Você está na página 1de 6

A NEGAÇÃO FREUDIANA: FISSURAS NA RAZÃO

CARTESIANA E NA NEUTRALIDADE CIENTÍFICA


*
Leila Ripoll

Resenha do livro FREUD, S. A negação. São Paulo: Cosac Naif, 2014.

A reedição recente desse texto freudiano, feita pela Cosac Naif, além do
primor editorial que é uma marca da editora, nos brinda com o prazer de ler
uma bela tradução, acompanhada de uma introdução com os comentários da
tradutora, Marilene Carone, e de um denso e conciso trabalho de interpretação
do texto freudiano por Vladimir Safatle. Traz, ainda, uma entrevista com
Newton da Costa sobre o interesse de sua lógica paraconsistente para a
psicanálise lacaniana e um artigo de Andrés Raggio sobre a negação e a lógica
paraconsistente de Newton da Costa. Em suma, uma publicação muito
importante que extrai inúmeras consequências teórico-clínicas desse pequeno
texto seminal de Freud.

Carone situa A negação no conjunto de obras de acabamento do edifício


freudiano, embora, segundo o próprio Freud, o texto coloque em cena novas
zonas obscuras que exigirão o trabalho do pensamento. Bem, é a isso que se
propõe essa nova edição mediante os trabalhos que a acompanham.

O comentário de Freud para Abraham, de que “é quase vergonhosa” a


dificuldade que encontrou na compreensão dessas relações mais fundamentais
até então inexploradas, mostra que percebeu o quanto era crítica a questão
que levantava ao abordar a questão da negação. Para além das inúmeras e
importantes consequências clínicas, no cerne dessa questão está a função do
juízo cuja complexidade Freud explicita:

A função do juízo tem essencialmente duas decisões a tomar: ela deve


conferir ou recusar a uma coisa uma determinada qualidade e deve

*
Psicanalista. Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (EBEP). Doutora em
Ciências em Engenharia de Computação (COPPE/UFRJ, 1990).
admitir ou contestar se uma representação tem ou não existência na
realidade (FREUD, 2014, p. 23).

Escolhi centrar meu comentário sobre as formulações acerca da função


do juízo devido à atualidade da contribuição freudiana nesses tempos atuais,
em que há uma crença inabalável na racionalidade científica e nas soluções
comportamentais para o sofrimento psíquico.

Freud mostra a importância do sentido da negação na origem


psicológica da função intelectual do juízo já que, ao negar algo, de fato, o
sujeito está afirmando que se trata de uma relação de sentido que preferiria
reprimir. Essa função foi estabelecida a partir da experiência da
percepção/satisfação, e, para Freud, isso não se dá como um processo
passivo. Assim, os julgamentos são construídos no processo de constituição
subjetiva, originariamente orientado pelo princípio do prazer, que regula a
inclusão ou não de algo no ego, e também pelas experiências de recalque. A
função do juízo só será possível com a constituição do símbolo da negação e
mediante certa independência das consequências do recalque e das
exigências do princípio do prazer.

Ao associar diretamente o símbolo da negação ao jogo das moções


pulsionais primárias, Freud desconstrói toda uma racionalidade cartesiana do
pensamento e também a afirmação de uma verdade inquestionável caucionada
pelos parâmetros da lógica clássica. Abre, assim, um rombo no supostamente
neutro edifício da ciência e nos raciocínios “bem-formados”. É a partir daí que o
pensamento lacaniano vai explorar, com vigor, a descoberta freudiana.

De fato, como mostra Safatle,

(...) Freud não admite distinções entre o sujeito psicológico e o sujeito do


conhecimento. Conhecimento e interesse são atividades que se
sobrepõem, o que o leva a procurar compreender como as funções do
julgamento podem ser estruturadas a partir das dinâmicas pulsionais. E,
se há uma similaridade entre o pulsional e as estruturas do julgamento é
porque o psicológico constitui o lógico (SAFATLE, 2014, p. 44).

Nesse processo em que se constitui o lógico, estão em jogo dois tipos


de julgamento: os julgamentos de atribuição e os julgamentos de existência,
sendo que os primeiros estão numa posição originária e têm uma prevalência
sobre os últimos. Portanto, conforme nota Safatle, quando Freud cita o
“princípio da realidade” não está, em absoluto, referindo-se a uma realidade
comum objetivada, mas sim a uma prova de realidade que, driblando os
desvios do recalque, busca realizar o princípio do prazer.

Ou seja, todo o problema da afirmação da existência supõe o reencontro


do objeto cujas qualidades foram atribuídas atendendo ao princípio do prazer.
Mas, então, se pergunta Safatle: qual o sentido da negação nesse reencontro
do objeto? A razão é que haveria realmente sempre algo de inadequado no
objeto percebido, algo que escapa.

De fato, essa inadequação está posta desde sempre já que para Lacan
(2012, p. 135) a separação característica que produz o solo constitutivo de um
sujeito não é a separação do corpo da mãe, que poderia, de algum modo, vir a
ser entendida como uma metáfora da negação clássica. O processo originário
de separação entre o eu e o não-eu se inicia, não pela separação da criança do
corpo da mãe, mas pela separação vital entre o feto e seus invólucros
embrionários, nessa fase pré-especular em que se produz objeto a, como
primeiro resto dessa separação. Esse a é a primeira manifestação dessa
inadequação e, por isso, condição preliminar de todo objeto de desejo e de
todas as suas estranhas aparições posteriores que devem então ser negadas.

O corte constitutivo do sujeito é produzido mediante uma falta-a-ser e


um resto. É a existência desse resto, causa do desejo, que sustenta o
argumento de Safatle para marcar a distinção entre a negação freudiana e uma
interpretação de Hyppolite da negatividade própria ao processo hegeliano de
constituição da consciência de si. Assim, Safatle mostra que a negatividade
hegeliana é uma negatividade sem restos, passível de ser inteiramente inscrita
num processo sublimatório e retorna ao texto freudiano para retirar as
consequências clínicas dessa distinção e apontar sua interpretação da
negação na fala do analisando.

Através da negação, o sujeito diz duas coisas. Ele diz qual o objeto
imediato de seu desejo; por isso ele afirma algo. Mas ele diz também
que tal objeto lhe apareceu como desejante apenas por ter permitido que
algo de radicalmente heterogêneo encontrasse uma forma de se
manifestar em sua fala; por isso ele nega algo (SAFATLE, 2014, p. 49).
Lacan (1967-68), ao tratar o tema da negação, no seminário de 28 de
fevereiro de 1968, apresenta a fragilidade do argumento que interpreta a
afirmação freudiana “o inconsciente não conhece a contradição”, reduzindo-a
apenas à falha da operação gramatical: ¬(¬A)=A, e insiste que, na gramática, o
lugar em que o sujeito da enunciação está mais visível é exatamente no uso
deste “não” (na fórmula acima representado por ¬)

Finalmente, faço algumas rápidas observações sobre os textos de


Newton da Costa e Andrés Raggio. A longa entrevista de Newton da Costa tem
o grande mérito de descrever a extrema complexidade das possíveis
aproximações entre a Lógica e a Psicanálise. É preciso evitar o simplismo de
inúmeras teorizações selvagens! Por exemplo, embora Costa reconheça o
interesse em lançar mão do Teorema de Gödel como recurso para aludir ao
caráter de incompletude e autorreferência de certos conceitos lacanianos, este
é um teorema da aritmética extremamente complexo e Costa diz estar
“cansado de ouvir tantas barbaridades a respeito desse teorema” (DA COSTA,
2014, p. 84).

Ele afirma literalmente que “formalizar não significa colocar uma


disciplina numa camisa de força”. E, mais importante ainda: “a formalização, o
formalismo por si mesmo, não resolve problema nenhum, em ciência nenhuma.
Nem esgota toda a ciência” (DA COSTA, 2014, p. 67). Além disso, destaca,
priorizando a experiência em relação à formalização: “Quase todas as nossas
inferências realmente importantes não são dedutivas, são indutivas” (DA
COSTA, 2014, p. 65).

No entanto, mesmo atentando às singularidades de cada campo, como


acontece nos trabalhos citados, é preciso que nos perguntemos sobre a
pertinência dessas intrincadas aproximações para uma melhor compreensão
conceitual e para uma efetiva relação dessa produção teórica com a
experiência analítica. Creio que essa é uma questão extremamente complexa,
mas gostaria apenas de apontar um problema que me parece crucial.
Algumas dessas formulações, de algum modo, pressupõem o campo da
psicanálise como a-histórico e estruturado como um saber lógico que se
constrói sobre uma linguagem esvaziada de corpo, de intensidade e de história.
Vide, por exemplo, a afirmação de Costa na sua busca de princípios lógicos
que exprimam o discurso analítico, ou seja, um discurso onde há contradições
e não vale o princípio do terceiro excluído. Costa afirma que o que se busca
são invariantes:

(busco) uma lógica que seja realmente a lógica que me dê alguns


invariantes do discurso analítico. Que seja comum a todo discurso
analítico. Qualquer que seja o analista, qualquer que seja o discurso,
você constata que pode haver contradição. Essa circunstância é um
invariante do discurso analítico, ao que tudo indica (DA COSTA, 2014,
p. 76).

Para não sermos recapturados na vontade de domínio racional presente


em qualquer lógica, talvez seja mais produtivo pensar o discurso analítico na
sua inserção histórica e a linguagem, fantasmaticamente, naquilo que Borges
descreve, com muita ironia, em seu ensaio La biblioteca de babel:

Afirmam os ímpios que o disparate é normal na Biblioteca e que o


razoável (e mesmo a humilde e pura coerência) é quase milagrosa
exceção. Falam (eu o sei) “a Biblioteca febril, cujos fortuitos volumes
correm o incessante risco de transformar-se em outros e que tudo
afirmam, negam e confundem como uma divindade que delira”. Essas
palavras, que não apenas denunciam a desordem mas que também a
exemplificam, provam, evidentemente, seu gosto péssimo e sua
desesperada ignorância. De fato, a Biblioteca inclui todas as estruturas
verbais, todas as variantes que permitem os vinte e cinco símbolos
ortográficos, porém nem um único disparate absoluto. Inútil observar que
o melhor volume dos muitos hexágonos que administro intitula-se Trovão
Penteado e A Cãibra de Gesso e outro Axaxaxas mlö. Essas
proposições, à primeira vista incoerentes, sem dúvida são passíveis de
uma justificativa criptográfica ou alegórica; essa justificativa é verbal e,
ex hypothesi, já figura na Biblioteca. Não posso combinar certos
caracteres dhcmrlchtdj que a divina Biblioteca não tenha previsto e que
em alguma de suas línguas secretas não contenham um terrível sentido.
Ninguém pode articular uma sílaba que não esteja cheia de ternuras
e de temores; que não seja em alguma dessas linguagens o nome
poderoso de um deus. (...) (BORGES, 2005, p. 521, grifo meu).

Referências bibliográficas
BORGES, J. L. A Biblioteca de Babel. In: Obras completas – volume I (1923-1949). São Paulo:
Globo, 2005.
DA COSTA, N. Psicanálise, Dialética e Lógica Paraconsistente. In: A negação. São Paulo:
Cosac Naif, 2014.
FREUD, S. (1925). A negação. São Paulo: Cosac Naif, 2014.
LACAN, J. (1962). O Seminário livro 10, A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores,
2004.
_______, (1967-68). O Seminário livro 15, O ato psicanalítico, notas do curso, publicação
informal.
SAFATLE, V. Posfácio – Aquele que diz “não”: sobre um modo peculiar de falar de si. In: A
negação. São Paulo: Cosac Naif, 2014.

Você também pode gostar