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Nasci com 57 anos. Meu pai me legou seus 34, vividos com
duvidosos amores, desejos escondidos. Minha mãe me destinou
seus 23, marcados com traições e perdas. Assim, somados, o
que herdei foi a capacidade de associar amor ao sofrimento...
Morava numa cidade pequena do interior de Minas, enfeitada de
rezas, procissões, novenas e pecados. Cidade com sabor de
laranja-serra-d’água, onde minha solidão já pressentida era
tomada pelo vigário, professora, padrinho, beata, como exemplo
de perfeição.
(...) Meu pai não passeou comigo montado em seus ombros, nem
minha mãe cantou cantigas de ninar para me trazer o sono.
Mesmo nascendo com 57 anos estava aos 60 obrigado ainda a
ser criança. E ser menino era honrar pai com seus amores
ocultos. Gostar da mãe e seus suspiros de desventuras.
(...) Tive uma educação primorosa. Minha primeira cartilha foi o
olhar do meu pai, que me autorizava a comer ou não mais um
doce nas festas de aniversário. Comer com a boca fechada, é
claro, para ficar mais bonito e meu pai receber elogios pelo filho
contido que ele tinha. E cada dia eu era visto como a mais
exemplar das crianças, naquela cidade onde a liberdade nunca
tinha aberto as asas sobre nós.
Mas a originalidade de minha mãe ninguém poderá desconhecer.
Ela era capaz de dizer coisas que nenhuma mãe do mundo dizia,
como por exemplo: – Você, quando crescer vai ter um filho igual
a você. Deus há de me atender, para você passar pelo que eu
estou passando. – Mãe é uma só. (...)
A autobiografia de Bartolomeu Campos Queirós é marcada por uma certa tristeza e uma
forte crítica tanto à educação dos pais, quanto aos costumes da cidadezinha onde
nasceu. Dessa forma, ele rompe com a idéia de que criança é sempre feliz por ser
inocente e não perceber os problemas da vida.
O escritor dá a entender que todos nascemos velhos, porque somos parte de vidas já
vividas pelos pais e até mesmo pela sociedade - simbolizada em seu texto pela
cidadezinha em que nasceu.
Também vale notar a referência irônica ao célebre poema "Meus oito anos", de
Casimiro de Abreu ("Oh! que saudades que tenho/ da aurora da minha vida...)
Na biografia, a seleção dos eventos a serem apresentados é definida pelos outros, por
isso, a objetividade é mais evidente que na autobiografia, em que a pessoa escolhe o que
vai escrever sobre ela mesma.
Autobiografia e sátira
Falar de si mesmo é sempre difícil... Nada como uma boa dose de bom humor para
olhar para si próprio, não é mesmo? Leia como alguns autores tratam de suas biografias
de forma bem-humorada.
Aí eu peguei e nasci!
Perceba como José Simão, ao usar linguagem coloquial, expressões populares e gírias,
se aproxima do leitor de jornal e da Internet ao escrever um texto descontraído e cheio
de humor: "Aí eu peguei", "deu macaco na cabeça", "matava aula", "alguns bicos pra
BBC", etc.
Ao escolher "fatos não nobres" de sua autobiografia, José Simão torna seu texto mais
engraçado e carregado de ironia - uma boa maneira de fazer humor.
Leia a seguir a autobiografia de mais um humorista - Millôr Fernandes, um dos
fundadores do famoso jornal alternativo, dos anos 60 e 70, "O Pasquim":
Millôr
contradições/paradoxos;
chavões ou frases feitas, recriando-os;
criação de novas palavras, com fina ironia.
Enfim, muitas vezes, o gênero biografia pode ser uma boa desculpa para um escritor
fazer crítica social ou mesmo brincar consigo mesmo e com a própria humanidade.
Isto posto, declaro que nasci em Itabira, Minas Gerais, no ano de 1902, filho de
pais burgueses, que me criaram no temor de Deus. Ao sair do grupo escolar,
tomei parte da guerra européia (pesa-me dizê-lo) ao lado dos alemães. Quando
o primeiro navio mercante brasileiro foi torpedeado, tive que retirar a minha
posição. A esse tempo já conhecia os padres alemães do Verbo Divino (rápida
passagem pelo Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte). Dois anos em Friburgo,
com os jesuítas. Primeiro aluno da classe, é verdade que mais velho que a
maioria dos colegas, comportava-me como um anjo, tinha saudades da família,
e todos os outros bons sentimentos, mas expulsaram-me por "insubordinação
mental". O bom reitor que me fulminou com essa sentença condenatória
morreu, alguns anos depois, num desastre de bonde na Rua São Clemente. A
saída brusca do colégio teve influência enorme no desenvolvimento dos meus
estudos e de toda minha vida. Perdi a Fé. Perdi tempo. E sobretudo perdi a
confiança na justiça dos que me julgavam. Mas ganhei vida e fiz amigos
inesquecíveis. Casado, fui lecionar geografia no interior. Voltei a Belo
Horizonte, como redator de jornais oficiais e oficiosos. Mário Casassanta levou-
me para a burocracia, de que tenho tirado o meu sustento. De repente, a vida
começou a impor-se, a desafiar-me com seus pontos de interrogação, que se
desmanchavam para dar lugar a outros. Eu liquidava esses outros, mas
apareciam novos. Meu primeiro livro, Alguma Poesia (1930), traduz uma
grande inexperiência do sofrimento e uma deleitação ingênua com o próprio
indivíduo. Já em Brejo das Almas (1934), alguma coisa se compôs, se
organizou; o individualismo será mais exacerbado, mas há também uma
consciência crescente de sua precariedade e uma desaprovação tácita da
conduta (ou falta de conduta) espiritual do autor. Penso ter resolvido as
contradições elementares da minha poesia num terceiro volume, Sentimento do
Mundo (1940). Só as elementares: meu progresso é lentíssimo, componho
muito pouco, não me julgo substancialmente e permanentemente poeta.
Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero
honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor-de-cotovelo, falta de
dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo,
sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da
contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta
desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e
compromissos. Infelizmente, exige-se pouco do nosso poeta; menos do que se
reclama ao pintor, ao músico, ao romancista... Mas iríamos longe nesta
conversa. Entro para a antologia, não sem registrar que sou o autor confesso
de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem
escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas
em duas categorias mentais: