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Aprovada por:
Rio de Janeiro
2004
Capa: Vista da Rocinha
Foto: Glauci Coelho - setembro de 2003
Bibliografia
RESUMO
RÉSUMÉE
Ce travail se développe autour des interactions écho-auto-
organisées entre individu et milieu environnant et adopte les
espaces libres de la ‘favela’ comme des endroits passibles
d´appropriations par des jeux d´enfants. Nous présentons comme
étude de cas la ‘favela Rocinha’, située dans la colline ‘Dois
Irmãos’, entre les quartiers ‘São Conrado’ et ‘Gávea’, dans la ville
de Rio de Janeiro.
RÉSUMÉE
ABSTRACT
This work is developed considering the eco-auto-organising
interactions individual-environment and adopts the free spaces of
“favelas” (shantytown) as appropriative places by children plays.
We present as study-case the one of “favela” “Rocinha”, situated
on the slope of the “Morro Dois Irmãos” among “São Conrado”
and “Gávea” districts within Rio de Janeiro
ABSTRACT
AGRADECIMENTOS
Chegou a parte mais difícil do trabalho: não esquecer de
agradecer a todos que contribuíram direta ou indiretamente para a
construção desta pesquisa. Antes de fazer referência a qualquer pessoa,
lembro que chegar até aqui não foi fácil, um percurso feito entre
encontros e desencontros que contribuíram para o meu crescimento
pessoal, transformando o meu entendimento a respeito do outro e as
ricas possibilidades que este entendimento pode nos oferecer.
Assim gostaria de agradecer primeiramente a minha orientadora
Cristiane Rose de Siqueira Duarte, por ter acreditado nas
potencialidades deste tema, agindo objetivamente e de forma segura
para que a pesquisa se delineasse.
No mesmo sentido agradeço a co-orientação de Vera
Vasconcellos que, sempre desejosa de novos desafios acadêmicos,
entrou no campo da arquitetura aprendendo junto a delinear os
caminhos da interdisciplinaridade entre arquitetura e psicologia.
As minhas amigas e companheiras de mestrado Alessandra
Ghilardi e Ethel Pinheiro agradeço os geniais “palpites” incorporados ao
longo do trabalho.
A amiga e arquiteta Luísa Beatriz dos Santos que no dia-a-dia
ouviu-me pacientemente e com zelo, trouxe-me a revisora de texto, sua
mãe e professora de português Ivone Diniz Barbosa.
Outros igualmente contribuíram e, em especial, devo a eles o
meu contato com a Rocinha e o cotidiano de sua gente: o Grupo de
Estudos e Ação sobre o Menor da PUC/RJ, através da professora
Marina Lamette Moreira e da pesquisadora Maria Luiza Silveira e
Alburqueque (in memória) e a Dona Elisa e sua equipe de recreadores e
crianças do Centro Comunitário da Rua 1, que se tornaram grandes
amigos abrindo os caminhos para o conhecimento do lugar.
Agradeço principalmente aos meus pais Roberto e Miriam, que
com paciência e carinho souberam conduzir a mim e a meu irmão
Frederico pelos caminhos da vida, em momentos de realização e
conhecimento, deixando claro que o aprendizado nunca termina.
Enfim, agradeço a Deus que por meios secretos atuou para que
todos estes encontros se realizassem, possibilitando a materialização
deste trabalho.
A todos,
muito obrigada.
viii
AGRADECIMENTOS
SUMÁRIO
RESUMO v
RÉSUMÉE vi
ABSTRACT vii
AGRADECIMENTOS viii
APRESENTAÇÃO 1
PARTE I – O ESPAÇO VIVIDO ROCINHA 12
Capítulo I – IMPRESSÕES NO TEMPO 13
1.1. “Quando inabitadas eras...” 15
1.2. “Agora, começou a Rocinha” 19
1.3. “Hoje vemos em ti...” 29
1.4. Cenas dos últimos capítulos 31
Capítulo II – LUGAR E COTIDIANO 42
2.1. A opção pela Complexidade 43
2.2. A estrutura intramuros 49
2.3. Tensões entre casa e rua na favela da Rocinha 62
PARTE II - INTERAÇÕES NO ESPAÇO 68
Capítulo III - O ESPAÇO VIVIDO:
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA 69
3.1. O Complexo Favela: a imagem do espaço vivido 70
3.2. Tensões do espaço vivido 76
3.3. O Espaço livre de mediação: a casa e a rua entre o
público e o privado na favela 81
ix
SUMÁRIO
Capítulo IV – TERRITÓRIO E INFÂNCIA:
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS 87
4.1. As interações com o território-favela na constituição
das identidades 88
4.2. Topofilia: a afetividade com o espaço vivido 94
4.3. Construindo identidade no brincar 97
4.4. Os territórios da infância na Rocinha 104
PARTE III – BRINCAR NA FAVELA DA ROCINHA 109
Capítulo V – OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIÇÃO NO
BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA 110
5.1. O Brincar na favela da Rocinha 111
5.1.1. a influência do poder paralelo no brincar 116
5.2. A laje, o beco e tudo mais dentro da Rocinha 118
5.3. Laboriaux: a floresta no limite com a favela 136
5.4. A descoberta da praia 140
Capitulo VI – INTERAÇÕES CRIANÇA-FAVELA
O ESPAÇO VIVIDO ECO-AUTO-ORGANIZÁVEL 147
BIBLIOGRAFIA CITADA 155
ANEXO 1
Entrevista 162
ANEXO 2
Diário de Campo 166
x
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
O tema desta pesquisa remete-se aos espaços livres
de favelas não urbanizadas, apropriadas pelas crianças em
brincadeiras na cidade do Rio de Janeiro, abordada através
das interações indivíduo[criança]-meio[favela]. Nosso
interesse é tratar das relações afetivas que a criança da
favela estabelece com seu espaço vivido, experimentado, no
ato da brincadeira, admitindo que este processo traduz o
grau de enraizamento da criança com o lugar, localizando-a
no espaço e descrevendo o lugar a que ela pertence.
APRESENTAÇÃO
simultaneamente, à medida que a criança identifica, através
das brincadeiras, o cotidiano a que pertence.
O Objetivo
O objetivo central é abordar as interações indivíduo-
meio, nos níveis contraditórios de significações espaciais na
relação da criança com seus lugares de brincadeira na
favela.
3
APRESENTAÇÃO
Acreditamos ser de extrema importância o olhar sobre
o lugar da criança na cidade, por representar parte do
suporte ao seu desenvolvimento afetivo, físico e social, uma
vez que o espaço se configura como elemento material1, que
irá estimular a percepção e a curiosidade infantil.
O Objeto
No intento de empreender o tema transformando o
empirismo num esboço científico, concluímos ser a favela
da Rocinha, na encosta do Morro Dois Irmãos, após várias
incursões em favelas cariocas, o lugar potencial para
nossas análises.
APRESENTAÇÃO
A favela começou a se estruturar ainda nos anos de
1920, no sopé do Morro Dois Irmãos, crescendo em direção
à então reserva Florestal da Tijuca, através da estrada da
Gávea. A população que originou o lugar e que ainda
representa a sua maioria é oriunda do nordeste do Brasil.
APRESENTAÇÃO
Machado no Alto de Boa Vista, que descartamos por
representar uma área urbanizada pelo Programa Favela-
Bairro, tendo seus problemas de infraestrutura
minimizados, integrando parcialmente a favela à malha
formal da cidade, além de não observar mais os conflitos
espaciais entre público e privado das áreas informais. A
favela Parque Primavera no Complexo de Manguinhos,
apesar de ser uma área potencial, teve nosso acesso
contínuo à favela dificultado e controlado pelo “poder local”
do tráfico de drogas, convertendo-se em área de risco.
APRESENTAÇÃO
através da brincadeira da criança, a percepção do espaço
em que se insere, relacionando-o a sua identidade por meio
dos significados e das relações afetivas com o lugar.
O Método
Neste contexto, o paradigma da complexidade embasa
o método para entender e decifrar essa teia de inter-
relações entre indivíduo[criança] e meio[favela] na
apropriação brincar, por ser um pensamento que permite
reunir “contextualizar, globalizar, mas ao mesmo tempo
reconhecer o singular, o individual, o concreto”. (Morin, 2000:
213).
APRESENTAÇÃO
da racionalidade que se fundamentou nos pilares da certeza”
(Morin, 2000: 95), que simplifica, reduz e separa o objeto do
seu observador e do seu meio ambiente.
APRESENTAÇÃO
espaços livres, constituindo identidade, localizando seu
pertencimento na favela, através da experiência afetiva com
o lugar.
APRESENTAÇÃO
Delimitado o espaço de abordagem, o vivido no
conflito do público com o privado, delimitamos que este
enquanto espaço material, e território denominado nas
brincadeiras infantis, seria fundamental para a construção
da identidade criança-favela em uma interação ecológica, e
que novamente parte dos princípios da complexidade de
Morin (2000, 2002) à noção de território e lugar nas
relações afetivas de Fischer (1994) e Tuan (1980, 1983)
consecutivamente.
O Escopo
Tomando todas as considerações iniciais expostas
nesta apresentação, estruturamos esta pesquisa em três
partes:
APRESENTAÇÃO
historicamente como os espaços da favela da Rocinha se
estruturaram, chegando a ter a imagem dos dias atuais,
através das relações políticas e pessoais entre morro e
asfalto.
APRESENTAÇÃO
IMPRESSÕES NO TEMPO
I
Rocinha, quando tu começou?
difícil, não sei...
pergunte aos antigos,
Ó, morador!
Poxa, parece banal.
A história desse lugar
seria sensacional.
Se tu tens quarenta anos,
isso procurarei saber.
Começaste, suponho eu,
muito antes de meu pai nascer.
Ah! não parece nada,
os anos passam e não se vê.
Sei que futuramente
falarão muito de você...
Rocinha, quando tu começou?
Há muito tempo,
quando inabitadas eras,
aqui alguém se instalou.
Hoje vemos em ti
algo que jamais se imaginou.
(Manoel Quintino In Segala, 1983: 29).
IMPRESSÕES NO TEMPO
Apesar de não ser o centro desta pesquisa, no
transcorrer do trabalho de campo, à medida que íamos nos
interando da estrutura organizacional do espaço e seu
tempo, sentimos necessidade de resgatar de forma breve o
que seria a “Rocinha histórica”, para melhor entender os
porquês dos sentimentos de enraizamento e intimidade dos
moradores com algumas de suas áreas, tornando mais
legível como o espaço se organizou em seu cotidiano,
apreendendo o que ela realmente é, enquanto espaço vivido
nos dias atuais.
IMPRESSÕES NO TEMPO
1.1. “Quando inabitadas eras...”
A favela da Rocinha conformava-se por entre o Morro
dos Dois Irmãos em direção à Estrada da Gávea, que não
passava de um caminho de terra. Esse momento era então
os anos iniciais da década de 1920. Alguns relatos fazem
referências à origem de seu nome que, segundo Segala
(1991: 71), tem como importantes duas versões que podem
ser sintetizadas como relatos míticos principais. A primeira
é contada por Ismael Elias da Silva e a segunda por Ivan
Martins, ambas destacadas do Livro “Varal de Lembranças”
de Lygia Segala (1983). A primeira versão:
IMPRESSÕES NO TEMPO
Segundo Segala (1991: 73) a primeira versão é mais
reproduzida pelos moradores, caracterizando esta idéia de
Seu José Pia como “um sistema narrativo fechado, mítico”
que passa para a história “enquanto um sistema aberto de
interpretações”2.
2 A autora Lygia Segala (1991: 73) em nota de rodapé, justifica que estes
aspectos que costuram a história da Rocinha estão baseados “na abordagem de
Lévi-Strauss (1981) sobre o caráter aberto da história, assegurado pelas
inumeráveis maneiras de compor e recompor as células mitológicas ou células
explicativas originalmente mitológicas”.
16
IMPRESSÕES NO TEMPO
subsistência e pouca atividade comercial”, já que o que
conhecemos hoje por Rocinha estruturou-se a partir de um
loteamento que caracterizava a região como área formal.
IMPRESSÕES NO TEMPO
implantações das casas eram esparsas, configurando
chácaras e roçados.
deste identificar que o arruamento não era previsto, portanto tal era ilegal.
(Segala, 1991: 87).
18
IMPRESSÕES NO TEMPO
Segundo a autora (1991), neste momento inicia-se
um processo de conflito de terras entre os donos, posseiros
e invasores, com a desvalorização das terras num processo
irreversível. Começa-se então efetivamente o “tempo dos
barracos”4 construídos da noite para o dia, mudando toda a
dinâmica das relações do lugar e abrindo espaço para
aquilo que os posseiros entenderiam como suas habitações
provisórias5 – os barracos6.
tempos: “o tempo de antes da vinda pra Rocinha”, “tempo dos barracos cobertos
com telha de papelão pichado”, “tempo dos políticos”, “o tempo das enchentes”,
“tempo do medo da remoção”, “tempo do mutirão”, “tempo de hoje em dia”
(Segala, 1983: 6-7).
5 Andrade (2002: 54) observa a dualidade que existia entre os proprietários de
IMPRESSÕES NO TEMPO
da cidade” (Segala, 1991: 90). Neste momento aparecem os
primeiros conflitos entre proprietários de lotes e invasores
que, segundo a autora (1991: 87), ora se amparam das leis
escritas do asfalto, ora no “jeitinho”, que passaria a
caracterizar a “lógica do morro”, calcado nas mediações
local nas negociações dos lotes.
IMPRESSÕES NO TEMPO
exemplo, da construção da capela da Rocinha inaugurada
em 1939”. (55).
IMPRESSÕES NO TEMPO
perdendo as eleições, a Rocinha não viu seu crescimento
desacelerado.
Isso tudo aqui era mato. Com o passar dos anos, veio o
Renato Caruso. Dizia que era dono, que tinha comprado
do Durão, um grande empreiteiro, dono de grandes terras.
Passou um ano, e uma época, o Caruso era candidato a
vereador e me chamou para trabalhar com ele. Na época
ele me autorizou a deixar fazer estes barracos todos aí, no
morro, a mando dele. Mas depois ele perdeu, porque não
pagou os impostos, perdeu pro Estado. (Segala, 1983: 66).
IMPRESSÕES NO TEMPO
Na Rocinha começa-se a desenhar relações de poder
mais complexas. Como observa Segala (1991: 119), estas
são marcadas pela passagem da coordenação da Fundação
Leão XIII para o Governo do Estado, com o intuito de
controlar as tensões entre a igreja e a administração
Lacerda e a criação em 1961 da UPMMR10.
IMPRESSÕES NO TEMPO
habitacionais em maior escala nos subúrbios da Central e
Leopoldina, que absorveriam as favelas da zona sul.
loteamento, pois este não estava conforme o Código de Obras que obrigava um
lote mínimo ter 12x30m. Tal iniciativa não afugentou os interessados e ao final
de quatro anos não havia mais lotes a serem vendidos (Segala, 1991: 132).
25
IMPRESSÕES NO TEMPO
dono, segregando áreas entre as categorias bairro e favela
(Segala, 1991: 132).
14 O nome “199” que denomina um dos setores da Rocinha tem origem por ser
esta área ocupada no que anteriormente era conhecido como o número 199 da
estrada da Gávea e que foi progressivamente tomado pelos moradores da favela.
Similar ocorre com a localidade conhecida como “Portão Vermelho”, cor do
portão de uma propriedade privada da estrada da Gávea e “Paula Brito”, nome
de uma das escolas municipais da Rocinha.
26
IMPRESSÕES NO TEMPO
barracos, considerada na época a segunda maior favela da
Guanabara, perdendo para a favela do Jacarezinho.
IMPRESSÕES NO TEMPO
Contudo o Programa Rocinha implantou vários
serviços, dentre eles um conjunto habitacional que daria
forma ao já ocupado setor do Laboriaux, com casas
construídas para desabrigados da área do Valão. O novo
bairro tinha rua calçada, rede de esgotos, água encanada e
energia elétrica. Destacam-se também intervenções de
contenções de encostas e melhorias no Largo dos
Boiadeiros, consolidando-o como um ponto de referência
comercial.
IMPRESSÕES NO TEMPO
Inicia-se a década de 1990 que delineia a Rocinha dos
dias atuais. Um espaço que absorve cotidianamente uma
população carente de moradia, comportando nas suas
novas redes de relação de poder, os conflitos entre morro e
asfalto, através da privatização e hierarquização dos seus
espaços aquartelados pelo crime organizado, do qual
trataremos no capítulo II. Por agora nos deteremos aos
aspectos históricos e sócio-econômicos que estruturam seu
espaço delimitando-o como bairro.
que mora na favela, por entender historicamente que estes espaços de ocupação
informais são ambientes sujos ou o lugar propício ao desenvolvimento da
malandragem e qualquer tipo de atividade escusa.
29
IMPRESSÕES NO TEMPO
questões sociais foram consideradas como umas das
principais formas de exclusão, por isto tomadas como ponto
inicial deste programa de urbanização que, além de tudo,
pretendia a regularização fundiária.
IMPRESSÕES NO TEMPO
acelerado de crescimento, com migrantes ainda vindo do
nordeste a cada semana.
[sic] Pra você ter idéia, é dia de quinta ou sexta, não sei
bem ao certo, cinco horas da manhã vem um ônibus direto
do Ceará e despeja aqui. Esse povo do cabeção trabalha e
eles são maioria aqui, nos somos só 20%. (MP, Diário de
Campo: 10º Dia).
IMPRESSÕES NO TEMPO
desta margem populacional a maioria concentra-se entre as
idades de 15 a 29 anos, em segundo lugar estão as crianças
de 0 a 14 anos e as populações entre 45 e 60, que
representam a memória da Rocinha, juntas somam apenas
14,1% [Gráfico 1]. Observamos em campo que estas faixas
etárias se fazem mais permanentes na comunidade, os
adolescentes e adultos buscam trabalhos no próprio lugar
ou nas imediações, e na maioria das vezes, são eles de
caráter temporário.
60 ou mais ignorado
45-59 anos 4,2% 0,7% 0-14 anos
9,9% 28,5%
30-44 anos
24,4%
15-29 anos
32,2%
Fonte: Tabela 1.2.3. do Anuário Estatístico da Cidade do Rio de Janeiro 95-97/Versão CD-Rom.
IMPRESSÕES NO TEMPO
dentro da Rocinha foram as creches ou centros
comunitários [Fig. 1.4], que se iniciam por intermédio de
alguma mulher da comunidade que passa a tomar conta
das crianças de sua localidade enquanto as mães
trabalham. Denominadas de “crecheiras” ampliam seus
negócios buscando incentivos através de projetos dos
Governos Municipal e Estadual.
IMPRESSÕES NO TEMPO
próprios a este tipo de organização urbana, os becos e lajes,
para as suas brincadeiras. A respeito disso destacaremos,
mais explicitamente, quais são estes espaços e como são
estabelecidas neles as interações da brincadeira no Capítulo
V.
IMPRESSÕES NO TEMPO
do grupo criminoso rival, transformando a imagem
tranqüila da Rocinha com a presença de armas nos becos e
ruas, fato que passa a ser constante.
IMPRESSÕES NO TEMPO
comunidade, empresários e educadores em busca de formas
para se construir um trabalho em conjunto.
IMPRESSÕES NO TEMPO
Até que se conformasse tal cenário, diversas idéias
despontaram como solucionadoras dos problemas da
Rocinha, todas elas expressas em jornais cariocas indo da
retrograda idéia de remoção dos “pobres” das encostas
privilegiadas da cidade à transformação da cidade em
território federal [Figs. 1.6, 1.7, 1.8 & 1.9].
[Fig.1.6] [Fig.1.7]
IMPRESSÕES NO TEMPO
Secretaria de Meio Ambiente, com a implantação de cercas
de cabos de aço, denominadas de Eco-Limites25 na área da
Macega. Hoje se verifica que este limite foi ignorado pelos
moradores, estando a área além desta ocupada por
barracos de madeira [Fig. 1.11].
Eduardo Paes em 2001, e é constituído por trilhos interligados por cabos de aço
que impedem as favelas de crescerem sobre as áreas verdes. Inicialmente era
implantado somente nas áreas do Favela-Bairro. Hoje se encontra instalado em
mais de quarenta comunidades e continuam sendo usados como alternativa
pela Prefeitura.
26 Cooperativa de Costureiras da Rocinha.
IMPRESSÕES NO TEMPO
Fig. 1.10 Mapa do
Limite do Moro
sugerido pela
Prefeitura
publicado no jornal
O GLOBO.
IMPRESSÕES NO TEMPO
Fig. 1.11: Eco-
Limite
implantado pela
Prefeitura na
Macega em 2001.
Fonte: Rocinha
Notícias, Op. Cit.
(março/abril de 2004).
[Fig. 1.12]
40
IMPRESSÕES NO TEMPO
Apesar de oficialmente ser um bairro da cidade, a
Rocinha ainda apresenta características físicas de favela e
mais ainda, volta a representar o território do medo com a
presença da violência do tráfico de drogas, mas pretende
através dos seus meios sociais, culturais e comerciais de
organização superar este estigma, configurando-se como
uma mini cidade onde é possível morar, estudar, trabalhar
e praticar o lazer, cobrindo desta forma, ainda que de
maneira precária, as necessidades básicas de sua
população que se organiza no dia-a-dia de um espaço com
vida própria.
41
IMPRESSÕES NO TEMPO
LUGAR E COTIDIANO
II
A Rocinha é uma cidade, a verdade é essa, eu tenho um
pensamento comigo. Se hoje cercassem a Rocinha com
grade e colocassem um portãozinho lá embaixo e outro lá
em cima, a Rocinha viveria só com as próprias pernas (...).
Eu me lembro que eu era pequeno, não existia Vila Verde,
a Cachopa estava crescendo, a Cachopinha nem em sonho
e ela foi crescendo e crescendo. (MP, Diário de Campo:
04/11/2003).
LUGAR E COTIDIANO
a chave para a leitura da sua realidade. Um lugar que
cresce nas suas relações internas entre indivíduo-espaço
consolidando-se como um lugar complexo, e que se exclui
do resto da cidade, ao suprir suas necessidades mínimas no
dia a dia. É assim um bairro que ainda conserva uma infra-
estrutura urbana precária com ocupações irregulares que a
marcam enquanto favela.
LUGAR E COTIDIANO
Neste sentido, as informações contidas nas diversas
disciplinas de interesse, tecem um conhecimento que, ao
mesmo tempo em que se ancoram nestas, preservam sua
singularidade exatamente pela concepção ampla e
complexa. Esta abordagem transcende “a ciência clássica
da racionalidade que se fundamentou nos pilares da certeza”
(Morin, 2000: 95) que simplifica, reduz e separa objeto do
seu observador e do seu meio-ambiente.
LUGAR E COTIDIANO
organização àquilo que ela organiza, a observação ao
observador, a concepção ao conceituador, o conhecimento
ao conhecedor. (...) Restituir as relações, as
interdependências, unindo a inseparabilidade na
separabilidade e vice-versa. (Morin, 2000: 134-135).
LUGAR E COTIDIANO
justamente na relação humana que envolve afetividade, por
isso, segundo Laplantine (2000) o modelo de objetividade da
ciência clássica que isola o objeto pesquisado e exclui o
observador, não pode dar conta nesta relação de pesquisa.
[sic] “acho que a tia gostou, daqui ela não sai mais!”
(Diário de Campo: 01/10/2003).
LUGAR E COTIDIANO
convidados a fazer parte da rotina do lugar sem reservas,
através de um primeiro convite a permanecer e jantar com
eles após o lanche das crianças no prédio do Curumim
localizado na Rua 1. Neste instante a pesquisa de campo
ficou mais fácil, com o acesso às áreas sendo aos poucos
permitidos, revelando a realidade da comunidade.
LUGAR E COTIDIANO
Assim, a favela da Rocinha com seus espaços e
indivíduos, adultos e crianças, escreve em co-autoria esta
pesquisa impregnada de sentimentos, que pretende a
descrição da totalidade31, uma vez que a “totalidade de um
fenômeno social supõe a integração do observador no próprio
campo de observação” (2000: 169), se estruturando por
meio das interações indivíduo-espaço na comunidade.
LUGAR E COTIDIANO
interações entre as partes no espaço interno e externo à
favela, considerando o entendimento da dimensão física e
Fig. 2.1: simbólica32 para fora de seus domínios.
Fotomontagem
da Rocinha, do
ponto mais alto
da Rua 1 à parte
mais baixa
marginal a Auto-
estrada Lagoa-
Barra.
32 SANTOS, Carlos Nelson F. dos. Op. cit. Em Quando a Rua Vira Casa, refere-
se à dimensão simbólica como uma das formas etnográficas de análise, somados
aos costumes, comportamentos, relações regulares, dramas sociais do cotidiano
e códigos culturais.
49
LUGAR E COTIDIANO
Paralelo a isso nós tomamos contato com o grupo de
recreadores e crianças do Curumim que se converteriam
nos nossos principais informantes do lugar. O Curumim
entre o período de julho e novembro de 2003 comportava
cerca de 200 crianças, de seis a treze anos, divididas em
dois turnos, que tinham como objetivo dedicar seu tempo
livre na comunidade às atividades de recreação e lazer, ao
ar livre.
LUGAR E COTIDIANO
Fig. 2.3: Caminho
do Boiadeiro
durante a
semana.
LUGAR E COTIDIANO
são feitos a pé ou através do ponto de mototáxi34, que parte
dali em direção à Estrada da Gávea, interligando as partes
alta e baixa da Rocinha.
LUGAR E COTIDIANO
Existe uma categoria curiosa e que não é o centro
deste trabalho, mas que merece ser mencionada, para ser
abordada em outra pesquisa, são os meninos pedintes
dentro da favela que, sozinhos ou em grupos, perambulam
pelos bares pedindo dinheiro, comida ou vendendo coisas, e
que ainda são observados pelo tráfico como “soldados”
potenciais.
LUGAR E COTIDIANO
ligação torna a Rocinha um lugar mais permeável36 não só
entre os bairros da Gávea e São Conrado, mas também
entre os seus diversos setores que vão da parte baixa à
parte alta da favela [Fig.1.3].
LUGAR E COTIDIANO
terreirão [Fig.2.7], e que corta toda sua extensão entre esta e o
que eles denominam terreirão da Rua 1.
Fig. 2.6: Vista da
Rua 1.
LUGAR E COTIDIANO
Um lugar que parecia um verdadeiro mercado, não pelo
tamanho que é ínfimo, mas pelo aglomerado de pessoas e
atividades. Um vendedor de flores em frente a uma
birosca, onde fica um menino do tráfico olhando quem
entra e quem sai, um anotador do bicho, a construção de
uma igreja, uma banca de peixe, a farmácia, o descarregar
de mercadorias, enfim um alvoroço que perturba e deixa
confuso. (Diário de Campo: 04/10/2003).
LUGAR E COTIDIANO
também abordaremos no capítulo V. Contudo, logo que
anoitece, um exército de meninos se põe nos becos, lajes e
escadarias portando armas e outros apetrechos de guerra.
O movimento de moradores na Rua 1 não é o mesmo
percebido durante o dia, o ambiente permanece mais calmo,
poucos transitam no lugar e o que se observa são
murmúrios de vozes.
LUGAR E COTIDIANO
160) todo espaço é caracterizado pelo dimensionamento
inadequado de becos e escadarias e pela imprecisão do que
é público e privado, “marcado pelo percurso alternativo sobre
as lajes das casas”.
LUGAR E COTIDIANO
Esse tipo de dinâmica do espaço é igualmente
observada na localidade Laboriaux, pois apresenta algumas
vias carroçáveis e uma vasta fronteira com a reserva da
Floresta da Tijuca, abordadas no capítulo V. É importante
destacar que nesta comunidade a relação de
interdependência entre floresta e favela está presente em
diversas formas de apropriação que giram em torno da
construção da identidade do morador da Rocinha e do
próprio espaço, assim como Soares (1999) observa de
maneira profunda em seu estudo sobre a favela e a floresta
nas relações humanas.
Fig. 2.11:
Barracos de
madeira na
transição da
favela com a
floresta.
LUGAR E COTIDIANO
Desta forma fechou-se o recorte da área a ser
pesquisada. Moldada pela triangulação de três áreas
representativas dentro da comunidade, a primeira é a
localidade conformada pelos setores da Rua 1, Cezário e
Macega, áreas de ocupação informal antiga e ainda em
expansão em direção à Macega; a segunda pela localidade
dos setores da Cachopa e Cachopinha, áreas de ocupação
informal mais recente e finalmente a localidade do
Laboriaux, de implantação recente, que intercala uma
tentativa formal de ocupação com a atual informalidade do
espaço e que ainda estabelece com a floresta uma intensa
relação.
LUGAR E COTIDIANO
variadas, de simples lugar de circulação de pedestres, a
local de estar de uma parcela de sua população,
espacializando de forma clara, as tensões entre casa e rua.
LUGAR E COTIDIANO
a campo tivemos oportunidade de interagir com os
recreadores que nos guiavam pela comunidade no que seria
o tradicional churrasco na laje.
LUGAR E COTIDIANO
percebidas aglomerações de pessoas que conversam nos
becos ou se reúnem em lajes nos fins de tarde para tocar
pagode e beber vinho com coca-cola.
LUGAR E COTIDIANO
A dinâmica das lajes na Rocinha assume, por vezes, o
caráter público da praça e da rua como acesso, e por
outras, conservam seu caráter privado de espaço da casa
como quintal, são um espaço semipúblico-semiprivado. O
interessante é que este espaço tem uma significação
importante na comunidade, tanto pelo uso destinado ao
lazer, que é simbólico enquanto lugar de confraternização,
quanto pelo valor econômico, onde não raro são negociados
para outras famílias estabelecerem ali sua habitação.
LUGAR E COTIDIANO
informam os lugares no interior do Brasil estudado por
DaMatta (1997).
LUGAR E COTIDIANO
A casa tradicional urbana brasileira tem um corredor de
circulação que num sentido muito preciso é igual à rua
como espaço único e exclusivo de relacionamento.
(DaMatta: 1997: 56).
LUGAR E COTIDIANO
III
O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE
A FAVELA
O ser é um sistema inseparável do seu meio, um produz o
outro, como na ecologia um sempre precisará do outro
para reorganizar sua transformação. (Morin, 2000: 57).
O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
diferentemente, e que resultam nas contradições e conflitos
espaciais, gerados através das diversas formas de
apropriação dos espaços livres.
O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
Iniciamos com Lefebvre (2000: 40-42) que introduz a
idéia de espaço vivido de forma muito apropriada ao
aproximar a idéia de espaço à cultura. Segundo este autor
cada sociedade produz o seu espaço e cada uma delas
contém representações simbólicas que mantém um estado
de coesão e coexistência com as relações na sociedade.
O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
ligados ao lado clandestino e subterrâneo da vida social”.
(42-43).
O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
A favela é também conceituada por Duarte (1993)
“como aglomerados de casas autoconstruídas em invasões
ilegais de terrenos públicos ou privados, geralmente não
dotados de infra-estrutura urbana”, paralelamente a
definição do Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de
Janeiro (1992) que destaca aspectos próximos ao da autora,
ainda interpreta estas áreas como predominantemente
habitacional, por isso entendemos estar diretamente ligado
à ação humana de viver o espaço.
O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
imaginável, uma vez que a imaginação é impregnada de
afeto, através das ações humanas. Neste sentido
entendemos que relação afetiva com o espaço vivido
proporciona a idéia de segurança
O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
Tal demarcação, que colocamos em torno da imagem
da favela como organismo vivo, por isto complexo, considera
que a organização deste ambiente é feita das partes físicas e
simbólicas que se sobrepõem no espaço-tempo, sempre se
complementando em novas (re)-organizações espaciais que
interagem continuamente indivíduo-espaço, a partir da
infância até o indivíduo adulto, na constituição de suas
identidades.
O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
3.2. As Tensões no espaço
Vimos no item anterior que a favela se comporta como
um espaço que é vivido e organizando físico e
simbolicamente em seu cotidiano. Destacamos ainda que o
vivido deste espaço é realçado pela produção de significados
nas relações afetivas que o indivíduo estabelece com o
mesmo. Marcaremos agora que essa diversidade de
significações gera conflitos que desenvolveremos aqui em
torno do termo tensão.
O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
derivadas das interações cotidianas com o lugar. Em
resumo, a riqueza de significações produzidas e sobrepostas
no espaço-tempo deste ambiente gera o que ele
convencionou chamar de “elementos vestigiais” em
arquitetura e urbanismo.
O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
justamente, por produzirem numerosos níveis de
significados.
O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
ser busca e pretende ao interagir com o espaço e que antes
é cogitado por sua imaginação para depois ser
materializado.
O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
Estes três princípios são indissociáveis, e, para
Morin, a idéia de holograma está ligada à de recursividade,
que por sua vez supõe a idéia dialógica (30). Num sentido
mais amplo, em nossa interpretação dos espaços vividos no
brincar nas favelas, a tensão se manifesta exatamente
através da complementaridade entre as significações
antagônicas do espaço que produzem uma causalidade
recursiva na interação construtiva criança-espaço, não
como parte da favela, mas como um todo que a caracteriza
enquanto espaço vivido.
O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
3.3. O espaço livre de mediação: a casa e a rua
entre o público e o privado na favela
Esta pesquisa se faz em torno do espaço livre. Já
colocamos a idéia de tensão produzida no espaço como
forma de destacar o grande número de significações, onde
observamos esta vitalidade impressa nas favelas nos seus
espaços permeáveis de transição entre a casa e a rua que
revela a parte física do lugar.
O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
momentos uma relação afetiva que nega o lugar, clarificada
ao perceber a imprecisão física da fronteira entre ambas.
O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
E quem mais experimenta o valor de afetividade com
o espaço livre, nas palavras de Lima (1989), é a criança,
tanto como pela ligação direta da casa com a rua como pela
falta de espaço privado no interior da casa, onde:
43 FARGE, Arlette. Vivre dans la rue, Helsinki, abr. 1976. In LIMA, Mayumi de
Souza. Op. Cit. p.90.
44 LAMAS considera que a praça é um elemento morfológico das cidades
O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
apropriados e usados da mais variada forma. Para Andrade
(2002: 79):
O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
Becos e largos assumem, assim como os espaços das
lajes, momentos diversos de apropriação, de simples lugar
de circulação de pedestres, a ambiente de estar de toda
uma parcela da população que se organiza em grupos de
adultos, crianças, homens e mulheres nas mais variadas
faixas etárias, para vivenciá-lo. Nos Capítulos I e II
verificamos de forma prática esta interlocução entre rua e
casa, geradora de conflito entre o público e o privado, que
cabe nos espaços livres de mediação.
O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
No próximo Capítulo traçaremos sucintamente como
o espaço na relação afetiva pode contribuir para construção
das identidades indivíduo-espaço através do sentimento de
intimidade, enraizando a criança no lugar, no momento em
que ela se apropria deste delimitando o seu eu através dos
territórios de brincadeira.
86
O ESPAÇO VIVIDO
FUNDAMENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A FAVELA
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IV
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
Ao longo do terceiro capítulo situamos o que seria o
espaço vivido da favela e como as tensões ou conflitos
resultantes das interações espaciais, entre indivíduos
pertencentes a este lugar, resultam nos espaços livres de
mediação na tênue fronteira que se identifica entre a casa e
a rua da favela.
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
com seus espaços livres, na mediação do sentimento de
afetividade, que direciona o enraizamento45 com o lugar,
entendendo o processo de constituição da identidade numa
lógica ecológica que não cessa, mas sim que transforma e
(re)-transforma espaços e indivíduos.
45Para o termo enraizamento referimo-nos tal como usado por Fischer (1994).
46 Segundo Morin, a sociedade é, sem dúvida, produto da interação entre
indivíduos. Essas interações, por sua vez, criam uma organização que tem
qualidades próprias, em particular a linguagem e a cultura. Essas mesmas
qualidades retroatuam sobre os indivíduos desde que vêm ao mundo, dando-
lhes linguagem, cultura, etc. Isso significa que os indivíduos produzem a
sociedade que produz os indivíduos. MORIN, 1996. Op. Cit. P.48.
88
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
favela destacam a constituição da identidade das crianças
que na ação da brincadeira (re)-modela os usos do lugar,
sem a descaracterizar enquanto território cultural.
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
através da cultura que marca o espaço do seu cotidiano
conduzindo-a e reorganizando-a no tempo.
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
culturais e pessoais numa relação de domínio com os
espaços.
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
as necessidades cotidianas. Tal personalização imprime ao
lugar o simbolismo que os atores, sejam - crianças ou
adultos e homem ou mulheres - identificam como sendo
eles mesmos – sua cultura - assinalando seu lugar de
pertencimento que define um território de identidade.
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
aquele que “só tem realidade através daquele que nele está e
que o torna objeto de conhecimento. (...) é o lugar
socializado”, e que pode ser distinguir entre território
primário e território secundário (Fischer 1994: 23-24).
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
Podemos dizer que na favela estes territórios
encontram sua maior representação, no espaço vivido entre
o público e o privado em constante tensão, os espaços livres
de mediação. As interações que seus habitantes
estabelecem com os ambientes não se prendem rigidamente
aos seus usos de origem, são antagônicos no que se refere
às suas funções de origem, mas complementares, pois
trocam intenções na medida em que reestruturam uma
nova ordem funcional no espaço-tempo.
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
demarca a segurança do indivíduo. Podemos distinguir os
lugares como instantes do espaço de constituição do eu, no
qual o indivíduo se reconhece pela diferenciação do outro,
estabelecendo um território de domínio. Veremos no
capítulo V como a identidade da criança pode ser marcada
pela diferença do que ela não é.
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
cotidiana de seus habitantes emergir um espaço que
constitui a identidade deste indivíduo recursivamente com o
meio.
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
indivíduo repousa também na sua autonomia de ser e de
existência (Morin 2002: 175 in O Método 2).
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
físicas que o formam, aprenda a se reconhecer enquanto
entidade autônoma. Isso nos leva a destacar suas ações
cotidianas como organizadoras do seu espaço vivido, onde,
à medida que avança com suas experiências afetivas sobre
o espaço que se lhes apresenta, alia valores que se
estendem sobre este, organizando e reorganizando o seu eu
no mundo, aprendendo a conhecer, onde:
A organização/reorganização no aprender a se
conhecer, se processa pela imagem que a criança constrói
do real, e que se conclui como um estado de fascínio no
indivíduo. Neste estado ela realiza todas as suas vontades e
cria situações onde confere o sentido e a ordem ao que é o
seu lugar. “É na infância que, imaginariamente, somos
menos constrangidos pelas circunstâncias ‘duras’ da vida,
(...) nesta compreensão imaginária”, a infância é o tempo-
lugar ainda não tomado pelos aspectos coercitivos da
realidade (Castro: 1997), que encontra na ação da
brincadeira uns dos meios para constituição de sua
identidade.
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
a cerca”. É a ação que transforma, outra vez pela
imaginação, o espaço vivido em espaço afetivo, aquele que é
imaginado pelo ser que o vivencia. Vigotski (2002) afirma
que no brincar a criança cria uma situação imaginária, é
ainda:
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
A brincadeira possibilita à criança a conscientização
de si mesma como um ser agente e criativo, tornando-a
hábil em explorar e responder ao meio, trabalhando com
situações e elementos do seu entorno. Assim, à medida que
cresce, ela se relaciona a objetos, posteriormente a
localidades, até a idéia de lugar tornar-se mais específica e
geográfica. (Tuan, 1983).
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
Na primeira infância48 a criança assume a própria
mãe como sendo o seu primeiro lugar. Com ela estabelece
suas primeiras relações espaciais, procura imitar e buscar
os movimentos maternos como forma de orientação. Estes
movimentos têm um caráter de experimentação do espaço e
possibilitam sua percepção sobre o lugar (Tuan 1983),
estabelecendo a noção de distanciamento e uma série de
limites físicos entre os lugares e o corpo.
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
Na idade escolar, a criança passa à compreensão do
real de forma mais equilibrada, criando a possibilidade de
melhor adaptação, entendimento e atuação com o mundo
exterior. Nesta fase, o sujeito tenta acomodar-se ao real
mesmo no brincar, passando a discernir o que é fantasia.
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
um grau de afetividade, qualificando-o e criando vínculos
emocionais que enriquecem a sua vida, associado as suas
atividades cotidianas.
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
No espaço vivido da favela, especificamente na
Rocinha, os espaços livres coletivizados para as interações
no brincar, são a rua, as lajes, os becos e as escadarias de
acesso que se apresentam, como o grande palco das
manifestações infantis, através da qual as crianças irão
tomar seu primeiro contato com a idéia de lugar. Estes
aspectos serão apresentados e analisados no próximo
capítulo.
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
detalhadamente no Capítulo V. Isto ficou claro quando
tomamos conhecimento de uma quadra esportiva localizada
no terreirão da Rua 1, que no princípio do trabalho de
campo fomos impedidos de conhecer.
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
submetida às hierarquias internas. A forma como se
referiam a esta fez deixar claro que até denominá-las pela
sua localização geográfica era algo proibido.
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
uma espécie de toque de recolher49, onde permanece na rua
somente aquele que insiste em desafiar o perigo50.
TERRITÓRIO E INFÂNCIA
IDENTIDADES ECO-AUTO-ORGANIZÁVEIS
OS ESPAÇOS LIVRES DE MEDIAÇÃO NO
V
BRINCAR DA CRIANÇA DA ROCINHA
Nossa pesquisa nos mostra que, contrário do que
ocorre em certos locais percebidos como “proibidos” ou de
acesso “controlado”, a configuração formal da favela permite
apropriações diversas e constitui-se num locus de
interações infantis.
51 Dona Elisa entende que queimar etapas no brincar é dar vazão a tudo que a
criança foi impedida de viver pela sua realidade de pobreza gerada pela falta de
recursos materiais e afetivos dentro do ambiente doméstico que a transforma
em um indivíduo com baixa estima.
52 Dicionário Eletrônico Aurélio
112
53 Nossos informantes nos dizem que a Rocinha atualmente vive tempos de paz
e parte disto está diretamente ligada à política implantada pelo tráfico, que tem
na figura do atual “Dono do Morro” o Lulu ou Magro, um líder que investe no
lugar e se preocupa com o lado social do morro, entendido como o “bandido
bom”. Ainda segundo relatos, em outra época, a do Denis da Rocinha, a relação
do tráfico com habitantes da favela também era paternalista e foi quebrada por
conflitos na disputa de poder entre bandidos. Este sentimento de medo aflige a
Rocinha novamente que se encontra sob ameaça de invasão. A idéia é que uma
troca de comando, que submeta a Rocinha a outro “controle” a transformará no
“Império do Medo”.
116
54 Ressaltamos que este comportamento não é uma prática comum nas demais
favelas cariocas. Até Dezembro de 2003 o trânsito de armas nos becos da favela
da Rocinha era permitido pelo tráfico somente após as vinte horas. Com a
ameaça de invasão no final do mesmo ano já era possível observar este
comportamento ao entardecer.
117
55 Segundo Von (2001: 98) “a pipa surgiu na China mil anos antes de Cristo.
Antes de ser um brinquedo, era um dispositivo de sinalização militar. A cor da
pipa, o padrão da pintura e os movimentos no ar eram executados para
comunicar códigos de mensagens entre os campos. (...) chegou ao Brasil com os
portugueses e há notícias de que foi usada por sentinelas, no Quilombo dos
Palmares, também como sinalização de perigo”. Nos dias atuais a pipa como
elemento de sinalização também é usada pelo tráfico dividindo o céu da favela
da Rocinha com as brincadeiras infantis seguindo a mesma lógica dos chineses
sendo estas marcadas e em cores e formatos diferenciados.
121
Fig. 5.11:
Crianças
interagindo com
[Fig. 5.10] [Fig. 5.11]
a vegetação na
Macega.
Existe ainda na favela da Rocinha o que os moradores
Foto: Glauci Coelho
Out. de 2003
identificam como espaços formais de brincadeiras, as
praças, parques de brinquedos e quadras esportivas
construídas pelo poder público ou financiadas pelo tráfico.
Em três das áreas pesquisadas observamos a existência
destes espaços.
Fig. 5.15:
Desenho de
menina da Rua 1
representando o
parquinho de
brinquedos e
destacando o [Fig. 5.15]
escorregador e o
balanço, onde a
figura humana
aparece
interagindo com
todos estes.
Fig. 5.16:
Desenhos de
menina da Rua 1
imaginando o
parquinho de
brinquedos e
destacando o
escorregador e o
balanço, sem
representação da
figura humana. [Fig. 5.16]
128
Fig. 5.18:
Atividade livre na
quadra da
Cachopa após a
aula de capoeira.
Fig. 5.21:
Desenho de um
menino da Rua 1
que representa o
parquinho de
brinquedos
através do
balanço, praças e
destaca a quadra
como espaços de
brincadeiras.
[Fig. 5.21]
Fig. 5.23:
Meninos jogando
bola na quadra da
Rua 1, marcada
pela inscrição de
PAZ no
alambrado.
[sic] Tia não precisa ter medo, lá vai ter que subir um
barranco, mas se você cair eu seguro você. (Diário de
Campo: 24/07/2003).
Fig. 5.24:
Meninos
escalando parte
do Morro Dois
Irmão na
Canaleta.
Fig. 5.29:
Meninos saltando
do barranco no
reservatório.
58 Usamos o termo invisível por insinuar que algo existe, está lá, mas não
Fig. 5.32:
Desenho de
menina que
indica a praia
como espaço de
brincadeira, mas
[Fig. 5.32]
sem destaca-las,
representando
somente a
paisagem de São
Conrado sem os
prédios.
Fig. 5.33:
Desenho de
menino que
também indica a
praia sem a
representação do
bairro formal,
destacando como
brincadeiras a
pipa, o futebol e o
surf. [Fig. 5.33]
143
Fig. 5.35:
Desenho de
menino que
representa todo o
espaço da
Rocinha e seus
limites,
destacando o
brincar dentro e
fora dela,
indicando a pipa
como a imagem
da favela e o surf [Fig. 5.35]
como a de São
Conrado.
Fig. 5.36:
Desenho de
menina que
representa a
praia com o
bairro de São
Conrado como
espaço do
brincar, se
inserindo neste,
mas não
indicando suas
brincadeiras. [Fig. 5.36]
144
Fig. 5.37:
Desenho de
menino que
representa o
brincar na favela
com o brincar do
asfalto, pipa e
surf, sem indicar
os espaços
Rocinha e São
Conrado.
[Fig. 5.37]
146
INTERAÇÃO CRIANÇA-FAVELA
O ESPAÇO VIVIDO NA ROCINHA
suas unidades que se inter-relacionam recursivamente
[Fig.6.1].
INTERAÇÃO CRIANÇA-FAVELA
O ESPAÇO VIVIDO NA ROCINHA
distinguem nos espaços residuais, formados entre as casas,
denominados de becos, lajes e escadarias, entre os usos que
os caracterizam como espaços semipúblicos-semiprivados.
INTERAÇÃO CRIANÇA-FAVELA
O ESPAÇO VIVIDO NA ROCINHA
desenhos representados. Esta interação com o ambiente
constrói progressivamente nas crianças reconhecimento de
si no cotidiano da favela. As experiências com o lugar no
brincar, nas falas e nos desenhos, as posicionam
afetivamente no todo entre a favela e o asfalto.
INTERAÇÃO CRIANÇA-FAVELA
O ESPAÇO VIVIDO NA ROCINHA
- [sic] Tia você está olhando e tirando foto daqui? (...), está
vendo lá, fica o Colégio Americano.
- Como sabe?
- Eu estudei lá.
- Não estuda mais porque?
- Lá é muito chato.
- Como?
- Tenho que ir com a mesma roupa todo dia, não posso
fazer nada, lá ninguém faz nada, e ainda tem que ir
com o material todo arrumadinho na mochila. (Diário
de Campo: 30/07/2003)
INTERAÇÃO CRIANÇA-FAVELA
O ESPAÇO VIVIDO NA ROCINHA
O pertencimento da criança da Rocinha nos limites
informais da favela é ultrapassado quando ela identifica no
seu brincar que o cotidiano vivido nos espaços da cidade
formal também complementa e legítima o seu estar na
cidade. Destaca-se neste processo a praia de São Conrado,
um lugar que dá aos moradores sentimento de posse e de
dominação como território das brincadeiras e pertencimento
ao lugar.
INTERAÇÃO CRIANÇA-FAVELA
O ESPAÇO VIVIDO NA ROCINHA
ambiente (re)-organizando-os a todo instante. Neste caso a
demonstração de conhecimento sobre o espaço vivido à
medida que transpõe obstáculos marca a idéia do “poder ir
além” com segurança marcando o quanto a favela é
permeável para a criança.
INTERAÇÃO CRIANÇA-FAVELA
O ESPAÇO VIVIDO NA ROCINHA
floresta e todas as redes de relações interpessoais e com os
espaços livres internos e externos da favela, contribuem
para a construção da identidade da criança da Rocinha, a
partir da identificação do lugar relacionando-se com o seu
entorno, evidenciado através da apropriação da brincadeira.
154
INTERAÇÃO CRIANÇA-FAVELA
O ESPAÇO VIVIDO NA ROCINHA
BIBLIOGRAFIA CITADA
BIBLIOGRAFIA
DICIONÁRIO ELETRÔNICO AURÉLIO – v.2.0. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000.
BIBLIOGRAFIA
KISHIMOTO, Tizuko Morchida. Jogos Infantis: o jogo, a criança e a
educação. Petrópolis: Editora Vozes, 3ªed. 1997.
BIBLIOGRAFIA
____. Rio de Janeiro - RJ. 13/04/2004. nº 25.817.
BIBLIOGRAFIA
SEGALA, Lygia; SILVA, Tânia Regina (organizadoras). Varal de
Lembranças: Histórias da Rocinha. Rio de Janeiro: UPMMR
(União Pró-Melhoramentos dos Moradores da Rocinha)/Tempo e
Presença/SEC/MEC/FNDE, 1983.
BIBLIOGRAFIA
ANEXO I ENTREVISTA
ANEXOS
com casas úmidas onde chove dentro, onde elas não são
vistas com importância. A maioria das mães usa essas
crianças como instrumentos de chantagem, muitas brigam
e acabam dormindo na rua. E são essas as crianças que
tentamos resgatar.
ANEXOS
Por isso o teatrinho é tão importante para elas, pois
falam e são ouvidas, são o centro de importância naquele
momento. Falo que a melhor maneira de entender isso tudo
aqui, primeiro é sentar no chão e conversar com as crianças
e deixar que elas te digam o que é isso aqui para elas, por
meio da brincadeira vão te dizer tudo.
ANEXOS
para ele e mandei que trouxesse o troco e ele voltou, é uma
pessoa que dá para acreditar.
165
ANEXOS
ANEXO 2 DIÁRIO DE CAMPO
23 de julho de 2003
14:30-17:00 h
Esta é a primeira visita oficial para pesquisa de
campo, e que se segue após longa conversa com Dona Elisa,
que relato a seguir. A princípio, até que o mês de dezembro
de 2003 termine permanecerei na comunidade, pelo menos
duas vezes por semana, observando e interagindo com os
moradores do lugar. O intuito é registrar aqui as
impressões mais marcantes percebidas em campo e
aprender a vivenciar os espaços livres da Rocinha com as
crianças e adultos. A rotina será a de encontrar com as
crianças e professores do Curumim, trabalhar junto com os
recreadores e sempre que a organização das atividades
permitir explorar e perceber a comunidade através dos
espaços externos apropriados pelas crianças ao brincar.
ANEXOS
um pouco de sua idéia de “construir sonhos” transformando
garrafas PET em brinquedos sonhados.
ANEXOS
descobrindo que era arquiteta, disse que gostaria de
mostrar sua casa, pois queria fazer reformas. No trajeto me
explicou que cada área tinha um nome, ela morava na
Macega61 e para chegar lá estávamos passando pelo
Cezário. Neste dia o lugar estava relativamente calmo, sem
muitas pessoas na rua, e como quem tenta responder, ela
me explicava que dia de semana é calmo, pois as crianças
vão para a escola, que final de semana sim, era um alvoroço
de crianças na rua.
pela Prefeitura.
62 Notei na rua 1 duas biroscas funcionando com jogos deste tipo, uma era
ANEXOS
Ela me apresentou seus quatro filhos, a mais velha
com seis anos, eles brincavam com outra amiguinha de
correr e com as plantas que ainda se encontram nos
barrancos. Conheci sua casa, um barraco de madeira, fiz
alguns comentários e ela concluiu dizendo que estava muito
feliz, pois já tinha uma casa e iria conseguir mais.
ANEXOS
maiores (12-13) brincavam em cima da laje, fiz menção de
tirar foto, quando percebi um dos meninos do tráfico,
Daniela puxou a maquina e se incumbiu da foto, dizendo
que não precisava ter medo. Lá em cima do Laboriaux,
estava um dos campos de futebol formal da comunidade de
que tomei conhecimento, e que foi construído pelo dono do
morro para as crianças brincarem, mas às vezes ele
mandava todo mundo descer.
24 de julho de 2003
13:30-17:00 h
Hoje subi à Rocinha com Maria Luiza Silveira e
Albuquerque (in memória), pesquisadora do NEAM. Fomos
recebidas por Dona Elisa na creche e em seguida mudamos
para o prédio ao lado, onde se encontravam cerca de
sessenta crianças de 6-13 anos.
ANEXOS
não estavam se empenhado em conseguir garrafas de
guaraná. Neste momento percebi que já era tarde, quisesse
ou não aquela seria a rotina de trabalho, e no transcorrer
da apresentação disse que sonhos são construídos a partir
de projetos.
ANEXOS
Nisto mostraríamos indiretamente para as crianças,
que num projeto precisamos identificar no cotidiano como
praticamos a ação em projeto, no caso o brincar. O mais
importante é que indiretamente estariam apreendendo a
identificar metas para um projeto, através da interação com
seus espaços vividos, e que projetos são realizáveis se
trabalhamos de forma satisfatória o que temos ao alcance.
ANEXOS
[sic] Tia, qual é mesmo o seu nome? (...) o meu é AL.
[sic] Tia não precisa ter medo, lá vai ter que subir um
barranco, mas se você cair eu seguro você.
ANEXOS
descendo entre gritos e correrias, enquanto alguns
insistiam em descer as escadas aos saltos. LP e AL
tentavam me explicar o que era brincar na canaleta,
dizendo que teria que subir e descer e pular, com certeza
seria uma aventura.
ANEXOS
[sic] Esta pedra era um imenso castelo de um gigante que
tinha uma princesa bonita, lá embaixo [Rocinha] era a
cidade da princesa, com quadras e muito iluminada, era
todo mundo feliz até que veio um monstro muito mau que
morava no castelo. Aqui tia era o quarto da princesa e ali
tinha um jardim com muitas flores, lá na frente é a barriga
do gigante. Esse mostro era muito cruel, fazia muito mal
para a princesa e para as pessoas, e a princesa reza todos
os dias para Deus mandar o monstro embora. Esse
monstro era o pai da princesa, era o pai-monstro que
destruiu a cidade aqui de baixo. Ali tia é o nariz do
monstro, aqui a sala do castelo. Aí um dia Deus escutou a
princesa, e transformou o castelo do mostro em pedra com
ele dentro, a princesa ficou presa aí.
ANEXOS
que Daniela havia mencionado somente a do Laboriaux
como quadra oficial. LP se aproxima novamente dizendo:
- [sic] Tia você está olhando e tirando foto daqui? (...), está
vendo lá, fica o Colégio Americano.
- Como sabe?
- Eu estudei lá.
- Não estuda mais porque?
- Lá é muito chato.
- Como?
- Tenho que ir com a mesma roupa todo dia, não posso
fazer nada, lá ninguém faz nada, e ainda tem que ir
com o material todo arrumadinho na mochila.
ANEXOS
Não teve outra saída, tive que me atirar sobre o
barranco de uma altura de dois metros, vencido este
obstáculo, meu salvador, LP, surge novamente me puxando
pela mão, dizendo que me conduziria pelo melhor caminho,
até o lugar que desceríamos pela corda. A tal foi amarrada
no tronco de uma goiabeira e nos pusemos a descer, alguns
mais apressadinhos desciam os oito metros escorregando
sentados.
ANEXOS
30 de julho de 2003
13:30-17:00 h
Após a primeira semana retornei à Rocinha sozinha,
já entro e saio do lugar sem avisar previamente. Como
combinado na semana anterior, as crianças foram
preparadas para o passeio à cachoeira, neste momento, já
habituadas a minha presença me abraçavam e beijavam
sem reservas.
ANEXOS
Quando notaram que íamos a sua direção, apagaram
os cigarros abaixaram os fogos e tudo mais, brincaram com
as crianças e nos deixaram passar calmamente. Assim
atingimos o morro do Laboriaux numa área de ruas largas e
pavimentadas de blocos sextavados, ao final da primeira
rua passamos para a floresta64. Caminhamos por uma
trilha sem dificuldades que funciona como atalho para o
ponto mais alto da favela usada habitualmente por todos.
ANEXOS
No final dessa rua pavimentada encontrei o tal campo
do Laboriaux, uma quadra formal, pavimentada, com
alambrado e vestiários, e é claro que fiquei feliz por ter
conseguido acesso à tão famosa quadra construída pelos
donos do morro, e que mais tarde viria a descobrir não ser
somente esta, nem a mais importante.
ANEXOS
abastece a Comunidade do Parque da Cidade, uma área
também de ocupação informal, que em tamanho
corresponde a um dos setores da Rocinha.
01 de outubro de 2003
13:30-17:00 h
Dois meses se passaram desde que cheguei à
Rocinha, neste período pude entrar em contato com
diversas áreas e entender as dinâmicas que regem o lugar.
181
ANEXOS
Ainda no mesmo período foi necessário reorganizar a rotina
do trabalho de campo por problemas internos a
comunidade, que está sob a ameaça de invasão e com
constantes conflitos entre moradores e policiais. Assim,
permanecemos mais tempo dentro do prédio do Curumim
para preservar a integridade das crianças.
ANEXOS
o cuidado. Retornamos e quando chegamos ao campo de
futebol a partida não havia terminado, enquanto esperamos
sentados nas mesinhas de jogos que ficam ao lado do
campo as crianças ou assistiam ao jogo ou corriam.
ANEXOS
Respondi dizendo que tudo bem, mas que gostaria de
conhecer os lugares. A resposta, uma pausa silenciosa e um
sorriso, e em seguida me convidaram para o passeio que
fariam com as crianças ao Parque da Cidade.
04 de outubro de 2003
09:30-20:00 h
E eis que chega o dia de conhecer o “rala bunda”.
Apareci na entrada da Rua 1 e todos surpresos me
cumprimentavam. O lugar parecia um verdadeiro mercado,
não pelo tamanho que é ínfimo, mas pelo aglomerado de
pessoas e atividades. Um vendedor de flores em frente a
uma birosca, onde fica um menino do tráfico olhando quem
entra e quem sai, um anotador do bicho, a construção de
uma igreja, uma banca de peixe, a farmácia, o descarregar
de mercadorias, enfim um alvoroço que perturba e deixa
confuso.
ANEXOS
Quando todos se reuniram, seguimos para o Parque
da Cidade cantando pela estrada da Gávea e depois pelos
becos e escadarias do setor 199 e pelo Muarama, até
atingirmos a Comunidade Parque da Cidade e enfim o
próprio Parque da Cidade. Enquanto caminhávamos entre
gritos, correrias batucadas naquela manhã de sábado, o
som produzido ia acordando os moradores das casas que se
abriam para os becos, e moradores e comerciantes ao longo
das vias principais chegavam até suas portam para
observarem o que se passava.
ANEXOS
estavam o que elas chamam de “crianças ricas do asfalto” e
todas estas, sem exceção, acompanhada de seus parentes
que empurravam balanços, esperavam no escorrega ou as
guardavam de alguma forma.
ANEXOS
indagavam para outro recreador, apontando para uma área
da Rocinha, a quadra do Terreirão da Rua 1, se era verdade
que a “área de descanso” ficava naquele lugar. Demorei um
pouco para entender o significado e, continuaram dizendo
que lá somente com autorização.
ANEXOS
escadarias, olhava o intenso movimento de pessoas que não
se vê durante a semana, muitos conversando em suas
portas, crianças correndo pelos becos, jogando bola.
Andamos muito até que atingimos uma parte baixa
denominada de Rua 2, onde fica a casa desta recreadora. Lá
seus dois filhos que durante a semana ficam no Colégio
Militar estavam reunidos com uns amigos e combinavam
um jogo e bola.
ANEXOS
[sic] Na minha época pegávamos um pedaço de pau para
fazer um carrinho de rolimã e descer ladeiras, hoje ela
pega este pedaço de pau e simula uma arma.
13 de outubro de 2003
13:30-17:00 h
Hoje é um dia de atividades atípico. É semana do dia
das crianças e somente as turmas de seis anos saíram para
os passeios. Esperei todos se organizarem e em seguida saí
com o grupo de seis anos para o parquinho da Rua 1.
ANEXOS
Entramos e deixamos as crianças brigarem por seus
espaços nos brinquedos. Enquanto isto um dos recreadores
chamou a atenção para como devemos tratar as crianças
apontando para um casal de cinco e seis anos. Estas eram
órfãs de pai e mãe e adotadas pelo poder interno, que
financiava estudos, vestimenta, saúde, mas sob custódia de
uma família da comunidade. Foi então que alguns “meninos
do lugar” passaram e ficaram um pouco olhando as
crianças.
ANEXOS
Enquanto ia escrevendo a lista, apontava os lugares
para mim tentando situá-los no espaço e quando ia
chegando ao final parou num instante falando:
14 de outubro de 2003
13:30-17:00 h
Poucas coisas agora soam como novidades. Já
compreendo a dinâmica do lugar e de certa forma estou
inserida nela. Brincar aqui me parece como brincar no
interior, quando se vai para mata, ou ainda, como brincar
no subúrbio quando as crianças correm pelas ruas, becos
de pique, pulam corda, fazem rodinhas de bate-papo e
principalmente quando jogam bolas nos campos de lama.
191
ANEXOS
Brincadeiras individualizadas do “asfalto” como vídeo
games ou computadores, aqui ocorrem em casas especiais
onde grupos de meninos se amontoam em volta das
maquinas. Outra característica marcante esta no fato dos
meninos se aventurarem por lugares mais distantes, estão
sempre na rua e cada vez mais longe, já as meninas sempre
em casa ou nas redondezas, nos seus becos, o que ocorre
também com as crianças menores de seis anos.
ANEXOS
então pela Via Ápia, este sim um lugar de movimento, o
centro comercial da Rocinha com várias lojas e bares. Nesta
nota-se crianças que vão de um lado para outro, sempre
meninos, que correm ou que nem sempre estão brincando,
pois pedem coisas nos bares, meninos pedintes dentro da
favela.
21 de outubro de 2003
09:30-13:00 h
Mais adaptada ao lugar, já sou tratada sem reservas,
alguns até dizem que pareço alguém de lá. Isto resultou
numa vontade coletiva de que me mudasse para a
comunidade e também na minha permanência nesta após
as vinte horas.
[sic] Com quem? Com quem? Com quem será que [nome]
vai casar, louro, moreno, careca, cabeludo, rei, ladrão,
polícia, capitão? Estrelinha um, estrelinha dois, estrelinha
três do meu coração.
193
ANEXOS
Passamos o turno da manhã dentro do prédio, alguns
corriam, outros dançavam, as meninas faziam suas
rodinhas e foi quando surgiu outra brincadeira, desta vez
com a interação de meninos, meninas e adultos. Uma
brincadeira também com música.
28 de outubro de 2003
14:00/22:00 h
Hoje foi um dia especial, além de passar a tarde com
as crianças fiquei na comunidade até a noite, quando a
rotina do lugar muda e as pessoas que circulam nele
parecem tomar outra forma, tanto pelas pessoas de fora
como os próprios moradores.
ANEXOS
madeira e casebres no sopé da quadra. O lugar é fresco, um
vento sopra forte passando pelo rosto, misturado ao
barulho das árvores acima e o som de pagode quase
ininterrupto que se capta a cada beco.
ANEXOS
brincadeira. Colocaram-me batendo a corda e cantando,
volta e meia uma queria furar a fila o que resultava na
parada da brincadeira para a reorganização da ordem que
era imposta pelo “dono” dela.
ANEXOS
Desta vez o recreador se aproximou intervindo na
conversa que se iniciava chamando a atenção para o que as
crianças discutiam. Foi quando descobri que os meninos
brincavam de “Power Ranges” e a briga começou quando
estavam no meio de uma batalha e um deles matou alguém
que não queria sair da brincadeira.
ANEXOS
de aceitação e até de admiração onde os meninos maiores
parecem ter pleno conhecimento do que se passa chegando
a conhecer tipo de armas formas de disparos e coisas deste
tipo. Uma impressão que o lugar só descortina com o cair
da noite assumindo sua verdadeira realidade.
04 de novembro de 2003
13:00/19:00 h
Dia normal no Curumim. Fiquei um pouco no prédio
brincando com as crianças, foi quando de repente
reencontrei LP que de pronto pulou no meu colo.
Permanecemos no peitoril da janela e ele apontou para o
final da Rua 1 dizendo que morava lá no final com a mãe o
pai e mais os irmãos concluindo que eram dez, mas que
dois morreram.
ANEXOS
Neste momento eles se referiam novamente com um sentido
de posse ao lugar dizendo sempre “meu beco”.
ANEXOS
Nisto já caminhávamos pela Roupa Suja uma vez por
outra topando com criança brincando sempre de bola ou
pique esconde, e quando chegamos na altura da auto-
estrada Lagoa-Barra nos deparamos com o que eles
chamam de Praça da Roupa Suja, um lugar constantemente
utilizado não só por crianças.
[sic] Mas na verdade eles não fazem nada até o fim, a gente
que não arrume dinheiro aqui dentro mesmo pra terminar
não.
ANEXOS
imediatas daquela população, expressada nas palavras de
um dos recreadores da seguinte forma:
ANEXOS