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Unidas
Infância interrompida
(Caso Lara)
São Paulo
2021
Metamorfoses de Ovídio
livro III
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CARVALHO, Raimundo Nonato Barbosa de. Metamorfoses em tradução. São Paulo: Banco
de teses da USP, 2010.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 3
INFÂNCIA INTERROMPIDA 4
DESENVOLVIMENTO 9
ANÁLISE 10
INTERVENÇÃO 16
CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS 18
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 19
INTRODUÇÃO
INFÂNCIA INTERROMPIDA
Resumo Geral.
Lara não mede esforços, em particular para agradar aos demais e, nas
mais variadas situações, procura manter uma atitude sedutora, captando e
dizendo exatamente o que o outro pensa como forma de ser admirada, elogiada
e merecer uma posição privilegiada em relação aos reais ou imaginários
concorrentes, com os quais não compete exatamente por uma pessoa, mas por
um lugar junto a uma pessoa. Ela se encontra firmemente convencida de que
somente vão gostar dela se for uma pessoa bem-sucedida, mas não consegue
manter esse sentimento de uma forma continuada: encontra-se sempre
temerosa de que deixem de gostar dela. Na verdade, ela é descrente em relação
ao seu futuro e não confia em suas capacidades.
Histórico:
1) Comorbidades.
3) Relacionamentos.
Lara possui uma única irmã, dois anos mais moça, com a qual mantém uma
acirrada e declarada rivalidade, procurando destituí-la de qualquer qualidade.
Está convicta de que os pais protegem a irmã e se relaciona o mínimo possível
com ela. Segundo suas palavras, age como se esta não existisse, mas se irrita
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Refere que, ainda muito pequena, achava que a irmã a superaria em tudo e deu
início a uma luta em todas as frentes para reverter essa situação. Uma de suas
primeiras preocupações foi em relação à estatura, tendo em vista o comentário
de um médico de que a irmã poderia vir a ser mais alta que ela. Por conta disso,
chegou a persuadir seus pais a procurarem um profissional da área que, por
algum tempo, prescreveu-lhe medicamentos e acompanhou o seu
desenvolvimento. Ela também se empenhou para se tornar uma pessoa mais
culta, mais simpática e mais comunicativa que a irmã. Até completar 2 anos,
quando nasceu a irmã, Lara recebia os cuidados da mãe, da avó materna, de
uma tia solteira e da babá, com as quais revelava forte ligação afetiva,
mostrando-se uma criança muito feliz. Lara passou a receber os cuidados
exclusivos do pai, justificando o apego que, até hoje, mantém com ele, em que
pese acusá-lo de ser um homem muito fraco e se encontrar submetido à mulher,
revelando com essa acusação seu anseio de ter o pai só para ela. Na verdade,
Lara sempre esteve mais próxima do pai do que da mãe, acompanhando-o nos
fins de semana a jogos de futebol, escolhendo a mesma profissão e se
relacionando com seus amigos. Ela se encontra claramente identificada com o
pai de uma maneira muito particular, lembrando mais um acompanhante, um
irmão mais velho ou mesmo um amigo. Por outro lado, refere que a mãe é uma
mulher exigente, controladora e deprimida, que passa a maior parte do tempo
fechada em seu quarto e que se comporta como uma menininha mimada,
procurando chamar a atenção da família. O pai não concorda com a necessidade
de Lara se analisar por que acredita que ela pode resolver sozinha os seus
problemas, preferindo proporcionar-lhe cursos no exterior no lugar da análise.
Contudo, diante de sua insistência, dispôs-se a pagar o tratamento sob a forma
de um empréstimo, o qual ela deverá quitar depois de se formar. Lara entende
que o pai é contra o seu tratamento porque representa para ele um fracasso,
tendo em vista que pertence a uma família que ambiciona ocupar o primeiro lugar
em tudo.
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Aspectos importantes:
DESENVOLVIMENTO
i. Físico:
De acordo com a mãe de Lara, Maria, o desenvolvimento de sua
filha foi considerado normal, com consultas regulares ao pediatra, onde
ficava formidável com o desenvolvimento dela, com começo de
engatilhar aos seis meses e com um ano já andava, gostava muito de
pegar as coisas, era ‘curiosa e travessa’ com crescimento normal. Teve
a menarca com onze anos, sem espanto, de acordo com a mãe, aos
treze anos começou tomar algumas vitaminas pois ‘se achava pequena’.
ii. Cognitivo:
Segundo a sra. Maria, Lara sempre foi muito curiosa e atraída
pelo estudo, começou a falar espontaneamente por volta do segundo
ano, gostava de que lessem para ela e com uns quatro anos já lia
algumas ‘coisinhas’, nunca teve problemas de aprendizado, apesar de
ter um pouco dislexia, no início da adolescência, decidiu ser médica,
passando a estudar muito mais.
iii. Psicossocial:
A sra. Maria relata que Lara era bastante apegada a baba dela e
gostava muito quando sua tia passava a tarde com ela, pequena, tinha
só uma amiga, sua vizinha, muito ‘certinha’, sempre que fazia algo dizia
‘’é o certo né mamãe!’’, perguntava por que as pessoas estão tristes
quando olhava elas na rua, no ensino fundamental passou a ser mais
sociável, sempre gostava de se mostrar com canetas e cadernos
extravagantes, questionado, a mãe refere que Lara não teve um amigo
imaginário, não que ela soubesse. Com a adolescência, preocupou-se
com sua altura e o tamanho dos seus seios, bem como em ‘decidir seu
futuro’. A mãe reconhece que a filha é bastante vaidosa, além de ter
muitos amigos, mas não se permite interagir muito com eles, apenas
quando fazem questão de irem buscar ela em casa.
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ANÁLISE
1) arrogância e agressividade;
Percebe-se no discurso de Lara que sempre falta algo para ela, principalmente,
em seu mundo interno. McWilliams (2014) observa que, em ‘’todo narcisista
vaidoso e impotente, esconde uma criança acanhada e consciente de si
mesma’’. No que tange a processos defensivos, Lara desvaloriza sua mãe,
enquanto idealiza seu pai, em um relacionamento que ela diz:’’ sentir como se
fosse uma irmã para ele’’,
E complementa: ‘’ Aquelas excitações de fora que são fortes o bastante para romper
a proteção contra estímulos são chamadas por nós de traumáticas.’’ Freud (1920),
(1976, p. 45)
e por último, suas professoras. Lara de alguma forma, buscava conter suas
excitações e angústias sobre sua inferioridade compensando-as, buscando
gratificações e reconhecimento na relação com todas, a constituição do self-
grandioso mediante a imago parentalidade idealizada.
Khan (1977 p. 66) apud Winnicott (1952) aponta que a mãe deveria, e na verdade tem
que desapontar o id, mas nunca o ego da criança. Neste sentido entendemos que a mãe
de Lara desapontou mutualmente seu id e seu ego, ego esse carregados das
representações de ausência, fossem elas paternas ou maternas, bem como às demais
perdas que fora acumulando. Nesse apontamento, Khan nos trás a informação que as
fendas no escudo protetor, necessariamente se constituem em traumas, mas comentem
ao ego um amadurecimento precoce Khan (1977).
Entendemos que Lara buscou nos objetos que constituíram em seu desenvolvimento, o
exercício da função anaclítica, onde apoiava-se sobre eles para manter sua autoestima
e reconhecimento. Nancy Mc Williams (2014) apud Blatt e col. (2004) traz a concepção
de uma depressão anaclítica na criança, a qual perde essa capacidade de se apoiar
sobre seus responsáveis, se sentindo rejeitada, ignorada e abandonada.
Compreendemos o momento em que se passava a mãe de Lara quando tudo isso
ocorreu, Khan (1977 p. 64) apud Winnicott (1956) discorre que ‘’o que motiva a mãe a
desempenhar o papel de escudo protetor para o filho é a sua preocupação materno
primária’’, a depressão pós-parto da mãe de Lara pode ter sido crucial para o surgimento
das primeiras falhas ambientais em seus cuidados, contudo não podemos afirmar que
foram só eles.
Finalizamos nossa análise na construção do falso self onde Khan (1977) elabora:
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Com isso, concluímos que Lara sofreu enormes perdas no que tange ao holding,
ao cuidado que acreditava não ter recebido, a construção de uma Lara madura,
independente, superior foi formada para encobrir suas necessidades e cuidado,
carinho e amor. A deturpação e distorção do papel dos que estão a sua volta
como inferiores, como é o caso do seu pai, vem ao encontro de uma identificação
projetiva, Lara muito comumente projeta sobre seus familiares e em seu
namorado essa necessidade de ser vista como uma pessoa diferente, com altura
maior e com mais poder que os demais, preparada, destacada, potente. Lara se
viu com sintomas conversivos frequentemente nos desmaios, algo que trouxe
um ganho secundário à atenção recebida, em sua mudança de oposto, sádico,
Lara explora o lado masoquista com seu relacionamento, a mudança de ativo
para passivo é uma das características que Freud aborda em seu estudo sobre
a teoria da sexualidade, onde é uma das características da inversão, Lara para
não perder seu namorado, a qual é maior que ele em altura, se submete à ceder
na relação sexual, contra seu desejo, apenas para não ficar só. Lara não
demonstra vontade genuína no sexo, a falta de libido pode ser entendida como
uma sublimação as funções superiores que segue, como os estudo e seu
estágio, onde encontra a comoção e atenção de seus pares e professores por
onde estagia.
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INTERVENÇÃO
T. Sr. Carlos e Sra. Maria, durante nosso período de tratamento, Lara veio
apresentando e ganhando maior confiança nos seus sentimentos, sobre si e aos outros.
Mas, mais do que importante de ouvir sobre seus ganhos e melhorias, é poder ouvir de
sua própria filha isso, Lara gostaria de falar com eles?
L. Bem, mãe, pai (suspiro profundo), eu percebi o quanto eu enxergava vocês
com outros olhos... não a realidade que eu enxergava, mas a aquilo que me dava
sentido, eu entendi o quanto foi difícil para a senhora cuidar de mim e da minha irmã,
acreditava que ela era mais importante para a senhora do que eu, e não! A senhora nos
amava por igual, eu nem lembrava, mas a senhora sempre comprava roupa para ela e
para mim, era tudo assim... eu hoje lhe enxergo como uma grande mãe que havia me
esquecido, (chorando nesse momento com a voz tremula), e quero dizer que eu te amo
muito, muito mesmo e pai, o senhor não é um babacão como eu o enxergava, é um
homem que sempre cuidou de nós. (aos prantos) Eu amor vocês, me perdoem se não
fui uma filha boa, me desculpe!
Após essa fala, os pais de Lara a abraçam, talvez, seja esse o olhar
genuíno de amor que Lara não conseguia lembrar quando olha para sua mãe
em seu colo.
Lara segue com acompanhamento de follow-up, seus pais como não tinham
questões entre eles, foram convidados a participar de umas duas sessões com
abordagem sistêmica. Lara vive melhor seu relacionamento com sua família,
amigos e escola.
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Lara é mais um, das muitas, pacientes que se enquadram numa nova
clínica chamada a clínica do trauma. Pacientes como Lara mostram vunerabilidades
durante a constituição do seu narcisismo, processo evolutivo e necessário para a
consolidação do desenvolvimento da personalidade. Lara passou por aquilo que
podemos chamar de traumas cumulativos, uma má elaboração do luto dessas imagos
com sua introjeção caracterizada por uma perda, perda essa sentida por Lara, mas
não vivenciada. Lara cresceu rodeada de pessoas que lhe amavam, mas por carecer
da capacidade de enxergar esses afetos, considerava-os inexistentes. A construção
dessa couraça para melhor se socializar com as pessoas, a construção do persona
ou falso-self, foi um dos recursos empregados para garantir sua sobrevivência na
sociedade. Ao trabalhar a individualização de Lara, seus afetos em torno do abandono
sentido e do desamparo, pode se ver livre da angústia até então não nomeada por
ela, de ser substituída, de ser imperfeita, da sua não concretude, ansiedades de
fragmentação observadas em seus relacionamentos. Lara após a psicoterapia
psicodinâmica breve, obteve um amadurecimento de suas forças egóicas, pode sair
da crisis que se encontrava, percebemos que Lara estava próximo da vida adulta, o
que fomentou forte angústia referente sua identidade, suas escolhas de vida, uma
crise que acabou ressurgindo a poeira do passado que estava pousada sobre o ego.
Ao recorrer a psicossomática, Lara se viu dependente do cuidado de um terceiro.
Terceiro esse que exerceu a função de continente-conteúdo, nomeando sua angústia
e trabalhando no processo de ‘’limpeza da chaminé.’’
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS