Você está na página 1de 20

Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas

Unidas

Atividade Prática Supervisionada de


Intervenções Psicológicas na Infância e Adolescência

Infância interrompida
(Caso Lara)

Professora: Sandra Regina Borges dos Santos


Intervenções psicológicas na infância e adolescência - 084021
Psicologia Noturno – Campus Santo Amaro
Turma: 000006208ª03 - Semestre: 8º

Ana Paula Molina Barroco - RA:2569289


Felipe Paulino de Lima - RA: 2007525
Kevin Martins - RA :2070430
Leandra Vidal - RA: 2469585
Vitória Beatriz - RA: 2428078

São Paulo

2021
Metamorfoses de Ovídio
livro III

380 ‘Por acaso, o rapaz, desviado dos colegas, gritou:


“alguém me escuta?”, “escuta!” rediz Eco. Queda-se atônito,
dirige o olhar a toda parte, alça a voz e diz: “vem!”; ela chama
quem chama. Volve o olhar e não vendo ninguém diz: “Por que
foges de mim” e ouve de volta a mesma frase.
385 Detém-se e, iludido por voz replicante, fala: “aqui nos
juntemos!”, e Eco, com volúpia nunca experimentada, devolveu:
“juntemos!” Seguindo suas próprias palavras, da selva sai e vai
abraçar-se ao pescoço do amado.
390 Ele fugindo, diz: “tira as mãos, não me abraces,
morrerei antes que tu possas me reter!” E ela, apenas: “Que tu
possas me reter!”’
(Ov. Met. III, 380-390) 1

1
CARVALHO, Raimundo Nonato Barbosa de. Metamorfoses em tradução. São Paulo: Banco
de teses da USP, 2010.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 3
INFÂNCIA INTERROMPIDA 4
DESENVOLVIMENTO 9
ANÁLISE 10
INTERVENÇÃO 16
CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS 18
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 19
INTRODUÇÃO

No campo da investigação da psicologia, o relato de casos clínicos é


entendido como uma ferramenta para a elaboração teórica das experiências, bem
como para melhor compreensão e para o aprimoramento dos métodos de
intervenções utilizadas. Pretende-se, neste trabalho, apresentar fundamentos teóricos
e práticos do campo psicanalítico a fim de discutir um caso como um método de
investigação e elaboração psicanalítica a partir de uma pesquisa bibliográfica.
Para a realização do estudo, optou-se por utilizar um caso clínico acrescido de
informações que enriquecesse o corpo clínico do caso.
4

INFÂNCIA INTERROMPIDA

O caso clínico que será descrito a seguir remete-se a um extrato retirado


na obra de Gley P. Costa (2015) em seu livro ‘A clínica psicanalítica das
psicopatologias contemporâneas’, alguns dados como idade e nome dos
integrantes foram incluídos, assim como localidade e acontecimentos. Lara, uma
adolescente de 17 anos, foi encaminhada por um clínico, ao qual ela procurou
por episódios de tontura e supostas crises de perda da consciência, além de
cefaleia e frequentes manifestações gastrintestinais. Não sendo encontrado
achados clínicos que justificassem desordens de ordem física, seu médico optou
por solicitar uma avaliação psicológica bem como conduta e manejo.

Resumo Geral.

Lara, uma adolescente culta, inteligente, muito bonita, que pertence a


uma família de classe média. Viveu durante um período de sua vida no exterior,
oportunidade em que aprendeu a falar fluentemente três idiomas: inglês, francês
e alemão. Obteve o primeiro lugar no exame vestibular de uma universidade
federal de São Paulo para medicina e é sempre elogiada pelos tios em eventos
familiares em frente dos seus primos. Ela procura se mostrar muito capacitada,
responsável e como alguém que ‘‘trabalha (ocupa-se a estudar)’’, inclusive, nos
períodos em que a família e os colegas se encontram de férias, conforme diz
com orgulho.

Não tem planos para o futuro em relação a casamento e filhos, mas se


preocupa com a questão profissional, área em que procura ser a mais destacada.
Como costuma dizer, “está sempre um passo adiante”, representando, esse
suposto autoelogio, sua habitual tendência de queimar etapas, origem de sua
pseudomaturidade e de sua pseudossexualidade, que se expressam na
antecipação e no exagero da conduta profissional, de um lado, e na
intelectualização do relacionamento amoroso, de outro.
5

Lara não mede esforços, em particular para agradar aos demais e, nas
mais variadas situações, procura manter uma atitude sedutora, captando e
dizendo exatamente o que o outro pensa como forma de ser admirada, elogiada
e merecer uma posição privilegiada em relação aos reais ou imaginários
concorrentes, com os quais não compete exatamente por uma pessoa, mas por
um lugar junto a uma pessoa. Ela se encontra firmemente convencida de que
somente vão gostar dela se for uma pessoa bem-sucedida, mas não consegue
manter esse sentimento de uma forma continuada: encontra-se sempre
temerosa de que deixem de gostar dela. Na verdade, ela é descrente em relação
ao seu futuro e não confia em suas capacidades.

Histórico:
1) Comorbidades.

Mobilizada pela leitura de um artigo sobre dislexia, com 14 anos,


submeteu-se a uma avaliação nessa área, revelando se tratar realmente
de uma disléxica, mas que, na opinião do especialista,
surpreendentemente, havia compensado a deficiência por um esforço
espontâneo bem-sucedido.

2) Antecedentes familiares/ núcleo familiar:


I. a mãe desenvolveu um quadro depressivo severo após o parto da
irmã de Lara;
II. a avó se desentendeu com o pai de Lara e se afastou por um longo
período de sua casa, mas reatou os laços;
III. a tia se mudou para outra zona da cidade;
IV. a babá se casou e foi morar em outra cidade.

3) Relacionamentos.

Lara possui uma única irmã, dois anos mais moça, com a qual mantém uma
acirrada e declarada rivalidade, procurando destituí-la de qualquer qualidade.
Está convicta de que os pais protegem a irmã e se relaciona o mínimo possível
com ela. Segundo suas palavras, age como se esta não existisse, mas se irrita
6

profundamente quando ela se destaca em algum aspecto ou merece um elogio


dos pais. Por ocasião do nascimento da irmã, consta que Lara perdeu sua
habitual alegria e seguidamente era vista chorando, atirada no chão, junto à porta
do quarto em que a mãe cuidava da irmã recém-nascida. Contudo, passado um
tempo, tornou-se agressiva com a irmã, não escondendo seus ciúmes por ela.

Refere que, ainda muito pequena, achava que a irmã a superaria em tudo e deu
início a uma luta em todas as frentes para reverter essa situação. Uma de suas
primeiras preocupações foi em relação à estatura, tendo em vista o comentário
de um médico de que a irmã poderia vir a ser mais alta que ela. Por conta disso,
chegou a persuadir seus pais a procurarem um profissional da área que, por
algum tempo, prescreveu-lhe medicamentos e acompanhou o seu
desenvolvimento. Ela também se empenhou para se tornar uma pessoa mais
culta, mais simpática e mais comunicativa que a irmã. Até completar 2 anos,
quando nasceu a irmã, Lara recebia os cuidados da mãe, da avó materna, de
uma tia solteira e da babá, com as quais revelava forte ligação afetiva,
mostrando-se uma criança muito feliz. Lara passou a receber os cuidados
exclusivos do pai, justificando o apego que, até hoje, mantém com ele, em que
pese acusá-lo de ser um homem muito fraco e se encontrar submetido à mulher,
revelando com essa acusação seu anseio de ter o pai só para ela. Na verdade,
Lara sempre esteve mais próxima do pai do que da mãe, acompanhando-o nos
fins de semana a jogos de futebol, escolhendo a mesma profissão e se
relacionando com seus amigos. Ela se encontra claramente identificada com o
pai de uma maneira muito particular, lembrando mais um acompanhante, um
irmão mais velho ou mesmo um amigo. Por outro lado, refere que a mãe é uma
mulher exigente, controladora e deprimida, que passa a maior parte do tempo
fechada em seu quarto e que se comporta como uma menininha mimada,
procurando chamar a atenção da família. O pai não concorda com a necessidade
de Lara se analisar por que acredita que ela pode resolver sozinha os seus
problemas, preferindo proporcionar-lhe cursos no exterior no lugar da análise.
Contudo, diante de sua insistência, dispôs-se a pagar o tratamento sob a forma
de um empréstimo, o qual ela deverá quitar depois de se formar. Lara entende
que o pai é contra o seu tratamento porque representa para ele um fracasso,
tendo em vista que pertence a uma família que ambiciona ocupar o primeiro lugar
em tudo.
7

Chama a atenção o relacionamento de Lara com o namorado, o qual


despreza, a começar pelo fato de ser mais baixo que ela, mas que lhe serve
porque, com ele, segundo diz, sente-se “fortona”. A todo o momento identifica
situações em que o considera uma pessoa fraca e dependente, o que lhe permite
fazer o que bem entende sem enfrentar o medo de perdê-lo. Ela destaca que
gosta quando os homens se atiram aos seus pés e pedem chorando que não os
abandone. Contudo, com o namorado anterior, acontecia o oposto: sentia-se
fraca, desvalorizada, dependente e submissa, razão pela qual pôs fim à relação,
mas reage desesperadamente sempre que toma conhecimento de que o seu
lugar foi ocupado por outra pessoa. Nessas ocasiões, telefona irada ao ex-
namorado, desprezando seu novo relacionamento e procurando desfazê-lo a
qualquer custo. Outras vezes, é ele quem telefona, convidando-a para sair à
noite, o que inclui, eventualmente, manterem relações sexuais. Inicialmente,
Lara recusa, alegando, entre outras razões, o fato de ela ou de ambos estarem
namorando outra pessoa. Tudo muito lógico. Contudo, em um segundo
momento, acaba aceitando o convite quando ele a ameaça de perdê-lo para
sempre, dizendo-lhe: “Então, não quero nunca mais falar contigo”. Refere que,
nesse momento, tudo se passa como se o ex-namorado fosse a única pessoa
no mundo que ela tivesse para ficar.
8

Genograma da família e relacionamentos de Lara

Aspectos importantes:

1. O avô faleceu em decorrência de uma queda do telhado enquanto fazia


manutenção;

2. A mãe de Lara, Maria (41), desenvolveu um quadro de depressão pós-


parto após o nascimento de sua segunda filha Ana. Tratada com sertralina
na época e psicoterapia com remissão dos sintomas e consequentemente
alta.

3. Paulo (18) é atualmente seu namorado.


9

DESENVOLVIMENTO
i. Físico:
De acordo com a mãe de Lara, Maria, o desenvolvimento de sua
filha foi considerado normal, com consultas regulares ao pediatra, onde
ficava formidável com o desenvolvimento dela, com começo de
engatilhar aos seis meses e com um ano já andava, gostava muito de
pegar as coisas, era ‘curiosa e travessa’ com crescimento normal. Teve
a menarca com onze anos, sem espanto, de acordo com a mãe, aos
treze anos começou tomar algumas vitaminas pois ‘se achava pequena’.

ii. Cognitivo:
Segundo a sra. Maria, Lara sempre foi muito curiosa e atraída
pelo estudo, começou a falar espontaneamente por volta do segundo
ano, gostava de que lessem para ela e com uns quatro anos já lia
algumas ‘coisinhas’, nunca teve problemas de aprendizado, apesar de
ter um pouco dislexia, no início da adolescência, decidiu ser médica,
passando a estudar muito mais.

iii. Psicossocial:
A sra. Maria relata que Lara era bastante apegada a baba dela e
gostava muito quando sua tia passava a tarde com ela, pequena, tinha
só uma amiga, sua vizinha, muito ‘certinha’, sempre que fazia algo dizia
‘’é o certo né mamãe!’’, perguntava por que as pessoas estão tristes
quando olhava elas na rua, no ensino fundamental passou a ser mais
sociável, sempre gostava de se mostrar com canetas e cadernos
extravagantes, questionado, a mãe refere que Lara não teve um amigo
imaginário, não que ela soubesse. Com a adolescência, preocupou-se
com sua altura e o tamanho dos seus seios, bem como em ‘decidir seu
futuro’. A mãe reconhece que a filha é bastante vaidosa, além de ter
muitos amigos, mas não se permite interagir muito com eles, apenas
quando fazem questão de irem buscar ela em casa.
10

ANÁLISE

A respeito de seu encaminhamento, por sintomas físicos, aparamo-nos nos


pressupostos teóricos de Joyce McDougall (2018), onde a existência de ‘zonas
mortas’, estariam mascarando uma dependência adictiva de pessoas
narcisicamente investidas.
‘’Qualquer perturbação na relação com esses ‘selfobetos’² pode
mergulhar esses pacientes numa angústia estrema,
acompanhada do recrudescimento dos sintomas
psicossomáticos. [...] tais fenômenos tendem a ressurgir como
reação a cada separação. [...] algumas representações não-
reconhecidas, carregadas de afetos, de terror e de fúria,
constituem assim, frequentemente, elementos de precipitação de
fenômenos psicossomáticos.’’ Joyce McDougall (2018, pg.39).
Lara atende aos critérios ao DSM-V (APA, 2015), para transtorno de
personalidade narcisista, cumprindo os itens:

1. Tem uma sensação grandiosa da própria importância.

2. É preocupado com fantasias de sucesso, pode, brilho, beleza ou amor


ideal. 3. Acredita ser especial e único.

4. Demanda admiração excessiva.

6. É explorador em relações interpessoais.

9. Demonstra comportamentos ou atitudes arrogantes e insolentes.

Em uma revisão aos aspectos do transtorno de personalidade narcisista de O.


F. Kernberg (1997) citado por Clarkin, Fonagy e Gabbard (2013), vemos que
Lara cumpre com os requisitos para personalidade narcisista em:

1) Patologia do self: apresentado por Lara como egocentrismo,


dependência 2excessiva de atenção e fantasias de grandiosidade.

2) Patologia do relacionamento com os outros: Lara mostra inveja e


rivalidade com sua irmã, pela altura por exemplo, com seus colegas de
estágio e com o relacionamento namorado. Bem falta de empatia e falta
de capacidade de se comprometer a relacionamento, como por exemplo,
com seu ex-namorado.

² self-objetos podem ser designados as pessoas do meio ambiente – a mãe, principalmente,


responsáveis pela estruturação do self da criança. ZIMERMAN (2001).
11

3) Patologia do superego: Lara é motivada a evitar se sentir triste e


envergonhada. Busca excessivamente estar acima dos demais.

4) Sensação crônica de vazio e tédio: Lara realiza uma


supercompensassão com seus estágios e relacionamentos, mascarando
sentimentos de inferioridade.

Lara poderia ser considerada pertencente ao grupo de narcisistas distraídos


Gabbard (2016), caracterizado por:

1) arrogância e agressividade;

2) precisa ser o centro das atenções;

3) ser um remetente, mas não um destinatário, por exemplo da atenção,


dos afetos e grandiosidade.

Percebe-se no discurso de Lara que sempre falta algo para ela, principalmente,
em seu mundo interno. McWilliams (2014) observa que, em ‘’todo narcisista
vaidoso e impotente, esconde uma criança acanhada e consciente de si
mesma’’. No que tange a processos defensivos, Lara desvaloriza sua mãe,
enquanto idealiza seu pai, em um relacionamento que ela diz:’’ sentir como se
fosse uma irmã para ele’’,

Em uma leitura Winnicottiana, podemos encontrar no desenvolvimento de


Lara a existência de um estado de ilusão de onipotência, ‘’onde a criança, em
estado de dependência absoluta, tem a ilusão de possuir uma absoluta
independência.’’ (D. Zimerman, 1999). Sobre isso, Mc Williams (2014) constitui
como um aspecto do relacionado à atmosfera de constante avaliação, avaliação
esta, que se exemplifica nas falas de Lara em comparação com a altura da irmã,
bem como no desempenho na escola e no estágio. Lara, diante do nascimento
de sua irmã e a depressão pós-parto de sua mãe, se sentiu substituída, com
ameaça a seu apego e posição de receber o amor de sua mãe. Feist e Feist
(2015) apud Adler (1964), vai conceituar essas sensações diante do nascimento
de um irmão como uma inferioridade, a competição de Lara com sua irmã, busca
uma superioridade diante da ameaça de ser a inferior.

Podemos supor a existência do narcisismo de morte, título conferido à A.


Green (1976), onde se mostra pelas manifestações desobjetalizantes, em sua
12

história com a mãe, onde há o desligamento e a paralisia da libido identificada


com ela, identificação essa com a mãe depressiva, constituindo a mãe morta,
essa identificação projetiva constitui o núcleo do narcisismo de Lara, onde, para
não se identificar com a fraqueza e o estado depressivo da sua mãe, investe na
construção de um falso self, com elementos de um self grandioso para suprir
com as falhas e fraquezas da mãe. É necessário considerar, conforme D.
Zimerman (1999), que há dois elementos inerentes dos indivíduos narcisistas:
‘’A lógica do tipo binária, isto é, ou ele é o melhor ou é o pior, o segundo, é uma
permanente atitude de comparação com os demais’’.

Segundo D. Zimerman (1999) apud Bleichmar (1982), ‘’um estado


depressivo sobrevém toda vez que houver uma decepção tanto da parte do seu
ego ideal como do ideal de ego’’. Por essa razão, Lara necessita constantemente
ser elogiada e idealizada como madura, antecipada, inteligente e a melhor,
provas que lhe reasseguram a autoestima. Compreendemos que a ameaça de
perda de um de seus objetos reasseguradores, no caso seu namorado com
ameaças de término, constitui-se como um importante fator desencadeante de
uma depressão narcísica. Um pensamento que sintetiza bem essa paradigma
de Lara com seu namorado, é a ’incapacidade de amar.’’ Gabbard (2016). Lara
não se permite a um relacionamento real, mas sim, um idealizado, marcado pelo
sadismo de seu companheiro.

Ao compreendermos o desenvolvimento de Lara, pelas informações que


nos trouxe, conseguimos compreender o quanto foi difícil a seu processo de
múltiplas perdas e separações, a iniciar com a mãe após o nascimento de sua
irmã, onde não conseguia direcionar atenção para Lara, de sua tia, de sua avô
e da baba que cuidava dela e de sua irmã. Notemos um padrão feminino da
maternagem de Lara, talvez suprido pela ausência afetiva da mãe por conta de
sua depressão. Lara chega a informar que se recorda vagamente da tia lhe
dando de mamar por mamadeira, informação valiosa na compreensão de seu
desenvolvimento de personalidade. Lara com certeza é uma paciente com
personalidade narcisista, que desenvolveu um falso self diante dos abandonos
que iria sofrendo, diante da precariedade de recursos que a auxiliassem a lidar
com a angústia. Nos apoiamos para compreensão desse vazio afetivo de Lara
por sua mãe na teoria dos traumas cumulativos de Masud R. Khan.
13

‘’[...] o trauma cumulativo tem início no período de


desenvolvimento em que o bebê precisa e usa a mãe como seu
escudo protetor. Os inevitáveis fracassos temporários da mãe
como escudo protetor são corrigidos e sanados pelo
desdobramento da complexidade e ritmo dos processos de
maturação. Nos pontos em que esses fracassos da mãe no seu
papel de escudo protetor são significativamente frequentes, e
provocam invasões no psique-soma da criança, invasões que
esta não tem como eliminar, eles formam um núcleo de reação
patogênica. ‘’
Masud R. Khan (1977, p. 70).

Khan apoiado em Freud discorre sobre a ideia de um escudo protetor, escudo


esse que contêm as excitações externas, recebendo o nome de para excitação.
Freud desenvolve o pressuposto para a compreensão do trauma: o trauma seria
o rompimento da barreira antiestímulo, com a invasão de excitações no ego, de
tal forma que se inunda o ego em um tremendo mar de angústia.

‘’Imaginemos um organismo vivo em sua mais simplificada forma,


como uma vesícula indiferenciada de uma substância que é
suscetível de estimulação; então, a superfície voltada para o
mundo externo, pela própria situação, se diferenciará e servirá
como um órgão para o recebimento de estímulos’’
Freud (1920), (1976, p. 41)

E complementa: ‘’ Aquelas excitações de fora que são fortes o bastante para romper
a proteção contra estímulos são chamadas por nós de traumáticas.’’ Freud (1920),
(1976, p. 45)

Khan entende a mãe como um escudo protetor do bebê, o que corrobora


com o pensamento bioniano de uma função continente que traduz os estímulos
à criança. Nesse sentido, diz Khan:

‘’Se substituirmos, no modelo de Freud, a ‘vesícula não


diferenciada feita de uma substância sensível aos estímulos’ por
um bebê humano, teremos, então, o que Winnicott (1960)
descreveu como ‘um bebê sendo cuidado’. Um bebê sendo
cuidado tem como escudo protetor a mãe que cuida dele. Esta é
uma situação tipicamente humana no sentido de que essa
dependência do bebê é mais prolongada que a de qualquer outra
espécie conhecida.’’
Masud R. Khan (1977, p. 61-62).

Lara em seu desenvolvimento contou com inúmeras figuras que exerceram a


função da maternagem, fossem elas mesma sua mãe, sua tia, sua avó, sua baba
14

e por último, suas professoras. Lara de alguma forma, buscava conter suas
excitações e angústias sobre sua inferioridade compensando-as, buscando
gratificações e reconhecimento na relação com todas, a constituição do self-
grandioso mediante a imago parentalidade idealizada.

Para pôr fim, entender a importância do escudo protetor, Khan discorre


dizendo:

‘’Esse papel de escudo protetor constitui ‘o ambiente normal que


se pode esperar’ (Hartmann, 1939) para as necessidades
anaclíticas do bebê. Meu argumento é que o trauma cumulativo
resulta das fendas observadas no papel da mãe como escudo
protetor durante todo o curso do desenvolvimento da criança,
desde a infância até à adolescência – isto é, em todas as áreas
de experiência onde a criança precisa da mãe como um ego
auxiliar para sustentar sua funções do ego, ainda imaturas e
instáveis... O trauma cumulativo procede, portanto, das
tensões que uma criança experimenta no contexto da sua
dependência de ego com relação à mãe como seu escudo
protetor e ego auxiliar.
Masud R. Khan (1977, p. 62, grifo nosso).

Khan (1977 p. 66) apud Winnicott (1952) aponta que a mãe deveria, e na verdade tem
que desapontar o id, mas nunca o ego da criança. Neste sentido entendemos que a mãe
de Lara desapontou mutualmente seu id e seu ego, ego esse carregados das
representações de ausência, fossem elas paternas ou maternas, bem como às demais
perdas que fora acumulando. Nesse apontamento, Khan nos trás a informação que as
fendas no escudo protetor, necessariamente se constituem em traumas, mas comentem
ao ego um amadurecimento precoce Khan (1977).

Entendemos que Lara buscou nos objetos que constituíram em seu desenvolvimento, o
exercício da função anaclítica, onde apoiava-se sobre eles para manter sua autoestima
e reconhecimento. Nancy Mc Williams (2014) apud Blatt e col. (2004) traz a concepção
de uma depressão anaclítica na criança, a qual perde essa capacidade de se apoiar
sobre seus responsáveis, se sentindo rejeitada, ignorada e abandonada.
Compreendemos o momento em que se passava a mãe de Lara quando tudo isso
ocorreu, Khan (1977 p. 64) apud Winnicott (1956) discorre que ‘’o que motiva a mãe a
desempenhar o papel de escudo protetor para o filho é a sua preocupação materno
primária’’, a depressão pós-parto da mãe de Lara pode ter sido crucial para o surgimento
das primeiras falhas ambientais em seus cuidados, contudo não podemos afirmar que
foram só eles.

Finalizamos nossa análise na construção do falso self onde Khan (1977) elabora:
15

‘’A hipótese fundamental de Winnicott (1952) é de que todos os


relativos fracassos, no início da infância, de um meio
ambiente que seja um holding suficientemente bom (o papel
da mãe como escudo protetor) estabelecem uma compulsão
na criança relativamente amadurecida, e no adulto, no
sentido de corrigir os desequilíbrios e dissociações na
integração do ego. Isso se consegue pela regressão às
necessidades de dependência Na linguagem de Winnicott, o
estabelecimento do falso self é um resultado desse fracasso do
ambiente onde a criança é cuidada, de se adaptar através de um
holding suficientemente bom (1949). O que Winnicott chama de
‘’o falso self’’ é uma consequência caracterológicas da ruptura e
distorção da autonomia do ego. O que Winnicott chama de
‘invasões’ são os fracassos da mãe, no início da infância, no
dosar e regular os estímulos – externos e internos.’’

Khan (1977 p. 68, grifo nosso)

Com isso, concluímos que Lara sofreu enormes perdas no que tange ao holding,
ao cuidado que acreditava não ter recebido, a construção de uma Lara madura,
independente, superior foi formada para encobrir suas necessidades e cuidado,
carinho e amor. A deturpação e distorção do papel dos que estão a sua volta
como inferiores, como é o caso do seu pai, vem ao encontro de uma identificação
projetiva, Lara muito comumente projeta sobre seus familiares e em seu
namorado essa necessidade de ser vista como uma pessoa diferente, com altura
maior e com mais poder que os demais, preparada, destacada, potente. Lara se
viu com sintomas conversivos frequentemente nos desmaios, algo que trouxe
um ganho secundário à atenção recebida, em sua mudança de oposto, sádico,
Lara explora o lado masoquista com seu relacionamento, a mudança de ativo
para passivo é uma das características que Freud aborda em seu estudo sobre
a teoria da sexualidade, onde é uma das características da inversão, Lara para
não perder seu namorado, a qual é maior que ele em altura, se submete à ceder
na relação sexual, contra seu desejo, apenas para não ficar só. Lara não
demonstra vontade genuína no sexo, a falta de libido pode ser entendida como
uma sublimação as funções superiores que segue, como os estudo e seu
estágio, onde encontra a comoção e atenção de seus pares e professores por
onde estagia.
16

INTERVENÇÃO

Foram 16 sessões. Inicialmente foi oferecido a Lara um pedaço de folha


em branco, onde ela e eu pudemos desenhar enquanto conversávamos sobre o
que tínhamos associado ao desenho um do outro, técnica essa extraída do jogo
do rabisco de Winnicott. Um desses desenhos me chamou a atenção ao fato de
ser a ‘’maçã bichada’’

3. Desenho do terapeuta 3. Desenho da Lara

O terceiro desenho de Lara, a maçã, me fez lembrar da conhecida a


metáfora proposta por Ferenczi (1933/1992) da fruta bichada - madura por fora,
porém, apodrecida por dentro. Não quis arriscar com brinquedos, apesar de Lara
sempre encontrar por perto no armário uma boneca pequena, onde alisava seus
cabelos quando eu começava a clarificação de algumas questões trazidas, Lara
deixou de pegar a boneca próximo ao fim de nosso tratamento, quando pude
notar sorrir para ela, de seu assento para a estante (na 13ª sessão). Lara não
conseguia falar muito sobre o que via no cuidado que tinha pelas suas ‘várias
mães’, como ela mesmo dizia. Lara quando associava na poltrona, sempre
relutava com as confrontações que eram levantadas da forma que acha que é o
cuidar, em um momento, devaneia dizendo que ‘’não cresceu num berço de
ouro’’, mesmo não lhe faltando nada. Após alguma sessões, começou ter sonhos
onde trazia o conteúdo dela sendo mãe de um bebê sem rosto, associei isso ao
cuidado que ela sentiu, de não se enxergar no rosto da mãe. Lara apresentou
algumas regressões durante nosso tratamento. Houve um relato de ela ter
apresentado enurese noturna, após mais um dos sonhos com ela sendo mãe.
Lara, como mostrou a clínica, sempre tentava resistir ao setting, chegando
atrasada 5 minutos todas as sessões até a 5º, quando obtivemos um insight
sobre suas fantasias de esperar a mãe lhe buscar na escola. Durante o tempo
17

de terapia de Lara, muito se foi explorado a respeito de sua pseudomaturidade


e vulnerabilidade narcísica e da forma como se enxergava e via os demais.
Como se sentia sozinha e o que planejava para seu futuro. Em dado momento,
foi possível abordar o fato do que a impedia de se sentir amada e dependente,
foi explorado seu relacionamento com sua mãe onde Lara obteve insight a
respeito do seu relacionamento e relembrou momentos antes esquecidos de
brincar com sua mãe e sua irmã. Na penúltima sessão, Lara foi encorajada a
dizer a sua mãe o que sentia, sendo combinado essa oportunidade na última
sessão. Acompanhada do seu pai e mãe, Lara os convidou a entrar na sala.

Transcrição parcial da 16ª sessão:

T. Sr. Carlos e Sra. Maria, durante nosso período de tratamento, Lara veio
apresentando e ganhando maior confiança nos seus sentimentos, sobre si e aos outros.
Mas, mais do que importante de ouvir sobre seus ganhos e melhorias, é poder ouvir de
sua própria filha isso, Lara gostaria de falar com eles?
L. Bem, mãe, pai (suspiro profundo), eu percebi o quanto eu enxergava vocês
com outros olhos... não a realidade que eu enxergava, mas a aquilo que me dava
sentido, eu entendi o quanto foi difícil para a senhora cuidar de mim e da minha irmã,
acreditava que ela era mais importante para a senhora do que eu, e não! A senhora nos
amava por igual, eu nem lembrava, mas a senhora sempre comprava roupa para ela e
para mim, era tudo assim... eu hoje lhe enxergo como uma grande mãe que havia me
esquecido, (chorando nesse momento com a voz tremula), e quero dizer que eu te amo
muito, muito mesmo e pai, o senhor não é um babacão como eu o enxergava, é um
homem que sempre cuidou de nós. (aos prantos) Eu amor vocês, me perdoem se não
fui uma filha boa, me desculpe!

Após essa fala, os pais de Lara a abraçam, talvez, seja esse o olhar
genuíno de amor que Lara não conseguia lembrar quando olha para sua mãe
em seu colo.
Lara segue com acompanhamento de follow-up, seus pais como não tinham
questões entre eles, foram convidados a participar de umas duas sessões com
abordagem sistêmica. Lara vive melhor seu relacionamento com sua família,
amigos e escola.
18

CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Lara é mais um, das muitas, pacientes que se enquadram numa nova
clínica chamada a clínica do trauma. Pacientes como Lara mostram vunerabilidades
durante a constituição do seu narcisismo, processo evolutivo e necessário para a
consolidação do desenvolvimento da personalidade. Lara passou por aquilo que
podemos chamar de traumas cumulativos, uma má elaboração do luto dessas imagos
com sua introjeção caracterizada por uma perda, perda essa sentida por Lara, mas
não vivenciada. Lara cresceu rodeada de pessoas que lhe amavam, mas por carecer
da capacidade de enxergar esses afetos, considerava-os inexistentes. A construção
dessa couraça para melhor se socializar com as pessoas, a construção do persona
ou falso-self, foi um dos recursos empregados para garantir sua sobrevivência na
sociedade. Ao trabalhar a individualização de Lara, seus afetos em torno do abandono
sentido e do desamparo, pode se ver livre da angústia até então não nomeada por
ela, de ser substituída, de ser imperfeita, da sua não concretude, ansiedades de
fragmentação observadas em seus relacionamentos. Lara após a psicoterapia
psicodinâmica breve, obteve um amadurecimento de suas forças egóicas, pode sair
da crisis que se encontrava, percebemos que Lara estava próximo da vida adulta, o
que fomentou forte angústia referente sua identidade, suas escolhas de vida, uma
crise que acabou ressurgindo a poeira do passado que estava pousada sobre o ego.
Ao recorrer a psicossomática, Lara se viu dependente do cuidado de um terceiro.
Terceiro esse que exerceu a função de continente-conteúdo, nomeando sua angústia
e trabalhando no processo de ‘’limpeza da chaminé.’’
19

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASTRO, STÜRMER, ALBORNOZ. Criança e adolescentes em psicoterapia: a


abordagem psicanalítica. Porto Alegre: Artmed, 2009.
CLARKIN, FONAGYM GABBARD. Psicoterapia psicodinâmica para transtornos da
personalidade: um manual clínico. Porto Alegre: Artmed, 2013.
CORDIOLI, A. et all. Referência rápida aos critérios diagnósticos do DSM 5. Porto
Alegre: Artmed, 2014.
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition (DSM-V).
Arlington, VA: American Psychiatric Association, 2013.
DOLTO, F. Psicanálise e pediatria. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
EIZIRIK, AGUIARM, SCHESTATSKY. Psicoterapia de orientação analítica. 3. Ed.
Porto Alegre: Artmed, 2015.
FERENCZI, S. (1933). Confusão de línguas entre os adultos e a criança. São Paulo:
Martins Fontes, 1992. (Obras completas Sándor Ferenczi, 4).
FEST, JESS. Teorias da personalidade. Porto Alegre: Artmed, 2015.
FREUD, S. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Edição Standard.
Brasileira das obras completas, vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
GABBARD, O. Psiquiatria psicodinâmica na prática clínica. Porto Alegre: Artmed,
2016.
GLEY, P. A clínica psicanalítica das psicopatologias contemporâneas. 2. Ed. Porto
Alegre: Artmed, 2015.
KAPLAN, HAROLD I. Compêndio de psiquiatria. 7. Ed. Porto Alegre: Artes médicas,
1997.
KHAN, M. Psicanálise: teoria e técnica e casos clínicos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977.
LINS, M. Consultas terapêuticas: uma prática clínica de D. W. Winnicott. São Paulo:
Casa do psicólogo, 2016.
MCDOUGALL, J. Teatros do corpo: o psicossoma em psicanálise. 3. Ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2013.
MCWILLIAMS, N. Diagnóstico psicanalítico.2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014
PINHEIRO, T. Ferenczi. São Paulo: Casa do psicólogo, 2016.
ZIMERMAN, D. Fundamentos psicanalíticos. Porto Alegre: Artmed, 1999.
ZIMERMAN, D. Vocabulário contemporâneo de psicanálise. Porto Alegre: Artmed,
2001.

Você também pode gostar