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A arte do vazio

Barbara Campiteli
Prof. Paulo César Antonini de Souza
Estética e Teoria da Arte I

Introdução

Em 6 de junho de 2021, o artista italiano Salvatore Garau vendeu uma escultura


invisível. Vendida na ART-Milão, a escultura, que só existe na cabeça do escultor e do
comprador, foi leiloada junto a um certificado assinado pelo artista no valor de 15 mil euros,
o certificado teria a prescrição para que a obra seja colocada em um espaço de 1,5m X 1,5m
junto de sua assinatura, somente. Após muitas polêmicas, o artista se defendeu dizendo ter
feito algo nomeado como “arte do vazio”. "A polêmica demonstra a vitalidade que a minha
obra gerou. Mas, eu não fui tão original. Já tem muito nada que é vendido por qualquer valor,
e ninguém dá bola", acrescentou.
Além disso, seu gesto não foi de fato muito original, podemos constatar com percurso
na história da arte do século XX vários exemplos de obras que se sugeriram como sendo do
próprio“vazio”/“nada”. Na última década teriam surgido pelo menos 3 museus dedicados e
destinados a esta modalidade artística. Aqui as obras trabalham com inconstância de uma
possível fusão entre prazer intelectual e prazer estético. Isso seria, o intelectual servindo em
razão do sensual e ignorando o visual, já que aqui, nesse exemplo, o objeto estudado como
fenômeno é invisível de matéria e prazeroso de ideias. Isto sendo, O próprio vazio.
Procurando pesquisar este acaso por um raciocínio duo sobre a arte, onde a mesma
percorrerá por dois distintos caminhos: a arte da ideia x arte como ação sensível.
Observando a história da arte é fato considerar que ela teria começado a dar espaço
para aquilo que nós na contemporaneidade nomeamos como arte conceptual nas realizadas
exposições dadaístas. Quando Marcel Duchamp (1887-1968) utilizava de matérias e objetos
cotidianos, a arte passava pelo estado de desmaterialização do objeto artístico, porque agora o
objeto seria algo comum ao dia a dia de todos, esse raciocínio do artista dava passos
pequeninos para o que eu nomeie antes como arte da ideia. Quando esse processo ocorre, a
arte se tornaria o sinônimo de um ideal conceitual onde sua matéria artística plástica em si era
recusada, desmontada e desmaterializada. Ali nas suas rodas e mictórios, Duchamp não
queria expor os materiais, a porcelana ou as tintas plásticas que seu mictório tinha, e sim
tratou de falar sobre uma arte feita desse processo, algo ideal, conceitual e experimental,
colocando de lado (não totalmente) a materialidade do objeto artístico e focando na sensação.
Formada desse conceito conceptual. Este movimento artístico abriu mão do formalismo e dos
objetos para se concentrar em ideias e conceitos, tendo em vista dessa arte como ação, a
matéria transformaria energia e tempo em movimento.
Situado (SCHILLER 1794), o próprio fala que sem a sensibilidade passiva não seria
possível ativamente ter um pensamento, é pois que para o próprio, que toda ideia estética (são
os processos passivos da sensibilidade e ativos das ideias juntos, isso formaria a experiência
estética, algo como olho e raciocínio) ocorre de uma ação conjunta, para ele a ascensão do
corpo (liberdade do homem) se encontraria no abandono dessas ações passivas da
sensibilidade, e de acender em uma realidade limitada por ideias, onde você se arrancaria do
limite do tempo, da sensibilidade sensível e percorreria um caminho onde se vista somente
ideias. Talvez o próprio não tenha tido a possibilidade de presenciar uma escultura invisível,
não acreditaria que uma palavra nomearia uma sensação invisível, uma arte como ação, ou
uma arte como ideia, a arte do nada, algo que mesmo “sem sensibilidade” estética alguma foi
vendido, pensado e nomeado. Uma escultura invisível de 15 mil libras, ideal até demais.

A arte da ideia
Buscando encontrar essa tal liberdade do homem tão falada por Kant, na qual o
homem se tornaria livre de um corpo de carne, estaria livre desse corpo que ainda necessita
da materialidade dos objetos para realizar uma experiência sensível. E para ele só assim
conseguiria elevar-se essa experiência sensorial a um ideal total, só assim, era possível um
raciocínio estético “total e liberto”. Quero encontrar aqui a resposta da dúvida que tanto me
aperta a garganta, conseguir traçar um limite nessas coisas invisíveis e estéticas. Investigar o
quão ideal e não sensível pode ser uma ideia, ver o quanto que o raciocínio precisa de um
olho e o quanto que um olho precisa do raciocínio.
Tentarei nomear com símbolos gráficos esse "ideal vazio”, tentarei do mesmo modo
de como os homens dão nome ao: infinito, divino e o tempo. Nomear as coisas e fenômenos
vazios de matéria, porém fundidos de ideias e pensamentos concretos, do qual só imaginam e
isso compõe essas coisas que o homem nunca viu, nunca vivera e no final a resultou em
“algo” nomeado. Algo não físico, porém real. Seguindo esse fio de raciocínio, a ideia se
torna uma máquina criadora do fazer arte, algo não visual, uma arte não visual, algo do que
se necessita fé para crer e não olhos para olhar. Algo que cegos e surdos possam nomear, algo
que não necessita da atividade passiva de sensibilidade.
O vazio em si da obra, a sua não presença, sua transparência invisível sozinha é o que
apresenta todos problemas de interpretação, ela não somente apresenta os problemas das
teorias de significação artística, como se torna e atinge o âmago das artes como um todo, em
geral.
Quando (SCHILLER 1794) diz em uma de suas cartas que “ um pensamento necessita
de um corpo” é colocado a ideia que uma experiência estética só existiria e nasceria nesse
conjunto, nessa relação ativa e passiva, de carne e ideais, corpo e psique. Gênese dessa
relação duo, todo conhecimento, toda experiência e toda memória se formaria dessa relação.
Aqui pensaremos em uma duo possibilidade de uma materialidade do “Vazio”. Algo
que a escultura invisível foi e é capaz de criar. A primeira (1) se situa como algo, um vazio do
qual existem na sua total ausência de materialidade física, e (2) como uma matéria mínima,
que seria capaz de expressar e dar corpo ao vazio, tornando ele seu principal conteúdo. Friso
o segundo caminho, onde a escultura invisível, além de viver somente na relação entre o
artista e o comprador, obra e espectador, a escultura tornaria a ter um estado mínimo de
matéria, uma matéria ideal, capaz de dar dimensões e linhas para esse invisível.
O quão físico e material pode se pesar uma ideia? Quão ideal e imaterial pode se
tornar uma expressão artística? Pensaremos primeiro então, como que essa ideia, que antes
para nós era imaterial, se materializou em algo não tão etéreo assim, é pois cabível de pensar
que uma ideia e um pensamento sempre terá o peso da carne que está por detrás dela,
(SCHILLER 1794) “pois um pensamento necessita de um corpo” no nosso caso, esse
pensamento (essa ideia) é uma escultura invisível, e esse corpo é de um artista italiano,
Salvatore Garau, logo tentarei ironicamente pesar sua ideia como algo de 80/70 quilos de
carne sensível e mais alguns litros de sangue.

Arte da ação
Voltando em Duchamp (1887-1968), podemos ver o porquê da desmaterialização e o
porquê do imaterial se tornarem fatores que devem ser levantados e distinguidos. A
desmaterialização é entendida por ser um processo que tem ação contrária da materialização,
é um processo no qual o artista dá ênfase aos processos e aspectos não visuais da obra, a
palavra escreve o ato dela mesma, se torna algo que não forma matéria.É, na verdade a ação
contrária da materialidade. E o imaterial percorre por outro lado, o lado IMATERIAL das
coisas, associadas a um grau de pureza; liberdade; idealismo; invisível; espiritual. O imaterial
negaria a matéria, e se torna algo ideal (liberto do homem) pois essa mesma não teria
existência palpável, existiria somente no mundo das ideias, assim como nossa escultura.
Voltemos então para o ponto interior, onde a arte do vazio seria aquela que existe somente na
sua completa ausência de materialidade. Assim, será compreendida como uma obra de arte
que procura expressar o vazio como seu principal conteúdo. A completa falta de
materialidade faz com que essas obras ocorram somente na ausência de matéria que poderia
ser recebida pelos sentidos. A matéria é ideal, e aqui, vazio é o próprio trabalho. Voltemos ao
nosso caso, em uma escultura sem vestígios de pedra, madeira, argila ou outros materiais. A
escultura invisível é construída de um vazio deliberado de silêncio, a obra que o artista busca
é essa que existe somente na sua própria ausência de uma obra material, essa espécie ideal e
não sensível. Esse vazio é algo que nunca vimos, nunca vivenciamos, passaremos então ao
contrário do que realmente é, para entendê-lo melhor, pensaremos o vazio e o silêncio, na
presença exagerada de barulho e símbolos, nomeando espaços, tempos e limites com
palavras. Quando nomeamos o vazio, o nada e a falta de tudo, não existe um começo, meio
ou fim para identificar esse processo. Desse modo, o tempo, o silêncio e a escultura invisível
se perpetuam em um espaço imaginativo do nosso cérebro, onde ficam as coisas que para nós
são inexistentes aos olhos.
Lembro também que a obra não está completamente vazia, pois ainda tem o peso de
uma matéria (a finalidade e as ideias concretas do artista) mínima. Por meio dessa mínima
materialidade que considera a escultura um trabalho, pensamos em um vazio, mesmo que
nunca tenhamos visto um vazio antes e isso se torna conteúdo. O vazio e o silêncio existem
somente como criações imaginárias nossas, são noções gerais que nos limitamos com signos,
nossas noções de vazio e silêncio são, portanto, estabelecidas por hábitos e palavras, e
provavelmente é assim também que se dá com as artes do vazio. Aceitar ou não a escultura
invisível é uma grande questão artística para nós. Assim como vazio, o nada e o silêncio que
apenas “existem” no nosso imaginário, e a escultura invisível que vive dentro da cabeça de
Salvatore Garau todos atingem o mesmo grau de questionamento dentro de mim.
Para debater esse fato, vou relacionar a outra artista e sua obra, na tentativa de dar
formato visual e concreto para o que foi e como já foi exposto o vazio através da história da
arte, Le Vide (1958), Yves Klein. Há 63 anos, o artista abriu uma exposição e mandou
convites onde estava escrito que ele mostraria uma “manifestação de síntese perspectiva”.
Klen afirmava como objetivo da exposição: "criar, estabelecer e apresentar ao público um
estado pictórico palpável, dentro dos limites de uma galeria''. A exposição durou 17 dias, e
na abertura, onde grupos de dez pessoas deveriam entrar por vez em uma sala onde poderiam
ficar por cerca de três minutos, somente com um guardanapo e um coquetel azuis na mão,
isso era tudo que as pessoas veriam l:uma pequena mesa e uma vitrine vazia. O que o mesmo
disse que representaria como uma imagem pictórica do vazio.

Figura 1- La spécialisation de la sensibilité à l’état matière première en sensibilité picturale stabilisée, Le Vide,
Yves Klein Exposição de Vide, (Maio 1958) Galerie Iris Clert, 3, rua de Beaux-Arts, Paris, France 530 x 310
x 280 cm

Fonte: http://www.yvesklein.com/

Considerações
Ainda assim, em si mesmos, o vazio e o silêncio não podem ser a própria criação
artística. Podemos concluir, por exemplo, que a arte do século XX, a expressão do vazio se
tornou de maneira curiosa cada vez mais realista, insolitamente procurada no seu “concreto e
material”, isto é, obras apresentadas ao público como um vazio completo, ou como uma
materialidade do vazio. Vários artistas contemporâneos procuraram isso, (CAUQUELIN,
2006) "[...] perseguir o invisível, visar ao inefável, desejar o nada, pretender-se transparente,
apagar os próprios rastros, não ser nada". Esse vai se tornar um dos principais objetivos dos
artistas.
“O que eu gostaria de fazer é um livro sobre nada. Foi o que
escreveu Flaubert a uma sua amiga em 1852. Li nas Cartas exemplares
organizadas por Duda Machado. Ali se vê que o nada de Flaubert não seria o
nada existencial, o nada metafísico. Ele queria o livro que não tem quase
tema e se sustente só pelo estilo. Mas o nada de meu livro é nada mesmo. É
coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de
amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, etc. etc. O
que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas mais úteis.
O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora.”
(BARROS, 1996, p.9).

As artes e a atualidade vão dando passos e se transformando em coisas que nunca


pensamos que poderiam acontecer antes. Ao final, pode-se ver que o vazio por si próprio não
pode ser artístico. Concluiu-se também que um mínimo de materialidade é essencial, mesmo
que essa materialidade tenha o peso das ideias. A arte do vazio é feita e encontra sentido
nesse estranhamento do público que não a vê, não a escuta, não lê e tenta imaginar e nomear
o nada com ideias simbólicas, isso é o que caracteriza esse processo dialógico entre a obra e o
espectador, resultando no desenvolvimento do próprio fenômeno: A arte vazio.

REFERÊNCIAS:

ADES, Dawn. Dadá e surrealismo. In: STANGOS, Nikos (org). Conceitos da arte moderna.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000 (trad. Álvaro Cabral).

BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Editora Record, 1996. 3 ed.
LOUISE, Victoria. A escultura invisível. ARTSoul. 11 Jun 2021. POR ARTSOUL EM JUNHO
11, 2021 POR ARTSOUL EM JUNHO 11, 2021
SONTAG, Susan. A estética do silêncio. In.: SONTAG, Susan. A vontade radical. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987 (tradução. João Roberto Martins Filho).

SCHILLER, Johann C. F. Sobre a educação estética do homem em uma sequência de cartas.


In: DUARTE, Rodrigo. (Org.). O belo autônomo: textos clássicos de estética. Belo
Horizonte: Autêntica, 2012, p.151-165.

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