir-se não apenas socialmente, mas


subjetivamente, faz parte da metodologia de análise do
objeto científico que procuramos construir (Laplantine,
2000:173). O caminho metodológico que adotamos foram
emergindo em campo, construído em conjunto com os
atores do ambiente e a partir deste, iniciando com uma
conversa com Dona Elisa que a partir de sua experiência
nos apontou:

(...) a melhor maneira de entender isso tudo aqui [através


da criança], primeiro é sentar no chão e conversar com as
crianças e deixar que elas te digam o que é isso aqui para
elas, por meio da brincadeira vão te dizer tudo (Diário de
Campo: 23/07/2003)

Aos poucos, as interações com os moradores, adultos


e crianças, foram permitindo a captação de rico material de
estudo, materializando-se em visitas a campo, através da
observação participativa durante quatro meses, resultando
em apontamentos destacados no Diário de Campo [Anexo II],

fotos e desenhos que solicitamos a um grupo de quatorze


crianças da Rua 1, informando sobre “os lugares que mais
gostavam de brincar e do que”.
47

LUGAR E COTIDIANO
Assim, a favela da Rocinha com seus espaços e
indivíduos, adultos e crianças, escreve em co-autoria esta
pesquisa impregnada de sentimentos, que pretende a
descrição da totalidade31, uma vez que a “totalidade de um
fenômeno social supõe a integração do observador no próprio
campo de observação” (2000: 169), se estruturando por
meio das interações indivíduo-espaço na comunidade.

A partir de tais considerações tornou-se possível


vislumbrar uma Rocinha diferente, um espaço de pobreza
em busca de superação, e também um lugar que guarda
sentimentos e histórias, que transformam o seu cotidiano
como peça fundamental tecedora do espaço vivo. Um espaço
complexo não só pela forma física, como pela riqueza das
relações estabelecidas no lugar, e que podem interferir na
rotina da brincadeira e seus espaços, que analisamos
através da percepção dos seus habitantes, adultos e
crianças, e como possibilita a observação participativa,
também analisada pela percepção do observador.

A descrição do complexo Rocinha que se segue parte


das relações estabelecidas em campo com os professores do
“Projeto Curumim” e com suas crianças. Observa-se ao
longo deste capítulo que a percepção do lugar é descrita
tanto pelos observadores como pelos observados nas
31É importante destacar que foi Devereaux, em 1938, quem primeiro destacou
o proveito que a etnografia poderia fazer do “princípio da incerteza”,
desenvolvida pela física moderna, que introduz o pesquisador na experiência de
observação (Laplantine, Op. Cit. 169-173).
48

LUGAR E COTIDIANO
interações entre as partes no espaço interno e externo à
favela, considerando o entendimento da dimensão física e
Fig. 2.1: simbólica32 para fora de seus domínios.
Fotomontagem
da Rocinha, do
ponto mais alto
da Rua 1 à parte
mais baixa
marginal a Auto-
estrada Lagoa-
Barra.

Foto: Glauci Coelho


set. de 2003.
[fig. 2.1]

2.2. A estrutura intramuros


Em uma de nossas primeiras visitas à Rocinha nos
deparamos com um espaço extremamente complexo,
deixando transparecer de imediato sua diversidade de
significações nas organizações dos seus espaços livres e
edificados que cotidianamente se reorganizavam.

A transformação do lugar é sucessiva e à medida que


íamos tomando conhecimento dos seus espaços,
entendíamos que não daríamos conta de fazer uma
pesquisa profunda em todos os setores da Rocinha. Assim
mapeamos o espaço como um todo, primeiro identificando
sua estrutura, através dos eixos viários [Fig.2.2] que
organizam o lugar, e em seguida identificando o que seriam
os setores que dão forma à Rocinha [Fig.1.3].

32 SANTOS, Carlos Nelson F. dos. Op. cit. Em Quando a Rua Vira Casa, refere-
se à dimensão simbólica como uma das formas etnográficas de análise, somados
aos costumes, comportamentos, relações regulares, dramas sociais do cotidiano
e códigos culturais.
49

LUGAR E COTIDIANO
Paralelo a isso nós tomamos contato com o grupo de
recreadores e crianças do Curumim que se converteriam
nos nossos principais informantes do lugar. O Curumim
entre o período de julho e novembro de 2003 comportava
cerca de 200 crianças, de seis a treze anos, divididas em
dois turnos, que tinham como objetivo dedicar seu tempo
livre na comunidade às atividades de recreação e lazer, ao
ar livre.

Tratando primeiro de entender a Rocinha como um


todo, identificamos que existem localidades comumente
relacionadas à estrutura viária [Fig.2.2] ou aos seus setores
que historicamente marcam os pontos principais de
referência no cotidiano do lugar. Assim conhecemos o Largo
do Boiadeiro, a Rua do Valão a famosa Via Ápia e o Largo
da Rua 2 [Fig.1.3].

O largo do Boiadeiro é a área livre mais antiga da


Rocinha, pode-se dizer que a comunidade começou neste
lugar e que conjuntamente com a Rua do Valão a Via Ápia e
o Largo da Rua 2 foram as primeiras referências, quando
falamos sobre lazer com os adultos, que o entendem como
os bailes funks e a vida noturna dos bares existentes na
localidade.
51

LUGAR E COTIDIANO
Fig. 2.3: Caminho
do Boiadeiro
durante a
semana.

Fig. 2.4: Caminho


do Boiadeiro em
dia de feira aos
domingos.
[Fig. 2.3] [Fig. 2.4]

Foto: Glauci Coelho.


Nov. 2003. Fomos então levados pelos guias a conhecer a Via
Ápia e o Largo do Boiadeiro, e de imediato optamos por
excluí-los do trabalho de campo, uma vez que estávamos à
procura do lazer infantil na brincadeira e não o de
adolescentes e adultos.

De qualquer forma tais lugares nos apresentaram à


comunidade da Rocinha, em sua dinâmica diurna e
noturna, que aos poucos possibilitavam a leitura da
realidade do lugar. O Largo do Boiadeiro tem sua
apropriação marcada pelo mais variado comércio, tanto
diurno quanto noturno. Durante o dia o lugar é comumente
visitado por seus moradores, que buscam algum tipo de
serviço, nos vários pontos comerciais que são a cada dia
tomados pelo o que os guias se referem como “máfia
chinesa”33. Ainda funciona como ponte de integração,
através dos acessos por becos às outras localidades, que

33 Os pontos comerciais da Rocinha são nos últimos meses tomados

crescentemente por imigrantes chineses que não moram na comunidade, mas


que fazem deste seu ponto de exploração comercial com produtos falsificados
que são vendidos a preços baixos, por isto encontrando ali um grande mercado
consumidor. Estas constatações se baseiam em depoimentos de moradores que
se referiam a estes sempre como a “máfia chinesa” que toma conta do comércio
da Rocinha.
52

LUGAR E COTIDIANO
são feitos a pé ou através do ponto de mototáxi34, que parte
dali em direção à Estrada da Gávea, interligando as partes
alta e baixa da Rocinha.

Toda esta dinâmica comercial do Largo do Boiadeiro é


igualmente observada na Rua do Valão, na Via Ápia e de
forma menos intensa, no Largo da Rua 2 que tem
importância pelo baile funk que acontece nas noites de
domingo, conhecido como “matinê”, (que é totalmente
financiado pelo “poder local”). As observações que se
referem às zonas comerciais da Rocinha encontram na
pesquisa efetuada por Andrade (2002: 72) uma longa
análise, e quando esta se refere, especificamente, à
localidade do Largo do Boiadeiro fala destas áreas próximas
à auto-estrada Lagoa-Barra, como tipicamente comerciais.

Durante a noite o lugar toma outra forma, o comércio


que atrai jovens e adultos são os bares, bailes e venda de
drogas, transformando toda aquela localidade numa grande
praça de encontros. As crianças também fazem parte deste
cenário, mas nele elas estão sempre sob outra forma de
atividade, o estar pela necessidade de adquirir recursos
financeiros para auxiliar no sustento em casa.

34 Mototáxi é um tipo de transporte bastante comum em comunidades que se


estruturam em encostas de morros, que facilita o transito às partes mais
difíceis da favela.
53

LUGAR E COTIDIANO
Existe uma categoria curiosa e que não é o centro
deste trabalho, mas que merece ser mencionada, para ser
abordada em outra pesquisa, são os meninos pedintes
dentro da favela que, sozinhos ou em grupos, perambulam
pelos bares pedindo dinheiro, comida ou vendendo coisas, e
que ainda são observados pelo tráfico como “soldados”
potenciais.

A localidade da Via Ápia também é marcada por essa


intensa vitalidade35 e nos conduz em seu percurso, assim
como no Caminho do Boiadeiro, a um outro lugar que
marca, não só pelas apropriações variadas, mas por
costurar ao seu longo, diversas localidades da favela. Desta
forma a Estrada da Gávea [Fig.2.5] se comporta como a
espinha dorsal da Rocinha.

Fig. 2.5: Curva do


“S” - Estrada da
Gávea.

Foto: Glauci Coelho.


Dez. 2003.
[Fig. 2.5]

Ao longo do seu trajeto nota-se um intenso comércio,


que convive com casas à beira da estrada, intensamente
trafegada por ônibus, amontoados aos mototáxis. Esta
35 Vitalidade, categoria de análise da morfologia urbana, é um termo que se
refere à diversidade de usos que são apropriáveis de um espaço, ou seja, é a
utilização de um espaço por parte do público para diversos propósitos.
(BENTLEY, Ian; et al. 1999, Op. Cit).
54

LUGAR E COTIDIANO
ligação torna a Rocinha um lugar mais permeável36 não só
entre os bairros da Gávea e São Conrado, mas também
entre os seus diversos setores que vão da parte baixa à
parte alta da favela [Fig.1.3].

De forma geral, estas são as principais vias que


estruturam a parte física da Rocinha, que entre elas tece-se
através de becos e escadarias. A interação com tais partes
físicas do lugar nos permitiram penetrar no interior da
comunidade e acessar seus espaços simbólicos mais
íntimos, delimitando aos poucos a área de pesquisa.

O primeiro setor a que nos conduziu os trabalhos de


campo foi a Rua 1, lá se encontra instalada a sede do
Curumim. Até certo momento entendemos que a Rua 1 se
restringia especificamente a uma rua, mas não, era um dos
diversos setores da Rocinha, e um dos mais antigos,
conforme o que foi observado no capítulo I. Esta localidade
é uma das áreas mais representativas da comunidade,
ocupando uma das partes mais altas que tem seu acesso
principal pela Estrada da Gávea, estruturada por uma
grande rua não carroçável37, conhecida como caminho do

36 Permeabilidade é outra categoria de análise da morfologia urbana proposta

por Kevin Lynch que se refere ao número de caminhos alternativos de um


entorno. A vitalidade de um lugar pode ser medida através da sua capacidade
de ser transposto, ou de através dele ou dentro dele se possa circular de um
lugar a outro. (BENTLEY, Ian; et al. 1999, Op. Cit).
37 Tipo de rua entendida em arquitetura e urbanismo que não comporta o

acesso de veículos, somente de pedestres.


55

LUGAR E COTIDIANO
terreirão [Fig.2.7], e que corta toda sua extensão entre esta e o
que eles denominam terreirão da Rua 1.
Fig. 2.6: Vista da
Rua 1.

Fig. 2.7: Caminho


do terreirão em
frente ao prédio
do Curumim.

Foto: Glauci Coelho


Out. de 2003 [Fig.2.6] [Fig.2.7]

O espaço da Rua 1 é intensamente vivido nos seus


becos e escadarias íngremes e de difícil legibilidade38 para
quem não faz parte daquele cotidiano. As casas que
estruturam o lugar margeiam seus becos, avançando sobre
estes e muitas vezes abrindo-se diretamente para os
mesmos.

Tomado especificamente por residências, por vezes é


possível verificar a presença de comércios, voltados para os
becos. Estes são pouco observados e predominam apenas
próximo ao que é denominado de Largo da Rua 1. Como
citado no trecho abaixo do Diário de Campo, o lugar apesar
de ínfimo, à beira da Estrada da Gávea é um ponto
impressionante de vitalidade, como ressaltamos:

38 Legibilidade, também uma categoria de análise da morfologia urbana, é a


qualidade que torna um lugar compreensível. Podemos distinguir a legibilidade
pela forma física e pelos modelos de atividades. Os lugares podem ser lidos por
cada um destes aspectos separadamente, mas a realidade de um local somente
será completamente desfrutada se apreendida a complementaridade entre estes
aspectos. Para desenvolver esta análise é recomendável utilizar a lista de
elementos analisáveis de Kevin Lynch – vias, limites, bairros, pontos nodais,
marcos. (BENTLEY, Ian; et al. 1999, Op. Cit).
56

LUGAR E COTIDIANO
Um lugar que parecia um verdadeiro mercado, não pelo
tamanho que é ínfimo, mas pelo aglomerado de pessoas e
atividades. Um vendedor de flores em frente a uma
birosca, onde fica um menino do tráfico olhando quem
entra e quem sai, um anotador do bicho, a construção de
uma igreja, uma banca de peixe, a farmácia, o descarregar
de mercadorias, enfim um alvoroço que perturba e deixa
confuso. (Diário de Campo: 04/10/2003).

Prontamente a Rua 1 mostrou-se como uma das


áreas a serem observadas, quanto ao brincar, afinal ali
pudemos perceber que as crianças estavam livremente por
entre lajes e becos e ainda tinham o atrativo da quadra do
terreirão da Rua 1, além de um parque infantil que
desvendaremos no capítulo V.

Outra vez, foi na Rua 1, um dos lugares onde


pudemos nos deparar com a dinâmica noturna da favela.
Paralelamente à agitação observada no Largo do Boiadeiro e
entorno, a Rua 1 noturna é um dos locais que toma outra
forma, pelos pontos de venda de drogas. A diferença entre
estes dois pontos está no fato do acesso à Rua 1 ser menos
intenso e mais controlado, talvez por configurar-se como
uma área residencial, onde durante o dia não é percebida
claramente nenhuma atividade deste tipo.

Segundo informações dos moradores, este tipo de


atividade, bem como o porte de armas, é impedido não só
neste setor durante o dia, mas como em toda comunidade
em seus dias de paz pelo “poder local”, justamente pela
presença intensa de crianças na favela, relação esta que
57

LUGAR E COTIDIANO
também abordaremos no capítulo V. Contudo, logo que
anoitece, um exército de meninos se põe nos becos, lajes e
escadarias portando armas e outros apetrechos de guerra.
O movimento de moradores na Rua 1 não é o mesmo
percebido durante o dia, o ambiente permanece mais calmo,
poucos transitam no lugar e o que se observa são
murmúrios de vozes.

Fig. 2.8: Barraco


de madeira na
Macega.

Fig. 2.9: Subida


para o Laboriaux
na Estrada da
Gávea.

Foto: Glauci Coelho


Out. de 2003 [Fig. 2.8] [Fig. 2.9]

Semelhantes à Rua 1, os setores da Macega [Fig.2.8],

Cezário, Cachopa, Cachopinha e Laboriaux [Fig.2.9] , que


despontaram como áreas de estudo, se comportam em seus
cotidianos diurno e noturno. Todas são áreas de
predominância residencial e as diferenças na formação do
espaço são poucas entre as que são conformadas pela
localidade da Rua 1, Macega e Cezário e a Localidade da
Cachopa e Cachopinha.

Ambas são localidades que se desenvolvem por entre


becos e escadarias tortuosos, que são estruturados pelas
disposições de suas construções, que aos poucos vão
moldando o lugar. Segundo a pesquisa de Andrade (2002:
58

LUGAR E COTIDIANO
160) todo espaço é caracterizado pelo dimensionamento
inadequado de becos e escadarias e pela imprecisão do que
é público e privado, “marcado pelo percurso alternativo sobre
as lajes das casas”.

O Cezário é um setor contínuo à Rua 1 por onde se


atinge a Macega [Fig.2.8]. De ocupação mais recente, a
Macega está numa área classificada de risco, onde havia
uma cerca, como descrito no Capítulo I, implantada pela
Prefeitura para conter o crescimento da comunidade. Hoje o
que se encontra é uma barreira transposta em uma área
que está sendo gradativamente tomada por barracos de
madeira.

Fig. 2.10: Casa de


madeira embaixo
da pedra no
Cezário.

Foto: Glauci Coelho


Out. de 2003
[Fig. 2.10]

Nas áreas mais novas de ocupação da Rocinha, em


direção à mata, ainda é possível verificar habitações
precárias de madeira, como no Setor da Vila Verde [Fig.2.11]

no alto da Cachopa. Nestes setores os espaços livres são


maiores, chegando em alguns casos, a conformar quintais
contíguos aos barracos. A vida nestes espaços é intensa e
geralmente são usados mais do que os espaços das casas.
59

LUGAR E COTIDIANO
Esse tipo de dinâmica do espaço é igualmente
observada na localidade Laboriaux, pois apresenta algumas
vias carroçáveis e uma vasta fronteira com a reserva da
Floresta da Tijuca, abordadas no capítulo V. É importante
destacar que nesta comunidade a relação de
interdependência entre floresta e favela está presente em
diversas formas de apropriação que giram em torno da
construção da identidade do morador da Rocinha e do
próprio espaço, assim como Soares (1999) observa de
maneira profunda em seu estudo sobre a favela e a floresta
nas relações humanas.

Fig. 2.11:
Barracos de
madeira na
transição da
favela com a
floresta.

Foto: Glauci Coelho


Out. de 2003
[Fig. 2.11]

A configuração do Laboriaux à margem da floresta se


justifica pelo fato deste setor ter sido inicialmente um
conjunto habitacional, implantado pela Prefeitura para
receber os moradores que habitavam as margens do valão
no Bairro Barcellos em 1981. Como foi parcialmente
planejado, dentro deste setor existe uma divisão mais clara
do que é o espaço privado da casa e o espaço público da rua
(Andrade: 2002, 79-81).
60

LUGAR E COTIDIANO
Desta forma fechou-se o recorte da área a ser
pesquisada. Moldada pela triangulação de três áreas
representativas dentro da comunidade, a primeira é a
localidade conformada pelos setores da Rua 1, Cezário e
Macega, áreas de ocupação informal antiga e ainda em
expansão em direção à Macega; a segunda pela localidade
dos setores da Cachopa e Cachopinha, áreas de ocupação
informal mais recente e finalmente a localidade do
Laboriaux, de implantação recente, que intercala uma
tentativa formal de ocupação com a atual informalidade do
espaço e que ainda estabelece com a floresta uma intensa
relação.

Por meio da observação destas três localidades


identificamos um cotidiano de brincadeiras vivido nos
espaços livres, pretendido público, dos becos e das lajes,
que se misturam às casas, demonstrando uma tênue
fronteira do que é o espaço privado. São os códigos de
convivência internos da Rocinha, que evidenciam que a
definição do que é público e do que é privado na cidade
formal, assume outra escala de valores que tratamos no
próximo item.

Em seus diversos tipos e hierarquias, o que seriam as


vias de circulação comuns na cidade, encontram no
ambiente da Rocinha suas significações através do trânsito
por entre lajes e becos. E estas ainda assumem funções
61

LUGAR E COTIDIANO
variadas, de simples lugar de circulação de pedestres, a
local de estar de uma parcela de sua população,
espacializando de forma clara, as tensões entre casa e rua.

2.3. Tensões entre casa e rua na favela da Rocinha


Veremos no capítulo III que as tensões de um
ambiente são observadas pelas diversas significações de
usos de seus espaços vividos, e também, que em favelas, a
dinâmica dos espaços das casas, geralmente, se desenvolve
articulada aos espaços da rua. Observaremos o resultado
deste jogo na Rocinha, através da identificação das lajes
como elementos formais da paisagem, que assumem por
instantes, ainda que originariamente entendidos como
espaços privados, as funções de vias de circulação – rua, e
estar público e privado – praças e quintais, o que marca a
complexidade do espaço.

Teremos ainda os becos que, conformados por entre


as casas, servem de quintais coletivos e, enfim, os espaços
livres residuais que ocupados, servem a qualquer propósito.
O que observaremos em todos os casos é a porção do
espaço livre da favela, becos, lajes e escadarias, que está
intrinsecamente relacionado ao seu elemento gerador, a
casa.

Na Rocinha, em todos o setores, são os becos e as


lajes, os locais de maior vitalidade. Em uma de nossas idas
62

LUGAR E COTIDIANO
a campo tivemos oportunidade de interagir com os
recreadores que nos guiavam pela comunidade no que seria
o tradicional churrasco na laje.

Era então cair da tarde e a vista que se tinha era de um


lugar agitado não só pelo movimento das pessoas, mas
também pelo som dos pagodes quase ininterrupto. (Diário
de Campo: 04/10/2003).

A Rocinha é particularmente um lugar sonoro, os


sons e as luzes contribuem para gerar uma atmosfera
agitada e animada nos becos, onde os moradores
conversam num tom elevado de vozes, disputando às vezes
com as diversas rodas de pagodes nas lajes e com os rádios
ligados.

Dentro desse cenário, uma parcela da vizinhança


desenvolve atividades de lazer, em que cada grupo participa
com sua contribuição. As mulheres preparam a refeição que
irá acompanhar o churrasco, os homens fazem o serviço
mais pesado de comprar cerveja, arrumar churrasqueira,
por exemplo, e as crianças brincam ao redor. Este exemplo
observado na laje é uma prática já verificada por Santos
(1985).

Em meio a toda essa realidade outros setores da


Rocinha vivem, são espaços constantemente transformados,
reorganizando sua dinâmica noturna, diferentemente, da
diurna. Seus espaços livres são intensamente vividos pelos
seus moradores, adultos e crianças, e constantemente são
63

LUGAR E COTIDIANO
percebidas aglomerações de pessoas que conversam nos
becos ou se reúnem em lajes nos fins de tarde para tocar
pagode e beber vinho com coca-cola.

Essas interações são comuns. Durante a semana


grupos de moradores se reúnem em cima da laje de algum
vizinho, para beber, tocar pagode e jogar conversa fora. A
cena que se estabelece é a de um grupo, geralmente em
torno de uma caixa d’água, que serve como mesa, pessoas
espalhadas pelo chão da laje e nas proximidades dela.
Sempre com crianças correndo e pelo menos um cachorro
latindo.

A laje se transforma neste caso em uma pequena


praça onde quem passa geralmente pára e fica um pouco.
Isto só ocorre quando as lajes de cobertura das casas estão
niveladas com o caminho que passa numa cota de nível
mais elevado. Tais espaços se comportam ainda como
varandas da casas, os donos da laje não se incomodam se
pessoas da localidade e amigos estão sobre elas.

Lajes quando não são apropriadas como praça ou


varanda, são áreas de lazer ou áreas de serviço da família
que ali mora [Fig.2.6]. Outra característica comum na Rocinha
é estas lajes servirem de caminhos, como ruas que
interligam becos, conformando largos.
64

LUGAR E COTIDIANO
A dinâmica das lajes na Rocinha assume, por vezes, o
caráter público da praça e da rua como acesso, e por
outras, conservam seu caráter privado de espaço da casa
como quintal, são um espaço semipúblico-semiprivado. O
interessante é que este espaço tem uma significação
importante na comunidade, tanto pelo uso destinado ao
lazer, que é simbólico enquanto lugar de confraternização,
quanto pelo valor econômico, onde não raro são negociados
para outras famílias estabelecerem ali sua habitação.

Não menos importante que as lajes, os becos,


enquanto espaços contíguos às casas, assumem
significações diversas na Rocinha. Tais espaços em áreas
mais consolidadas da comunidade são por vezes
privatizados pelos moradores [Fig.2.12], normalmente
referindo-se a estes numa relação de posse.

Tal relação de privacidade do beco é comum nas falas


das crianças e dos adultos que se referem aos lugares
sempre como o “beco da Dona Fulana” ou o “beco da
Birosca Tal”. A exemplo disto apresentamos a conversa com
Camila, uma menina de quatro anos que enquanto relatava
o que gostava de fazer, disse:

[sic] Gosto de brincar de boneca, quando minha mãe deixa


eu brinco no meu beco. (Diário de Campo: 14/10/2003).

A referência de posse do beco colocada pela menina


nos remete ao modo privatização como as pessoas
65

LUGAR E COTIDIANO
informam os lugares no interior do Brasil estudado por
DaMatta (1997).

Segundo o autor (1997: 30), as pessoas informam aos


estrangeiros a posição das moradias de modo pessoalizado
e até mesmo íntimo.

Fig. 2.12: Vista


de um beco
privatizado com
fechamento de
portão.

Foto: Glauci Coelho


Out. de 2003
[Fig. 2.12]

O importante é colocar aqui que os becos raramente


são privatizados por uma única família, observa-se duas ou
mais famílias por becos como nas vilas e cortiços
tradicionais, que nem sempre estabelecem uma relação
harmônica no espaço, sendo comum conflitos de
vizinhança.

O que se percebe é que tudo isto está relacionado à


invasão do cotidiano de uma família na outro, os becos
nesse caso funcionariam apenas como o corredor de uma
grande casa, não deixando claro, para quem é estrangeiro,
onde começa o domínio público e privado do espaço
constantemente disputado por eles. DaMatta nos traz
novamente esta contradição quando associa o corredor da
casa à rua:
66

LUGAR E COTIDIANO
A casa tradicional urbana brasileira tem um corredor de
circulação que num sentido muito preciso é igual à rua
como espaço único e exclusivo de relacionamento.
(DaMatta: 1997: 56).

Assim podemos dizer, interpretando DaMatta, que


percorrer estes becos privatizados da Rocinha é o mesmo
que caminhar pelos corredores de uma casa. De modo geral
a rua, aqui becos e lajes, sempre está diretamente
relacionada à casa, na comunidade, não raro portas e
janelas se abrem diretamente sobre os becos fazendo com
que aqueles que passam participe da vida privada da
família.

Enfim podemos destacar os espaços das ruas como os


espaços residuais das casas, e nas áreas onde são pouco
consolidadas, como na Macega, tais espaços estruturam
quintais à maneira de roças do interior. Sobre eles o
cotidiano da casa se estende com seus varais e fogareiro à
lenha, abertos aos olhos de quem passa.

Nesses ambientes as crianças correm brincando, e à


medida que crescem, conquistam outros espaços na
Rocinha. Alguns destes espaços, apesar do caráter público
de lazer, nem sempre são permitidos. Os acessos a tais
territórios, que analisaremos no capítulo V, são controlados
pelos adultos e principalmente pelo “poder local” que
estabelece uma hierarquia de valores para seus usos.
67

LUGAR E COTIDIANO
III
O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE
A FAVELA
O ser é um sistema inseparável do seu meio, um produz o
outro, como na ecologia um sempre precisará do outro
para reorganizar sua transformação. (Morin, 2000: 57).

O entendimento dos conflitos entre público e privado


nos espaços livres da favela foi revelado através da
observação participativa na Rocinha nos capítulos I e II,
mas também é possível neste trabalho, através da leitura da
complexidade de Morin (2000, 2002) e Venturi (1985), no
espaço vivido favela, quando observamos as diversas
significações que os espaços assumem nas interações com o
indivíduo.

É por meio dessas interações organizacionais que os


espaços são (re)-organizados no espaço-tempo, no caso da
cultura brasileira estas interações podem ser analisadas
segundo a relação de oposição e complementaridade entre
casa e rua.

Já a demarcação da favela enquanto espaço vivido


levanta o debate da importância das significações e tensões
dos espaços, características a cada cultura que os vive
69

O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
diferentemente, e que resultam nas contradições e conflitos
espaciais, gerados através das diversas formas de
apropriação dos espaços livres.

Assim construímos neste capítulo o arcabouço teórico


da pesquisa, delimitando a favela enquanto um espaço
vivido e complexo, que através das tensões produzidas nas
interações indivíduo-espaço, desvenda o espaço livre de
mediação e residual entre a casa e a rua, mesclando e
diferenciando, concomitantemente o público e o privado, no
que entendemos como recursividade39 do espaço.

3.1. O Complexo Favela: a imagem do espaço


vivido
O conceito de espaço vivido é longamente debatido
por vários teóricos, contudo nesta pesquisa nos
concentramos em algumas definições como forma de
ampliar o debate sobre o tema, delimitando um arcabouço
teórico que nos aproxime do objeto de pesquisa, o complexo
favela, fruto das interações do indivíduo que se inicia na
infância, ainda que estas não apresentem a mesma linha de
pensamento, pretendemos que elas em conjunto tornem o
trabalho mais rico.

39 Um dos três princípios da complexidade de Morin e que semanticamente

significa: Propriedade do que pode ser repetido. Recursivo, interativo.


Dicionário Eletrônico Aurélio – v.2.0. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
70

O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
Iniciamos com Lefebvre (2000: 40-42) que introduz a
idéia de espaço vivido de forma muito apropriada ao
aproximar a idéia de espaço à cultura. Segundo este autor
cada sociedade produz o seu espaço e cada uma delas
contém representações simbólicas que mantém um estado
de coesão e coexistência com as relações na sociedade.

A abordagem cultural do espaço colocada acima


explicita a importância de associar os espaços da favela ao
que o autor chama de Prática Social. Ela não somente
determina seu espaço, mas também o coloca e o supõe, em
uma lógica recursiva, onde este só poderá ser decifrando se
interagirmos com ele (2000: 48-49).

Para o autor (2000), não são somente as interações


sociais de cada indivíduo ou grupo com esse espaço as
responsáveis pela sua formação. O entendimento perpassa
ainda pelas Representações Espaciais e pelos Espaços de
Representação. O primeiro equivale ao espaço concebido
pelos intelectuais, planejadores, urbanistas e tecnocratas,
daqueles que identificam o vivido e o percebido no
concebido.

Já os espaços vividos encontram sua equivalência aos


Espaços de Representação, feitos através de imagens e
símbolos que o acompanham, são então os espaços dos
habitantes. Estão impregnados de “simbolismos complexos,
71

O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
ligados ao lado clandestino e subterrâneo da vida social”.
(42-43).

À complexidade simbólica do espaço vivido


relacionamos a idéia de complexidade de Morin (2002), que
em resumo, diz que o desenvolvimento da complexidade
deve ultrapassar a noção de sistema, um objeto deve ser
entendido enquanto unidade complexa organizada, ou seja,
a leitura do espaço está intimamente relacionada à
complexidade das relações que o produzem.

Indivíduo e ambiente são nas suas interações


construídos cotidianamente e a imagem do espaço vivido
favela enquanto objeto é uma unidade complexa organizada
entendidas em conjunto, que pensada através desta lógica,
à definição trazida por Calvino (2001) na sua leitura sobre
cidades, aproxima a forma do lugar à vida cotidiana.

Nas interpretações do autor (2001: 119), a cidade


[que podemos compreender, em nossa leitura como a
própria favela] é um lugar que nasce “oculto”, “em algum
lugar um ponto” e que por seu movimento cotidiano “não
permanece imóvel”. Um espaço vivo, um organismo
complexo pela riqueza de significações produzidas, em que
as partes físicas e humanas interagem entre si, fluindo
permanentemente por entre sua forma labiríntica, se
ampliando sobre o espaço da cidade.
72

O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
A favela é também conceituada por Duarte (1993)
“como aglomerados de casas autoconstruídas em invasões
ilegais de terrenos públicos ou privados, geralmente não
dotados de infra-estrutura urbana”, paralelamente a
definição do Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de
Janeiro (1992) que destaca aspectos próximos ao da autora,
ainda interpreta estas áreas como predominantemente
habitacional, por isso entendemos estar diretamente ligado
à ação humana de viver o espaço.

Para Gallais (2002: 68), o que caracteriza o espaço


vivo [complexo] é o fato de representar “à área de segurança
e de paz interna, seja ela uma proteção do Estado ou do clã
[comunidade]”, e que relacionadas às favelas enquanto
organizações comunitárias são os territórios de domínio de
seus habitantes (abordaremos no capítulo IV), vividos
através de imagens e símbolos e formado aos poucos nas
interações do indivíduo com o meio, a partir do corpo.

Refletindo sobre essas colocações, entendemos que a


dimensão física e simbólica do espaço vivido favela liga-se
diretamente à ação transformadora do indivíduo-criança,
como primeiro momento de aprendizado do indivíduo na
descoberta e identificação do espaço por meio das
interações, que a criança tem afetivamente com o lugar
como mediadora do processo, ou seja, a prática física e
simbólica do espaço é vivida em toda sua plenitude
73

O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
imaginável, uma vez que a imaginação é impregnada de
afeto, através das ações humanas. Neste sentido
entendemos que relação afetiva com o espaço vivido
proporciona a idéia de segurança

Na linha de raciocínio das relações afetivas com o


espaço, Fischer (1994: 38-39) compreende-as a partir “da
maneira como o homem utiliza o lugar, como o trata
afetivamente e cognitivamente”. Para este autor, está nas
relações do indivíduo com o ambiente a elaboração de um
conjunto de significados impregnados de valores culturais,
onde recursivamente este “espaço modela o indivíduo que em
troca modela à sua maneira; deste modo essa relação
constitui uma linguagem que remete à condição de existência
concreta desses indivíduos”.

A interação verificada entre a criança da favela, assim


como qualquer outra, com os espaços de brincadeira, vão
aos poucos destacando os espaços vividos neste ambiente
pela afetividade que a criança estabelece com os lugares.
Entendemos que esse processo não é linear, e sim cíclico
nos termos da complexidade, mas não elimina, como
colocado por Morin (2000: 212), a “separação [do sistema
criança do ambiente de brincadeira], pela inseparabilidade
(...), mas trata de integrá-las numa concepção mais rica, (...)
[é] reuní-las para distinguí-las”.
74

O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
Tal demarcação, que colocamos em torno da imagem
da favela como organismo vivo, por isto complexo, considera
que a organização deste ambiente é feita das partes físicas e
simbólicas que se sobrepõem no espaço-tempo, sempre se
complementando em novas (re)-organizações espaciais que
interagem continuamente indivíduo-espaço, a partir da
infância até o indivíduo adulto, na constituição de suas
identidades.

Essa interação espacial é observada no Rio de Janeiro


desde início do século XX e reflete, nas palavras de Perlman
(1977: 40), “um jogo de forças sociais” que dita suas
próprias leis e códigos culturais, que é expressa pela
necessidade de habitar a ‘custo zero’ e consolida territórios
na cidade caracterizados por estarem à margem da cidade
formal.

Assim é a favela, um espaço à margem, periférico,


com uma lógica de funcionamento distinta da cidade
formal, que revela sua complexidade através do seu estar
cotidiano. A idéia desse espaço vivido favela, delineada a
partir das colocações acima, está diretamente relacionada à
produção de significações e contradições marcadas no
espaço que são propostas por Venturi (1995). A respeito
destas contradições que levam às tensões e conflitos
espaciais demarcaremos teoricamente seu entendimento no
próximo item.
75

O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
3.2. As Tensões no espaço
Vimos no item anterior que a favela se comporta como
um espaço que é vivido e organizando físico e
simbolicamente em seu cotidiano. Destacamos ainda que o
vivido deste espaço é realçado pela produção de significados
nas relações afetivas que o indivíduo estabelece com o
mesmo. Marcaremos agora que essa diversidade de
significações gera conflitos que desenvolveremos aqui em
torno do termo tensão.

A base das tensões espaciais está nas numerosas


significações assinaladas no lugar. Segundo Venturi (1995:
44) “o significado pode ser realçado por uma transgressão da
ordem”, para ele, os significados e usos assumem vários
níveis contraditórios na organização do espaço arquitetural,
e é através da conjuntiva, “contudo” e “tanto como” que são
descritas tais contradições programáticas e estruturais em
arquitetura e urbanismo (Venturi, 1995: 17).

A própria hierarquia dos espaços produz diferentes


níveis de significados, ora percebidos como dominantes ora
como recessivos, tendendo mais ou menos de um para
outro. Assim para Venturi o entendimento dos níveis
contraditórios abrange o que ele denomina de “elementos de
duplo funcionamento”. Estes se “referem mais aos
pormenores dos usos” (Venturi 1995: 32), o que em favelas
explicita as significações através dos usos variados que são
76

O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
derivadas das interações cotidianas com o lugar. Em
resumo, a riqueza de significações produzidas e sobrepostas
no espaço-tempo deste ambiente gera o que ele
convencionou chamar de “elementos vestigiais” em
arquitetura e urbanismo.

Às colocações de Venturi (1995) sobre complexidades


e contradições nas multiplicidades de usos, associamos que
a organização dos espaços vividos em diversas apropriações
na favela está relativo ao grupo que vive o mesmo pela ação
e que evoca significados diversos constantemente
reorganizados em novos.

O pensamento colocado é apropriado à interpretação


da interação da criança com os espaços de brincar, pela
natureza dinâmica desta cultura que diariamente
transgride a ordem do lugar, alterando as funções formais
determinadas para os espaços públicos e privados, ainda
que temporariamente, e que estão sempre sujeitas às leis do
morro.

No capítulo II traçamos uma radiografia da


transitoriedade dos espaços da favela, demonstrando como
os lugares podem ser transgredidos nas ações cotidianas e
que logo após são novamente reorganizados para o estado
anterior ou numa nova ordem e que são vividos
subjetivamente por seus moradores, de forma complexa
77

O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
justamente, por produzirem numerosos níveis de
significados.

Retomando a idéia das significações, assim como na


arquitetura, um espaço urbano que “inclui vários níveis de
significação pode gerar ambigüidade e tensão” (Venturi,
1995: 18-19). É na tensão desses espaços que destacamos
as (in)-tenções. Queremos dizer com isto que para que haja
tensão no espaço é preciso que este tenha sido tencionado
tendo sua função ou rotina alterada por aquele que o
vivencia, no nosso caso a criança na brincadeira.

A palavra tensão tem origem do latim tardio tensione,


que é a qualidade ou estado daquilo que é tenso40. Significa
ainda, articulação, conflito, elasticidade, e que relacionamos
aqui ao papel do espaço no momento em que ele é
desorganizado dessa função, assumindo novas significações
que podem permanecer no espaço, mas que também podem
ser temporárias, por isto elásticas, onde as significações são
desorganizadas e organizadas, concomitantemente, sem
cessar no espaço-tempo.

Entendemos ainda, que as tensões no espaço são


ocasionadas por tenções daquele indivíduo ou grupo que o
vivencia. Tenção do latim tentione, que é o intento a algo,
uma intenção41. E que é aqui uma finalidade, aquilo que o

40 Dicionário Eletrônico Aurélio – v.2.0. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.


41 Ibdem.
78

O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
ser busca e pretende ao interagir com o espaço e que antes
é cogitado por sua imaginação para depois ser
materializado.

Notamos que estas lógicas interacionais quando


aplicadas aos espaços das favelas, no instante em que o
indivíduo, criança ou adulto, confere significações a eles,
constantemente reorganiza-o em novos momentos
funcionais que geram novas tensões. Este raciocínio que
produz uma cadeia aproxima-se da idéia de recursividade,
em permanente troca entre as partes indivíduo-meio,
proposta por Morin, em seus estudos de complexidade, o
qual apontaremos exemplos no capítulo V.

Para Morin a complexidade define-se através de três


princípios, a recursividade, o princípio dialógico e o princípio
hologramático.

A recursividade “nega a cadeia linear causa-efeito,


fundamenta a idéia de que a causalidade é
necessariamente recursiva, de modo que uma causa
produz um efeito, que se torna causa novamente, e assim
sucessivamente. O princípio dialógico não opõe ordem e
desordem, natureza e cultura, mas entende tais
fenômenos como simultaneamente concorrentes,
antagônicos e complementares, o que permite manter a
dualidade no seio da unidade. O princípio hologramático,
parte da proposição de que a parte está no todo, que está
na parte, diferenciando-se da visão holística, uma vez que,
para Morin, o todo é, por vezes, maior ou menor que a
soma das partes” (Almeida, 2002: 29-30).
79

O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
Estes três princípios são indissociáveis, e, para
Morin, a idéia de holograma está ligada à de recursividade,
que por sua vez supõe a idéia dialógica (30). Num sentido
mais amplo, em nossa interpretação dos espaços vividos no
brincar nas favelas, a tensão se manifesta exatamente
através da complementaridade entre as significações
antagônicas do espaço que produzem uma causalidade
recursiva na interação construtiva criança-espaço, não
como parte da favela, mas como um todo que a caracteriza
enquanto espaço vivido.

O que se observa na complexidade das favelas é a


constante tensão dos seus espaços, com as partes físicas
que organizam o lugar se mesclando a todo instante as
partes simbólicas, caracterizando-se como um todo. Nos
referimos especificamente à relação dialógica entre as
partes física casa e rua, público e privado, tanto como pela
oposição de suas significações como pela
complementaridade destas que resultam num espaço de
mediação que é observado no momento de recursividade do
seu morador com espaços livres, que reorganizam
concorrentes, antagônicos e complementarmente, as
dimensões público e privado dos espaços livres.
80

O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
3.3. O espaço livre de mediação: a casa e a rua
entre o público e o privado na favela
Esta pesquisa se faz em torno do espaço livre. Já
colocamos a idéia de tensão produzida no espaço como
forma de destacar o grande número de significações, onde
observamos esta vitalidade impressa nas favelas nos seus
espaços permeáveis de transição entre a casa e a rua que
revela a parte física do lugar.

Esses espaços permeáveis serão considerados como


espaços livres de mediação que transitam se mesclando e se
diferenciando simultaneamente entre o público e privado.
Nas favelas descrevemos tais relações nos capítulos I e II
através do cotidiano observado nos becos, escadarias,
largos e lajes. Já a opção pela dimensão pública é
justificada por entender que neste as interações em grupo
ou individuais “compartilham de iguais direitos e deveres”
(Andrade, 2002: 21):

E, onde a vida pública é emanada, reforçando seu caráter


de espaço de conflito [tensão], no sentido de confronto da
diversidade. (Andrade, 2002: 9).

Verificaremos ainda nesses capítulos que a tensão no


espaço livre de mediação da favela é relativa, em alguns
casos, a falta da afinidade privada com os espaços da casa
por geralmente configurarem ambientes exíguos sob os
quais indivíduos se aglomeram, muitas vezes voltando a
vida íntima da casa para rua, o que configura em certos
81

O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
momentos uma relação afetiva que nega o lugar, clarificada
ao perceber a imprecisão física da fronteira entre ambas.

Os domínios simbólicos da casa se complementam aos


da rua dialogicamente e recursivamente aos domínios físicos
na interação entre morador e favela. Tais observações vão
de encontro à maneira de DaMatta (1987: 55) observar a
dialética entre casa-rua onde a oposição entre estas “tem
aspectos complexos”.

É uma oposição que nada tem de estática e de absoluta.


Ao contrário, é dinâmica e relativa porque, na
gramaticidade dos espaços brasileiros, rua e casa se
produzem mutuamente, posto que há espaços na rua que
podem ser fechados ou apropriados por um grupo,
categoria social ou pessoas, tornando-se sua casa, ou seu
ponto. (...) a rua pode ter locais ocupados
permanentemente por categorias sociais que ali ‘vivem’
com ‘se estivessem em casa. (DaMatta, 2000: 55).

Essa interatividade que subverte as significações de


tais espaços nas favelas nos mostram que a relação de
afetividade de pertencimento42 ou não ao espaço vivido
favela, através dos espaços livres de mediação das ruas,
becos e lajes é muito intensa, o que comprova e nos leva
novamente a concordar com DaMatta sobre o estilo
brasileiro de organização do espaço:

O de uma sociedade que inventa o próprio espaço a partir


da relação como um valor e como uma positividade.
(DaMatta, 1997: 25-26).

42 Sobre pertencimento ver Capítulo IV.


82

O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
E quem mais experimenta o valor de afetividade com
o espaço livre, nas palavras de Lima (1989), é a criança,
tanto como pela ligação direta da casa com a rua como pela
falta de espaço privado no interior da casa, onde:

A rua é de tal forma interligada à habitação que não se


distingue onde começa o espaço privado – interior - e onde
termina o espaço público – exterior. (...) Arlette Farge
completa dizendo: As crianças brincam na rua; o espaço
urbano é o seu universo; elas utilizam à sua vontade 43 .
(Lima, 1989: 90).

Temos como conseqüência uma articulação natural


entre casa e rua onde uma não se opõe à outra, mas
complementam suas partes para o entendimento do que é a
complexidade da favela, que tem seus espaços livres de
mediação como residuais entre as casas. Estes espaços
convertem-se ora em áreas semipúblicas de lazer, em seus
estreitos e sinuosos becos, escadarias e lajes, ora em áreas
privadas utilizadas muitas vezes como quintais e varandas.

O espaço formal de interações, a praça tal como


define Lamas44, geralmente não existe, o que ocorre são
exatamente esses espaços residuais, fruto do alargamento
ou de confluência de ruas, largos, que com o tempo são

43 FARGE, Arlette. Vivre dans la rue, Helsinki, abr. 1976. In LIMA, Mayumi de
Souza. Op. Cit. p.90.
44 LAMAS considera que a praça é um elemento morfológico das cidades

ocidentais e distingue-se de outros espaços, que são resultados acidentais. A


praça pressupõe a vontade e o desenho de uma forma e de um programa.
(LAMAS, José M. Ressano Garcia. Op. cit. p.102).
83

O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
apropriados e usados da mais variada forma. Para Andrade
(2002: 79):

Largos e becos são categorias de espaço físico não


planejado na favela, (...) nesta surgem em decorrência da
ocupação não planejada do espaço, como diz o nome é um
lugar aberto definido pelas edificações que a formam.
(Andrade, 2002: 79).

São esses largos e becos na favela palcos das


interações entre os habitantes e destes com o espaço,
possibilitando a cada instante a reorganização do lugar. É o
espaço livre lugar dos rituais públicos de festejos e lazer em
sua dimensão simbólica.

Lembrando ainda DaMatta (1997: 62) as festas de


ruas assumem um caráter carnavalesco o que unifica casa
e rua tornando-se espaços contínuos. Nas favelas cariocas,
o modo como esses espaços livres de mediação e residuais –
becos, largos e lajes – são apropriados explicita os códigos
internos de cada comunidade, pois como lembra Andrade
(2002: 21) nestas áreas há um código não escrito de
controle de acesso que é uma das marcas desta cultura. Da
mesma forma, a respeito de comunidades de baixa renda,
Duarte (1993) comenta a existência do "estabelecimento de
leis não-escritas, mas respeitadas por todos". A referida
autora também comenta que em grupos culturais
geralmente de baixa renda "existem lógicas de uso e códigos
próprios na hierarquia espacial e social" (Santos e Duarte,
2002: 273-283).
84

O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
Becos e largos assumem, assim como os espaços das
lajes, momentos diversos de apropriação, de simples lugar
de circulação de pedestres, a ambiente de estar de toda
uma parcela da população que se organiza em grupos de
adultos, crianças, homens e mulheres nas mais variadas
faixas etárias, para vivenciá-lo. Nos Capítulos I e II
verificamos de forma prática esta interlocução entre rua e
casa, geradora de conflito entre o público e o privado, que
cabe nos espaços livres de mediação.

Observamos que estes espaços livres se convertem no


lugar de encontro, o lugar da sociabilidade. Casa e rua são
articulados através deles, onde a forma de viver da
comunidade é a marca desta vitalidade. Todas as
reorganizações vividas no processo de apropriação dos
becos, largos e lajes das favelas no brincar da criança
contribuem para o entendimento que tais espaços se
destinam a vários fins adversos.

Isso nos permite dizer que as atividades


desenvolvidas nos espaços livres confundem-se com estes,
representando territórios de domínios que integram o
território maior da favela e que por sua vez constitui a
identidade do lugar e daquele que se identifica nele através
dos conflitos espaciais.
85

O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
No próximo Capítulo traçaremos sucintamente como
o espaço na relação afetiva pode contribuir para construção
das identidades indivíduo-espaço através do sentimento de
intimidade, enraizando a criança no lugar, no momento em
que ela se apropria deste delimitando o seu eu através dos
territórios de brincadeira.

86

O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IV
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
Ao longo do terceiro capítulo situamos o que seria o
espaço vivido da favela e como as tensões ou conflitos
resultantes das interações espaciais, entre indivíduos
pertencentes a este lugar, resultam nos espaços livres de
mediação na tênue fronteira que se identifica entre a casa e
a rua da favela.

Questionamos como essas interações se processam e


se as mesmas moldariam um grau de intimidade com o
lugar proporcionando sentimentos de enraizamento da
criança no espaço. As primeiras respostas a estes
questionamentos vieram com a reflexão do trabalho de
campo, ao identificar que na estrutura espacial da favela
existem espaços que são proibidos, mas quando se trata da
ação brincar, ainda que submetidos a leis internas, estes
espaço livres são vividos e reorganizados pelas crianças da
favela, que passam a se localizar na estrutura geral do
lugar.

Assim buscaremos compreender como a estrutura


organizacional da favela pode influir na construção da
identidade da criança ao interagir, através da brincadeira
87

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
com seus espaços livres, na mediação do sentimento de
afetividade, que direciona o enraizamento45 com o lugar,
entendendo o processo de constituição da identidade numa
lógica ecológica que não cessa, mas sim que transforma e
(re)-transforma espaços e indivíduos.

4.1. As interações com o território-favela


na constituição das identidades
A cultura é, no seu princípio, a fonte
geradora/regeneradora da complexidade das sociedades
humanas. Integra os indivíduos na complexidade social e
condiciona o desenvolvimento da complexidade individual
(Morin 2002: 166 in Método 5).

Sinalizamos com essa citação de Morin, que


entendemos ser a partir da cultura produzida por uma
sociedade nas interações de indivíduos e espaço que a
identidade individual toma forma. No capítulo III discutimos
o quanto as relações culturais são importantes na produção
do espaço dos grupos sociais.

Compreendemos a importância das interações na


construção da identidade não só dos indivíduos, mas do
próprio espaço. Numa cidade como o Rio de Janeiro as
interações indivíduo-sociedade46, reveladas no cotidiano da

45Para o termo enraizamento referimo-nos tal como usado por Fischer (1994).
46 Segundo Morin, a sociedade é, sem dúvida, produto da interação entre
indivíduos. Essas interações, por sua vez, criam uma organização que tem
qualidades próprias, em particular a linguagem e a cultura. Essas mesmas
qualidades retroatuam sobre os indivíduos desde que vêm ao mundo, dando-
lhes linguagem, cultura, etc. Isso significa que os indivíduos produzem a
sociedade que produz os indivíduos. MORIN, 1996. Op. Cit. P.48.
88

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
favela destacam a constituição da identidade das crianças
que na ação da brincadeira (re)-modela os usos do lugar,
sem a descaracterizar enquanto território cultural.

Assim, as interações das crianças com seus espaços


na brincadeira, (destacamos o bairro Rocinha) requer o
pensar sobre a relação da favela como parte do território
global da cidade e, conseqüentemente, a relação que os
indivíduos que integram este lugar têm com o seu meio, no
sentido de eco-auto-organizar as estruturas das identidades,
individual e coletiva.

Entendemos a “eco-auto-organização", termo definido


por Morin (2002), como a forma pela qual o indivíduo
constitui o seu eu, nas interações dentro e fora do seu meio,
ambos tomados como ecossistemas eco-auto-organizáveis
em suas retroações, ou seja, “é na relatividade de um em
relação ao outro que cada um adquire e assegura a própria
existência” (Morin 2002: 87 in Método 2).

Então entender o que é eco-auto-organizar o espaço-


favela/indivíduo-criança é observar as normas culturais
que conduzem a conciliação das partes indivíduo-espaço à
constituição das suas identidades. Neste meio, “cada
indivíduo é, ao mesmo tempo um sujeito egocêntrico e um
momento/elemento de um todo sociológico” (Morin 2002: 167
in Método 2). Portanto, a identidade da criança é expressa
89

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
através da cultura que marca o espaço do seu cotidiano
conduzindo-a e reorganizando-a no tempo.

Morin (2002: 167), nos remete a essa noção, quando


diz que “os indivíduos produzem a sociedade que produz o
indivíduo”. Este princípio organizacional homem-meio-
homem, eu-cultura-eu é também destacado nos estudos de
Fischer (1994) e Tuan (1980) que abordam de forma geral a
relação complementar entre as partes homem e meio como
fundamental para a caracterização das idéias de identidade,
território e lugar sucessivamente.

Assim a produção da favela da Rocinha, a partir das


interações entre moradores-ambiente-moradores nos seus
espaços vividos, cria o meio ambiente dessa cultura que
carrega em si aquilo que os diferencia do todo da cidade e
de outras favelas, o próprio espaço. Podemos dizer, que
cultura e indivíduo se estruturam continuamente nos
termos da complexidade de Morin (2002) que apresentamos
no capítulo III, recursivamente, dialogicamente e
hologramaticamente, sempre com a identidade pessoal
incidindo na construção da identidade espacial de forma
complementar, porém conservando suas unidades.

Entendidas as intricadas interações dos indivíduos e


o todo sócio-espacial da favela, o complexo encadeamento
de interdependências que promove a constituição de
identidades, determina por sua vez seus enraizamentos
90

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
culturais e pessoais numa relação de domínio com os
espaços.

Para Fischer (1994) “o enraizamento afirma-se como


um processo dinâmico, no qual os indivíduos transformam os
lugares em porto de atracagem”. O ser tem a necessidade de
pertencer, de estar num território em que exerça certo
“domínio físico e psicológico”. Neste sentido cria com o
ambiente um grau de identificação, quase de posse: a
minha cidade, o meu bairro, a minha casa. (Fischer 1994:
198-199).

Ainda na perspectiva de Fischer (1994), o processo de


enraizamento é resultante da identificação do indivíduo com
o espaço vivido, experimentado, e do acúmulo cultural onde
tal espaço afirma-se “como um elemento da identidade do
eu”. Esta abordagem feita no âmbito psicológico do espaço
transforma-o num valor relacionado ao indivíduo, “é neste
sentido que Proshansky assimila o enraizamento a uma
espécie de incorporação: cada um cria seu espaço criando-se
a si mesmo” (Fischer 1994: 199), tecendo dialogicamente
com o espaço a sua identidade pessoal.

Já destacamos no capítulo III como os espaços


públicos e privados em favelas são confundidos na tênue
fronteira entre a casa e a rua. Está exatamente nesta forma
peculiar de se relacionar com os espaços a imagem que se
identifica da favela, personalizando seus espaços segundo
91

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
as necessidades cotidianas. Tal personalização imprime ao
lugar o simbolismo que os atores, sejam - crianças ou
adultos e homem ou mulheres - identificam como sendo
eles mesmos – sua cultura - assinalando seu lugar de
pertencimento que define um território de identidade.

A partir do princípio eco-auto-organizador de Morin,


podemos entender que a identidade cultural interfere na
constituição da identidade pessoal, no instante em que o
indivíduo reorganiza o seu meio ambiente natural, ou seja,
“[o indivíduo] causa produz um efeito [cultura], que se torna
causa novamente, e assim sucessivamente” (Almeida 2002:
29).

Assim o indivíduo e o meio cultural estão


intimamente ligados, simultaneamente e
complementarmente para a estruturação do eu e para a
contínua reorganização do seu meio. Na favela este meio
também é percebido como extensão do eu, mas vale
ressaltar que a identificação deste no espaço nem sempre é
positiva ou de pertencimento, existe a identificação através
do não-eu, que nega o eu. Os espaços são igualmente
vividos, mas pela repulsão com o sentimento de não
pertencimento, onde a relação de intimidade é negativa.
Destacamos assim que a relação de pertencimento é
materializada através da experiência afetiva, e que no
mesmo sentido, Fischer define como território humano,
92

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
aquele que “só tem realidade através daquele que nele está e
que o torna objeto de conhecimento. (...) é o lugar
socializado”, e que pode ser distinguir entre território
primário e território secundário (Fischer 1994: 23-24).

O território primário é ocupado de maneira estável e


claramente identificado. É controlado pelos seus ocupantes
e geralmente afasta o indivíduo do domínio público,
assegurando ao ser a sensação de intimidade. Todo lugar
que transmite este sentimento pode ser entendido como
território primário e “uma de suas funções essenciais define-
se em termos de refúgio pessoal” (Fischer 1994: 24).

Nas favelas o território primário pode ser definido


como o interior da casa, pois geralmente neste espaço o
território privado se relaciona de forma íntima com seus
organizadores, sendo que em favelas esta afirmação nem
sempre é verdadeira como observamos no capítulo III.

O território secundário não é nem completamente


privado, nem público, também não é institucional.
Corresponde aos enclaves criados pelos grupos regidos por
regra “mais ou menos formais”. Neste são reveladas a
natureza e a “qualidade das interações desenvolvidas nos
lugares”. São lugares que permitem o encontro de pessoas
ou grupos, conforme códigos, rituais e normas (Fischer
1994: 24-25).
93

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
Podemos dizer que na favela estes territórios
encontram sua maior representação, no espaço vivido entre
o público e o privado em constante tensão, os espaços livres
de mediação. As interações que seus habitantes
estabelecem com os ambientes não se prendem rigidamente
aos seus usos de origem, são antagônicos no que se refere
às suas funções de origem, mas complementares, pois
trocam intenções na medida em que reestruturam uma
nova ordem funcional no espaço-tempo.

4.2. Topofilia: a afetividade com o espaço vivido


Voltamos a Fischer, quando se refere ao território
“como um campo topológico, ou seja, o corte de um espaço
físico em zonas subjetivas delimitadas pela qualidade das
relações estabelecidas com ele”, e ainda designado,

[Pelo] uso que fazemos dos lugares segundo os significados


psicológicos e culturais que lhe conferem os quadros
sociais. (...) geralmente organizado por uma atividade
(Fischer 1994: 23).

Nesta linha de pensamento topológico, Duarte (2002),


se refere ao território como "uma área delimitada sob
influências partilhadas", onde, "há porções de espaço
carregado afetiva e simbolicamente que são os lugares"
(Duarte 2002: 112).

A definição de lugar é sintetizada por Tuan (1983)


como “pausa” num espaço dotado de valor e significado que
94

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
demarca a segurança do indivíduo. Podemos distinguir os
lugares como instantes do espaço de constituição do eu, no
qual o indivíduo se reconhece pela diferenciação do outro,
estabelecendo um território de domínio. Veremos no
capítulo V como a identidade da criança pode ser marcada
pela diferença do que ela não é.

O limite entre território e lugar para Duarte (2002), "é


nebuloso e tênue (...) a potencialidade de um lugar descola-se
do território sob o qual existia e constitui outro próprio" (113-
114). Este processo estabelece um ciclo contínuo, onde o
território, a partir da ação do homem e da sua carga
cultural, é organizado em lugares, que por sua vez, pela
relação afetiva reorganiza novos territórios.

Esse território humano, para Tuan (1980) é o próprio


lugar, construído através das interações afetivas de
indivíduo e espaço, sendo uma parcela deste, ao qual o
indivíduo dota de valores sentimentais e simbólicos no
instante de tempo em que vive o espaço pelos processos
perceptivos, por isso denominado de Topofilia.

A afeição ao lugar, ainda segundo o autor (1983), é


um fenômeno característico a qualquer cultura, porém sua
intensidade é variável segundo cada uma, conforme sua
história e as inter-relações estabelecidas no espaço vivido
entre indivíduo e meio. Na favela da Rocinha a história da
necessidade de habitar num lugar faz na interação
95

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
cotidiana de seus habitantes emergir um espaço que
constitui a identidade deste indivíduo recursivamente com o
meio.

Assim, a afetividade que caracteriza o espaço


enquanto lugar é incorporada e exposta pela experiência
com o espaço vivido da favela, que reúne a noção de
complexidade a topofilia, onde a primeira surge na
reorganização continuada indivíduo-meio, constituída como
o “cimento da comunidade, alimentando um sentimento de
apego quase filial [ao meio]” (Morin 2002: 123). Deste modo,
está nas experiências íntimas com o lugar a região das
interações simultâneas de constituição das identidades, que
legitima a existência do eu, ao mesmo tempo em que é
moldado e impregnado de “definição e significado” (Tuan,
1983: 151).

O habitante da favela, criança e adulto, também


identifica o seu estar e o pertencer ao lugar, fazendo emergir
sua identidade na relação com o meio, ao mesmo tempo em
que identifica a cultura do meio como sendo parte
integrante do seu eu. Este eu é autônomo em si, ao mesmo
tempo em que é fenômeno da existência.

O indivíduo, (...) define-se também por qualidades de ser e


de existência, elas mesmas inseparáveis de qualidades de
autonomia organizadora. (...) Um indivíduo possui um
capital de singularidade e um princípio de individuação
que o precedem e o ultrapassam, mas a sua qualidade de
96

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
indivíduo repousa também na sua autonomia de ser e de
existência (Morin 2002: 175 in O Método 2).

A autonomia constituída pelo indivíduo no mundo se


desenvolve de modo complexo (Morin, 1996: 54). Nos
termos colocados por Morin (1998) é como algo que “é tecido
[e] formado por diversos fios [meio-sociedade-cultura] que se
transformam numa só coisa [o indivíduo]”. As partes se
entrelaçam para formar a unidade da complexidade, mas
esta não destrói a diversidade das partes que a teceram
(Morin: 1998: 188).

A partir disto buscaremos traçar como a identidade


pode ser organizada na ação da brincadeira da criança,
uma das formas pelas quais o indivíduo se constitui como
ser autônomo, pertencendo ao que ela identifica como seu
território de domínio na experiência íntima com o lugar,
organizando e reorganizando suas interações.

4.3. Construindo identidade no brincar


O mundo da infância se caracteriza como um
universo de descobertas no qual a criança constrói a noção
de realidade, marcada pelas condições concretas do seu
contexto sócio-histórico, passando por complexas etapas de
transformação das estruturas afetivas e cognitivas.

Tal processo de constituição do real, que envolve o


mundo da infância, contribui para que a criança, através
das interações cotidianas com o seu meio e com as partes
97

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
físicas que o formam, aprenda a se reconhecer enquanto
entidade autônoma. Isso nos leva a destacar suas ações
cotidianas como organizadoras do seu espaço vivido, onde,
à medida que avança com suas experiências afetivas sobre
o espaço que se lhes apresenta, alia valores que se
estendem sobre este, organizando e reorganizando o seu eu
no mundo, aprendendo a conhecer, onde:

Suas relações [devem] ansiar [pela] experiência profunda


de assumir-se. Assumir-se como um ser social e histórico,
como ser pensante, comunicante, transformador, criador,
realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de
amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de
reconhecer-se como objeto (Paulo Freire 2002: 46).

A organização/reorganização no aprender a se
conhecer, se processa pela imagem que a criança constrói
do real, e que se conclui como um estado de fascínio no
indivíduo. Neste estado ela realiza todas as suas vontades e
cria situações onde confere o sentido e a ordem ao que é o
seu lugar. “É na infância que, imaginariamente, somos
menos constrangidos pelas circunstâncias ‘duras’ da vida,
(...) nesta compreensão imaginária”, a infância é o tempo-
lugar ainda não tomado pelos aspectos coercitivos da
realidade (Castro: 1997), que encontra na ação da
brincadeira uns dos meios para constituição de sua
identidade.

A partir da ação da brincadeira, segundo Serpa (1986:


179), a criança “se apropria progressivamente do mundo que
98

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
a cerca”. É a ação que transforma, outra vez pela
imaginação, o espaço vivido em espaço afetivo, aquele que é
imaginado pelo ser que o vivencia. Vigotski (2002) afirma
que no brincar a criança cria uma situação imaginária, é
ainda:

Um processo psicológico novo para a criança, está


presente no consciente, e como todas as funções da
consciência, ela surge originalmente da ação com o outro
(...) a imaginação nas crianças em idade pré-escolar, é o
brinquedo em ação (Vigotski, 2002: 122-123)

Para Righetti (1996) a percepção que a criança


desenvolve do espaço que se apropria tem origem na
brincadeira, e até atingir o final da idade escolar
(adolescência), o ato de brincar representará uma forma de
explorar a realidade e dominar o mundo. Esta é uma forma
da criança se enraizar e pertencer ao lugar, além de ser
essencial para o desenvolvimento físico, mental e emocional
da criança, capacitando-a para a sociabilização (ONU-89
apud Tapsell, 1997).

Assim entendemos que a cultura de uma sociedade


também é construída através das interações cotidianas das
brincadeiras. Ao brincar, os valores simbólicos, e as
percepções da realidade são compartilhadas e
reorganizadas pelas crianças, desenvolvendo sua
capacidade criativa ao se relacionar com o seu meio,
demarcando seus territórios e construindo suas
identidades.
99

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
A brincadeira possibilita à criança a conscientização
de si mesma como um ser agente e criativo, tornando-a
hábil em explorar e responder ao meio, trabalhando com
situações e elementos do seu entorno. Assim, à medida que
cresce, ela se relaciona a objetos, posteriormente a
localidades, até a idéia de lugar tornar-se mais específica e
geográfica. (Tuan, 1983).

A curiosidade inerente à idade “convoca a imaginação,


a intuição, as emoções, a capacidade de conjecturar, de
comparar, na busca da perfilização do objeto ou do achado
de sua razão de ser” (Freire: 2002: 98). Neste processo a
criança identifica e apreende47 o lugar em que está inserida,
de onde ela empreenderá outras fronteiras, buscando novos
lugares de segurança.

O significado de segurança tem como primeira


referência o lugar que é o seu ponto de partida, onde ela
pode se remeter ao primeiro sinal de perigo, no sentido de
refúgio e repouso. Assim, ela cria seus primeiros ‘cantos’,
espaços onde vive seu devaneio mais profundo. É o espaço
íntimo que representa para o ser humano, principalmente
para a criança, a segurança.

47 Para Freire, apreender é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que


não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito. FREIRE, 2002 Op.
Cit. P.77
100

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
Na primeira infância48 a criança assume a própria
mãe como sendo o seu primeiro lugar. Com ela estabelece
suas primeiras relações espaciais, procura imitar e buscar
os movimentos maternos como forma de orientação. Estes
movimentos têm um caráter de experimentação do espaço e
possibilitam sua percepção sobre o lugar (Tuan 1983),
estabelecendo a noção de distanciamento e uma série de
limites físicos entre os lugares e o corpo.

À medida que atinge estágios superiores, a criança


aprende a manejar a imaginação, entendendo que esta pode
ser uma forma de experimentar antecipadamente o mundo
real, passando a criar situações de devaneio antes da
ocorrência concreta, tomando-a como centro.

Nesse momento a criança passa a identificar o que é o


seu eu e o outro inserido num mesmo mundo real, mas que
conserva as particularidades de cada identidade,
manifestada simultaneamente de forma “organizadora,
cognitiva e ativa” (Morin 2002: 186 in O Método 2).

48 Segundo classificação feita por Rapapport et al (Op. Cit. 1981) e baseada na

concepção de Piaget, a infância está dividida em três etapas: primeira infância -


crianças de 0 a 2 anos - é caracterizada pela organização básica da cognição
que se restringe ao nível sensorial-motor, onde forma seus primeiros esquemas
mentais; idade pré-escolar - crianças de 2 a 6 anos. Neste período inicia o
processo de construção da realidade, com o desenvolvimento do pensamento
que ocorre de forma lúdica; idade escolar - crianças de 7 a 12 anos. É onde o
raciocínio torna-se lógico e coerente, e a criança torna-se consciente dos
conteúdos do seu pensamento.
101

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
Na idade escolar, a criança passa à compreensão do
real de forma mais equilibrada, criando a possibilidade de
melhor adaptação, entendimento e atuação com o mundo
exterior. Nesta fase, o sujeito tenta acomodar-se ao real
mesmo no brincar, passando a discernir o que é fantasia.

A experiência que a criança da favela vivencia ao


longo de sua vida com o meio é acumulada em sua pequena
história, possibilitando um conjunto de referências formado
por objetos, elementos da natureza e de pessoas, que ela a
priori associa a significados distintos e que posteriormente
os correlacionará, até compreender e formar a complexidade
que é o todo real da favela, entendido aqui tal como sugere
Tuan (1980:01), num conjunto que engloba o ambiente
físico, o natural e o humanizado.

Todo o complexo favela no qual a vida cotidiana está


inserida é fundamental no processo cognitivo infantil. As
pessoas que as cercam, da família à comunidade,
contribuem para que a criança se sinta, num processo de
enraizamento que a estimula no sentido do que é
segurança, liberdade e aventura (Tuan, 1980). Ela busca
experimentar todo o espaço que está ao seu alcance e se
identificar nele através das suas conquistas e derrotas.

O processo de experimentar os espaços acontece na


criança, principalmente pela significação impressa aos
elementos que o compõem. Ela desenvolve com este espaço
102

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
um grau de afetividade, qualificando-o e criando vínculos
emocionais que enriquecem a sua vida, associado as suas
atividades cotidianas.

Segundo pesquisa desenvolvida por Castro (1997),


uma de suas crianças entrevistadas declara que “a vida é
‘gostável’, na medida em que pode fazer/escolher coisas que
lhe dão prazer”. A ação de brincar está sempre associada ao
deleite, à satisfação, ao momento de realizações em que a
criança expressa o seu eu na interação com o outro ou com
o lugar.

Este processo de identificação do eu estabelecido


pelas relações encontra, nos lugares da infância, o palco
das manifestações deste indivíduo. Tais lugares são
relativos às suas experiências vividas, identificadas pelas
suas atividades cotidianas, são seus territórios de domínio,
de segurança, de afetividade.

Podemos dizer que a brincadeira guarda um sentido


de conquista do espaço, fazendo com que a criança conheça
melhor seu corpo e desenvolva noções de equilíbrio,
aumentando sua auto-estima e estabilidade emocional.
Segundo Duarte e Cohen (2001), especialmente as
brincadeiras em espaços livres e públicos permitem uma
interação sócio-cultural entre as crianças e com o outro.
103

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
No espaço vivido da favela, especificamente na
Rocinha, os espaços livres coletivizados para as interações
no brincar, são a rua, as lajes, os becos e as escadarias de
acesso que se apresentam, como o grande palco das
manifestações infantis, através da qual as crianças irão
tomar seu primeiro contato com a idéia de lugar. Estes
aspectos serão apresentados e analisados no próximo
capítulo.

4.4. Os territórios da infância na Rocinha


Nos reportamos neste item ao Capítulo III e a parte do
IV que fundamentam teoricamente esta pesquisa, onde
tratamos do entendimento de territórios de domínios da
infância como forma da criança se enraizar e constituir sua
identidade em interação com a identidade do lugar. Para
isto destacaremos alguns dos territórios apropriados pelas
crianças que são permitidos e proibidos [Fig.4.1]. Estamos
apenas levantando aqui a hierarquia de alguns dos espaços
representados da Rocinha para o lazer. Para tornar mais
fácil o entendimento desta hierarquização nos referiremos
às três localidades de estudo de caso.

O convívio nessas localidades, na da Rua 1 – Cezário


- Macega, a da Cachopa - Cachopinha e a do Laboriaux [Fig.
1.3], fez transparecer que mesmo os espaços entendidos
como livres estão sujeitos às regras internas ditadas pelo
“poder local”, questão que abordaremos mais
104

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
detalhadamente no Capítulo V. Isto ficou claro quando
tomamos conhecimento de uma quadra esportiva localizada
no terreirão da Rua 1, que no princípio do trabalho de
campo fomos impedidos de conhecer.

Os recreadores e moradores nos informavam que a


existências das quadras esportivas na comunidade eram
obras financiadas internamente. Até então tínhamos
conhecimento da quadra do Laboriaux a qual logo tivemos
oportunidade de conhecer.

Pode-se dizer que o acesso a este lugar é restrito a


quem é de fora da comunidade, ele só foi possível na
companhia do grupo Curumim. Já as crianças têm acesso
livre ao local, mas nas seguintes condições: se este não
estiver sendo usado pelas turmas do CIEP próximo, em
atividades escolares ou não estiver ocorrendo um
campeonato de confraternização entre os meninos que
integram o “poder interno”.

Já a percepção da quadra do terreirão da Rua 1 nos


parecia diferente. Nem mesmo os adultos ousam se
aproximar da área e sempre que tentávamos nos interar da
localização desta a resposta era uma afirmativa de “lá não
pode”.

Descobrimos que existem outras quadras formais


destinadas ao lazer, e que particularmente a da Rua 1 está
105

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
submetida às hierarquias internas. A forma como se
referiam a esta fez deixar claro que até denominá-las pela
sua localização geográfica era algo proibido.

A “quadra lá de cima”, como comumente é


denominada, é um lugar inacessível até para quem mora na
Rocinha. Sua utilização durante o dia é parcialmente
concedida a grupos de crianças acompanhadas de adultos,
e quando estivemos lá não percebemos crianças sozinhas,
mas sempre em grupos. Durante à noite o acesso ao lugar é
totalmente vetado e sempre que se escuta que “fulano subiu
lá pra cima”, ou “vou mandar fulano subir”, a referência
não é positiva, mesmo as crianças têm a quadra como um
espaço que para elas é proibido.

Também se apresentou como território proibido às


crianças na Rocinha, os principais becos, aqueles que
cortam a favela fazendo as ligações entre os setores e tidos
como rotas dos “bondes” do poder local, não os becos
privatizados que tratamos no capítulo III. A partir de certa
hora torna-se perigoso a permanência até mesmo de
adultos em alguns pontos e em dias de conflito funciona
106

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
uma espécie de toque de recolher49, onde permanece na rua
somente aquele que insiste em desafiar o perigo50.

Existem, porém, lugares que são percebidos como de


segurança na comunidade, como a quadra da Cachopa. O
ponto positivo é que alguns grupos ali desenvolvem com as
crianças atividades direcionadas, principalmente capoeira e
futebol, que servem de atrativos para estes espaços.

De modo geral a permanência nos espaços livres no


brincar da criança na Rocinha são observados sempre em
grupos, sendo incomum ver crianças brincando sozinhas
nos espaços dos becos, lajes, escadarias e quadras, e
estabelecendo com estes através do sentido de segurança o
seu estar e o seu eu na Rocinha e no todo da cidade
simultaneamente entre parte e todo. Abordaremos estas
questões a seguir, no Capítulo V, onde destacaremos como
se processa as interações das crianças nos lugares de
brincadeira vivenciados na Rocinha e quais as brincadeiras
mais recorrentes neles.

49 O “toque de recolher” em favelas é entendido naturalmente pelos moradores,


através do anuncio emitido pelos chamados “fogueteiros” que montam guarda
em pontos estratégicos tais como lajes e entradas de becos, e que soltam fogos
avisando da presença da polícia ou de um grupo rival.
50 Ver sobre este assunto no Capítulo I.
107

TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO
V
BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA
Nossa pesquisa nos mostra que, contrário do que
ocorre em certos locais percebidos como “proibidos” ou de
acesso “controlado”, a configuração formal da favela permite
apropriações diversas e constitui-se num locus de
interações infantis.

A brincadeira na favela ocorre nos ambientes de


transição entre o público e privado, de forma similar ao que
Kishimoto (1997) observa nos cortiços. Em favelas,
precisamente na Rocinha, a rua, os becos, as lajes e
escadarias são o “prolongamento da casa, que integra o
cotidiano das crianças” (1997: 83), nos limites que se
formam através do brincar.

Na interpretação da autora (1997: 83) o motivo que


levava as crianças dos cortiços a aproveitarem o espaço da
rua para expressar suas brincadeiras era a falta de espaço
privado expressada pelas exíguas áreas das habitações
coletivas, onde adultos e crianças se aglomeravam. No
capítulo III observamos que o espaço da rua utilizado pela
criança nos estudos de Kishimoto (1997) é decifrado como
110

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


um espaço de afetividade por Lima (1989) pelo mesmo
motivo, a falta de espaço privado na casa.

Nossas observações destacaram ainda que a falta de


espaço na casa que leva à rua se estabelece em torno de um
estado de tensão entre as partes, público e privado, que
gera o que convencionamos como um espaço livre de
mediação, ou seja; à força de sair de casa e ir para a rua, a
rua passa a ser casa e o brincar se expande.

Neste capítulo destacaremos quais são os espaços na


favela da Rocinha apropriados pelas crianças para o
brincar. Nossas observações de campo nos desvendaram
que os espaços livres de mediação não se restringem às
partes físicas da favela, tais como becos, lajes ou
escadarias. Eles revelam lugares que ultrapassam os seus
limites geográficos que ampliam o imaginário infantil. É
tudo mais que a criança no seu espaço vivido transforma
em lugar da brincadeira, os ambientes como a floresta e a
praia que se incorporam como um todo inexorável no
imaginário infantil.

5.1. Brincar na favela da Rocinha


Nada mais apropriado do que a fala de Dona Elisa
(anexo 1) para revelar o que é o brincar das crianças da
Rocinha. De forma rica e poética denominada por ela de
habitar no brincar.
111

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


Como as crianças brincam (...). Nesses anos pude perceber
aqui que as crianças daqui queimam etapas da vida51 na
brincadeira. O habitar no brincar tem que ser felicidade,
sonho, afeto, realização, se não, não existe brincar. (Anexo
1)

O relato de Dona Elisa sintetiza que brincar na


Rocinha nada mais é do que viver, viver em ação.
Semanticamente a origem da palavra habitar remonta do
latim habitare52 que significa residir, morar, viver em,
ocupar, povoar, estar, permanecer. É ainda o esta
afetivamenter da criança no sentido que abordamos no
capítulo IV, quando ela começa a estabelecer nas interações
com o meio a constituição de sua identidade no pertencer e
estar no mundo.

Se comparada à visão histórica de um de nossos


informantes, o brincar na Rocinha encontrava outra
dimensão, isto se revelou através da conversa com o
presidente da Casa de Cultura da Rocinha:

[sic] Na minha época pegávamos um pedaço de pau para


fazer um carrinho de rolimã e descer ladeiras, hoje ela
pega este pedaço de pau e simula uma arma. (Diário de
Campo: 04/10/2003).

Tais colocações ainda nos sugeriram que existe hoje


um controle subjetivo da brincadeira por parte do poder

51 Dona Elisa entende que queimar etapas no brincar é dar vazão a tudo que a
criança foi impedida de viver pela sua realidade de pobreza gerada pela falta de
recursos materiais e afetivos dentro do ambiente doméstico que a transforma
em um indivíduo com baixa estima.
52 Dicionário Eletrônico Aurélio
112

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


local que influencia o imaginário infantil dessas crianças
com o suposto “poder” que as armas conferem aos adultos
do lugar e podem ser apropriadas pelas crianças no ato de
brincadeira.

Além desse controle, o trabalho de campo nos revelou


que alguns espaços destinados à brincadeira infantil na
Rocinha, também estão submetidos à “lei” do tráfico.
Traçamos, assim, uma análise dos espaços vividos da
Favela no capítulo II e que em resumo evidencia que as
interações das crianças nas brincadeiras estão subjugadas
às regras e hierarquias internas do morro.

Uma das recreadoras perguntou se havia algum grupo na


quadra da Rua 1, as outras responderam que não, pois já
havia ido até lá, e o lugar estava ocupado. Explicaram-nos
que nesta quadra somente os recreadores (os tios) vão com
as crianças, é um lugar de acesso restrito e depende de
‘permissão’ para ser usado pelos moradores e estranhos
nem pensar. (Diário de Campo: 13/10/2003).

Destacamos que a complexidade na relação espacial


se evidencia dialogicamente entre o que é o lugar permitido
e proibido na favela da Rocinha, através da hierarquia a que
os espaços estão submetidos. Os espaços livres são
apropriados para brincadeiras, mediada pela tensão criada
com a “lei” de usos para os lugares estabelecidos pelo
“poder local”, entre o que é imaginado pela criança.

Brincar na Rocinha parece uma cadeira interacional


com o espaço vivido entre representar e superar a realidade,
113

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


“queimando etapas” nas brincadeiras, como novamente
observa Dona Elisa. Duas falas apresentadas em nosso
Diário de Campo diferem o brincar para os moradores do
local, a primeira, de Dona Elisa, observa que o brincar é o
sonho:

Aqui as crianças brincam mais com representações, com o


teatrinho, entendo que o brincar dela é o sonho, mas
também a representação de sua realidade que nem sempre
é tão bonita. Brincam muito de pique, tem pique de tudo,
pique-tá, pique-esconde, pique-alto, pique-pique. (Anexo 1)

A segunda descreve, brevemente, o que é esse sonho


no imaginário de uma menina do lugar.

[sic] Esta pedra [Morro Dois Irmãos] era um imenso castelo


de um gigante que tinha uma princesa bonita, lá embaixo
[Rocinha] era a cidade da princesa, com quadras e muito
iluminada, era todo mundo feliz até que veio um monstro
muito mau que morava no castelo. Aqui tia era o quarto da
princesa e ali tinha um jardim com muitas flores, lá na
frente é a barriga do gigante. Esse mostro era muito cruel,
fazia muito mal para a princesa e para as pessoas, e a
princesa reza todos os dias para Deus mandar o monstro
embora. Esse monstro era o pai da princesa, era o pai-
monstro que destruiu a cidade aqui de baixo. Ali tia é o
nariz do monstro, aqui a sala do castelo. Aí um dia Deus
escutou a princesa, e transformou o castelo do mostro em
pedra com ele dentro, a princesa ficou presa aí. (Diário de
Campo: 24/07/2003).

A menina descreve uma Rocinha dos sonhos que


assume a imagem de cidade formal e que aos poucos vai
situando esta criança dentro da sua realidade, alternando
entre a complexidade de significados dos espaços da casa e
114

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


da rua, materializados na rigidez e severidade da pedra em
que aos poucos ela congela a si mesmo no tempo.

A idéia de superação da própria realidade está


presente. A menina entende e descreve através da
brincadeira de “faz de conta”, deixando transparecer que o
estar na favela nem sempre é produzido de forma a
enraizar-se no lugar. Neste caso, o espaço da favela é vivido
na relação afetiva que reconhece a Rocinha através do “pai
monstro”, reconstruída no imaginário do lugar idealizado da
cidade formal, com “luzes, jardins e flores”. A princesa que
“reza” tenta transformar a realidade numa força maior
“Deus”. A força maior a escuta, mas transforma “o castelo”
e o “mostro” em pedra, petrifica também a princesa, pois ela
faz parte deste lugar e nele está presa.

As interações das crianças com os espaços livres de


mediação na Rocinha nem sempre representam a não
identificação das crianças com o ambiente. Em diversos
casos, que abordaremos no transcorrer deste capítulo, os
espaços internos e externos da favela, são caracterizados e
afirmados como lugar, de aceitação da criança e
identificação com ele.
115

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


5.1.1. a influência do poder paralelo no brincar
Quanto à relação do poder local com as brincadeiras
das crianças devemos marcar que em nossas observações
na favela da Rocinha, em momento algum nós vimos
crianças portando armas de brinquedo ou simulando-as
com outros objetos nos setores observados, contrariamente
ao que mencionou anteriormente um de nossos
informantes.

Quando solicitamos às crianças desenhos que


falassem sobre seus espaços de brincadeira, somente um
deles fez referência à violência [Fig.5.30]. Segundo nossos
informantes em pesquisa de campo, o fato das crianças do
lugar não estarem armadas nem nas brincadeiras
imaginadas nem no mundo real da favela é orientação do
“poder local”53 daquela comunidade, com vários moradores
se referindo a este como “poder absoluto”, pois é ele, na
perspectiva dos mesmos, que efetivamente interfere no
cotidiano mediando, controlando e alterando a ordem do
lugar. Esta observação vem sempre seguida do contraponto:
“paralelo aqui é o Estado”.

53 Nossos informantes nos dizem que a Rocinha atualmente vive tempos de paz

e parte disto está diretamente ligada à política implantada pelo tráfico, que tem
na figura do atual “Dono do Morro” o Lulu ou Magro, um líder que investe no
lugar e se preocupa com o lado social do morro, entendido como o “bandido
bom”. Ainda segundo relatos, em outra época, a do Denis da Rocinha, a relação
do tráfico com habitantes da favela também era paternalista e foi quebrada por
conflitos na disputa de poder entre bandidos. Este sentimento de medo aflige a
Rocinha novamente que se encontra sob ameaça de invasão. A idéia é que uma
troca de comando, que submeta a Rocinha a outro “controle” a transformará no
“Império do Medo”.
116

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


Essa relação de poder no lugar ficou evidente quando
indagamos aos guias o porquê das crianças da Rocinha não
estarem armadas nem nas brincadeiras imaginadas nem no
mundo real da favela. O que nos foi dito em conversas
informais é que isto está relacionado a uma atitude
“imposta” pelo “poder local” “controlando” indiretamente os
pais para que as crianças não fizessem alusão às armas.
Para fortalecer esta prática impedia também o trânsito de
armas durante o dia54.

A compreensão, por parte das crianças da Rocinha


destes locais controlados é percebida com facilidade. Para
elas, trata-se de um lugar que tem “outro dono” que não é
apropriável por elas. No entanto, compreendem e assimilam
o código moral de que é um espaço onde podem ir em
determinadas condições (quando o poder local o permite).
Até mesmo as regras de uso são aceitas e assimiladas pelas
crianças de forma clara e inequívoca: sabem que há uma
hierarquia de uso, que as outras crianças do CIEP têm
prioridade em detrimento delas mesmas. Portanto, a
construção do eu neste lugar de brincadeiras é fortemente
marcado pelas “leis não escritas”.

54 Ressaltamos que este comportamento não é uma prática comum nas demais

favelas cariocas. Até Dezembro de 2003 o trânsito de armas nos becos da favela
da Rocinha era permitido pelo tráfico somente após as vinte horas. Com a
ameaça de invasão no final do mesmo ano já era possível observar este
comportamento ao entardecer.
117

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


Vimos que existe no lugar uma estratégia de controle
em relação ao cotidiano das crianças. Em diversos casos
vividos e ressaltados no Diário de Campo, observamos que o
tráfico local sempre privilegia e cede espaço para as
crianças se apropriarem e brincarem nos espaços
“proibidos”, evitando que elas tenham algum tipo de contato
visual com o cotidiano.

Seguíamos pelo que já conhecia da Rua 1, (...). No


momento em que atravessávamos em direção ao
Laboriaux, através da estrada da Gávea, percebi no alto de
uma laje dois meninos com seus dezesseis anos que
portavam rádios de comunicação, fogos de artifícios e
fumavam calmamente. Quando notaram que íamos na sua
direção, apagaram os cigarros abaixaram os fogos e tudo
mais, cumprimentaram, brincaram com as crianças e nos
deixaram passar calmamente. (Diário de Campo:
30/07/2003).

5.2. A laje, o beco e tudo mais dentro da Rocinha


Ao longo do capítulo II traçamos como os espaços das
lajes, becos e praças distribuem-se na Rocinha e como são
estabelecidas as relações dos habitantes com os mesmos.
Nosso objetivo neste item é descrever como no âmbito da
brincadeira infantil, estes espaços se constituem em
espaços demarcados, fundamentais para o desenrolar das
atividades.

Segundo a fala de um dos guias, (Diário de Campo:


04/11/2003):
118

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


As lajes não são áreas formais, mas são as áreas mais
utilizadas pela comunidade e vou te contar uma
curiosidade, sabe porque o morador aqui vende a casa e
fica com a laje? Porque ele vai ter sempre um espaço para
construir ou as crianças brincarem. (MP).

As lajes, de uma forma geral em todos os setores


observados, Rua 1, Cezário, Macega, Laboriaux, Cachopa e
Cachopinha, demonstram uma vocação para o lazer ou
qualquer atividade de integração social entre crianças e
adultos. Especificamente as brincadeiras, pois são nesses
espaços que as crianças passam parte do tempo, quando
não brincando sozinhas, acompanhadas de algum
companheiro ou adulto.

As lajes permitem ainda que as crianças se


desloquem por cima das casas de uma forma ágil e
surpreendente, caracterizando a complexidade no uso
destes espaços, nos percursos interrompidos que suscita a
necessidade de pulos sobre os espaços desafiadores. Nem
todas os adultos optam pelo percurso sobre as lajes, mas as
crianças fazem delas o seu caminho habitual.

Um visitante eventual não compreenderia nem teria a


visão da legibilidade da favela, pois este se deslocaria por
vias e becos. O deslocar sobre lajes permite a crianças não
apenas que veja a favela “de cima”, ou seja, tenha um
conhecimento espacial mais claro, como também que elas
se desloquem mais rapidamente, tornando um lugar mais
119

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


permeável, se apropriando de um território muito mais
amplo.

As lajes como vias que proporcionam percursos


alternativos às ágeis crianças da Rocinha, são, portanto,
fatores facilitadores de apropriação e enraizamento infantil.

Constatamos que nesses espaços a presença dos


meninos é maior do que das meninas. Esta rotina pode
estar ligada à configuração do espaço, que são geralmente
de difícil acesso, exigindo da criança esforço físico e
atitudes arriscadas como saltar grandes vãos ou em alguns
casos até mesmo escalar árvores ou paredes para atingí-las.

Consideramos que parte desta influência está no fato


da população da Rocinha ter sido originada por maioria
nordestina, como dissemos no capítulo I, no que concerne
ao modelo de comportamento masculino e feminino. As
próprias famílias transmitem às suas crianças o que é
esperado no comportamento de uma menina e de um
menino.

Fig. 5.1: Meninos


arrumando suas
pipas numa laje
do Cezário.

Foto: Glauci Coelho


Out. de 2003 [Fig. 5.1]
120

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


Nos desenhos realizados pelas crianças, as lajes
aparecem três vezes [Figs. 5.2, 5.34 & 5.37] e se destacam as
tradicionais pipas55, brincadeira de meninos em companhia
de adultos e adolescentes. Observamos que este brincar
comporta dois momentos, o primeiro apresentado na foto
abaixo demonstra a fase inicial da brincadeira, onde os
garotos arrumam suas pipas individualmente e de maneira
concentrada.

No segundo momento, uma fase mais ativa da


brincadeira, destacada em observações de campo e através
do desenho abaixo, realizado por um menino de oito anos,
identifica que o intercâmbio entre as crianças é promovido
por “gritos” ou sinas que elas fazem àquele que se encontra
na outra laje, criando ou resolvendo questões pertinentes à
atividade, onde o vencedor é aquele que mantém a pipa no
céu. O desenho ilustra ainda a relação da brincadeira e a
laje como espaço propício a este tipo de brincar. Porém a
laje comporta outros usos, tais como os churrascos nas
lajes descritos no capítulo II, que marca a diversidade de
significações deste lugar, caracterizando-o como complexo.

55 Segundo Von (2001: 98) “a pipa surgiu na China mil anos antes de Cristo.
Antes de ser um brinquedo, era um dispositivo de sinalização militar. A cor da
pipa, o padrão da pintura e os movimentos no ar eram executados para
comunicar códigos de mensagens entre os campos. (...) chegou ao Brasil com os
portugueses e há notícias de que foi usada por sentinelas, no Quilombo dos
Palmares, também como sinalização de perigo”. Nos dias atuais a pipa como
elemento de sinalização também é usada pelo tráfico dividindo o céu da favela
da Rocinha com as brincadeiras infantis seguindo a mesma lógica dos chineses
sendo estas marcadas e em cores e formatos diferenciados.
121

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


Fig. 5.2: Desenho
de um menino de
nove anos,
morador da Rua
1, representando
o brincar de pipa
na laje.
[Fig. 5.2]

Outra atividade que destacamos são as “rodinhas de


conversas” entre meninos ou meninas na laje que é sempre
possível de ser observado ao entardecer. Não vimos em
momento algum meninas sozinhas nas lajes brincando, elas
estão sempre acompanhadas por algum adulto e suas
brincadeiras são de bonecas e “faz de conta de casinha, de
feira ou de escola”.

Ressaltamos anteriormente que a origem nordestina


da Rocinha “impõe regras” de comportamento masculinos e
femininos. Assim, as meninas são direcionadas
culturalmente a se dedicarem a certos tipos de
comportamento mais voltados para as brincadeiras de
bonecas, tudo o que se relaciona com o imaginário do que
seriam as tarefas do “lar” (casinha, comidinha, bonecas). Já
122

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


os meninos da Rocinha são imersos numa série de
expectativas construtivas do que a cultura daquela
população considera como características masculinas: o
escalar, o desvendar, o disputar pelo espaço de pipas.

Fig. 5.3: Meninos


jogando numa
laje do Cezário
que também
funciona como
área de serviço.

Foto: Glauci Coelho


Out. de 2003 [Fig. 5.3]

Outros espaços de brincadeira privilegiados pelas


crianças da Rocinha são as áreas residuais que se formam
entre as casas da favela, os becos e escadarias.

[sic] O lugar mesmo onde se brinca aqui são os becos e


ruas. (Diário de Campo: 13/10/2003).

Nas áreas mais adensadas da favela é constante a


presença das crianças nos becos. Meninos e meninas
interagem em brincadeiras de “pique-pega” e “pique-alto”,
ou simplesmente em grupos que perambulam e conversam.
Outras brincadeiras separam meninos de meninas, somente
entre os maiores de oito e dez anos, com as meninas
jogando “queimado” ou se reunindo nas proximidades de
suas casas para observar o cotidiano, enquanto meninos
brincam de “futebol” e “bola de gude”.
123

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


Fig. 5.4: Meninas
jogando
“queimada” no
beco principal da
Rua 1.

Fig. 5.5: Meninos


jogando bola
numa “rodinha”
em um beco da
Rua 1.

Fotos: Glauci Coelho


Out. de 2003 [Fig. 5.4] [Fig. 5.5]

Apreendemos nos capítulos II e III que existe em


favelas becos privatizados, aqueles que têm seus acessos
fechados com portões pelos moradores, sendo
transformados em servidões. Tais espaços são intensamente
apropriados pelas brincadeiras infantis com a presença de
moradores, onde as crianças menores de seis anos
permanecem a maior parte do tempo quando estão
próximas de casa. Suas brincadeiras são geralmente mistas
entre meninos e meninas de “casinha”, “bola”, “patinete”,
“bolinhos de terra” entre outras atividades.
Fig. 5.6: Meninas
dançando funk
num beco
privatizado da
Cachopa durante
a noite.

Fig. 5.7: Crianças


brincando de
“escolinha” num
beco privatizado
da Cachopa
durante a noite.

Fotos: Glauci Coelho


Out. de 2003
[Fig. 5.6] [Fig. 5.7]
124

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


Quanto aos períodos que marcam as horas do dia
notamos que, diferentemente das lajes onde o entardecer é
privilegiado, nos becos sempre se encontram crianças, quer
seja durante o dia, à tarde ou à noite, sendo que à noite as
crianças permanecem mais nos becos privatizados. Nos
becos que se configuram como rota dos “bondes” a rotina do
lugar é alterada pela presença do tráfico nas ruas.

As imagens acima [Figs.5.6 & 5.7] demonstram dois


momentos de interações das crianças com o espaço em
becos privatizados durante à noite. Em ambos temos a
reorganização da função de circulação à lugar de encontro
semipúblico-semiprivado, através da brincadeira.

Quando a área não é ainda adensada, tal como na


Macega, os lugares livres entre as casas são maiores e mais
vegetados, propiciando à criança uma interação mais direta
com as árvores, o mato, o verde. Em tais espaços as
brincadeiras dividem-se em “pular corda”, “elástico”, jogar
“bola de gude”, “escalar morretes” e futebol em campos de
Fig. 5.8: Crianças
brincando de saibro improvisado.
“escalada” num
barranco da
Macega.

Fig. 5.9: Crianças


brincando de
“bola de gude” na
Macega.

Foto: Glauci Coelho


Out. de 2003 [Fig. 5.8] [Fig. 5.9]
125

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


Fig. 5.10:
Meninas
brincando de
“pular corda” na
Macega.

Fig. 5.11:
Crianças
interagindo com
[Fig. 5.10] [Fig. 5.11]
a vegetação na
Macega.
Existe ainda na favela da Rocinha o que os moradores
Foto: Glauci Coelho
Out. de 2003
identificam como espaços formais de brincadeiras, as
praças, parques de brinquedos e quadras esportivas
construídas pelo poder público ou financiadas pelo tráfico.
Em três das áreas pesquisadas observamos a existência
destes espaços.

No caminho do Terreirão, destacamos uma pequena


praça onde observamos, sem muita freqüência, mães com
crianças pequenas, mas nesta não foi possível permanecer
muito tempo nem tirar fotos por causa da presença do
tráfico, caracterizando-se como um lugar proibido em que
crianças não estabelecem nenhum vínculo afetivo.

Já o parquinho de brinquedos da Rua 1 é um lugar


totalmente conservado pela comunidade e intensamente
usado pelas crianças da localidade. O lugar nunca está
vazio, sempre com crianças de diversas idades entre três e
nove anos, que se dividem entre escalar o alambrado e
disputar o balanço.
126

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


Figs. 5.12 & 5.13:
Crianças no
parquinho de
brinquedos da
Rua 1.

Fotos: Glauci Coelho


Out. de 2003
[Fig. 5.12] [Fig. 5.13]

Os três desenhos abaixo, todos feitos por meninas de


oito anos, evidenciam que o balanço preenche o imaginário
das brincadeiras, onde elas se inserem no cotidiano da
favela através da brincadeira com a representação das suas
figuras humanas nos dois primeiros e no último pela
presença gráfica do nome da menina que nos pareceu ter
recebido atenção especial. O único desenho [Fig.5.35] de
menino que faz menção a este espaço, o fez com o balanço
em segundo plano, onde o espaço que ganhou importância
foi o campo de futebol, marcado pela presença da figura
humana que o representa no espaço.

Existem ainda as quadras pavimentadas e


estruturadas a diversas atividades de integração. Na
Cachopa o uso do espaço pelas crianças é organizado,
sendo comum o desenvolvimento de programas esportivos
comunitários, tais como escolinha de futebol e capoeira,
quando não o lugar é tomado pelas atividades livres entre
as crianças e adultos como exemplificado pelas fotos
abaixo.
127

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


Fig. 5.14:
Desenho de
menina da Rua 1
representando o [Fig. 5.14]
parquinho de
brinquedos e
destacando o
escorregador e o
balanço, onde a
figura humana
aparece
interagindo com
todos estes.

Fig. 5.15:
Desenho de
menina da Rua 1
representando o
parquinho de
brinquedos e
destacando o [Fig. 5.15]
escorregador e o
balanço, onde a
figura humana
aparece
interagindo com
todos estes.

Fig. 5.16:
Desenhos de
menina da Rua 1
imaginando o
parquinho de
brinquedos e
destacando o
escorregador e o
balanço, sem
representação da
figura humana. [Fig. 5.16]
128

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


Fig. 5.17: Aula de
capoeira na
quadra da
Cachopa.

Foto: Glauci Coelho


Out. De 2003 [Fig. 5.17]

Fig. 5.18:
Atividade livre na
quadra da
Cachopa após a
aula de capoeira.

Foto: Glauci Coelho


Out. De 2003 [Fig. 5.18]

A quadra do Laboriaux é outro exemplo do que os


moradores da Rocinha denominam de espaço formal que,
segundo relatos, teve sua implantação relacionada ao poder
paralelo. O espaço é bem estruturado dentro de uma grande
área descampada que faz margem com a floresta. O uso é
liberado sob algumas condições: se não houver um
“campeonato” entre os “meninos do morro” e se os alunos
da escola municipal, que fica ao lado, não estiverem usando
para atividades físicas.

Fig. 5.19: Quadra


do Laboriaux.

Foto: Glauci Coelho


Out. de 2003
[Fig. 5.19]
129

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


Fig. 5.20: Quadra
do Laboriaux com
atividade escolar.

Foto: Glauci Coelho


Out. de 2003 [Fig. 5.20]

Outra quadra nos surpreendeu pelo tamanho e


relações hierárquicas que regem as complexidades espaciais
e que controlam seu acesso tanto às crianças quanto aos
adultos. A chamada quadra do Terreirão é um dos lugares
mais proibidos da Rocinha, o seu acesso é totalmente
controlado pelo poder paralelo, tanto de dia quanto de
noite. Tomamos conhecimento do lugar em nossa quinta
visita a campo, mas acessá-la somente foi possível no nono
dia. O lugar é cercado de tabus em que até mesmo fazer
algum tipo de referência geográfica pode representar uma
falta grave. Contudo a quadra apresenta um suporte físico
às brincadeiras extremamente rico, sendo equipada com
vestiários, arquibancada, cantina, terraço panorâmico e
mesas de sinuca e pingue-pongue.

A infra-estrutura que identificamos no lugar parece


não ter importância como espaço de brincadeira na Rocinha
para as crianças. Somente um desenho de menino
representa-o, e quando elas estão na quadra do Terreirão se
distribuem no espaço em diversas brincadeiras, onde o
espaço, estrutura física, também faz parte das brincadeiras.
130

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


O espaço é amplamente vivido onde seus usos são
reorganizados, a arquibancada pode representar, por
exemplo, um grande campo de batalha no “faz de conta” dos
meninos de seis anos que ali brincavam de “Power Ranges”,
alternado este com a laje do vestiário e a floresta ao lado.

(...) fui ao encontro do grupo de meninos que corria pela


arquibancada. Neste momento também discutiam por
conta da brincadeira, um pique cheio de regras, sentei na
soleira do salão de jogos e tentei dialogar com as crianças,
(...). (...) chamando a atenção para o que as crianças
discutiam. (...) descobri que os meninos brincavam de
“Power Ranges” e a briga começou quando estavam no
meio de uma batalha e um deles matou alguém que não
queria sair da brincadeira. (Diário de Campo:
28/10/2003).

Fig. 5.21:
Desenho de um
menino da Rua 1
que representa o
parquinho de
brinquedos
através do
balanço, praças e
destaca a quadra
como espaços de
brincadeiras.
[Fig. 5.21]

O espaço da quadra propriamente destinado ao jogo


de bola divide esta atividade com o “pular corda”, realizado
de forma extremamente organizada entre meninos e
meninas, como observamos em fotos e através da seguinte
passagem do Diário de Campo:
131

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


(...) O mais interessante é que esta brincadeira sempre me
pareceu mais atrativa das meninas, mas ali era disputado
por igual o espaço da brincadeira. Colocaram-me batendo
a corda e cantando, volta e meia uma queria furar a fila o
que resultava na parada da brincadeira para a
reorganização da ordem que era imposta pelo “dono” dela.
(...) Esse dono da brincadeira era sempre o que pulava
melhor e demorava mais a sair, demonstrando um certo
domínio e a voz ativa no espaço. (Diário de Campo:
28/10/2003).

Nessa quadra do Terreirão as crianças correm de uma


forma que somente observamos na Macega. A idéia que nos
passa é que nestes espaços amplos, elas dão vazão através
da brincadeira, a toda falta de espaços que vivem em suas
casas.

Fig. 5.22: Menina [Fig. 5.22]


pulando corda na
quadra da Rua 1.

Fig. 5.23:
Meninos jogando
bola na quadra da
Rua 1, marcada
pela inscrição de
PAZ no
alambrado.

Foto: Glauci Coelho


Out. de 2003 [Fig. 5.23]
132

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


Um espaço só encontrado na Rocinha é vivido nas
brincadeiras das crianças constantemente. O lugar é a
canaleta de drenagem do Morro Dois Irmãos que
descobrimos em nosso terceiro dia de visita à favela. Para lá
seguimos com um grupo de crianças entre oito e dez anos.
Percebemos ser este um território dominado por elas. Todas
faziam referências ao lugar como de difícil acesso e
transposição, mas sem medo, somente com o prazer da
aventura da escalada e a segurança em conhecer o
caminho.

[sic] Tia não precisa ter medo, lá vai ter que subir um
barranco, mas se você cair eu seguro você. (Diário de
Campo: 24/07/2003).

Valorizavam o espaço pela dificuldade de subida da


escadaria de cima e pelo prazer de chegar á caixa d’água ou
à parte em cima do túnel Zuzu Angel, onde é possível
escalar a pedra e retirar bromélias que levariam para
enfeitar suas casas.

Fig. 5.24:
Meninos
escalando parte
do Morro Dois
Irmão na
Canaleta.

Fotos: Glauci Coelho


Out. de 2003 [Fig. 5.24]
133

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


Fig. 5.25:
Crianças
escalando a
canaleta de
drenagem do
Morro Dois
Irmãos.

Fotos: Glauci Coelho


Out. de 2003 [Fig. 5.25]

O que se revelou foi que a possibilidade da


experiência arriscada da escalada com obstáculos é o
grande atrativo da canaleta como duas crianças diziam:

LP e AL tentavam me explicar o que era brincar na


canaleta, dizendo que teria que subir e descer e pular, com
certeza seria uma aventura. (Diário de Campo:
24/07/2003).

Ao longo da canaleta a brincadeira das crianças


seguia uma dinâmica alternada entre momentos de
descanso e disputa, destacando a complexidade vivida no
espaço, onde os elementos construídos são transformados
em elementos da brincadeira inventada na hora, sempre em
torno da temática de transposição de obstáculos e de
resistência física.

Foi então que surgiu a primeira dificuldade da tal


brincadeira, os tentos56 dissipadores de velocidade da
água, que configuram buracos entre eles. (...) Todos
começaram a pular de um tento para outro, sem cair nos
buracos (era uma regra), me puxaram para fazer o mesmo

56 Elemento utilizado pela engenharia hidráulica que constituem pequenas

barreiras para dissipar a velocidade da água no interior das canaletas.


134

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


e fui. Isto durou alguns poucos minutos até que o grupo
ficou disperso. (Diário de Campo: 24/07/2003).

O percurso da brincadeira terminava em um pequeno


rapel que era a parte mais esperada por alguns e de maior
aventura pela dificuldade, como podemos observar na
seguinte descrição:

(...) LP surge com uma corda nas mãos mandando segurá-


la que ele me levaria. E lá fui segurando a corda com eles
tentando me descrever o que vinha depois da escada. Teria
que pular num barranco para fora da canaleta e voltar de
“rapera”. (...), imaginei pela presença da corda, que o tal
“rapera” na verdade era rapel, (...). (Diário de Campo:
24/07/2003).

Para as crianças as brincadeiras tornam os limites da


Rocinha mais permeáveis do que para os adultos. Elas
atingem os lugares mais “proibidos” e mais difíceis
topograficamente, sempre com a idéia da aventura de
ultrapassar barreiras e conquistar novos territórios,
caracterizando o que Tuan (1980) considera fazer parte do
processo de enraizamento através do estímulo do sentido do
que é segurança, liberdade e aventura.

Os espaços vividos nas brincadeiras das crianças da


Rocinha não se restringem aos lugares internos da favela,
vários espaços de seu entorno se revelaram ao longo da
pesquisa, destacamos assim a relação com a floresta na
interação brincar.
135

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


5.3. Laboriaux: a floresta no limite com a favela
Apresentamos as origens e características espaciais
do Laboriaux nos capítulos I e II que descrevem uma
conformação do espaço diferente das demais áreas da
Rocinha e que faz fronteira com a Mata Atlântica. Na favela
da Rocinha existe uma grande faixa limítrofe com a floresta
que abrange os setores da Vila Verde, Cachopa,
Cachopinha, Dionéia, Paula Brito, Atalho, mas nenhuma
tão representativa quanto o Laboriaux.

Foi aí que pudemos perceber crianças e adultos tendo


a floresta como espaço de interações sociais de uma forma
mais intensa. Segundo a pesquisa realizada por Soares
(1999: 148) “estes tipos de utilização, em sua maioria se
devem também a uma busca do indivíduo pela melhoria de
sua habitabilidade”. Este pensamento nos leva a idéia de
eco-auto-organização das identidades indivíduo-espaço
desenvolvidas no capítulo IV, emerge na relação da criança
com a floresta.

Reconstruídas continuamente, as identidades tanto do


espaço como daquele que o vivem, no caso a criança em
suas brincadeiras, encontram seu lugar de pertencimento.
As brincadeiras voltadas para o encontro com a natureza
propiciam às crianças a percepção de amplitude do mundo,
o sentido percebido é de exploração do espaço, como nas
brincadeiras da canaleta de drenagem.
136

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


Fig. 5.26:
Meninos Começamos a escalar um barranco enlameado, totalmente
percorrendo
escorregadio com as crianças dizendo que iríamos cair,
trilha no
Laboriaux. mas não caímos e começamos a atravessar a floresta.
(Diário de Campo: 30/07/2003).
Fig. 5.27:
Crianças se
banhando no
cano que vem do
reservatório do
Laboriaux
exatamente onde
termina a favela e
se inicia a trilha.

Foto: Glauci Coelho


Out de 2003 [Fig. 5.26] [Fig. 5.27]

Observamos, como Soares (1999: 151) que as trilhas


eram “feitas pelos próprios moradores” e a ação de caminhar
em si, aos poucos, revelava uma brincadeira de descoberta
e aventura, que aparecem nas seguintes passagens do
Diário de Campo.

Caminhamos por uma trilha sem dificuldades que


funciona como atalho para o ponto mais alto da favela
usada habitualmente por todos.

Nessa curta passagem as crianças corriam e falavam


bastante, algumas meninas permaneciam ao meu lado ora
de mãos dadas, ora colhendo florzinhas, (...). Os meninos
corriam em disparada quando, um deles avistou um
tucano e gritou olha tia aqui tem tucano e era verdade.
(Diário de Campo: 30/07/2003).

As crianças a todo o momento queriam deixar claro


que a aventura ainda estaria cercada pelo perigo de
presença de animais selvagens, sobretudo cobras que
ficavam entocadas em buracos e raízes.
137

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


Segundo Soares (1999: 165) a presença de animais
perigosos não é o suficiente para eliminar o sentimento de
segurança propiciado pela floresta. Entretanto, a autora diz
que este sentimento pode ser alterado pela presença do
tráfico de drogas, o que é o caso da Rocinha, onde a
floresta, como espaço de brincadeira, é parcialmente
proibida às crianças, tanto pela presença de animais
selvagens como por se configurar como o esconderijo de
“marginais” em fuga, tocaia de rivais ou da própria polícia.

As áreas florestadas limítrofes acabam sendo apropriadas


como esconderijo de traficantes, ou depósito de armas e
drogas, salvaguardado do policiamento (1999: 162).

A floresta como espaço de brincadeira somente é


concedidas às crianças em companhia de adultos. No limite
do Laboriaux o objetivo final das crianças é atingir o que
alguns denominam de “cachoeira”, mas que na verdade é
uma represa de água da CEDAE57, que abastece a favela
Parque da Cidade, em uma pequena clareira que nos
momentos de lazer os moradores usam para se banhar. Na
aventura os meninos se organizavam para saltar da pedra e
dos cipós dentro da água, enquanto as meninas, mais
contidas permaneciam na margem.

57 Companhia Estadual de Água e Esgoto.


138

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


Fig. 5.28:
Crianças na beira
do reservatório
do Laboriaux.

Fig. 5.29:
Meninos saltando
do barranco no
reservatório.

Fotos: Glauci Coelho


Out. de 2003 [Fig. 5.28] [Fig. 5.29]

O lugar também nos revelou estar cercado de


histórias imaginadas que são enraizadas nos imaginário das
crianças, muitas vezes tidas como verdade por elas, mas
que nos pareceu não passar de contos de adultos para
controlar atitudes arriscadas.

A primeira que um menino havia se afogado e a outra que


um menino havia morrido ao tentar tirar o tampão que
tem no meio da represa e ficou preso, lugar este que
ninguém ousou chegar. (Diário de Campo: 30/07/2003).

O fim da brincadeira é marcado pela retomada do


sentimento de aventura impressa nos percursos no interior
da floresta. No transcorrer da caminhada ficou claro que o
contato com a natureza e principalmente com a água na
“cachoeira” é uma interação muito apreciada pelas crianças
que sempre se referiam à possibilidade de retorno à
“cachoeira” ou a ida à praia.

Retornamos da “cachoeira” e todas as crianças insistiam


muito para fazer a mesma coisa no dia seguinte. Elas
parecem gostar especialmente de atividades com água,
escutamos algumas vezes referências aos passeios que
faziam à represa do Laboriaux e à praia de São Conrado
nos finais de semana. (Diário de Campo: 30/07/2003).
139

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


5.4. A descoberta da praia
Umas das descobertas da nossa pesquisa foi o
entendimento de que para as crianças da Rocinha seus
espaços de brincadeira não se restringem aos limites físicos
da favela. Através dos desenhos solicitados a praia de São
Conrado representa um lugar comum e propício ao brincar,
mesmo que acessá-la esteja condicionado à companhia de
algum adulto.

Para elas, a praia, o morro, e o espaço construído com


casas e becos fazem parte de um todo indivisível. Este todo
é o lugar apropriado e compreendido como o território
delas, o lugar de brincadeira das crianças que moram na
Rocinha.

O cotidiano das brincadeiras na praia varia do


simples banho de mar ao jogo de futebol, referenciado como
“jogar peladas na praia” à brincadeira de “faz de conta”,
representada através do desenho de um menino de nove
anos que idealiza nesta um combate entre piratas, sem
nenhuma referência ao espaço da Rocinha ou ao de São
Conrado, mesmo que ele tenha sido solicitado que
desenhasse o lugar onde brinca cotidianamente.

As brincadeiras representadas nos desenhos das


crianças reproduzem o cotidiano da praia de barraquinhas,
asa delta, surf e “pelada” com as crianças sempre se
140

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


inserindo no espaço com a representação da figura
humana. Elas o identificam como seu território. E nos casos
simulados abaixo se relacionada ao pertencimento delas no
mundo do asfalto, imaginado como fazendo parte do todo
Rocinha, enquanto espaço apropriado ou apropriável pelas
crianças.

Os desenhos nos elucidam também que o bairro de


São Conrado, que no caso se constitui morfologicamente
como um espaço de transição entre a Rocinha e a praia tem
significado tênue, aparecendo desfigurado e apenas em dois
momentos [Figs.5.35 & 5.36]. Nos sugerindo que o bairro se
comporta como um lugar invisível58, quase um “não-lugar”59
de Augé (1999), não somente por parte das crianças como
para alguns de nossos guias que se referem à praia da
Rocinha.

Podemos considerar que isto ocorra pela vista


privilegiada que se tem do lugar do alto do morro [Fig.5.30],

em que os prédios de São Conrado não se conformam como

58 Usamos o termo invisível por insinuar que algo existe, está lá, mas não

percebemos, que amplia o sentido do termo inexistência que exclui qualquer


possibilidade material, ou seja, o bairro está lá e todos os moradores da
Rocinha sabem, somente por não se sentirem pertencente a esta realidade o
excluem do seu imaginário tornando-o invisível pelo grau de relevância em seu
cotidiano.
59 Segundo Augé (1999: 145), “(...) Há não-lugar em todo lugar e em todos os

não-lugares os lugares podem se recompor. (...) Lugares e não-lugares


correspondem aos espaços muito concretos, mas também a atitudes, a
posturas, à relação que indivíduos entretêm com os espaços onde elas vivem ou
que percorrem. (...) o não-lugar é o espaço dos outros sem a presença dos
outros”.
141

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


uma barreira visual. Compartilhando desta mesma opinião,
a pesquisa de Andrade (2002: 108) nos revela outra questão
que leva à apropriação da praia pelos moradores da
Rocinha. A poluição da praia leva as pessoas de camadas
médias e altas a buscarem outra praia, deixando São
Corando como um território de domínio e encontro daquele
que habita a Rocinha.

Fig. 5.30: Vista


panorâmica de
São Conrado
obtida da Rua 1.

Foto: Glauci Coelho


Out. De 2003 [Fig. 5.30]

Outra questão que nos pareceu relevante para a


reprodução do sentimento de posse da praia pelos
moradores é o fato da Rocinha existir há mais tempo,
criando no morador da favela o sentimento de posse que
para ele é legitimado pelo tempo de moradia e de
enraizamento de seus ancestrais naquele lugar há várias
gerações.

Mesmo que este ponto de vista não seja


compartilhado pelos moradores de classe média de São
Conrado, ele é suficiente para o habitante da Rocinha
compreender a praia como sendo seu território.
142

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


Fig. 5.31:
Desenho de um
menino da Rua [Fig. 5.31]
que simula uma
brincadeira de
“faz de conta” de
pirata na praia.
Único desenho
que faz referência
a violência e que
destaca uma ação
de invasão do
lugar.

Fig. 5.32:
Desenho de
menina que
indica a praia
como espaço de
brincadeira, mas
[Fig. 5.32]
sem destaca-las,
representando
somente a
paisagem de São
Conrado sem os
prédios.

Fig. 5.33:
Desenho de
menino que
também indica a
praia sem a
representação do
bairro formal,
destacando como
brincadeiras a
pipa, o futebol e o
surf. [Fig. 5.33]
143

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


Fig. 5.34:
Desenho de
menino que
também
representa a
praia sem o
bairro de São
Conrado, [Fig. 5.34]
destacando
somente o surf
como brincadeira.

Fig. 5.35:
Desenho de
menino que
representa todo o
espaço da
Rocinha e seus
limites,
destacando o
brincar dentro e
fora dela,
indicando a pipa
como a imagem
da favela e o surf [Fig. 5.35]
como a de São
Conrado.

Fig. 5.36:
Desenho de
menina que
representa a
praia com o
bairro de São
Conrado como
espaço do
brincar, se
inserindo neste,
mas não
indicando suas
brincadeiras. [Fig. 5.36]
144

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


A praia, enquanto um espaço vivido nas brincadeiras,
está impregnada do sentimento de afetividade, revelando a
complexidade das interações onde o simbolismo da praia
desenha aos poucos a identidade da criança, que cria o seu
estar através da imagem que o aproxima daquele que mora
na beira da praia através dos seus esportes como o surf,
futebol e vôlei.

Andrade (2002: 109) afirma que a construção da


identidade do habitante da Rocinha gira em torno do
sentido de inclusão deste como morador da zona sul,
aproximando favela e asfalto somente no imaginário dos
moradores. Um dos desenhos [Fig.5.37] das crianças nos
revela tal fato através do cruzamento de duas brincadeiras,
uma comum na favela – as pipas, e a outra restrita ao
espaço do asfalto – o surf.

Nossa pesquisa nos mostrou que a criança da


Rocinha tem consciência da identidade que cria através de
suas brincadeiras sobre o suporte espacial construído por
seus lugares. Nesse sentido, a categoria “garoto da zona
sul”60 não é exatamente representativa da identidade por
elas criada mesmo que as brincadeiras as aproximem da
realidade do asfalto.

60 Forma como comumente se denomina os jovens de classe média e alta do Rio


de Janeiro que na maioria das vezes habitam próximos as orlas da zona sul da
cidade.
145

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


Ainda que detenham a idéia de que não são parte da
categoria “garoto da zona sul” buscam nas interações da
brincadeira com o lugar construir uma identidade que o
incluam numa realidade que é sonhada e almejada por eles.
Isso pode ser comprovado desde o “faz de conta” da menina
que enxerga na Rocinha “o monstro”, e “Deus” como uma
possibilidade de “fuga” do lugar, até a transformação da
brincadeira de “pipas nas lajes” que marca a identidade das
brincadeiras na Rocinha em “pipas nas pranchas de surf”.

Fig. 5.37:
Desenho de
menino que
representa o
brincar na favela
com o brincar do
asfalto, pipa e
surf, sem indicar
os espaços
Rocinha e São
Conrado.
[Fig. 5.37]
146

OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


INTERAÇÃO CRIANÇA-FAVELA
VI
O ESPAÇO VIVIDO NA ROCINHA
Buscou-se neste trabalho analisar os espaços livres
apropriados por brincadeiras de crianças da favela da
Rocinha, verificando através da interação com o espaço
vivido os significados que a favela poderia assumir para a
criança, desvendando o elo de afetividade como forma de
constituição das identidades indivíduo-meio.

Consideramos que o processo de constituição da


identidade do indivíduo com o lugar parte do princípio da
auto-eco-organização da complexidade de Morin (2002), que
toma como princípio as relações ecológicas que “ligam-se
num macroconceito recorrente e complexo que mantém a
distinção/oposição na integração mútua, e a integração
mútua na distinção oposição” (85).

Baseando-se, teoricamente, neste princípio a


interação criança-favela se desenvolve entre brincar,
pertencer, vivenciar o espaço, que associadas dentro do
princípio ecológico da complexidade, (re)-organiza
dialogicamente as identidades das partes indivíduo-meio,
onde um está no outro simultaneamente, mas conservando
147

INTERAÇÃO CRIANÇA-FAVELA
O ESPAÇO VIVIDO NA ROCINHA
suas unidades que se inter-relacionam recursivamente
[Fig.6.1].

Fig. 6.1: Esquema


da Complexidade
na Interação da
criança com a
favela.

Para a construção da idéia de identidade do indivíduo


com o meio, a delimitação do lugar, como parte físico-
cultural das interações que estruturam recursivamente a
identidade com as crianças foi fundamental. Consideramos
que este espaço seria a favela na dimensão dos seus
espaços livres gerados entre as significações público-
privado da rua-casa, e que convencionamos de espaços
livres de mediação.

A idéia de espaços de mediação surge a partir da


identificação de tensões de usos construídas nos espaços da
favela através do tempo, onde o cotidiano vivido entre o
público e privado se mesclam ao mesmo tempo em que se
148

INTERAÇÃO CRIANÇA-FAVELA
O ESPAÇO VIVIDO NA ROCINHA
distinguem nos espaços residuais, formados entre as casas,
denominados de becos, lajes e escadarias, entre os usos que
os caracterizam como espaços semipúblicos-semiprivados.

Desta forma, delimitamos os espaços de ação das


crianças na favela, onde observamos suas brincadeiras e
em alguns desenhos as referências feitas à favela em
relação à cidade formal. Contudo, no transcorrer da
pesquisa outras áreas emergiram como espaços de
brincadeira, que se encontram fora dos limites geográficos
inicialmente pensados, mas com os quais as crianças
também se relacionam afetivamente. Assim, a praia de São
Conrado, a represa do Laboriaux na floresta e a canaleta de
drenagem do Morro Dois Irmãos se constituem para as
crianças da favela da Rocinha como outros lugares
referenciais de seu pertencer e propícios para as
brincadeiras.

Verificamos assim que as interações das crianças no


brincar com os espaços livres dentro e fora da favela da
Rocinha expressam suas identidades, representadas
através do cotidiano percebido na brincadeira que as situa
no seu espaço de pertencimento, e na delimitação de suas
representações de “espaço próprio”.

O estar e o ser da criança da Rocinha são marcados


pelo brincar de “pipas nas lajes” e “pique-esconde” nos
becos, brincadeiras que identificam o lugar, evidenciado nos
149

INTERAÇÃO CRIANÇA-FAVELA
O ESPAÇO VIVIDO NA ROCINHA
desenhos representados. Esta interação com o ambiente
constrói progressivamente nas crianças reconhecimento de
si no cotidiano da favela. As experiências com o lugar no
brincar, nas falas e nos desenhos, as posicionam
afetivamente no todo entre a favela e o asfalto.

A memória coletiva da comunidade, a origem


nordestina, o sofrimento de adaptação dos primeiros
moradores do lugar, bem como toda a rede de hierarquia
espacial incutida subjetivamente pelo “poder paralelo”, e
que polariza os espaços livres de mediação da Rocinha entre
permitidos, proibidos e tolerados, também aparecem na
configuração dos usos e apropriações dos lugares
contribuindo na construção da identidade de seus
moradores mirins.

O reconhecimento da identidade com o lugar também


é destacado no imaginário do “faz de conta” das crianças
que ao descreverem ou desenharem a favela sempre
reconhecem a outra realidade, a do asfalto, não a excluindo,
mas interagindo com ela na complexidade dialógica. O
outro, seja pessoa ou lugar, sempre se coloca como
referência localizando-a no seu cotidiano pelo entendimento
da diferença. Duas falas ilustram, neste sentido, a
identificação da criança com o seu lugar de pertencimento e
o estranhamento do que conhecem por ver, mas não
dominarem os códigos do dia-a-dia:
150

INTERAÇÃO CRIANÇA-FAVELA
O ESPAÇO VIVIDO NA ROCINHA
- [sic] Tia você está olhando e tirando foto daqui? (...), está
vendo lá, fica o Colégio Americano.
- Como sabe?
- Eu estudei lá.
- Não estuda mais porque?
- Lá é muito chato.
- Como?
- Tenho que ir com a mesma roupa todo dia, não posso
fazer nada, lá ninguém faz nada, e ainda tem que ir
com o material todo arrumadinho na mochila. (Diário
de Campo: 30/07/2003)

Ainda que esta fala seja marcada pela “mentira”


expressa o imaginário da criança, o sonho que destaca a
diferença do seu cotidiano em relação ao outro, o que
caracteriza o eu da criança da favela da Rocinha e
concomitantemente delimita seu território de pertencimento
nos aspectos vividos dentro da cidade.

A outra fala de forma muito poética marca também no


imaginário infantil a diferença entre as partes favela-asfalto,
onde para a criança da Rocinha, a cidade formal é um lugar
com luzes e jardins, que antes ela sonha ser esta a sua
Rocinha, mas a realidade da favela emerge através da
referência ao “mostro” que prejudica ela e as pessoas do
lugar, reconhecendo as diferenças entre favela e asfalto e se
posicionando no seu lugar de enraizamento, a favela, a
partir do momento em que “ela se congela junto com o
mostro” no espaço-tempo da Rocinha como mostramos na
história relatada pela menina AL citada no Capítulo V.
151

INTERAÇÃO CRIANÇA-FAVELA
O ESPAÇO VIVIDO NA ROCINHA
O pertencimento da criança da Rocinha nos limites
informais da favela é ultrapassado quando ela identifica no
seu brincar que o cotidiano vivido nos espaços da cidade
formal também complementa e legítima o seu estar na
cidade. Destaca-se neste processo a praia de São Conrado,
um lugar que dá aos moradores sentimento de posse e de
dominação como território das brincadeiras e pertencimento
ao lugar.

O elo de afetividade com a praia é percebido


historicamente. O lugar primeiro pertenceu aos moradores
da favela, apreendida através do tempo como a praia da
Rocinha. Neste espaço, o vivenciado pelas brincadeiras,
integra asfalto e favela, quando as crianças representam na
praia a brincadeira de pipa típica das lajes da favela,
contribuindo na construção de suas identidades
integrando-se parcialmente à cidade formal, com uma auto-
estima trabalhada em torno apropriação da praia e do uso
desta por meio de esportes geralmente atribuídos aos jovens
do asfalto.

O sentido de superação se fez presente em


brincadeiras de transposição de barreiras. Os espaços da
floresta no limite do Laboriaux até a represa e a canaleta de
drenagem do Morro Dois Irmãos, são apropriados no
brincar de aventura. Observamos que a interação com o
espaço é intensa, com as crianças transgredindo usos do
152

INTERAÇÃO CRIANÇA-FAVELA
O ESPAÇO VIVIDO NA ROCINHA
ambiente (re)-organizando-os a todo instante. Neste caso a
demonstração de conhecimento sobre o espaço vivido à
medida que transpõe obstáculos marca a idéia do “poder ir
além” com segurança marcando o quanto a favela é
permeável para a criança.

A sensação de segurança confere à favela da Rocinha


especificidades que estimulam as crianças “a
desenvolverem seus jogos com companheiros da mesma
faixa etária e observarem os adultos” (Lima, 1989:92). A
favela é entendida como “ponto de partida”, o lugar que
enraíza o indivíduo e para onde a criança retorna ao final
da brincadeira.

O reconhecimento dos espaços livres da favela e


asfalto, através da brincadeira por parte das crianças da
Rocinha, participa intensamente no processo de
constituição de suas identidades. No processo destaca-se a
interação ecológica da complexidade em que indivíduo e
meio relaciona-se em cadeia sempre reorganizando as
identidades das crianças no lugar Rocinha através de suas
brincadeiras no seu espaço vivido, constituindo o seu estar
no mundo.

No entanto, as constatações feitas são específicas do


espaço vivido favela da Rocinha. A localização “privilegiada”
na zona sul carioca, a vista apreendida da paria de São
Conrado e da Lagoa Rodrigo de Freitas, a relação com a
153

INTERAÇÃO CRIANÇA-FAVELA
O ESPAÇO VIVIDO NA ROCINHA
floresta e todas as redes de relações interpessoais e com os
espaços livres internos e externos da favela, contribuem
para a construção da identidade da criança da Rocinha, a
partir da identificação do lugar relacionando-se com o seu
entorno, evidenciado através da apropriação da brincadeira.

Acreditamos que o entendimento do significado e o elo


de afetividade com o lugar estabelecido pelas crianças nas
interações da brincadeira com o espaço da favela
Fig. 6.2: Crianças
da Rocinha proporcionem um arcabouço de referências capazes de
brincando nos
espaços livres da orientar intervenções projetuais que primem pela
favela. Da
esquerda para valorização dos espaços livres, tanto no interior da favela
direita: Rua 1-
largo no caminho como em áreas que integrem as realidades favela-asfalto,
do Terreirão,
Cezário – pedra orientando a identificação e inserção do indivíduo no todo
remanescente
entre as casas, da cidade.
Macega -
vegetação
remanescente e
Cachopa – beco
no limite entre a
rua e a casa.

Fotos: Glauci Coelho


(Out. de 2003)

154

INTERAÇÃO CRIANÇA-FAVELA
O ESPAÇO VIVIDO NA ROCINHA
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160

BIBLIOGRAFIA
ANEXO I ENTREVISTA

COMO É O BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA


23 de julho de 2003
Entrevista concedida por Dona Elisa, Moradora da
Rocinha por volta de 25 anos, numa conversa informal
sobre o ato de brincar das crianças da Rocinha. Ela iniciou
a creche comunitária que funciona no Setor da Rua 1 e
desenvolve o Programa CURUMIM associado ao
NEAM/PUC-Rio.

Como as crianças brincam, você me pergunta. Nesses


anos pude perceber aqui que as crianças queimam etapas
da vida na brincadeira. O habitar no brincar tem quer ser
felicidade, sonho, afeto, realização, se não, não existe
brincar. Entendo isso, pois quando eu era criança lá no
interior eu brincava de cavalinho, de correr cipó e era feliz.
Aqui as crianças brincam mais com representações, com o
teatrinho, entendo que o brincar dela é o sonho, mas
também a representação de sua realidade que nem sempre
é tão bonita. Brincam muito de pique, tem pique de tudo,
pique-tá, pique-esconde, pique-alto, pique-pique.

Mas também percebo que a necessidade maior é a de


se fazer notar. Essas crianças queimam etapas, a maioria
sai dos bolsões de miséria da favela, os buracos podres,
162

ANEXOS
com casas úmidas onde chove dentro, onde elas não são
vistas com importância. A maioria das mães usa essas
crianças como instrumentos de chantagem, muitas brigam
e acabam dormindo na rua. E são essas as crianças que
tentamos resgatar.

Muitas chegam aqui sem referências, extremamente


violentas, como essa moça aqui a AM. Nós vamos
reeducando-as aos poucos, com afeto, mais nada, pois é
isso que elas não entendem. Aos poucos vão descobrindo
que também podem conquistar alguma coisa.

Descobrimos que a melhor maneira para se relacionar


com elas é conversando, sem conversa não se consegue
nada. Se você chega tentado dar ordem, dizendo o que é
certo ou errado, que é “assim ou assado”, não funciona.
Elas já são tratadas com agressividade em casa, e é assim
que elas entendem que devem se relacionar. É preciso
deixar que ela fale como é.

Isto é outra coisa, elas sentem necessidade de serem


ouvidas, por isso o teatro é importante para elas, pois elas
são ouvidas e lá elas dizem o que é seu cotidiano. E como
também sentem necessidade de se enfeitarem, o adorno,
principalmente as pernas e a cabeça, não sei o motivo. Elas
se enfeitam e vão para o palanque, em cima de latas, estão
no alto, fazem postura, e também fazem procissões, se
enfeitam e vão para rua correr becos, o ritual.
163

ANEXOS
Por isso o teatrinho é tão importante para elas, pois
falam e são ouvidas, são o centro de importância naquele
momento. Falo que a melhor maneira de entender isso tudo
aqui, primeiro é sentar no chão e conversar com as crianças
e deixar que elas te digam o que é isso aqui para elas, por
meio da brincadeira vão te dizer tudo.

Nós daqui, criança do interior que fizemos este lugar


e criamos estas crianças de agora, as da cidade, da favela,
precisamos passar um pouco o que era aquela alegria de lá,
com afeto, com o toque, como é importante beijar estas
crianças, elas quebram a resistência e vão se tornando
dóceis com o tempo.

Tudo é uma questão de consciência, por exemplo,


hoje eu quero jantar purê com frango, mas no meu beco
tem criança que não comeu o dia inteiro, ai eu chamo todo
mundo pra comer comigo, e fica todo mundo falando. Mas
eu não poderia dormir direito à noite, sabendo que tem uma
criança do meu lado passando fome, sem perspectiva, não é
justo.

Aqui quando as crianças chegam novinhas, na idade


da creche é mais fácil, mas quando chegam já grandes, é
mais difícil. Vamos testando e descobrindo aos poucos. É
assim, está vendo esse menino o BR, tinha que resolver um
problema com o fogão de uma vizinha, aí dei o dinheiro
164

ANEXOS
para ele e mandei que trouxesse o troco e ele voltou, é uma
pessoa que dá para acreditar.

Teve outro caso esses dias, uma menina que mora lá


no buraco podre, numa casa com mais de não sei quantas
pessoas, onde todo mundo fuma maconha, cheira cocaína,
ficam agressivos. Essa criança nunca se envolveu com isso,
apesar de ser a sua realidade ela se afastou. É precioso dar
uma chance para uma pessoa dessa. Aí o que acontece, elas
chegam aqui e queimam suas etapas na brincadeira,
adoram brincar, descobrem que podem sonhar, descobrem
o carinho, começam a descobrir sua importância.

165

ANEXOS
ANEXO 2 DIÁRIO DE CAMPO

23 de julho de 2003
14:30-17:00 h
Esta é a primeira visita oficial para pesquisa de
campo, e que se segue após longa conversa com Dona Elisa,
que relato a seguir. A princípio, até que o mês de dezembro
de 2003 termine permanecerei na comunidade, pelo menos
duas vezes por semana, observando e interagindo com os
moradores do lugar. O intuito é registrar aqui as
impressões mais marcantes percebidas em campo e
aprender a vivenciar os espaços livres da Rocinha com as
crianças e adultos. A rotina será a de encontrar com as
crianças e professores do Curumim, trabalhar junto com os
recreadores e sempre que a organização das atividades
permitir explorar e perceber a comunidade através dos
espaços externos apropriados pelas crianças ao brincar.

Subia à Rocinha acompanhada de Daniela (20),


moradora do lugar que trabalha no NEAM e já participou do
Projeto Curumim. A idéia inicial era a de encontrar com as
crianças, mas ao chegar lá estas já haviam sido liberadas
por Dona Elisa. Ela preferiu conversar comigo e me passar
166

ANEXOS
um pouco de sua idéia de “construir sonhos” transformando
garrafas PET em brinquedos sonhados.

Nesse momento percebi que seu intuito era a de


transformar minha pesquisa em troca, eu pergunto o que
quiser as crianças, mas ensino a elas como “projetar
sonhos”. Assim ela sugeriu, quase que de uma forma
impositiva, que primeiro conhecesse os lugares das crianças
e depois iniciasse os desenhos. Ela termina me chamando
para um passeio no dia seguinte, que as crianças têm o
hábito de fazer para a canaleta.

[sic] Amanhã os meninos vão para canaleta, você quer ir?


(...) tem que ir de calça e tênis. No brincar não podemos
esquecer a coisa mais importante que é o sonho e estas
garrafas aqui podem ser o sonho, eles já estão recolhendo
várias e logo vamos começar.

Como já estava dentro da Rocinha, pedi a Daniela que


me mostrasse o lugar, saímos e pude perceber um grupo de
meninas com idades variadas entre seis e dez anos que
brincavam em frente à creche de queimado, mais adiante
um grupo de meninos totalmente imersos no seu brincar
andavam de patinete sem notar minha presença. E assim
seguimos pela Rua 1 que é o acesso principal de entrada
pela Estrada da Gávea, em direção ao Costão da Pedra do
Morro Dois Irmãos.

Este primeiro roteiro não foi em vão, no caminho até


a Rocinha, Daniela perguntou no que trabalhava e
167

ANEXOS
descobrindo que era arquiteta, disse que gostaria de
mostrar sua casa, pois queria fazer reformas. No trajeto me
explicou que cada área tinha um nome, ela morava na
Macega61 e para chegar lá estávamos passando pelo
Cezário. Neste dia o lugar estava relativamente calmo, sem
muitas pessoas na rua, e como quem tenta responder, ela
me explicava que dia de semana é calmo, pois as crianças
vão para a escola, que final de semana sim, era um alvoroço
de crianças na rua.

De repente viramos um beco e ela chamou atenção


para mais um grupo de meninos que jogava bola,
novamente queimado, já me dizendo que ali a bola era o
único brinquedo, os outros eram caros, e coisas como vídeo
game62, computador, nem pensar, pois além de caros
consumiam muita energia, e que até televisão era algo
complicado. Continuamos e até que chegássemos à casa de
Daniela, ela cumprimentava a todos, demonstrando pleno
conhecimento do que se passa na comunidade,
atravessamos um campo de futebol de terra com não mais
de 10 metros de comprimento, com algumas pessoas
conversando e enfim chegamos.

61 área de ocupação recente além da delimitação da área de risco demarcada

pela Prefeitura.
62 Notei na rua 1 duas biroscas funcionando com jogos deste tipo, uma era

especializada somente em vídeos game e a outra em computadores, as quais


permaneciam cheias de meninos.
168

ANEXOS
Ela me apresentou seus quatro filhos, a mais velha
com seis anos, eles brincavam com outra amiguinha de
correr e com as plantas que ainda se encontram nos
barrancos. Conheci sua casa, um barraco de madeira, fiz
alguns comentários e ela concluiu dizendo que estava muito
feliz, pois já tinha uma casa e iria conseguir mais.

Iniciamos nosso caminho de volta, e antes que


atingíssemos o campo de futebol, duas crianças, um
menino e uma menina de mais ou menos 8 anos brincavam
de bola de gude, não de forma tradicional, estavam
sentados, as bolas ficavam todas dentro da camisa do
menino, por vezes ele jogava algumas e a meninas as
catavam, colocando-as novamente em sua camisa. A partir
de então seguimos por um atalho, quando encontrei uma
criança de uns 3-4 anos que brincava com três vergalhões
que saía da parede de uma casa voltada para o beco, ela
não tinha um ar de contentamento ou de alguém que se
diverte com algo, mas sim um ar pensativo.

Terminamos nosso passeio e não pude deixar de


notar que a bola, como dito por Daniela, é realmente a
diversão central, meninos e meninas geralmente brincam
separados. As brincadeiras em conjunto são mais raras,
mas percebi que ocorrem, dentro da comunidade, em
idades menores. Já no ponto de ônibus na Estrada da
Gávea, na área chamada de Laboriaux, dois meninos
169

ANEXOS
maiores (12-13) brincavam em cima da laje, fiz menção de
tirar foto, quando percebi um dos meninos do tráfico,
Daniela puxou a maquina e se incumbiu da foto, dizendo
que não precisava ter medo. Lá em cima do Laboriaux,
estava um dos campos de futebol formal da comunidade de
que tomei conhecimento, e que foi construído pelo dono do
morro para as crianças brincarem, mas às vezes ele
mandava todo mundo descer.

24 de julho de 2003
13:30-17:00 h
Hoje subi à Rocinha com Maria Luiza Silveira e
Albuquerque (in memória), pesquisadora do NEAM. Fomos
recebidas por Dona Elisa na creche e em seguida mudamos
para o prédio ao lado, onde se encontravam cerca de
sessenta crianças de 6-13 anos.

Ela tentava organizar sem muito sucesso a grande


confusão, todos gritam e corriam dentro da sala. Chamava-
os por idade, “os de 8 a 10 aqui no meio, sentados em fila, o
CA aqui, os de doze (...)”. O alvoroço permaneceu até que os
três recreadores chegaram e um deles gritou no meio da
sala, foi então que todos se acalmaram, Dona Elisa nos fez
sentar em frente às crianças e nos apresentou.

Começou falando de crianças que constroem sonhos,


e crianças que acreditam em sonhos realizam sonhos, e
como quem fizesse uma cobrança reclamou daqueles que
170

ANEXOS
não estavam se empenhado em conseguir garrafas de
guaraná. Neste momento percebi que já era tarde, quisesse
ou não aquela seria a rotina de trabalho, e no transcorrer
da apresentação disse que sonhos são construídos a partir
de projetos.

Foi então que se virou para mim e para Maria Luiza,


dizendo que aquelas tias estavam ali para ensinar a eles a
fazer projetos, e o projeto era a do brinquedo sonhado, mas
para realizar projetos teriam que cumprir etapas, e se
quisessem o brinquedo pronto até o natal precisariam
arrumar mais garrafas PET.

Enquanto ela falava associei que fazer o projeto de


uma casa é realizar um sonho, e um brinquedo não seria
diferente. Assim todos interagiam num jogo, eu buscando
as brincadeiras e seus lugares na comunidade, as crianças
me dizendo isto identificariam suas afetividades,
destacando neste processo seu sonho através do brinquedo,
projetado por elas, e apreenderiam a usar os recursos aos
seus alcances para materializados, e do outro lado Dona
Elisa feliz por eu não só está tirando das crianças dela sem
deixar nada em troca.63

63 Este é um questionamento colocado pela Professora Marina Lamette do


NEAM, quando ainda era membro do CNPq, e passado para o grupo, onde se
discuti a pesquisa em relação à sociedade e principalmente àquelas pesquisas
acadêmicas fechadas que não criam um retorno para o grupo observado.
171

ANEXOS
Nisto mostraríamos indiretamente para as crianças,
que num projeto precisamos identificar no cotidiano como
praticamos a ação em projeto, no caso o brincar. O mais
importante é que indiretamente estariam apreendendo a
identificar metas para um projeto, através da interação com
seus espaços vividos, e que projetos são realizáveis se
trabalhamos de forma satisfatória o que temos ao alcance.

NO PROJETO AÇÃO PRIMEIRA QUESTÕES


CASA HABITAR COMO? ONDE? PORQUE?
BRINQUEDO BRINCAR COMO? ONDE? PORQUE?

Foi neste sentido que Dona Elisa justificou nossa


presença entre elas, e o incrível é que em momento algum
se sentiram observadas, ficaram à vontade e entraram no
jogo. Enquanto isto os recreadores organizavam o passeio á
canaleta entre as crianças de 8 a 10 anos. Chamou-me a
atenção que eram três homens, enquanto na creche havia
somente mulheres. Questionei com Maria Luiza e ela
respondeu que era uma necessidade da idade, a figura
paterna era mais ausente que a figura materna e a partir
dos seis anos era fundamental aquela imagem.

Neste momento a primeira criança começou a se


aproximar de mim, passando pelas minhas costas correndo
e fazendo cócegas, fez isto três vezes quando comecei a
correr atrás dela e fazer o mesmo, parou de uma só vez
puxou meus braços dizendo:
172

ANEXOS
[sic] Tia, qual é mesmo o seu nome? (...) o meu é AL.

Outras crianças se aproximaram a partir disto


disputando para saber quem ia segurar minha mão, uma
delas perguntou o que estava fazendo mesmo ali, e
respondia que ensinava a fazer dos sonhos brinquedos,
perguntaram se ia passear com eles e foram logo dizendo
que não precisava ter medo.

Percebi que uma das crianças estava inscrita para o


outro grupo, que trabalharia preparando as garrafas para
artesanato, este prontamente colocou-se ao meu lado e
trocou de grupo, disse que se chamava LP já pegando na
minha mão e repetiu,

[sic] Tia não precisa ter medo, lá vai ter que subir um
barranco, mas se você cair eu seguro você.

Imaginei o que seria a tal canaleta, mas achei melhor


contar com o fator surpresa. Saímos pelos becos, e até que
o passeio terminasse, entre idas e vindas de outras
crianças, AL e LP me conduziram contando estórias e
fazendo observações sobre o lugar, me elegeram como mãe,
deixei ao perceber que outras crianças também faziam o
mesmo alternando as falas entre tia e mãe e tio e pai.

No percurso descobri que o acesso a canaleta ficava


na Macega, e que era nada mais que a canaleta de
drenagem do Costão do Morro Dois Irmãos, seguíamos
173

ANEXOS
descendo entre gritos e correrias, enquanto alguns
insistiam em descer as escadas aos saltos. LP e AL
tentavam me explicar o que era brincar na canaleta,
dizendo que teria que subir e descer e pular, com certeza
seria uma aventura.

LP insistia em cuidar de mim, e neste momento já


dividia a função com AL. Atravessamos o campo de futebol
de saibro da Macega, onde ocorria um jogo de futebol com
meninos maiores (15-16), e chegamos no lugar de acesso à
canaleta, as crianças pularam para seu interior com muita
agilidade, eu demorei mais um pouco. Começamos a descer
ao ponto mais baixo, acima do túnel Zuzu Angel, andamos
por um período numa parte plana. LP que neste momento
corria de um lado para outro, passou por mim e perguntou
se estava com medo, disse que ainda não e ele seguiu em
disparada. Foi então que surgiu a primeira dificuldade da
tal brincadeira, os tentos dissipadores de velocidade da
água, que configuram buracos entre eles.

Todos começaram a pular de um tento para outro,


sem cair nos buracos (era uma regra), me puxaram para
fazer o mesmo e fui. Isto durou alguns poucos minutos até
que o grupo ficou disperso. AL que permanecia ao meu lado
todo esse tempo segurou minha mão chamando a atenção
para o Costão e perguntou se conhecia a história daquela
Pedra, disse que não e ela começou a me contar:
174

ANEXOS
[sic] Esta pedra era um imenso castelo de um gigante que
tinha uma princesa bonita, lá embaixo [Rocinha] era a
cidade da princesa, com quadras e muito iluminada, era
todo mundo feliz até que veio um monstro muito mau que
morava no castelo. Aqui tia era o quarto da princesa e ali
tinha um jardim com muitas flores, lá na frente é a barriga
do gigante. Esse mostro era muito cruel, fazia muito mal
para a princesa e para as pessoas, e a princesa reza todos
os dias para Deus mandar o monstro embora. Esse
monstro era o pai da princesa, era o pai-monstro que
destruiu a cidade aqui de baixo. Ali tia é o nariz do
monstro, aqui a sala do castelo. Aí um dia Deus escutou a
princesa, e transformou o castelo do mostro em pedra com
ele dentro, a princesa ficou presa aí.

Uma menina nos acompanha mais timidamente, se


virou dizendo:

[sic] Tia, a princesa é ela.

Voltei-me para AL dizendo que sua estória era muito


bonita, que daria até para montar um livrinho, ela sorriu e
disse que um dia me contaria ela toda. Este foi o tempo de
chegarmos ao ponto baixo da canaleta. Lá as crianças se
puseram a escalar a pedra para arrancar plantas e matos
entre elas bromélias que levariam para casa. Foi quando LP
trouxe um enorme mato e me deu de presente, a idéia
agradou os demais, que numa avalanche fizeram o mesmo,
e de uma hora para outra estava coberta de plantas.

Comecei a tirar fotos deles e da Comunidade, isto não


despertou muita a atenção, notei na entrada da Rocinha
uma quadra de esporte (quadra da Roupa Suja) e lembrei
175

ANEXOS
que Daniela havia mencionado somente a do Laboriaux
como quadra oficial. LP se aproxima novamente dizendo:

- [sic] Tia você está olhando e tirando foto daqui? (...), está
vendo lá, fica o Colégio Americano.
- Como sabe?
- Eu estudei lá.
- Não estuda mais porque?
- Lá é muito chato.
- Como?
- Tenho que ir com a mesma roupa todo dia, não posso
fazer nada, lá ninguém faz nada, e ainda tem que ir
com o material todo arrumadinho na mochila.

Neste momento os recreadores começaram a dialogar


mais comigo, apontaram para cima dizendo que agora
iríamos ao ponto mais alto, que fosse me preparando, pois
mais adiante havia uma escadaria imensa. As crianças se
organizaram a sua maneira, seguimos pelos tentos, pela
parte plana, por mais tentos até chegarmos a tal escadaria,
que era realmente imensa.

As crianças riam muito, perguntando se eu


agüentaria, fiquei muda, novamente LP surge com uma
corda nas mãos mandando segurá-la que ele me levaria. E
lá fui segurando a corda com eles tentando me descrever o
que vinha depois da escada. Teria que pular num barranco
para fora da canaleta e voltar de “rapera”. Curiosa e tensa,
imaginei pela presença da corda, que o tal “rapera” na
verdade era rapel, mas resolvi confirmar com um dos
recreadores, que gritando como quem tivesse corrigindo os
meninos acabaram por confirmar minha suspeita.
176

ANEXOS
Não teve outra saída, tive que me atirar sobre o
barranco de uma altura de dois metros, vencido este
obstáculo, meu salvador, LP, surge novamente me puxando
pela mão, dizendo que me conduziria pelo melhor caminho,
até o lugar que desceríamos pela corda. A tal foi amarrada
no tronco de uma goiabeira e nos pusemos a descer, alguns
mais apressadinhos desciam os oito metros escorregando
sentados.

Chegamos ao campo de futebol da Macega, e por


alguns minutos paralisamos o jogo e tiramos fotos do
grupo. Neste momento estava terminada a brincadeira e um
dos instrutores avisou que na próxima semana teríamos um
passeio ao campo do Laboriaux, no meio do alvoroço
alguém gritou, campo não cachoeira, a idéia foi incorporada
por todos e não teve jeito de alterar.

Elas foram logo me avisando que teria que atravessar


uma floresta até conseguir chegar na cachoeira que dava
para tomar banho. Chegamos ao Curumim, com LP,
tentando me convencer pelo caminho, que teria que voltar
no turno da manhã, pois ele só estava à tarde neste dia por
não ter tido aula no colégio.
177

ANEXOS
30 de julho de 2003
13:30-17:00 h
Após a primeira semana retornei à Rocinha sozinha,
já entro e saio do lugar sem avisar previamente. Como
combinado na semana anterior, as crianças foram
preparadas para o passeio à cachoeira, neste momento, já
habituadas a minha presença me abraçavam e beijavam
sem reservas.

Neste dia o grupo de crianças era menor e os


educadores dividiram mais rigorosamente as turmas
permitindo que somente os de nove e dez anos fossem para
o passeio. Este encontro foi especial não só pelas crianças,
mas pela tentativa de aproximação dos professores, que até
então se restringiram a cumprimentos. Querendo saber
mais sobre a minha presença na comunidade, percebi que
iniciavam uma espécie de interrogatório sobre quem sou, o
que faço, o que pretendo.

Bom, seguíamos pelo que já conhecia da Rua 1, que


até então entendia como estrutura física rua, mas que na
verdade representa uma localidade (bairro). No momento
em que atravessávamos desta em direção ao Laboriaux
através da estrada da Gávea, percebi no alto de uma laje
dois meninos com seus dezesseis anos que portavam rádios
de comunicação fogos de artifícios e fumavam calmamente.
178

ANEXOS
Quando notaram que íamos a sua direção, apagaram
os cigarros abaixaram os fogos e tudo mais, brincaram com
as crianças e nos deixaram passar calmamente. Assim
atingimos o morro do Laboriaux numa área de ruas largas e
pavimentadas de blocos sextavados, ao final da primeira
rua passamos para a floresta64. Caminhamos por uma
trilha sem dificuldades que funciona como atalho para o
ponto mais alto da favela usada habitualmente por todos.

Nessa curta passagem as crianças corriam e falavam


bastante, algumas meninas permaneciam ao meu lado ora
de mãos dadas, ora colhendo florzinhas, mas sempre
alternando em me chamar de tia ou “minha mãe do
Curumim”. Um dos meninos avistou um tucano e gritou
“olha, tia, aqui tem tucano e era verdade”.

Saímos todos da mata e nos organizamos na rua


larga e de blocos sextavados. Pela primeira vez notei a
presença de bicicletas na favela com as qual algumas
crianças brincavam. Como mencionei anteriormente esta
localidade da Rocinha se configura diferentemente das
demais áreas, parte de suas ruas são largas e pavimentadas
permitindo brincadeiras deste tipo, ao contrário das
escadarias e becos estreitos da área mais antiga.

64 Parte da Floresta da Tijuca que margeia a favela.


179

ANEXOS
No final dessa rua pavimentada encontrei o tal campo
do Laboriaux, uma quadra formal, pavimentada, com
alambrado e vestiários, e é claro que fiquei feliz por ter
conseguido acesso à tão famosa quadra construída pelos
donos do morro, e que mais tarde viria a descobrir não ser
somente esta, nem a mais importante.

Agora sabia que a tal cachoeira estava perto, pois


depois que atravessasse a quadra chegaria. Seguimos por
um barranco e quando chegamos à clareira atrás da
quadra, o professor me chamou, apontou para uma mata
fechada e úmida e disse:

[sic] Está vendo... vamos atravessá-la.

Um outro menino espirituoso disse que tinha cobra e


o professor me olhou numa afirmativa. Olhei para frente e
pensei bem, não conhecer a tal cachoeira por causa de
umas cobrinhas, então comecei a escalar um barranco
enlameado, totalmente escorregadio com as crianças
dizendo que iria cair, mas eu não caí e começamos a
atravessar a floresta.

Superados barrancos, galhos, matos, raízes enormes,


mosquitos, gotas d’águas que caiam ainda da chuva do dia
anterior, e cobrinhas que não vi, chegamos a tal cachoeira
que não passa de um reservatório de água represada de um
córrego, uma verdadeira piscina de água natural que
180

ANEXOS
abastece a Comunidade do Parque da Cidade, uma área
também de ocupação informal, que em tamanho
corresponde a um dos setores da Rocinha.

Enquanto as crianças se preparavam para cair na


água o menino espirituoso gritava “tio vamos pular da
pedra”. O professor tentando organizar o impossível gritava
que somente quem sabia nadar iria para água, os demais
arrumassem o que fazer ou ficassem na água, segurando na
borda da represa. A partir de então a maior parte entrou na
piscina, mergulhavam e empurravam uns aos outros.

Os que ficaram de fora gritavam para os de dentro e


alguns resolveram me contar histórias sobre a represa. A
primeira que um menino havia se afogado e a outra que um
menino havia morrido ao tentar tirar o tampão que tem no
meio da represa e ficou preso, lugar este que ninguém
ousou chegar. Retornamos e todas as crianças insistiam
muito para fazer a mesma coisa no dia seguinte. Elas
parecem gostar especialmente de atividades com água,
escutei algumas vezes relatos sobre os passeios na praia e
num tal de “Rala Bunda” no Parque da Cidade.

01 de outubro de 2003
13:30-17:00 h
Dois meses se passaram desde que cheguei à
Rocinha, neste período pude entrar em contato com
diversas áreas e entender as dinâmicas que regem o lugar.
181

ANEXOS
Ainda no mesmo período foi necessário reorganizar a rotina
do trabalho de campo por problemas internos a
comunidade, que está sob a ameaça de invasão e com
constantes conflitos entre moradores e policiais. Assim,
permanecemos mais tempo dentro do prédio do Curumim
para preservar a integridade das crianças.

Após este período voltamos a nos arriscar em


aventuras na comunidade, desta vez acontecendo algo
diferente. À equipe de cinco professores três novas
professoras se juntavam. Seguido o ritual cotidiano de
divisão das turmas, o professor responsável resolveu que
somente os de seis anos não sairiam:

[sic] Olha como o tio também é justo, esse é um passeio


perigoso, mas achamos que os de 7 e 8 anos estão
preparados, então nos vamos e quem quiser ficar na
quadra do Laboriaux pode.

A condição colocada é que todos teriam que se


comportar e então seguimos nós, na mesma rotina dos
passeios anteriores. Fui para a represa, e lá as mesmas
brincadeira, a diferença estava nas indumentárias, mais
apropriadas ao banho livre e ao fato das meninas terem
levado bolsinhas de praia com camisetas, pentes e coisa
deste tipo.

Ao final do banho demonstravam todo o cuidado com


a imagem, elas penteavam cabelos, se enfeitavam e
sacudiam suas roupas, que por mais simples recebiam todo
182

ANEXOS
o cuidado. Retornamos e quando chegamos ao campo de
futebol a partida não havia terminado, enquanto esperamos
sentados nas mesinhas de jogos que ficam ao lado do
campo as crianças ou assistiam ao jogo ou corriam.

Comecei a conversar amenidades com os professores,


quando eles fizeram a exclamação “acho que a tia gostou,
daqui ela não sai mais!”. Neste momento percebi que eles
me aceitavam no grupo, essa idéia se confirmou quando ao
retornamos ao prédio do Curumim eles me convidaram a
permanecer no local com eles após o lanche das crianças.

Então comecei a servir o lanche para os pequenos, me


dando conta que aquele era o momento mais importante da
brincadeira para a grande maioria, que funciona como uma
recompensa para quem cumpre seu papel de criança, o de
brincar e sonhar. E quando nos pusemos a lanchar foram
logo me convidado para fazer o monte de coisa na favela, ir
a um churrasco, conhecer um baile funk, um pagode, uma
feira, (...).

E em meio às risadas, o recreador responsável


perguntou o que de fato era meu trabalho, expliquei tudo
novamente, e com um sorriso como se isso fosse óbvio
concluiu “mas é só isso?”. Continuando, afirmou que havia
nascido ali, conhecia tudo, todas formas de brincar e que
faria uma lista para mim dos lugares “formais” de
brincadeiras como campos de futebol, parques e praças.
183

ANEXOS
Respondi dizendo que tudo bem, mas que gostaria de
conhecer os lugares. A resposta, uma pausa silenciosa e um
sorriso, e em seguida me convidaram para o passeio que
fariam com as crianças ao Parque da Cidade.

04 de outubro de 2003
09:30-20:00 h
E eis que chega o dia de conhecer o “rala bunda”.
Apareci na entrada da Rua 1 e todos surpresos me
cumprimentavam. O lugar parecia um verdadeiro mercado,
não pelo tamanho que é ínfimo, mas pelo aglomerado de
pessoas e atividades. Um vendedor de flores em frente a
uma birosca, onde fica um menino do tráfico olhando quem
entra e quem sai, um anotador do bicho, a construção de
uma igreja, uma banca de peixe, a farmácia, o descarregar
de mercadorias, enfim um alvoroço que perturba e deixa
confuso.

Enquanto esperávamos alguns turistas saíam em


suas roupas de safári de dentro da favela, e logo um dos
recreadores se virou dizendo:

[sic] Vieram tirar fotos dos bichos, somos animais em


exposição, não gosto dessa gente que acha que somos de
outro planeta.

Falava como quem quisesse afirmar que eram


verdades diferentes dentro da mesma realidade.
184

ANEXOS
Quando todos se reuniram, seguimos para o Parque
da Cidade cantando pela estrada da Gávea e depois pelos
becos e escadarias do setor 199 e pelo Muarama, até
atingirmos a Comunidade Parque da Cidade e enfim o
próprio Parque da Cidade. Enquanto caminhávamos entre
gritos, correrias batucadas naquela manhã de sábado, o
som produzido ia acordando os moradores das casas que se
abriam para os becos, e moradores e comerciantes ao longo
das vias principais chegavam até suas portam para
observarem o que se passava.

Assim que chegamos os professores apontaram o


parque e gritaram é de vocês, e então todas a crianças se
puseram a correr, uns pelos gramados, outros no
parquinho e a grande maioria em direção ao “rala bunda”,
adiantei-me e fui com este último grupo. Ao chegar lá
encontrei uma pequena queda d’água que escorria por um
afloramento de rocha, sobre a qual as crianças faziam de
escorregador. Passaram a manhã inteira naquela
brincadeira, adoram brincar com água e sempre que lhes é
dada à possibilidade de escolher o lugar das brincadeiras
estas são a “cachoeira”, o “rala bunda” ou praia.

Não fiquei muito tempo no “rala bunda”, desci e


sentei no gramado com os demais recreadores e enquanto
conversávamos amenidades observava as crianças que
brincavam no parque. O mais interessante é que ali
185

ANEXOS
estavam o que elas chamam de “crianças ricas do asfalto” e
todas estas, sem exceção, acompanhada de seus parentes
que empurravam balanços, esperavam no escorrega ou as
guardavam de alguma forma.

Minha atenção particular se voltou para o balanço e


notei que as crianças da Rocinha permaneciam em torno do
brinquedo, não ousavam invadir o espaço que estava sendo
usado pelas crianças do asfalto. De repente um balanço
ficou vago e um menino da Rocinha correu para ele
eufórico, no balanço ao lado um pai empurrava seu filho e
não tardou uns segundos para que este pai tirasse seu filho
dali indo ao encontro de uma mãe que também brincava
distante.

Não posso deixar de colocar que nesse momento, ali


sentada entre aquelas pessoas, pela primeira vez senti um
mal estar, não por elas ou pelas crianças. Eu estava dentro
do mundo deles, vivendo a realidade deles e naquele
instante olhando alguém do meu mundo carregado de
preconceito e que de certa forma irá influir para que aquela
criança que está sobre sua responsabilidade perpetue tal
sentimento. Foi uma expressão de desrespeito e arrogância
em relação ao outro colocado através daquele único objeto
que faz parte dos sonhos de duas realidades distintas.

Tentando me livrar de tudo aquilo busquei me ater à


conversa que se iniciava entre as recreadoras que
186

ANEXOS
indagavam para outro recreador, apontando para uma área
da Rocinha, a quadra do Terreirão da Rua 1, se era verdade
que a “área de descanso” ficava naquele lugar. Demorei um
pouco para entender o significado e, continuaram dizendo
que lá somente com autorização.

O que importa aqui é que descobri que existem outras


áreas de recreação, principalmente quadras, tidas por eles
como formais na comunidade, e que o campo do Laboriaux
não era a única deste tipo. Já havia escutado várias vezes o
termo “a quadra lá de cima”, mas sempre que tocava no
assunto desviavam a conversa, então resolvi deixar.

Entendi que naquela comunidade existem várias


formas de lazer no espaço aberto bem como várias áreas
formalizadas para tal, construídas com investimentos
internos através da associação de moradores ou dos
comerciantes, e esta quadra de esporte eram uma delas.
Segundo relato dos recreadores a quadra mais equipada,
com vestiários, bar, salão de jogos, arquibancada, é
também o lugar mais proibido para os estranhos àquele
lugar. Fiquei curiosa e pedi para conhecer tal lugar, mas a
resposta foi o silêncio e uma mudança repentina de
assunto.

Assim terminamos o passeio no Parque da Cidade e


fui convidada a conhecer a comunidade neste sábado.
Enquanto andava com uma das recreadoras pelos becos e
187

ANEXOS
escadarias, olhava o intenso movimento de pessoas que não
se vê durante a semana, muitos conversando em suas
portas, crianças correndo pelos becos, jogando bola.
Andamos muito até que atingimos uma parte baixa
denominada de Rua 2, onde fica a casa desta recreadora. Lá
seus dois filhos que durante a semana ficam no Colégio
Militar estavam reunidos com uns amigos e combinavam
um jogo e bola.

Seguimos pela localidade da Rua 3, sempre por


caminhos tortuosos e íngremes com a mesma agitação de
antes. Voltei a encontrar o restante dos recreadores que se
concentravam num tradicional churrasco na laje. Era então
cair da tarde e a vista que se tinha era de um lugar agitado
não só pelo movimento das pessoas, mas também pelo som
das músicas, do vento que soprava do mar e das luzes que
se acendiam e apagavam naquele anoitecer.

E em meio a tudo isso, naquela laje, com música,


pessoas conversando, dançando, um cachorro latindo
amarrado no lado da caixa d’água e cercado por crianças
que lhe agitavam e atiravam pedaços de carne, fui
apresentada ao dono da casa, Presidente da Casa de
Cultura da Rocinha, que indagou sobre a minha presença e
apos escutar atentamente respondeu como quem elucidasse
o que é e o que foi o brincar na Rocinha.
188

ANEXOS
[sic] Na minha época pegávamos um pedaço de pau para
fazer um carrinho de rolimã e descer ladeiras, hoje ela
pega este pedaço de pau e simula uma arma.

Assim ele relatou a idéia de se fazer na comunidade


um projeto sobre a memória do brincar, neste os moradores
da Rocinha com mais de 40 anos resgatariam as
brincadeiras de sua época e as ensinariam numa espécie de
brinquedoteca as crianças de hoje. Continuou dizendo que
estas crianças não sabem mais dispor do que têm ao seu
alcance relatando ainda o problema do brinquedo
industrializado que é um sonho que ela não conseguem
realizar, assim o projeto seria uma forma de mostrar para
elas que podem se valer do que têm no seu ambiente.

13 de outubro de 2003
13:30-17:00 h
Hoje é um dia de atividades atípico. É semana do dia
das crianças e somente as turmas de seis anos saíram para
os passeios. Esperei todos se organizarem e em seguida saí
com o grupo de seis anos para o parquinho da Rua 1.

Até então não tinha andado ao longo deste setor, meu


limite de acesso se restringia ao prédio do Curumim.
Seguimos por uma longa via estreita passando por uma
pracinha e continuamos até o parquinho, um lugar cercado
por alambrado com brinquedos bem tratados e dois
banheiros sendo um deles adaptado para crianças. Este é
um dos espaços construídos com investimentos internos.
189

ANEXOS
Entramos e deixamos as crianças brigarem por seus
espaços nos brinquedos. Enquanto isto um dos recreadores
chamou a atenção para como devemos tratar as crianças
apontando para um casal de cinco e seis anos. Estas eram
órfãs de pai e mãe e adotadas pelo poder interno, que
financiava estudos, vestimenta, saúde, mas sob custódia de
uma família da comunidade. Foi então que alguns “meninos
do lugar” passaram e ficaram um pouco olhando as
crianças.

Uma das recreadoras perguntou se havia algum


grupo na quadra da Rua 1, as outras responderam que não,
pois já havia ido até lá, e o lugar estava ocupado.
Explicaram-me que nesta quadra somente os recreadores
(os tios) vão com as crianças, é um lugar de acesso restrito
e depende de “permissão” para ser usado pelos moradores,
e estranhos, nem pensar.

Retornamos e após o jantar das crianças os


recreadores que coordenam o grupo conversaram comigo
sobre meu trabalho, sondado que tipo de ajuda eles
poderiam oferecer. Assim um deles puxou um papel e
começou a rascunhar áreas onde as crianças brincam na
comunidade, entre quadras informais, formais e
principalmente de escolas e CIEP’s incluindo as quadras da
Escola de Samba.
190

ANEXOS
Enquanto ia escrevendo a lista, apontava os lugares
para mim tentando situá-los no espaço e quando ia
chegando ao final parou num instante falando:

[sic] Mas o lugar mesmo onde se brinca aqui são os becos


e ruas.

Continuou dizendo que poderia conhecer os lugares,


mas tirar fotos dependeria. Seria mais fácil deixar uma
máquina com um deles para que fizesse as fotos de alguns
lugares mais proibidos.

Até que passasse a semana do dia das crianças não


pude ter muito contato com as crianças do Curumim.
Organizei com um dos orientadores um passeio da Rua 1
em Direção a Rua 2, na parte mais baixa e central da
Rocinha.

14 de outubro de 2003
13:30-17:00 h
Poucas coisas agora soam como novidades. Já
compreendo a dinâmica do lugar e de certa forma estou
inserida nela. Brincar aqui me parece como brincar no
interior, quando se vai para mata, ou ainda, como brincar
no subúrbio quando as crianças correm pelas ruas, becos
de pique, pulam corda, fazem rodinhas de bate-papo e
principalmente quando jogam bolas nos campos de lama.
191

ANEXOS
Brincadeiras individualizadas do “asfalto” como vídeo
games ou computadores, aqui ocorrem em casas especiais
onde grupos de meninos se amontoam em volta das
maquinas. Outra característica marcante esta no fato dos
meninos se aventurarem por lugares mais distantes, estão
sempre na rua e cada vez mais longe, já as meninas sempre
em casa ou nas redondezas, nos seus becos, o que ocorre
também com as crianças menores de seis anos.

Essa relação de posse com o beco é comum nas falas


das crianças e dos adultos que se referem aos lugares
sempre como o ‘beco da Dona Fulana’ ou o ‘beco da Birosca
Tal’. A exemplo disto relembro a conversa com Camila, uma
menina de 4 anos que enquanto relatava o que gostava de
fazer, disse:

[sic] Gosto de brincar de boneca, quando minha mãe


deixa, eu brinco no meu beco.

Neste momento eu estava no setor conhecido como


Cachopa. Pela primeira vez estou na outra extremidade da
Rocinha. A Cachopa e um setor que fica acima da estrada
da Gávea e no lado oposto a Rua 1, o lugar é muito
íngreme, quase não se nota becos, as escadarias são mais
comuns, mas também referidas como becos.

Andei pouco pelo lugar, somente até a Curva do ‘S’ na


Estrada da Gávea. No trajeto não notei nenhuma
brincadeira ativa, não havia crianças na rua. Seguimos
192

ANEXOS
então pela Via Ápia, este sim um lugar de movimento, o
centro comercial da Rocinha com várias lojas e bares. Nesta
nota-se crianças que vão de um lado para outro, sempre
meninos, que correm ou que nem sempre estão brincando,
pois pedem coisas nos bares, meninos pedintes dentro da
favela.

21 de outubro de 2003
09:30-13:00 h
Mais adaptada ao lugar, já sou tratada sem reservas,
alguns até dizem que pareço alguém de lá. Isto resultou
numa vontade coletiva de que me mudasse para a
comunidade e também na minha permanência nesta após
as vinte horas.

Mas, tentando me ater às crianças, notei enquanto


caminhava para o Curumim, um grupo de meninas que
brincava de cantigas, não identifiquei bem a música, mas
era algo tipo ‘adoleta’. Assim que entrei no prédio outras
crianças faziam o mesmo, parecia uma febre. Aproximei-me
e notei que a música sugeria que tipo de namorado você vai
ter, por isso somente meninas brincavam, a letra dizia algo
mais ou menos assim:

[sic] Com quem? Com quem? Com quem será que [nome]
vai casar, louro, moreno, careca, cabeludo, rei, ladrão,
polícia, capitão? Estrelinha um, estrelinha dois, estrelinha
três do meu coração.
193

ANEXOS
Passamos o turno da manhã dentro do prédio, alguns
corriam, outros dançavam, as meninas faziam suas
rodinhas e foi quando surgiu outra brincadeira, desta vez
com a interação de meninos, meninas e adultos. Uma
brincadeira também com música.

[sic]...não sabe, não sabe, vai ter que aprender, orelha de


burro, cabeça de ET.

A brincadeira produzia uma imensa algazarra, todos


gritavam ao mesmo tempo e corriam de um lado para outro
sem nenhuma ordem preestabelecida onde você poderia
entrar e sair da brincadeira quando bem entendesse.

28 de outubro de 2003
14:00/22:00 h
Hoje foi um dia especial, além de passar a tarde com
as crianças fiquei na comunidade até a noite, quando a
rotina do lugar muda e as pessoas que circulam nele
parecem tomar outra forma, tanto pelas pessoas de fora
como os próprios moradores.

A tarde se passou tranqüila, hoje conheci a tão falada


quadra do Terreirão da Rua 1, que é realmente um lugar
superestruturado. A quadra possui arquibancada,
vestiários, bar, uma espécie de salão de jogos com mesas de
sinuca e terraço panorâmico, de onde se tem uma vista
privilegiada em direção a Gávea com o Colégio Americano e
a Mata Atlântica ao fundo em contraste com os barracos de
194

ANEXOS
madeira e casebres no sopé da quadra. O lugar é fresco, um
vento sopra forte passando pelo rosto, misturado ao
barulho das árvores acima e o som de pagode quase
ininterrupto que se capta a cada beco.

Algumas aproximações aconteceram e nestas pude


perceber a ordem do lugar, a necessidade de ser de
confiança para se penetrar em certos lugares e de ser uma
pessoa conhecida no sentido de se saber quem é cada um.
Como já mencionado várias vezes, esta quadra é um lugar
proibido, assim que chegamos, ela estava ocupada pelo que
eles denominam de “donos do lugar”, o recreador que estava
responsável pelo grupo foi ao seu encontro, sempre falando
em voz alta e cordial, “aí, podemos ficar com as crianças aí”.

A resposta foi positiva de pronto e a quadra foi então


desocupada. Enquanto algumas crianças corriam em
direção à quadra, outras iam para a mata ou para a
arquibancada. Um dos “meninos do lugar” iniciou brincar
com as crianças numa relação de extremo respeito. Neste
momento o recreador se aproximou de mim e pediu para
que não tirasse fotos, se eu quisesse ele poderia fazer isto
depois.

Respeitei e fui brincar de pular corda com as crianças


no canto da quadra. O mais interessante e que esta
brincadeira sempre me pareceu mais atrativa para as
meninas, mas ali era disputado por igual o espaço da
195

ANEXOS
brincadeira. Colocaram-me batendo a corda e cantando,
volta e meia uma queria furar a fila o que resultava na
parada da brincadeira para a reorganização da ordem que
era imposta pelo “dono” dela.

Esse dono da brincadeira era sempre o que pulava


melhor e demorava mais a sair, demonstrando um certo
domínio e a voz ativa no espaço. Enquanto tudo isso se
desenrolava um dos meninos do lugar se aproximou
perguntando meu nome e ficou por ali dando palpite na
brincadeira, sempre dizendo que estava batendo a corda
muito rápido.

Sentindo-me observada tentei sair da situação indo a


encontro do grupo de meninos que corria pela
arquibancada. Neste momento também discutiam por conta
da brincadeira, algo tipo um pique cheio de regras, sentei
na soleira do salão de jogos e tentei dialogar com as
crianças, diga-se de passagem, tarefa quase impossível com
o grupo de seis anos de idade.

Os recreadores referem-se a eles como a turma dos


perturbados. Foi então que outro “cara” se aproximou
dizendo:

[sic] É, vida de professor não e fácil não, vocês correm e


gritam o tempo todo. Eu nunca gostei de estudar, você
estudou né (...) eu fiz só até a terceira série.
196

ANEXOS
Desta vez o recreador se aproximou intervindo na
conversa que se iniciava chamando a atenção para o que as
crianças discutiam. Foi quando descobri que os meninos
brincavam de “Power Ranges” e a briga começou quando
estavam no meio de uma batalha e um deles matou alguém
que não queria sair da brincadeira.

Permanecemos ali por mais alguns minutos e logo


retornamos. Assim que todas as crianças partiram fomos
para a creche, um prédio que fica mais abaixo, para
organizar o churrasco de aniversário de um dos
recreadores. Quando a festa começou passava das dezoito
horas, na rua algumas crianças retornavam dos colégios
muitas das vezes sozinhos, raramente com suas mães que
iam parando pelo meio do caminho para conversarem.

A noite caiu e o cenário passou a ser outro, como a


festa era com os portões abertos, várias crianças da
redondeza entravam e saiam correndo o tempo todo, alguns
se aproximavam e logo iam, e outros se aproximavam e
permaneciam no lado de fora. Ao longo da rua alguns
“meninos do lugar” montavam guarda em pontos com vistas
estratégicas complemente armados. Ao redor destes,
crianças brincavam, sempre correndo.

As crianças pareciam indiferentes àquela situação, a


interação destas com esta realidade em tensão, onde a
qualquer momento uma guerra pode acontecer, parece ser
197

ANEXOS
de aceitação e até de admiração onde os meninos maiores
parecem ter pleno conhecimento do que se passa chegando
a conhecer tipo de armas formas de disparos e coisas deste
tipo. Uma impressão que o lugar só descortina com o cair
da noite assumindo sua verdadeira realidade.

04 de novembro de 2003
13:00/19:00 h
Dia normal no Curumim. Fiquei um pouco no prédio
brincando com as crianças, foi quando de repente
reencontrei LP que de pronto pulou no meu colo.
Permanecemos no peitoril da janela e ele apontou para o
final da Rua 1 dizendo que morava lá no final com a mãe o
pai e mais os irmãos concluindo que eram dez, mas que
dois morreram.

Sorri dizendo que ele tinha várias pessoas para


brincar e ele logo foi esclarecendo que eram todos mais
velhos.

[sic] E tudo mais velho tia, tem um bebê que eu tomo


conta de vez em quando, é que a minha se casou mais de
uma vez.

No meio da conversa ele simulou um estilingue com


um balão de gás, então um menino se aproximou e eles
explicaram que fazem estilingue com aquilo amarrado ao
gargalo de uma garrafa PET para matarem barata no beco.
198

ANEXOS
Neste momento eles se referiam novamente com um sentido
de posse ao lugar dizendo sempre “meu beco”.

Ficamos nisso por mais alguns minutos e logo saí


pela comunidade acompanhada por dois recreadores em
direção ao setor Roupa Suja. Esta área é uma das mais
antigas e faz margem com a auto-estrada Lagoa-Barra no
alto da saída do túnel Zuzu Angel. Seguimos por caminhos
já conhecidos da Rua 1, Cezário e Rua 2.

Quando atingimos metade do caminho sentamos um


pouco na mureta de uma canaleta e enquanto
descansávamos um menino de oito anos passou de
velocípede de um lado para outro. Um dos recreadores foi
logo dizendo que aquele menino era muito danado, ficava o
tempo todo na rua e quebrava tudo, e que ali era assim, por
não ter espaços formais de lazer as crianças ficavam o
tempo todo nos becos e lajes. Neste momento ele apontou
para uma menina que andava de bicicleta na laje falando:

[sic] Esta vendo só lá, dentre todas áreas de lazer da


comunidade os becos e as lajes são as mais utilizadas.
Porque a verdade, verdade mesmo, aqui nessa área que
nos estamos [Cezário] não tem área de lazer, onde as
crianças vão brincar? Nos becos e nas lajes (...), e brincam
de tudo, casinha, boneca, patinete, bicicleta, soltam pipa,
jogam bola de gude e fazem de tudo um pouco, ate carniça
cega. Não são áreas formais, mas são as áreas mais
utilizadas, e vou te contar uma curiosidade, sabe porque o
morador aqui vende a casa e fica com a laje? Porque ele
vai ter sempre um espaço para construir ou as crianças
brincarem.
199

ANEXOS
Nisto já caminhávamos pela Roupa Suja uma vez por
outra topando com criança brincando sempre de bola ou
pique esconde, e quando chegamos na altura da auto-
estrada Lagoa-Barra nos deparamos com o que eles
chamam de Praça da Roupa Suja, um lugar constantemente
utilizado não só por crianças.

Eles explicaram que aquela quadra tinha uns dez


anos com aquele aspecto formal, antes era uma área de
lama que servia de campo assim mesmo. Foi quando, no
entendimento deles, o governo tentando agradar resolve
formalizar somente aquela faixa, numas das franjas da
comunidade.

[sic] Mas na verdade eles não fazem nada até o fim, a gente
que não arrume dinheiro aqui dentro mesmo pra terminar
não.

E segundo o relato de moradores, assim foi com as


demais áreas “formalizadas” para o lazer dentro da Rocinha,
como a praça do skate, a quadra da Cachopinha, a quadra
do Terreirão da Rua 1 e as pracinhas da Rua 1. Lugares que
de uma forma ou de outra tiveram sua concretização
diretamente ligada a algum tipo de financiamento interno,
quer seja, através do tráfico de drogas, comerciantes, ou via
uma das três associações de moradores.

A Rocinha se comporta com uma dinâmica própria,


onde sua estrutura interna supre as necessidades mais
200

ANEXOS
imediatas daquela população, expressada nas palavras de
um dos recreadores da seguinte forma:

[sic] A Rocinha é uma cidade, a verdade é essa, eu tenho


um pensamento comigo. Se hoje cercassem a Rocinha com
grade e colocassem um portãozinho lá embaixo e outro lá
em cima, a Rocinha viveria só com as próprias pernas. Não
tem uma liderança forte, mas tem um comércio forte. Eu
me lembro que eu era pequeno, não existia Vila Verde, a
Cachopa estava crescendo, a Cachopinha nem em sonho e
ela foi crescendo e crescendo. Pra você ter idéia, é dia de
Quinta ou Sexta, não sei bem ao certo, cinco horas da
manha vem um ônibus direto do Ceará e despeja aqui. E
esse povo do cabeção trabalha e eles são maioria aqui, nos
somos só 20%.(MP)

Assim a cidade Rocinha se apresenta no espaço, com


a lógica cultural de sua população majoritariamente
nordestina, organizando não só o espaço mais todas as
normas de relações entre indivíduos, adultos e crianças.
Extremamente receptivos, acolheram-me em seus
cotidianos, e até que o ano de 2003 termine continuarei
indo à comunidade duas vezes por semana, mas agora
poucos acontecimentos soam como novidade na rotina de
um lugar que “já é”65 de domínio.

65 Gíria adotada pela juventude, geralmente de comunidades carentes, que


designa algo que está finalizado, compreendido, acordado, ou ainda algo bom e
divertido.
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ANEXOS

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