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Curso Integral

Retornar à filosofia: Leituras da


Dialética Negativa, de Adorno
1 semestre de 2006
13 aulas

Professor Vladimir Safatle


Departamento de Filosofia
Universidade de São Paulo
Adorno
Aula 1

Os homens só são humanos quando não agem e não se põem (setzen) mais como
pessoas; esta parte difusa da natureza na qual os homens não são pessoas
assemelha-se ao delineamento de uma essência (Wesen) inteligível, a um Si que
seria desprovido de eu (jenes Selbst, das vom Ich erlöst wäre). A arte
contemporânea sugere algo disto1.

Estas afirmações de Adorno servirão de horizonte de leitura para nosso comentário de


interpretação de sua obra filosófica mais bem acabada: a Dialética negativa, de 1966. Pois
nelas estão indicadas estratégias fundamentais para a compreensão da peculiaridade da
experiência intelectual adorniana em sua fase final. Estratégias que dizem respeito à
reconfiguração de dois dispositivos maiores da reflexão filosófica contemporânea: a
categoria de sujeito com suas articulações internas entre subjetividade, auto-identidade,
auto-determinação e a relação entre conceito e formalização estética. Uma reconfiguração
que, ao menos no que se refere à categoria de sujeito, deve alcançar, ao mesmo tempo, a
dimensão prática (o agir) e a dimensão propriamente judicativa (o pôr). Podemos utilizar
tais reconfigurações como ponto de partida para a abordagem do que estava realmente em
jogo na Dialética negativa.
Como vocês verão, esta escolha não é gratuita. Ela se justifica se recolocarmos a
Dialética negativa no interior da experiência intelectual adorniana. Sabemos que um dos
sentidos do projeto da Dialética do Esclarecimento, de 1947, consistia em, através de uma
auto-crítica totalizante da razão e de seus movimentos de interversão em práticas de
dominação, fornecer as condições de possibilidade para o advento de uma reorientação do
fundamento dos processos de racionalização. Assim: “a crítica aí feita deve preparar um
conceito positivo de esclarecimento, que o solte do emaranhado que o prende a uma
dominação cega”2. Este conceito positivo de esclarecimento, por mais irônico que possa
parece, será fornecido vinte anos depois pela Dialética negativa.
No entanto, durante toda a Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer não
deixaram de operar com um postulado que orienta a auto-reflexão da razão ao menos desde
Hegel. Trata-se da compreensão de que toda verdadeira crítica da razão tem seu solo na
crítica àquilo que serve de fundamento às operações de categorização e de constituição do
objeto de experiências que aspiram preencher critérios racionais de validade. Este
fundamento não é outro que a própria categoria de sujeito. Como veremos em outras aulas,
submeter a crítica da razão à crítica do sujeito é um dispositivo maior que permite a
articulação da dialética de inspiração hegeliana. Uma crítica que não segue a figura
heideggeriana de exigência de ultrapassamento da “metafísica do sujeito”, nas que
compreende que reformulações estruturais da categoria de sujeito implicam em
modificações na significação de operações lógicas elementares do pensar como: a

1
ADORNO, Negative Dialektik, Frankfurt, Suhrkamp, 1975, p. 274
2
ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro, Zahar, 1991, p. 15
identidade, a identificação, a constituição de relações e a unificação. Reformulações que
aparecem como condição para o advento de uma figura renovada da razão.

Neste sentido, boa parte das operações críticas da Dialética do Esclarecimento


visam demonstrar como o processo de constituição do Eu moderno, com suas exigências de
auto-identidade imediata e de auto-determinação, significou a submissão de toda
experiência possível ao primado da identidade e da abstração. Assim, por exemplo, se o
pensamento racional deve denegar toda força cognitiva da mimesis (tema maior do advento
da razão moderna no qual se vinculam a degradação do pensar por imagens e a crítica da
força cognitiva da semelhança e da analogia), é porque se trata de sustentar: “a identidade
do eu que não pode perder-se na identificação com um outro, mas [que] toma possessão de
si de uma vez por todas como máscara impenetrável”3. Pois a identidade do Eu seria
dependente da entificação de um sistema fixo de identidades e diferenças categoriais. A
projeção de tal sistema sobre o mundo é exatamente aquilo que Adorno e Horkheimer
chamam de “falsa projeção” ligada à dinâmica do narcisismo e as processos de
categorização do sujeito cognoscente4, já que, em última instância, a categorização seria
uma projeção do princípio de identidade do Eu na síntese do diverso da intuição em
representações de objetos da experiência. Mesmo a compreensão da cognição como de
assimilação do objeto através de uma rememoração (Erinnerung) capaz de internalizar as
cisões que a própria consciência teria produzido não escapará dos motivos da crítica
frankfurtiana. Neste momento, valem para Adorno e Horkheimer a afirmação de
Heidegger: “nos parece que, em todo lugar, o homem só encontra a si mesmo. Heisenberg
teve plena razão ao dizer que, para o homem de hoje, o real (Wirkliche) não pode parecer
de outra forma”5.
A lembrança de Heidegger neste contexto não é gratuita. Pois Adorno poderia ter
procurado reconstruir seu conceito positivo de razão através de alguma forma de retorno à
uma origem ou a um arcaico onde seríamos remetidos a um plano de imanência anterior aos
processos de individuação e capaz de fundamentar, através de uma metafísica renovada,
critérios de avaliação de processos de racionalização. Algo que encontramos, por exemplo,
na ontologia fundamental do ser. Ou Adorno poderia simplesmente insistir que o caráter
constitutivo da subjetividade é uma ilusão a ser desmontada através da defesa da
anterioridade e do caráter constitutivo dos campos intersubjetivos de interação social, algo
que, por sua vez, será feito pela guinada neo-pragmática da própria Escola de Frankfurt.
Ou ele poderia, ainda, assumir alguma forma de conjugação do discurso da morte do
sujeito, da sua redução a uma ilusão ideológica que impede a disseminação da diferença, de
multiplicidades não-estruturas ou de singularidades puras, isto na melhor tradição do pós-
estruturalismo francês. No entanto, nada disto foi feito por Adorno.
“Com a força do sujeito, quebrar a ilusão (Trug) da subjetividade constitutiva”6.
Esta foi a aposta de Adorno para a realização do programa de constituição de um conceito
positivo de razão. É ela que o leva a procurar um “Si desprovido de Eu”, ou seja, um sujeito

3
ADORNO e HORKHEIMER, p. 24
4
Neste sentido, sigamos a afirmação: “Sempre que as energias intelectuais estão intencionalmente
concentradas no mundo exterior (...) tendemos a ignorar o processo subjetivo imanente à esquematização e a
colocar o sistema como a coisa mesma. Como o pensamento patológico, o pensamento objetivador contém a
arbitrariedade do fim subjetivo que é estranho à coisa” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 180)
5
HEIDEGGER, Essais et conférences, p. 35
6
ADORNO, Negative Dialektik, p. 10
não mais vinculado à entificação das capacidades sintéticas e unificadoras do Eu. Um
sujeito que deixa de ser uma entidade substancial que fundamenta os processo de auto-
determinação e de constituição identitária de objetos, isto para transformar-se no locus da
não-identidade e da clivagem. Em um certo sentido, esta é uma operação tipicamente
hegeliana. Lembremos apenas que o sujeito hegeliana não é locus da identidade imediata,
mas cerne de uma experiência fundamental de negatividade, e se ele continua sendo
fundamento do saber, isto traz conseqüências profundas para os modos de orientação do
pensamento em suas múltiplas aspirações. De fato, esta articulação entre sujeito e negação
permitirá a Adorno constituir a noção do sujeito como campo de experiências de não-
identidade (vinculadas ao impulso [Impuls, Drang, Trieb], ao sensível e ao corpo), ou seja,
como campo de manifestação de uma negatividade não-recuperável fundamental para a
estruturação de uma subjetividade que não se perde no meio universal da linguagem.
Uma reflexão demorada sobre as relações entre a negatividade hegeliana, com seus
vários níveis, e a não-identidade adorniana se imporá no interior de nosso curso. Isto não
poderia ser diferente quando se trata de comentar um livro que começa afirmando:

A formulação “Dialética Negativa” vai contra a tradição. Desde Platão a dialética


procura estabelecer algo de positivo através do pensamento (Denkmittel) da
negação; figura de uma negação da negação posteriormente nomeará isto de
maneira pregnante. O livro gostaria de livrar (befreien) a dialética desta essência
afirmativa, mas sem nada perder em termos de determinidade7.

Ou seja, a reformulação adorniana da dialética está organicamente vinculada a uma


reconsideração sobre a função do negativo e de suas figuras (a negação da negação, a
negação determinada, a oposição, a contradição, o nada) no interior dos processos de
constituição de determinidades. Uma reconsideração que, por sua vez, nos leva
necessariamente à tematização do sentido da negatividade própria ao sujeito. Tais pontos
serão fundamentais para encaminharmos a análise desta semelhança de família conflituosa
e criativa entre Adorno e Hegel. Uma análise capaz de nos fornecer subsídios para a
reflexão dos modos contemporâneos e do sentido da recuperação de um pensamento de
orientação dialética em um tempo que se vê como marcadamente anti-hegeliano.
Por outro lado, veremos também como esta reconstrução adorniana da categoria de
sujeito em suas relações com a negação só poderá ser avaliada em suas operações centrais
se levarmos a sério o papel determinante do diálogo de Adorno com o pensamento
freudiano. Diálogo que não se reduz a textos pontuais sobre problemas metapsicológicos,
mas que influenciou de maneira decisiva o projeto filosófico adorniano e a estrutura de seu
conceito de autocrítica da razão. Pois o viés materialista próprio a Adorno fica
simplesmente incompreensível se negligenciarmos aquilo que a psicanálise lhe forneceu a
propósito da genética do Eu, da relação entre pulsão (Impuls) e estruturação do
pensamento, do papel das identificações na determinação da auto-identidade e da força do
narcisismo na colonização das formas de vida social. Em vários momentos, Freud parece
fornecer a Adorno a base material de suas reconsiderações a respeito da dialética hegeliana.
Tal centralidade do recurso à psicanálise na teoria adorniana é tão evidente que alguns
comentadores como Honneth chegaram a ver nisto a causa de um certo “déficit
sociológico” visível na impossibilidade de Adorno fornecer uma verdadeira reflexão sobre

7
ADORNO, idem, p. 9
os modos sociais de racionalização da sociedade. Lembremos do sentido de afirmações
como: “No lugar da questão sociológica a respeito dos modos de integração social e de
conflito social aparece [em Adorno] a questão referente à influência recíproca entre pulsões
individuais e reprodução econômica – ou seja, a aproximação possível entre psicanálise e
análise do sistema econômico”8. Assim, é através de uma articulação improvável entre
Hegel e Freud, já presente desde a Dialética do Esclarecimento, que encontraremos um
primeiro solo de orientação da Dialética negativa.

Pensar diante de um piano

Mas há ainda um outro aspecto fundamental para a compreensão do trajeto que leva
até a Dialética negativa e que expõe o sentido de seu projeto, assim como expõe o sentido
deste “retorno à filosofia” operado por Adorno à ocasião da sua redação. Praticamente ao
mesmo tempo em que escrevia a Dialética do Esclarecimento, Adorno terminava uma certa
“digressão” a seu livro que acabaria sendo lançada, alguns anos mais tarde, sob o titulo de
Filosofia da nova música. Estes dois livros têm uma relação absolutamente orgânica entre
si, até porque, em Filosofia da nova música, trata-se de mostrar as estruturas pelas quais os
processos de racionalização do material musical se intervém em dispositivos de dominação
da natureza, em dissolução da experiência da temporalidade, em submissão da expressão
subjetiva a uma gramática identitária dos afetos, entre outros. Ou seja, todos problemas
maiores para a compreensão do encaminhamento da auto-crítica da razão presentes na
Dialética do Esclarecimento são retomados aqui.
No entanto, este paralelismo entre Filosofia da nova música e Dialética do
Esclarecimento nos leva um problema de fundo; problema que diz respeito não apenas à
relação entre os escritos musicais e o escritos filosóficos em Adorno, mas a uma questão de
ordem mais ampla a respeito do sentido adorniano do recurso filosófico à arte, recurso que,
no caso adorniano, encontra na reflexão musical um momento privilegiado. Até porque,
podemos aprofundar tal paralelismo afirmando que, da mesma forma com que Dialética do
Esclarecimento e Filosofia da nova música são espaços de posição da extensão do projeto
de crítica da razão moderna, a Dialética negativa e a Teoria estética, livro concebidos
simultaneamente e apresentados como o que Adorno tinha para “colocar na balança”, estão
organicamente unidos na procura em construir um conceito positivo de racionalidade. Não
é por outra razão que os mesmo conceitos utilizados a reconstrução das categorias da
dialética em Dialética Negativa estão presentes fornecendo a ossatura da Teoria estética:
mimesis, primado do objeto (que na Teoria estética aparece principalmente como
resistência do material), sínteses através de constelações, irredutibilidade de um conceito
renovado de sujeito (irredutibilidade de um conceito renovado de expressão), insistência na
dialética sujeito/objeto, a noção de história natural.
É verdade que a Dialética Negativa é extremamente econômica em recursos
explícitos às artes. Mas esta economia não deve nos enganar. Boa parte do período que vai
da Dialética do Esclarecimento á Dialética Negativa foi dedicado à reflexão sobre a música
(9 livros em 20 escritos no período) e sobre a literatura (3 livros). E uma leitura atenta desta
produção demonstra como vários conceitos que ganharão importância central na
constituição do programa filosófico de Adorno foram gerados, inicialmente, através da

8
HONNETH, Critic of power, MIT Press, 1991, p. 101
confrontação com o estado atual das obras estéticas, em especial das obras musicais. E se a
Dialética Negativa não apresenta diretamente tais elaborações, é porque elas já foram
apresentadas em outro lugar: modo de apresentação em um lugar outro que nos diz muito a
respeito do modo com que Adorno pensa a relação entre a filosofia e seus exteriores. Pois
esta exterioridade da Dialética Negativa em relação a temas estéticos (uma exterioridade
que o próprio Adorno define a partir do “tomar distância” – fernhalten – ou da
descontinuidade) não pode ser pensada como aquilo que Hegel chamava de “exterioridade
indiferente”.
Podemos, inicialmente, encaminhar tal questão através da apresentação de uma
resposta ao problema do regime de recurso filosófico à arte na experiência intelectual
adorniana. É notável que em momento algum tal recurso opere a partir da lógica da
exemplificação. Para Adorno, as obras de arte não são um caso exemplar daquilo que a
elaboração filosófica seria o conceito.
De maneira esquemática, é possível dizer que há, ao menos, três maneiras de se
pensar os modos de indexação entre conceito e caso. O primeiro é o caso como exemplo do
conceito. Aqui, há uma relação tautológica de subsunção da particularidade do caso à
generalidade do conceito, até porque não há nada a apreender do caso que já não esteja no
conceito [ Uma rosa é uma rosa]. O segundo é o caso como ponto de excesso do conceito.
Trata-se da defesa da existência de uma relação de não-estruturação do caso pelo conceito,
como se houvesse uma irredutibilidade da multiplicidade própria ao caso a toda tentativa de
estruturação pelas capacidades generalizadoras do conceito. Por fim, podemos dizer que o
caso é um modelo do conceito e se dissermos isto estaremos mais perto do que Adorno tem
em vista através do seu recurso filosófico às artes. Trata-se de mostrar como o verdadeiro
caso é aquele que traz em si modos de organização capazes de reordenar as aspirações
sintéticas do conceito.
Esta é uma questão maior para nós, até porque Adorno é claro em afirmar o primado
do modelo em filosofia: “Pensar filosoficamente é como pensar por modelos; a dialética
negativa é um conjunto de análises de modelos”9. Assim, devemos responder: o que
significa afirmar que a confrontação com as obras de arte é o modelo para a reconstituição
do pensar filosófico?
Nós veremos na próxima aula a especificidade e complexidade do conceito
adorniano de modelo. Mas, por enquanto, podemos insistir em um ponto. Pois afirmar que
a confrontação com as obras de arte é o modelo para a reconstrução do pensar filosófico
significa sustentar que a arte pensa, que ela é um campo produtor de verdades. Talvez ela
não pense exatamente por conceitos e com seus processos de submissão da particularidade
do caso a universalidade de representações gerais, mas ela pensa por formalizações. De
qualquer maneira, a idéia de forma liga ainda a arte a um certo nível de articulações lógicas
do conceito. Por outro lado, ela nos fornece modos de formalizações de objetos que, por
que não dizer as coisas às claras, tem aspirações cognitivas. A este respeito, lembremos
como a Teoria estética de Adorno não temia em afirmar que “a problemática da teoria do
conhecimento retorna (wiederkehren) imediatamente na estética”10. Ele vai ainda mais
longe, na medida em que afirma que a formalização estética deve ser compreendida com
“correção do conhecimento conceitual”, já que a : “arte é racionalidade que critica a

9
ADORNO, idem, p. 39
10
ADORNO, Ästhetische Theorie, Frankfurt, Suhrkamp, 1972, p. 493
racionalidade sem dela se esquivar”11. A crítica da arte em relação ao conceito se legitima
na medida em que, para Adorno, a formalização estética é capaz : “de absorver na sua
necessidade imanente o não-idêntico ao conceito”12 colocando-se assim como dimensão de
verdade. Pois: “Com o progresso da razão, apenas as obras de arte autênticas conseguiram
evitar a simples imitação do que já existe”13. Um exemplo do gênero de “correção” que a
arte pode nos fornecer: “A grosseria do pensamento é a incapacidade de operar
diferenciações no interior da coisa, e a diferenciação é tanto uma categoria estética quanto
uma categoria do conhecimento”14.
Ou seja, contrariamente a uma tendência geral do pensamento estético do século
XX, Adorno não cessa de analisar as obras de arte a partir do critério de verdade e de
falsidade, de autenticidade e de inautenticidade, tal como, por sinal, Arnold Schoenberg.
Isto permite Adorno relativizar a tendência de autonomia das esferas sociais de valor e
afirmar que a atividade artística nos fornece coordenadas para pensarmos a ação moral e as
expectativas cognitivas. Contrariamente a Kant, para quem o acordo intersubjetivo sobre o
Belo não exigiria nenhuma referência à verdade racional ou à norma moral, Adorno não
cessa de insistir que forças idênticas agem sobre esferas não idênticas.
Este recurso filosófico à arte deve, no entanto, ser colocado em seu verdadeiro
campo. Pois não se trata aqui de utilizá-lo como álibi para o abandono do conceito em prol
de alguma espécie de imanência com domínios pré-conceituais da intuição, de afinidade
pré-reflexiva entre sujeito e natureza ou de hipóstase do inefável, do arcaico e do originário.
Ao contrário, tal recurso privilegiado quer dizer simplesmente que precisamos sustentar
modos de formalização que não sejam redutíveis aos processos de conceitualização com
suas estratégias de submissão do diverso da experiência à atribuição predicativa de traços
de identificação positiva. Esta distinção necessária entre formalização e conceitualização
pode nos explicar a importância da estética e da música no interior da filosofia adorniana. A
arte (em especial a música) é espaço de reflexão sobre modos de formalização que podem
indicar o limite à prosa comunicacional do conceito. Mas, para tanto, é necessário parar de
ver, na arte, a simples indicação de uma estética e assumí-la como setor privilegiado da
história da razão, ou seja, parar de ver, no recurso adorniano à arte, apenas a tentativa de
constituir uma estética inflacionada de vocabulário filosófico. Devemos derivar todas as
conseqüências do fato de uma certa experiência estética, com seus protocolos de
formalização, fornecer a Adorno o modelo de reorientação das categorias da dialética, em
especial a categoria de sujeito. Um dos objetivos deste curso consiste em mostrar como esta
operação está presente (uma presença que muitas vezes se dá sob a forma da pressuposição)
na Dialética Negativa.

A filosofia e seus limites

Mas defender o caráter fundador desta relação entre estética e filosofia em Adorno
exige algumas considerações preliminares sobre a própria natureza peculiar do discurso
filosófico adorniano, e aqui retornamos ao problema do regime de exterioridade
pressuposto pelo programa filosófico adorniano em relação a campos autônomos do saber.

11
ADORNO, idem, p. 87.
12
ADORNO, idem, p. 155
13
ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do esclarecimento, p. 34
14
ADORNO, AT, p. 344
Uma das maneiras de lembrar esta peculiaridade é insistindo que Adorno partilha uma certa
tensão interna à filosofia contemporânea que a levou a se deparar continuamente com os
limites do discurso filosófico, misturando-se com aquilo que lhe era aparentemente
estranho. Forçagem que impediu a filosofia de se transformar em : “Perpétua reduplicação
de si mesma, em um comentário infinito de seus próprios textos e sem relação a
exterioridade alguma”15. Assim, por exemplo, a redação d’O capital de Marx, marcou o
ponto no qual a filosofia estava prestes a se transformar em economia política. Assim falava
Zaratustra, de Nietzsche, o ponto mais alto do flerte entre filosofia e literatura. Toda a obra
de Adorno, o ponto no qual a filosofia instaurou uma relação de deslocamento contínuo em
direção à crítica da cultura. A obra de Foucault, o ponto crítico no qual a filosofia
reconhece a partilha de seu método com uma certa concepção genealógica de história.
Investigações filosóficas, de Wittgenstein, o ponto no qual a filosofia quase não consegue
mais se diferenciar da análise da linguagem ordinária. Sem dúvida, esta lista poderia ser
acrescida de vários outros exemplos.
Não se trata aqui de ignorar sistematicamente a autonomização da legitimidade das
esferas do saber na época atual e de propor alguma espécie de imperialismo filosófico no
qual a filosofia teria sempre a última palavra a dizer a respeito dos desenvolvimentos dos
campos empíricos de pesquisa. Nem se trata por outro lado, de dissolver o estatuto
autônomo do discurso filosófico. Uma dissolução que poderia ser operada através da
redução da filosofia à ideologia reificada de uma história material das sociedade, ou ainda
através da assunção do projeto de uma grande “conversação” na qual o discurso filosófico
depõe suas aspirações em fornecer fundamentos aos processos de justificação e validade a
fim de comparecer como uma das vozes que ressoam no campo da cultura (como o quer
Richard Rorty). Isto sem deixar de pensar na dissolução da filosofia através do
embaralhamento sistemático da diferença genérica entre filosofia e literatura (como o quer
Jacques Derrida).
A constatação de uma operação de forçagem e de descentramento discursivo que
constitui a essência de alguns projetos filosóficos da contemporaneidade pode nos levar a
uma outra conclusão. Ela é capaz de nos indicar que talvez existam objetos que só podem
ser apreendidos na interseção entre práticas e elaborações conceituais absolutamente
autônomas e com causalidades próprias. Quando Marx pensa o problema da produção da
aparência, ele só pode pensá-lo ao construir um ponto de cruzamento entre a análise do
processo de determinação social do valor das mercadorias no capitalismo e a reflexão
lógica sobre a dialética entre essência e aparência a partir de Hegel. Estas duas séries de
saberes são autônomas e irredutíveis, uma não depende nem é a “aplicação” da outra (o
problema da determinação social do valor é da ordem da economia política e sua
causalidade é economicamente determinada). Mas tais séries devem se cruzar para que um
certo objeto possa ser apreendido. E elas devem se cruzar no interior do texto filosófico. Só
a elaboração conceitual sobre a dialética essência/aparência ou só a análise econômica do
problema do valor da forma-mercadoria não seriam capazes de apreender o
“acontecimento” que está em jogo no pensamento de Marx.
Poderia fornecer outros exemplos. Quando Foucault, em História da loucura, define
aquilo que ele chama de “grande internação” e que marca um momento de modificação
radical no estatuto da loucura que ocorre no século XVII, ele insiste em mostrar como o
significado de tal modificação só pode ser pensável e apreendido ao articularmos

15
FOUCAULT, Réponse à Derrida in Dits et écrits, p. 1152
acontecimentos absolutamente independentes e que seguem lógicas próprias. A medida
administrativa que consistiu em internar libertinos, desempregados e loucos em antigos
leprosários desativados não participa da mesma lógica que levou Descartes a conceber, de
uma maneira excludente, a relação entre racionalidade e loucura nas Meditações. No
entanto, a reflexão sobre estes dois acontecimentos deve convergir para que possamos
apreender a maneira com que a razão moderna define o que lhe é exterior.
Estas colocações valem, de maneira orgânica, para Adorno. O problema do
pensamento da irredutibilidade da subjetividade em Adorno participa desta mesma lógica.
Novamente vemos o caso de um objeto que só pode ser pensado através de uma
convergência entre duas séries absolutamente distintas e autônomas de saberes. O problema
da resistência do material musical em Berg, nas últimas obras de Schoenberg e em certas
obras da Escola de Darmstadt não participa da mesma lógica do questão a respeito da
irredutibilidade da categoria do sujeito no pensamento de tradição dialética. No entanto, é
ao convergir tais séries, sem que uma seja o mero desdobramento da outra, que Adorno
consegue definir a não-identidade como objeto, por excelência, do pensamento filosófico.
Isto pode nos oferecer uma interpretação a esta justificação lapidar ao projeto
adorniano que encontramos logo nas primeiras páginas de Dialética Negativa: “A filosofia,
que anteriormente parecia ultrapassada mantém-se em vida porque o momento de sua
realização foi perdido (versäumt)”16. Perder o momento de sua realização significa, para a
filosofia, não poder absorver a efetividade através de sua linguagem e conceitografia. Não
se trata apenas de afirmar o diagnóstico histórico segundo o qual a promessa de unidade
entre o pensar e a efetividade foi quebrada porque o desenvolvimento do capitalismo
inverter todas as aspirações do esclarecimento em seu contrário no momento mesmo em que
tais aspirações são implementadas. Ou seja, tal promessa foi quebrada não devido a um
pretenso descompasso insuperável entre conceito e efetividade, mas devido a inversões nos
modos de aplicação do próprio conceito. A ruptura não é entre conceito e efetividade, mas
entre o conceito e si mesmo. Daí porque a filosofia deve “obrigar-se a criticar a si mesma “.
Mas tal obrigação de auto-crítica não significa apenas re-conpreender, de maneira
dialética, os modos de aplicação do conceito à efetividade. Ela deverá falar da efetividade
através de uma linguagem que é, em vários pontos, exterior à própria filosofia, linguagem
de confrontação com os campos empíricos do saber (estética, sociologia, economia política,
ciências humanas), já que são tais campos que fornecem à filosofia uma capacidade
fundamental de pensar o acontecimento pensar o impacto do acontecimento na
compreensão dos modos de aplicação do conceito (o que Adorno fará de maneira quse
pedagógica no último capítulo da Dialética Negativa: “Meditações sobre a metafísica”).
Mas só a filosofia pode falar uma outra língua sem se calar.

Sobre a estrutura do curso

Neste ponto, gostaria de expor a estrutura de nosso curso a fim de explicar como
pretendo encaminhar tais discussões. Teremos 12 seções e todas elas serão aulas
expositivas dedicadas ao comentário de texto. O comentário privilegiará a sistematização
de questões aprofundando certos tópicos que forem considerados os mais relevantes. O
número reduzido de seções impede um comentário linear do texto. As seções serão dividads
da seguinte forma: 2 para o comentário da “Introdução”, 2 para a primeira parte “Relação à

16
ADORNO, ND, p. 15
ontologia”, 2 para a segunda parte “Dialética Negativa: Conceitos e categorias”, 2 para
“Liberdade: por uma metacrítica da razão prática”, 2 para “Espírito do mundo e história
natural” e 1 para “Meditações sobre a metafísica”.
Nas aulas dedicadas à Introdução, será questão, principalmente, da maneira com que
Adorno configura sua noção de experiência intelectual através do recurso a conceitos
dialéticos maiores como: totalidade, conceito, infinito, contradição, sistema, síntese e
sujeito. Tal recurso será retomado na segunda parte “Conceitos e categorias” e permitirá, ao
final do livro, uma recuperação peculiar da metafísica. Uma metafísica não pensada mais
como regime discursivo de determinação positiva da disposição e sentido dos entes, mas
como possibilidade daquilo que aos poucos configuraremos como sendo uma “ontologia
negativa”, ontologia assentada no reconhecimento da dignidade ontológica da negação.
No comentário à primeira parte, “Relação à ontologia”, trata-se de dar conta da
crítica à ontologia fundamental do ser, perspectiva heideggeriana contra a qual Adorno
mede-se durante vários momentos de sua trajetória intelectual. A perenidade da
confrontação entre Heidegger e Adorno (lembremos, por exemplo, de Idéia de uma história
natural, dos inícios dos anos trinta, e Jargão da Autenticidade) é sinal de uma relação de
oposição entre os dois. Como toda relação de oposição, ela é necessária enquanto
definidora das especificidades de um programa intelectual. Adorno, em vários momentos,
afirma que Heidegger está “no limite da dialética”, que seu recurso à ontologia está a ponto
de alcançar a posição da dialética negativa. De fato, não foram poucos os comentadores que
encontraram mais de um ponto de aproximação entre os pressupostos da crítica da razão
presentes em Adorno e Heidegger, proximidade que obriga Adorno, em muitos momentos,
a desqualificar o pensamento heideggeriano por meio de bravatas como: “irracionalista”17.
Neste sentido, nosso esforço de leitura consistirá em identificar os pontos de aproximação e
distanciamento que organizam tal embate. Esforço que, ao final, tentará mostrar em que a
auto-crítica adorniana da razão moderna não pode se ancorar na temática do
ultrapassamento da “metafísica do sujeito”. Para tanto, eu pediria principalmente a leitura
de dois textos de Heidegger bastante utilizados por Adorno: Sobre o humanismo e A lição
de Platão sobre a verdade.
No comentário à segunda parte, “Dialética Negativa: Conceitos e categorias” ,
entraremos, de maneira mais articulada, naquele que é o ponto-chave de constituição da
tarefa de comentário do texto adorniano: a avaliação da relação à Hegel na fundação de um
projeto renovado de dialética. Para tanto, será recomendado a leitura da primeira seção da
Doutrina da essência, em especial o capítulo dedicado à identidade, à diferença e à
contradição. Trata-se de defender a tese de que a distância que separa Adorno e Hegel é
menor do que aquela que o próprio Adorno está disposto a aceitar. Isto implica em
determinar como, em vários momentos da sua produção bibliográfica, o próprio Adorno
concede a Hegel a presença de temáticas fundamentais para a formulação das categorias da
dialética negativa, como: mimesis, contradição objetiva, lógica da desintegração,
Sachhaltige, entre outros. Pois devemos levar a sério o que diz o próprio Adorno a respeito
da arte de ler Hegel: “A arte de ler Hegel deveria estar atenta ao momento no qual intervêm

17
A este respeito, vale sempre a pena lembrar da afirmação de Bento Prado: “Irracionalismo é um
pseudoconceito. Pertence mais à linguagem da injúria do que da análise. Que conteúdo poderia ter, sem uma
prévia definição da Razão? Como há tantos conceitos de Razão quantas filosofias há, dir-se-ia que
irracionalismo é a filosofia do Outro. Ou pastichando uma frase de Emile Bréhier que, na ocasião, ponderava
as acusações de “libertinagem”, poderíamos dizer: “On est toujours l´irrationaliste de quelque´un” (PRADO
JR., Erro, ilusão, loucura, p. 256)
o novo, o substancial e distingui-lo do momento no qual continua a funcionar uma máquina
que não se vê como uma e que não deveria continuar funcionando. É necessário a todo
momento tomar em consideração duas máximas aparentemente incompatíveis : a imersão
minuciosa e a distância livre”18. Pois a arte de ler o Hegel de Adorno deve estar atenta a
estes momentos em que uma síntese conceitual só poderia funcionar de maneira maquínica,
pois ela deveria dar lugar a um outro modo de formalização capaz de coservar os
acontecimentos que a filosofia hegeliana é capaz de identificar. Mas isto significa, em
nosso caso, defender a hipótese de que a diferença entre Hegel e Adorno não está lá onde o
próprio Adorno aponta, ela não está na teoria das negações que suporta a experiência
dialética dos dois filósofos, até porque, como veremos, tais teorias das negações são
absolutamente idênticas, as considerações que Adorno faz a respeito da negatividade
hegeliana são muitas vezes invertidas pelo próprio Adorno. Na verdade, a diferença entre
os dois está em uma distinção fundamental entre conceitualização e formalização
(distinção inaceitável para Hegel) que apenas a análise do sentido do recurso adorniano às
artes poderá nos revelar. Ao pensarmos no sentido da relação entre Adorno e Hegel, talvez
valha a pena seguir o conselho de Foucault: “Toda nossa época, que seja pela lógica ou pela
epistemologia, que seja através de Marx ou através de Nietzsche, tenta escapar de Hegel
(...) Mas realmente escapar de Hegel supõe apreciar de maneira exata quanto custa se
desvincular dele; isto supõe saber até onde Hegel, talvez de maneira insidiosa, aproximou-
se de nós; supõe saber o que é ainda hegeliano naquilo que nos permite de pensar contra
Hegel e de medir em que nosso recuso contra ele ainda é uma astúcia que ele mesmo nos
opõe e ao final da qual ele mesmo nos espera, imóvel”19.
Na verdade, recuperar a proximidade entre Hegel e Adorno e re-atualizar Hegel
retroativamente, a partir de Adorno, é uma peça maior na estratégia de determinação da
natureza dialética do pensamento adorniano contra, ao mesmo tempo, a hipóstase de um
pensamento sistêmico-normativo que viu, em Adorno, a perpetuação dos erros próprios a
uma filosofia do sujeito (Habermas) e um pensamento das singularidades puras e das
multiplicidades não-estruturadas (Deleuze, Derrida, Lyotard) que viram Adorno como uma
mera repetição dos impasses totalizantes do hegelianismo. Feito isto, utilizaremos as outras
seis aulas para o comentário da terceira parte, esta intitulada “Modelos”.
Kant, ao final da Crítica da razão pura, lembrava que até então o conceito de
filosofia tinha sido apenas um conceito escolástico, ou seja: “o conceito de um sistema de
conhecimento que apenas é procurado como ciência sem ter por fim outra coisa que não
seja a unidade sistemática desse saber, por conseqüência, a perfeição lógica do
conhecimento”20. A este conceito escolástico, ele contrapunha um conceito cósmico (que
diz respeito ao que interessa a todos) no qual a filosofia pode aparecer como a ciência da
relação de todo o conhecimento aos fins essenciais da razão (teleologia rationis humana).
Destes fins essenciais, podemos derivar dois objetos: “a natureza e liberdade e abrange
assim tanto a lei natural como também a lei moral”.
De fato, estes dois objetos de um conceito cósmico de filosofia são os dois
principais modelos indicados por Adorno na última parte de sua Dialética Negativa: a
liberdade (o objeto do primeiro capítulo - Liberdade: para uma metacrítica da razão
prática) e a natureza articulada de maneira dialética com seu oposto, a história (o objeto do

18
ADORNO, Drei studien über Hegel, p. 98
19
FOUCAULT, L´ordre du discours, pp. 74-75
20
KANT, Crítica da razão prática, Lisboa, Calouste Gulbenkian, A 839/B867
segundo capítulo – Espírito do mundo e história natural : Digressão sobre Hegel). O
último capítulo, Meditações sobre a metafísica, está muito próximo de uma certa digressão
a partir dos resultados do capítulo dedicado à Hegel. Analisaremos cada um destes
capítulos.
No primeiro capítulo, trata-se principalmente de mostrar como se desenvolve a
reatualização adorniana a respeito da impossibilidade de determinar a racionalidade da ação
a partir de uma estratégia transcendental, isto devido às interversões da moralidade em
perversão. Trata-se de um tema maior da crítica hegeliana à Kant presente principalmente
na Fenomenologia do Espírito e que é apropriado por Adorno desde Juliette ou
Esclarecimento e moral. Pediria a leitura deste texto, assim como a leitura de um texto
aparentemente distante do universo adorniano mas que converge fundamentalmente com as
críticas de Adorno aos modos kantianos de racionalização da dimensão prática: Kant com
Sade, de Jacques Lacan.
O recurso à psicanálise neste contexto visa demonstrar como Adorno irá se servir de
conceitos e problemáticas psicanalíticas a fim de tentar reconstruir a racionalidade da
dimensão prática. Exemplos maiores aqui serão as noções de impulso (conceito diretamente
derivado da noção freudiana de Trieb) e de “momento somático” como momento
irredutível no interior do pensamento conceitual.
No segundo capítulo, poderemos retornar à análise da leitura adorniana de Hegel a
partir da sua discussão a respeito do modo de recuperação da dialética entre natureza e
história. Temática presente desde o texto de juventude Idéia de uma história natural, que
deverá ser lido nesta ocasião. Talvez vocês conheçam algumas tentativas de insistir na
presença, no interior do pensamento adorniano, de uma certa Naturphilosophie que não
teria coragem de dizer seu nome. Trata-se aqui então de avaliar melhor o conceito
adorniano de natureza através de discussões a respeito de noções como: história natural e,
sobretudo, mimesis. Veremos como estas leituras a respeito do conceito adorniano de
natureza poderão nos colocar, de maneira inusitada, novamente próximos a Hegel. Por
outro lado, iremos ler também um capítulo central de O avesso da dialética, de Gerard
Lebrun, intitulado “a verdadeira teodicéia”, isto a fim de confrontar a leitura adorniano do
Espírito do mundo hegeliano com uma interpretação em larga medida contrária à sua. Por
fim, uma outra leitura transversal de confrontação entre modos de crítica da meta-narrativa
histórica hegeliana será fornecida pelo texto de Michel Foucault Nietzsche, a genealogia e
a história.
Tais discussões nos permitirão concluir através do comentário do modo adorniano
de recuperação de uma certa dimensão da reflexão metafísica ao final do livro. Gostaria de
expor a tese de uma ontologia negativa em operação no horizonte adorniano, confrontando-
a, novamente, com uma elaboração aparentemente distante do universo adorniano, a saber,
um capítulo do livro de Deleuze e Guatarri, O que é a filosofia?, intitulado: “O plano de
imanência”.

Uma questão de estilo

Mas, na verdade, eu gostaria de terminar a aula de hoje tecendo algumas


considerações preliminares a respeito de um problema que Adorno nunca negligenciou, um
problema de, a menos a seus olhos, teria indiscutível dignidade filosófica. Trata-se da
questão do estilo da escrita da Dialética Negativa. Pois uma leitura filosófica deve estar
atenta não só a ordem das razões, mas também aos estilos da escrita. Adorno nunca cansou
de insistir que as exigências do estilo não são considerações externas aos objetos com os
quais um pensamento se defronta. “O que, na má forma lingüística, é apreendido pela
estética, interpretado pela sociologia, é a filosofia implícita presente na inverdade do
conteúdo posto”21. Esta solidariedade entre estilo e conteúdo talvez nos esclareça porque a
escrita da Dialética Negativa desconhece um certo regime de clareza na escrita conceitual
que muitas vezes desconcerta.
Não se trata aqui de fazer uma apologia da obscuridade, mas valeria a pena lembrar
a relevância da questão a respeito da adequação entre clareza e objeto. Todos os objetos da
experiência podem ser expostos através de uma linguagem de máxima visibilidade ? Eu
lembraria que, em vários momentos, a resposta da filosofia foi negativa. Por exemplo, nós
conhecemos claramente a recusa de Hegel em descrever os objetos da experiência através
da clareza de uma linguagem de inspiração matemática, geometria retórica fundamentada
através de analogias com os dispositivos da geometria euclidiana. A apreensão conceitual
dos objetos da experiência exige uma compreensão especulativa da estrutura proposicional
que nada tem a ver com exigências abstratas de clareza. Ao contrário, a clareza de
inspiração matemática que guia o uso ordinário da linguagem do senso comum é
mistificadora, pois clarifica o que não é objetivamente claro, procura utilizar categorizações
estanques para apreender aquilo que só pode aparecer de maneira negativa ou através de
“significações fluidas”22. Assim, o estabelecimento de uma gramática filosófica adequada
acaba por se confundir com um movimento amplo de crítica da linguagem ‘clara’ do
entendimento. Daí porque: “não é difícil de perceber que a maneira de expor um princípio,
de defendê-lo com argumentos, de refutar também com argumentos o princípio oposto, não
é a forma na qual a verdade pode se manifestar. A verdade é o movimento dela mesma nela
mesma, enquanto que este método é o conhecimento exterior à matéria. É por isto que ele é
particular à matemática e devemos deixá-lo à matemática”23.
Adorno foi talvez aquele que melhor compreendeu a necessidade da articulação
entre estilo e objeto para todo pensamento que se queira dialético. “Hegel é sem dúvida o
único dentre os grandes filósofos que, em alguns momentos, não sabemos e não podemos
decidir sobre o que ele fala exatamente, o único a respeito de quem a própria possibilidade
de tal decisão não é assegurada”24. Proposição aparentemente paradoxal por insistir na
existência de uma opacidade constitutiva do estilo hegeliano, existência de regiões de
silêncio legíveis da textura do texto. Para Adorno, estamos diante de uma opacidade cuja
estrutura deve ser deduzida do próprio conteúdo da filosofia hegeliana: “Já que cada
proposição singular da filosofia hegeliana reconhece sua própria inadequação a esta
unidade [da totalidade], a forma exprime esta inadequação (Unangemessenheit) na medida
em que ela não pode apreender nenhum conteúdo de maneira adequada”25.
Mas este bloqueio na apreensão do conteúdo é um fato inscrito na linguagem
especulativa. A sensação de evanescimento da referência, esta impressão de que o estilo da
escrita parece destruir a determinação dos objetos a respeito dos quais falávamos com
relativa segurança até há pouco, é, de uma certa forma, a experiência-motor da dialética. “A
clareza e a distinção têm por modelo uma consciência reificada (dinghaftes Bewutsein) do

21
ADORNO, Jargon der Eigentlichkeit, p. 525
22
Sobre este ponto, ver FAUSTO, Ruy, Marx : lógica e política – tomo III
23
HEGEL, Fenomenologia do espírito - prefácio
24
ADORNO, Drei Studien über Hegel, GS 5, p. 326
25
idem, p. 328
objeto”26, dirá Adorno. Como se houvesse certos objetos que só podem ser apreendidos
através de uma torção da língua, através de uma experiência de fracasso reiterado de
posição de determinações conceituais. Em Adorno, o conceito parece trazer as cicatrizes do
fracasso reiterado em apreender aquilo que se dá como conteúdo da experiência. E se as
feridas do espírito se curam sem deixar cicatrizes é porque o conceito aprende que, em
certos momentos, fracassar a apreensão do conteúdo é a única maneira de manifestar aquilo
que é da ordem da essência dos objetos. Há um fracasso que é a única forma de termos uma
experiência do objeto. É isto o que leva Adorno a dizer: “Se fosse possível definir a
filosofia, ela seria o esforço para dizer aquilo sobre o qual não se pode falar, esforço para
levar o não-idêntico à expressão, mesmo quando a expressão procura identificá-lo”27.
Alguns verão nesta estratégia do conceito em integrar aquilo que o nega uma forma astuta
de totalização. Mas nós poderemos perguntar: se nossa época é profundamente anti-
dialética, não seria por temer identidades construídas com as marcas deste “trabalho do
negativo” que parece nunca ter fim e nos exilar de nossa própria gramática?
Em um certo momento, Adorno compara tanto o estilo do ensaio filosófico (ao qual
ele permanecerá sempre fiel) quanto o estilo de Hegel ao uso que um imigrante faz de uma
língua estrangeira. Por impaciência e necessidade, ele lê deixando para trás palavras
indeterminadas que só serão relativamente compreendidas através da reconstituição lenta e
demorada de contextos. Muitas palavras ficarão para sempre opacas e apenas seu uso
conjugado será apreensível. Outras ganharão uma sobredeterminação que o falante nativo
não tinha mais a distância necessária para desvelar. Este estranhamento diante dos objetos
do pensamento que a posição de imigrante na sua própria língua pressupõe talvez nos diga
muito a respeito das estratégias discursivas que compõe a experiência intelectual de
adorniana. Terminemos hoje com esta famosa descrição fornecida por Hotho a respeito de
seu professor, Hegel, uma descrição que Adorno conhecia bem. Ela talvez nos diga muito a
respeito deste fazer filosófico que será nosso objeto de estudos durante um semestre: “A
cabeça abaixada como se estivesse dobrada sobre si mesma, o ar cansado; ele estava lá de
pé e, enquanto falava, procurava continuamente nos seus grandes cadernos percorrendo-os
sem parar em todos os sentidos, uma tosse incessante interrompia o desenvolvimento do
discurso; a frase estava lá, isolada, ela vinha com dificuldade, como se fosse arrancada.
Cada palavra, cada sílaba só de soltava a contragolpes, pronunciada por uma voz metálica,
para em seguida receber no amplo dialético suábio uma ressonância surpreendentemente
presente, como se, a cada vez, o essencial estivesse lá”. O primeiro passo para ler Dialética
Negativa é compreender a necessidade destas palavras que teimam em não se submeter à
superfície.

26
idem, p. 334
27
idem, p. 337
Curso Adorno
Aula 2

Na aula de hoje, iniciaremos a leitura da Introdução à Dialética Negativa. Usaremos ainda a


próxima aula para o comentário deste momento do nosso texto. Como dissera na aula
passada, o comentário visará, principalmente, a sistematização geral da economia interna
do texto com seus movimentos principais, já que o número reduzido de aulas impede um
trabalho mais exaustivo e detalhista.
Embora seja apresentado como uma introdução, este momento do livro não visa
simplesmente expor de maneira sumária problemas que, porventura, seriam desenvolvidos
de forma mais adequada no corpo da Dialética Negativa. Adorno parece aqui muito mais
preocupado em discutir os pressupostos para a validação de um empreendimento como a
recuperação contemporânea da dialética. Afinal, trata-se de perguntar: qual sentido em
procurar, no interior da tradição filosófica hegeliana, o modelo de constituição de uma
“experiência filosófica” (philosophischer Erfahrung) à altura da situação epocal delineada
no presente? Uma pergunta como esta exige, por sua vez, esclarecimentos prévios a
respeito da maneira com que a experiência filosófica enraizada na situação epocal do
presente fornece o diagnóstico sobre os problemas maiores para a configuração de um
projeto filosófico.
Sobre o problema do sentido de uma recuperação da dialética de tradição hegeliana
diante das exigências contemporâneas para a constituição de toda e qualquer experiência
filosófica, vale a pena inicialmente lembrar que este era um projeto longamente anunciado
por Adorno. No momento em que a Dialética Negativa aparece (1966), Adorno já havia
dedicado um livro à Hegel: os Três estudos sobre Hegel, de 1963. Um livro que não
escondia seu verdadeiro horizonte: “A intenção do livro como um todo é preparar um
conceito transformado (veränderten) de dialética”28. No entanto, um projeto como este
caminhava largamente à contracorrente de tendência maiores da discussão filosófica da
época..
Lembremos como os anos sessenta conheceram, principalmente, o advento da
hegemonia de um anti-hegelianismo militante. Se voltarmos os olhos, por exemplo, para o
solo francês, veremos que o advento do estruturalismo no campo das ciências humanas
colocava em questão a herança hegeliano-fenomenológica ao relativizar a centralidade dos
sujeitos agentes e desejantes na vida social. Althusser, por exemplo, colocara em circulação
um marxismo desprovido de toda e qualquer raiz hegeliana ao insistir que Marx trouxera,
n´O capital, a noção de sistemas que funcionam à revelia dos sujeitos e que, na verdade,
mostrara como “sujeito” com suas crenças de autonomia da ação era a categoria ideológica
por excelência.
No entanto, os anos sessenta viram a consolidação de uma cena intelectual que
compreendia Hegel e a dialética como figuras maiores do império do Universal, das
totalizações e do pensamento da identidade. Hegel como o construtor do sonho de uma
meta-narrativa absoluta animada pela crença inabalável na unidade da razão. Estas
temáticas claramente presentes no projeto adorniano eram apresentadas, na mesma época,
por filósofos como Deleuze, Derrida, Lyotard e Foucault. Para os pós-estruturalistas, a

28
ADORNO, Drei studien zu Hegel, GS V, p. 250
negatividade do sujeito hegeliano era apenas a última estratégia para submeter as
singularidades ao império do Universal, da mesma forma como a última palavra da
dialética seria sempre a síntese que reconciliaria contradições. Pois esta negatividade estava
fadada a ser recuperada pelas estruturas sociais da modernidade com suas aspirações
universalizantes. Contra estas astúcias do pensamento da identidade, o pós-estruturalismo
não cansou de contrapor o pensamento da diferença pura (Derrida), do sensível (Lyotard),
dos fluxos não-estruturados de intensidade (Deleuze) e da imbricação aparentemente
irredutível entre razão e poder (Foucault). Em uma certa medida, eles poderiam assumir o
diagnóstico adorniano que afirma: “Se Hegel levasse a doutrina da identidade entre o
universal e o particular até uma dialética no interior do próprio particular, o particular teria
recebido tantos direitos quanto o universal. Que este direito – tal como um pai
repreendendo seu filho: “Você se crê um ser particular” -, ele o abaixe ao nível de simples
paixão e psicologicize (psychologistisch) o direito da humanidade como se fosse
narcisismo, isto não é apenas um pecado original individual do filósofo”29. Isto não é um
pecado individual do filósofo porque é um pecado de todo seu sistema. Ou seja, se os pós-
estruturalistas contrapuseram Hegel a um pensamento das singularidades puras, único
pensamento que seria capaz de dar conta das aspirações de um tempo que procura ir para
além do projeto da modernidade, Adorno contrapõe Hegel a um pensamento da não-
identidade com suas exigências de irredutibilidade do singular.
Esta comparação rápida apenas demonstra o caráter inusitado do projeto filosófico
adorniano. Pois tudo se passa como se Adorno compartilhasse a temática pós-estruturalista
da crítica à Hegel e às expectativas totalizantes da razão sem, no entanto, ver-se obrigado a
passar a uma desqualificação geral da dialética (com suas categorias e problemáticas
herdadas da filosofia hegeliana) enquanto verdadeiro motor de perpetuação dos impasses e
clivagens da razão moderna. Por que isto? Por que Adorno não passou simplesmente à
procura de um outro solo de inteligibilidade, isto ao invés de procurar uma experiência
filosófica à altura da situação epocal do presente através de uma nebulosa “liberação da
dialética de sua essência negativa”? Responder tal questão implica em colocar um problema
maior que irá guiar nossa leitura da Introdução. Pois, ao invés de insistirmos nas distinções
logo apresentadas pelo próprio Adorno, devemos inicialmente nos perguntar: Em que
Adorno ainda é profundamente hegeliano? Em que a dialética negativa ainda é dialética? E
qual o peso e as conseqüências deste “ainda”? O que significa um trajeto marcado por um
“ainda” que parece indicar algo que teima insistentemente em não morrer? Isto nos levará
ao cerne da problemática deste momento de nosso livro. Um cerne que diz respeito a uma
questão maior para a Dialética Negativa: o que significa pensar a diferença?Diferença esta
cuja figura privilegiada será a não-identidade. Privilégio este que também deve ser
explicado, já que significa afirmar que a diferença é o que se deixar pensar apenas como
identidade negada, e não como experiência imediata de um múltiplo ainda não-estruturado.
Mas não sabemos a razão pela qual pensar a diferença transformou-se no problema maior
para a experiência filosófica da contemporaneidade, isto ao menos segundo Adorno. É
tendo tal problema em mente que podemos iniciar a leitura de nosso texto.

Dialética e auto-crítica da razão

29
ADORNO, Negative Dialektik, p. 323 {tradução modificada]
Todos vocês conhecem esta frase que abre a Dialética Negativa: “A filosofia, que
anteriormente parecia ultrapassada, mantém-se em vida porque o momento de sua
realização foi perdido (versäumt)”30. Ela parece ressoar a falência do prognóstico clássico
de Marx presente nas Teses contra Feuerbach: “Os filósofos se limitaram a interpretar o
mundo de diferentes formas, cabe transformá-lo”. No entanto, a impossibilidade de
transformar a efetividade, isto no sentido de uma impossibilidade de conceitualizar a
efetividade de modo adequado, aparece como condição de sobrevivência da filosofia.
Há vários modos de interpretação da problemática proposta por Adorno a respeito
da perda do momento de realização da filosofia e de sua regressão, seja a um “conceito
escolar” procedente da divisão do trabalho intelectual e de sua restrição à perpétua
reduplicação de seus próprios textos, seja à condição de desvio supérfluo em relação às
exigências urgentes da praxis. Um destes modos nos lembra que não se trata apenas de
afirmar o diagnóstico histórico segundo o qual a promessa de unidade entre o pensar e a
efetividade foi quebrada porque a imbricação sistêmica entre mercados e instituições
sociais no capitalismo avançado impediria a realização de qualquer expectativa de
racionalização não-instrumental da dimensão prática. Na verdade, a questão fundamental
diz respeito ao fato do sistema capitalista ter sido capaz de inverter em seu contrário todas
as aspirações de racionalização da dimensão prática próprias ao esclarecimento, isto no
momento mesmo em que tais aspirações são implementadas. De uma certa forma, o
capitalismo realiza o projeto do esclarecimento, o que uma auto-crítica da razão
compreende perfeitamente. Ou seja, tal promessa de conceitualização adequada da práxis
foi quebrada não devido a um pretenso descompasso insuperável entre conceito e
efetividade, mas devido a inversões nos modos de aplicação do próprio conceito. De uma
certa forma, a ruptura não é apenas entre conceito e efetividade, mas ela repete uma ruptura
mais profunda entre o conceito e si mesmo, entre o conceito e sua expectativas iniciais de
determinação da experiência. Daí porque Adorno pode afirmar que: “talvez a interpretação
que prometia a passagem em direção à práxis (praktischen Übergang) não era suficiente”31.
Ela não era suficiente porque o problema talvez estivesse no próprio conceito de passagem,
o que nos leva diretamente a uma questão maior concernente aos regimes de
conceitualização com suas determinações categoriais. Maneira de afirmar que a crítica
social, enquanto setor da crítica aos modos de racionalização da sociedade atual, será
fundamentalmente dependente de uma tematização de larga escala a respeito da
naturalização de estruturas de racionalidade que impedem a compreensão dos processos de
interversão do conceito na efetividade. Isto talvez nos explique porque Adorno lembra que:
“a aversão à teoria constitui a fragilidade da práxis”32.
Esta estratégia é absolutamente hegeliana, diga-se de passagem. Pois se trata de
insistir que a crítica das representações naturais do pensar nos leva necessariamente à
reconfiguração do campo da experiência e dos processos de determinações de objetos da
experiência. Neste sentido, vale sempre a pena lembrar que na tradição dialética, o conceito
não é um operador constatativo por não se adequar ao que estava sempre lá pronto para ser
desvelado. O conceito é um operador performativo no sentido daquilo que instaura um
processo, no interior do campo da experiência da consciência, capaz de produzir
modificações estruturais na apreensão do mundo posto seja pela certeza sensível, seja pela

30
ADORNO, ND, p. 15
31
ADORNO, ND, p. 15
32
ADORNO, Notas marginais sobre teoria e práxis, Modelos críticos 2, Vozes, p. 211
percepção, seja pelo entendimento. Hegel diz claramente que o conceito cria, e isto em
vários momentos da Ciência da lógica. Ele divide o que parecia indivisível (crítica ao
princípio de identidade) e unifica o que parecia oposto (através da internalização de
negações). É a certeza do caráter performativo do conceito que leva Hegel a afirmar: “Na
verdade absoluta [do espírito] é, para ele, a mesma coisa encontrar (Vorfinden) um mundo
como um pressuposto e produzí-lo (Erzeugen) como algo posto”33. (HEGEL, 2000, p. 386).
Esta indistinção entre “encontrar” e “produzir” não é resultado de alguma forma de
imanência pressuposta entre conceito e efetividade, como se houvesse uma passagem
imediata, uma aplicação simples do primeiro ao segundo. Qualquer leitor atento da
Fenomenologia do Espírito sabe que o movimento dialético é impulsionado, ao contrário,
pelo reconhecimento da inadequação reiterada entre conceito e objeto da experiência, entre
expectativas organizadoras do conceito e resistência do objeto. Há uma relação de negação
entre conceito e objeto que só se estabiliza quando o mesmo regime de negação que
determina a confrontação entre conceito e objeto aparecer como processo estruturador de
relações internas ao conceito. Neste sentido, podemos dizer que recuperar a dialética
significa, para Adorno, submeter a crítica da sociedade capitalista e suas formações a uma
auto-crítica da razão capaz de compreender o bloqueio na dimensão da efetividade como
momento necessário da auto-determinação do conceito, o bloqueio na dimensão da
efetividade como momento do movimento do conceito. Fato que justifica um retorno à
filosofia como este pretendido por Adorno através da Dialética Negativa.
Dito isto, Adorno nos apresenta uma definição sobre o que devemos entender por
dialética: “Seu nome diz inicialmente apenas que os objetos não acedem (aufgehen) a seus
conceitos, que eles entram em contradição com a norma tradicional da adaequatio”34. De
fato, esta determinação da dialética como a reflexão a partir da inadequação entre conceito
e objeto, ou entre sentido e referência encontra seu fundamento na noção hegeliana de que
o motor da dialética é a experiência da impossibilidade de convergir, de maneira imediata,
designação (Bezeichnung) e significação (Bedeutung) no ato de fala35. Basta voltarmos os
olhos para o início da Fenomenologia do Espírito com seu capítulo sobre a certeza sensível,
ou seja, para esta descrição da experiência da consciência em direção ao Absoluto que
começa com a exposição de um problema lingüístico ligado à natureza do que podemos
chamar de “designação ostensiva”. Chamamos de “designação ostensiva” a tentativa de
fundar a significação de um termo através da indicação referencial de um caso empírico que
determinaria a extensão do uso do referido termo. Ou seja, trata-se de tentar definir a
significação através da indicação da referência. De uma certa forma, todo capitulo inicial é
uma longa reflexão sobre a impossibilidade de designações ostensivas e a conseqüência
disto para a compreensão da maneira com que o conceito perde o que é da ordem da
experiência do sensível e da singularidade não-estruturada por um “isto”. Uma perda só
reparável após a internalização da negatividade deste particular sensível pelo conceito.
Notemos, por outro lado, este dado fundamental: não é por acaso que a dialética
começa necessariamente através de uma reflexão sobre a relação entre as palavras e as
coisas. Trata-se de mostrar como a dialética é dependente de um questionamento a respeito

33
HEGEL, Enzyklopädie, par. 386
34
ADORNO, ND, p. 17
35
“Hegel sabe que dizemos sempre mais ou dizemos menos, em suma, sempre algo de outro em relação ao
que se queria dizer: é esta discordância que aparece como motor do movimento dialético, é ela que subverte
toda proposição” (ZIZEK, O mais sublime dos histéricos, p. 19).
dos modos de funcionamento da linguagem em suas expectativas referenciais, ela nasce
através deste questionamento e da maneira com que tal problematização das expectativas
referenciais da linguagem nos obriga a rever conceitos ontológicos centrais.
Dito isto, Adorno poderia fazer alguma espécie de defesa do acesso à “diversidade
do não contraditório, da diferença simples” (Mannigfaltigkeit des nicht Kontradiktorischen,
dês einfach Unterschiedenen), atualizando aquilo que ele chama à ocasião de “ideologia da
concreção” (Konkretion). No entanto, Adorno lembra que o preço da “disciplina dialética”
é o sacrifício amargo da diversidade qualitativa da experiência. Um sacrifício que será
compensado mais à frente com a recuperação da diferença qualitativa, não como elemento
irredutível de uma intuição imediata que nos garantiria alguma forma de acesso direto à
imanência, mas como resultado de um processo de diferenciação ínfima dos momentos que
Adorno encontrará inicialmente na análise da forma musical em Alban Berg. Veremos
melhor tal ponto na próxima aula.
De qualquer forma é a necessidade de tal sacrifício da diversidade qualitativa como
presença imediata que leva Adorno a afirmar: “A aparência da identidade habita o próprio
pensar através de sua forma pura. Pensar significa identificar. A ordem conceitual auto-
satisfeita descarta (vorschieben) o que pensamento queria conceituar”36. Muito já se disse a
respeito do que significa entender toda operação possível do pensar como uma
identificação. Robert Pippin, por exemplo, chega a ver em uma afirmação desta natureza
um contrasenso relativamente primário. Afirmar que pensar significa identificar implica em
dizer que o ato de determinar é sempre a construção de uma relação entre dois “algo”. Pois
identificar implica em estabelecer identidades entre duas determinações. Daí porque a
aparência da identidade habitaria necessariamente o próprio pensar. Mas se afirmo que toda
operação do pensar é uma identificação, não estaria esquecendo que, afinal, há de se
distinguir predicação e posição de identidade? Lembremos, por exemplo, da maneira com
que Frege insistia na existência de, ao menos dois, empregos diferente do termo “é” em
uma proposição do tipo S é P37. "É" pode ter a função de forma lexical de atribuição a fim
de permitir a predicação de um conceito a um objeto. Assim, em ‘uma rosa é odorante’,
‘odorante’é a predicação conceitual de um nome de objeto (rosa). Mas, por outro lado, “é”
pode ter a função de signo aritmético de igualdade a fim de exprimir a identidade entre dois
nomes de objeto (como no caso da proposição “A estrela da manhã é Vênus”) ou a auto-
igualdade de um nome de objeto a si mesmo (“Vênus é Vênus”). Tudo se passaria como se
Adorno estivesse ignorando tal distinção, vendo em todo juízo a forma da identidade. Não
deixa de ser irônico que esta confusão também foi atribuída a Hegel ao falar das passagens
do sujeito no predicado no interior da compreensão especulativa da proposição.
No entanto, a crítica erra de alvo. Ao afirmar que “pensar significa identificar”,
Adorno tem em mente o conceito psicanalítico de identificação, no qual toda operação de
identificação é sempre suportada por processos de projeção. Lembremos, por exemplo, da
afirmação de Adorno e Horkheimer segundo a qual: “Em certo sentido, toda percepção é
projeção”38. Levando em conta que, para um pensamento dialético, a percepção já é
realização de capacidades conceituais na própria consciência sensível, não há como deixar
de insistir que afirmações como “toda percepção é projeção” e “todo pensar é
identificação” são simétricas. Isto nos auxilia a mostrar que a identificação em questão não

36
ADORNO, ND, p. 17
37
Cf. FREGE, Ecrits logiques et philosophiques, Paris: Seuil, 1971, p. 129
38
ADORNO e HORKHEIMER, Dialektik der Aufklãrung, GS 3, p. 212
é a posição de identidades entre duas determinações, mas é projeção do Eu sobre o mundo
(daí o interesse constante de Adorno pela noção freudiana de narcisismo enquanto
comportamento cognitivo), isto no sentido de projeção, no mundo dos objetos, de estruturas
categorias que unificam o diverso da experiência sensível através do princípio de ligação
próprio ao Eu como unidade sintética. As relações do Eu aos objetos seguem o princípio de
ligação próprio à relação de auto-identidade.
Estas colocações são importantes para nos fornecer algumas coordenadas sobre a
situação epocal no interior da qual a Dialética Negativa. Se Adorno compreende que a
questão “o que significa pensar a diferença?” deve aparecer como problema central da
experiência filosófica contemporânea é porque a modernidade capitalista é solidária de
processos de socialização que constituem sujeitos que não podem deixar de submeter suas
capacidades cognitivas e seus processos de interação social ao primado da identidade. Isto
vem á Adorno inicialmente através de uma reflexão a respeito dos processos de
constituição do Eu tais como Freud os determinava. Ao analisar o caráter paranóico do
fascismo, a negação simples da diferença pelo fetichismo da forma-equivalente que circula
no interior da indústria cultural, ao afirmar que a identidade é a forma originária da
ideologia (o que nos leva a afirmar que o Eu é uma espécie de “ideologia privada”), Adorno
procura fornecer o quadro das formas sociais que resultam necessariamente de uma
imbricação entre subjetividade e princípio de identidade.
Mas podemos dizer que, mais do que freudiana, esta pressuposição é claramente
hegeliana e é um dos fundamentos da compreensão da modernidade no interior da tradição
dialética. Em uma passagem maior do capítulo Razão, na Fenomenologia do Espírito,
Hegel insistia em criticar o idealismo a partir da noção kantiana segundo a qual: “todo o
diverso da intuição possui uma relação necessária ao Eu penso no mesmo sujeito em que
esse diverso se encontra”39. Pois a ligação (Verbindung) do diverso em geral deve ser um
ato da espontaneidade do sujeito. No entanto, esta ligação pressupõe a representação da
unidade sintética do diverso construída a partir de pressuposições de identidade e diferença.
Isto implica não apenas que todas as representações de objeto devem ser minhas (“o Eu
penso deve poder acompanhar todas as minhas representações”) para que elas possam ser
apropriadas reflexivamente. Mas implica fundamentalmente que, para que elas possam
apropriadas reflexivamente, elas devem ser estruturadas a partir de um princípio interno de
ligação e de unidade que seja reflexivamente reconhecido pela consciência-de-si. Daí
porque a regra de unidade sintética do diverso da experiência é fornecida pela estruturação
da própria unidade sintética de apercepções, ou seja, pela auto-intuição imediata da
consciência-de-si que: “ao produzir a representação eu penso, que tem de poder
acompanhar todas as outras, e que é uma e idêntica em toda a consciência, não pode ser
acompanhada por nenhuma outra”40. As representações devem se estruturar a partir de um
princípio de identidade que é, na verdade, a imagem do eu penso. Kant ainda é mais claro
ao afirmar que: “O objeto é aquilo em cujo conceito está reunido o diverso de uma intuição
dada. Mas toda a reunião das representações exige a unidade da consciência na respectiva
síntese”41. Assim, quando Hegel constrói um witz a dizer que, para a consciência, “o ser
tem a significação do seu” (das Sein die Bedeutung das Seinen hat)42, ele tem em vista o

39
KANT, Crítica da razão pura, B 132
40
KANT, Crítica da razão pura, B 132
41
KANT, Crítica da razão pura, B 137
42
HEGEL, Fenomenologia, par. 240
fato de que ser objeto para a consciência significa estruturar-se a partir de um princípio
interno de ligação que é modo da consciência apropriar-se do mundo. Daí porque, Hegel
pode afirmar, em um indefectível acento adorniano, que a consciência: “Agora avança para
a apropriação universal (allgemeinen Besitznehumung) da propriedade que lhe é assegurada
e planta em todos os cimos e em todos os abismos o signo (Zeichen) da sua soberania”43. E
quando Adorno afirma: “Os sentidos já estão determinados pelo aparelho conceitual antes
que a percepção ocorra, o cidadão vê a priori o mundo como a matéria como a qual ele o
produz para si próprio. Kant antecipou intuitivamente o que só Hollywood realizou
conscientemente”44 não devemos ver nestas colocações uma simples boutade. Na verdade,
trata-se de lembrar que o diagnóstico histórico de bloqueio das aspirações de
reconhecimento da singularidade já estava inscrito no próprio cerne da constituição do
projeto moderno.
Por outro lado, esta maneira de submeter as estruturas do pensar a dispositivos do
identificação talvez nos explique melhor porque a contradição é a figura privilegiada da
diferença. Sendo a constituição do objeto da experiência uma operação projetiva de
identificação, a diferença só pode aparecer como “divergente, dissonante, negativo”, como
se o objeto fosse, ao mesmo tempo, o que se estrutura a partir de operações sintéticas de
categorização e o que nega tais operações, sem com isto fornecer um outro princípio
positivo de determinação. A diferença é apenas o negativo da identidade, embora ainda não
saibamos o que possa significar “negativo” neste contexto (lembremos, há várias maneiras
de se pôr como o negativo de algo). Daí porque Adorno poderá logo afirmar que a
contradição é real, pois se trata de insistir que ela é o resultado necessário da experiência de
inscrição do objeto no interior de protocolo geral de categorização. Daí esta afirmação
maior da Dialética Negativa:

A contradição é o não-idêntico sob o aspecto da identidade; o primado do princípio


de contradição na dialética mede o que é heterogêneo a partir do pensamento da
unidade (Einheitsdenken). Em se chocando contra seu limite (Grenze), ele o
ultrapassa. A dialética é a consciência conseqüente da não-identidade45.

De qualquer forma, o programa adorniano de recuperação da dialética parece claro:


“Dialética significa quebrar a compulsão da identidade (Indentitätzwang) através das
energias armazenadas que estão congeladas em suas objetificações”46. Mas para quebrar tal
compulsão da identidade, Adorno precisará determinar a diferença como pensável apenas
no interior de uma dialética entre o universal e o particular: “A dialética desenvolve a
diferença entre o universal e o particular, ditada pelo universal”47. Uma dialética que
deverá, como vimos anteriormente, adentrar o próprio particular (embora ainda não
saibamos o que pode significar, neste contexto, “adentrar o próprio particular”).
No entanto, fica um problema: pensar a diferença apenas no interior de uma
dialética entre universal e particular parece uma maneira astuta de enquadrar a diversidade
em um quadro de oposições onde um termo só se determina através da sua oposição ao

43
HEGEL, idem, par. 241
44
ADORNO e HORKHEIMER, DE, p. 83
45
ADORNO, ND, p. 17
46
ADORNO, ND, p. 159
47
ADORNO, ND., p. 19
outro, o que nos levaria a uma determinação do outro como limite e internalização deste
limite como negação internalizada pelo próprio termo. Ou seja, uma transformação da
diversidade em contradição através dos usos da oposição que faz da diferença um momento
negativo da identidade e, conseqüentemente, nada de absolutamente diferente. Esta era a
crítica que, na mesma época, Deleuze endereçava à dialética: através da contradição,
resolver a diferença ao reportá-la sempre a um fundamento48. Adorno reconhece esta
dificuldade ao afirmar: “Tal conceito de dialética [a Dialética Negativa] desperta dúvidas a
respeito de sua possibilidade. A antecipação do movimento constante através de
contradições aparenta ensinar o espírito como totalidade, ou seja, exatamente a tese da
identidade posta em questionamento (ausser Kraft gesetzte)”49.
A este respeito, o argumento pressuposto por Adorno na rubrica “A totalidade
antagônica” é um bom exemplo da maneira com que o filósofo alemão opera. Tudo se
passa como se Adorno lembrasse: a contradição só pode se resolver se, no interior das
relações de oposição, o pólo oposto funcionar como fundamento da identidade (como se
eles já fossem algo positivamente determinado fora da relação de oposição). Mas o que
acontece quando afirmamos, por exemplo, que a universalidade é radicalmente antagônica?
Não apenas que o conceito de universalidade é antagônico, clivado, mas que a experiência
social que orienta a determinação do sentido de processos de universalização é antagônica.
Isto não nos abriria às portas para uma passagem infinita nos opostos, já que o próprio
universal nos fornece uma experiência de antagonismo?
Adorno sustenta esta hipótese através de uma certa leitura materialista no conceito
hegeliano de Espírito enquanto figura privilegiada do universal. Uma leitura que coaduna
com um modo de compreender o Geist próprio a comentadores hegelianos contemporâneos.
Segundo eles, quando Hegel fala em Espírito, podemos compreender isto, a princípio, de
uma maneira não-metafísica. Atualmente, quando falamos sobre sujeitos socializados que
procuram julgar, orientar racionalmente suas ações e usos da linguagem, lembramos
necessariamente da necessidade de um background pensado um "sistema de expectativas"
fundamentado na existência de um saber prático cultural e de um conjunto de pressupostos
que define, de modo pré-intencional, o contexto de significação. Este background indica
que toda ação e todo julgamento pressupõem um “espaço social partilhado” capaz de
garantir a significação da ação, do julgamento e, principalmente, de nossos modos de
estruturar relações.
Este background é, em larga medida, pré-intencional e pré-reflexivo. Não
colocamos normalmente a questão sobre a gênese deste saber prático cultural que
fundamenta nossos espaços sociais. Sua validade não aparece como objeto de
problematização. No entanto, podemos imaginar uma situação na qual os sujeitos
socializados procuram apreender de maneira reflexiva aquilo que aparece a eles como
fundamento para suas práticas e julgamentos racionais, podemos pensar uma situação na
qual eles procurem compreender o processo de formação cultural que os levou a tais modos
de orientação racional da conduta. Podemos ainda achar que tais modos de orientação não
devem ter apenas uma validade historicamente determinada e restrita a espaços sociais
particulares, mas só podem ser válidos se puderem ser defendidos enquanto universais.
Neste momento, estaremos muito próximo daquilo que Hegel compreende por Espírito.
Devemos, neste ponto, seguir a definição de um comentador de Hegel que viu claramente
48
DELEUZE, Différence et répétition, p. 64
49
ADORNO, ND, p. 21
isto: “Espírito é uma forma de vida auto-consciente, ou seja, uma forma de vida que
desenvolveu várias práticas sociais a fim de refletir a respeito do que ela toma por
legítimo/válido (authoritative) para si mesma no sentido de saber se estas práticas podem
dar conta de suas próprias aspirações e realizar os objetivos que elas colocaram para si
mesmas (...) Espírito não denota, para Hegel, uma entidade metafísica, mas uma relação
fundamental entre pessoas que mediam suas consciências-de-si, um meio através do qual
pessoas refletem sobre o que elas tomaram por válidos para si mesmas”50.
O que Adorno fez foi lembrar que este saber prático-cultural capaz de definir
contextos de significação da ação social é totalmente dependente da racionalidade das
estruturas de trocas sociais. Estruturas que, na era histórica do capitalismo tardio, estão
submetidas à lógica da forma-mercadoria com seus padrões de equivalência e identidade.
No entanto, Adorno insiste que a apreensão reflexiva desta estrutura social que Hegel
definira como sendo o Espírito leva, necessariamente, a uma experiência antagônica e
marcada por um conflito descrito da seguinte forma:

A preformação subjetiva do processo material de produção social,


fundamentalmente separado da constituição teórica, é o que há de indissolúvel
(Unaufgelöstesi), de irreconciliável com o sujeito. Sua própria razão que,
inconsciente como o sujeito transcendental, produz identidade através da troca
permanece incomensurável aos sujeitos que ela reduz a um denominador comum: o
sujeito como inimigo dos sujeitos51.

Ou seja, a racionalidade social que determina contextos de significação da ação social não é
apenas um sistema universal que domina as possibilidades da experiência. Ele é aquilo que
é, ao mesmo tempo, “um conjunto de sujeitos e a negação do sujeito”. Ela é aquilo que
manifesta-se ao sujeito como experiência conflitual e antagônica, até porque, o
antagonismo principal para Adorno não é o antagonismo de classe (embora ele não o
descarte), mas é um antagonismo que se inscreve no coração mesmo deste sujeito que é o
suporte (Trâgen) do “Espírito do capitalismo”, antagonismo entre as exigências de
reconhecimento social dos sujeitos e a irredutibilidade do que, no sujeito, não se submete às
exigências identitárias do vínculo social.

O que é um conceito?

Dito isto, podemos abordar um segundo ponto fundamental na Introdução. Trata-se


de demonstrar como, a partir desta compreensão do pensar como identificação e da
contradição como saldo das operações de determinação de objeto, Adorno passa a uma
longa reflexão sobre os modos de reconstruir o que é uma conceitualização que vai, ao
menos, até a rubrica “Exposição”, isto para dar lugar a considerações sobre a natureza de
uma noção de “sistema” apta aos desafios postos pela dialética negativa, sobre uma
definição sobre o que pode significar o imperativo de “pensar por modelos” e, por fim,
sobre a exigência de criticar o primado do sujeito sem, com isto, entrar em alguma forma de
discurso sobre a morte do sujeito ou sobre algum regime de retorno imediato a estágios de

50
PINKARD, The sociality of reason, p.9
51
ADORNO, ND, p. 22
pré-individuação. No entanto, este problema sobre a recompreensão necessária dos
processos de conceitualização será uma espécie de tônica geral de toda esta Introdução.

Adorno fala em vários momentos sobre a necessidade da filosofia voltar seu


interesse para aquilo que é desprovido de conceito (Begrifflos), para aquilo que é individual
e particular. Mas este interesse não implica em desinteresse pelo conceito em prol de
alguma forma de retorno a domínios pré-discursivos ou de “imediatez irracional”. Adorno
chega mesmo a aproximar Bergson e o positivismo a fim de afirmar que, tanto em um caso
como no outro, teríamos a mesma crença no imediato. A diferença é que, enquanto em
Bergson procura a pura duração através da imediaticidade interior dos dados da consciência
(perdendo, com isto, a noção dialética do tempo como auto-negação do instante), o
positivismo acreditaria na imediaticidade da percepção do objeto externo.
Segundo Adorno, o desafio da dialética consiste em reconfigurar a idéia mesma do
que possa ser uma apreensão conceitual de conteúdo. Neste sentido, ele fala do imperativo
de “desencantamento do conceito” (Entzauberung des Begriffs) para afirmar: “uma
confiança, mesmo problemática, na possibilidade da filosofia superar o conceito pelo
conceito, o que elabora e amputa, e alcançar assim o não-conceitual (Nichtbegriffliche), é
indispensável à filosofia”. Um não-conceitual como verdade do conceito que só pode ser
alcançado: “em uma outra cena (anderen Schauplatz)" na qual encontramos o que foi:
“oprimido, desprezado, rejeitado pelo conceito (Begriffen Unterdrückte, Missachtete und
Weggenworfene)”52. No entanto, por quais mutações deve passar o pensamento conceitual
para que ele seja capaz de formalizar aquilo que é não-conceitual, sem a ele se assimilar
(gleichzumachen)? Esta é a questão que nos guiará na próxima aula.

52
ADORNO, ND, p. 21
Curso Adorno
Aula 3

Na aula passada, iniciamos a leitura da Dialética Negativa. Partimos da insistência na


especificidade do projeto intelectual adorniano de reconstrução da dialética. Na aula de
hoje, daremos seqüência a esta análise, principalmente, através do comentário dos
parágrafos dedicados ao problema da noção conceitualização adequada à dialética negativa.
Na aula que vem, deveremos terminar o comentário da Introdução. Para tanto, peço a
leitura do parágrafo “Argumento e experiência” até o final do capítulo.
Vimos, na aula passada, como os anos sessenta viram a consolidação de uma cena
intelectual que compreendia Hegel e a dialética como figuras maiores do império do
Universal, das totalizações e do pensamento da identidade. Hegel como o construtor do
sonho de uma meta-narrativa absoluta animada pela crença inabalável na unidade da razão.
Estas temáticas claramente presentes no projeto adorniano eram apresentadas, na mesma
época, por filósofos como Deleuze, Derrida, Lyotard e Foucault.
No entanto, tudo se passa como se Adorno compartilhasse esta temática pós-
estruturalista da crítica à Hegel e às expectativas totalizantes da razão mas sem se ver
obrigado a caminhar em direção a uma desqualificação geral da dialética (com suas
categorias e problemáticas herdadas da filosofia hegeliana) enquanto verdadeiro motor de
perpetuação dos impasses e clivagens da razão moderna. Nossa pergunta foi então: por que
isto? Por que Adorno não passou simplesmente à procura de um outro solo de
inteligibilidade, isto ao invés de procurar uma experiência filosófica à altura da situação
epocal do presente através de uma nebulosa “liberação da dialética de sua essência
negativa”? Responder tal questão implicou em uma escolha interpretativa que, ao invés de
insistir nas distinções logo apresentadas pelo próprio Adorno, prefere colocar a pergunta:
em que Adorno ainda é profundamente hegeliano? Em que a dialética negativa ainda é
dialética? E qual o peso e as conseqüências deste “ainda”?
A definição do regime adequado de relações entre Hegel e Adorno serviu (e ainda
servirá) como pano de fundo para apreendermos esta que foi apresentada como a questão
central da Dialética Negativa:: “o que significa pensar a diferença?”. Questão que exige a
reflexão não apenas sobre o estatuto filosófico da diferença, mas também sobre as
estruturas e formas disponíveis ao pensar filosófico.
Vimos como Adorno já apresentava rapidamente suas posições. A diferença deveria
ser compreendida fundamentalmente como “não-identidade”. Operação prenhe de
conseqüências já que significa afirmar que a diferença é o que se deixar pensar apenas
como identidade negada, e não como experiência imediata de um múltiplo ainda não-
estruturado. Por si só, esta escolha é bastante significativa. Adorno partilha a crítica de
Hegel ao imediato, crítica que, em última instância, abre as portas para a compreensão de
tudo aquilo que se oferece positivamente de maneira imediata ao pensar, ou seja, tudo
aquilo que parece orientar de maneira imanente o pensar em suas exigências de julgamento
e cognição, como figura de um pensar submetido à reificação e a entificação de uma
segunda natureza. Ao afirmar que “pensar significa identificar”, Adorno não estava longe
de seguir o pensamento hegeliano a respeito da estrutura cognitiva do objeto como, de uma
certa forma, uma projeção do sujeito. Lembremos, a este respeito, desta proposição
fundamental de Robert Brandom a respeito do idealismo: “o objeto de nossas atividades
cognitivas é inteligível apenas como parte de uma história que também considera a natureza
do sujeito que se engaja em tais atividades”53, isto a fim de afirmar que a tese idealista
fundamental em Hegel diz que: “ a estrutura e unidade do conceito [de objetos] é a mesma
estrutura do eu”54. Ou seja, o dado é, em larga medida, uma determinação da consciência,
na medida em que devemos reconhecer capacidades conceituais em operação na mais
simples percepção. Adorno chega mesmo a afirmar que o preço da “disciplina dialética” é o
sacrifício amargo da diversidade qualitativa da experiência.
No entanto, no caso de Adorno, esta partilha em relação à crítica do imediato é
complexa pois não assentada na desqualificação simples do que se oferece como ponto de
excesso ao pensamento conceitual [de qualquer forma, não é certo que tal desqualificação
esteja em operação no pensamento hegeliano]. Não é por outra razão que a primeira
categoria que Adorno discutirá no terceiro capítulo do livro, este dedicado à discussão
sobre os operadores da dialética negativa, versará exatamente sobre indissolubilidade do
“algo” (Unauflösichkeit des Etwas) ao pensamento conceitual. Este mesmo algo que Hegel
define como: “primeira negação da negação, como ente simples relacionado a si mesmo”55
e no qual Adorno vê um substrato irredutível e não idêntico ao pensamento. Trata-se de
afirmar que “há na experiência relações epistemicamente significantes com algo não-
conceitual”56. O que Adorno admite claramente ao afirmar que: “todos conceitos, mesmo os
conceitos filosóficos, vão em direção (gehen) ao não-conceitual”57. Como é possível
conciliar estas duas proposições aparentemente contraditórias: todo dado é uma projeção do
Eu com suas capacidades conceituais e há algo na experiência que é não-conceitual? Como
vimos na aula passada, Adorno tentará pensar esta contradição no interior de uma dialética
entre particular e universal, ou seja, entre a irredutibilidade da experiência do particular
(deste particular a respeito do qual nada mais posso dizer a não ser que se trata de um isto,
de um algo, de um tode ti) e a universalidade do conceito. Até aqui, nada mais hegeliano.
Vimos, na aula passada, que a estratégia adorniana não consistia em simplesmente
abandonar todo recurso ao universal enquanto recurso a resquícios totalizantes do
pensamento conceitual. Tratava-se de assumir que devíamos compreender a universalidade
como radicalmente antagônica, o que, como veremos, implica em modificações na própria
compreensão do que pode vir a ser o ato de conceitualizar. Não apenas que o conceito de
universalidade é antagônico, clivado, mas, proposição ainda mais profunda, que a
experiência social que orienta a determinação do sentido de processos de universalização é
antagônica. Vimos como Adorno radicalizava a proposição hegeliana afirmando que a
experiência do universal é uma experiência social, ou seja, experiência dependente dos
modos de universalização em operação na vida social. Como se operações lógicas
disponíveis ao pensar fossem necessariamente dependentes do quadro de experiências
sociais de uma época. No nosso caso, tal experiência de universalização seria fornecida
pela estrutura totalizante dos processos de reprodução do Capital com sua submissão do
diverso à identidade da forma-equivalente. Mas esta experiência era profundamente
antagônica, apreendê-la reflexivamente significava apreender um antagonismo

53
BRANDOM, Tales of the mighty death, Harvard University Press, 2002, p. 178
54
idem, p. 201
55
HEGEL, Wissenschaft der Logik I, Frankfurt, Suhrkamp, p. 123
56
O´CONNOR, Adorno and the problem of giveness in Revue Internationale de Philosophie, 2004, p. 85
57
ADORNO, ND, p. 23
A preformação subjetiva do processo material de produção social,
fundamentalmente separado da constituição teórica, é o que há de indissolúvel
(Unaufgelöstesi), de irreconciliável com o sujeito. Sua própria razão que,
inconsciente como o sujeito transcendental, produz identidade através da troca
permanece incomensurável aos sujeitos que ela reduz a um denominador comum: o
sujeito como inimigo dos sujeitos58.

Ou seja, a racionalidade social que determina contextos de significação da ação social não é
apenas um sistema universal que domina as possibilidades da experiência. Ele é aquilo que
é, ao mesmo tempo, “um conjunto de sujeitos e a negação do sujeito”. Ela é aquilo que
manifesta-se ao sujeito como experiência conflitual e antagônica, até porque, o
antagonismo principal para Adorno não é o antagonismo de classe (embora ele não o
descarte), mas é um antagonismo que se inscreve no coração mesmo deste sujeito que é o
suporte (Trâgen) do “Espírito do capitalismo”, antagonismo entre as exigências de
reconhecimento social dos sujeitos e a irredutibilidade das exigências do particular alojado
nestes mesmos sujeitos. Algo mais próximo de O mal estar na civilização do que de
História e consciência de classe.

O que significa conceitualizar?

Mas esta discussão a respeito do caráter clivado da experiência social da


universalidade deve, de alguma forma, alcançar a dimensão das operações próprias ao
conceito. Se a razão, ao racionalizar as esferas da dimensão prática, produz experiências de
antagonismo entre totalidade e particular, então podemos imaginar que os processos
mesmos de conceitualização estejam configurados da mesma maneira. Este é o sentido da
exigência adorniana de “desencantamento do conceito”. O termo “desencantamento”
(Entzauberung) nos remete ao processo weberiano de racionalização do mundo próprio ao
advento da modernidade que, por sua vez, à noção schilleriana de desdivinação da natureza
(Entgötterung der Natur). Tal processo fica extremante claro em um trecho de A ciência
como vocação: “Intelectualização e racionalização crescentes não significam um crescente
conhecimento geral das condições de vida sob as quais alguém se encontra. Significam, ao
contrário, uma outra coisa: o saber ou a crença de que basta alguém querer para poder
provar, a qualquer hora, que em princípio não há forças misteriosas e incalculáveis
interferindo : que, em vez disso, uma pessoa pode – em princípio – dominar pelo cálculo
(durch Berechnen beherrschen) todas as coisas. Isto significa : o desencantamento do
mundo (Entzauberung der Welt). Ninguém mais precisa lançar mão de meios mágicos para
coagir os espíritos ou suplicar-lhes, feito o selvagem, para quem tais forças existiam. Isto,
antes de mais nada, significa a intelectualização propriamente dita”59.
Esta articulação entre intelectualização, racionalização e dominação pelo cálculo é a
peça fundamental para o encantamento do conceito. Um encantamento que é submissão do
conceito à uma racionalidade que Weber definirá como orientada para fins [racionalidade
instrumental, para os frankfurtianos], ou seja, orientada por expectativas quanto ao
comportamento de objetos através da padronização de critérios de decisão baseados na
possibilidade de mensuração, de cálculo e de estabelecimento de equivalências. Mesmo que

58
ADORNO, ND, p. 22
59
WEBER, Ciência como vocaçõa in Ensaios de Sociologia, p. 30
Weber nunca tenha deixado de reconhecer a racionalidade de um outro tipo de ação, esta
orientada por valores éticos, estéticos ou religiosos, é possível demonstrar que ela não tem
autonomia estrutural em relação à racionalidade orientada para fins.
Mas o que nos interessa aqui é que, por um lado, a temática do desencantamento,
coloca a reflexão do conceito no interior dos problemas da relação entre natureza e cultura.
A auto-crítica do conceito é indissociável de uma problematização a respeito dos modos de
“dominação da natureza”, como vemos claramente no parágrafo intitulado
“Desencantamento do conceito”. Como veremos mais à frente, isto é uma das
conseqüências possíveis da tendência adorniana em submeter as aspirações cognitivas a
exigências práticas de satisfação.
Por outro lado, a temática do desencantamento demonstra como o conceitualizar
pode aparecer estritamente vinculado à operações de abstração enquanto condição para a
constituição de objetos da experiência. Adorno não nega que a abstração em relação a
qualquer pretensa determinação intrínseca do objeto seja necessária para toda operação
conceitual, mas há um momento, segundo Adorno, no qual a abstração aparece como uma
forma de encantamento, isto a partir do momento em que o conceito aparece como
“totalidade auto-suficiente”. Contra tal totalização, Adorno insiste na estrutura auto-
reflexiva do conceito, movimento através do qual o conceito pressupõe seu próprio limite e
o internaliza como seu “caráter constitutivo” sem nunca pôr tal limite de maneira integral.
Colocando o problema nestes termos, Adorno não tem como deixar de aceitar um ponto de
partida que aponta necessariamente para dois exemplos hegelianos simétricos: a posição do
ser como “imediato indeterminado’ (unbestimmte Unmittelbare) no início da Ciência da
lógica60 e o uso dos dêiticos como momento inicial do movimento do conceito na
Fenomenologia do Espírito. Nos dois casos, ao tentar designar a particularidade sensível
através dos dêiticos ou o imediato através do ser, a consciência faz a experiência de só
poder enunciar o puramente abstrato, o puro ser desprovido de determinações ou o “isto”
como pura abstração da presença. Esta experiência ganhará o valor de exposição da
exterioridade irredutível da designação à significação que aparece como motor da dialética.
Desta forma, tal fracasso na apreensão de conteúdo será o responsável pelo impulso do
movimento dialético do conceito, tanto em Adorno quanto em Hegel. A auto-reflexão sobre
a essência de tal fracasso é o que poderia liberar o conceito da “compulsão da identidade”
(Identitätzwang).
Neste ponto, Adorno insere uma noção prenhe de conseqüências. Ao afirmar que o
desencantamento vindo da auto-reflexão de um conceito que internaliza seu próprio limite,
Adorno vê-se obrigado a recorrer a uma: “idéia a respeito da qual deve-se transformar a
função, idéia legada pelo idealismo e, mais do que todas, corrompida por ele: a idéia de
infinito”61. O recurso não poderia ser mais preciso pois “infinito” é a noção à qual Hegel
recorre a fim de formalizar este processo através do qual o conceito internaliza aquilo que o
nega, seu próprio limite. Para Hegel, infinito é aquilo que porta em si mesmo sua própria
negação e que, ao invés de se auto-destruir, conserva-se em uma determinidade. Daí
porque Hegel pode afirmar, em uma frase chave: “A infinitude, ou essa inquietação
absoluta do puro mover-se-a-si-mesmo, faz com que tudo o que é determinado de qualquer
modo – por exemplo, como ser – seja antes o contrário dessa determinidade”62. Na verdade,

60
HEGEL, Wissenschaft der Logik I, p. 82
61
ADORNO, ND, p. 24
62
HEGEL, Fenomenologia do Espírito, par. 163
Hegel utiliza a definição de contradição com conceito vazio de objeto devido à posição de
duas proposições contrárias sobre o mesmo objeto, isto a fim de afirmar que a infinitude
marca exatamente o advento de um conceito de objeto que porta em si mesmo sua própria
negação. Este conceito que é, ao mesmo tempo, idêntico a si e o contrário de si é, no
entanto, impossível de ser representado pelas estruturas categoriais do entendimento. Esta
compreensão da infinitude não está distante do que Adorno tem em vista ao afirmar que a
filosofia procura:

Imergir literalmente no que lhe é heterogêneo (versenken), sem trazê-lo a categorias


pré-fabricadas (...) A ilusão de que a filosofia poderia capturar (bannen) a essência
na finitude de suas determinações deve ser abandonada (...) Ela terá seu conteúdo
em uma diversidade de objetos não ordenados por esquema algum63.

No entanto, Adorno opera um deslocamento significativo em relação a Hegel e que


diz respeito à determinação do regime de experiência capaz de fornecer ao conceito o
horizonte adequado de formalização de seus limites:

O conceito só pode representar (vertreten) a coisa que ele recalca (verdrängte), a


mimesis, apropriando algo desta última em seu próprio modo de conduta, o que o
leva a perder-se nela. Por isto, o momento estético, por razões diversas das
levantadas por Schelling, não é acidental à filosofia64.

Tais considerações são fundamentais. Posta a questão sobre a maneira com que o
conceito internaliza o heterogêneo sem subsumi-lo sob o genérico do esquema categorial,
internalização que permitia algo da ordem da posição de uma experiência de infinitude,
Adorno recorrer a um conceito de mimesis inspirado na experiência estética. Ele afirma que
a mimesis seria exatamente o que fora recalcado pelas operações do conceito. Mas o que
isto pode significar? Por outro lado, este recurso filosófico à arte não significa a alguma
espécie de recurso schellinguiano à intuição como modo de ultrapassar as dicotomias da
reflexão através do recurso a um plano de imanência a partir do qual o subjetivo e o
objetivo se extraem. Como se o sujeito tivesse emergido de um mundo indiferente que
agora ele confronta e conhece através da reflexão, mas que poderia ser resgatado através de
uma intuição intelectual que não é reflexão, que não é posicional, mas que é modo de
posição da unidade sem mediação entre sujeito e objeto. Intuição esta que teria seu espaço
privilegiado nas artes. “Não temos nenhum tipo de conhecimento que seria absolutamente
distinto deste que dispomos e a respeito do qual o intuicionismo procura fugir em vão”, dirá
Adorno.
Ou seja, Adorno sugere dispositivos conceituais para os quais parecem convergir
disposições totalmente contrárias. Por um lado, sua crítica ao imediato o leva a reconhecer
a necessidade de operações de abstração, reconhecer o caráter inelutável de uma certa
“violência do pensamento” contra o que é sintetizado. Por outro lado, seu reconhecimento
de que o não-conceitual fornece uma experiência cognitiva determinante para a orientação
do conceito leva-o a apostar em uma certa afinidade mimética entre o conceito e seu outro,
aquilo que lhe é heterogêneo. No entanto, não há dois dispositivos mais auto-excludentes

63
ADORNO, ND. pp. 24-25
64
idem, p. 26
do que “mimesis” e “abstração”. Isto sem falar que não é claro o que pode significar um
conceito capaz de articular-se a partir de operações miméticas, ou seja, a partir da posição
de relações de semelhança e de analogia com aquilo que ele conceitualiza. Adorno não
estaria simplesmente fundado sua noção de conceito em uma aporia? O conceito deve
resgatar uma mimesis que não pode ser posta pelo próprio conceito já que ele se funda
necessariamente sob operações de abstração, de categorização e de síntese de um dado que
já é uma segunda natureza. Daí este sentimento de aporia que decorre de afirmações como:

Enquanto o pensamento violenta aquilo que ele sintetiza, ao mesmo tempo, ele
segue um potencial que está à espera naquilo que lhe é seu oposto e obedece
inconscientemente à idéia de reparar os pedaços daquilo que ele mesmo quebrou. A
filosofia transforma este não-consciente em consciente65.

O que pode ser compreendido da seguinte forma: o pensamento deve violentar a


aparência da positividade da imediaticidade do objeto da experiência. No entanto, isto não
significa que a dissolução da positividade primeira do objeto seja toda a experiência do
pensar. Há algo na experiência do objeto que só pode se oferecer como ruína, esta é uma
temática herdada de Benjamin que poderá nos colocar nas vias de uma compreensão mais
adequada do que Adorno tem em mente ao falar de mimesis.

Mimesis

Neste ponto, faz-se necessário organizar algumas reflexões a respeito do problema


adorniano da mimesis. Há varias formas de fazer isto, mas uma tem interesse especial no
interior das discussões que estão sendo apresentadas na Dialética Negativa. Ela diz respeito
à defesa de uma certa presença de operações miméticas no próprio conceito hegeliano.
Antes de tudo, lembremos de algumas considerações sobre a mimesis feitas por
comentadores de Adorno. Nós conhecemos uma certa interpretação “hegemônica” a
respeito do problema da mimesis em Adorno. Ela foi sintetizada sobretudo por Habermas,
Wellmer e Honneth. Enquanto recuperação de uma afinidade não conceitual que escaparia
à concepção de uma relação entre sujeito e objeto determinada a partir do modo cognitivo-
instrumental, o recurso adorniano à mimesis prometeria um modo possível de reconciliação
entre o sujeito e a natureza. Uma reconciliação capaz de operar uma abertura para além da
submissão do diverso da experiência sensível a estrutura categorial de uma razão que teria
hipostasiado seu próprio conceito, submissão que, segundo Adorno, indica o processo de
imbricação entre racionalização e dominação. Mas, a princípio, esta maneira de pensar uma
reconciliação fundada sobre afinidades não-conceituais parece se inscrever em uma
perspectiva de retorno a um conceito de natureza como plano positivo de doação de
sentido.
Habermas, por exemplo, afirma que a lógica da mimesis aparece como: “um retorno
às origens através do qual tenta-se retornar aquém da ruptura entre a cultura e a
natureza”66. Uma orientação de retorno a origem que colocaria Adorno ao lado, por
exemplo, de Heidegger. Daí a afirmação : “a memória (Eingendenken) da natureza adquire

65
ADORNO, ND, pp. 30-31
66
HABERMAS, Theorie des hommunikativen Handelns,v. I, Frankfurt, Suhrkamp, 1995, p. 513
uma proximidade chocante com a reminiscência (Andenken) do ser”67. E nos dois casos,
este pensamento da origem e do arcaico nos levaria necessariamente a uma certo abandono
da linguagem conceitual em prol do recurso filosófico à arte, já que a potência mimética da
arte poderia nos indicar aquilo que sempre escapa ao movimento do conceito. No caso da
mimesis em Adorno, poderíamos mesmo pensar em uma certa Naturphilosophie que não
teria coragem de dizer seu nome. Basta compreender este desvelamento mimético das
“múltiplas afinidades entre o que existe”68 como figura de recuperação de uma potência
cognitiva da analogia e da semelhança.
Mas é possível que tais interpretações, com suas modulações inumeráveis,
pressuponham um conceito de natureza, em Adorno, pensada como horizonte de doação
positiva de sentido. A natureza apareceria assim como um signo de autenticidade. O que
vai contra toda possibilidade de um pensamento dialético da natureza, pensamento no qual
esta não é posta nem como horizonte de doação positiva de sentido, nem como simples
construção discursiva reificada. No entanto, é em direção a tal pensamento que Adorno
parece caminhar. Basta lembrarmos que, sendo a mediação posta como um processo
universal, é simplesmente impossível à natureza aparecer como locus do originário ou do
arcaico. Uma avaliação correta da maneira com que Adorno não enxerga na natureza um
plano positivo de doação de sentido, mas um espaço de manifestação do negativo será feita
em outra aula. Neste momento, levaremos em conta todas as acusações, a meu ver
profundamente equivocadas, de entificação adorniana de uma Naturphilosophie que não
teria coragem de dizer seu nome.
Aqui, trata-se de insistir em outro ponto. No discorrer de nosso texto, Adorno passa
das considerações sobre a recuperação da noção de infinitude enquanto movimento de um
conceito capaz de internalizar sua própria negação a considerações sobre a noção de
‘sistema”. De novo, o movimento é bastante claro, já que a noção de sistema nos permite
pensar qual o modo adequado de relação entre conceitos e qual a natureza da síntese
operada pelos conceitos como conjunto. A estratégia adorniana é calculadamente
ambivalente. Pois a crítica do sistema como figura social de dominação, como defesa
contra a “angústia (Angst) do caos”69 [novamente, categorias psicológicas mobilizadas para
dar conta do impulso próprio a operações cognitivas; uma maneira de ignorar diferenças
entre comportamento cognitivo e comportamento volitivo que é tipicamente adorniana.
Encontraremos isto novamente quando Adorno afirma que a relação entre sistema e objeto
é a sublimação do impulso destrutivo contra a presa animal] provocada pelo esgotamento
da episteme e a estrutura social fechada do feudalismo, não deve simplesmente nos levar a
liquidar a noção de sistema. Adorno chega mesmo a lembrar que o heterogêneo à filosofia e
à suas operações de conceitualização confronta-se (gegenübertreten) a ela como sistema.
De qualquer forma, parte do discurso sobre a crise da noção de sistema, dirá Adorno,
discurso que já à época da redação da Dialética Negativa ganhava cada vez mais força, é
uma ideologia que visa nos fazer perder de vista como a sociedade capitalista com seu
princípio de equivalência e suas estruturas sócio-econômicas de concentração é a realização
de uma noção de totalidade sistêmica. Neste sentido, a verdadeira crítica à noção de sistema
não está na mera contraposição através da afirmação de singularidades puras e de
multiplicidades não-estruturadas, já que, como lembra Adorno, o sistema capitalista integra

67
idem, p. 516
68
ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, p. 28
69
ADORNO, ND, p. 32
por desintegração70. Sua ordem é a flexibilização contínua da ordem. A verdade crítica ao
sistema só pode operar de maneira dialética através da reconstrução da noção de “relações
internas” que, no interior do sistema, determina o modo de passagem e de articulação entre
conceitos. Neste sentido, o parágrafo mais claro a respeito de tal estratégia é: “Duplo
caráter do sistema”. Nele, Adorno tenta articular uma posição descrita da seguinte maneira:

A forma do sistema é adequada ao mundo cujo conteúdo escapa à hegemonia do


pensamento; mas unidade e unanimidade são ao mesmo tempo a projeção oblíqua
de um estado (Zustands) satisfeito, não mais antagônico, projeção feita a partir das
coordenadas de um pensar dominador e repressivo. O duplo sentido da sistemática
filosófica não deixa outra escolha que de transpor a força do pensamento liberado
do sistema na determinação aberta de momentos singulares (Einzelmomente)71.

Ou seja, a forma do sistema é a forma própria ao não-idêntico, ms para tanto o


sistema não pode ser o resultado da projeção, sobre o mundo dos objetos, do princípio de
unificação do diverso da experiência sensível próprio ao Eu. Mas o que pode ser um
sistema capaz de se pôr como “determinação aberta dos momentos singulares”? Aqui,
Adorno recorre sintomaticamente a Hegel. Adorno pensa principalmente nos movimentos
de Umschlagen e Verhkerung próprio aos processos, desdobrados por Hegel, de exposição
de conceitos de objetos. Processos que demonstram como a auto-reflexão das categorias
singulares só é possível através da passagem do conceito em seu outro. O sistema não seria
outra coisa que a totalidade posta deste movimento.
Este ponto merece uma análise mais demorada. Se voltarmos os olhos para a noção
hegeliana de sistema, encontraremos algo como um certo “holismo semântico” (para usar
uma expressão de Robert Brandom), ou seja, posição de quem diz que a compreensão das
relações entre objetos é condição suficiente (e não apenas condição necessária) para a
determinação do conteúdo da experiência. Uma primeira leitura deste holismo parece nos
indicar que o saber absoluto hegeliano seria a realização da adequação total do conceito
(compreensão de relações – lembremos que, para Hegel, o conceito não é subsunção do
diverso da experiência sob a forma de objeto, mas posição de estruturas de relações) ao
objeto (o conteúdo da experiência); isto se ele não fosse simplesmente a implementação de
um convencionalismo que afirma ser o conteúdo da experiência apenas aquilo que pode se
adequar a estruturação de relações. Neste sentido, o sistema hegeliano seria a versão mais
bem acabada de tudo o que Adorno não procura.
No entanto, Hegel insiste que tanto a adequação entre conceito e objeto quanto a
estruturação de relações internas ao conceito só serão possíveis á condição de
compreendermos como as relações são estruturadas a partir de negações determinadas. A
princípio a definição de “negação determinada” é mais trivial do que parece. Tomemos, por
exemplo, duas proposições negativas:
- A mulher não é alta
- A mulher não é homem

70
Cf ADORNO, ND, p. 34
71
ADORNO, ND. p. 35
Percebemos claramente que há aqui dois usos distintos da negação, um uso indeterminado e
um uso determinado. Eles são resultados de dois modos distintos de uso do verbo “ser”: um
como predicação e outro como posição de identidade. A negação que incide sobre o verbo
ser no interior de uma relação de predicação é indeterminada. A negação de um termo não
me dá automaticamente o outro termo. Não posso passar de “mulher” para “alta” é vice-
versa. Já a negação que incide sobre o verbo ser no interior de uma relação de identidade é
determinada. A negação de um termo me faz passar automaticamente a um outro termo,
neste sentido, a negação “conserva” o termo que ela nega. No nosso exemplo, a negação do
sujeito gramatical “mulher” me faz necessariamente passar ao termo posto no predicado.
Isto porque, ao negarmos o verbo ser no interior de uma relação de identidade, estamos
necessariamente estabelecendo uma relação de “oposição” ou de “contrariedade”. “Passar
de um termo a outro”, para usar uma expressão hegeliana, indica aqui a existência de uma
relação de solidariedade entre dois termos contrários: homem e mulher, Um e múltiplo, ser
e nada. O Um é inicialmente negação do múltiplo, o ser é inicialmente negação do nada.
Isto nos mostra que uma determinação só pode ser posta através da oposição, ou seja, ela
deve aceitar a realidade de seu oposto. A positividade da identidade a si é suportada pela
força de uma negação interna que, na verdade, sempre pressupõe a diferença pensada como
alteridade.
No entanto, esta compreensão da negação determinada como figura da oposição
é falha sob vários aspectos. Ela é útil para nos lembrar como a negação pode estruturar
relações conceituais, mas ela não dá conta de alguns pontos centrais. O principal deles
diz respeito ao fato de, como veremos mais a frente, Hegel construir a noção de negação
determinada exatamente como dispositivo de crítica à idéia de que as oposições dão
conta da estruturação integral das relações. Pois a oposição pode admitir que só é
possível pôr um termo através da pressuposição da realidade do seu oposto, que aparece
aqui como limite de significação. Mas a oposição não pode admitir que a identidade de
um termo é a passagem no seu oposto, que o limite de um termo, por seu seu-limite, faz
parte da extensão do próprio termo. No entanto, a negação determinada significa
exatamente isto: que o termo, ao realizar-se, ou seja, ao se referir à experiência, passa
necessariamente no seu oposto e esta passagem é, ao mesmo tempo, a perda do seu
sentido e a realização do seu sentido.
Devemos passar aqui ao problema da referência porque a negação determinada não
é apenas o modo de relação entre dois termos, mas fundamentalmente o modo de relação
entre conceito e objeto. Neste sentido, lembremos da idéia central de Hegel: o
conhecimento das relações não é o resultado de deduções, mas é a formalização de
processos da experiência. Conhecer relações não consiste em deduzir, mas em compreender
processos. A negação determinada diz respeito fundamentalmente aos modos de efetivação
do conceito na experiência. Isto indica que, ao tentar indexar o conceito a um objeto, ao
tentar realizar o conceito na experiência, a consciência verá o conceito passar no seu
oposto e engendrar um outro objeto (daí porque a negação determinada é o locus da
passagem de uma figura da consciência à outra). Neste sentido, a consciência nunca
consegue aplicar seu conceito ao caso sem engendrar uma situação que contradiga as
aspirações iniciais de significação do conceito. A experiência é exatamente o campo destas
inversões. Lembremos: Hegel está interessado em compreender como o sentido dos
conceitos modifica-se a partir do momento em que eles procuram se realizar na
experiência. Internalizar o sentido da experiência significa, para Hegel, estruturar relações
conceituais através das inversões que a efetividade impõe ao conceito. De uma certa forma,
não é o conceito que molda a experiência, mas a experiência que molda o conceito ao
impor uma reordenação nas possibilidades de aplicação do conceito.
É exatamente isto que Adorno tem em vista ao afirmar, em nosso parágrafo

Assim como o postulado desta unidade é vinculado á pressuposição da identidade


de todo ente com o princípio de conhecimento, este mesmo postulado lembra, de
maneira legítima, a afinidade [mimética] dos objetos entre si, afinidade que se
transformou em tabu devido à necessidade científica de ordem que procura
substituí-la por seus schemata. Isto através do qual os objetos se comunicam entre
si, ao invés de cada um ser este átomo a respeito do qual a lógica classificatória os
reduz, é o traço (Spur) da determinidade de objetos em si (Objekte an sich) que
Kant nega (leugnet) e que Hegel procura restaurar contra ele através do sujeito.
Conceitualizar uma coisa em si (Eine Sache selbst begreiffen) e não apenas
conformá-la (einpass), registrá-la em um sistema de relações, não é outra coisa que
estar consciente (gewahren) do momento singular em sua relação/em seu contexto
(Zusammenhang) imanente com outros72.

Ou seja, há no sistema hegeliano o delineamento de protocolos de reconhecimento da


afinidade mimética dos objetos entre si. Este delineamento permite a recuperação da noção
mesma de sistema. Como se a passagem no oposto, passagem que no campo da experiência
permite a inversão dialética de um objeto em seu outro fosse uma figura privilegiada da
mimesis. Como se lá onde Hegel via Verkehrung e Umschlagen, Adorno visse mimesis.
Mas enquanto Hegel compreenderia tais passagens no oposto como movimento interno ao
sujeito, Adorno insistiria em um postulado “realista” ao falar que se trata de um movimento
da Coisa mesma, movimento que só pode ser conceitualmente apreendido como
desarticulação da submissão dos objetos a esquemas categoriais prévios.
De qualquer forma, Adorno já havia reconhecido, nos Três estudos sobre Hegel, que
o movimento do conceito hegeliano através de negações determinadas implicava no
reconhecimento de afinidades miméticas entre objetos: “O conceito hegeliano salva
(errettet) a mimesis através da auto-consciência do Espírito (Besinnung des Geist auf sich
selbst): a verdade não é uma questão de adaequatio, mas de afinidade, e no declínio do
idealismo, através de Hegel, o cuidado da razão com sua essência mimética revela-se como
um direito humano”73. Adorno a utilizar categorias clínica para falar dos desvios na relação
entre conceito e mimesis. Um conceito que nega toda e qualquer afinidade mimética é
loucura (Wahnsinn), um conceito que afunda-se completamente nas relações miméticas é
esquizofrenia e patologia narcisista.
Mas notemos que o outro com o qual o objeto sente afinidades não tem nenhuma
realidade positiva em si, ele é apenas o “outro do outro”, para usar um termo hegeliano; ou
seja, algo que não tem nenhuma positividade em si. Isto não significa que o objeto seja
apenas uma variável relacional. Apesar desta crítica da positividade, Adorno fala da
necessidade de resgatar algo que o objeto é em si. Mas é possível afirmar um em-si do
objeto sem defender alguma forma de positividade? E o que isto pode significar

72
ADORNO, ND, p. 36
73
ADORNO, Drei Studien zu Hegel, p. 285
exatamente? E como este problema da mimesis enquanto exposição dos modos de relação
entre conceito e objeto (assim como modos de relação internos ao conceito) pode nos dizer
algo sobre a relação entre conceito e natureza, entre conceito e forma estética? Enfim, o que
se ganha ao ler articular mimesis e negação determinada, tal como Adorno parece fazer?
Estas são questões que precisarão esperar um pouco mais para serem respondidas.
Curso Adorno
Aula 4

Na aula de hoje, terminaremos o comentário da “Introdução” à Dialética Negativa. Com


isto, terminaremos nosso primeiro módulo. O segundo módulo será dedicado à análise da
relação entre Adorno e Heidegger a partir do comentário da primeira parte da Dialética
Negativa, esta cujo título é “Relação à ontologia”. Vale a pena lembrar que nossas leituras
de apoio para o segundo módulo são: Jargão da autenticidade, do próprio Adorno, assim
como dois textos de Heidegger: Sobre o humanismo e A lição de Platão sobre a verdade.
Certamente, este segundo módulo exigirá de três a quatro aulas. Enquanto última aula do
nosso primeiro módulo, creio que se faz necessário um resumo de nosso trajeto no interior
do texto adorniano.
Vimos, logo no início, que este momento do livro era uma introdução peculiar. Ele
não visava simplesmente expor de maneira sumária problemas que, porventura, seriam
desenvolvidos de forma mais adequada no corpo da Dialética Negativa. Adorno estava
muito mais preocupado em discutir os pressupostos para a validação de um
empreendimento como a recuperação contemporânea da dialética. Afinal, trata-se de
perguntar: qual sentido em procurar, no interior da tradição filosófica hegeliana, o modelo
de constituição de uma “experiência filosófica” (philosophischer Erfahrung) à altura da
situação epocal delineada no presente?
De fato, Adorno acredita que apenas a dialética pode fornecer o quadro de uma
auto-crítica da razão capaz de expor a maneira com que os processos de racionalização em
operação na modernidade realizaram-se através da interversão de suas próprias
expectativas. Esta exposição deve permitir não apenas a posição de um movimento crítico
totalizante e aporético, mas a realização de um conceito positivo de razão prometido desde
a Dialética do Esclarecimento. Que tal conceito só possa advir através de uma dialética
“negativa”, eis algo que pode estranhar. De fato, é imbuído deste estranhamento que
Habermas poderá afirmar: “Se é verdade que a Dialética Negativa é a única via possível,
impossível de percorrer discursivamente, da reconstrução, como devemos explicar a idéia
de reconciliação (Versöhnung), já que é apenas à luz desta idéia que Adorno pode
manifestar as insuficiências da dialética idealista?”74. Como se estivéssemos às voltas com
uma crítica totalizante da ideologia que se volta contrai si mesma e que entra
necessariamente em contradição performativa.
No entanto, o estranhamento se dissipa se levarmos em conta que uma boa parte das
discussões gira em torno do sentido da experiência de negação no interior do movimento
dialético. A dialética adorniana é “negativa” apenas para um conceito de razão que não
pode ver uma determinação negativa como modo privilegiado de determinação de objetos
da experiência. A dialética adorniana é negativa apenas para um conceito mutilado de
determinação e de presença. Esta reflexão sobre as modalidades da presença é, inclusive,
uma das razões que transforma o debate entre Adorno e Heidegger em um protocolo central
de desenvolvimento do projeto de uma dialética negativa.
Esta é uma maneira de lembrar que um dos fundamentos da experiência intelectual
adorniana está na sua teoria das negações. Ao colocar sua experiência intelectual sob a
égide de uma dialética negativa, Adorno estava disposto a levar às últimas conseqüências o

74
HABERMAS, Theorie des kommunikativen Handelns I, Frankfurt, Suhrkamp, 1995, p.500
questionamento de idéias clássicas como: “ a realidade é algo, a negação é nada”. Ele
compreende que a tentativa de recusar uma certa dignidade ontológica ao negativo só pode
ser compreendida no interior de um modo de pensar que determina o saber como presença
diante de si do objeto através da representação. Presença que se molda a partir da
visibilidade das coisas que se dão no espaço. Afirmar, como veremos, que a negação é, que
ela tem um ser que lhe é próprio, significa admitir que nem tudo se adequa à visibilidade de
uma presença que tende a reduzir todo ser ao regime de disponibilidade próprio ao espaço.
Dito isto, vimos como a Dialética Negativa começava através da tematização do
programa de auto-crítica da razão como exigência maior para toda experiência filosófica.
Neste sentido, ela retomava o mesmo ponto de partida posto na Dialética do Esclarecimento
com sua pergunta sobre o processo que levou à interversão das expectativas emacipatórias
do Esclarecimento. No caso da Dialética Negativa, esta consciência a respeito de tais
processos de interversão já se apresentava logo na frase inicial do livro: “A filosofia, que
anteriormente parecia ultrapassada, mantém-se em vida porque o momento de sua
realização foi perdido (versäumt)”75. No entanto, aqui, a impossibilidade de transformar a
efetividade, isto no sentido de uma impossibilidade de conceitualizar a efetividade de modo
adequado, aparecia como condição de sobrevivência da filosofia.
Vimos como havia vários modos de interpretação da problemática proposta por
Adorno a respeito da perda do momento de realização da filosofia (enquanto legatária das
aspirações do Esclarecimento) e de sua regressão, seja a um “conceito escolar” procedente
da divisão do trabalho intelectual e de sua restrição à perpétua reduplicação de seus
próprios textos, seja à condição de desvio supérfluo em relação às exigências urgentes da
praxis. Um destes modos nos lembra que não se trata apenas de afirmar o diagnóstico
histórico segundo o qual a promessa de unidade entre o pensar e a efetividade foi quebrada
porque a imbricação sistêmica entre mercados e instituições sociais no capitalismo
avançado impediria a realização de qualquer expectativa de racionalização não-
instrumental da dimensão prática. Na verdade, a questão fundamental diz respeito ao fato
do sistema capitalista ter sido capaz de inverter em seu contrário todas as aspirações de
racionalização da dimensão prática próprias ao esclarecimento, isto no momento mesmo em
que tais aspirações são implementadas. De uma certa forma, o capitalismo realiza o projeto
do esclarecimento, o que uma auto-crítica da razão compreende perfeitamente. Ou seja, tal
promessa de conceitualização adequada da práxis foi quebrada não devido a um pretenso
descompasso insuperável entre conceito e efetividade, mas devido a inversões nos modos
de aplicação do próprio conceito. De uma certa forma, a ruptura não é apenas entre
conceito e efetividade, mas ela repete uma ruptura mais profunda entre o conceito e si
mesmo, entre o conceito e sua expectativas iniciais de determinação da experiência. Ela é
interna ao próprio fundamento da razão. Daí porque Adorno pode afirmar que: “talvez a
interpretação que prometia a passagem em direção à práxis (praktischen Übergang) não era
suficiente”76. Ela não era suficiente porque o problema talvez estivesse no próprio conceito
de passagem, o que nos leva diretamente a uma questão maior concernente aos regimes de
conceitualização com suas determinações categoriais. Maneira de afirmar que a crítica
social, enquanto setor da crítica aos modos de racionalização da sociedade atual, seria
fundamentalmente dependente de uma tematização de larga escala a respeito da
naturalização de estruturas de racionalidade que impedem a compreensão dos processos de

75
ADORNO, ND, p. 15
76
ADORNO, ND, p. 15
interversão do conceito na efetividade. A verdadeira crítica social é, a sua maneira, uma
autocrítica do conceito. Daí porque só uma dialética inspirada em Hegel poderia realizar o
projeto de auto-crítica da razão.
Esta auto-crítica do conceito começava como uma afirmação prenhe de
conseqüências: “Pensar significa identificar”. Ao afirmar que “pensar significa identificar”,
Adorno não estava longe de seguir o motivos freudianos e hegelianos a respeito da estrutura
cognitiva do objeto como, de uma certa forma, uma projeção do sujeito. Lembremos, a este
respeito, desta proposição fundamental de Robert Brandom a respeito do idealismo: “o
objeto de nossas atividades cognitivas é inteligível apenas como parte de uma história que
também considera a natureza do sujeito que se engaja em tais atividades”77, isto a fim de
afirmar que a tese idealista fundamental em Hegel diz que: “ a estrutura e unidade do
conceito [de objetos] é a mesma estrutura do eu”78. Ou seja, o dado é, em larga medida,
uma determinação da consciência, na medida em que devemos reconhecer capacidades
conceituais em operação na mais simples percepção. Adorno chega mesmo a afirmar que o
preço da “disciplina dialética” é o sacrifício amargo da diversidade qualitativa da
experiência.
No entanto, no caso de Adorno, esta partilha em relação à crítica do imediato é
complexa pois não assentada na desqualificação simples do que se oferece como ponto de
excesso ao pensamento conceitual Tratava-se de afirmar que “há na experiência relações
epistemicamente significantes com algo não-conceitual”79. O que Adorno admite
claramente ao dizer que: “todos conceitos, mesmo os conceitos filosóficos, vão em direção
(gehen) ao não-conceitual”80. Logo, uma pergunta maior foi posta: como é possível
conciliar estas duas proposições aparentemente contraditórias e sempre presentes na
dialética negativa: todo dado é uma projeção do Eu com suas capacidades conceituais e há
algo na experiência que é não-conceitual? Como vimos nas aulas passadas, Adorno tentará
pensar esta contradição no interior de uma dialética entre particular e universal, ou seja,
entre a irredutibilidade da experiência do particular (deste particular a respeito do qual nada
mais posso dizer a não ser que se trata de um isto, de um algo, de um tode ti) e a
universalidade do conceito. Uma tensão entre universal e particular que nos explica porque
o objeto maior da dialética negativa é um conceito de diferença pensado sob a figura da
não-identidade. A diferença é o que se deixa pensar apenas como resto dos processos de
identificação, como identidade negada.
De qualquer forma, ao insistir em pensar a diferença no interior de uma dialética
entre universal e particular, Adorno não pode deixar de lembrar que toda experiência
filosófica possível encontra-se na impossibilidade de abandonar o conceito em prol de
alguma forma de retorno ao imediato. A questão maior é, na verdade: qual processo de
conceitualização adequado às exigências de crítica da “ideologia da identidade” que move a
dialética negativa, já que todo uso do conceito é, ao menos em um certo nível, uma
identificação, uma subsunção?
Vimos na aula passada como Adorno acabava compreendendo a conceitualização
através de duas operações divergentes. Por outro lado, o conceitualizar aparece estritamente
vinculado à operações de abstração enquanto condição para a constituição de objetos da

77
BRANDOM, Tales of the mighty death, Harvard University Press, 2002, p. 178
78
idem, p. 201
79
O´CONNOR, Adorno and the problem of giveness in Revue Internationale de Philosophie, 2004, p. 85
80
ADORNO, ND, p. 23
experiência. Adorno não nega que a abstração em relação a qualquer pretensa determinação
intrínseca do objeto seja necessária para toda operação conceitual, mas há um momento,
segundo Adorno, no qual a abstração aparece como uma forma de encantamento, isto a
partir do momento em que o conceito aparece como “totalidade auto-suficiente”. Contra tal
totalização, Adorno insiste na estrutura auto-reflexiva do conceito, movimento através do
qual o conceito pressupõe seu próprio limite e o internaliza como seu “caráter constitutivo”
sem nunca pôr tal limite de maneira integral. Cheguei mesmo a lembrar com vocês que esta
auto-reflexividade do conceito era implementação de um conceito de infinitude de clara
matriz hegeliana, já que, para Hegel, infinito é aquilo que porta em si mesmo sua própria
negação e que, ao invés de se auto-destruir, conserva-se em uma determinidade. No
entanto, Adorno opera um deslocamento significativo em relação a Hegel e que diz respeito
à determinação do regime de experiência capaz de fornecer ao conceito o horizonte
adequado de formalização de seus limites:

O conceito só pode representar (vertreten) a coisa que ele recalca (verdrängte), a


mimesis, apropriando algo desta última em seu próprio modo de conduta, o que o
leva a perder-se nela. Por isto, o momento estético, por razões diversas das
levantadas por Schelling, não é acidental à filosofia81.

Tais considerações são fundamentais. Posta a questão sobre a maneira com que o
conceito internaliza o heterogêneo sem subsumi-lo sob o genérico do esquema categorial,
internalização que permitia algo da ordem da posição de uma experiência de infinitude,
Adorno recorrer a um conceito de mimesis inspirado na experiência estética. Assim, esta
compreensão quase aporética do conceitualizar como tensão entre “abstração” e “mímesis”
parecia ser o resultado do empreendimento adorniano. Isto a ponto de podermos dizer que
as interversões do conceito acontecem sempre que um destes momentos é negado enquanto
operação racional.
Ao final da aula passada, abordamos o problema do conceito adorniano de mimesis.
Uma das maneiras de abordá-lo consistia em insistir que Adorno reconhecera, nos Três
estudos sobre Hegel, que o movimento do conceito hegeliano através de negações
determinadas implicava no reconhecimento de afinidades miméticas entre objetos. Tudo se
passa como se lá onde Hegel via Verkehrung e Umschlagen, Adorno visse mimesis. Mas
notemos que o outro com o qual o objeto sente afinidades não tem nenhuma realidade
positiva em si, ele é apenas o “outro do outro”, para usar um termo hegeliano; ou seja, algo
que não tem nenhuma positividade em si. Isto não significa que o objeto seja apenas uma
variável relacional. Apesar desta crítica da positividade, Adorno fala da necessidade de
resgatar algo que o objeto é em si. Mas é possível afirmar um em-si do objeto sem defender
alguma forma de positividade? E o que isto pode significar exatamente? Foi neste ponto
que paramos.

Pensar por modelos

Esta tensão entre dois processos antagônicos no interior das operações de


conceitualização continuará presente no texto adorniano. Assim, ele afirmará:

81
idem, p. 26
A imersão (Versenkung) no singular, a imanência dialética levada ao extremo
requer, como um de seus momentos, a liberdade de sair do objeto, liberdade que
suprime a exigência de identidade82.

Ou seja, a imersão no singular comporta momentos de transcendência em relação às


determinações fenomenais de objeto. Tendo em vista a resolução desta aporia que Adorno
afirmará: “Pensar filosoficamente significa pensar por modelos. A dialética negativa é um
conjunto de análises de modelos”. Tal afirmação é central por nos colocar nas vias das
categorias sintetizadas por Adorno a fim de dar conta da experiência filosófica que ele
procura tematizar. Como dissera na primeira aula, de maneira esquemática, é possível dizer
que há, ao menos, três maneiras de se pensar os modos de indexação entre conceito e caso.
O primeiro é o caso como exemplo do conceito. Aqui, há uma relação tautológica de
subsunção da particularidade do caso à generalidade do conceito, até porque não há nada a
apreender do caso que já não esteja no conceito [ Uma rosa é uma rosa]. O segundo é o
caso como ponto de excesso do conceito. Trata-se da defesa da existência de uma relação
de não-estruturação do caso pelo conceito, como se houvesse uma irredutibilidade da
multiplicidade própria ao caso a toda tentativa de estruturação pelas capacidades
generalizadoras do conceito. Por fim, podemos dizer que o caso é um modelo do conceito.
No entanto, a acepção tradicional de “modelo” é extremamente precisa. Desde
Platão, “modelo” é o que é representado. No entanto, muito mais do que a posição de um
objeto, o modelo é a representação de um estado de coisas a respeito do qual apenas a
estrutura é cognoscível. Ele é a linguagem funcional usada para conhecer a estrutura de
uma realidade. Por outro lado, operar por modelos não é a mesma coisa que operar por
esquemas. Lembremos da geometria de Desargues: modelizar significa projetar sobre um
plano, o modelo é uma construção imaginativa de um analogon de caráter matemático ou
físico que permite à ciência romper com uma tradição de conhecimento que procura se
orientar pela intuição direta de conteúdos83. A sua maneira, o modelo parece ser um
instrumento cognitivo que opera para além das coisas em si. Há um exemplo extremamente
significativo, vindo de Simplicius comentando Aristóteles: “Face ao caráter aparentemente
singular do movimento irregular dos corpos celestes, é possível construir um sistema de
hipóteses geométricas. Temos então um modelo através do qual, substituindo os
movimentos que observamos e que resistem à explicação por movimentos uniformes e
regulares, torna-se possível explicar os primeiros pelos segundos”84. Este exemplo é
exatamente praticamente que Benjamin tem em vista quando desenvolve o conceito, tão
importante para a dialética negativa de Adorno, de “constelação”: “As idéias estão para as
coisas assim como as constelações estão para os planetas. Isto quer inicialmente dizer: elas
não são nem o conceito nem a lei. Elas não servem ao conhecimento dos fenômenos e estes
não podem em hipótese alguma ser o critério de existência das idéias”85. No entanto, a
inadequação entre o modelo e a coisa aparece como modo de posição: “desta significação
metafísica suprema que o sistema de Platão atribui à idéia”86. Ou seja, vemos assim uma
articulação profunda entre as idéias de “modelo” e “constelação”.

82
idem, p. 39
83
Sobre este ponto, ver SOULEZ, Quel nouage entre lettre et lieu? in MARCOS, La lettre et lê lieu, Paris,
Kimé, 2005
84
idem, p. 49
85
BENJAMIN, Origens do drama barroco alemão
86
idem
O que dizer no caso de Adorno? Para ele, o modelo é fundamentalmente aquilo
capaz de formalizar a tensão entre a imersão no singular e exigências de apreensão
estrutural que exigem movimentos de transcendência. De um certo aspecto, o modelo
parece próximo a uma metáfora, um “ver como” que me permite apreender certos objetos
apenas no interior de relações transversais de analogia, já que nenhuma apreensão
conceitual direta de conteúdo parece possível. No entanto, há algo de bastante peculiar a
Adorno com sua insistência de que: “Pensar é sempre pensar a partir de algo (Etwas)”87.
Isto talvez fique mais claro se lembrarmos que o pensar por modelos é um procedimento
que encontra sua realização, por exemplo, na noção de “crítica imanente”.
Em Crítica cultural e sociedade, Adorno lembrava, ao tentar desdobrar sua noção
de crítica imanente, que: “só é capaz de acompanhar a dinâmica do objeto aquele que não
estiver completamente envolvido por ele”88. Ou seja, acompanhar a dinâmica do objeto
implica em apreender suas determinações estruturais (ou sua idéia, para falar como
Benjamin), estas mesmas determinações que podem ser perdidas pela fascinação pela
reificação da aparência. No entanto, a verdadeira crítica imanente não se contenta com este
“desvelamento” estrutural todo ele inspirado em uma teoria da segunda natureza. Ela
procura expor, no interior do próprio objeto tal como ele é fornecido à experiência, a
contradição entre seu conceito e sua determinação fenomenal. É isto que Adorno tem em
vista ao falar da necessidade de pensar a “diferença imanente do fenômeno com suas
aspirações (beansruchen)”89.

Esta é uma idéia que aparecerá na Teoria estética através da afirmação de que a verdadeira
obra de arte nunca é totalmente adequada ao seu processo construtivo, ao seu próprio
conceito, já que ela deve expor exatamente as contradições internas ao próprio objeto.
No fundo, Adorno é animado mais uma vez pela noção hegeliana de negação
determinada enquanto modo de relação entre conceito e objeto. E é à negação determinada
que Adorno recorre ao afirmar que pensar por modelos não implica em nenhuma forma de
relativismo onde, por exemplo, os conceitos não seriam mais do que metáforas que se
assumem enquanto tais. Até porque, mais uma vez, Adorno lembra que a figura ideológica
maior do capitalismo atual consiste na aparência da multiplicidade inumerável, do
perspectivismo enquanto estratégia de bloqueio da apreensão crítica do princípio universal
de mediação da forma-mercadoria.
Esta discussão sobre o relativismo é importante porque o descompasso entre o
conceito e o que procura determinar não é simples resultado do caráter arbitrário do
conceito. Este é o sentido de uma afirmação como:

o que dilacera a sociedade em antagonismos, o princípio de dominação, é o mesmo


que, espiritualizado, atualiza a diferença [ou seja, a não-identidade] entre o conceito
e o que a ele se subordina90.

87
ADORNO, ND, p. 44
88
ADORNO, Prismas, São Paulo, Ática, p. 19
89
ADORNO, ND, p. 48
90
idem, p. 58
Quer dizer, este dilaceramento é, paradoxalmente, condição para que a diferença seja
pensável. É o recurso à negação determinada que talvez nos explique porque o
descompasso entre conceito e efetividade desvelado pela crítica imanente e formalizado
pelo modelo é, na verdade, apreensão do conteúdo da experiência. Pois a dialética consiste
exatamente em apreender as contradições engendradas pela realização do conceito na
experiência, ou seja, o fato de que a efetivação do conceito de um objeto é necessariamente
sua negação, uma negação que aparece como realização do próprio conceito.
Neste sentido, vale a pena lembrar que a negação determinada é fundamentalmente
o modo dialético de relação entre conceito e objeto. Neste sentido, lembremos da idéia
central de Hegel: o conhecimento das relações não é o resultado de deduções, mas é a
formalização de processos da experiência. Conhecer relações não consiste em deduzir, mas
em compreender processos. A negação determinada diz respeito fundamentalmente aos
modos de efetivação do conceito na experiência. Isto indica que, ao tentar indexar o
conceito a um objeto, ao tentar realizar o conceito na experiência, a consciência verá o
conceito passar no seu oposto e engendrar um outro objeto (daí porque a negação
determinada é o locus da passagem de uma figura da consciência à outra). Este “outro
objeto” não é uma nova positividade que se adequaria enfim ao conceito. Ele é “o outro do
outro”, um limite que deve ser apreendido pelo conceito como negação. Neste sentido, a
consciência nunca consegue aplicar seu conceito ao caso sem engendrar uma situação que
contradiga as aspirações iniciais de significação do conceito. A experiência é exatamente o
campo destas inversões. Lembremos: Hegel está interessado em compreender como o
sentido dos conceitos modifica-se a partir do momento em que eles procuram se realizar
na experiência. Internalizar o sentido da experiência significa, para Hegel, estruturar
relações conceituais através das inversões que a efetividade impõe ao conceito. De uma
certa forma, não é o conceito que molda a experiência, mas a experiência que molda o
conceito ao impor uma reordenação nas possibilidades de aplicação do conceito. Por sua
vez, Adorno afirmará que é através de um pensar por modelos que a experiência da negação
determinada pode se transformar em dispositivo de orientação para o pensar e para a
conduta, isto ao invés de ser um simples exercício infinito ruim de crítica. O modelo é o
dispositivo de formalização de negações determinadas. Na Dialética Negativa, Adorno
fornecerá três casos de aplicação de modelos: um a respeito do modo de inversão do
conceito de liberdade, outro a respeito do modo de passagem entre os conceitos de história
e natureza e o último a respeito do modo de passagem entre os conceitos de metafísica e
materialismo.

Linguagem e sujeito

Mas Adorno tira uma conseqüência maior desta sua maneira de compreender a
estrutura de um modelo. Se a função do modelo é formalizar esta diferença imanente entre
o fenômeno e suas aspirações, seu conceito, então há algo na dimensão fenomenal que se
oferece como resistência ao conceito. Daí a necessidade de afirmar que: “não se trata de
negar pura e simplesmente toda experiência se apresentando como primária”91. Isso nos
obrigaria então a recorrer a alguma forma de “imediato”? E se este for o caso, como ficará
esta afirmação dialética segundo a qual não há nada como um positivo naturalmente dado,

91
ADORNO, ND, p. 49
até porque encontramos capacidades conceituais na própria percepção? É neste ponto que
Adorno expõe uma idéia central:

O que no objeto ultrapassa (übersteigt) as determinações impostas pelo pensamento


retorna (kehrt) primeiramente ao sujeito como imediato; onde o sujeito sente-se
inicialmente certo de si, na experiência primária, ele é mais um vez o que há de
menos sujeito. O que há de mais subjetivo, o imediatamente dado escapa à sua
intervenção (Eingriff). No entanto, tal consciência imediata não pode ser
continuamente mantida nem puramente positiva92.

Ou seja, o que aparece sob a forma de imediato é apenas o ponto de excesso em relação às
determinações do pensar, ele é o que escapa à intervenção do sujeito. No entanto, qual a
natureza deste ponto de excesso? Adorno afirma que este imediato não é fundamento, mas
momento. Ele não pode ser o que fundamenta o pensar em um solo positivo de
determinações, normas e leis; ele é momento no interior de um processo, momento que
impulsiona um processo. Daí porque ele é o que se oferece como marcado pelo
evanescimento (“não pode ser continuamente mantido”) e pela negatividade (“não pode ser
puramente positivo”). Maneira de dizer que há, no interior da experiência do imediato, algo
da ordem da não-identidade do sensível ao conceito. Este momento de confrontação com o
imediato será definido por Adorno como “momento qualitativo do pensamento”.
Mas antes de dar conta de uma certa recuperação das determinações qualitativas do
pensar (recuperação porque, como vimos anteriormente, Adorno afirma que o sacrifício
amargo da diversidade qualitativa da experiência é o preço a pagar pela disciplina
dialética), Adorno opera uma certa reviravolta e lembra que, contrariamente ao que pode
parecer, não se trata aqui de tentar alguma forma de deposição da categoria de sujeito para
que a imanência do imediato possa se pôr. “A objetividade dialética”, dirá, “não necessita
de menos, mas de mais sujeito”. Para quem está a procura de uma crítica ao primado do
sujeito em prol de um dito primado do objeto, eis uma frase que parece não dizer de onde
veio. No entanto, ela aponta a solidariedade profunda entre o projeto de uma dialética
negativa e a reconstrução da categoria de sujeito.
Este é um ponto que voltaremos a abordar em vários momentos. Por enquanto,
devemos apenas lembrar como Adorno insiste que esta categoria renovada de sujeito exige
uma crítica ao conceito de comunicação, até porque, trata-se de reconhecer, como veremos
em outras aulas, algo no sujeito que não se submete ao telos da transparência da palavra
partilhada em contextos de interação social. Esta crítica à tentativa de transformar as
estruturas comunicacionais entre sujeitos em paradigma de reconstituição da racionalidade
é uma constante na obra de Adorno. Aqui, ela aparece da seguinte forma:

O critério da verdade não é sua comunicação imediata a todos. Deve-se resistir à


coerção quase universal a confundir a comunicação do conhecido com este [o objeto
a conhecer],pois atualmente cada passo em direção à comunicação liquida e falsifica
a verdade. Por enquanto, este é o paradoxo que trabalha em toda linguagem. A
verdade é objetiva, não plausível93.

92
ADORNO, ND, pp. 49-50
93
idem, p. 53
De fato, desde a Dialética do Esclarecimento, a linguagem ordinária aparecia como espaço
maior dos processos de reificação e de alienação. Ela é setor privilegiado da crítica da
racionalidade instrumental. Fato que levará Adorno a sustentar uma tensão irredutível entre
certas dimensões da subjetividade e o campo lingüístico intersubjetivo. Na verdade, este era
um desdobramento da afirmação da impossibilidade de auto-objetivação do sujeito no
interior da realidade alienada das sociedades modernas. A este respeito, Adorno insistirá
que o sujeito de nossa época estaria diante de uma realidade mutilada pelo pensamento
identitário da lógica de equivalentes própria à forma-mercadoria. Este pensamento
identitário resvalado à condição instrumental nos leva necessariamente em direção a uma
linguagem reificada no interior da qual: “Não apenas as qualidades são dissolvidas, mas os
homens são forçados à real conformidade” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 26).
Esta submissão do existente à objetividade fantasmática da abstração fetichista instaura
uma inadequação entre as aspirações de singularidade da subjetividade e o campo
intersubjetivo da linguagem. De onde se seguem afirmações como:

Se a opinião pública atingiu um estado em que o pensamento inevitavelmente se

converte em mercadoria e a linguagem em seu encarecimento, então a tentativa de por a

nu semelhante depravação tem que recusar lealdade às convenções lingüísticas e

conceituais em vigor, antes que suas conseqüências para a história universal frustrem

completamente essa tentativa” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 12).

Resta pois à subjetividade entrar na procura de uma linguagem capaz de por o que é da
ordem do não-identico.
Lembremos ainda que esta crítica à reificação da linguagem ordinária talvez nos
explique porque encontramos uma recusa clara em vincular a procura de um conceito
positivo de razão a uma pretensa racionalidade comunicacional que se esboçaria no
horizonte das relações entre sujeitos. Neste sentido, é certo que: “o conceito adorniano de
experiência não incluía e sequer supunha uma teoria da intersubjetividade” (BUCK-
MORSS, 1981, p. 182). Mas esta exclusão ancora-se em uma crítica da linguagem
vinculada à crença de que a expressão no interior do campo intersubjetivo está
necessariamente submetida a processos de reificação e de objetificação. A auto-objetivação
do sujeito só pode se dar como alguma forma de negação de determinações intersubjetivas,
negação dialética que, por sua vez, não seja retorno ao inefável ou ao arcaico.
Esta compreensão da estrutura representativa da linguagem ordinária como
dissolução do momento qualitativo não significa retorno ao inefável porque ela é feita
juntamente com a tentativa de reconstrução de uma linguagem filosófica que absorva aquilo
que Adorno chamará, no último parágrafo da Introdução, de “momento retórico”. Momento
que permite o advento de algo da ordem da expressão subjetiva no interior de uma
linguagem com aspirações cognitivas. Há muito a se dizer a respeito desta linguagem capaz
de dar conta de exigências de reconhecimento da singularidade da subjetividade. Faremos
isto mais à frente. Por enquanto, gostaria apenas de lembrar que este recurso á retórica não
é gratuito. Adorno quer, a sua maneira, insistir nas relações entre estilo subjetivo e
determinação de objeto. Pois podemos dizer que o estilo é exatamente o trabalho de
passagem da forma geral transcendental do pensamento ao conteúdo local. Passagem que é
o ato de pensar, se compreendemos o pensamento como ato de singularizar um conteúdo
particular da experiência através de sua articulação com a universalidade conceitual da
forma. Singularização que Granger chamará de: "individualidade conceitualizada"94
aproximando-se assim de um problema maior para Adorno. Entre a transcendentalidade da
universalidade das leis da estrutura e a particularidade da experiência, faz-se necessária
uma mediação feita por uma espécie de ‘articulação singular da estrutura’95.

Recuperar o momento qualitativo do conceito

No entanto, deixamos Adorno com a exigência de recuperar o momento qualitativo do


pensamento resultante do reconhecimento de algo que se põe como ponto de excesso em
relação às determinações representativas das operações conceituais. Esta passagem em
direção à qualidade não poderia ser mais hegeliana. Afinal, é Hegel quem associa o
primeiro nível da imediaticidade do ser à qualidade: “A qualidade é de modo geral a
determinidade imediata, idêntica ao ser, em diferença com a quantidade, a qual decerto
também é uma determinidade do ser, mas uma determinidade não mais idêntica
imediatamente com ele, e sim indiferente para com o ser, e que lhe é exterior. Algo é o que
é por sua qualidade e, ao perder sua qualidade, deixa de ser o que é”96.
No entanto, Hegel lembra que o pensamento imediato da qualidade é uma aporia, tal
como, por sinal, o próprio Adorno. Primeiro, porque a determinação da qualidade é
relacional, ela exige a atualidade de uma estrutura de diferenças qualitativas que possa
orientar o pensar. Neste sentido, sua imediaticidade se esvai. Por outro lado, a qualidade
inefável é apenas uma unidade, um ser indiferente à determinação. Mas todo ser
determinado qualitativamente é um “Um”. A multiplicidade de “Um” é o que permite a
passagem da qualidade à quantidade. Mas há também uma passagem da quantidade na
qualidade (através deste quantum qualitativo que é a medida: Masstab). A princípio, posso
dizer que uma casa permanece o que é, seja maior ou menor e o vermelho continua
vermelho, seja mais brilhante ou fosco. Mas há um momento em que a variação
quantitativa do vermelho nos obriga a uma mudança de qualidade. “Quando uma variação
quantitativa ocorre, isso aparece inicialmente como algo de todo inocente; mas há algo
diverso por trás dela, e essa variação – ou aparência inocente – do quantitativo é por assim
dizer uma astúcia, graças a qual se atinge o qualitativo”97. Quer dizer, há uma passagem ao
qualitativo que não é exatamente uma recuperação do imediato, mas o resultado de um
levar as variações quantitativas ao extremo.
Adorno tem algo desta natureza em vista ao afirmar que a qualidade é o que permite
o estabelecimento de processos de diferenciação que visam alcançar o ínfimo (kleinst), ou
seja, aquilo que ultrapassar a determinação segura da quantificação:

94
GRANGER; Essai d’une philosophie du style, Paris, Armand Colin, 1968, p. 7.
95
Questão de método acentuada por Granger através do reconhecimento da necessidade de uma "teoria
sintética da individuação linguística”, já que, "é através do que se acrescenta ao estrito conteúdo
informacional que a individuação pode aparecer" (GRANGER, Pensée formelle et sciences de l’homme, p.
193).
96
HEGEL, Enciclopédia, par. 85
97
idem, par. 108
È diferenciado aquilo que em si como em seu conceito é capaz de distinguir até o
mais ínfimo, até o que escapa do conceito; apenas a diferenciação alcança até o
ínfimo98.

Novamente, encontramos esta figura de um processo que se coloca como ponto de excesso
em relação ao conceito. Mas agora percebemos que este ponto de excesso é resultado não
de um imediato da intuição, mas de um conceitualização que vai à auto-dissolução por
alcançar o que não se submete às determinações quantitativas da representação. A
qualidade aparece assim como ponto de excesso, e não como dispositivo de determinação
positiva.
Na verdade, esta idéia de uma recuperação do momento qualitativo do conceito vem
da estética. De fato, é provável que o debate da vanguarda musical tenha mostrado a
Adorno que a música estava a procura de uma forma capaz de operar “sínteses não
violentas”, mas uma forma desta natureza não poderia ser alcançada através da deposição
de todas expectativas construtivas da forma. Na verdade, ela só poderia se realizar como
figuração que tende em direção à sua própria auto-dissolução. Figuração na qual: “sua auto-
dissolução (Selbstauslössung) seja sua realização”.
Ao escolher o sub-título de seu livro sobre Berg “o mestre da transição ínfima”,
Adorno já demonstrava claramente o aspecto que lhe parecia essencial na obra de seu
antigo professor: ele está ligado a uma elaboração completa dos detalhes que fornece à
música de Berg seu aspecto de continuidade cerrada. Berg aparece assim contra uma certa
tendência “pontilhista” na música contemporânea que estaria vinculada à incapacidade de
articular transições. Incapacidade que fica mais visível na composição de “grandes formas”.
De fato, este é o resultado do uso berguiano do conceito schoenberguiano de “variações
progressivas”, mas no sentido cromático de contínuo desenvolvimento que dissolve o todo
ao construir a música a partir do desdobramento incessante de seus motivos.
Desta forma, a continuidade de Berg têm, aos olhos de Adorno, uma série de
peculiaridades. Não se trata aqui do resultado do uso estrito de estruturas funcionais
herdadas do tonalismo. Embora Berg continue usando-as, elas não têm mais o poder de
operar sínteses funcionais. Em Berg a transição é resultado do trabalho microscópico de
unidades constitutivas de base. Tais unidades de base são diferenciais muito pequenos, daí
o fato de que a maioria dos temas de Berg tenham, por núcleo, intervalos simples de
segunda menor, o que dá um caráter “vegetativo” ao desenvolvimento musical. Por outro
lado, seus temas guardam sempre um “resto” que se reduz cada vez mais até se esvair.
Desta forma, o desenvolvimento intenso dos detalhes acaba por dissolver a própria forma
como totalidade: “Através da micro-técnica, Adorno constrói o paradoxo de uma
composição que se desorganiza ou se desfaz à medida em que se organiza ou se faz,
paradoxo que corresponde ao que há de mais fundamental na música de Berg: este tom de
auto-dissolução”99.
Adorno interpreta tal tendência à dissolução devido ao extremo da construção como
figura de um processo de formação que se realiza negado-se. De fato, esta tendência à
dissolução da totalidade através do desenvolvimento extremo dos momentos particulares
poderia parecer autonomização fetichista das partes, isto se o procedimento de

98
ADORNO, ND, p. 56
99
BOISSIÈRE, Adorno ou la vérité em musique, p. 94
desenvolvimento não fosse, na verdade, uma auto-negação (e não o congelamento do
material em uma imagem estilizada). Daí porque Adorno pode falar, neste caso, de um
“caos organizado”: “Sua música, cuja tendência é o caos, guarda o domínio de si mesma e
tem uma forma”100. Desta forma, ela mediatiza o informe de maneira dialética, ou seja,
negando-o e conservando-o. Como bem compreendeu Geuss: “O princípio básico da
música da música de Berg não é ´tensão-distensão´ mas ´construção-desconstrução´
(Aufbau Abbau) ou, ainda, afirmar e retomando o que foi afirmado. Essa “retomada”
(taking back) é o oposto das formas tradicionais de afirmação musical”101. Na verdade, ela
é figura de um tempo que só pode afirmar-se como dissolução de toda e qualquer figuração
que procura subsistir ao seu movimento incessante. Adorno descreve claramente este jogo
de construção e desconstrução própria à música de Berg:

Pode-se ilustrar esta maneira berguiana – maneira no sentido amplo de maneirismo


– com o jogo infantil no qual a palavra ‘Kapuziner’ é desconstruída e remontada:
Kapuziner – Apuziner – Puziner – Uziner – Ziner – Iner – Ner – Er –R, R- Er- Ner –
Iner – Ziner – Uziner - Puziner – Apuziner – Kapuziner. Esta é a maneira com a
qual ele compõe e que sua música joga na cripta de um capuchinho farsante, seu
desenvolvimento visou essencialmente a espiritualização desta maneira.102

Um exemplo privilegiado para Adorno é o Quarteto de cordas, opus 3 (de fato, Adorno
prefere as obras da primeira fase de Berg, como o Quarteto e as Três peças para orquestra,
opus 6). Sobre ela, Adorno dirá: “Não existe um só detalhe que não retire seu sentido
apenas da relação à totalidade da forma, mas não subsiste por sua vez forma que não
encontre sua legitimação na exigência e no impulso recebido do detalhe, não tendo
nenhuma prioridade abstrata em relação à inspiração”. [tema principal que não funciona
como elemento unificador, liquidação da sona ta, ausência de tema na segunda parte, a
técnica de ´resto´que se associa à antecipação, modelo de prosa livre]

A música de Berg tem uma tendência para esta experiência do informe e do difuso
que é recalcado no nível das pulsões eróticas: ela é o antípoda de toda esta clareza
geométrica que, em todas escolas conservadoras da música moderna, confunde a
forma com a vontade de eliminar todo movimento estrangeiro ao Eu. Mas a forma
só é uma quanto acolhe este elemento que lhe é oposto103.

100
ADORNO, QUF, p. 202
101
GEUSS, Adorno and Berg, p. 47
102
ADORNO, Alban Berg, p. 23
103
ADORNO, QUF, p. 201
Curso Adorno
Aula 5

Na aula de hoje, iniciaremos o segundo módulo de nosso curso, este dedicado


ao comentário da primeira parte da Dialética Negativa intitulada “Relação à
ontologia”. Parte dividida em dois capítulo, “A necessidade ontológica” e “Ser
e existência”, ela visa, principalmente, dar conta da confrontação entre
Adorno e Heidegger articulando seus pontos centrais. Na aula de hoje,
comentaremos o trecho que vai até o parágrafo “Ser thesei”. Na aula que vem,
terminaremos o primeiro capítulo e avançaremos no comentário do segundo
capítulo.
Antes de começar o comentário do texto, algumas questões preliminares
devem ser respondidas. A primeira delas é: por que a Dialética Negativa
precisa começar através de um longa crítica ao projeto heideggeriano de
constituição de uma ontologia fundamental do ser? No interior da economia
do texto, qual o sentido deste começo? Uma resposta possível pode ser dada se
esboçarmos rapidamente a ossatura do livro. De fato, ele começa através de
uma crítica ferrenha à ontologia fundamental do ser heideggeriana, uma
ontologia no “limiar da dialética” segundo palavras do próprio Adorno. No
capítulo seguinte, Adorno apresenta os conceitos e categorias que permitiriam
à experiência filosófica da contemporaneidade atravessar este limiar da
dialética realizando o programa de exposição de um conceito positivo de
razão. Tal exposição permite Adorno retornar ao campo da crítica através da
procura por um modelo no qual tal conceito positivo se realize.
Esta procura por modelos segue uma inspiração kantiana. Kant, ao final
da Crítica da razão pura, lembrava que até então o conceito de filosofia tinha
sido apenas um conceito escolar, ou seja: “o conceito de um sistema de
conhecimento que apenas é procurado como ciência sem ter por fim outra
coisa que não seja a unidade sistemática desse saber, por conseqüência, a
perfeição lógica do conhecimento”104. A este conceito escolástico, ele
contrapunha um conceito cósmico (que diz respeito ao que interessa a todos)
no qual a filosofia pode aparecer como a ciência da relação de todo o
conhecimento aos fins essenciais da razão (teleologia rationis humana).
Destes fins essenciais, podemos derivar dois objetos: “a natureza e liberdade e
abrange assim tanto a lei natural como também a lei moral”.
De fato, estes dois objetos de um conceito cósmico de filosofia são os
dois principais modelos indicados por Adorno na última parte de sua Dialética

104
KANT, Crítica da razão prática, Lisboa, Calouste Gulbenkian, A 839/B867
Negativa: a liberdade (o objeto do primeiro capítulo - Liberdade: para uma
metacrítica da razão prática) e a natureza articulada de maneira dialética com
seu oposto, a história (o objeto do segundo capítulo – Espírito do mundo e
história natural : Digressão sobre Hegel). Eles funcionarão para mostrar que
o modelo de uma dialética negativa, esta crítica imanente que permite ao
pensar sintetizar formalizações capazes de orientar a razão em suas aspirações
práticas, não nos leva nem ao recurso à um conceito transcendental de sujeito
que fundamentaria a possibilidade de uma determinação transcendental da
liberdade, nem ao recurso a um conceito de história sem descontinuidades que
acaba por reificar, como em uma segunda natureza, o que é da ordem de suas
produções. Uma dialética negativa nos leva, necessariamente, a uma
recuperação extremamente peculiar da metafísica capaz de realizar-se através
de uma crítica imanente ao materialismo. Daí porque o livro termina
exatamente com um capítulo intitulado: “Meditações sobre a metafísica”.
Neste sentido, Adorno não esconde seu jogo em uma carta endereçada a
Gerschom Scholem: “o que chamo de primado do objeto, neste debate em
toda imanência gnoseológica (...) parece-me ser, uma vez que nos livramos do
idealismo, o resultado de se fazer justiça ao materialismo. Os argumentos
pertinentes que creio ter produzido contra o idealismo apresentam-se (...)
como materialistas. Mas no coração deste materialismo, não há nada de
terminado, nenhuma visão do mundo, nada que seja fixo. É esta via em
direção ao materialismo totalmente diferente do dogma que me parece
caucionar esta afinidade com a metafísica, eu teria quase dito: com a teologia
(...) A intenção de salvar a metafísica é efetivamente central na Dialética
Negativa”105. Muito haverá ainda a se dizer a respeito desta transformação
improvável da dialética materialista em um materialismo impregnado de uma
metafísica cujos conceitos não procuram mais ter uma potência normativa.
Um materialismo para o qual convergem temas marxistas relativos ao primado
das relações sócio-econômicas e temas psicanalíticos a respeito da estrutura
dos impulsos e do corpo, ou seja, “a aproximação possível entre psicanálise e
análise do sistema econômico”106, tão desacreditada, por exemplo, por Axel
Honneth..
Se esta for então a ossatura do livro, então fica claro que o primeiro
passo para “salvar a metafísica”, uma metafísica a respeito da qual ainda nada
sabemos, uma salvação a respeito da qual desconhecemos o sentido, consiste
em criticar a ontologia, ou ao mesmo, esta versão de ontologia que parece, na
Alemanha, tão vinculada ao nome de Heidegger. Entender como Adorno
compreende a guinada ontológica heideggeriana aparece assim como
105
ADORNO, Carta a Scholem 14/03/1967 apud MÜLLER-DOOHM, Adorno, Paris, Gallimard, 2003
106
HONNETH, Critic of power, MIT Press, 1991, p. 101
movimento central para a determinação, por exclusão, do sentido de uma
experiência intelectual assentada sobre a recuperação da dialética. Podemos
dizer que, no interior da Dialética Negativa, Heidegger indica um caminho
“no limiar da dialética” que absorve largas parcelas da crítica frankfurtiana da
modernidade mas que visa, a partir desta crítica, recuperar a positividade da
ontologia. Esta é, ao menos, a leitura de Adorno. Já a Dialética Negativa
procurará realizar a intenção de “salvar a metafísica” exatamente de sua
essência afirmativa. Heidegger, por sua vez, poderia dizer à Adorno aquilo
que ele afirmou de Hegel, que a negatividade hegeliana é uma espécie de”dor
transcendental”, um “sofrimento da negatividade” que não compreende qual é
a verdadeira proveniência ontológica do negativo107. Ou seja, entre Adorno e
Heidegger joga-se uma partida complexa na qual se decide os modos de
relação entre ontologia e negação. Podemos mesmo dizer que um dos pontos
fundamentais deste jogo está na distinção que podemos fazer entre duas
figuras da negação: o “nada” heideggeriano como figura de manifestação do
Ser e a “não-identidade” adorniana. Na verdade, como veremos, isto nos
explica entre outras coisas porque neste contexto Adorno prefere o termo
“metafísica” antes de mais nada para escapar do termo “ontologia”,
extremamente marcado pelo heideggerianismo e pelas distinções estritas entre
ontológico e ôntico.
De qualquer forma, não é difícil perceber como a relação conflituosa de
Adorno a Heidegger sempre o acompanhou, embora não possamos falar em
sentido inverso, já que Heidegger, por sua vez, nunca comentou os ataques
reiterados adornianos. Esta relação não é apenas resultado de uma espécie de
operação de guerrilha intelectual contra um dos pilares daquilo que um dia
Adorno chamará de “ideologia alemã”. Ela é uma operação decisiva para a
própria formação do pensamento de Adorno, já que entre ele e Heidegger
passa uma relação tensa de distância e proximidade.

Muito perto, ...

O tamanho da operação fica claramente exposto se levarmos em conta


a constância da presença de Heidegger nos escritos de Adorno. De fato, tal
presença insere-se em uma preocupação concernente à fenomenologia que
acompanhou Adorno desde seus primeiros escritos. Já seu primeiro trabalho,
de 1924, dirigido por Hans Cornelius, intitulava-se A transcendência do coisal
e do noemático na filosofia de Husserl. Esta preocupação a respeito da
fenomenologia não é uma das menores razões que levará Adorno, por

107
Ver MALABOU, Négativité dialectique et douleur transcendentale in Archives de Philosophie 66, 2003
exemplo, a defender uma tese sobre Kierkeggard, cujo conceito de existência
havia sido recuperado pela filosofia heideggeriana. Sobre Husserl, Adorno
ainda escreverá, Para uma metacrítica da teoria do conhecimento, trabalho
que começou a esboçar quando era advanced-student de Oxford sob a direção
de Gilbert Ryle.
Já Heidegger aparece explicitamente no texto adorniano desde dois
conferência dadas no início da década de trinta: A atualidade da filosofia e
Sobre o conceito de história natural. Depois, ele dedica-se ao comentário
pontual de Heidegger em conferências como Parataxis (na qual ele confronta
sua interpretação de Hölderlin àquela fornecida por Heidegger). Mas o cerne
de seu comentário encontra-se em O jargão da autenticidade, de 1964, e neste
capítulo da Dialética Negativa.
A primeira questão que deve ser respondida a fim de esclarecer o motor
desta confrontação entre Adorno e Heidegger é: em que estas duas experiência
filosóficas convergem? Poderíamos aqui identificar, ao menos, três centrais.
Primeiro, tanto Adorno quanto Heidegger percebem que a razão moderna
enredou-se em um movimento de interversão que transforma os processos de
racionalização em dispositivos de dominação técnica da natureza. Ou seja, há
uma crítica da racionalidade instrumental orientado os diagnósticos históricos
tanto em Heidegger quanto em Adorno: “Pois pode muito bem ser que a
natureza escando sua Essência precisamente no lado em que se presta ao
controle técnico do homem”108, diz Heidegger. Isto leva também Heidegger a
uma crítica contra a “positividade” das ciências que faz do próprio Heidegger,
uma das vítimas preferidas do positivismo-lógico que Adorno tanto combate.
Segundo, tal crítica da racionalidade instrumental é também crítica à
filosofia moderna do sujeito como sua hipóstase de um conceito de sujeito
centrado na figura da consciência. Por fim, restará à filosofia entrar na procura
de uma linguagem capaz de pôr o que é da ordem daquilo que nega as
determinações fenomenais reificadas. Tanto em Adorno quanto em Heidegger
ela será encontrada principalmente no recurso filosófico à arte.
Se analisarmos estes três pontos com calma, veremos mais pontos em
comum. Sobre a crítica comum da racionalidade instrumental, sabemos que,
nos dois filósofos, ela se articula a uma crítica totalizante da reificação da
linguagem. Vimos, na aula passada, como, desde a Dialética do
Esclarecimento, a linguagem ordinária aparecia como espaço maior dos
processos de reificação e de alienação. Ela é, em Adorno, setor privilegiado da
crítica da racionalidade instrumental.

108
HEIDEGGER, Sobre o humanismo, p. 42
Há algo desta natureza em Heidegger. “Libertar a linguagem da
gramática para um contexto essencial mais originário está reservado ao pensar
e poetizar”109, dirá Heidegger. Podemos tomar esta afirmação como a
exposição de um certo programa filosófico muito característico do filósofo
alemão. Insistamos primeiramente nesta tarefa filosófica absolutamente
central de “libertar a linguagem da gramática”, de uma gramática submetida à
“interpretação técnica do pensamento” cujos primórdios remontariam à Platão
e Aristóteles. Nós poderíamos mesmo dizer que tal libertação se impõe como
tarefa porque, para Heidegger, os problemas centrais da metafísica são
fundamentalmente problemas de linguagem; ou, para ser mais incisivo, os
problemas centrais da metafísica são problemas gramaticais110. A linguagem,
com suas estruturas gramaticais de categorização do diverso da experiência,
não é um elemento neutro de mediação, não há sintaxe livre de decisões que
lhe são externas. Antes, a linguagem é sempre instrumento direcionado por
uma metafísica, no caso, pela metafísica do sujeito com seu modo de submeter
o pensar à lógica da representação. Isto vale tanto para a linguagem filosófica
quanto para a linguagem ordinária (que, para Heidegger, não é outra coisa que
uma metafísica naturalizada). A gramática filosófica não se contrapõe à
gramática da linguagem ordinária, mas é uma problematização desta. Isto nos
lembra dicotomias como sujeito/objeto, essência/aparência são decisões
metafísicas naturalizadas pela gramática. Um pouco como se Heidegger
adotasse a noção nietzscheana de “pressupostos metafísicos da linguagem” e
tirasse as últimas consequências da proposição central: “Temo que não nos
desvecilharemos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática”111.
No entanto, esta crítica à reificação da linguagem em Heidegger tem
uma série de peculiaridades que parecem impedir sua comparação com aquilo
que vimos sobre Adorno na aula passada. Afinal, o diagnóstico adorniano da
reificação da linguagem seria o resultado de uma constatação histórica
vinculada aos modos de desenvolvimento do capitalismo, enquanto que o
diagnóstico heideggeriano seria de ordem ontológica que se submete a
coordenadas amplas de crítica a uma metafísica do sujeito que se confunde
com a história da razão ocidental desde Platão. No entanto, devemos insistir
em um certo historicismo problemático próprio à crítica adorniana da
reificação da linguagem. Adorno é o primeiro a sustentar que a
desqualificação do sensível que aparece como resultado maior de uma

109
HEIDEGGER, Sobre o humanismo, p. 26 (“Die Befreiung der Sprache aus der Grammatik in ein
ursprünglicheres Wesensgefüge ist dem Denken und Dichten aufbehalten”)
110
Sobre esta questão ver, principalmente, RORTY, Richard; Wittgenstein, Heidegger e a reificação da
linguagem in Escritos sobre Heidegger e outros.
111
NIETZSCHE, A razão na filosofia, par. 5 in Crepúsculo dos ídolos,
linguagem reificada e submetida à racionalidade instrumental é um fenômeno
que se confunde com a razão ocidental: “De Parmênides a Russell, a divisa
continua: Unidade. O que continuamos a exigir é a destruição dos deuses e das
qualidades”112. Heidegger não teria dificuldade em assinar embaixo de uma
frase como esta.
Conhecemos as páginas da Dialética do Esclarecimento consagradas a
este gênero de consideração. Axel Honneth já tinha insistido em uma certa
“inversão” da perspectiva marxista clássica em Adorno e Horkheimer já que,
na Dialética do Esclarecimento: “a troca de mercadorias é simplesmente a
forma histórica desenvolvida da razão instrumental”113. Uma razão
instrumental cujas fontes devem ser procuradas (e aqui Adorno não poderia
ser mais freudiano) no processo humano de auto-preservação diante dos
perigos da natureza e de humanização dos impulsos. Ou seja, as coordenadas
históricas da crítica da economia política vão se submeter a uma filosofia da
história de larga escala. De qualquer forma, isto nos coloca diante de uma
teoria complexa da história na qual operam, ao mesmo tempo, exigências de
continuidade e de descontinuidade. A partir da perspectiva da história das
técnicas, a história é um contínuo e a astúcia de Ulisses já anuncia as
exigências de internalização do princípio de dominação da natureza interna e
de submissão da natureza externa que guiará a racionalidade instrumental do
sujeito moderno. Mas Ulisses é apenas a pré-história do sujeito moderno, ou
seja, há descontinuidade, até porque, antes de fatos históricos como a reforma
protestante (com sua ética do trabalho seu princípio de subjetividade capaz de
produzir algo como a noção de indivíduo), o desenvolvimento do capitalismo
e o advento do mundo desencantado da ciência moderna, as condições de
conformação dos processos de racionalização social a uma racionalidade
orientada para fins (para usar um termo de Max Weber) ainda não estão dadas.
Neste sentido, uma alternativa possível seria organizar o problema da
continuidade e da descontinuidade a partir de uma dialética de
posição/pressuposição. Ao pôr determinações que são apenas pressupostas na
pré-modernidade, a modernidade permite a passagem das determinações em
seu contrário.
Mas não parece incorreto insistir em algumas coordenadas
propriamente ontológicas desta filosofia adorniana da história. Tal como na
filosofia hegeliana da história e na critica da técnica em Heidegger, o
diagnóstico adorniano da história – devido a seu caráter geral - pressupõe um
conjunto de posições, que ganham peso de considerações ontológicas sobre os
modos de apresentação da essência. Isto pode nos indicar como o problema da
112
ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 182
113
HONNETH, 1991, p. 38
reificação da linguagem não se esgota em uma consideração histórica regional
(o que nos explicaria porque a crítica adorniana deve passar da crítica
“restrita” da economia política à crítica “geral” da racionalidade instrumental),
mas talvez valha levar a sério a afirmação de Bubner segundo a qual a teoria
crítica exige : « uma teoria da história que aspira a uma estatuto
ontológico »114.
De qualquer forma, nos casos tanto de Adorno quanto de Heidegger, a
crítica da racionalidade instrumental deve nos levar necessariamente a uma
crítica à concepção moderna de sujeito, até porque o sujeito moderno é
fundamento da redução do mundo a um estado de objetos dispostos à
representação. Tanto Adorno quanto Heidegger denunciam a estrutura
projetiva da apreensão categorial de objetos. Já vimos como tal temática está
em operação em Adorno. No caso de Heidegger, o livro fundamental para esta
discussão talvez seja Kant e o problema da metafísica, embora o mesmo
esquema do argumento é aplicado àqueles que seriam os três momentos
maiores da ilusão moderna da subjetividade: Descartes, Kant e Hegel.
Muito haverá a se dizer a respeito deste problema sobre a crítica
heideggeriana à categoria de sujeito. Por enquanto, vale a pena insistir apenas
em alguns de seus traços maiores para que posteriormente vejamos os
aspectos que se aproximam e se distanciam da posição adoriana. Em uma
passagem célebre de seus cursos sobre Nietzsche, Heidegger insiste que a
estrutura da reflexão que nasce com o princípio moderno de subjetividade é
fundamentalmente posicional e projetiva. Refletir é por diante de si no interior
da representação, como se colocássemos algo diante de um “olho da mente”.
Seguindo os rastros do texto cartesiano, ele nos lembra que, em várias
passagens, Descartes usa cogitare e percipere como termos correlatos. Um
uso necessariamente prenhe de conseqüências. De fato, Heidegger deve pensar
aqui, primeiro, na maneira peculiar com que Descartes utiliza o termo latim
percipere. Ele raramente é utilizado para designar processos sensoriais, como
visão e audição (nestes casos, Descartes prefere utilizar o termo sentire).
Percipere designa, normalmente, a apreensão puramente mental do intelecto,
já que, em Descartes, é a inspeção intelectual que apreende os objetos, e não
as sensações. Assim, por exemplo, na meditação terceira, ao falar daquilo que
aparece ao pensamento de maneira clara e distinta, Descartes afirma: “todas as
vezes que volto para as coisas que penso conceber mui claramente sou de tal
modo persuadido delas ...”115. Mas, de fato, “penso conceber” é a tradução não
muito fiel de percipere116. Da mesma forma, Descartes, mais a frente falará de

114
BUBNER, 1989
115
DESCARTES, Meditações, p. 108
116
Conforme o texto em latin: “Quoties vero ad ipsas res, que valde clare percipere arbitror ...”
: “tudo aquilo que concebo clara e distintamente”117 pelo pensamento. Mas,
novamente, o termo “conceber” é uma tradução aproximada de percipere, já
que o texto latim diz: “illa omnia quae clare percipio”. De onde se vê como
percipere serve, nestes casos, para descrever o próprio ato mental do
pensamento.
Heidegger é sensível a este uso peculiar de percipere por Descartes pois
a reconstrução etimológica do termo nos mostra que ele significa: ‘tomar
posse de algo, apoderar-se (bemächtigen) de uma coisa, e aqui no sentido de
dispor-para-si (Sich-zu-stellen) [lembremos que Sicherstellen é confiscar] na
maneira de um dispor-diante-de-si (Vor-sich-stellen), de um re-presentar (Vor-
stellen)”118. Desta forma, a compreensão de cogitare por Vor-stellen (re-
presentar/por diante de si) estaria mais próxima do verdadeiro sentido deste
fundamento que Descarte traz como terra firma da filosofia moderna.
Tais aproximações permitem a Heidegger interpretar o cogitare
cartesiano como uma representação que compreende o ente como aquilo que é
essencialmente representável, como aquilo que pode ser essencialmente
disposto no espaço da representação. É assim que devemos compreender a
frase-chave: “O cogitare é um dispor-para-si do representável”119. Kant usará
um esquema semelhante para dar conta do processo de cosntituição dos
objetos da experiência a partir dos modos de apreensão categorial em Kant.
Assim, cogitare não seria apenas um processo geral de representação, mas
seria um ato de determinação da essência do todo ente como aquilo que acede
a representação. Isto indicaria como todo ato de pensar é um ato de dominar
através da submissão da coisa à representação. O diagnóstico de Heidegger
seria claro: “algo só é para o homem na medida em que é estabelecido e
assegurado como aquilo que ele pode por si mesmo, na ambiência (Umkreis)
de seu dispor, a todo instante e sem equívoco ou dúvida, reinar como
mestre”120. Pois a compreensão do pensamento como capacidade de articular
representações, como competência representacional impõe um modo
específico de manifestação dos entes ao pensamento. O ente será, a partir de
agora, aquilo que aparece, para um sujeito cognoscente, como objeto
adequado de uma representação categorizada em coordenadas espaço-
temporais extremamente precisas. Neste sentido: “o homem se coloca si
mesmo como a cena (Szene) sobre a qual o ente deve a partir de agora se
apresentar (vor-stellen, präsetieren)”121. Daí porque Heidegger pode afirmar

117
ibidem, p. 116
118
HEIDEGGER, Nietzsche II
119
idem
120
idem
121
HEIDEGGER, Holzwege, p. 119
que o cogito traz uma nova maneira da essência da verdade. Uma essência que
nos obriga a dizer: “nos parece que, em todo lugar, o homem só encontra si
mesmo. Heisenberg teve plenamente razão de dizer que, para o homem de
hoje, o real (Wirkliche) não pode aparecer de outra forma”122. Transformar o
homem em sub-jectum exclusivo ao qual a integralidade dos entes deve
direcionar-se sob a forma de ob-jectum significa, necessariamente, imprimir
uma constituição do mundo como aquilo que se deixa aparecer ao sujeito.
Neste mundo, o homem só pode encontrar aquilo que se submete ao seu
olhar.Adorno teria usado estruturas semelhantes para transformar a noção de
freudiana “narcisismo” em um termo descritivo da posição própria ao sujeito
do conhecimento.
Por fim, há entre os dois um modo peculiar de afirmar o recurso
filosófico à arte como dispositivo de re-orientação do pensar para além dos
impasses de uma racionalidade instrumental com seu fundamento pensado
como sujeito. Em Heidegger, isto significa transformar a reflexão filosófica
sobre as artes em setor privilegiado de uma ontologia que procura descrever os
modos de manifestação do Ser. A arte vira assim campo de um discurso não-
posicional de objetos, já que ela é forma de um pensar capaz de se direcionar à
(Ursprung). Uma origem na qual a linguagem ainda não estava vinculada à
uma direção metafísica, mas estava próxima de um “pensamento originário”
(ursprüngliche Denken), pensamento que não é pensamento de um sujeito,
mas pensamento que se vê como pensamento advindo do próprio Ser. Daí
porque Heidegger pode afirmar que: “Caso o homem deva encontrar o
caminho da proximidade do Ser, terá de aprender a existir no inefável
(Namenlose) (...) Antes de falar, o homem terá que se deixar apelar pelo Ser
mesmo com o risco de, sob um tal apelo, ter pouco ou ter raramente algo a
dizer”123. Esta linguagem na qual o homem pode ouvir o apelo do Ser é um
pensamento onde logos e poiesis ainda não estão dissociados (tal como nos
pré-socráticos). Daí porque, em Heidegger, a superação da metafísica deve
abrir espaço para uma escritura filosófica cujo verdadeiro paradigma é o
recurso filosófico ao poema. O poema aparece como destinação final de um
pensamento filosófico que procura, antes de mais nada, um novo começo. Não
foram poucos aqueles que tentaram ver, no recurso adorniano às artes,
principalmente devido aos usos da mimesis enquanto modo de tematização de
relações não-instrumental com a natureza (uma relação á natureza que,
segundo o próprio Adorno, sempre é uma maneira de temtaizar problemas
vinculados à ontologia) uma figura modificada deste retorno à “reminiscência
do ser como origem”.
122
HEIDEGGER, Die frage nach der Technik, p. 35
123
HEDEIGGER, Sobre o humanismo, p. 34
... Muito longe

Este quadro de proximidades talvez possa servir para começarmos a


entender esta relação tão atribulada e central entre Adorno e Heidegger. È
tendo ele em mente que podemos abordar nosso texto e suas críticas.
Ao analisar o problema da ontologia, Adorno parte de um estratégia
visando dar conta da natureza própria à “necessidade ontológica”, ou seja,
àquilo que impõe a ontologia como necessidade para o pensar. Tal
necessidade estaria vinculada a exigências de um saber do absoluto (Wissen
des Absoluten), vontade de apreender o todo sem que limites sejam impostos
ao conhecimento:

A influência da ontologia não poderia ser compreendida se ela não


correspondesse a uma necessidade urgente, index de uma perda
(Versäumten), a aspiração de que o veredicto kantiano a respeito do
saber do absoluto não fique por isto mesmo124.

Esta necessidade estava assentada sobre a crença de que a razão poderia


impor sua estrutura à profusão do ente/do existente. No entanto, é possível
transformar em uma ontologia a própria experiência da impossibilidade de tal
tentativa de imposição. À sua forma, ao menos aos olhos de Adorno, é isto
que Heidegger tentaria fazer.
Heidegger reconheceria uma situação histórica na qual os processos de
reprodução material da vida transformaram a sociedade em uma interconexão
integral de funções para as quais a própria noção de substância perdeu sua
realidade social. Daí porque mesmo em teoria do conhecimento a noção de
substância perdeu há muito seu lugar. Neste sentido, a necessidade ontológico
apareceria como sintoma de defesa contra tal situação através de um recurso a
relações substanciais que, no entanto, não podem mais se afirmar em toda sua
positividade. A ontologia fundamental do ser apareceria assim como uma
certa nostalgia de um absoluto que não pode fundamentar determinação
fenomenal alguma. É a partir de tal problemática que Adorno procura
encaminhar a interpretação do conceito heideggeriano de ser e sua autonomia
em relação a todo e qualquer processo posicional reflexivo próprio aos modos
de apreensão de um sujeito. Em um parágrafo intitulado, não por acaso,
“Enfraquecimento (Entmächtigung) do sujeito”, ele afirmará:

124
ADORNO, ND, p. 70
A reanimação da ontologia a partir de uma intenção objetivista apoiou-
se no que menos convinha a seu conceito: no fato de que o sujeito
transformou-se, em larga medida, em ideologia que dissimula a
estrutura funcional objetiva da sociedade e o sofrimento dos sujeitos sob
ela [temática maior da época: o sujeito como construção ideológica que
visa mascarar, sob a temática da espontaneidade da ação, o fato de que
ele se transformou em mero suporte de relações sociais]. Nesta medida,
e isto não data de hoje, o não-Eu está drasticamente submetido ao Eu. A
filosofia de Heidegger omite isto mas não deixa de registrá-lo: em suas
mãos o primado histórico transforma-se, pura e simplesmente em
primado (Vorrang) ontológico do ser em relação a todo ôntico, real125.

Quer dizer, a necessidade ontológica alimentou-se da redução social do


sujeito a mero suporte de determinações estruturais que organizam a vida
social no capitalismo contemporâneo. A filosofia heideggeriana não tematiza
esta situação histórica, mas ela não a ignora simplesmente. Ao contrário, ela
ontologia tal situação ao insistir que a solução para o pensar seria recuperar
um primado do ser cortado de toda determinação causal ôntica. Este é, na
verdade, um dos pontos que Adorno sempre insistirá em suas leituras sobre
Heidegger (isto desde A idéia de uma história natural): a relação entre
ontologia e história é negligenciada. Heidegger reconhece a historicidade
como dimensão fundamental do ser; mas sua historicidade é, ao menos
segundo Adorno, uma espécie de história sem acontecimentos, isto no sentido
de uma história incapaz de produzir acontecimentos capazes de influenciar e
determinar a configuração do que se põe como dispondo de uma dignidade
ontológica. Algo diferente de Adorno que, por exemplo, quer pensar o que
significa, por exemplo, recorrer à metafísica “após Auschwitz”).
Por outro lado, reagindo à consciência do caráter universal do processo
de interversão da racionalidade em dominação da natureza, Heidegger não vê
outra solução que insistir na submissão do sujeito ao ser: “Não é o homem o
essencial”, dirá Heidegger, “mas o ser”. No entanto, a sujetividade que se nega
(verleugnet) intervém-se em profissão de fé objetivista. Este objetivismo tende
à determinação do ser como tautologia não mediatizada por conceitos nem
designada imediatamente a partir do modelo da consciência sensível. “Mas o
ser – o que é o ser?”, pergunta-se Heidegger, “Isso é isso mesmo (Es ist Es
selbst)”126. “A pura repetição do nome”, diz Adorno, “toma o lugar de toda
instância crítica concernente o ser”. Ou seja, Adorno age como quem segue
Hegel na sua crítica ao ser como imediaticidade indeterminada (unbestimmte
125
ADORNO, ND, p. 74
126
HEIDEGGER, Uber den Humanismus, p. 19
Unmittelbare) que sacrifica a relação ao conceito discursivo e à toda
individuação. A seu ver, a hipóstase de uma noção de ser marcada pela ruptura
em relação a todo ôntico nos leva, necessariamente, a uma crítica abstrata das
ciências como domínio integral de uma razão instrumental. Crítica que
perpetua o antagonismo entre critérios científicos e domínio absoluto de uma
doutrina do ser. Fato que, vale sempre a pena lembrar, não poderia ser
compartilhado por alguém que, como Adorno, era, além de filósofo,
especialista em empiricidades como a sociologia, a teoria da comunicação de
massa e a psicologia social (fato que, por si só, demonstra como Adorno
precisa admitir uma prática científica para além da submissão instrumental das
ciências). Pois uma auto-crítica da razão é sensível ao que “poderia ainda ser
essencial nas ciências” animadas por uma teoria crítica.
No entanto, a verdadeira crítica que Adorno endereça a esta
indeterminação do ser heideggeriano consiste em afirmar que esta é a
conseqüência natural de um pressuposto dependente da metafísica que o
próprio Heidegger procura ultrapassar: o pressuposto da distinção entre
conceito e material:

Assombrado pela fraqueza de Scheler, Heidegger não quer


comprometer a prima philosophia pela contingência do material, pela
instabilidade de tudo o que se apresenta como eterno. Mas ele não
renuncia , por sua vez, à concretude da palavra existência (Existenz). A
distinção entre conceito e material seria o pecado original, distinção que
se perpetua no pathos do ser127.

Adorno insiste assim que o conceito de ser em Heidegger é simplesmente uma


aporia, uma certa teologia negativa, já que os atributos do ser seriam
semelhantes aos atributos tradicionais do divino, mas a filosofia não chega a
afirmar sua existência. Não deixa de ser irônico que “teologia negativa” foi,
em muitos casos, exatamente a crítica endereçada à dialética negativa de
Adorno.
De fato, o que Adorno tem em vista é a crítica a todo conceito pré-
reflexivo de ser, que acaba por fazer a filosofia determinar, como seu objeto
privilegiado, nada mais do que um vazio total, um X inexprimível que, por se
substrair a toda predicação, advém um ens realissimum. No entanto, este vazio
é apreendido, em Heidegger, como algo de positivo, já que nenhuma
contradição adentra o conceito de ser. Contra isto, Adorno insiste que
devemos continuar operando no interior de uma dialética entre sujeito e

127
ADORNO, ND, pp. 82-83
objeto, uma dialética que Heidegger procura cortar por baixo ao tentar situar o
pensar em um solo de imanência anterior a toda distinção entre sujeito e
objeto acessível a alguma forma de intuição categorial.
A este respeito, não deixa de ser sintomático uma certa falta de
generosidade intelectual da parte de Adorno, já que há sim uma certa
determinação do ser em Heidegger. Ela apenas não pode ser realizada através
da linguagem projetiva da representação. Seria necessário introduzir, neste
ponto, considerações mais demoradas a respeito dos modos heideggerianos de
recurso filosófico ao poema, este poema que é fundamentalmente
territorialidade do ser. Não que as críticas de Adorno não possam ser
sustentadas, mas elas passam por cima
Curso Adorno
Aula 6

No curso de hoje, continuaremos a leitura da primeira parte da Dialética Negativa, esta


dedicada à leitura adorniana de Heidegger. Na aula passada, vimos como Adorno partia de
uma estratégia visando dar conta da natureza própria àquilo que ele chamava de
“necessidade ontológica”, ou seja, àquilo que impõe a ontologia como necessidade para o
pensar. Tal termo tinha sido primeiramente empregado por Novalis em “O cristianismo e a
Europa” e teria sido empregado por Luckács no sentido de uma “falta transcendental de
refúgio”. Adorno, tendo este pano de fundo, pode falar de tal necessidade ontológico como
o que estaria vinculada a exigências de um saber do absoluto (Wissen des Absoluten),
vontade de apreender o todo sem que limites sejam impostos ao conhecimento:

A influência da ontologia não poderia ser compreendida se ela não correspondesse a


uma necessidade urgente, index de uma perda (Versäumten), a aspiração de que o
veredicto kantiano a respeito do saber do absoluto não fique por isto mesmo128.

Notemos que esta maneira de começar a confrontação com Heidegger é


extremamente sintomática. Adorno não teme em mobilizar uma categoria psicológica
(necessidade) a fim de dar conta de uma operação de crítica filosófica. Podemos mesmo
dizer que largas passagens do Jargão da autenticidade foram escritas a partir desta ótica.
Mesmo nosso capítulo termina com um retorno a tal perspectiva, principalmente através
dos parágrafos “Falsa necessidade” e “Fraqueza e Suporte”, onde Adorno chega a falar em
“enfraquecimento do Eu” (Schwäche des Ich) a fim de dar conta da fonte de tal necessidade
ontológica. Isto nos deixa com uma questão maior: como devemos compreender tal
mobilização de categorias psicológicas no interior da crítica filosófica?
O primeiro passo consiste em lembrar que, para Adorno, categorias psicológicas
são, na verdade, estruturas privilegiadas de um certo materialismo capaz de operar no ponto
de passagem entre individualidades e determinação social. Para Adorno, categorias
psicológicas são categorias sociais, isto no sentido de categorias capazes de expor o modo
de articulação entre estruturas sociais e seus “suportes”, seus “sujeitos”. Neste sentido,
começar a reflexão sobre a filosofia heideggeriana através da questão sobre qual a
necessidade que suporta sua guinada ontológica significa colocar em marcha uma crítica
materialista que visa mostrar como a produção de uma certa filosofia é, à sua maneira, um
sintoma social. Se a filosofia heideggeriana é, ao menos segundo Adorno, o sistema mais
bem acabado de uma certa “ideologia alemã”, então devemos lembrar que a critica da
ideologia está vinculada à análise das disposições que uma determinada ideologia pretende
produzir ou potencializar nos sujeitos, e não mais à refutação de teses a partir de uma
análise sistêmica da coerência dos enunciados ou da identificação de contradições
performativas. Isto levará Adorno, por exemplo, a afirmar que as experiências geradoras da
metafísica só podem ser compreendidas à condição de serem articuladas ao “sofrimento
real” (realen Leiden) que as provocou129. Por outro lado, ele tentará mostrar como age, no
interior desta recuperação heideggeriana da ontologia, uma espécie de “identificação com o

128
ADORNO, ND, p. 70
129
ADORNO, Jargon derEigentlichkeit, p. 438
agressor”, a consciência que sente a possibilidade de seu desaparecimento devido ao
impacto sócio-histórico da reificação acaba por assumir a necessidade de sua própria
dissolução através da defesa do primado de um ser que seria outra figura do pensamento da
identidade, identidade pensada, utilizando uma chave de leitura colocada em circulação por
Derrida, como metafísica do ser enquanto “presença”.
Dito isto, podemos entender melhor o que está em jogo no interior da estratégia
adorniana. Lembremos como ele insistia que esta necessidade ontológica como vontade de
realizar o sentimento oceânico de apreender o todo estava assentada na crença de que a
razão poderia impor sua estrutura à profusão do ente/do existente. No entanto, era possível
transformar em uma ontologia a própria experiência da impossibilidade de tal tentativa de
imposição. À sua forma, ao menos aos olhos de Adorno, é isto que Heidegger tentaria
fazer.
Heidegger reconheceria uma situação histórica na qual os processos de reprodução
material da vida transformaram a sociedade em uma interconexão integral de funções para
as quais a própria noção de substância perdeu sua realidade social. Daí porque mesmo em
teoria do conhecimento a noção de substância perdeu há muito seu lugar. Neste sentido, a
necessidade ontológica apareceria como sintoma de defesa contra tal situação através de um
recurso a relações substanciais que, no entanto, não podem mais se afirmar em toda sua
positividade. É a partir de tal problemática que Adorno procura encaminhar a interpretação
do conceito heideggeriano de ser e sua autonomia em relação a todo e qualquer processo
posicional reflexivo próprio aos modos de apreensão de um sujeito. Em um parágrafo
intitulado, não por acaso, “Enfraquecimento (Entmächtigung) do sujeito”, ele afirmará:

A reanimação da ontologia a partir de uma intenção objetivista apoiou-se no que


menos convinha a seu conceito: no fato de que o sujeito transformou-se, em larga
medida, em ideologia que dissimula a estrutura funcional objetiva da sociedade e o
sofrimento dos sujeitos sob ela [temática maior da época: o sujeito como construção
ideológica que visa mascarar, sob a temática da espontaneidade da ação, o fato de
que ele se transformou em mero suporte de relações sociais]. Nesta medida, e isto
não data de hoje, o não-Eu está drasticamente submetido ao Eu. A filosofia de
Heidegger omite isto mas não deixa de registrá-lo: em suas mãos o primado
histórico transforma-se, pura e simplesmente em primado (Vorrang) ontológico do
ser em relação a todo ôntico, real130.

Quer dizer, a necessidade ontológica alimentou-se da redução social do sujeito a


mero suporte de determinações estruturais que organizam a vida social no capitalismo
contemporâneo. A filosofia heideggeriana não tematiza esta situação histórica, mas ela não
a ignora simplesmente. Há, como bem lembra Adorno, uma “protestação contra a
reificação” animando o pensamento heideggeriano. No entanto, tal protesto tende a insistir
que a solução para o pensar seria recuperar um primado do ser cortado de toda
determinação causal ôntica: “O próprio do ser nada tem de caráter ôntico”131, dirá
Heidegger, que nunca deixava de insistir que pensar o ser propriamente só poderia ser feito
às custas de abandonar o ser como fundamento do ente. Um ente que aparece como modo
de submissão à técnica. Neste sentido, Adorno pode afirmar que aquilo que Hegel e Marx

130
ADORNO, ND, p. 74
131
HEIDEGGER, Tempo e ser in Os pensadores, p. 460
condenaram em sua juventude como alienação e reificação, é interpretado por Heidegger de
maneira ontológica e não-histórica como modo de ser do Dasein. Tal separação do
ontológico em relação ao ôntico, base para a crítica de Heidegger a metafísica (já que
“pensar sem o ente” significa necessariamente pensar sem levar em conta a metafísica)
implica em uma série de conseqüências bastantes exploradas por Adorno.
Uma delas seria de que a relação entre ontologia e história é negligenciada. De fato,
Heidegger reconhece a historicidade como dimensão fundamental do ser; mas sua
historicidade é, ao menos segundo Adorno, uma espécie de história sem acontecimentos,
isto no sentido de uma história incapaz de produzir acontecimentos capazes de influenciar e
determinar a configuração do que se põe como dispondo de uma dignidade ontológica.
Neste sentido, devemos levar em conta a afirmação de Heidegger: “O desdobramento da
profusão de transformações do ser assemelha-se, à primeira vista, a uma história do ser.
Mas o ser não possui história como uma cidade ou um povo tem sua história (...) O
elemento historial da história do ser determina-se a partir do caráter de destino de um
destinar, e não a partir de um acontecer entendido de maneira indeterminada”132. Quer
dizer, este elemento historial da história do ser não é afetada pela factualidade do
acontecimento; ao contrário, ele é uma relação de disponibilidade e abertura a um destino
diante do qual o próprio caráter temporal do tempo em sua sucessão é suspenso. É verdade
que Heidegger definirá o acontecimento (Ereignis) como o lugar que determina tanto o ser
quanto o tempo. No entanto, devemos nos perguntar qual é o regime de acontecer próprio à
posição da presença do ser. Este acontecimento é, de uma certa forma, a anulação da
temporalidade do tempo, algo como uma ek-stase de um tempo que perdeu seu caráter de
“atividade negativa ideal”, para usar um termo hegeliano. Como veremos mais a frente, esta
articulação entre ontologia e história é pensada diferentemente por Adorno, principalmente
no último capítulo de nosso livro.
Por outro lado, reagindo à consciência do caráter universal do processo de
interversão da racionalidade em dominação da natureza, Heidegger não vê outra solução
que insistir na submissão do sujeito ao ser: “Não é o homem o essencial”, dirá Heidegger,
“mas o ser”. No entanto, ao menos segundo Adorno, a subjetividade que se nega
(verleugnet) intervém-se em profissão de fé objetivista. Este objetivismo tende à
determinação do ser como tautologia não mediatizada por conceitos nem designada
imediatamente a partir do modelo da consciência sensível. “Mas o ser – o que é o ser?”,
pergunta-se Heidegger, “Isso é isso mesmo (Es ist Es selbst)”133. “A pura repetição do
nome”, diz Adorno, “toma o lugar de toda instância crítica concernente o ser”. Ou seja,
Adorno age como quem segue Hegel na sua crítica ao ser como imediaticidade
indeterminada (unbestimmte Unmittelbare) que sacrifica a relação ao conceito discursivo e
à toda individuação.
No entanto, a verdadeira crítica que Adorno endereça à esta indeterminação do ser e
à autonomia do ontológico em Heidegger consiste em afirmar que esta é a conseqüência
natural de um pressuposto dependente da metafísica que o próprio Heidegger procura
ultrapassar, a saber, o pressuposto da distinção entre conceito e material:

Assombrado pela fraqueza de Scheler, Heidegger não quer comprometer a prima


philosophia pela contingência do material, pela instabilidade de tudo o que se

132
idem, p. 459
133
HEIDEGGER, Uber den Humanismus, p. 19
apresenta como eterno. Mas ele não renuncia , por sua vez, à concretude da palavra
existência (Existenz). A distinção entre conceito e material seria o pecado original,
distinção que se perpetua no pathos do ser134.

Contra tal distinção, Adorno afirmará:

A vida encontra-se polarizada entre o totalmente abstrato e o totalmente concreto,


enquanto ela consiste apenas na tensão entre os dois; ambos os pólos são reificados
e mesmo o que resta do sujeito espontâneo, a pura apercepção, cessa de ser sujeito
através da dissolução de todo Eu vivente, como o pensamento kantiano sobre o Eu,
e advém, devido à sua logicidade autônoma, estático135.

Quer dizer, trata-se novamente de determinar o pensar no ponto de tensão entre abstração e
determinação empírica, neste ponto de determinação dialética entre conceito e material. A
ruptura desta tensão dialética implica em formas distintas de reificação, seja através da
coisificação do Eu através daquilo que Adorno chamara de “ideologia da concreção”, seja
através de uma operação de purificação em relação a toda empiricidade que Adorno não
tem dificuldades em identificar, de maneiras distintas, tanto em Kant quanto em Heidegger,
até porque, ao menos segundo Adorno, a fuga da ontologia diante do curso do mundo seria
também uma fuga diante do conteúdo empírico da própria subjetividade.
Esta afirmação sobre a distinção entre conceito e material como o pecado original
que se perpetua no pathos heideggeriano do ser pode parecer estranha, já que o próprio
Heidegger afirmará: “Matéria e forma, enquanto determinações do ente, permanecem no
interior da essência do produto. Este nome nomeia assim o que é fabricado expressamente
para ser utilizado e usado. Matéria e forma não são em absoluto determinações originárias
da coisidade da simples coisa”136. Ou seja, Heidegger recusaria tacitamente as colocações
de Adorno. No entanto, Adorno poderia continuar sua crítica afirmando que não é possível
impor uma ruptura entre ontológico e ôntico sem perpetuar distinções entre conceito e
matéria. Desta forma, ele pode insistir assim que o conceito de ser em Heidegger é
simplesmente uma aporia, uma certa teologia negativa, já que as temáticas ligadas ao ser
(destino, proximidade, missão, ek-staticidade) seriam semelhantes aos atributos tradicionais
do divino, mesmo que a filosofia não chega a afirmar sua existência. Assim, em Jargão da
Autenticidade, ele procurou denunciar o que seria um “culto heideggeriano do Ser”
resultante desta hipóstase de atributos próprios a uma teologia.
De fato, o que Adorno tem em vista é a crítica a todo conceito pré-reflexivo de ser,
que acaba por fazer a filosofia determinar, como seu objeto privilegiado, nada mais do que
um vazio total, um X inexprimível que, por se subtrair a toda predicação, advém um ens
realissimum. O fato de que o ser se fecha a toda determinação do pensar mina o apelo a
pensá-lo. Como dirá Adorno;

Se tentarmos operar a distinção heideggeriana entre o ser e seu conceito pan-lógico,


o que nos resta após a subtração tanto do ente quanto das categorias da abstração é

134
ADORNO, ND, pp. 82-83
135
ADORNO, ND, p. 98
136
HEIDEGGER, Chemins quin e ménent à nulle part, p. 27
um desconhecido que tem, em relação ao conceito kantiano da coisa em si
transcendente, o pathos de sua invocação137.

No entanto, este vazio é apreendido, em Heidegger, como algo de positivo, já que nenhuma
contradição adentra o conceito de ser. Tudo o que podemos dizer sobre o ser recusa a
identidade entre o conceito e o referente. Da mesma maneira, tudo o que podemos dizer
sobre o tempo recusa a identidade com o agora. No entanto, Heidegger transforma o
conteúdo desta recusa em uma identidade, puro ser em si mesmo desprovido de alteridade.
Daí porque Adorno pode afirmar: “Heidegger supõe uma harmonia pré-estabelecida entre
conteúdo essencial (wesentlhiche Gehalt) e murmúrio familiar (heimeligem)”138. Adorno
chega mesmo a afirmar que a Heidegger procura afastar toda faticidade da reflexão sobre o
ser porque pensar a passagem à faticidade só é possível descartando o princípio de
identidade e expondo o que não é próprio à essência do conceito.
Contra isto, Adorno insiste que devemos continuar operando no interior de uma
dialética entre sujeito e objeto, uma dialética que Heidegger procura cortar por baixo ao
tentar situar o pensar do ser em um solo de imanência anterior a toda distinção entre sujeito
e objeto, entre interno e externo, entre essência e aparência e acessível a alguma forma de
intuição categorial. Como não poderia deixar de ser para um pensamento dialético, Adorno
insiste que não é possível superar as dicotomias da modernidade através da recuperação de
um plano de imanência pré-reflexivo, já que se trata, com isto, de retornar a um pensamento
da identidade, mesmo que se trate agora de um pensamento não-estruturado da identidade.
Como havia lembrado na aula passada, não deixa de ser sintomático uma certa falta
de generosidade intelectual da parte de Adorno, já que há sim uma certa determinação do
ser em Heidegger. Ela apenas não pode ser realizada através da linguagem projetiva da
representação. Seria necessário introduzir, neste ponto, considerações mais demoradas a
respeito dos modos heideggerianos de recurso filosófico ao poema, este poema que é
fundamentalmente territorialidade do ser que fornece o contexto de significação de cada
obra, poema que é a restituição da presença comum das coisas, vinculo à terra (Erde) como
podemos ver, em por exemplo, A origem da obra de arte.
Na verdade, veríamos neste ponto que a crítica adorniana se aproximar de alguns
traços maiores desta maneira, tão própria a Derrida, de criticar a metafísica do ser como
presença. Uma presença que pode se dar como “presença da ausência”, para utilizar uma
expressão heideggeriana, mas que é ausência apenas para um modo de pensar submetido à
apreensão instrumental do tempo e do ser. Pois a crítica é novamente a uma certa forma de
recorrer à identidade através da temática do ser como presença.

A crítica imanente da ontologia

No segundo capítulo da primeira parte, Adorno propõe passar da crítica da necessidade


ontológica, ou seja, desta crítica que demonstrou como a necessidade que funda a
recuperação da ontologia tem suas raízes no diagnóstico social de redução da razão à sua
condição instrumental, àquilo que ele chama de crítica imanente da ontologia. Isto implica
em afirmar que não se trata apenas de colocar em marcha uma crítica da ontologia através
de considerações sócio-psicológicas, como vimos no capítulo “Necessidade ontológica”.

137
ADORNO, ND, p. 105
138
ADORNO, Jargon, p. 76
Trata-se de comparar a ontologia com seu próprio conceito e, com isto, mostrar, através de
uma negação determinada, o que deve ser guardado tendo em vista a tematização posterior
da necessidade de recuperação de uma experiência metafísica.
O primeiro passo desta crítica imanente consiste em um questionamento sobre a
função do verbo “ser” no interior da proposição predicativa:

O culto do ser vive graças a uma ideologia muito antiga dos idola fori: esta que
prospera à sombra da palavra ser e das formas que lhe são derivadas. “É” estabelece
entre o sujeito gramatical e o predicado a relação de julgamento de existência e
sugere assim algo de ôntico. Mas ao mesmo tempo, tomado apenas em si mesmo,
ele significa o fato geral e categorial da síntese sem representar si mesmo algo de
ôntico. É por isto que ele se deixa registrar sem muitas dificuldades do lado do
ontológico. Da logicidade da cópula, Heidegger deriva a pureza ontológica que vai
de encontro à sua alergia à faticidade; mas do julgamento de existência , ele deriva a
rememoração (Erinnerung) do ôntico que permite hipostasiar o trabalho categorial
da síntese como um dado139.

Adorno deve estar pensando, principalmente, nestas proposições heideggerianas do


tipo: “O Ser é” que não apenas sobrepujam, mas determinam, o sentido de qualquer
tentativa de determinação atributiva. Em um tom claramente hegeliano, Adorno lembra que
a predicação não é adjunção de sujeito, predicado e cópula tomados como entidades
autônomas e separadas, mas passagem do sujeito no predicado e passagem do predicado no
sujeito que impede a cópula de ser hipostasiada em um “ser” essencial e que faz da frase
um processo de determinação da identidade. A predicação não é mera determinação
atributiva de termos isolados e tendo seus significados dados previamente. Daí porque o “é”
só adquire sentido no interior da proposição. Mas, segundo Adorno, Heidegger passa por
cima da distinção entre a cópula como trabalho categorial da síntese, forma abstrata da
mediação, e os usos particulares do termo “é” em julgamentos determinados de existência.
Assim, o julgamento de existência transforma-se apenas em uma maneira de aparecer do
universal, em uma manifestação de uma operação que passa ao largo dos termos nela
envolvidos. Ou ainda, em uma operação que reduz os termos envolvidos em mero caso para
a aplicação do trabalho categorial da síntese. No entanto, trata-se de não reduzir os dois
momentos criando, com isto, a ilusão de um ontologicamente puro.
De fato, Adorno chega a derivar desta “confusão categorial” o apelo heideggeriano
à transcendência do ser. Todo ente, em sua determinação, reenvia a algo para além de si
mesmo, da mesma forma que toda determinação particular é também determinação
categorial. No entanto, este para além são suas determinações estruturais com outros entes,
suas mediações ou, para falar como Adorno, suas imbricações (Verflachtenheit) produzidas
por negações determinadas, e não uma transcendência do ser. Daí porque ele insistirá na
crítica à noção heideggeriana de transcendência do ser. Ela faz com que Heidegger pare no
“limite (Grenze) da apreensão dialética da não-identidade na identidade”, impedindo o
reconhecimento da contradição no interior mesmo do conceito de ser.

139
ADORNO, ND. p. 107
Heidegger segue a dialética na medida em que nem o sujeito nem o objeto são para
ele algo de imediato e de último, mais ele sai da dialética na medida em que procura
apreender algo de primeiro, de imediato para além do sujeito e do objeto140.

Este imediato adquire, em Heidegger, a função de substrato assimilado ás coisas.


Daí porque Adorno poderá dizer: “A transcendência de Heidegger é imanência
absolutizada, obstinada contra seu próprio caráter de imanência”141. Na verdade, Adorno
procura colocar em prática a estratégia de mostrar como, no fundo, Heidegger tenta
tematizar, através da noção de ser, em especial através do Dasein, o que deveria ser, para
um pensamento dialético, as determinações próprias à categoria de sujeito. Este
reconhecimento permitiria, de uma certa forma, o encaminhamento de uma solução
dialética para a hipóstase da diferença ontológica entre ser e ente:

O Dasein é uma variante alemã e envergonhada do sujeito. Não escapa a Heidegger


que o sujeito é tanto princípio da mediação quanto não-mediatizado, que enquanto
constituinte, o constituído pressupõe a faticidade. O fato é dialético: é ele que
Heidegger traduz, custe o que custar, na lógica da não-contradição (...) A
transcendência, tanto ao pensar quanto ao fato, a filosofia heideggeriana tira do fato
de que as estruturas dialéticas são hipostasiadas e expressas não-dialeticamente,
como se pudéssemos simplesmente nomeá-las142.

Estas colocações talvez demonstrem claramente qual é o núcleo da critica adorniana


a Heidegger. Trata-se de afirmar que apenas a categoria de sujeito é capaz de articular
reflexividade e ponto de excesso às estruturas da reflexão sem com isto cair na hipóstase de
um dos dois momentos. Apenas ela pode realizar aquilo que o recurso a uma ontologia
fundamental do ser procura realizar: fornecer uma crítica à reificação sem, com isto,
obrigar-se a retornar a um originário que só pode oferecer como uma outra figura da
ideologia da identidade.
De qualquer forma, Adorno reconhece que no recurso heideggeriano ao ser há uma
experiência autêntica concernente ao impulso filosófico para exprimir o que não se submete
à expressão da linguagem da comunicação pública, linguagem inflacionada do ponto de
vista metafísico. Adorno compartilha com Heidegger a crítica ao positivismo no interior da
linguagem filosófica e sua procura em constituir uma sintaxe de pura transparência e
transmissão. Adorno também compartilha com Heidegger a necessidade do recurso
filosófico à arte como momento de reconstituição da própria linguagem filosófica em suas
expectativas cognitivas. E é neste ponto, mais exatamente no parágrafo “expressão do
inexprimível” que Adorno insere algumas colocações sobre a proximidade entre filosofia e
música a respeito da tarefa de formalizar a expressão do inexprimível. Adorno critica
Heidegger por reificar tal inexprimível através da estaticidade da palavra “ser”. Ao
contrário, o signo do inexprimível, e isto a música teria demonstrado, é o efêmero e o
inapreensível que adere ao desenvolvimento da forma, e não a presença bruta que procura
ser apreendida pelo “isto” designativo. Mas afinal, o que Adorno tem em vista quando ele
fala desta proximidade entre filosofia e música?

140
ADORNO, ND, p. 112
141
idem, p. 114
142
idem, p. 115
Algumas considerações sobre a música

Adorno, logo em seguida, afirma que verdadeira a força da língua se mostra no fato
de que, na reflexão, expressão e coisa se separam, expondo a não-identidade entre
expressão e aquilo que ela significa. Como se Adorno preparasse o terreno para o advento
de uma certa estética da inadequação que ele procuraria contrapor à territorialidade do ser
na obra de arte, segundo Heidegger.
Aqui, vale a pena introduzir algumas considerações sobre a filosofia adorniana da
música. Elas facilitarão a compreensão do que Adorno tem em vista ao falar que a música
fornece à filosofia o esquema da expressão do inexprimível. Há dois pontos a serem
levantados aqui.
Primeiro, nesta noção da música como expressão do inexprimível, Adorno tem em
mente uma discussão vinculada à estética do romantismo alemão. Herder, os irmãos
Schlegel, Tieck, Schelling, E.T.A Hoffman : todos eles tomaram a música como objeto
privilegiado de reflexão filosófica. Na verdade, tal interesse tem uma razão clara: havia
uma coesão em torno da idéia da música como veículo principal para a exposição da
metafísica do sublime. Compreendendo o sublime a partir da noção kantiana de “conceito
indeterminado da razão”143; ou seja, uma Idéia da razão que não é adequada a
particularidade de nenhuma apresentação sensível, mas que pode ser reavivada pelo espírito
devido exatamente a esta inadequação, o romantismo alemão viu, na ausência de
determinação sensível das representações próprias à música instrumental, o melhor veículo
para a exposição de tal inadequação da apresentação sensível.
A música instrumental, dirá por exemplo August Schlegel, exprime aquilo que a
linguagem prosaica vê como inefável, desprovido de determinação conceitual precisa. Mas
esta indeterminação é exatamente uma manifestação do sublime enquanto idéia desprovida
de representação concreta. O aspecto abstrato da música instrumental em relação à
linguagem prosaica seria a garantia de que os sentimentos representados musicalmente não
aderem mais às aparências empíricas do mundo. Isto o permitirá afirmar que a música é a
mais filosófica das artes por purgar as “paixões de toda escória material”144 nos abrindo
para a contemplação da essência metafísica, do em-si da aparência. Uma idéia partilhada
por Schopenhauer, que colocava a música no topo do seu sistema das artes. Posição que se
justifica se lembrarmos que, para Schopenhauer, a música não formula : “esta alegria ou
aquela dor, este terror, esta jubilação, mas a alegria, a dor, o terror, a calma mesma: o
essencial sem nenhum acréscimo ou motivo preciso”145. Para além do problema
suplementar, já apontado desde Hanslick, da inadequação da música para representar
sentimentos, mesmo que sejam “sentimentos gerais” (quem dirá que um certo tema de
Schubert representa “amor”, e não “recolhimento”, ou “nostalgia” etc.?), tais posições
próprias ao romantismo são interessantes por verem, na música, um modo privilegiado de
formalização daquilo que não se deixa expressar diretamente, que não se deixa
individualizar-se na linguagem representativa. A linguagem musical diz aquilo que a
linguagem prosaica não saberia dizer sem produzir determinações particulares e
representações determinadas. .

143
KANT, Crítica da faculdade de julgar, 244
144
SCHLEGEL, Die Kustlehe, p. 215
145
SCHOPENHAUER, Sämtliche Werke, vol II, p. 258
Nós podemos encontrar ecos desta maneira de compreender a música como
dispositivo de formalização que não se reduz à lógica de determinação de significado
própria à linguagem prosaica na filosofia do século XX, em especial em Adorno. Basta
lembrarmos de sua comparação: “A linguagem significante gostaria de dizer o absoluto de
maneira mediada e este absoluto não cessa de lhe escapar, deixando para trás cada intenção
particular, devido a sua finitude. A música, por sua vez, alcança o absoluto de maneira
imediata mas, no mesmo instante, ele advém obscuro, tal como o olho que se cega devido a
uma luz excessiva e não pode ver o que é perfeitamente visível” 146. Ou seja, uma certa
partilha entre Adorno e a metafísica romântica do sublime acaba por aparecer através da
música. Poderíamos ir ainda um pouco mais longe afirmando que algo da temática
romântica da religião da arte continuou presente na teoria musical de Adorno: “A
linguagem musical é de um tipo totalmente diferente da linguagem significante. Nisto
reside seu aspecto religioso. O que é dito é, no fenômeno musical, ao mesmo tempo,
preciso e escondido. Toda música a por Idéia a forma do Nome divino. Prece
desmistificada, desprendida da magia do efeito, a música representa a tentativa humana de
enunciar o Nome, ao invés de comunicar significações”147.
Mas esta partilha de questões não impede Adorno de compreender o fracasso da
metafísica do sublime : “”Um último traço aproxima a música e a linguagem : seu fracasso
[ em reconciliar a determinação sensível com a apresentação da Coisa], um fracasso que a
condena a errar sem fim na via da mediação, isto a fim de aproximar-se do impossível”148.
Ele nos lembra que a música é penetrada por intenções, mas elas não se deixam expor em
um estilo representativo que nos remeteria diretamente a uma estética do sentimento. Até
porque, nós já vimos como a estética musical insistiu na inadequação da música à
representação determinada devido ao seu caráter não-figurativo. Adorno continua nesta via
ao afirmar que : “É específico à música que seu caráter enigmático seja enfatizado pela sua
distância em relação à determinação visual ou conceitual do mundo dos objetos”149. Mas o
que significaria uma intenção que não pode se colocar em uma representação ? Uma
intencionalidade refratária à determinação?
Neste ponto, há um aspecto fundamental a ser acrescentado. Ele diz respeito à noção
de temporalidade própria ao fato musical. Não deixa de ser interessante que tanto Adorno
quanto Heidegger procuram pensar o tempo a partir de uma crítica à noção vulgar de tempo
como justaposição de momentos inertes e independentes. No entanto, no caso de Adorno
isto deve abrir espaço para a reflexão do tempo como movimento dinâmico de auto-
anulação da identidade. Esta negatividade própria à potência elementar do tempo nos
reenvia necessariamente à Hegel e à sua noção do tempo como “atividade negativa ideal”
(ideelle negative Tätigkeit) (Hegel 18, p. 156), ou seja, como potência que anula a
justaposição indiferente do espacial ao instaurar a continuidade de instantes que, por serem
necessariamente pensados em continuidade, negam-se a si mesmos enquanto identidades
autônomas. Esta negatividade, Adorno a encontra na estrutura de expectativa (Erwartung) e
rememoração (Erinnerung) própria ao desenvolvimento musical de uma forma que seja
capaz de se dissolver no momento em que se constrói, como vimos em Berg.

146
ADORNO, Fragmentos sobre as relações entre música e linguagem in Quais una fantasia, p. 6
147
idem, p. 4
148
idem, p. 6
149
ADORNO, idem...p. 138
Curso Adorno
Aula 7

Na aula de hoje, terminaremos os dois capítulos da Dialética Negativa dedicados à


confrontação com a filosofia heideggeriana e, com isto, finalizaremos o segundo módulo do
nosso curso. Neste sentido, este é um momento privilegiado para fazermos o balanço desta
confrontação que atravessou praticamente toda a experiência intelectual adorniana.
Nós vimos, na primeira aula deste módulo, o que significava começar a Dialética
Negativa através de uma longa crítica ao projeto heideggeriano de constituição de uma
ontologia fundamental do ser. No interior da economia do texto, o sentido deste começo
podia ser apreendido se esboçássemos a ossatura do livro. De fato, este começa através de
uma crítica ferrenha à ontologia fundamental do ser heideggeriana, uma ontologia no
“limiar da dialética” segundo palavras do próprio Adorno. No capítulo seguinte, Adorno
apresenta os conceitos e categorias que permitiriam à experiência filosófica da
contemporaneidade atravessar este limiar da dialética realizando o programa de exposição
de um conceito positivo de razão. Tal exposição permite Adorno retornar ao campo da
crítica através da procura por um modelo no qual tal conceito positivo se realize.
Vimos como nesta procura por um modelo para a Dialética Negativa, Adorno
desenvolvia um movimento peculiar de crítica ao conceito kantiano de liberdade e ao
conceito hegeliano de história. Tais criticas funcionarão para mostrar que o modelo de uma
dialética negativa, esta crítica imanente que permite ao pensar sintetizar formalizações
capazes de orientar a razão em suas aspirações práticas, não nos leva nem ao recurso à um
conceito transcendental de sujeito que fundamentaria a possibilidade de uma determinação
transcendental da liberdade, nem ao recurso a um conceito de história sem
descontinuidades que acaba por reificar, como em uma segunda natureza, o que é da ordem
de suas produções. Uma dialética negativa nos leva, necessariamente, a uma recuperação
extremamente peculiar da metafísica capaz de realizar-se através de uma crítica imanente
ao materialismo. Daí porque o livro termina exatamente com um capítulo intitulado:
“Meditações sobre a metafísica”. Uma meditação que nos levará, como veremos mais a
frente a: “perseguir a experiência metafísica no interior de um estrato que originalmente foi
absolutamente estranho a ela. Na realidade,ela só sobrevive atualmente de maneira
negativa”150.
Se esta era então a ossatura do livro, então ficava claro que o primeiro passo para
“salvar a metafísica”, uma metafísica a respeito da qual ainda nada sabemos, uma salvação
a respeito da qual desconhecemos o sentido, consiste em criticar a ontologia, ou ao mesmo,
esta versão de ontologia que parece, na Alemanha, tão vinculada ao nome de Heidegger.
Entender como Adorno compreende a guinada ontológica heideggeriana aparecia assim
como movimento central para a determinação, por exclusão, do sentido de uma experiência
intelectual assentada sobre a recuperação da dialética.
Mas para entender melhor a necessidade de confrontar a ontologia fundamental do
ser heideggeriana com esta recuperação peculiar da experiência metafísica por Adorno
começamos traçando três pontos que claramente aproximavam os dois filósofos. Primeiro,

150
ADORNO, Metaphysics, p. 143
tanto Adorno quanto Heidegger percebem que a razão moderna enredou-se em um
movimento de interversão que transforma os processos de racionalização em dispositivos
de dominação técnica da natureza. Ou seja, há uma crítica da racionalidade instrumental
orientado os diagnósticos históricos tanto em Heidegger quanto em Adorno: “Pois pode
muito bem ser que a natureza escando sua Essência precisamente no lado em que se presta
ao controle técnico do homem”151, diz Heidegger. Isto leva também Heidegger a uma
crítica contra a “positividade” das ciências que faz do próprio Heidegger, uma das vítimas
preferidas do positivismo-lógico que Adorno tanto combate. Nos dois filósofos, esta crítica
da razão instrumental irá se desdobrar em crítica totalizante à reificação da linguagem
ordinária.
Segundo, tal crítica da racionalidade instrumental é também crítica à filosofia
moderna do sujeito como sua hipóstase de um conceito de sujeito centrado na figura da
consciência. Nos casos tanto de Adorno quanto de Heidegger, a crítica da racionalidade
instrumental deve nos levar necessariamente a uma crítica à concepção moderna de sujeito
porque o sujeito moderno é compreendido, em ambos os casos, como fundamento da
redução do mundo a um estado de objetos dispostos em representação. Tanto Adorno
quanto Heidegger denunciam a estrutura projetiva da apreensão categorial de objetos.
Por fim, há entre os dois um modo peculiar de afirmar o recurso filosófico à arte
como dispositivo de re-orientação do pensar para além dos impasses de uma racionalidade
instrumental com seu fundamento pensado como sujeito. Em Heidegger, isto significa
transformar a reflexão filosófica sobre as artes em setor privilegiado de uma ontologia que
procura descrever os modos de manifestação do Ser. A arte vira assim campo de um
discurso não-posicional de objetos, já que ela é forma de um pensar capaz de se direcionar
à (Ursprung). Uma origem na qual a linguagem ainda não estava vinculada à uma direção
metafísica, mas estava próxima de um “pensar originário” (ursprüngliche Denken),
pensamento que não é pensamento de um sujeito, mas pensamento que se vê como
pensamento advindo do próprio Ser. Daí porque Heidegger pode afirmar que: “Caso o
homem deva encontrar o caminho da proximidade do Ser, terá de aprender a existir no
inefável (Namenlose) (...) Antes de falar, o homem terá que se deixar apelar pelo Ser
mesmo com o risco de, sob um tal apelo, ter pouco ou ter raramente algo a dizer”152. Esta
linguagem na qual o homem pode ouvir o apelo do Ser é um pensamento onde logos e
poiesis ainda não estão dissociados (tal como nos pré-socráticos). Daí porque, em
Heidegger, a superação da metafísica deve abrir espaço para uma escritura filosófica cujo
verdadeiro paradigma é o recurso filosófico ao poema. Não foram poucos aqueles que
tentaram ver, no recurso adorniano às artes, principalmente devido aos usos da mimesis
enquanto modo de tematização de relações não-instrumental com a natureza (uma relação
á natureza que, segundo o próprio Adorno, sempre é uma maneira de tematizar problemas
vinculados à ontologia) uma figura modificada deste retorno à “reminiscência do ser como
origem”.
Mas, se as proximidades são perigosas, a distância também é real. Vimos, a partir da
quinta aula, como tal distância era pensada no interior do texto adorniano. Adorno partia de
uma estratégia visando dar conta da natureza própria àquilo que ele chamava de
“necessidade ontológica”, ou seja, àquilo que impõe a ontologia como necessidade para o
pensar. Tal necessidade ontológica estaria vinculada a exigências de um saber do absoluto

151
HEIDEGGER, Sobre o humanismo, p. 42
152
HEDEIGGER, Sobre o humanismo, p. 34
(Wissen des Absoluten), vontade de apreender o todo sem que limites sejam impostos ao
conhecimento.
Insisti que esta maneira de começar a confrontação com Heidegger é extremamente
sintomática. Adorno não teme em mobilizar uma categoria psicológica (necessidade) a fim
de dar conta de uma operação de crítica filosófica. Em certos momentos de nosso texto, ele
chega a falar em “enfraquecimento do Eu” (Schwäche des Ich) a fim de dar conta da fonte
de tal necessidade ontológica. Mas o que estaria por trás desta mobilização de categorias
psicológicas no interior da crítica filosófica? Lembremos que, para Adorno, categorias
psicológicas são categorias sociais, isto no sentido de categorias capazes de expor o modo
de articulação entre estruturas sociais e seus “suportes”, seus “sujeitos”. Neste sentido,
começar a reflexão sobre a filosofia heideggeriana através da questão sobre qual a
necessidade que suporta sua guinada ontológica significa colocar em marcha uma crítica
materialista que visa mostrar como a produção de uma certa filosofia é, à sua maneira, um
sintoma social. Se a filosofia heideggeriana é, ao menos segundo Adorno, o sistema mais
bem acabado de uma certa “ideologia alemã”, então devemos lembrar que a critica da
ideologia está vinculada à análise das disposições que uma determinada ideologia pretende
produzir ou potencializar nos sujeitos. Isto levará Adorno, por exemplo, a afirmar que as
experiências geradoras da metafísica só podem ser compreendidas à condição de serem
articuladas ao “sofrimento real” (realen Leiden) que as provocou153. Por outro lado, ele
tentará mostrar como age, no interior desta recuperação heideggeriana da ontologia, uma
espécie de “identificação com o agressor”, a consciência que sente a possibilidade de seu
desaparecimento devido ao impacto sócio-histórico da reificação acaba por assumir a
necessidade de sua própria dissolução através da defesa do primado de um ser que seria
outra figura do pensamento da identidade, identidade pensada, utilizando uma chave de
leitura colocada em circulação por Derrida, como metafísica do ser enquanto “presença”.
Dito isto, podemos entender melhor o que está em jogo no interior da estratégia
adorniana. Lembremos como ele insistia que tal necessidade ontológica como vontade de
realizar o sentimento oceânico de apreender o todo estava assentada na crença de que a
razão poderia impor sua estrutura à profusão do ente. No entanto, era possível transformar
em uma ontologia a própria experiência da impossibilidade de tal tentativa de imposição. À
sua forma, ao menos aos olhos de Adorno, é isto que Heidegger tentaria fazer. . É a partir
de tal problemática que Adorno procura encaminhar a interpretação do conceito
heideggeriano de ser e sua autonomia em relação a todo e qualquer processo posicional
reflexivo próprio aos modos de apreensão de um sujeito. Modos de apreensão vinculados à
determinação espaço-temporal dos entes.
Há, como bem lembra Adorno, uma “protestação contra a reificação” animando o
pensamento heideggeriano e aproximando-o de certas temáticas frankfurtianas. No entanto,
tal protesto tende a insistir que a solução para o pensar seria recuperar um primado do ser
cortado de toda determinação causal ôntica: “O próprio do ser nada tem de caráter
ôntico”154, dirá Heidegger, que nunca deixava de insistir que, por isto, pensar o ser
propriamente só poderia ser feito às custas de abandonar o ser como fundamento do ente.
Tal separação do ontológico em relação ao ôntico, base para a crítica de Heidegger a
metafísica (já que “pensar sem o ente” significa necessariamente pensar sem levar em conta
a metafísica) implica em uma série de conseqüências que servirão de eixo central para a

153
ADORNO, Jargon derEigentlichkeit, p. 438
154
HEIDEGGER, Tempo e ser in Os pensadores, p. 460
crítica adorniana a Heidegger. Pois o que está em jogo, como veremos, é uma certa
tentativa de recuperação da dignidade ontológica do sensível que servirá de fundamento
para a constituição das experiências de não-identidade.
Tendo isto em vista, Adorno pode insistir assim que o conceito de ser em Heidegger
é simplesmente uma aporia, uma certa teologia negativa, já que as temáticas ligadas ao ser
(destino, proximidade, missão, ek-staticidade) seriam semelhantes aos atributos tradicionais
do divino, mesmo que a filosofia não chega a afirmar sua existência. De fato, o que Adorno
tem em vista é a crítica a todo conceito pré-reflexivo de ser, que acaba por fazer a filosofia
determinar, como seu objeto privilegiado, nada mais do que um vazio total, um X
inexprimível que, por se subtrair a toda predicação, advém um ens realissimum. O fato de
que o ser se fecha a toda determinação do pensar mina o apelo a pensá-lo. Como dirá
Adorno.
No entanto, este vazio é apreendido, em Heidegger, como algo de positivo, já que
nenhuma contradição adentra o conceito de ser. Tudo o que podemos dizer sobre o ser
recusa a identidade entre o conceito e o referente. Da mesma maneira, tudo o que podemos
dizer sobre o tempo recusa a identidade com o agora. No entanto, Heidegger transforma o
conteúdo desta recusa em uma identidade, puro ser em si mesmo desprovido de alteridade.
Daí porque Adorno pode afirmar: “Heidegger supõe uma harmonia pré-estabelecida entre
conteúdo essencial (wesentlhiche Gehalt) e murmúrio familiar (heimligem)”155. Adorno
chega mesmo a afirmar que Heidegger procura afastar toda faticidade da reflexão sobre o
ser porque pensar a passagem à faticidade só é possível descartando o princípio de
identidade e expondo o que não é próprio à essência do conceito. Daí porque ele insistirá na
crítica à noção heideggeriana de transcendência do ser. È tendo em vista o problema da
transcendência do ser que Adorno dirá:

Heidegger segue a dialética na medida em que nem o sujeito nem o objeto são para
ele algo de imediato e de último, mais ele sai da dialética na medida em que procura
apreender algo de primeiro, de imediato para além do sujeito e do objeto156.

Este imediato adquire, em Heidegger, a função de substrato assimilado ás coisas.


Daí porque Adorno poderá dizer: “A transcendência de Heidegger é imanência
absolutizada, obstinada contra seu próprio caráter de imanência”157. Ele vai ainda mais
longe ao lembrar a relação fundamental, em Heidegger, entre transcendência e
autenticidade enquanto afirmação da positividade de uma essência capaz de guiar a ação e o
pensar. Pois a noção de autenticidade articulada à transcendência tenta conjugar dois
desideratas incompatíveis: a pureza em relação a todo conteúdo empírico e a imediatez
daquilo que escapa à mediação conceitual. Há uma incompatibilidade entre o puro e o
intuído que impede, assim, o ser heideggeriano de ser ente ou conceito, jogando o ser,
necessariamente, em uma condição de indeterminado que é figura aporética. Uma
indeterminação que seria resultado da repressão da dialética necessária entre o ser e o ente,
já que as duas categorias são pensadas sem mediação (e, de uma certa forma, a primeira
anula a segunda).

155
ADORNO, Jargon, p. 76
156
ADORNO, ND, p. 112
157
idem, p. 114
Contra esta noção hipostasiada de transcendência, Adorno procura pensar uma
categoria filosófica capaz de articular transcendência e materialismo. Esta categoria é o
resultado de transformações profundas no interior desta categoria maior do pensamento
moderno e frontalmente descartada por Heidegger: o sujeito. Para Adorno, o que foi re-
introduzido pela doutrina da transcendência do ser em relação a todo ente foi justamente o
primado ontológico da subjetividade. Ou seja, para Adorno, Heidegger continua operando
com esquemas próprios a uma filosofia do sujeito, mas sem tematizá-los de maneira
adequada. Daí porque Adorno acaba por fazer aquilo que, um dia, Derrida identificou em
Jacques Lacan: a tentativa reconstruir a categoria de sujeito a partir da dinâmica própria ao
Dasein. Em um parágrafo intitulado “Dasein em si mesmo ontológico”, Adorno é claro a
respeito desta estratégia:

O conceito de subjetividade não cintila menos que o conceito de ser e, por isto, pode
se harmonizar com ele. Sua ambigüidade permite assimilar o Dasein a um modo de
ser (Seinweise) do ser sem passar pela análise da diferença ontológica. O Dasein é
chamado ôntico em virtude de sua individuação espaço-temporal, ontológico como
Logos (...) O indivíduo provido de consciência e cuja consciência não existiria sem
ele, permanece espaço-temporal, faticidade, ente; não ser. No ser encontra-se o
sujeito, pois o ser é conceito é não é imediatamente dado; mas, no sujeito, há
consciência individual e, por conseqüência, algo ôntico158.

Ou seja, o sujeito é exatamente aquilo que desativa a diferença entre os domínios da


ontologia e do ôntico. Para tanto, Adorno opera uma distinção entre indivíduo e sujeito que,
a princípio, poderia parecer alguma forma de reatualização das distinções entre eu empírico
e eu transcendental, onde o sujeito como fenômeno intuído no espaço e no tempo seria
idêntico ao eu empírico e o ser seria uma certa perspectiva conceitual que equivaleria, de
uma maneira ou de outra, à subjetividade como determinação transcendental. No entanto,
Adorno insiste que o sujeito é exatamente aquilo que impede distinções estritas entre
faticidade e ontologia. Ainda não sabemos como a categoria de sujeito pode impedir tal
aporia, como ela pode, ao mesmo tempo, transcender e ser materialmente determinada. Para
tanto, precisaremos esperar o final do próximo capítulo e, principalmente, o capítulo
dedicado à crítica da razão prática kantiana. Lá será enfim questão, de maneira sistemática,
das articulações próprias à filosofia adorniana do sujeito.

O que significa ontologizar o ôntico?

No entanto, esta aula será aproveitada para discutir um outro aspecto da crítica
adorniana a Heidegger. Tal aspecto é tão decisivo que seria, ao menos segundo Adorno, a
verdadeira matriz de todo o pensamento heideggeriano. Esta matriz diz respeito à reflexão
sobre os modos de relação entre ser e ente, já que, mesmo marcados pela diferença
ontológica, ser e ente estabelecem modos de relação. A este respeito, Adorno irá comparar
Heidegger e Hegel a fim de mostrar que certos impasses hegelianos a respeito do
reconhecimento da diferença advinda da irredutibilidade da experiência sensível
continuariam presentes na ontologia fundamental do ser em Heidegger. Pois todos os dois
teriam estratégias relativamente convergentes de “ontologização do ôntico”:

158
ADORNO, ND, p. 131
O triunfo de Heidegger em relação a todas as outras ontologias menos astutas
consiste na ontologização do ôntico (Ontologisierung des Ontischen). Que não haja
ser sem ente é reduzido à forma segundo a qual o ser do ente pertence à essência do
ser159.

Podemos ter idéia do que Adorno tem em mente se levarmos em conta algumas
elaborações apresentadas por Heidegger em um pequeno texto central: O que é a
metafísica? Nele, Heidegger parte fazendo uma crítica à racionalidade instrumental do
discurso científico que reduz a referência ao mundo ao ente, pensado aqui como referência
construído pela projeção dos esquemas categorias do sujeito: “O homem – um ente entre
outros – ´faz ciência´. Neste ´fazer´ ocorre nada menos que a irrupção de um ente, chamado
homem, na totalidade do ente, mas de tal maneira que, na e através desta irrupção, se
descobre o ente naquilo que é em seu modo de ser”160. Quer dizer, o modo de ser do ente,
no interior do discurso da racionalidade instrumental da ciência, é referir-se ao homem, ao
sujeito moderno idêntico a si mesmo, enquanto fundamento para a constituição de todo e
qualquer objeto da experiência. O ente é assim simples projeção do homem. Aquilo que não
se submete a tais protocolos de constituição do objeto da experiência, que não se submete
às coordenadas espaço-temporais que constituem o campo subjetivo de experiências não
pode ser “algo”; é apenas “nada”. No entanto, este nada é apenas um modo de ser do que
não se submete à forma de objeto de uma razão instrumental. Quando Heidegger afirma
que ele é a “plena negação da totalidade do ente”161, devemos entender, com isto, que há
algo que se manifesta apenas como negação, não deste ou daquele ente, mas negação da
própria forma de determinação própria ao ente em um regime projetivo de vinculação ao
sujeito.
Dito isto, Heidegger pode afirmar que o modo privilegiado de manifestação disto
que aparece enquanto nada é a angústia: “A angústia é sempre angústia diante de ..., mas
não angústia diante disto ou daquilo. A angústia diante de ... é sempre angústia por ..., mas
não por isto ou por aquilo. O caráter de indeterminação daquilo diante de e por que nos
angustiamos, contudo não é apenas uma simples falta de determinação, mas a essencial
impossibilidade de determinação”162. Com isto, Heidegger vincula-se a uma temática
tipicamente hegeliana de compreensão da angústia como situação de fragilização das
imagens do mundo, como disposição intencional desprovida de objetos, isto a fim de
afirmar que, na angústia, o ente em sua totalidade se dissolve diante da manifestação de um
nada cuja essência consiste em conduzir o Dasein à posição de ente: “Somente à base da
originária revelação do nada pode o Dasein do homem chegar ao ente e nele entrar”163. Um
Dasein que, desta forma, está sempre além do ente, está sempre em uma transcendência.
No entanto, e aqui começa aquilo que Adorno chama de “ontologização do ôntico”,
Heidegger afirma ao mesmo tempo que: “O nada não é um conceito oposto ao ente [como
poderia parecer até agora], mas pertence originariamente à essência mesma (do ser). No ser
do ente acontece o nadificar do nada”164. Segundo Heidegger, na base da tradição

159
ADORNO, ND, p. 122
160
HEIDEGGER, Que é a metafísica? In Os pensadores, p. 234
161
idem, p. 236
162
idem, p. 237
163
idem, p. 239
164
idem, p. 239
metafísica ocidental estaria a pressuposição de que o nada é apenas o não-ente [ou, ainda, o
não-ser em sentido trivial]. Mas devemos nos perguntar, então, em que condições o nada
deixa de ser um conceito oposto ao ente para advir a manifestação mesma da essência do
ser do ente? Lembremos ainda que Heidegger continua afirmando que “o ser não se deixa
representar e produzir objetivamente à semelhança do ente”, mesmo que insista que: “o ser
nunca se manifesta sem o ente, jamais o ente é sem o ser”165. Esta contradição aparente se
resolve se nos perguntarmos sobre o modo de relação que permite ao ser manifestar-se
como essência do ente. Uma resposta esquemática consiste em dizer que o ser “passa’ ao
ente quando o ente se anula, quando ele advém nada, quando ele perde suas características
individualizantes resultantes da estrutura projetiva categorial própria ao sujeito da
experiência. Poderíamos mesmo dizer, que o ser do ente é o ente sem imagem, sem
determinação qualitativa.
Para Adorno, esta é uma forma astuta de ontologizar o ôntico através de uma
negação simples do segundo termo pelo primeiro. Pois, se podemos dizer que o ser “passa”
ao ente, devemos completar lembrando que nesta passagem não há uma interversão que
permitira negar o ser através do ente. Há apenas uma negação simples do ente pelo ser. Daí
porque Adorno pode afirmar que não há, neste caso, propriamente uma dialética entre ser e
ente, mas os dois termos são pensados sem mediação recíproca, sendo que o primeiro termo
tem primazia sobre o segundo. Pois o sentido do ente é dado em sua integralidade pelo. Já o
ser, por sua vez, não tem seu sentido modificado pela sua relação ao ente.
É tendo isto em vista que podemos compreender esta operação heideggeriana de
afirmar que o nada é mais originário que a negação. Em aulas passadas, foi-se afirmado
que, entre Adorno e Heidegger, joga-se uma partida complexa na qual se decidem os modos
de relação entre ontologia e negação. Podemos mesmo dizer que um dos pontos
fundamentais deste jogo está na distinção que podemos fazer entre duas figuras da negação:
o “nada” heideggeriano como figura de manifestação do Ser e a “não-identidade”
adorniana. Esta partida fica mais clara se levarmos em conta afirmações-chaves como:

Representa o “não”, a negatividade e com isto a negação, a determinação suprema a


que se subordina o nada como uma espécie particular de negado? “Existe” o nada
apenas porque existe o “não”, isto é, a negação? Ou não acontece o contrário?
Existe a negação e o “não” apenas porque “existe” o nada?166

A negação é aqui compreendida como atividade do entendimento, uma atividade


secundária, já que dependente da determinação da realidade de algo que será
posteriormente negado. Como dirá Sartre, marcado profundamente aqui pelo
encaminhamento heideggeriano: “Seria vão negar que a negação apareça sobre o fundo
primitivo de uma relação do homem ao mundo; o mundo não descobre seus não-seres a
alguém que primeiramente não os pôs como possibilidade”167. Ou seja, a negação é, no
fundo, pensada como privação, como ausência de atributos ou objetos. Neste sentido, ela
não pode ter um ser que lhe seja próprio. No entanto, há uma relação do ser ao nada que
não seria apenas posição do imediatamente indeterminado, como teria pensado Hegel, mas
porque o ser só se manifesta na transcendência do Dasein suspenso dentro do nada. De uma

165
idem, p. 246
166
idem, p. 235
167
SARTRE, L´être et le néant, p. 41
certa forma, isto significa mostrar como vincular o ser ao nada equivale a negar qualquer
vínculo essencial entre ser e negação, até porque, o nada é negativo apenas para um certo
regime de disponibilização dos entes. É isto que leva Adorno a afirmar que a negatividade
em Heidegger não é suficientemente negativa. Ela não reconhece uma dignidade ontológica
à negação.
A estratégia de Adorno fica mais clara quando ele convoca Hegel como uma
antecessor deste dispositivo de ontologização do ôntico. Em Hegel, como o não-idêntico só
pode ser pensado como conceito, como o limite de um conceito que pode absorver seu
próprio limite ao transformá-lo em negação interna, o ôntico advém necessariamente
momento da reflexão ontológica. Neste ponto, Adorno apresenta uma colocação que
ganhará importância no capítulo precedente. Trata-se de afirmar que o problema da Ciência
da lógica consiste em começar por uma reflexão sobre o ser, ao invés de começar por uma
reflexão sobre o algo (Etwas), e não é por outra razão que o capítulo central da Dialética
Negativa (Dialética Negativa: conceitos e categorias) começa exatamente pressupondo a
“irredutibilidade do algo”.
Ao escolher começar pelo ser, Hegel (e, neste ponto, também Heidegger) permite a
transformação da situação de indeterminidade advinda da confrontação com a
materialidade da experiência sensível em caráter de indeterminado próprio à
transcendência do ser. Isto levaria Hegel a, entre outras coisas, postular um conceito de
matéria vinculado ao indeterminado, fazendo com que toda significação advenha da forma,
ou seja, do conceito. Desta forma, entre Hegel e Heidegger passaria o mesmo processo de
ontologização do ôntico visando a anulação da dignidade ontológica do sensível. Por isto,
contra os dois, Adorno afirma que, quando Kierkegaard joga a existência contra a essência,
a existência (enquanto indivíduo) é provida de sentido enquanto sentido “deste indivíduo”.
E é deslocando a reflexão sobre o ser e sua transcendência em direção a não-identidade da
relação de indexação entre conceito e efetividade que Adorno procura realizar esta
possibilidade de uma ontologia colocada de maneira condicional:

Se a ontologia fosse possível, então, ironicamente, ela seria como quintessência


(Inbegriff) da negatividade. O que resta idêntico a si mesmo, a pura identidade, é o
que é ruim (...) Uma ontologia da civilização deveria recolher aquilo que levou a
civilização a fracassar (misslang)168.

Ou seja, a possibilidade de uma ontologia está vinculada ao reconhecimento de uma


negatividade pensada como não-identidade. Negatividade que só pode ser apreendida lá
onde o pensar se defronta com o que fez a promessa civilizatória de unificar conceito e
efetividade fracassar. A ontologia não pode admitir uma separação abstrata em relação à
reflexão sobre a cultura. Daí porque: a forma da negação determinada é a única forma na
qual a experiência metafísica sobrevive hoje”169. Daí também porque esta primeira parte
sobre Heidegger acabe, de maneira sintomática, com um parágrafo dedicado ao conceito
heideggeriano de historicidade.
Nós vimos, na aula passada que Heidegger reconhece à historicidade uma dimensão
fundamental do ser; mas sua historicidade é, ao menos segundo Adorno, uma espécie de
história sem acontecimentos, isto no sentido de uma história incapaz de produzir

168
ADORNO, ND, p. 128
169
ADORNO, Metaphysics, p. 144
acontecimentos capazes de influenciar e determinar a configuração do que se põe como
dispondo de uma dignidade ontológica. Isto leva a Adorno dizer que : “a transposição no
existencial da historicidade afasta o sal da história”. Neste sentido, devemos levar em conta
a afirmação de Heidegger: “O desdobramento da profusão de transformações do ser
assemelha-se, à primeira vista, a uma história do ser. Mas o ser não possui história como
uma cidade ou um povo tem sua história (...) O elemento historial da história do ser
determina-se a partir do caráter de destino de um destinar, e não a partir de um acontecer
entendido de maneira indeterminada”170. Quer dizer, este elemento historial da história do
ser não é afetada pela factualidade do acontecimento; ao contrário, ele é uma relação de
disponibilidade e abertura a um destino diante do qual o próprio caráter temporal do tempo
em sua sucessão é suspenso. É a partir desta perspectiva que devemos interpretar a
afirmação de Adorno:

A historicidade põe a história em suspensão (still) no ahistórico, sem preocupações


com as condições históricas que suportam as conexões internas e as constelações
entre sujeito e objeto171.

Ou seja, as configurações das constelações de relação entre sujeito e objeto não


chegam a influenciar o sentido do ser, já que o destino do ser é aquilo já traçado antes do
desdobrar da história. É verdade que Heidegger definirá o acontecimento (Ereignis) como o
lugar que determina tanto o ser quanto o tempo. No entanto, devemos nos perguntar qual é
o regime de acontecer próprio à posição da presença do ser. Este acontecimento é, de uma
certa forma, a anulação da temporalidade do tempo, algo como uma ek-stase de um tempo
que perdeu seu caráter de “atividade negativa ideal”, para usar um termo hegeliano. Pois a
experiência do tempo é indissociável da experiência empírica de fragilidade da presença
dos objetos da experiência. Neste sentido, o tempo é uma categoria empírica, pois a
maneira com que experimentamos o tempo é indissociável da maneira com que
experimentamos do “duro desejo de durar” dos objetos. Ela é assim dependente da maneira
com que as constelações de objetos estão dispostas em uma dada época.

170
idem, p. 459
171
ADORNO, ND, p. 134
Curso Adorno
Aula 8

Na aula de hoje, iniciaremos o comentário da segunda parte da Dialética Negativa, esta


intitulada: “Conceitos e categorias”. Trata-se de uma parte central por expor os operadores
e problemáticas maiores da dialética adorniana. Neste sentido, ela retoma algumas
elaborações apontadas na Introdução, como a exigência de pensar por modelos, de
reconstruir a categoria de sujeito e de utilizar a compreensão especulativa da contradição
para dar conta das exigências de tematização da não-identidade.
De maneira esquemática, podemos dizer que esta segunda parte organiza-se a partir
de três grandes movimentos. Cada um destes movimentos será objeto de uma aula. Neste
sentido, este módulo terá, ao todo, três aulas. O primeiro grande movimento consiste em
partir de uma certa inversão no encaminhamento da Ciência da lógica, de Hegel. Ao invés
de partir da posição do ser, Adorno insiste que uma dialética verdadeiramente materialista
deve partir do reconhecimento da indissolubilidade da determinação empírica, ou seja,
daquilo que Hegel identifica como “Algo” (Etwas) e que, ao menos segundo Adorno,
estaria vinculada à dimensão da sensação (Empfindung) e do indissoluvelmente ôntico. Tal
reconhecimento da indissolubilidade do “Algo” permite a alteração das expectativas de
identidade do conceito e do próprio sujeito cognoscente. Uma alteração que leva o pensar a
operar através daquilo que Adorno chama de “lógica da desintegração”, ou seja, movimento
de exposição do processo de desintegração da forma objetificada e reificada do conceito.
Algo que Adorno descrevera anteriormente através da idéia de “crítica imanente”. No
entanto, este processo de desintegração não nos leva a uma simples profissão de fé niilista
que repetiria de maneira infindável a impossibilidade da conceitualização adequada da
experiência. Ele nos leva ao reconhecimento do caráter real da contradição, retomando,
com isto, a temática hegeliana e marxista da contradição real.
O segundo grande movimento deste momento do nosso texto retoma o problema
concernente aos modos adequados de conceitualização próprios à dialética negativa. Neste
momento, Adorno apresenta de forma mais bem acabada esta noção, presente desde ao
menos “Kierkegaard: construção da estética”, de 1933, de “síntese como constelação”.
Trata-se de um conceito maior da dialética negativa advindo, principalmente, da
confrontação entre Adorno e Walter Benjamin, e que visa dar conta da maneira com que o
conceito pode operar uma negação da negação que não se intervenha em positividade. Nós
já vimos os primeiros passos deste conceito ser apresentado à ocasião da defesa adorniana
de que a dialética negativa era um conceito de análises de modelos. Aqui, a noção de
síntese conceitual como constelação permitirá a Adorno reconstruir vários níveis da
experiência dialética, como a dialética entre essência e aparência, entre universal e
particular, entre sujeito e objeto.
Por fim, o último grande movimento da segunda parte consiste em desdobrar, de
maneira exaustiva, as conseqüências do conceito de “primado do objeto”, sendo que a mais
importante destas conseqüências é a recuperação de uma perspectiva materialista. No
entanto, como alguns comentadores já perceberam, o materialismo de Adorno tem algo do
sentido mais simples de um materialismo pré-kantiano172. Isto fica bastante evidente neste
momento do nosso texto; até porque, Adorno procura levar a cabo a articulação entre

172
Ver BUCK-MORSS, Susan; Logic of disintegration: the object In Origins of negative dialectic
primado do objeto e reconstrução da categoria de sujeito através da recuperação do
“momento somático” na estruturação do conhecimento. Um “materialismo somático” é
apresentado e servirá de movimento de passagem em direção à próxima parte, esta dedicada
à tematização explícita da categoria de sujeito através da metacrítica do conceito kantiano
de liberdade.

Começar do “Algo”, começar do nada

Na aula passada, vimos como Adorno via, tanto em Heidegger quanto em Hegel, a presença
comum de uma estratégia descrita como “ontologização do ôntico”. Tal estratégia diria
respeito à reflexão sobre os modos de relação entre ser e ente, já que, mesmo marcados pela
diferença ontológica, ser e ente estabelecem modos de relação. A este respeito, Adorno irá
comparar Heidegger e Hegel a fim de mostrar que certos impasses hegelianos a respeito do
reconhecimento da diferença advinda da irredutibilidade da experiência sensível
continuariam presentes na ontologia fundamental do ser em Heidegger.
Vimos, através de uma leitura de O que é a metafísica? Como Heidegger
determinava o ente como simples projeção do homem. Aquilo que não se submete aos
protocolos projetivos de constituição do objeto da experiência, que não se submete às
coordenadas espaço-temporais que constituem o campo subjetivo de experiências não
poderia ser “algo”; mas apenas “nada”. No entanto, este nada seria, na verdade, um modo
de ser do que não se submete à forma de objeto de uma razão instrumental. Quando
Heidegger afirmava que ele é a “plena negação da totalidade do ente”173, devíamos
entender, com isto, que há algo que se manifesta apenas como negação, não deste ou
daquele ente, mas negação da própria forma de determinação própria ao ente em um regime
projetivo de vinculação ao sujeito.
Neste sentido, a “ontologização do ôntico” começava quando Heidegger afirmava
que, apesar de tudo: “O nada não é um conceito oposto ao ente, mas pertence
originariamente à essência mesma (do ser). No ser do ente acontece o nadificar do nada”174.
Segundo Heidegger, na base da tradição metafísica ocidental estaria a pressuposição de que
o nada é apenas o não-ente [ou, ainda, o não-ser em sentido trivial]. Mas devemos nos
perguntar, então, em que condições o nada deixa de ser um conceito oposto ao ente para
advir a manifestação mesma da essência do ser do ente? Uma resposta esquemática
consistiu em dizer que o ser “passa’ ao ente quando o ente se anula, quando ele advém
nada, quando ele perde suas características individualizantes resultantes da estrutura
projetiva categorial própria ao sujeito da experiência. Poderíamos mesmo dizer, que o ser
do ente é o ente sem imagem, sem determinação qualitativa.
Para Adorno, esta é uma forma astuta de ontologizar o ôntico através de uma
negação simples do segundo termo pelo primeiro. Pois, se podemos dizer que o ser “passa”
ao ente, devemos completar lembrando que nesta passagem não há uma interversão que
permitira negar o ser através do ente. Há apenas uma negação simples do ente pelo ser. Daí
porque Adorno pode afirmar que não há, neste caso, propriamente uma dialética entre ser e
ente, mas os dois termos são pensados sem mediação recíproca, sendo que o primeiro termo
tem primazia sobre o segundo. Pois o sentido do ente é dado em sua integralidade pelo. Já o
ser, por sua vez, não tem seu sentido modificado pela sua relação ao ente. Ao contrário, seu

173
HEIDEGGER, O que é a metafísica? In: Os Pensadores, p. 236
174
idem, p. 239
sentido é o que se oferece na dimensão de um originário que só aparece como destino não
historicamente traçado.
Algo disto estaria presente também em Hegel, o antecessor deste dispositivo de
ontologização do ôntico, ao menos segundo Adorno. Em Hegel, como o não-idêntico só
pode ser pensado como conceito, como o limite de um conceito que pode absorver seu
próprio limite ao transformá-lo em negação interna, o ôntico advém necessariamente
momento da reflexão ontológica; o que não poderia ser diferente para uma postura
filosófica que insiste na centralidade da tematização dos modos de passagem entre ser e
ente.
Neste ponto, Adorno apresenta uma colocação que ganhará importância no capítulo
precedente. Trata-se de afirmar que o problema da Ciência da lógica consiste em começar
por uma reflexão sobre o ser, ao invés de começar por uma reflexão sobre o algo (Etwas).
Uma escolha que traria conseqüências para o encaminhamento posterior da dialética, já que
o ser, como puro imediato indeterminado, passa à determinação própria ao Dasein quando a
unidade entre ser e nada é compreendida como a partir da figura do devir, de um devir que
é, devido a esta unidade, a própria “inquietude em si” (Unruhe in sich)175. Uma inquietude
que marca toda determinação do Dasein com o selo da fragilidade, operação que Adorno
tende a ler como sendo simétrica à “nadificação” do ente no interior da passagem do ser ao
ente em Heidegger. Uma nadificação que, como vimos, anula toda dignidade do
irredutivelmente ôntico na determinação do sentido do ser.
Isto faz Adorno afirmar que uma dialética negativa deve começar a partir do
reconhecimento da indissolubilidade desta determinação concreta que o próprio Hegel
descrevia como “Algo”. Ela deve ser a forma de uma passagem ao ente que marca o ser em
suas aspirações maiores de significação. Daí porque ele pode afirmar que: “Hegel não pode
suportar o menor traço (Spur) de não-identidade no início da lógica, traço que é lembrado
pela palavra “algo”176. Ao procurar definir o “algo”, Adorno dirá:

O Algo enquanto substrato necessário do conceito no pensamento, mesmo do


conceito de Ser, é a abstração mais extrema do Sachhaltige não-idêntico ao
pensamento e que, no entanto, não poderia ser eliminado por algum processo do
pensamento; sem o algo, não podemos pensar a lógica formal177.

Como vemos, novamente Adorno procura convergir determinações opostas. “Algo” é, por
um lado, o substrato necessário do conceito, isto a ponto de aparecer como condição para
pensarmos a lógica formal, como se a lógica formal dependesse de alguma forma de base
empírica. Já vimos algo desta idéia a respeito da existência de algum nível de vinculo entre
experiência material e lógica quando Adorno afirmou que a experiência social da
universalidade do Capital influenciaria os modos de aplicação e a significação do conceito
lógico de universalidade. Mais a frente, ele dirá que o “Eu penso” kantiano demonstra
como a identidade designa o ponto de indiferença entre o momento psicológico e o
momento lógico no idealismo. Como se a unidade psicológico individual nos fornecesse o
critério para a constituição de identidades supra-individuais.

175
HEGEL, Enciclopédia, par. 88
176
ADORNO, ND, p. 138
177
idem, p. 138
No entanto, embora seja o substrato necessário do conceito, “Algo” é também “não-
idêntico ao pensamento”, ou seja, não-idêntico ao conceito, ao menos sob o regime do
pensar do entendimento. Esta aparente aporia leva Adorno a insistir que só podemos
formalizar este substrato necessário do conceito através de um movimento de “auto-crítica”
do próprio conceito. No entanto, antes de entrarmos nos meandros deste movimento, faz-se
necessário esclarecer melhor o que Adorno entende por “Algo”.
Se voltarmos a Hegel, veremos que “Algo” é uma categoria do Dasein, segundo
momento da qualidade enquanto primeiro modo de determinação do ser (depois se seguirá
a quantidade e a medida). A qualidade tem três momentos maiores: o ser como puro
imediato indeterminado, o Dasein como determinidade (isto se lembrarmos que a tradução
corriqueira de Dasein por “ser-aí” deve ser compreendida, como Heidegger insiste, como
“ser-o-aí”, ser que se apresenta nesta determinação localizada) e o ser-para-si como
unidade, como Um que tem na auto-identidade do Eu seu exemplo mais bem acabado.
A passagem ao Dasein ocorre quando compreendemos o devir (werden) como
modo de unidade entre o ser e o nada, já que o devir implica na inquietude absoluta, na
fragilização de toda determinidade. No entanto, tal inquietude pode aparecer como
característica principal da própria determinidade, o que leva Hegel a definir o Dasein como
“ser idêntico à negação”178. Uma inquietude que aparece claramente quando
compreendemos o “Algo” como modo privilegiado da determinidade, daí porque ele é o
cerne das reflexões hegelianas sobre o Dasein.
Sobre o “Algo”, Hegel sempre o pensará no interior de uma dialética entre o limite
(Grenze) e a borda (Schranke). A este respeito, devemos levar em conta a seguinte
passagem:

Algo, por sua qualidade, em primeiro lugar é finito, e em segundo lugar é mutável,
de modo que finitude e mutabilidade pertencem a seu ser (...) Somente em seu limite
e por seu limite, Algo é o que é [ou seja, o limite não é apenas uma determinação
puramente exterior do Dasein] (...) e considerarmos agora, mais de perto, o que
temos no limite, veremos como contém em si uma contradição, e se mostra assim
como dialético. É que o limite, de um lado, constitui a realidade do Dasein; e de
outro lado é sua negação. Ora, além disso, o limite, enquanto é a negação do Algo,
não é um nada abstrato em geral, mas um nada existente (seiendes Nichts), ou seja,
aquilo que chamamos um Outro. (...) Algo se torna um Outro, mas o Outro é, ele
mesmo, um Algo; portanto torna-se igualmente um Outro, e assim por diante ao
infinito {isto até que Algo se apresente como o Outro do Outro, ou seja, como tendo
toda sua essencialidade na relação à alteridade]179.

Quer dizer, a negação opositiva que se coloca como exterioridade é, na verdade,


uma negação interna, uma alteridade interna que faz com que o limite seja uma borda
interna. Este movimento é fundamental em Hegel porque ele é a primeira manifestação da
infinitude e a primeira experiência da simples irrealidade da finitude. A gramática da
finitude quer apreender “Algo” em sua determinação fixa e autônoma, como apreendemos a
particularidade de uma determinação espaço-temporal, de um “isto”, de um “aqui’, de um

178
HEGEL, Enciclopédia, par. 89
179
idem, par. 92-93
“agora”. No entanto, ela apreende apenas a dissolução do “Algo”, ela apreende a certeza de
que algo só é o que é por ser determinado por seu limite.
Assim, “Algo” não é modo de presença da indissolubilidade do singular. De uma
certa forma, “Algo” é o nome que indica a negação de todos os singulares. Posso tentar
designar este singular afirmando: “Este singular é algo”, no entanto, o singular deixa de ser
enquanto era indicado, ele desvanesce e passa diretamente para a referência a Outro, ele é
algo em relação a.... Por sua vez, ele não é a designação do Outro, mas apenas a passagem
incessante no Outro. É isto que Hegel tem em mente ao afirmar a mutabilidade do “Algo” é
a exposição de que algo é apenas o Outro do Outro, é uma espécie de não-Outro que tem
presença simplesmente negativa, da mesma forma que o “agora” é apenas a forma do
“negativo em geral”; figura do negativo que deve ser compreendida como a manifestação
do que não pode ser nem isto nem aquilo, mas “não-isto (nicht dieses)”. O que vemos, com
isto, é o caráter evanescente (Vergehen) da referência em Hegel, isto através do
desvanecimento (Verschwinden) da referência diante das operações do conceito.
Adorno compreende tal evanescimento como uma certa dissolução do conteúdo
coisal, este conteúdo vinculado a irredutibilidade da sensação ao entendimento, do
irredutivelmente ôntico ao ontológico. No entanto, aqui se coloca uma articulação
extremamente arriscada. Pois, através do problema da passagem incessante do “Algo” ao
“Outro”, Hegel está insistindo na inexistência de uma experiência que já não esteja
submetida a uma estrutura relacional de oposições que organiza previamente o campo de
determinações espaço-temporais, embora isto não implique (ao menos para Hegel) em
anulação da irredutibilidade do sensível. Recusar tal caráter prévio da estrutura, ou ainda,
do conceito como dispositivo de organização de relações, não seria, afinal, uma forma
inadvertida de ontologizar a diferença irredutível (uma crítica que, por sinal, foi feita
inúmeras vezes contra Derrida)? Adorno tem plena consciência do risco, por isto ele se vê
obrigado a afirmar:

A crítica da ontologia não tem por objetivo fornecer uma outra ontologia, nem
mesmo uma ontologia do não-ontológico. Senão, ela apenas porá um outro como
absolutamente primeiro; desta vez não a identidade absoluta, o ser, o conceito, mas
o não-idêntico, o ente, a faticidade. Ela hipostasiaria assim do conceito do não-
conceitual e caminharia contra aquilo que o próprio conceito significa180.

Qual será pois a saída oferecida por Adorno?

A auto-crítica do conceito

Não deixa de ser irônico que, à sua maneira, Adorno precise operar, nesta crítica a
Hegel, com dispositivos próprios do hegelianismo. Sua estratégia consiste em dizer que
uma auto-crítica do conceito feita de maneira adequada a recuperação daquilo que o próprio
conceito perdeu ao operar. Para tanto, tal auto-crítica deve alcançar até mesmo o
fundamento do conceito, ou seja, a noção de sujeito. É isto que Adorno fará a partir do
parágrafo “Necessidade da Schahaltige”.
Aqui, Adorno afirma que o “Algo” ocupa o mesmo lugar que a sensação na Crítica
da razão pura e que o lugar do irredutivelmente ôntico. Mas isto não implica em afirmar

180
ADORNO, ND, p. 112
que haveria alguma primazia da sensação em relação às operações fundamentais do
conceito. Na verdade, Adorno quer, com isto, fazer a afirmação tipicamente hegeliana de
que Kant deveria ter caminhado até a vinculação do sujeito transcendental não apenas com
a apercepção pura, mas com a matéria, com o conteúdo da percepção. Maneira de recusar a
heterogeneidade radical entre sensibilidade e entendimento, ou seja, maneira de não
assumir a separação estrita de poderes entre o uso transcendental do entendimento e a
relação entre os objetos empíricos. Isto a ponto de Adorno afirmar que: “a determinação
enquanto ato não é algo de puramente subjetivo”181, já que é algo que diz respeito também
ao objeto em-si. Recaída idealista? Não; se pensarmos que se trata, com isto, de alterar as
expectativas de identidade do conceito, estas expectativas que pretendiam transformar o
conceito em um constante invariável em relação a seus conteúdos e “materiais”. Ou seja,
trata-se de alterar o próprio sentido do ato de “conceitualizar”.
Neste momento do nosso texto, Adorno procura expor o sentido de tal alteração a
partir da idéia da interpenetração entre sujeito e objeto: “Sujeito e objeto não são, como no
esquema kantiano, firmemente opostos entre si, mas se interpenetram (durchdringen)
reciprocamente”182. Este é um ponto central da teoria adorniana do sujeito. Adorno quer,
com isto, mostrar que haveria uma experiência de descentramento, fundamental para a
determinação da subjetividade, que só se daria através de um certo regime de identificação
entre sujeito e objeto.
Tal regime de identificações não poderia ser compreendido a partir dos mecanismos
de projeção do eu sobre o mundo dos objetos ou de assimilação do objeto através de uma
rememoração (Erinnerung) capaz de internalizar as cisões que a própria consciência teria
produzido. Ao contrário, trata-se de levar o sujeito a reconhecer, no interior do si mesmo,
algo da ordem da opacidade do que se determina como obs-tante (Gegenstande). Ou seja,
reconhecer que todo sujeito porta em si mesmo “um núcleo do objeto (ein kern von
Objekt)” (ADORNO, 1990, p. 747) normalmente vinculado a dimensões do corpo não
redutíveis aos processos de individuação e de apropriação reflexiva. Por isto, a
subjetividade deveria ser reconhecida não mais exclusivamente através da sua remissão ao
terreno intersubjetivo que estrutura o campo dos processos de socialização e de interações
sociais simbolicamente estruturadas, mas em uma recuperação de confrontações próprias à
dialética entre sujeito e objeto. Pois se trata fundamentalmente de mostrar que: “o sujeito
não é totalmente sujeito, nem o objeto totalmente objeto, mas os dois não são, por sua vez,
estilhaços de um terceiro que os transcenderia”183.
Este reconhecimento de que o sujeito não é este resto empobrecido pela sua redução
a sujeito do trabalho categorial, sujeito como locus da identidade, reduzido à condição de
simples posição da não-contradição lógica, traz, segundo Adorno, uma série de
conseqüências para a capacidade cognitiva do pensar. Pois ele permitiria mostrar que a
experiência da identidade é uma experiência social de dominação daquilo que, no sujeito,
guarda a opacidade dos objetos do mundo, não dos objetos submetidos à projeção, mas dos
objetos como pólo material de resistência à hipóstase do conceito. Por outro lado, ele
permitiria demonstrar que a identificação que todo pensar opera pode ser compreendida de
uma forma qualitativamente diferente, já que o próprio sujeito não é mais visto como figura

181
ADORNO, ND, p. 142
182
idem, p. 142
183
idem, p. 177
maior de um pensamento da identidade. Como dirá mais a frente Adorno, a oposição entre
o pensar e aquilo que lhe é heterogêneo é reproduzida no interior do próprio pensar.
É tendo em vista esta necessidade de reconstruir o sentido mesmo das operações de
conceitualização que Adorno retorna a um de seus conceitos mais antigos que, segundo a
nota à Dialética Negativa, remontaria a seus anos de estudo: a noção de lógica da
desintegração.
De maneira esquemática, podemos dizer que a noção de lógica da desintegração
nasce do diagnóstico de desintegração das categorias do pensamento burguês da
modernidade, destas categorias reificadas que o sujeito tem imediatamente diante de si.
Como dizia Adorno em uma conferência da década de 30, “A atualidade da filosofia”: “O
texto que a filosofia lerá é incompleto, contraditório e fragmentado”. No entanto, esta
lógica da desintegração, que será depois retomada a partir da idéia de crítica imanente, não
deve nos levar a uma simples profissão de fé niilista. A desintegração do conceito é figura
de uma experiência de inadequação entre conceito e objeto que deve ser apreendido como
dispositivo de descrição de objetos. Até porque: “A dialética como procedimento
(Verfahen) significa pensar nas contradições em nome e contra a contradição já
experimentada na coisa”184. Com isto, alcançamos o lugar de um conceito central da
dialética negativa: a noção de contradição objetiva.

A contradição objetiva entre Hegel e Adorno

Contradição objetiva é um termo forjado pela tradição dialética de orientação


marxista a fim de sublinhar o caráter real, e não simplesmente lógico, da contradição
dialética. Críticos da dialética vêem, no conceito de contradição objetiva, um gênero de
‘monstruosidade conceitual’ que seria resultante de uma confusão mais ou menos ingênua
entre oposição real e oposição lógica. No entanto, ela é uma noção fundamental para
compreendermos como o conceito internaliza aquilo que o nega.
Para compreender a contradição objetiva, parece-me que é necessário partir da
afirmação hegeliana: “Algo é vivente apenas na medida em que contém em si a contradição
(Widerspruch in sich enthält) e é esta força [que consiste] em apreender em si e a suportar a
contradição" (HEGEL, 1986b, p. 76). Mas o que pode significa a noção de conter em si a
contradição? Sigamos uma indicação de Adorno: “o caráter objetivo da contradição
(objektive Widersprüchlichkeit) não designa apenas o que do ente (Seienden) fica exterior
ao julgamento, mas, ao contrário, algo no próprio julgado (...) trata-se de prosseguir, no
conhecimento, a inadequação entre o pensamento e a coisa (Sache), de experimentá-lo na
coisa" (ADORNO, 1973, p. 152). Experimentar na coisa a inadequação entre o pensamento
e a realidade empírica só pode significar mostrar, no interior do objeto da experiência, a
defasagem entre signo e designado como modo de manifestação da essência do que se
coloca como objeto.
Lembremos do que diz Adorno a respeito da dupla negação produzida a partir da
negação determinada: “a negação da negação não anula (rückgängig) esta negação
[primeira] mas revela que ela não era suficientemente negativa; do contrário, a dialética
seria indiferente ao que foi posto no início” (ADORNO, 1973, p. 254). Para Adorno, a
negação da negação, que não anula a primeira negação, deve necessariamente produzir uma
contradição objetiva ao invés de uma afirmação. Ela nos leva a um pensamento do objeto

184
ADORNO, ND. p. 148
da experiência fundado: “não no princípio, mas na resistência (Widerstand) do outro à
identidade " (ADORNO, 1973, p. 162)185. Através da negação da negação retornamos ao
objeto que foi posto no início, mas a essência do objeto aparece como resistência à
significação produzida pelos esquemas de identificação próprios à estrutura oposicional do
pensamento.
Notemos que não se trata aqui de fazer da : “indissolubilidade (Unauflöslichkeit) do
objeto um tabu para o sujeito" (ADORNO, 1973, p. 157), via segura seja para o ceticismo
seja para um retorno à positividade. Trata-se sobretudo de reconhecer a existência de uma
negação que vem da resistência do objeto enquanto polo de experiência sensível. Um pouco
como Hegel que mostrava como o fundamento da negação dialética é a negação que vem
do fracasso da designação devido ao evanescimento da referência. Mas para não hipostasiar
a negação em um bloqueio cético do não-saber, tal resistência do objeto, base para o
primado do objeto, só pode ser posta como resistência. Posição que já é uma promessa de
reconciliação. Isto leva Adorno a jogar a dialética do universal e do particular contra seus
próprios limites.
Devemos fazer uma : “crítica recíproca do universal e do particular” (ADORNO,
1973, p. 145), dirá Adorno. Primeiramente, a crítica do particular. A abstração própria ao
universal que submete seres singulares e capacidades não-idênticas (nichidentische
Einselwesen und Leistungen) a um princípio geral e estrutural de organização deve ser
posta a fim de quebrar a ilusão da imanência. Esta é a primeira negação, que vai da palavra
às coisas. Hegel não dizia algo diferente em suas considerações sobre a potência disruptiva
do signo.
Mas a auto-reflexão do pensar reconhece que a verdade alvo do pensamento
consiste em ouvir as aspirações do que foi perdido e em saber retornar ao objeto. Neste
retorno, ele encontra o objeto não como positividade designada, mas como ponto de
excesso de uma operação de nomeação. De onde se segue a importância da contradição
objetiva enquanto momento de exposição deste ponto de excesso no interior de um objeto
que foi estruturado por procedimentos de universalização próprios ao pensamento
conceitual. Assim: “o não-idêntico constituiria a identidade própria da coisa (Sache) face a
suas identificações" (ADORNO, 1973, p. 159). Trata-se do momento de negação que vai
das coisas à palavra.
A meu ver, este esquema permanence fundamentalmente hegeliano, sobretudo lá
onde ele crê distanciar-se de Hegel. Pois, desde Hegel, a dialética funda-se no
reconhecimento da negação ontológica, negação em si que aparece como modo de presença
do objeto.
Retornemos, por exemplo, a certos exemplos que Hegel nos fornece no momento de
explicar como algo poderia conter em si a contradição. Notemos a importância da
afirmação de Hegel a respeito da presença imediata da contradição nas determinações de
relação: “Pai é outro do filho e filho é outro do pai, cada termo é apenas como outro do
outro (...). [No entanto] O pai, para além da relação ao filho também é algo para si (etwas

185
A primeira exposição desta resistência do objeto segue a dialética hegeliana da identidade e da diversidade
enquanto recurso a um momento de empirismo na dialética. Assim, Adorno dirá: “o momento da não-
identidade no julgamento identificador (identifizierenden Urteil) é facilmente discernível na medida em que
todo objeto singular subsumido a uma classe possui determinações que não estão compreendidas na definição
de sua classe” (ADORNO, 1973, p. 153). Que um pensamento dialético deva recorrer a um argumento
empírico trivial serve de índice para mostrar a necessidade de levar em conta o momento da experiência
sensível.
für sich); mas assim ele não é pai, mas homem em geral (Mann überhaupt)”. Hegel se serve
do mesmo raciocínio em outro exemplo que toca de maneira direta o problema da
designação e lembra os exemplos presentes na discussão hegeliana sobre a certeza sensível:
“Alto é o que não é baixo, alto é determinado apenas a não ser baixo, e só é na medida em
que há baixo; e inversamento, em uma determinação encontra-se seu contrário". Mas : "alto
e baixo, direita e esquerda, também são termos refletidos em si, algo fora da relação
[itálico meu]; mas apenas lugares em geral" (HEGEL, 1986b, p. 71).
Os dois exemplos convergem em uma intuição maior: as determinidades são, ao
mesmo tempo, algo em uma oposição real e algo para si, fora do sistema reflexivo de
determinações opositivas. Elas têm um modo particular de subsistir próprio irredutível.
Hegel já tinha sublinhado este ponto ao comentar a oposição entre o positivo e o negativo
enquanto determinações-de-reflexão autônomas: "o negativo também tem, sem relação ao
positivo [itálico meu], um subsistir próprio (eigenes Bestehen)" (HEGEL, 1986b, p. 71). Ou
seja, o negativo não é simples privação de determinação ou um positivo em si que aparece
como negativo apenas no interior de uma relação. Ele é também um negativo em si, fora de
sua oposição ao positivo, e está é a base da operação de restituição da dimensão ontológico
do negativo.
Tais frases são muito importantes para a compreensão do verdadeiro caráter da
contradição hegeliana. A identidade sempre é enunciada com seu contrário não porque, por
exemplo, o pai é o contrário do filho e sempre que pomos o pai deveríamos pressupor o
filho. A contradição encontra-se no fato de que o pai é, ao mesmo tempo, determinação
para os outros (enquanto significante ‘pai’ que se determina através de oposições entre
outros significantes: ‘mãe’, ‘filho’, ‘tio’) e indeterminação para si (enquanto ele pode
sempre se identificar com a negatividade da indeterminação do homem em geral). Como
nos indicou Zizek: “não sou apenas ‘pai’, esta determinação particular, mas para além de
seus mandatos simbólicos, não sou nada mais do que o vazio que deles escapam (e que
como tal é um produto retroativo)" (ZIZEK, 1999, p. 136). Como se a inscrição da
individualidade em um sistema estrutural de oposições produzisse sempre uma espécie de
resto, de fracasso reiterado da inscrição que Hegel teria reconhecido através desta maneira
de conceber a contradição.
Pode parecer estranho que termos como ‘homem em geral’ e ‘lugar em geral’ sejam
vistos como pontos de excesso da tentativa de inscrever a individualidade em um sistema
estrutural. Pode parecer, por exemplo, que Hegel queira simplesmente mostrar como os
sujeitos são, ao mesmo tempo, singulares individualizados em um universo estrutural de
identidades e diferenças (pai de..., filho de...), e pessoa em geral que tem em comum com
outras pessoas propriedades essenciais. No entanto, se assim fosse, não haveria sentido
algum em falar de “contradição” neste caso. Se Hegel vê aqui um exemplo privilegiado de
contradição é porque “homem em geral” é um lugar vazio que aparece como excesso às
determinações relacionais e nos envia à dialética do fundamento (Grund), que se segue às
reflexões de Hegel sobre a contradição. Assim, servindo-se de um witz famoso do
idealismo alemão, Hegel dirá: “Estas determinações-de-reflexão se superam e a
determinação que vai ao abismo (zu Grunde gegangene) é a verdadeira determinação da
essência" (HEGEL, 1986b, p. 80). Ou ainda: "A essência, enquanto se determina como
fundamento, determina-se como o não-determinado, e é apenas o superar de seu ser-
determinado que é seu determinar" (HEGEL, 1986b, p. 81). Ou seja, isto nos permite
deduzir que “homem em geral” apenas indica o que não se determina através de
predicações e individualizações, mas permanece indeterminado e negativo.
De qualquer forma, creio que podemos assim compreender a natureza objetiva da
contradição hegeliana. Para Hegel, a contradição é interna ao objeto porque ela exprime a
cisão que resulta da operação de inscrição do objeto visado em uma rede de
determinações simbólicas186. Só assim, a linguagem especulativa pode se reconciliar com a
efetividade.
Podemos criticar esta estratégia hegeliana afirmando que ele reduz o que está fora
do sistema a um ponto vazio, a uma presença pura desprovida de individualidade
predicável. Neste sentido, não seria um acaso o fato de Hegel comparar o horror habitual do
pensamento representativo diante da contradição ao horror da “natureza diante do vácuo”
(HEGEL, 1986b, p. 78).
Mas tal estratégia pode ser explicada se aceitamos que, do ponto de vista do
conceito, o sensível e o contingente aparecem necessariamente como pura opacidade que
resiste a toda determinidade. O que é contingente no objeto da experiência só se manifesta
no interior do saber como o que é vazio de conceito. Se Hegel foi capaz de fazer um jogo de
palavras para afirmar que contingente (zufällig) é o que deve cair (zu fallen), é porque o
contingente é o que cai do conceito, uma queda no vazio do que não é conceito.
No entanto, o problema hegeliano consiste em saber como apresentar o que é vazio
de conceito em uma determinidade conceitual, e não como anular o não-conceitual através
do império total do conceito. É possível conservar o não-conceitual sem entrar em sua
hipóstase? Eis uma problemática hegeliana por excelência. Como bem sublinhou Mabille,
há, no interior mesmo da ontologia hegeliana, um risco de indeterminação que sempre
devemos inicialmente assumir para poder após conjurar.

186
É neste sentido que compreendemos a afirmação de Longuenesse: “o que resta, segundo Hegel, uma
descoberta inestimável, é a tensão entre a unidade do Eu penso e a multiplicidade do não pensado, ou não
completamente unificado pelo pensamento. Todo objeto (pensado) porta em si tal tensão, é por isto que todo
objeto porta em si a contradição" (LONGUENESSE, 1981, p. 51). Uma contradição: entre sua inscrição em
uma unidade racional e sua irredutibilidade à unidade” (ibidem, p. 52).
Curso Adorno
Aula 9

Na aula de hoje, daremos continuidade ao comentário do capítulo da Dialética Negativa


intitulado “Conceitos e categorias”. Vimos, na aula passada, como este capítulo poderia ser
dividido em três momentos. O primeiro grande momento, aquele que foi objeto da aula
passada, consiste em partir de uma certa inversão no encaminhamento da Ciência da
lógica, de Hegel. Ao invés de partir da posição do ser, Adorno insiste que uma dialética
verdadeiramente materialista deve partir do reconhecimento da indissolubilidade da
determinação empírica, ou seja, daquilo que Hegel identifica como “Algo” (Etwas) e que,
ao menos segundo Adorno, estaria vinculada à dimensão da sensação (Empfindung) e do
indissoluvelmente ôntico. Tal reconhecimento da indissolubilidade do “Algo” permite a
alteração das expectativas de identidade do conceito e do próprio sujeito cognoscente. Uma
alteração que leva o pensar a operar através daquilo que Adorno chama de “lógica da
desintegração”, ou seja, movimento de exposição do processo de desintegração da forma
objetificada e reificada do conceito. Algo que Adorno descrevera anteriormente através da
idéia de “crítica imanente”. No entanto, este processo de desintegração não nos leva a uma
simples profissão de fé niilista que repetiria de maneira infindável a impossibilidade da
conceitualização adequada da experiência. Ele nos leva ao reconhecimento do caráter real
da contradição, retomando, com isto, a temática hegeliana e marxista da contradição real.
Vimos o detalhamento deste encaminhamento de problemas na aula passada.
Discutindo a noção de “Algo” no interior da Ciência da lógica, de Hegel, vimos como se
tratava lá de articular, pela primeira vez, uma certa experiência da infinitude através da
dialética entre limite e borda, uma dialética que, necessariamente nos leva ao modo com
que a determinaidade se funda através da internalização de negações. Assim, para Hegel,
“Algo” não é modo de presença da indissolubilidade do singular. De uma certa forma,
“Algo” é o nome que indica a negação de todos os singulares. Posso tentar designar este
singular afirmando: “Este singular é algo”, no entanto, o singular deixa de ser enquanto era
indicado, ele desvanesce e passa diretamente para a referência a Outro, ele é algo em
relação a...., em relação ao seu limite. Por sua vez, ele não é a designação do Outro, mas
apenas a passagem incessante no Outro. É isto que Hegel tem em mente ao afirmar a
mutabilidade do “Algo” é a exposição de que algo é apenas o Outro do Outro, é uma
espécie de não-Outro que tem presença simplesmente negativa, da mesma forma que o
“agora” é apenas a forma do “negativo em geral”; figura do negativo que deve ser
compreendida como a manifestação do que não pode ser nem isto nem aquilo, mas “não-
isto (nicht dieses)”. O que vemos, com isto, é o caráter evanescente (Vergehen) da
referência em Hegel, isto através do desvanecimento (Verschwinden) da referência diante
das operações do conceito.
Adorno compreende tal evanescimento como uma certa dissolução do conteúdo
coisal, este conteúdo vinculado a irredutibilidade da sensação ao entendimento, do
irredutivelmente ôntico ao ontológico. No entanto, aqui se coloca uma articulação
extremamente arriscada. Pois, através do problema da passagem incessante do “Algo” ao
“Outro”, Hegel está insistindo na inexistência de uma experiência que já não esteja
submetida a uma estrutura relacional de oposições que organiza previamente o campo de
determinações espaço-temporais, embora isto não implique (ao menos para Hegel) em
anulação da irredutibilidade do sensível. Recusar tal caráter prévio da estrutura, ou ainda,
do conceito como dispositivo de organização de relações, não seria, afinal, uma forma
inadvertida de ontologizar a diferença irredutível (uma crítica que, por sinal, foi feita
inúmeras vezes contra Derrida)? Adorno tem plena consciência do risco, por isto ele se vê
obrigado a afirmar:

A crítica da ontologia não tem por objetivo fornecer uma outra ontologia, nem
mesmo uma ontologia do não-ontológico. Senão, ela apenas porá um outro como
absolutamente primeiro; desta vez não a identidade absoluta, o ser, o conceito, mas
o não-idêntico, o ente, a faticidade. Ela hipostasiaria assim do conceito do não-
conceitual e caminharia contra aquilo que o próprio conceito significa187.

Qual era pois a saída oferecida por Adorno? Vimos como não deixava de ser irônico que, à
sua maneira, Adorno precisasse operar, nesta crítica a Hegel, com dispositivos próprios do
hegelianismo. Sua estratégia consistia em dizer que uma auto-crítica do conceito feita de
maneira adequada permitia a recuperação daquilo que o próprio conceito perdeu ao operar.
Faz-se necessário, como diz Adorno, partir do conceito, e não da experiência imediata. No
entanto, não fica claro como um programa filosófico pode, ao mesmo tempo, começar
insistindo na indissolubilidade do “Algo” e defender a necessidade de partir do conceito.
Este ponto só pode ficar claro se nos voltarmos novamente para a reflexão sobre os modos
de operação do conceito. Modos de operação que se reconfiguram através de uma auto-
crítica do conceito que alcança até mesmo o fundamento do conceito, ou seja, a noção de
sujeito.
No interior da economia do nosso texto, Adorno apresenta tal auto-crítica do
conceito através da afirmação de que o “Algo” ocupa o mesmo lugar que a sensação na
Crítica da razão pura e que o lugar do irredutivelmente ôntico. Mas isto não implica em
afirmar que haveria alguma primazia da sensação em relação às operações fundamentais do
conceito. Na verdade, Adorno quer, com isto, fazer a afirmação tipicamente hegeliana de
que Kant deveria ter caminhado até a vinculação do sujeito transcendental não apenas com
a apercepção pura, mas com a matéria, com o conteúdo da percepção. Maneira de recusar a
heterogeneidade radical entre sensibilidade e entendimento, ou seja, maneira de não
assumir a separação estrita de poderes entre o uso transcendental do entendimento e a
relação entre os objetos empíricos. Isto é o que permite uma afirmação fundamental como:
“Sujeito e objeto não são, como no esquema kantiano, firmemente opostos entre si, mas se
interpenetram (durchdringen) reciprocamente”188.
Mas devemos nos perguntar: por que tal interpenetração não implica, ao menos
segundo Adorno, em perpetuação do primado do sujeito? Em que tal interpenetração não é
simples projeção do eu sobre o mundo dos objetos ou de assimilação do objeto através de
uma rememoração (Erinnerung) capaz de internalizar as cisões que a própria consciência
teria produzido? Na aula passada, afirmei que Adorno procurava insistir na necessidade de
levar o sujeito a reconhecer, no interior do si mesmo, algo da ordem da opacidade do que se
determina como obs-tante (Gegenstande). Ou seja, reconhecer que todo sujeito porta em si
mesmo “um núcleo do objeto (ein kern von Objekt)” (ADORNO, 1990, p. 747)
normalmente vinculado a dimensões do corpo não redutíveis aos processos de individuação
e de apropriação reflexiva. Este é um dos pontos centrais das operações de distanciamento

187
ADORNO, ND, p. 112,
188
idem, p. 142
entre Hegel e Adorno. Segundo Adorno, o sujeito absoluto hegeliano não seria capaz de
reconhecer a indissolubilidade de um momento empírico, não-idêntico ligado ao conceito
de sujeito. Para tanto, a filosofia hegeliana precisaria também ser uma psicologia capaz de
expor a maneira com que o pensamento e o impulso corporal se relacionam, tal como o
próprio Adorno fará principalmente a partir do próximo capítulo recorrendo maciçamente à
psicanálise freudiana. Adorno chega a expor claramente sua estratégia ao afirmar, a respeito
da consciência humana singular enquanto fiador do pensamento da identidade:

Em Kant, ela deve fundar toda identidade como unidade geral prévia. No entanto, se
ele olhar atrás de si, lá para onde ele começou a existir conscientemente, o homem
maduro poderá rememorar seu passado distante. Ele produz uma unidade, por mais
irreal que seja a infância que o escapa. Mas esta irrealidade, o Eu que se ce
rememorado, Eu que fora uma vez e que potenciamente pode ser ainda, advém um
Outro, estranho, observado de maneira destacada. Esta ambivalência entre
identidade e não-identidade permanece no problema lógica da identidade189.

A afirmação não poderia ser mais clara. Há uma experiência de ambivalência entre
identidade e não-identidade que só pode ser claramente apreendida a condição de
submetermos a deducação transcendental do sujeito constituinte à uma gênese empírica da
função do Eu. Tal gênese nos mostra que algo da infância conserva-se como o que é, ao
mesmo tempo, estranho ao Eu e parte do Si mesmo. No fundo, Adorno pensa :esta infância
como a dimensão de um campo de experiências ainda não submetidas à uma unidade
sintética. Daí porque, ele afirmará, mais a frente: “A consciência nascente da liberdade
alimenta-se da rememoração (Erinnerung) do impulso (Impuls) arcaico, não ainda guiado
por um eu sólido”190. Na verdade, vemos aqui como Adorno se serve do esquema freudiano
das pulsionais auto-eróticas satisfeitas por objetos parciais que devem ser recalcadas para a
unificação das pulsões submetidas à auto-identidade do Eu. Desta forma, o Eu pode
aparecer como não-identidade na identidade. Maneira de insistir que uma perspectiva
genética nos permite reconsiderar a natureza das relações dialéticas entre sujeito e objeto.
Poderíamos pensar estarmos aqui diante de alguma forma astuta de retorno à origem,
retorno a uma natureza ainda não individualizada e submetida à forma de um Eu. Adorno
tem clara consciência disto, daí porque ele afirma que verdadeira operação fundamental não
consiste em recalcar tudo o que pode ser da ordem da origem, mas demonstrar como a
origem já era, desde sempre algo totalmente ilegível a partir da ilusão de um falsa essência
estática.
Neste sentido, a reconstrução da teoria do sujeito aparece como peça fundamental
para a orientação dos protocolos de auto-crítica do conceito. Pois, se é verdade que o
princípio de unificação do diverso da intuição sensível sob a forma de objeto nos é dado
pelo próprio Eu, então uma reconfiguração da noção de auto-identidade terá conseqüências
maiores para a própria forma com que o objeto da experiência é estruturado. Daí porque
Adorno afirma não se tratar simplesmente de hipostasiar o pensamento da diferença, mas de
mostrar a possibilidade de uma transformação qualitativa da própria noção de identidade.
Se é verdade que a dialética negativa participa da lógica da identidade, já que “toda
determinação é identificação”, não é menos verdade que há uma reversão possível no

189
ADORNO, ND, p. 157
190
ADORNO, idem, p. 221
interior da identificação, uma reversão que talvez tenha sido melhor descrita por Merleau-
Ponty:

O vidente, estando pego nisto que ele vê, é ainda ele mesmo que ele vê: há um
narcisismo fundamental de toda visão; e que, pela mesma razão, a visão que ele
exerce, ele a recebe também das coisas, que, como dizem vários pintores, eu me
sinto olhado pelas coisas, minha atividade é identicamente passividade – o que é o
sentido segundo e mais profundo do narcisismo191.

Adorno está disposto a tirar conseqüências políticas deste modo de articular auto-
crítica do conceito e teoria do sujeito. Ele lembra, por exemplo, que “a identidade é a forma
originária (Urform) da ideologia”192. Afirmação central por vincular a ideologia a um
regime específico do pensar que carrega consigo um modo particular de conceitualização
da experiência. Operação só possível por reduzir o problema da forma-mercadoria à
reflexão sobre os processos sociais de circulação de identidades e de constituição de
equivalências. Adorno chega a vincular tal modo de experiência a um gozo pela adequação
à coisa e ao recalcamento (unterdrück) do que só se oferece à experiência como
heterogêneo.
O uso de categorias psicológicas neste contexto (gozo, satisfação, recalcamento) é
claramente explicável: Adorno quer mostrar como o problema maior da ideologia não
consiste apenas em compreender como funciona operações de conformação de situações
empíricas determinadas às expectativas de validade exigidas pelas aspirações
universalizantes da razão. Conformação tão bem sumarizada na noção de que “ideologia é
justificação (Rechtfertigung)”193. Ela exigiria assim que o poder fosse mediado pela
reflexão acerca da sua legitimidade, mediação que levaria o poder a, por exemplo, mascarar
seus verdadeiros pressupostos lá onde eles não podem ser postos sem contradição. É
inclusive o reconhecimento de tais expectativas de validade em toda construção ideológica
que leva Adorno a insistir na existência de um elemento racional sempre presente na
ideologia.
Na verdade, Adorno que mostrar que a análise da ideologia é, fundamentalmente,
uma análise das disposições subjetivas produzidas pelas formações discursivas. Análise da
maneira com que formações discursivas potencializam e se servem de disposições libidinais
(isto no sentido de modos de relação de objeto vinculados a funções intencionais como o
desejo) próprias a certos modos de configuração da subjetividade. Daí porque ele pode
afirmar que a ideologia deve sua resistência à crítica à sua cumplicidade com o pensamento
identificador do Eu. Como se o Eu fosse, na verdade, uma espécie de ideologia privada.
Assim, a crítica da ideologia deve se transformar em “crítica à consciência constitutiva”194,
ou seja, crítica do Eu como unidade sintética, como entificação do princípio de identidade e
como pólo de autonomia e imputabilidade da ação racional. Como se a teoria do sujeito
fosse uma peça central de toda e qualquer reflexão sobre a dimensão política. E é como
resultado da crítica a este sujeito moderno hipostasiado na figura de um Eu auto-idêntico

191
MERLEAU-PONTY, Le visible et l´invisible, p. 145
192
ADORNO, ND, p. 151
193
ADORNO, idem, p. 465
194
ADORNO, ND, p. 151
que devemos entender a promessa de que a verdadeira utopia seria a conjunção do
diferenciado.

Partir do conceito

Tendo tais problemas em mente, podemos compreender melhor como a Dialética Negativa
pode, ao mesmo tempo, partir do conceito e defender o caráter inaugural da experiência de
reconhecimento da indissolubilidade do irredutivelmente ôntico, do sensível. Adorno
afirma, mais uma vez que o ente não é imediaticidade, mas só pode ser tematizado através
da mediação do conceito. No entanto, o conceito guarda a invariância criadora de ordem
que nega a variação do conteúdo da experiência. Neste sentido, a dialética deve ser capaz
de quebrar a aparência de invariabilidade dos objetos e mostrar o objeto como pólo de não-
identidade. Desta forma, a aparência de invariabilidade dos objetos será quebrada através
desta forma de constituição de objetos da experiência a partir da identificação entre sujeito
e objeto, mas agora se trata de insistir que estamos diante de identificação com uma figura
do sujeito não mais pensada como suporte do princípio de identidade, como vimos
anteriormente.
Por outro lado, a exigência de uma experiência de não-identidade acessível à
consciência nos coloca diante do problema do estatuto da síntese. Falar em uma experiência
do heterogêneo que não seja alguma forma de ascese ou de recurso ao inefável é,
necessariamente, falar de algum nível formal de totalidade sintética da experiência por um
sujeito. Mas como aceitar tal nível se Adorno não cansa de repetir que: “o todo é o não-
verdadeiro”, que as operações de totalização e síntese da razão são necessariamente modos
de esvaziamento da diferença e de dominação do que se oferece à experiência? Para tanto,
faz-se necessário reconstruir a noção mesma de “síntese”. Assim, a dialética negativa deve
continuar sendo um pensamento da síntese, pensamento que vê em noções como
individualidade pura ou multiplicidade não-estrutura uma simples abstração do
pensamento. Até porque, Adorno sabe que a diferença só pode ser posta no interior de
relações, e quem diz relações não diz exterioridade indiferente, diz algum nível formal e
pressuposto de síntese. Neste sentido, a dialética negativa ainda é dialética. Até porque,
como vimos em aulas anteriores, mesmo a noção de sistema não é abandonada por Adorno.
Ela é transformada qualitativamente por ele. Mas trata-se, por outro lado, de afirmar a
possibilidade uma modalidade muito específica de síntese, esta chamada por Adorno em
sua Teoria estética de “síntese não-violenta”.
A reflexão adorniana sobre a síntese é sinuosa e complexa. Ela se articula
organicamente com outros problemas, como o estatuto da negação através da discussão a
respeito do saldo de uma negação da negação, ou ainda com o destino da noção de
singularidade e, por fim, com a configuração da noção central de constelação. Na verdade,
veremos como Adorno vai aos poucos definindo uma operação maior da dialética negativa.
Ele parte assumindo que não há mais como trabalhar com uma noção de síntese
enquanto idéia reguladora e horizonte formal do pensar. A síntese como aplicação de
princípios gerais de classificação e ordenamento. No entanto, a dialética negativa é um
pensamento da relação. Neste sentido, trata-se de afirmar que toda operação de relação é
uma operação sintética, mesmo que tais relações sejam costuradas através de negações
determinadas, como é o caso da dialética. Mas, afirmar que relações são produzidas através
de negações determinadas, estas negações que demonstram como a realização de termo
implica na passagem ao seu oposto, nos leva a uma indistinção peculiar entre análise e
síntese, o que, no fundo, é apenas o desdobramento da intuição hegeliana a respeito dos
problemas próprios à noção de analiticidade. Pois dizer que a realização de um termo é sua
passagem no termo oposto implica em operar no ponto de indistinção entre juízo sintético e
juízo analítico. É tendo esta idéia em vista que devemos compreender a afirmação de
Adorno:

O imperativo de Hegel de examinar todo conceito até que, pela força de seu próprio
sentido, de sua própria identidade, ele entre em movimento e advenha não-idêntico
a si mesmo é um imperativo de análise e não de síntese195.

Pois se os movimentos de interversão do conceito são imperativos de análise, é porque a


própria distinção entre analiticidade e juízo sintético deixou de operar. O que implica em
dizer, por outro lado, que não há distinções estruturais entre o campo da experiência e o
campo da organização conceitual da experiência., Maneira de insistir no holismo semântico
próprio á dialética, este holismo tão bem caracterizado por Robert Brandom ao dizer que,
para a dialética de orientação hegeliana, a compreensão das relações entre conceitos é a
condição suficiente para a compreensão das relações entre objetos da experiência.
Mas para que tal holismo possa ser posto, e com ele a realização de uma síntese
não-violenta, faz-se necessário reconsiderar a experiência de constituição de positividades
em Hegel. Adorno insiste que a teoria hegeliana da dupla negação, através da qual uma
experiência negativa de inadequação entre conceito e objeto é negada permitindo o advento
de algo como uma síntese é mero retorno à positividade. Trata-se de uma crítica clássica à
dialética hegeliana: a negação da negação nada mais é que uma positividade conciliadora
reinstaurada, como se a negação fosse apenas uma operação vinculada à falta ou à privação.
A primeira negação formalizaria a falta ou a privação de um objeto que é negativamente
determinado como termo faltante, o que me permitiria passar à segunda negação, passagem
de teria agora o poder de determinação positiva do que inicialmente apareceu apenas como
falta. Um pouco como estas operações neuróticas de denegações onde uma negação dita de
maneira muito peremptória (“Eu sonhei com alguém; certamente não era ela”) acaba se
invertendo em uma afirmação.
No entanto, este esquema não é justo com Hegel, como já tentei mostrar em mais de
uma ocasião deste curso. Ele ignora que, para Hegel, a negação não é apenas uma operação
lógica ligada à formalização da privação ou da falta. Ela é uma operação ontológica ligada
à acessibilidade de objetos que só podem se pôr de maneira negativa. Algo muito próximo
do que o próprio Adorno tem em vista ao afirmar:

A qualificação da verdade como comportamento negativo do saber penetra o objeto


(Objekt) – suprime a aparência (Schein) de seu ser imediato – ressoa como o
programa de uma dialética negativa, como programa do “saber que corresponde ao
objeto”196.

Adorno normalmente descarta que tal programa tenha sido seguido por Hegel ao recorrer,
por exemplo, à uma crítica ao institucionalismo forte do Hegel de maturidade com sua
noção de Estado enquanto negação da negatividade dos particulares. Adorno lembra que,

195
ADORNO, ND, p. 159
196
ADORNO, ND, p. 162
no interior desta relação entre Estado e sujeito, a relação não é pensada como uma negação
determinada, mas como uma negação simples do segundo pelo primeiro. Este é, inclusive,
um dos temas chaves do capítulo da Dialética Negativa dedicado à filosofia hegeliana da
história.
Sobre a importância e a justeza deste exemplo privilegiado de Adorno, devemos
dizer duas coisas. Primeiro, Adorno não cansa de afirmar que Hegel teria desvelado o
segredo por trás da apercepção sintética: o trabalho social. A universalidade da atividade do
constitutiva do sujeito transcendental, atividade que é fundamentalmente síntese do diverso
da experiência sensível é, no fundo, a natureza social do trabalho; isto no sentido do
trabalho ser um modo de constituição de objetos não ligado, necessariamente, a uma
dinâmica expressivista de disposições intencionais (mesmo que não seja uma atividade
meramente abstrata, daí a importância da articulação hegeliana entre trabalho e desejo). Ao
contrário, o modo de constituição é socialmente determinado pelas possibilidade sociais de
reconhecimento do objeto trabalho. É tendo isto em vista que Adorno pode ter uma leitura
não-metafísica do conceito hegeliano de Espírito. Segundo Adorno, e aí seguindo uma
leitura claramente aceita atualmente, Espírito é o nome de um processo de interação social
racionalmente fundamento de maneira universal e cujo fundamento pode ser reflexivamente
apreendido e rememorado pelos sujeitos. A definição do conceito de Espírito seria assim
indissociável de uma definição de sociedade capaz de realizar suas expectativas de
racionalização.
No entanto, Hegel reconhece que a sociedade civil é uma totalidade antagônica,
dividida em classes que tendem a operar de maneira autônoma. Neste sentido, o parágrafo
243 dos Princípios da filosofia do direito é claro: “Quando a sociedade civil não é
impedida em sua eficácia, sua população e indústria conhecem um progresso. De um lado,
devido à universalização da conexão entre os homens em suas necessidades e devido à
universalização dos modos de elaboração e de transporte de meios destinados a satisfazê-
las, a acumulação de fortunas cresce, da mesma maneira como cresce, por outro lado, o
isolamento e o caráter limitado do trabalho particular, a dependência e a pobreza da classe
ligada a este trabalho”197. Desta forma, o Estado deve aparecer como aquele que bloqueia
os antagonismos internos à sociedade civil, operando uma política de regulação das
riquezas. Mas, ao menos segundo Adorno (e aí seguindo o diagnóstico de Marx), Hegel
deveria pôr a contradição social como absoluto, isto ao invés de aliviar a contradição no
interior do Absoluto. Mas o Estado apenas negaria de maneira simples o interesse dos
particulares, sem que este trabalho do negativo pudesse ser introduzido no interior do
próprio conceito de Estado. Mas podemos dizer que esta leitura de Hegel tem dois
problemas. Primeiro, podemos criticar a noção hegeliana de Estado sem, com isto, ter de
afirmar que a noção hegeliana de negação não opera no interior do sistema como deveria.
Tanto é assim que Hegel foi capaz de construir um trajeto em direção ao Absoluto que não
passa pela entificação do Estado (basta lembrar da Fenomenologia do Espírito). Por outro
lado, não é certo que esta leitura da positividade do Estado hegeliano esteja correta. Mas
esta é uma questão que iremos analisar mais a frente.

Pensar por constelações

197
HEGEL, Princípios da filosofia do direito, par. 243
Por hora, vale a pena retornar à questão relativa aos modos de síntese pressupostos pela
dialética negativa, isto através da análise da categoria de “constelação”.
Já foi questão neste curso de insistir que a categoria de constelação está intimamente
ligado à noção de “modelo”. Lembremos aqui de algumas considerações já feitas
anteriormente. Desde Platão, “modelo” é o que é representado. No entanto, muito mais do
que a posição de um objeto, o modelo é a representação de um estado de coisas a respeito
do qual apenas a estrutura é cognoscível. Ele é a linguagem funcional usada para conhecer
a estrutura de uma realidade. Por outro lado, operar por modelos não é a mesma coisa que
operar por esquemas. Lembremos da geometria de Desargues: modelizar significa projetar
sobre um plano, o modelo é uma construção imaginativa de um analogon de caráter
matemático ou físico que permite à ciência romper com uma tradição de conhecimento que
procura se orientar pela intuição direta de conteúdos198. A sua maneira, o modelo parece ser
um instrumento cognitivo que opera para além das coisas em si. Há um exemplo
extremamente significativo, vindo de Simplicius comentando Aristóteles: “Face ao caráter
aparentemente singular do movimento irregular dos corpos celestes, é possível construir um
sistema de hipóteses geométricas. Temos então um modelo através do qual, substituindo os
movimentos que observamos e que resistem à explicação por movimentos uniformes e
regulares, torna-se possível explicar os primeiros pelos segundos”199. Este exemplo é
exatamente praticamente que Benjamin tem em vista quando desenvolve o conceito, tão
importante para a dialética negativa de Adorno, de “constelação”: “As idéias estão para as
coisas assim como as constelações estão para os planetas. Isto quer inicialmente dizer: elas
não são nem o conceito nem a lei. Elas não servem ao conhecimento dos fenômenos e estes
não podem em hipótese alguma ser o critério de existência das idéias”200. No entanto, a
inadequação entre o modelo e a coisa aparece como modo de posição: “desta significação
metafísica suprema que o sistema de Platão atribui à idéia”201. Ou seja, vemos assim uma
articulação profunda entre as idéias de “modelo” e “constelação”.
O sentido maior da dialética negativa, por exemplo, consiste exatamente no advento
de uma síntese não-totalizante, síntese formada a partir da idéia de ‘constelação’
(Konstellation), na qual a negação aos procedimentos de universalização totalizante é
conservada. A idéia de constelação permite o advento de um pensamento da síntese na
qual: “não se progride a partir de conceitos e por etapas até o conceito genérico
(allgemeineren Oberbegriff), mas eles entram em constelação”. O modelo para este
processo de ‘entrar em constelação’ nos é fornecido (e aqui não poderíamos ser mais
lacanianos) pelo “comportamento da linguagem (Sprache)", ou melhor, pelo
comportamento de uma teoria não-correspondecial da linguagem que nem por isto abraça
alguma forma de relativismo abandonando a centralidade da noção de verdade objetiva.
Segundo Adorno, a linguagem: “não apresenta um simples sistema de signos
(Zeichensystem) para funções cognitivas. Lá onde ela aparece essencialmente como
linguagem, lá onde ela advém apresentação (Darstellung), ela não define seus conceitos.
Sua objetividade é assegurada através da relação que coloca os conceitos centrados sobre
uma coisa (Sache) (...) Ao reunir-se em torno da coisa a conhecer, os conceitos determinam

198
Sobre este ponto, ver SOULEZ, Quel nouage entre lettre et lieu? in MARCOS, La lettre et lê lieu, Paris,
Kimé, 2005
199
idem, p. 49
200
BENJAMIN, Origens do drama barroco alemão
201
idem
potencialmente seu interior"202. Esta noção de uma opacidade fundamental da coisa que se
exprime em uma constelação de conceitos que se articulam sem jamais designar a
referência de maneira imediata, esta idéia de uma: “deficiência determinável de todo
conceito (bestimmbare Fehler aller Begriffe)" que leva à necessidade de “fazer intervir
outros”203 a fim de formar constelações, enfim, esta idéia de uma constelação de conceitos
que guarda o sujeito proposicional como elemento opaco ao qual se reporta a predicação é
fundamental. De um certo aspecto, ela demonstra que pensar por constelações é algo muito
próximo de pensar por metáforas, ou seja, através um “ver como” que me permite
apreender certos objetos apenas no interior de relações transversais, já que nenhuma
apreensão conceitual direta de conteúdo parece possível [metáforas como descrição de
analogias, metáforas como modo de posição da negatividade do objeto]. Relações que,
como dizia Adorno em uma conferência dos anos 30, Atualidade da filosofia, são o modo
de acesso a uma realidade formada por elementos isolados, fragmentários e desprovidos de
intenção unificadora. Isto permite a Adorno comparar o conhecimento por constelações à
ars inveniendi medieval (razão das descobertas). Um processo de descoberta cujo organon é
a fantasia enquanto faculdade criadora da imaginação.
De maneira relativamente surpreendente, Adorno dá como exemplo do uso da
categoria de constelação a noção weberiana de tipos ideais. Sabemos como, para Weber,
tipos são construções que visam permitir a inteligibilidade das ações sociais através de um
curso ideal de orientação da ação de maneira puramente racional orientada para fins: “
construção de uma ação orientada pelo fim de maneira estritamente racional serve à
Sociologia de tipo”204. Neste sentido, podemos ver como o tipo ideal é um caso claro de
modelo aplicado à sociologia, já que é modelização da estrutura racional do objeto. No
entanto, o que interessa Adorno é muito mais o fato de que o reconhecimento dos conceitos
como tipos ideais nos coloca diante de objetos que só podem ser nomeados através de
torções, já que nunca estão completamente presentes. A racionalidade da ação implica não
apenas na redução do “irracional” à condição de desvio, mas também na atualização
incessante do caráter metafórico das tipologias, isto no sentido performativo da metáfora
enquanto instauração de relações. O próprio Adorno utilizou o conceito de tipos ideais. Por
exemplo, encontramos na Introdução à sociologia da música um quadro de tipos ideais de
escuta (o expert,. O bom ouvinte, o consumidor de cultura, o ouvinte emocional, o ouvinte
ressentido, o ouvinte de entretenimento e o indiferente à música)
Por fim, Adorno insiste que, por exemplo, na Ética protestante e o espírito do
capitalismo, Weber compõe conceitos a partir de elementos singulares cujas relações não
podem ser deduzidas a partir de meros procedimentos analíticos. Ao contrário, ele é
obrigado a colocar em relações operadores de sistemas aparentemente totalmente
autônomos entre si. Assim, o conceito de capitalismo pode ser extraído de categorias
isoladas e subjetivas como “pulsão de apropriação” (Erwerbstrieb), “pulsão de lucro”
(Gewinntreben). Categorias que não são meramente psicológicas, mas estão vinculadas à
pressuposição de um sistema social onde funciona o princípio de rentabilidade, as
possibilidades do mercado, o cálculo financeiro.

202
ADORNO, ND, p. 160. Para esta aproximação entre a noção adorniana de constelaçõa e a lógica lacaniana
do significante, ver também ZIZEK, Ils ne savent pas ce qu'ils font, Paris: Point Hors Ligne, 1990.
203
ADORNO, ND, p. 59.
204
WEBER, Economia e sociedade, p. 5
Curso Adorno
Aula 10

Na aula de hoje, continuaremos o comentário do capítulo da Dialética Negativa intitulado


“Conceitos e categorias”. Vimos, em aulas passadas, como este capítulo poderia ser
dividido em três momentos. O primeiro grande momento consistiu em partir de uma certa
inversão no encaminhamento da Ciência da lógica, de Hegel. Ao invés de partir da posição
do ser, Adorno insiste que uma dialética verdadeiramente materialista deve partir do
reconhecimento da indissolubilidade da determinação empírica, ou seja, daquilo que Hegel
identifica como “Algo” (Etwas) e que, ao menos segundo Adorno, estaria vinculada à
dimensão da sensação (Empfindung) e do indissoluvelmente ôntico. Tal reconhecimento da
indissolubilidade do “Algo” permite a alteração das expectativas de identidade do conceito
e do próprio sujeito cognoscente. Uma alteração que leva o pensar a operar através daquilo
que Adorno chama de “lógica da desintegração”, ou seja, movimento de exposição do
processo de desintegração da forma objetificada e reificada do conceito. Uma desintegração
resultante do fato de Adorno insistir que “Algo” designa aquilo do qual não podemos nos
livrar através do uso do conceito. No entanto, este processo de desintegração não nos leva a
uma simples profissão de fé niilista que repetiria de maneira infindável a impossibilidade
da conceitualização adequada da experiência ou em alguma forma de entificação do
imediato. Ele nos leva ao reconhecimento do caráter real da contradição, retomando, com
isto, a temática hegeliana e marxista da contradição real. Uma contradição que será a forma
necessária da conceitualização. Contradição de quem vê, no objeto conceitualizado, algo,
ao mesmo tempo, determinado e indeterminado (mas indeterminado apenas para um certo
regime de determinação próprio ao pensar representativo).
Na aula passada, iniciamos o segundo grande movimento deste capítulo do nosso
texto retomando o problema concernente aos modos adequados de conceitualização
próprios à dialética negativa. Neste momento, Adorno apresenta de forma mais bem
acabada esta noção, presente desde ao menos “Kierkegaard: construção da estética”, de
1933, de “síntese como constelação”. Trata-se de um conceito maior da dialética negativa
advindo, principalmente, da confrontação entre Adorno e Walter Benjamin, e que visa dar
conta da maneira com que o conceito pode operar uma negação da negação que não se
intervenha em positividade. Nós já vimos os primeiros passos deste conceito ser
apresentado à ocasião da defesa adorniana de que a dialética negativa era um conceito de
análises de modelos. Aqui, a noção de síntese conceitual como constelação permitirá a
Adorno reconstruir vários níveis da experiência dialética, como a dialética entre essência e
aparência, entre universal e particular, entre sujeito e objeto. Veremos tais reconstruções na
aula de hoje.
De qualquer forma, na aula passada, insistiu-se que a dialética negativa deve
continuar sendo um pensamento da síntese, pensamento que vê em noções como
individualidade pura ou multiplicidade não-estrutura uma simples abstração do
pensamento. Até porque, Adorno sabe que a diferença só pode ser posta no interior de
relações, e quem diz relações não diz exterioridade indiferente, diz algum nível formal e
pressuposto de síntese. Neste sentido, a dialética negativa ainda é dialética. Até porque,
como vimos em aulas anteriores, mesmo a noção de sistema não é abandonada por Adorno.
Ela é transformada qualitativamente por ele. Mas trata-se, por outro lado, de afirmar a
possibilidade uma modalidade muito específica de síntese, esta chamada por Adorno em
sua Teoria estética de “síntese não-violenta”.
Vimos como Adorno parte assumindo que não há mais como trabalhar com uma
noção de síntese enquanto idéia reguladora e horizonte formal do pensar. A síntese como
aplicação de princípios gerais de classificação e ordenamento. No entanto, a dialética
negativa é um pensamento da relação. Neste sentido, trata-se de afirmar que toda operação
de relação é uma operação sintética, mesmo que tais relações sejam costuradas através de
negações determinadas, como é o caso da dialética. Mas, afirmar que relações são
produzidas através de negações determinadas, estas negações que demonstram como a
realização de termo implica na passagem ao seu oposto, nos leva a uma indistinção peculiar
entre análise e síntese, o que, no fundo, é apenas o desdobramento da intuição hegeliana a
respeito dos problemas próprios à noção de analiticidade. Pois dizer que a realização de um
termo é sua passagem no termo oposto implica em operar no ponto de indistinção entre
juízo sintético e juízo analítico. O que implica em dizer, por sua vez, que não há distinções
estruturais entre o campo da experiência e o campo da organização conceitual da
experiência., Maneira de insistir no holismo semântico próprio á dialética, este holismo tão
bem caracterizado por Robert Brandom ao dizer que, para a dialética de orientação
hegeliana, a compreensão das relações entre conceitos é a condição suficiente para a
compreensão das relações entre objetos da experiência.
Mas para que tal holismo possa ser posto, e com ele a realização de uma síntese
não-violenta, faz-se necessário livrá-lo de todo e qualquer peso de entificação de
positividades e de descrições positivas sobre estados de coisas. Daí porque Adorno precisa
reconsiderar o sentido das operações de dupla negação próprias aos usos dialéticos do
conceito. Tais reconsiderações devem nos levar a compreender que:

A qualificação da verdade como comportamento negativo do saber que penetra o


objeto (Objekt) – suprime a aparência (Schein) de seu ser imediato – ressoa como o
programa de uma dialética negativa, como programa do “saber que corresponde ao
objeto”205.

Ou seja, a correspondência só ocorre lá onde a verdade aparece como


comportamento negativo do saber, como determinação negativa do objeto do saber. Via que
nos levaria diretamente ao niilismo, se a dialética não operasse com uma noção de negação
ontológica, distinta da mera negação lógica. Tal negação ontológica nos leva à noção de
uma opacidade fundamental da coisa que se exprime em uma constelação de conceitos que
se articulam sem jamais designar a referência de maneira imediata. Daí os usos adornianos
da noção de “constelação” como modo de conceitualização. Vimos, na aula passada, como
esta idéia de uma: “deficiência determinável de todo conceito (bestimmbare Fehler aller
Begriffe)" que leva à necessidade de “fazer intervir outros”206 a fim de formar constelações,
como esta idéia de uma constelação de conceitos que guarda o sujeito proposicional como
elemento opaco ao qual se reporta a predicação era fundamental. Vimos como a noção de
adorniana de constelação nada mais era do que a implementação desta colocação de
Benjamin: “As idéias estão para as coisas assim como as constelações estão para os
planetas. Isto quer inicialmente dizer: elas não são nem o conceito nem a lei. Elas não
servem ao conhecimento dos fenômenos e estes não podem em hipótese alguma ser o

205
ADORNO, ND, p. 162
206
ADORNO, ND, p. 59.
critério de existência das idéias”207. No entanto, a inadequação entre o modelo e a coisa
aparece como modo de posição: “desta significação metafísica suprema que o sistema de
Platão atribui à idéia”208. Esta inadequação é guardada por Adorno, ao afirmar sobre a
noção de constelação em Kierkegaard: “Os conceitos mais universais, postos pela
consciência a fim de ordenar seus conteúdos variados [da experiência subjetiva], aparece à
consciência como estranhos (...) Quanto mais completamente estranhos eles advém para a
consciência, mais eles dirigem o destino dela”209. Desta forma, a existência individual é
interpretada por constelações, mas isto a fim de evitar definições. Pois: “o que permanece
opaco à pura contemplação (Anschauung), o que escapa, como conteúdo, à forma categorial
transparente, isto é o que o pensamento realmente quer ler nas figuras inscritas nos objetos,
no contexto de conceitos que a ele pertecem”210. Por outro lado, podemos ver tal
inadequação própria às constelações como algo muito próximo de um regime de
pensamento que pensa por metáforas, ou seja, pensar através um “ver como” que me
permite apreender certos objetos apenas no interior de relações transversais, já que
nenhuma apreensão conceitual direta de conteúdo parece possível.
Tais colocações nos permitirão entrar no último grande movimento deste capítulo,m
movimento que consiste em desdobrar, de maneira exaustiva, as conseqüências do conceito
de “primado do objeto”, sendo que a mais importante destas conseqüências é a recuperação
de uma perspectiva materialista. No entanto, como alguns comentadores já perceberam, o
materialismo de Adorno tem algo do sentido mais simples de um materialismo pré-
kantiano211. Isto fica bastante evidente neste momento do nosso texto; até porque, Adorno
procura levar a cabo a articulação entre primado do objeto e reconstrução da categoria de
sujeito através da recuperação do “momento somático” na estruturação do conhecimento.
Um “materialismo somático” é apresentado e servirá de movimento de passagem em
direção à próxima parte, esta dedicada à tematização explícita da categoria de sujeito
através da metacrítica do conceito kantiano de liberdade. Na aula de hoje, analisaremos a
noção de primado do objeto, deixando para a aula que vem o lineamento desta passagem
adorniana ao materialismo.

Recuperar categorias tradicionais da dialética

Mas antes de entrarmos na análise desta categoria central da dialética negativa,


primado do objeto, vale a pena descrever a maneira com que, através da reconstrução da
noção de síntese, Adorno procura recuperar categorias tradicionais da dialética, como:
mediação, a dialética essência/aparência e a dialética sujeito/objeto.
Por exemplo, Adorno dirá que a dialética negativa transforma os conceitos de
essência e aparência, embora não os abandone. Anular a distinção entre essência e
aparência é um expediente positivista que visa adequar o pensar ao mero existente,
estratégia ideológica que procura assim entificar aquilo que é ou nos jogar em direção à
entificação da pura aparência. Daí porque, neste contexto, Adorno pode afirmar que tanto
Nietzsche quanto os positivistas estariam de mãos dadas.

207
BENJAMIN, Origens do drama barroco alemão
208
idem
209
ADORNO, Kierkegaard, p. 91
210
idem, p. 92
211
Ver BUCK-MORSS, Susan; Logic of disintegration: the object In Origins of negative dialectic
Mas ao invés de determinar a essência como fundamento positivo da determinação
de sentido do que aparece, a essência deve ser compreendida como inadequação do ente ao
seu próprio conceito: “Apenas como contradição entre o ente e o que ele pretende ser que a
essência pode ser reconhecida (erkennen)”212. Elevar a contradição a modo de relação entre
essência e aparência implica em afirmar que a marca da manifestação da essência é o
estranhamento (Fremdheit) em relação à consciência que procura apreendê-la, embora tal
estranhamento não implique em bloqueio completo dos processos de reflexão. Neste
sentido, a essência lembra a não-identidade do que não é posto pelo sujeito, mas que este
próprio sujeito persegue. Isto permite a Adorno dizer que a essência pode ser designada
como: “a negatividade levada ao seu próprio conceito (ihren Begriff gebrachte
Negativität)”213. Mas fica aqui a questão: qual o critério para reconhecermos uma
negatividade que é modo de manifestação da essência e outra negatividade que é apenas
figura de uma experiência de privação? Qual o critério para a determinação da
essencialidade e da inessencialidade do que se apresenta? A resposta de Adorno não deixa
de ser surpreendete, mesmo que já tenha sido utilizada em outros momentos de nosso livro:

Existe uma experiência espiritual, certamente falível mas imediata, do essencial e do


inessencial da qual a necessidade científica de ordem pode dissuadir os sujeitos
apenas com violência. Lá onde tal experiência não é feita, o conhecimento
permanece imóvel e estéril. Sua medida [da experiência] é aquilo que o sujeito
experimenta (widerfahen) objetivamente como seu sofrimento (Leiden)214.

Novamente, vemos o uso de categorias psicológicas para resolver problemas de


ordem epistemológica. Ainda mais uma categoria tão nebulosa quanto sofrimento. Vemos,
novamente, Adorno afirmar algo simétrico ao postulado de que as experiências geradoras
da metafísica só podem ser compreendidas à condição de serem articuladas ao “sofrimento
real” (realen Leiden) que as provocou215.
No entanto, elevar o sofrimento a dispositivo central de reconhecimento da essência
parece uma operação arriscada. Pois deveríamos nos perguntar inicialmente: o sofrimento é
um “fato que fala por si mesmo” ou é um fenômeno que é levado a falar no interior de
contextos sócio-históricos determinados? Lembremos como “o que nos faz sofrer” muda
constantemente de configuração de acordo com contextos sócio-históricos. Neste sentido, o
sofrimento é algo como uma resposta à internalização de exigências sociais de adaptação.
Pois de nada adianta tentar vincular sofrimento e experiência da dor. Sabemos como há
várias situações de dor que não são vivenciadas com o caráter insuportável do sofrimento.
Como dizia Freud: “mesmo a auto-destruição da pessoa não pode se produzir sem
satisfação libidinal”216. Tudo isto nos coloca a questão: de que experiência fenomenológica
Adorno está falando quando se refere ao sofrimento?
Em uma pequena nota de Dialética do Esclarecimento intitulada “Le prix du
progrès”, Adorno cita um carta do fisiologista francês Pierre Flourens contra o uso de
anestesia em operações. Segundo ele, as drogas utilizadas agiriam apenas sobre certos

212
ADORNO, ND, p. 169
213
ADORNO, ND, p. 171
214
idem, p. 172
215
ADORNO, Jargon derEigentlichkeit, p. 438
216
FREUD, O problema econômico do masoquismo
centros motores e de coordenação, mas não sobre as impressões sensoriais. Desta forma, as
dores seriam sentidas, mas o paciente não conseguiria se lembrar delas após a operação. Da
experiência de uma dor que não poderia ser rememorada, ficaria um dano psíquico difuso,
como na noção freudiana de trauma. Pois esta nota apela a uma experiência traumática que
teria sido esquecida pelas promessas de instrumentalização da vida. O sofrimento derivado
de tal experiência é aquele que serve de ponto de orientação para a determinação da
essencialidade e da inessencialidade. Falta saber qual experiência traumática é esta.
A sua maneira Adorno, responde no próximo parágrafo, este intitulado “Mediação
pela objetividade”. Assim como a dialética essência/aparência é reconstruída pela dialética
negativa, a noção de mediação também o é. Trata-se de insistir aqui que aquilo que
mediatiza os fatos não é, como supomos, o mecanismo subjetivo de preformação; até
porque, o julgamento “subjetivo” é apenas o resultado da submissão do sujeito a um
processo objetivo de conformação que Adorno irá descrever nos próximos parágrafos, estes
dedicados à gênese da subjetividade transcendental. Há uma outra mediação que não é
operada pelo poder constitutivo do sujeito, mas pelo próprio objeto, ou ainda, por aquilo
que, no objeto, não se submete a estrutura categorial do sujeito. Esta mediação pelo objeto
significa que toda operação de conhecimento através da qual o sujeito projeta no mundo sua
própria estrutura categorial será mediada pela indissolubilidade daquilo que se determina
como não-conceitual. A este respeito, Adorno insiste que a universalidade da mediação não
exclui o “Algo” com o qual a mediação do sujeito se confronta. A mediação do que aparece
como imediato pressupõe o imediato, da mesma forma que o modo de determinação do
imediato só é possível através da mediação do sujeito. Uma reflexão duplicada permite que
nenhum dos dois termos seja anulado pelo seu oposto.
Neste ponto, Adorno introduz uma consideração “genealógica” a respeito da
mediação operada pelo sujeito. Ele é enunciada da seguinte forma:

Tal razão totalitária e, desta feita, particular foi historicamente ditada pelo caráter
ameaçador da natureza. Este é sua limitação (Schranke). O pensamento
identificador, o deixar sempre idêntico todo não-idêntico, perpetua o declínio da
natureza na angústia (Angst)217.

Neste ponto, podemos voltar ao problema do sofrimento como marca da


manifestação da essência. Já vimos que os usos de categorias psicológicas por Adorno é
sempre um uso interno a uma estratégia de recondução de tais categorias ao estatuto de
categorias descritivas de processos sociais. Neste caso, o fato social a respeito do qual o
sofrimento adorniano alude está vinculado à violência do pensamento contra o que aparece
como ameaçador no interior da natureza. Uma ameaça direcionada, antes de mais nada, ao
Eu como unidade sintética e como função de auto-determinação, imputabilidade e auto-
identidade. O sofrimento é a impossibilidade do sujeito moderno operar relações não-
instrumentais com uma natureza que, como vimos, só pode aparecer de maneira negativa.
Uma natureza que, enquanto natureza interna, será pensada a partir da teoria das pulsões
freudiana, reconciliação com o que não se submete à forma identitária. Deste sofrimento, o
sujeito moderno pode estar anestesiado, como os pacientes dopados de clorofórmio
descritos por Flourens. Mas o esquecimento não é uma forma de anulação. Aquilo que não

217
ADORNO, ND, p. 174
encontra lugar no universo simbólico dos sujeitos, retorna sob a forma de sintomas, sob a
forma de um particular que aparece como resistência.
Por fim, a última categoria a ser recuperada por Adorno é a dialética sujeito/objeto.
Já vimos em outras ocasiões como Adorno procura pensar a dicotomia sujeito/objeto a
partir de uma relação de negação determinada que lhe permite afirmar que:

Na verdade, o sujeito nunca é totalmente sujeito, o objeto nunca é totalmente objeto;


mais os dois não são fragmentos de um terceiro [como um solo imediato do qual
sujeito e objeto se extrairiam] que os transcenderia218.

Ou seja, por um lado, a dicotomia sujeito/objeto impede o recurso a um terceiro


como plano de imanência. Daí porque, para Adorno, ela é uma forma de impedir operações
de totalização, já que a dicotomia sujeito/objeto implica no reconhecimento da cisão entre o
pensar e o pensado. Pois a critica da origem subjetiva da separação não visa unificar o que
foi cindido. Por outro lado, já vimos como Adorno insiste que todo sujeito conserva, no
interior do Si mesmo, um núcleo do objeto, ou seja, algo que só se oferece como ponto
cego à todo processo de reflexão. Daí porque Adorno pode passar a uma crítica baseada na
defesa de uma gênese empírica do sujeito transcendental e, por conseqüência, na
impossibilidade de operar distinções constitutivas entre empírico e transcendental. Esta
crítica é dupla e segue, a sua maneira os moldes do encaminhamento hegeliano. Sua
duplicidade vem do fato de que a noção transcendental de sujeito será critica a partir da
análise da dinâmica de duas funções intencionais maiores: o desejo e o trabalho.
No que diz respeito ao desejo, Adorno adianta um procedimento que ele usará à
exaustão no próximo capítulo de seu livro. Ele consiste em demonstrar que a determinação
do Eu como unidade sintética de apercepções é solidária de um processo psicológico de
formação e de auto-conservação que transforma. Adorno dirá que a consciência autônoma é
derivada da energia libidinal recalcada, que acaba colocando-se como objeto opaco ao
pensar. Sem nenhuma relação à consciência empírica e seus desejos patológicos, não
haveria consciência transcendental puramente espiritual. Proposição ousada que será objeto
demorado de nosso comentário a partir da aula que vem.
No que diz respeito ao trabalho, Adorno apresenta uma proposição ainda mais
ousada. Ela consiste em aproveitar-se de considerações de Alfred Sohn-Rethel que
redundaram no trabalho tardio Geistige und körperliche Arbeit. Grosso modo, Sohn-Rethel
procurava demonstrar, desde trabalhos apresentados na década de 30, que o sujeito
transcendental kantiano já aparece como figura de um processo social de trabalho que visa
a produção da forma-mercadoria, até porque as categorias kantianas de espaço, tempo,
acidente, substância, qualidade, entre outras, estariam presentes no ato social de troca.
Como dirá Sohn-Rethel: “dentro da forma-mercadoria, é possível destacar o sujeito
transcendental”219, como se um fenômeno material fornecesse o fundamento para a
constituição da figura transcendental do sujeito.
Na verdade, o argumento de Sohn-Rethel parte da defesa de que o aparelho
categorial pressuposto pela apreensão conceitual da natureza pelo procedimento científico
que funciona como base para Kant, ou seja, a física newtoniana, já está presente no ato de
trocas de mercadorias: “Antes que o pensamento puro pudesse chegar ao conceito de uma

218
ADORNO, ND, p. 177
219
SOHN-RETHEl, Gesitige und körpeliche Arbeit, p. 12
determinação puramente quantitativa, o sine qua non da moderna ciência da natureza, a
quantidade pura já estava em ação no dinheiro, essa mercadoria que torna possível a
mensurabilidade do valor de todas as outras mercadorias qualquer que seja sua
determinação qualitativa particular”220. Daí porque Adorno pode afirmar que a
universalidade transcendental tem sua realidade na dominação que se afirma e se eterniza
no princípio de equivalência, já que: “a universalidade do sujeito transcendental é a
universalidade da conexão funcional da sociedade”221. Estamos diante de duas formas
complementares de aplicação do princípio de identidade patrocinadas pela dominação
social da natureza.
Um outro ponto importante para Adorno é a noção de Sohn-Rethel de abstração real
presente nas trocas sociais de mercadorias. Por um lado, as trocas sociais são abstratas
devido ao ato real passar ao largo das determinações qualitativas de objeto que
determinariam valores de uso. No entanto, a abstração aqui não é uma abstração do
pensamento, processo que se desenrola no interior do sujeito pensante. Ela é o que sustenta
a realidade do tecido social. Na verdade, ela é o que a sociedade tem de mais real, no
sentido de fundamento. Daí porque Sohn-Rethel deve afirmar: “A abstração de troca não é
o pensamento, mas tem a forma do pensamento”222, o que, por exemplo, desorienta
distinções entre objeto real e objeto do conhecimento.
Neste ponto, devemos nos perguntar: sendo o processo de abstração real aquilo que
é pressuposto pela formação do sujeito enquanto subjetividade transcendental, então como
romper com a abstração fetichista, como operar uma crítica do fetichismo e, com isto,
quebrar este círculo ideológico da identidade que se atualiza na ação de todos os sujeitos
envoltos na dimensão prática? É neste ponto que ganha importância a noção adorniana de
“primado do objeto”.

Primado do objeto e crítica da reificação

Há várias formas de abordar o problema do conceito adorniano de “primado do


objeto”. Uma delas é articulando-a aos imperativos de reconstrução dos procedimentos de
crítica da reificação.
Inicialmente, podemos dizer que o primado do objeto é o resultado da
impossibilidade do sujeito sem pensado sem o objeto e da possibilidade do objeto poder se
manter como um outro diante do sujeito. Mas o primado do objeto não significa a simples
entificação do “dado”. “Primado do objeto significa o progresso da distinção qualitativa do
que é mediado em si mesmo”223. Já vimos anteriormente o modo com que Adorno
recuperava o momento qualitativo da racionalidade através de uma mediação que vai a um
tal extremo que anula as qualidades diferenciadoras da forma. Algo como uma tendência
interna ao próprio material que leva o processo diferenciador para além das estruturas
categoriais que permitem a identificação do sujeito.
Por outro lado, Adorno lembra que o primado do objeto não é acessível através de
uma confrontação imediata com os objetos, mas apenas através de uma reflexão sobre o
sujeito. Maneira de aproveitar o fato de que todo sujeito comporta, no interior do Si mesmo,

220
ZIZEK, O mais sublime dos histéricos, p. 138
221
ADORNO, ND, p. 180
222
SOHN-RETHEL, idem, p. 98
223
ADORNO, ND, p. 185
um núcleo do objeto. Pois o sujeito. Não sendo radicalmente outro em relação ao objeto,
pode apreender a objetividade em geral.
Mas há um ponto que mercê nossa atenção e que diz respeito às articulações entre
negação e experiência do objeto. Tal ponto pode nos esclarecer algumas operações centrais
da reconstrução adorniana da crítica da reificação. Pois devemos levar à sério afirmações
adornianas como:

O negativo que exprime como o espírito, com a identificação, fracassou (milang) a


reconciliação (...) advém o motor de seu próprio desencantamento
(Entzauberung)"224.

Afirmação que apenas nos explica porque:

O que a coisa mesma (Sache selbst) significa não pode ser encontrada de maneira
positiva, imediata; quem quiser reconhecer isto deve pensar mais, não menos que o
ponto de referência da síntese do diverso que, no fundo, não é um pensamento. Pois
a coisa mesma não é um produto do pensamento, ela é a não-identidade através da
identidade. Tal não-identidade não é uma “idéia”, mas algo suplementar a ela. O
sujeito da experiência trabalha para desaparecer (verschwinden) nela. A verdade
seria a ruína do sujeito225.

A partir daí podemos fazer as seguintes afirmações: a coisa mesma não pode ser
encontrada de maneira positiva e imediata porque sua essência é uma negatividade pensada
como não-identidade. Como na dialética hegeliana da essência e da aparência, esta
passagem em direção à essência da coisa mesma, essência que é a posição do primado do
objeto, se produz quando se desvela que: “a nulidade da aparência não é outra coisa que a
natureza negativa da essência”226. Ou seja, a essência aparece quando a aparência é
compreendida como: “o negativo posto como negativo (das Negative gesetzt als
Negatives)”227. Mas para que este negativo seja motor do desencantamento do conceito,
faz-se necessário que o sujeito, de uma certa forma, desapareça diante do objeto. Um
desaparecimento marcado pela astúcia, já que implica em desaparecer sem com isto
entificar alguma forma de ascese irracionalista, pois tal desaparecimento é fruto do
reconhecimento de si no que se coloca na condição de puro objeto opaco.
Algo deste esquema fica claro no parágrafo “Objetividade e reificação”. Aqui,
Adorno expõe claramente sua diferença em relação aos moldes “clássicos” de uma certa
crítica marxista do fetichismo e da reificação.
Sabemos que um dos processos fundamentais presentes no fetichismo da
mercadoria diz respeito à impossibilidade do sujeito apreender a estrutura social de
determinação do valor dos objetos devido a um regime de fascinação pela “objetividade
fantasmática” (gespenstige Gegenständlichkeit) daquilo que aparece. Fascinação vinculada
à naturalização de significações socialmente determinadas. Uma certa crítica do fetichismo
se organizaria a partir daí através da temática da alienação da consciência no domínio da

224
ADORNO, ND, p. 187
225
ADORNO, ND, p. 189-190
226
HENRICH, Hegel im context, p. 117
227
HEGEL, WL I, p. 19
falsa objetividade da aparência e das relações reificadas. Alienação que indicaria a
incapacidade de compreensão da totalidade das relações estruturalmente determinantes do
sentido
Por outro lado, a tomada de consciência resultante do trabalho da crítica pressuporia
a possibilidade, mesmo que utópica, de processos de interpretação capazes de instaurar um
regime de relações não-reificadas que garantam a transparência da totalidade dos
mecanismos de produção do sentido. A crítica viraria assim: “descrição das estruturas que,
em última instância, definem o campo de toda significação possível”228. O que vale para a
crítica social vale também para a arte. Pois, da mesma maneira, haveria uma totalidade de
relações que poderia, de direito, ser revelada em sua estrutura através das obras de arte. As
obras apareceriam como locus de manifestação de uma verdade que é clarificação
progressiva da material devido à possibilidade de posição integral de processos construtivos
e de relações de sentido. Processos muitas vezes recalcados, marcados pelo véu do
esquecimento, mas que poderiam vir à luz através de mecanismos de interpretação e
rememoração inscritos no próprio cerne da obra.
Mas contra este telos da transparência das relações Vale aqui o que diz Adorno na
Dialética negativa : “Não se pode excluir da dialética do subsistente (Dialektik des
Bestehenden) o que a consciência experimenta como estranho enquanto coisificado
(dinghalf fremd)”, pois “o que é estranho enquanto coisificado é conservado” (Adorno 7, p.
192). O coisificado deve ser conservado pois : “este para quem o coisificado é o mal
radical, tende a hostilidade em relação ao outro, ao estranho (Fremde), cujo nome não
ressoa por acaso na alienação (Entfremdung)” (Adorno 7, p. 191). Ou seja, a negação
abstrata do coisificado produz o bloqueio do desvelamento da não-identidade. Desta forma,
a verdadeira crítica, como vemos em toda obra de arte fiel ao seu conteúdo de verdade, não
deve tentar dissolver a fixação fetichista através, por exemplo, da pressuposição utópica de
um horizonte de leitura marcados pelos : “tempos carregados de sentido (die sinnerfülleten
Zeiten) que o jovem Lukács desejava o retorno”. Até porque, se a reconciliação um dia
reinou, ela foi consiguida à base da extorsão. O verdadeiro desafio da crítica consiste em
encontrar a não-identidade através da confrontação com materiais fetichizados, o que
nada tem a ver como alguma forma de hipóstase do arcaico ou do originário.
Isto implica em uma mudança de valores na dimensão da aparência. É ela que
permitirá a Adorno afirmar : “Se os fetiches mágicos são uma das raízes históricas da arte,
um elemento fetichista – distinto do fetichismo da mercadoria – continua misturado às
obras”229. Este outro fetichismo é o investimento libidinal do que se transformou em ruínas.
Este objeto cujo valor vinha da sua submissão dócil à lógica do fantasma (ou ao regime de
abstração da forma-mercadoria), deve ser apresentado em sua opacidade de matéria bruta e
sensível, resto que resiste à identidade fantasmática. Nós podemos falar de um material
anteriormente fetichizado, mas que se transforma em um resto que nos lembra as ruínas da
gramática do fetiche. Desta forma, o objeto que me era o mais familiar pode desvelar seu
estranhamento (Unheimlichkeit) fundamental para a crítica da alienação.

228
PRADO JR., Bento; Alguns ensaios, Paz e Terra, 2000,. p. 210
229
ADORNO, AT, p. 315
Curso Adorno
Aula 11

Na aula de hoje, terminaremos o comentário do capítulo intitulado ‘Conceitos e categorias”.


Com isto, já teremos condições de fornecer uma cartografia dos principais conceitos que
orientam a redefinição adorniana da dialética.
Nós vimos, na primeira aula de nosso curso como a Dialética Negativa poderia ser
compreendida como uma longa digressão a respeito do programa de: “com a força do
sujeito, quebrar a ilusão (Trug) da subjetividade constitutiva”230. Ou seja, contrariamente
aos discursos da morte do sujeito presentes no campo da filosofia contemporânea à época
da edição da Dialética Negativa (lembremos que o livro é quase contemporâneo de projetos
como As palavras e as coisas, de Foucault, com sua utopia de morte do homem), Adorno
acredita ser possível e necessário conservar a categoria de sujeito, mas desprovendo-a de
sua função constitutiva de fundamento para a estruturação categorial dos objetos da
experiência. Como vimos, criticar o caráter constitutivo da subjetividade equivale, para
Adorno, a criticar uma forma do conhecer que é no fundo identificação e projeção do Eu
sobre o mundo (daí o interesse constante de Adorno pela noção freudiana de narcisismo
enquanto comportamento cognitivo), isto no sentido de projeção, no mundo dos objetos, de
estruturas categorias que unificam o diverso da experiência sensível através do princípio de
ligação próprio ao Eu como unidade sintética. As relações do Eu aos objetos seguem o
princípio de ligação e unidade próprio à relação de auto-identidade. É ao menos desta
forma que Adorno lê o caráter constituinte da subjetividade transcendental kantiana, caráter
que serve de pano de fundo para as discussões adornianas a respeito da categoria de sujeito.
A este respeito, Adorno dificilmente poderia ser mais claro. Ele afirma que, para Kant,
pensar é unificar, isto apenas a fim de posteriormente dizer que, no caso de Kant:

O conceito de unidade nunca é discutido ou deduzido de algo outro. Na verdade, ele


representa o cânon graças ao qual tudo pode ser julgado. O fato de que o
conhecimento seja unidade e que a unidade tenha primazia sobre a multiplicidade
pode ser visto como a premissa metafísica da filosofia kantiana (...) A unidade
kantiana não é uma mera homogeneização que resulta de alguma privação da massa
do diverso (...). Esta unidade é entendida por Kant como sendo modelada a partir da
própria unidade da consciência231.

Dito isto, Adorno poderá afirmar que a reconstituição da categoria de sujeito através
da liberação de sua sujeição em relação aos princípios de identidade e de unidade implicaria
em uma reconfiguração profunda do que serve de fundamento à razão moderna. Isto
forneceria as condições para que as operações elementares da razão pudessem ser
reconstruídas e, com elas, a relação entre sujeito e objeto, entre essência e aparência, entre
Eu e outro, entre história e natureza.
Em outras aulas, vimos como este projeto de submeter a crítica da razão a uma
critica do sujeito era um elemento maior na filiação entre Adorno e Hegel. Pois Hegel foi,
sem dúvida, um dos primeiros a compreender que a crítica da categoria de sujeito era a

230
ADORNO, Negative Dialektik, p. 10
231
ADORNO, Kant´s critique of pure reason, pp. 196-197
mola-mestra para uma crítica da razão e de seus processos de racionalização da dimensão
prática. Hegel também quer criticar a noção de que a categoria de sujeito é o locus
privilegiado e constitutivo do princípio de identidade. E, para tanto, trata-se de expor a
gênese empírica do que aparece à consciência moderna como representação natural, como
pura sensação, percepção e entendimento. Uma gênese empírica que pode ser contada,
principalmente, através das categorias materiais do trabalho e do desejo.
De fato, algo disto permanece no interior da estratégia adorniana. Adorno quer
expor a gênese empírica da consciência que aparece como fundamento da razão. Ele se
pergunta sobre como a consciência pode se colocar como princípio de unidade e de
identidade. Por quais processos ela deve passar para que tais princípios apareçam como sua
essência mais profunda. Neste ponto, Adorno dá o passo extremamente arriscado que
consiste em recorrer à psicologia para criticar aquilo que se coloca à consciência filosófica
da modernidade como realidade transcendental. Ele não deixa sequer de assumir, de forma
irônica contra Kant que, na Alemanha, a alma seria algo tão refinado que ela não teria
relação alguma com a psicologia.
No entanto, nós já vimos como este “psicologismo” adorniano é, no fundo, uma
estratégia de submissão da reflexão sobre a estrutura da razão moderna a uma certa crítica
social de larga escala. E, neste ponto, o recurso a Freud é fundamental. A sua maneira,
Adorno vê, em Freud, uma verdadeira antropologia que visa expor a formação da
consciência através da repressão à natureza, da dominação do corpo e dos impulsos e da
unificação de uma sexualidade polimórfica e sem telos. Até o momento em que estamos no
cometário da Dialética Negativa, vimos apenas indícios rápidos desta operação, tão central
em Adorno, de utilizar Freud contra Kant. Mas a partir da aula de hoje, veremos isto de
maneira cada vez mais recorrente, já que as últimas páginas do capítulo “Conceitos e
categorias” devem preparar a crítica à racionalidade da moralidade kantiana através da
desconstrução do caráter constitutivo da subjetividade transcendental. Esta preparação
consistirá na exposição de um conceito de materialismo baseado em uma certa crítica às
conseqüências da distinção corpo e espírito que teria guiado a reflexão sobre a figura
moderna do sujeito. Uma crítica que só poderá realmente revelar sua real extensão através
da identificação insidiosa da presença dos esquemas freudianos.

Do primado do objeto ao corpo

Na aula passada, nós vimos como Adorno introduzia um dos conceitos mais
importantes da Dialética Negativa, a saber, a noção de primado do objeto. Vale a pena
fazermos uma rápida recapitulação até este momento.
Vimos como, ao começar seu capítulo sobre os conceitos e categorias adequado à
dialética negativa, Adorno insistiu que uma dialética verdadeiramente materialista deve
partir do reconhecimento da indissolubilidade da determinação empírica, do sensível, ou
seja, daquilo que Hegel identifica como “Algo” (Etwas) e que, ao menos segundo Adorno,
estaria vinculada à dimensão da sensação (Empfindung) e do indissoluvelmente ôntico. Tal
reconhecimento da indissolubilidade do “Algo” permite a alteração das expectativas de
identidade do conceito e do próprio sujeito cognoscente. Uma alteração que leva o pensar a
operar através daquilo que Adorno chama de “lógica da desintegração”, ou seja, movimento
de exposição do processo de desintegração da forma objetificada e reificada do conceito.
Uma desintegração resultante do fato de Adorno insistir que “Algo” designa aquilo do qual
não podemos nos livrar através do uso do conceito.
No entanto, Adorno poderia, a partir desta defesa da irredutibilidade do sensível,
fazer apelo a alguma forma de retorno ao imediato da sensação ou a alguma forma de
“mostrar” que não se submete ao “conceitualizar”, isto em uma chave que será explorada,
por exemplo, por Jean-François Lyotard. O mesmo Lyotard que dirá, a respeito da
irredutibilidade do sensível : “a exterioridade do objeto do qual se fala não diz respeito à
significação, mas à designação”232. Pois a referência: “pertence ao mostrar, não ao
significar, ela é insignificável”233. Lyotard insiste no fato de que a Aufzeigen capaz de nos
abrir a uma experiência da ordem do sensível nunca será totalizada em uma linguagem
dialética. Ele chegaa falar de um deixar-estar do objeto fora da linguagem, embora não se
trate de uma hipóstase do inefável. Sua estratégia consiste antes em colocar um espaço
figural que pode se manifestar também na ordem da linguagem: “No entanto, não é como
significação, mas como expressão”234. Algo que se mostra, ao invés de se deixar dizer.
Ao invés de seguir esta perspectiva, Adorno procurou desenvolver uma longa
reflexão sobre modos de conceitualização não-dependentes de alguma forma de
pensamento da adequação ou de imanência entre conceito e objeto. Daí a importância
central de noções como constelação e modelo. Vimos como a noção de constelação
pressupunha um modo de relação entre conceito e objeto no qual o sujeito proposicional
deve ser posto como elemento opaco ao qual se reporta a predicação. Isto ficava claro em
afirmações precoces como:

o que permanece opaco à pura contemplação (Anschauung), o que escapa, como


conteúdo, à forma categorial transparente, isto é o que o pensamento realmente quer
ler nas figuras inscritas nos objetos, no contexto de conceitos que a ele
pertencem235.

Por outro lado, podemos ver tal inadequação própria às constelações como algo muito
próximo de um regime de pensamento que pensa por metáforas, ou seja, pensar através um
“ver como” que me permite apreender certos objetos apenas no interior de relações
transversais, já que nenhuma apreensão conceitual direta de conteúdo parece possível.
Vale a pena insistir ainda que esta noção de constelação parece extremamente
dependente de uma certa reflexão estética. Como se Adorno utilizasse um paradigma
estético para constituir categorias responsáveis pela tematização das possibilidades de
realização das aspirações cognitivas da consciência. Por exemplo, não deixa de ser
sintomático o nível de proximidade entre as reflexões adornianas sobre a estrutura
modelizadora das constelações e a forma musical.
Ao pensar a relação entre música e linguagem, Adorno vincula-se a uma longa
tradição, própria à estética musical do romantismo alemão, que insistiu na inadequação da
música à representação determinada devido ao seu caráter não-figurativo. Inadequação à
representação que seria modo de manifestação daquilo que é da ordem do sublime. Adorno
continua nesta via ao afirmar que : “É específico à música que seu caráter enigmático
(Rätselcharakter) seja enfatizado pelo seu isolamento/sua distância (Absonderung) em

232
LYOTARD, Dialectique, index, forme in Discours, figure, Paris: Klicksieck, 1985, p. 50.
233
idem, p. 40
234
LYOTARD, Idem, p. 51
235
ADORNO, Kierkegaard, p. 92
relação à determinação visual ou conceitual do mundo dos objetos”236. Ou seja, a música
constitui estruturas que formalizam a distância em relação à apreensão conceitual direta de
conteúdo. No entanto, esta distância é distância apenas para um pensamento da
representação. Pois Adorno acredita que a música aponta para a verdadeira linguagem para
além da linguagem reificada da representação. Ele afirma que esta verdadeira linguagem é
revelação do conteúdo/abertura ao conteúdo mesmo (der Gehalt selber offenbar wird).
Anteriormente, ele já havia que, na música, conservava-se a tentativa de enunciar o Nome
divino como marca da presença da coisa. Lembremos de afirmações como:

A linguagem músical é uma linguagem distinta da linguagem conceitual (meinenden


Sprache). Nisto reside seu aspecto teológico. O que é dito é, como fenômeno, ao
mesmo tempo determinado e escondido. Sua Idéia é a forma do Nome divino237.

No entanto, a representação positiva daquilo que a música visa nomear deve


fracassar. Daí porque esta revelação do conteúdo é marcada pela maldição do equívoco,
maldição que faz com que tudo na música sugira sentido, mas nada realize o sentido.
A princípio, tudo isto poderia parecer uma aporia sem saída, como em uma
estetização de uma teologia negativa. A música procura enunciar o Nome, mas sua tentativa
é vã. Mesmo a hipótese da música como veículo de uma metafísica do sublime parece ser,
ao mesmo tempo, abraçada e criticada por Adorno:

A linguagem conceitual procura dizer o absoluto de maneira mediada e este absoluto não
cessa de lhe escapar em cada uma de suas intenções particulares, deixando-as para trás
como finitas. A música alcança o absoluto imediatamente mas, ao mesmo tempo, ele lhe
advém obscuro, como o olho que se cega diante de uma luz excessiva, incapaz de ver o
que é perfeitamente visível238.

Tudo isto parece nos levar a concordar com Albrecht Wellmer, para quem : “A
estética da negatividade de Adorno revelou suas características rígidas; algo artificial ficou
visível em suas construções aporéticas, e uma tradicionalismo latente ficou aparente em
seus julgamentos estéticos”239. Tradicionalismo que nos levaria diretamente a uma certa
experiência fundamental da finitude, o que justificaria as críticas de Lyotard à “estética da
negatividade” de Adorno. Mas se é verdade que a noção de constelação aproxima-se
radicalmente da problemática esboçada pela forma musical, então o problema é ainda mais
grave. Pois isto nos levaria, no limite, a submeter as expectativas cognitivas da razão a uma
teologia negativa de um objeto que só se dá, só se abre através de sua ausência, de um outro
a respeito do qual só podemos evocá-lo, e nunca nomeá-lo.
De fato, este tipo de crítica ainda é desferida contra Adorno. Lembremos, por
exemplo, do que diz Seyla Benhabib a propósito de Adorno: “A rigor, a tarefa de Adorno é
mostrar a superfluidade daquilo que é; mostrar que o objeto desafia o seu conceito e que o
conceito está fadado ao fracasso em sua busca da essência. Adorno mina os próprios

236
ADORNO, Da relação entre música e filosofia, In: Musikalische Schriften V, G 18, p. 153
237
ADORNO, Fragmentos sobre música e linguagem In: Quasi una fantasia
238
idem,
239
WELLMER, The persistence of modernity, p. 2
pressupostos conceituais da crítica imanente que pratica. A dialética negativa converte-se
em uma dialética da negatividade pura, da contestação perpétua do real”240.
No entanto, tais críticas não fazem totalmente jus à problemática que Adorno
procura desenvolver. Até porque, não sabemos exatamente o que pode significar “fracasso”
neste contexto. Há formas de “fracasso da conceitualização” que podem muito bem ser
regimes de manifestação de objetos que só se põem de forma negativa. Novamente, tudo
depende da maneira com que compreendemos as negações. Pensando em problemas desta
natureza, Adorno desenvolveu dois conceitos a fim de dar conta do modo de determinação
dialética da relação entre forma (seja ela estrutura conceitual organizada em constelações,
seja ela forma musical) e conteúdo. Tratam-se dos conceitos de “primado do objeto” e
“resistência do material”. Este dois conceitos se articulam no interior do nosso texto de
maneira decisiva.
Sobre a noção de primado do objeto, nós já vimos algumas considerações iniciais na
aula passada. O objeto a respeito do qual fala Adorno não é mera aparência fenomenal ou
pólo reificado das projeções do sujeito constituinte. Ele não é simplesmente o que se
submete integralmente a um pensamento identificador. No entanto, ele também não é um
dado acessível imediatamente à pura sensação (mesmo que se trate da afecção estética). Daí
porque Adorno deve fazer afirmações como:

O que a coisa mesma (Sache selbst) significa não pode ser encontrada de maneira
positiva, imediata; quem quiser reconhecer isto deve pensar mais, não menos que o
ponto de referência da síntese do diverso que, no fundo, não é um pensamento. Pois
a coisa mesma não é um produto do pensamento, ela é a não-identidade através da
identidade. Tal não-identidade não é uma “idéia” [por trás do fenômeno], mas algo
suplementar (Zugehängtes) a ela. O sujeito da experiência trabalha para desaparecer
(verschwinden) nela. A verdade seria a ruína do sujeito241.

Ao utilizar o vocabulário hegeliano da coisa mesma, Adorno indica que o problema


do primado do objeto visa dar conta do que é da ordem da essência em sua manifestação.
Ou seja, contrariamente a uma teologia negativa, há, para Adorno, um modo de
manifestação do que é da ordem da essência. No entanto, a coisa mesma não pode ser
encontrada de maneira positiva e imediata porque sua essência é uma negatividade pensada
como não-identidade. Como na dialética hegeliana da essência e da aparência, esta
passagem em direção à essência da coisa mesma, essência que é a posição do primado do
objeto, se produz quando se desvela que: “a nulidade da aparência não é outra coisa que a
natureza negativa da essência”242. Ou seja, a essência aparece quando a aparência é
compreendida como: “o negativo posto como negativo (das Negative gesetzt als
Negatives)”243. Daí porque a coisa mesma não é uma idéia por trás dos fenômenos (um
pouco como na noção benjaminiana de constelação). Ela é aquilo que resta quando
negamos o caráter organizador da aparência.
De fato, tudo isto pode parecer considerações totalmente abstratas. Mas Adorno tem
em mente experiências bastante precisas. Nós vimos, na aula passada como Adorno

240
BENHABIB, A crítica da racionalidade instrumental In: ZIZEK, Um mapa da ideologia, p. 85
241
ADORNO, ND, p. 189-190
242
HENRICH, Hegel im context, p. 117
243
HEGEL, WL I, p. 19
lembrava que o primado do objeto não é acessível através de uma confrontação imediata
com os objetos, mas apenas através de uma reflexão sobre o sujeito. Maneira de aproveitar
o fato de que todo sujeito comporta, no interior do Si mesmo, um núcleo do objeto. Quando
Adorno afirma a necessidade do sujeito, de uma certa forma, desaparecer diante do objeto,
devemos entender simplesmente que se trata de um desaparecimento do poder constituinte
e identitário do sujeito. Um desaparecimento que ocorrerá, necessariamente, se levarmos
em conta o longo processo de degradação do corpo na constituição do conceito moderno de
sujeito. Desta forma, a estratégia de Adorno pode ser descrita da seguinte forma: se é
verdade que o sujeito retira de sua própria experiência de auto-identidade o princípio de
ligação que permite a constituição dos objetos da experiência, trata-se de demonstrar como
esta experiência de auto-identidade só foi possível através de um recalcamento do que é da
ordem do corpo. Assim, compreender o sujeito como um “sujeito encarnado” significará
encontrar, no coração mesmo do sujeito, uma abertura à não-identidade que me permitirá
reorientar a relação aos objetos. Alain Badiou, comentando Adorno, compreendeu isto
claramente ao afirmar: “o não-idêntico ao pensamento não se dá ,evidentemente, como
pensamento. Ele se dá inevitavelmente como afeto e como corpo”244.
No fundo, Adorno opera com um esquema bastante próximo daquele que podemos
encontrar em Merleau-Ponty. Ele consiste em dizer que a compreensão de que a relação do
sujeito ao corpo já é uma relação marcada pela opacidade e pela alteridade permite a
constituição de relações gerais à alteridade do mundo dos objetos e do outro. A este
respeito, lembremos desta colocação fundamental da Fenomenologia do Espírito (que já
adianta algumas operações que levarão Merleau-Ponty a constituir seu conceito do
“carne”): “A evidência de outrem é possível porque não sou transparente para mim mesmo,
e porque minha subjetividade arrasta seu corpo atrás de si (...) Outrem nunca é inteiramente
um ser pessoal se sou absolutamente um eu mesmo e se me apreendo em uma evidência
apodítica. Mas se por reflexão encontro em mim mesmo, com o sujeito que percebe, um
sujeito pré-pessoal dado a si mesmo, se minhas percepções permanecem excêntricas em
relação a mim mesmo enquanto centro de iniciativas e de juízo, se o mundo percebido
permanece em um estado de neutralidade, nem objeto verificado, nem sonho reconhecido
como tal, então tudo aquilo que aparece no mundo não está no mesmo instante exposto
diante de mim, e o comportamento de outrem pode figurar ali”245. Podemos dizer que há
algo de profundamente adorniano nesta forma de abrir a relação ao objeto e ao outro
através da determinação da relação ao corpo como uma relação excêntrica, descentrada.
No entanto, fica aqui uma questão maior: de onde Adorno retira esta noção do corpo
como espaço do descentramento e do irredutivelmente outro em relação a um sujeito
marcado por ser o solo do princípio de identidade e de unidade? É neste ponto que um certo
recurso à psicanálise freudiana começará a se fazer sentir de forma maciça. Mas antes de
entrar nestas considerações, vale a pena reconstruir o trajeto desenvolvido por Adorno nas
últimas páginas do nosso capitulo da Dialética Negativa.

Um materialismo somático

Através da passagem ao primado do objeto, dirá Adorno, a dialética advém


materialista. Mas o que devemos compreender por materialismo neste contexto? Primeiro,

244
BADIOU, Dialectique négative – deux conférences
245
MERLEAU-PONTY, Fenomenologia da percepção, p. 472
devemos lembrar que o materialismo adorniano não pode ser um materialismo histórico no
sentido tradicional do termo, já que este pressupõe a estrutura sintética e teleológica de uma
consciência histórica. Vale para Adorno o que Foucault dizia à mesma época: “A história
contínua é o correlato indispensável da função fundadora do sujeito; a garantia de que tudo
que lhe escapou poderá ser devolvido; a certeza de que o tempo nada dispersará sem
reconstituí-lo em uma unidade recomposta”246.
Digamos que, por um lado, o materialismo de Adorno é crítica ao idealismo
enquanto crítica ao caráter constituinte do sujeito na determinação da configuração da
experiência. Por outro lado, ele é abertura em direção a uma experiência metafísica que se
dá através da confrontação com o sensível e com a temporalidade. Neste sentido, podemos
lembrar desta afirmação de Adorno a Scholem: “o que chamo de primado do objeto, neste
debate em toda imanência gnoseológica (...) parece-me ser, uma vez que nos livramos do
idealismo, o resultado de se fazer justiça ao materialismo. Os argumentos pertinentes que
creio ter produzido contra o idealismo apresentam-se (...) como materialistas. Mas no
coração deste materialismo, não há nada de terminado, nenhuma visão do mundo, nada que
seja fixo. É esta via em direção ao materialismo totalmente diferente do dogma que me
parece caucionar esta afinidade com a metafísica, eu teria quase dito: com a teologia (...) A
intenção de salvar a metafísica é efetivamente central na Dialética Negativa”247.
Aqui, encontramos uma articulação absolutamente improvável, mas fundamental
em Adorno, entre materialismo e “experiência metafísica”. Pois não é nem um pouco
evidente que uma perspectiva materialista deva aceitar a realidade de algo como uma
experiência metafísica. Nem é evidente o que leva Adorno a afirmar: “o curso da história
conduz, ao materialismo, o que era tradicionalmente contrário a ele: a metafísica”248.
Primeiro, devemos nos perguntar sobre o que significa esta noção de “experiência
metafísica”, de uma realidade metafísica que se dá no campo da experiência e que será,
inclusive, o foco do último capítulo da Dialética negativa. Sabemos que quem diz
metafísica diz, necessariamente, experiências que possam preencher critérios gerais de
universalidade e de invariabilidade capazes de orientar o pensamento. Tais experiências
produziriam estruturas conceituais como: ser, essência, fundamento etc. A este respeito,
Adorno chega a afirmar: “A metafísica é a forma da filosofia que toma por objeto os
conceitos” (daí porque um dos mais importantes projetos metafísicos do século XIX é uma
ciência da lógica). Mas este “tomar por objeto os conceitos” não significa exauri-los em
definições nominais prévias. Trata-se, fundamentalmente, de indicar como os conceitos
encontram, na efetividade, experiências que
Uma resposta operacional poderia ser dada retornando ao debate Adorno/Heidegger.
Vimos como a Dialética Negativa começava com uma crítica a Heidegger porque a
experiência metafísica adorniana precisava se distinguir da ontologia heideggeriana do ser.
Pois vimos como, entre os dois, joga-se uma partida complexa na qual se decide os modos
de relação entre ontologia e negação. Podemos mesmo dizer que um dos pontos
fundamentais deste jogo está na distinção que podemos fazer entre duas figuras da negação:
o “nada” heideggeriano como figura de manifestação do Ser e a “não-identidade”
adorniana. Enquanto a ontologia heideggeriana afirma a transcendência do Dasein,
transcendência esta que se manifesta através da nadificação do ente; a experiência

246
FOUCAULT, Arqueologia do saber, p. 14
247
ADORNO, Carta a Scholem 14/03/1967 apud MÜLLER-DOOHM, Adorno, Paris, Gallimard, 2003
248
ADORNO, ND, p. 358
metafísica adorniana afirma na não-identidade do sujeito, não-identidade esta que se
manifesta através da materialidade do corpo. Tentemos então entender como uma certa
experiência do corpo poderia nos abrir à dimensão de uma experiência metafísica.
Já na Dialética do esclarecimento, Adorno afirma que há uma “outra história” onde
se lê uma história da mutilação do corpo e do recalcamento das pulsões. História vinculada,
entre outras coisas, ao primado do trabalho ascético que culpabiliza toda exigência de
satisfação pulsional e que instaura a internalização de processo de submissão disciplinar do
corpo. Uma submissão disciplinar cuja figura privilegiada é a redução do corpo a um corpo
objetificado, objeto submetido a leis de conexão de sensações e atos, partes extra partes, ou
seja, objeto organizado a partir de uma certa figura do entendimento. Aqui, encontramos o
Adorno leitor do Mal-estar na civilização com sua posição de indissociabilidade entre o
trabalho da civilização e a repressão das moções pulsionais.
No entanto, Adorno quer utilizar este esquema não apenas para descrever o destino
do desejo no interior de uma sociedade do trabalho. Ele quer mostrar como este processo de
mutilação e recalcamento é a condição empírica fundamental para a constituição do Eu
como sujeito do conhecimento. Trata-se de um problema epistêmico derivado do modo de
desenvolvimento de um processo de auto-determinação do sujeito. Pois a constituição do
objeto do conhecimento pressuporia a perda de algo da ordem do corporal. É tendo isto em
vista que Adorno pode afirmar que a divisão moderna entre entendimento e sensibilidade é
uma produção social ligada ao recalcamento do corpo e do sensível, até porque “toda
sensação é também, em si mesma, sensação corporal (Korpergefühl) ”249. No entanto, que o
objeto da sensação apareça como dado bruto ou pura multiplicidade não-estruturada, isto é
apenas o resultado de uma certa divisão mente-corpo. Ultrapassar esta divisão
sensibilidade/entendimento constitutivo pressupõe insistir no papel central do Momento
somático (somatisches Moment ou leibhafte Moment) no interior do pensamento conceitual:
“Irredutível, o momento somático é o momento não puramente cognitivo do
conhecimento”250. Ele é a inquietude (Unruhe) que coloca o conhecimento em movimento.
Isto implica, por sua vez, em aceitar que as performances cognitivas do sujeito do
conhecimento e suas ações na dimensão prática são afetadas pelo corporal. Mais, ainda. Isto
implica em aceitar que a distinção entre corpo e espírito é também um produto social.
Mas aqui, devemos colocar a questão: de que corpo fala Adorno? O que é uma
experiência do corpo para além desta submissão do corpo à condição de objeto partes extra
partes? Podemos dizer que Adorno tem em vista algo muito próximo do corpo pulsional
freudiano. Basta estar atento à importância dada por Adorno a noções claramente marcadas
de ressonância psicanalítica como impulso (Impuls, Trieb, Drang), isto a ponto de afirmar
que “as motivações mais distantes do pensamento alimentam-se dos impulsos”251 já que:
“se as pulsões (Trieb) não são superadas (aufgehoben) pelo pensamento, o conhecimento
advém impossível e o pensamento que mata o desejo, seu pai, vê-se supreendido pela
vingança da estupidez” 252. Por outro lado, que a construção do conceito adorniano de
impulso seja guiada pelas considerações psicanalíticas sobre a pulsão, isto fica
absolutamente claro se lembrarmos de afirmações como: “A consciência nascente da
liberdade alimenta-se da memória (Erinnerung) do impulso (Impuls) arcaico, não ainda

249
ADRONO, ND, p. 156
250
ADORNO, ND , p. 156
251
ADORNO, Minima moralia, art. 79
252
ADORNO, Minima moralia, 79
guiado por um eu sólido”253. Na verdade, vemos aqui como Adorno tem em vista as
moções pulsionais auto-eróticas.
A princípio, esta afirmação parecia algo totalmente temerário. Estaria Adorno
colocando em marcha alguma forma de psicologismo selvagem que submete as
expectativas cognitivas a interesses prático-finalistas vinculado à satisfação das pulsões?
Ou estaria ele insistindo, e aí na melhor tradição que encontramos também em Nietzsche e
Freud, que a razão configura seus procedimentos (ou seja, ela define o que é racional e
legítimo) através dos interesses postos na realização de fins práticos, interesses que nos leva
a recuperar a dignidade filosófica de categorias como “impulso”, “desejo” etc.? Se este for
o caso, então devemos nos perguntar sobre quais tipos de interesse aparecem quando
tentamos apreender o que é da ordem do impulso.
Aqui, Adorno tira várias conseqüências da idéia freudiana segundo a qual as pulsões
são pulsões parciais, não submetidas inicialmente a estrutura unificadora de um Eu e a
imagem unificada de um corpo próprio. A constituição desta unidade exige uma espécie de
corte que inaugura, entre outras coisas, uma disjonction entre ce qui est de l’ordre du sexuel
et ce qui est de l’ordre de sa représentation. Il insiste que l’unification des pulsions partiels
à travers le primat phallique n’est que la soumission de la libido au pouvoir synthétique
d’un moi fondamentalement narcissique . D’où l’affirmation majeure :

C’est une belle utopie sexuelle de ne pas être soi-même et d’aimer, même dans la
femme aimé, autre chose qu’elle même : négation du principe du moi (Ichprinzips).
Celle-ci fait vaciller cette constante de la société bourgeoise au sens le plus large,
qui a toujours visé l’intégration [qui est produite par le pouvoir d’unification de la
pulsion de vie], c’est-à-dire, l’exigence d’identité. Au départ, elle était à constituer ;
pour finir, il faudrait à nouveau la supprimer. Ce qui n’est qu’identique à soi-même
ignore le bonheur. Dans cette focalisation génitale sur le moi et sur l’autre, tout
aussi repliée sur soi, et que la mode n’a pas par hasard qualifié de partenaire, il y a
narcissisme »254.

D’un côté, on voit clairement comment le narcissisme apparaît comme puissance


d’unification propre au fantasme. D’autre, le recours aux pulsions partielles en tant que
puissance de rupture du moi et de blocage de l’hypostase de l’identité est une stratégie
absolument compréhensible. Il est possible de mieux cerner ce point si l´on se souvient que
le sujet doit perdre ses liens symbiotiques avec des objets des pulsion partielles auto-
érotiques, cela à fin de se socialiser dans le champ intersubjectif du langage. C’est une
motif majeur de la littérature psychanalytique : le bébé vit dans un état d´indifférenciation
symbiotique qui doit être rompu pour que les processus de socialisation puissent opérer.
Néanmoins, cette rupture empêche le sujet de se confronter avec ce que ne se soumet pas à
l’individuation dans le champ de socialisation du langage, ainsi qu’à l’image individuel du
corps propre. Ainsi, la subjectivation de la pulsion ne sera pas liée à la position de
dimensions expressives des individus socialisés. Elle sera liée à la reconnaissance du sujet
dans ce qui ne porte pas son image, qui ne porte pas les marques de l’individuation.
Des auteurs comme Habermas ne peuvent voir dans cette stratégie qu’une étrange
« utopie sexuelle qui a l’odeur d’esthétisation de la violence contre soi. D’où une

253
ADORNO, ND, p. 221
254
idem, p. 82
affirmation comme: ‘le thème d’un moi qui revient à la nature prend plutôt chez Adorno les
traits d’une utopie sexuelle et d’un certain anarchisme. Parfois il laisse cette utopie d’une
nature réconciliée avec la civilisation perdre presque insensiblement de son éclat, parce
qu’il désespère de sa possibilité, et finalement se confondre avec cette nature attirante qui
en fait paye ses bienfaits d’un abandon de l’individuation »255. Mais, pour Adorno, il s’agit
en fait d’opérer un recours à la nature qui s’articule, à partir surtout de la notion freudienne
de pulsion, qui permet de déterminer les coordonnés pour la critique d’une pensée de
l’identité.
Talvez, esta aproximação nos ajude a compreender como Adorno pode apelar a uma
recuperação da experiência sensível sem caminhar, com isto, em direção à hipóstase do não
conceitual ou a um empirismo estranho ao pensamento dialético. Pois se trata também aqui
de encontrar uma experiência ligada a isto que, no corpo, não se submete às estruturas
unificadoras do Eu. Isto talvez nos explique esta afirmação surpreendente a propósito da
gênese da negação dialética: “Toda dor e toda negatividade (Negativität), motor do
pensamento dialético, são a figura mediada de múltiplas formas e às vezes irreconhecível
(unkenntlich) do físico (Physischen)"256. A negação (conceito central para o pensamento
dialético) vem do físico: proposição que pode ser vista como a radicalização de uma
perspectiva materialista.
É claro, não se trata aqui de uma recaída na filosofia da natureza ou em uma posição
subreptícia de um princípio de imanência patrocinado pela noção de impulso. Esta negação
do físico é resistência da não-identidade do sensível à apreensão conceitual. Ao falar da
necessidade de um materialismo sem imagens, Adorno afirma: “eis aí o conteúdo de sua
negatividade [do materialismo]"257. Negatividade desprovida de imagem que se realizará no
advento da carne (Fleisches). E é exatamente aí, no reconhecimento da irredutibilidade da
carne, que o sujeito poderá enfim se colocar como figura não dependente de um
pensamento da identidade. Isto talvez nos explique estas afirmações surpreendentes de
Adorno segundo a qual a experiência metafísica encontra atualmente sua manifestação
nesta zona de fascinação infantil pela informidade do que está em putrefação, pelo odor
moribundo da decomposição, ou seja, destas experiência que lembram ao sujeito que há
algo nele que insiste para além de toda forma.

255
HABERMAS, Profils philosophiques et politiques, p. 239
256
ADORNO, ND, p. 202
257
ADORNO, idem, p. 201
Curso Adorno
Aula 12

Com a aula de hoje, iniciamos a terceira parte da Dialética Negativa, esta que tem por título
“Modelos”. Analisaremos apenas o primeiro capítulo desta terceira parte: “Liberdade: para
uma metacrítica da razão prática”.
Na nossa primeira aula, eu havia lembrado a vocês que Kant, ao final da Crítica da
razão pura, insistia que até então o conceito de filosofia tinha sido apenas um conceito
escolar, ou seja: “o conceito de um sistema de conhecimento que apenas é procurado como
ciência sem ter por fim outra coisa que não seja a unidade sistemática desse saber, por
conseqüência, a perfeição lógica do conhecimento”258. A este conceito escolar, ele
contrapunha um conceito cósmico (que diz respeito ao que interessa a todos) no qual a
filosofia poderia aparecer como a ciência da relação de todo o conhecimento aos fins
essenciais da razão (teleologia rationis humana). Destes fins essenciais, poderíamos derivar
dois objetos: “a natureza e liberdade e abrange assim tanto a lei natural como também a lei
moral”.
De fato, estes dois objetos de um conceito cósmico de filosofia são os dois
principais modelos indicados por Adorno na última parte de sua Dialética Negativa: a
liberdade (o objeto do primeiro capítulo - Liberdade: para uma metacrítica da razão
prática) e a natureza articulada de maneira dialética com seu oposto, a história (o objeto do
segundo capítulo – Espírito do mundo e história natural : Digressão sobre Hegel). O
último capítulo, Meditações sobre a metafísica, está muito próximo de uma certa digressão
a partir dos resultados do capítulo dedicado à Hegel.
Por outro lado, nós já sabemos que Adorno definia a dialética negativa como
conjunto de análises de modelos. Assim, a lógica de apreensão de objetos através de
modelos será aplicada à análise da noção de liberdade. Mas o que isto pode significar?
Lembremos como Adorno insistia no fato do modelo ser fundamentalmente aquilo capaz de
formalizar a tensão entre a imersão na singularidade do objeto e exigências de apreensão
estrutural que exigem movimentos de transcendência. Em Crítica cultural e sociedade,
Adorno lembrava que: “só é capaz de acompanhar a dinâmica do objeto aquele que não
estiver completamente envolvido por ele”259. Ou seja, acompanhar a dinâmica do objeto
implica em apreender suas determinações estruturais, estas mesmas determinações que
podem ser perdidas pela fascinação pela reificação da aparência. No entanto, a verdadeira
análise de modelos não se contenta com este “desvelamento” estrutural todo ele inspirado
em uma teoria da segunda natureza, embora ela deva recorrer a tal desvelamento. No
entanto, ela procurará também expor, no interior do próprio objeto tal como ele é fornecido
à experiência, a contradição entre seu conceito e sua determinação fenomenal. É isto que
Adorno tem em vista ao falar da necessidade de pensar a “diferença imanente do fenômeno
com suas aspirações (beansruchen)”260.
Aplicado ao problema da liberdade, podemos dizer que não se trata para Adorno de
apenas apreender as determinações sócio-estruturais que produziram a noção burguesa de
liberdade. Não interessa a Adorno fazer a redução simples da liberdade na modernidade
burguesa, como se estivéssemos diante de um “falso problema” que se dissiparia a partir do

258
KANT, Crítica da razão prática, Lisboa, Calouste Gulbenkian, A 839/B867
259
ADORNO, Prismas, São Paulo, Ática, p. 19
260
ADORNO, ND, p. 48
momento em que sua dependência a contextos sócio-históricos determinados fosse
desvelada. Trata-se também de expor, no interior da própria noção de liberdade tal como
ele se manifesta na experiência, a contradição entre seu conceito e sua determinação
fenomenal. Maneira de insistir que há um conteúdo de verdade no conceito de liberdade.
Caberá à reflexão saber como e porquê tal conteúdo inverte suas disposições ao ser
efetivado (ou seja, como a liberdade pode inverter-se em heteronomia, como a moralidade
pode inverter-se em perversão). Caberá à reflexão saber ainda como não cair mais em tais
inversões. Isto será fundamental para a viabilidade em fornecer critérios para a orientação
de uma experiência moral possível.
Sabemos que Adorno discute a possibilidade de uma experiência moral através de
uma leitura recorrente da filosofia prática kantiana. Podemos mesmo dizer existir três
momentos privilegiados desta confrontação entre Adorno e Kant, no que diz respeito ao
problema da experiência moral: o capítulo da Dialética do Esclarecimento intitulado
“Juliette ou Esclarecimento e moral”, o curso “Problemas de filosofia moral” proferido em
1963 e este capítulo da Dialética Negativa. Outros dois textos importantes para este dossier
são: Mínima moralia e o curso “A Crítica da razão pura, de Kant”, proferido em 1959.
Alguns comentadores insistem que nosso capítulo da Dialética Negativa
representaria uma certa atenuação da crítica à moralidade kantiana tal como ela foi exposta
em “Juliette ou Esclarecimento e moral”. Lá, tratou-se, de maneira sumária, em demonstrar
como uma perspectiva filosófica que na fundamentação da experiência moral através da
dedução transcendental de uma vontade pura, dedução capaz de afirmar a dimensão da Lei
moral contra o primado dos objetos empíricos na determinação da vontade, não poderia, no
limite, distinguir mais moralidade e perversão. Daí a aproximação inusitada entre Kant e
Sade.
A este respeito, lembremos rapidamente que, se Kant soubesse que no século XX
sua filosofia prática encontraria críticos que a acusariam de não ser capaz de responder à
perversão, ele teria certamente achado isto, no mínimo, cômico. Pois Kant concebera uma
réplica possível a críticas desta natureza. Para ele, o ato de transgredir a Lei já demonstrava
como o perverso aceitava a realidade objetiva de uma lei: "que ele reconhece o prestígio ao
transgredi-la"261. Quer dizer, ao transgredir eu reconheço a priori a presença da Lei em
mim mesmo. Eu apenas não sou capaz de me liberar da cadeia do particularismo do mundo
sensível. O desejo de transgressão apenas funciona como prova da universalidade da Lei.
No entanto, Adorno tentara demonstrar como a natureza do desafio sadeano, por
exemplo, é de uma ordem mais complexa. Sua perversão não consiste na hipocrisia ou na
má-fé de esconder interesses particulares através da conformação da ação à forma da Lei.
Adorno procurou mostrar como os personagens de Sade eram impulsionados pela
obediência cega a uma Lei moral estruturalmente idêntica ao imperativo categórico
kantiano. O que lhe permitia dizer que, neste sentido:

Juliette não encarna nem a libido não sublimada, nem a libido regredida, mas o
gosto intelectual pela regressão, amor intellectualis diaboli, o prazer de derrotar a
civilização com suas próprias armas. Ela ama o sistema e a coerência e maneja
excelentemente o órgão do pensamento racional262.

261
KANT, Grundlegung, p. 455.
262
ADORNO ET HORKHEIMER, Dialética do esclarecimento, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, pp. 92-93
Juliette não está acorrentada ao particularismo da patologia de seus interesses; ela também
age por amor à Lei. Pois a perversão seria uma forma de vontade pura que transforma sua
pureza em impulso de destruição dos objetos empíricos (sadismo) ou em alguma das
múltiplas formas de rebaixamento do sensível
Não se trata aqui de retomar toda a estrutura complexa do argumento adorniano,
mas apenas de indicar que este impasse na estratégia de determinação transcendental da
vontade pura e livre irá servir de pano de fundo para a abordagem da Dialética Negativa.
Neste sentido, é verdade que Adorno procura, a sua maneira, explorar as ambigüidades do
encaminhamento kantiano e, com isto, fornecer as coordenadas para a reflexão sobre a
experiência moral, o que parecia bloqueado em “Juliette ou Esclarecimento e moral”. Mas,
como veremos, este esforço para delinear um conceito positivo de razão prática não
invalida nada do que foi posto vinte anos antes.
Na aula de hoje, iremos até o parágrafo “Determinação dialética da vontade”. Neste
trecho do texto, veremos um movimento composto basicamente por três estratégias.
Primeiro, trata-se de insistir, contra uma certa tendência kantiana a conceber a auto-
consciência do sujeito moral como desprovida de relação constitutiva ao outro (já que a
consciência da lei moral parece se dar no interior de uma auto-reflexividade solitária), que
devemos reconhecer o caráter prévio de uma experiência intersubjetiva constitutiva do
sentido e da configuração de toda e qualquer experiência moral. Não há prioridade
ontológico do sujeito em relação à realidade social. Por isto, Adorno não pode aceitar
proposições como: “Ora, não posso ter a mínima representação de um ser pensante por
experiência externa, mas só pela consciência de mim próprio. Portanto tais objetos não são
mais que a transferência (Übertragung) desta minha consciência a outras coisas, que só
deste modo podem representar-se como seres pensantes”263. Proposições desta natureza
implicam em afirmar que o acesso ao outro se dá através de uma transferência dos
resultados de um processo de auto-determinação da consciência que ocorre sob a forma da
auto-reflexão solipsista.
No entanto, o reconhecimento de uma certa anterioridade da experiência
intersubjetiva não significa dizer simplesmente que toda ação moral deve partir da
adaptação da vontade a quadros fechados de referência fornecido por estruturas
intersubjetivas prévias. Lembremos que Adorno é alguém que não cansa de tentar derivar
conseqüências de uma certa tensão entre exigências da subjetividade e quadros normativos
intersubjetivos. De qualquer forma, tomar a anterioridade da estrutura intersubjetiva de
maneira absoluta implicaria, no limite, isto ao menos para Adorno, em esvaziar a própria
questão da liberdade.
A segunda estratégia do nosso trecho consistirá pois em, reconhecendo o caráter
prévio de uma estrutura intersubjetiva constitutiva do sentido e da configuração de toda e
qualquer experiência moral, deslocar o foco de análise para os desdobramentos do processo
de formação do sujeito. Pois falar em estrutura intersubjetiva constitutiva não significa
apenas afirmar que as ações livres são reguladas por um horizonte de reconhecimento
intersubjetivo, como aquele que encontramos através da temática kantiana do reino dos
fins. Significa mostrar como a própria constituição do sujeito da ação já é resultado de um
processo no qual a intersubjetividade, ou ainda, a realidade social, desempenha papel
fundamental. Daí porque nosso texto é rico em reflexões sobre o processo de formação do
sujeito da ação através da confrontação com a realidade social.

263
KANT, Crítica da razão pura, B 405
Neste sentido, Adorno inova em relação a Kant ao dotar a reflexão sobre a
experiência moral de uma consideração sobre a gênese sócio-psicológica do sujeito da
ação. Conhecemos bem a aversão de Kant pela psicologia empírica na descrição da gênese
desta “forma de representação em geral”264 que, para Kant, é a consciência enquanto
unidade do pensamento categorial. Kant não cansa de afirmar que todos os modos de
consciência-de-si no pensamento são simples funções lógicas e não há sentido algum em se
perguntar sobre a gênese empírica do que é função lógica e forma geral de representação.
“Daqui se infere”, dirá Kant, “a impossibilidade de explicar pelos princípios do
materialismo a minha natureza como sujeito simplesmente pensante”265.
Podemos dizer que um dos aspectos centrais da perspectiva de Adorno incide nesta
impossibilidade. Adorno quer mostrar que há sim um modo de explicação da minha
natureza como sujeito pensante a partir de princípios materialistas. Para tanto, ele faz apelo,
principalmente, a psicanálise freudiana com sua teoria da gênese empírica dos sentimentos
morais através de processos de socialização que se desenrolam, inicialmente, no interior do
núcleo familiar enquanto estrutura intersubjetiva elementar. Daí porque Adorno utiliza, em
nosso capítulo, conceitos psicanalíticos maiores como: supereu, recalcamento, pulsão,
narcisismo, prova de realidade; isto a fim de dar conta do que estaria em jogo na dinâmica
de produção dos sentimentos morais. Por outro lado, como já sabemos, Adorno introduz
tais considerações genéticas freudianas no interior de um quadro mais amplo de
constituição da sociedade burguesa e de seus padrões de socialização e individuação. No
entanto, não se trata, com isto, de assumir explicações materialistas que anulariam
completamente a relevância da temática da liberdade. Adorno quer desativar o conflito
idealista entre a idéia de liberdade e a psicologia, este conflito que faz com que o avanço da
psicologia seja sempre sentido como um esvaziamento da questão da liberdade. Trata-se de
desativar tal dicotomia expondo a gênese da liberdade no interior mesmo do sujeito
psicológico. Pois:

O fato da liberdade ter sido concebida de maneira tão abstrata e subjetiva que a
tendência social objetiva não teve dificuldade em enterrá-la não foi uma das razões
menores que fez com que a idéia de liberdade perdesse seu poder sobre os
homens266.

Desta forma, chegamos à terceira estratégia do trecho que estudaremos hoje. Ela
consiste em afirmar que uma análise da gênese empírica dos sentimentos morais através de
processos subjetivos de formação e individuação demonstra como a constituição de uma
vontade autônoma e livre, esteio para a possibilidade da ação moral, é solidária de
mecanismos complexos de recalcamento e dominação do que é da ordem dos impulsos e do
corpo. Mecanismos estes que se enquadram em um amplo processo de compreensão da
liberdade como aquilo que se coloca em contraposição ao reino da natureza (isto segundo a
estratégia kantiana de contrapor os reinos da liberdade e da natureza).
Neste ponto, Adorno procura avançar em direção a determinação de um conceito
positivo de determinação de uma experiência moral que dê alguma realidade para a noção
de liberdade. Ele insiste que a verdadeira ação moral tem sua causalidade derivada do que

264
KANT, Crítica da razão pura, A 346/B 404
265
idem, B 420
266
ADORNO, ND, p. 215
Adorno chama de “suplemento” (Hinzutretende) corporal, um suplemento que demonstraria
como a vontade moral não é totalmente pura, mas é patológica no sentido de se vincular de
maneira privilegiada a algo de empírico. O que, é claro, coloca problemas maiores para as
exigências de universalidade do ato moral. E, pensando exatamente em tais problemas,
Adorno chegará a conclusão de que: “todo ato moral é falível”. Veremos melhor na aula de
hoje o que isto pode querer significar.

Liberdade e natureza

Antes de entrarmos diretamente no texto adorniano, vale a pena uma exposição


esquemática de algumas temáticas maiores da reflexão kantiana sobre a moralidade que
terão importância decisiva para a compreensão do nosso texto.
Podemos partir lembrando que, no que concerne a Kant, trata-se de expor a
anatomia da razão em sua dimensão prática através da defesa da existência de uma vontade
livre e incondicionada do ponto de vista empírico, vontade que age por amor a priori à uma
Lei moral incondicional, categoria e universal (e não apenas conforme a Lei - tal como a
criança que segue a ordem paterna não devido à consciência da obrigação do dever, mas
apenas na esperança de ganhar algo em troca).
Uma vontade que age sem ser condicionada pelo empírico, quer dizer, que fez:
"abstração de todo objeto, ao ponto deste não exercer a menor influência sobre a
vontade"267, só pode ser pensável se admitirmos que o sujeito não determina a totalidade de
suas ações através do cálculo do prazer e da satisfação própria ao bem-estar. Para Kant, há
uma vontade para além do princípio do prazer. Aqui, nós não podemos esquecer a
distinção maior entre das Gute (ligado a uma determinação a priori do bem) e das Wohl
(ligado ao prazer e ao bem-estar do sujeito).
Os objetos ligados a das Wohl e, por conseqüência, ao prazer (Lust) e ao desprazer
(Unlust) são todos empíricos, já que: "não podemos conhecer a priori nenhuma
representação de um objeto, não importa qual seja, se ela será ligada ao prazer, à dor ou se
ela lhes será indiferente”268. O sujeito não pode saber a priori se uma representação de
objeto será vinculada ao prazer ou à dor porque tal saber depende do sentimento empírico
do agradável e do desagradável. E não há sentimento que possa ser deduzido a priori
(exceção feita ao respeito - Achtung) já que, do ponto de vista do entendimento, os objetos
capazes de produzir satisfação são indiferentes. Logo, a faculdade de desejar é determinada
pela capacidade de sentir (Empfänglichkeit), que é particular à patologia das experiências
empíricas de cada eu e desconhece invariantes universais.
Isto permite a Kant afirmar que não há universal no interior do campo dos objetos
do desejo, já que aqui cada um segue seu próprio sentimento de bem-estar e os princípios
narcísicos ditados pelo amor de si. De outro lado, nós não devemos esquecer que não há
liberdade lá onde o sentimento fisiológico do bem-estar guia a conduta. Pois, neste caso, o
sujeito é submetido a uma causalidade natural onde o objeto e os instintos ligados à
satisfação das necessidades físicas determinam a Lei à vontade, e não o contrário. De onde
se segue a afirmação: "Estes que estão habituados unicamente às explicações fisiológicas

267
KANT, Grundlegung, p. 441
268
KANT, Kritik der praktischen Vernunft, p. 21
não podem colocar na cabeça o imperativo categórico "269. Neste nível, o homem não se
distingue do animal.
Só há liberdade quando o sujeito pode determinar de maneira autônoma um objeto à
vontade. A fim de poder produzir tal determinação, ele deve se apoiar na razão contra os
impulsos patológicos do desejo. O homem é o único animal que tem: "a faculdade
(facultas) de se elevar por sobre (Überwindung) todo impulso sensível "270 e de desenvolver
o : "poder de transformar uma regra da razão em motivo de uma ação”271. É através deste
vazio, desta rejeição radical da série de objetos patológicos, que a conduta humana com seu
sistema de decisões pode ser outra coisa que o simples efeito da causalidade natural. Assim,
ela pode se afirmar em seu próprio regime de causalidade, chamado por Kant de
causalidade pela liberdade (Kausalität durch Freiheit). O que não surpreende ninguém já
que, para Kant, a verdadeira liberdade consiste em: "ser livre em relação a todas as leis da
natureza, obedecendo apenas àquelas que ele mesmo [o sujeito] edita e a partir das quais
suas máximas podem pertencer a uma legislação universal "272. A liberdade consiste em
determinar a vontade através da universalidade da razão.
Apesar disto, tal purificação da vontade através da rejeição radical da série de
objetos patológicos coloca um problema, já que toda vontade deve dirigir sua realização
através de um objeto. Faz-se necessário um objeto próprio à vontade livre. A fim de
resolver tal impasse, Kant introduz o conceito de das Gute: um bem para além do
sentimento utilitário de prazer273. Sua realidade objetiva indica que a razão prática pode dar
uma determinação a priori à vontade através de um objeto supra-sensível desprovido de
toda qualidade fenomenal. Ele é tanto o princípio regulador da ação moral quanto o
princípio de toda conduta que se queira racional.
Dizer que o ato moral é dirigido por um objeto desprovido de realidade fenomenal
nos leva longe. Pois isto significa dizer que não é possível termos nenhuma intuição
correspondente a este objeto (há intuições apenas de fenômenos categorizados no espaço e
no tempo). Isto não parece colocar problemas a Kant já que, se algo devesse ser gut: "seria
apenas a maneira do agir (...) e não uma coisa que poderia ser assim chamada" 274. Quer
dizer, a vontade que quer das Gute quer apenas uma forma de agir, uma forma específica
para a ação, e não um objeto empírico privilegiado. A forma já é o objeto para a vontade
livre.
E de qual forma trata-se aqui? Nós sabemos que a encontramos no conteúdo da
máxima moral: "Age de tal maneira que a máxima da tua vontade possa sempre valer como
princípio de uma legislação universal". Nós estamos aqui diante de uma pura forma vazia e
universalizante, forma que não diz nada sobre as ações específicas legítimas, já que ela não
enuncia nenhuma norma. "A lei", diz Kant, "não pode indicar de maneira precisa como e
em que medida deve ser realizada a ação visando o fim que é ao mesmo tempo dever""275.
O que não invalida o empreendimento moral kantiano, já que o contentamento próprio à

269
KANT, Die Metaphysik der Sitten, p. 378.
270
KANT, Die Metaphysik der Sitten, p. 307
271
KANT, Kritik der praktischen Vernunft, p. 60
272
KANT, Grundlegung, p. 435
273
"Wohl ou Uebel designam apenas uma relação àquilo que em nosso estado é agradável ou desagradável
(...)Gute et Böse indicam sempre uma relação à vontade, enquanto que ela é levada pela lei da razão a fazer
de alguma coisa seu objeto" (KANT, Kritik der praktischen Vernunft, p. 60)
274
KANT, ibidem, p. 60
275
KANT, Die Metaphysik der Sitten, p. 390
vontade livre vem da determinação desta vontade pela forma da máxima moral. No entanto,
abre-se um campo de crítica que visa insistir como a próprio forma pura do pensar implica
em não-liberdade, já que a conformidade às formas puras do pensamento é projetada sobre
a estrutura mesma da ação.
De fato, veremos como Adorno procura criticar esta maneira de compreender a
liberdade a partir de dicotomias estritas entre os domínios da natureza e do mundo
inteligível. Divisão que nos leva a pensar a liberdade a partir da forma de uma vontade
pura, vontade capaz de se pôr para além das exigências exclusivistas dos impulsos e que,
desta forma, fundamentaria uma causalidade distinta da causalidade dos fenômenos
naturais. Digamos que a questão inicial de Adorno é: como tal vontade livre e autônoma se
constituiu e, principalmente, qual o preço a pagar por tal constituição? O primeiro passo
consistirá em mostrar como tal autonomia da vontade é resultado da ilusão de uma
estratégia de determinação transcendental que leva em conta um processo de
fundamentação da razão prática através da auto-tematização reflexiva do sujeito
constituinte.

Intersubjetividade

O pretenso sujeito existente-em-si (ansichseiende Subjekt) e em si mediado por


aquilo a respeito do qual ele se separa: o contexto/a interdependência de todos os
sujeitos (Zusammenhang aller Subjekte). Devido a tal mediação, ele advém aquilo
que sua consciência de liberdade não quer ser: heterônomo276..

Esta frase sintetiza um problema inicial maior que Adorno levanta contra a
estratégia kantiana de determinação transcendental da vontade pura. Trata-se de insistir
que, no interior da ação, o sujeito necessariamente se confronta com uma estrutura
intersubjetiva que acaba por descentrar o pólo de produção de sentido da ação. Afirmar que
o sujeito da ação, enquanto pretenso sujeito autônomo, é mediado por aquilo a respeito do
qual ele se separa significa dizer que, a determinação mesma do sentido da ação não é
imediatamente dada, mas é resultado de uma mediação social complexa. Pois a
intersubjetividade fornece o sentido de uma ação que, fora da sua referência ao outro, seria
pura abstração. Ou seja, o outro não seria apenas a ocasião para o exercício da liberdade,
mas condição para a constituição do sentido da ação. Neste sentido, Adorno chega a afirmar
que a vontade livre sempre se confronta com um “prova de realidade” (Realitätsprüfung)
vinda da realidade exterior, particularmente da realidade social. “Prova de realidade” é o
termo cunhado por Freud para insistir naquilo que distingue uma simples repetição
alucinatória de representações de prazer e uma satisfação que pode ser socialmente
reconhecida enquanto tal.
Mas Adorno diz ainda mais alguma coisa. Ele afirma que reconhecer o caráter
constitutivo da mediação social e intersubjetiva na determinação do sentido da ação moral
significa instaurar uma certa heteronomia no coração mesmo de todo ato que se queira
livre. O que ele quer dizer exatamente com isto?
Notemos que, neste contexto, só podemos falar em heteronomia se formos
obrigados a reconhecer uma opacidade fundamental entre o princípio transcendental do
imperativo moral e sua realização empírica. O que Kant está longe de aceitar, pois isto o

276
ADORNO, ND, p. 213
levaria a assumir a impossibilidade da consciência julgar de forma a priori a ação. Ora,
para ele: "Julgar o que deve ser feito partir desta lei [a Lei moral], não deve ser algo de uma
dificuldade tal que o entendimento mais ordinário e menos exercido não saiba resolver
facilmente, mesmo sem nenhuma experiência do mundo "277.
É verdade que Kant reconhece um limite à consciência cognitiva na dimensão
prática devido à impossibilidade radical de conhecermos a realidade da idéia de liberdade e,
conseqüentemente, de conhecermos a realidade de das Gute, já que a consciência da
liberdade não é fundada em intuição alguma. O que nos leva a aceitar a Lei moral como um
fato (faktum) da razão. E se não podemos conhecer a realidade objetiva da liberdade, então
é impossível: "descobrir na experiência um exemplo que demonstre que esta lei foi
seguida"278.
Mas isto não coloca problemas a Kant, já que, com ele, nós sempre sabemos em que
condições um ato deve ser realizado para que ele seja o resultado de uma vontade livre.
Nosso não-saber incide sobre a presença efetiva de tais condições. Em suma, eu não saberei
jamais se digo a verdade por medo das conseqüências da descoberta da mentira ou por
amor à Lei. Mas eu sempre sei que, em qualquer circunstância, contar mentiras é contra a
Lei moral. Mesmo que não exista transparência entre a intencionalidade moral e o
conteúdo do ato, resta um princípio de transparência entre a intencionalidade moral e a
forma do ato. Eu sempre saberei como devo agir. Não há indecidibilidade no interior da
praxis moral. Como nos demonstrou Adorno, Kant crê que a determinação transcendental e
a realização empírica da Lei moral estão submetidas a um princípio de identidade e, por que
não dizer de maneira mais clara, a um princípio de imanência: "Ela [a causalidade pela
liberdade] hipostasia a forma como obrigatória para um conteúdo (Inhalt) que não se
apresenta por si mesmo sob esta forma"279. Isto demonstra que, para Adorno, o verdadeiro
erro de Kant teria consistido em acreditar que a pura forma do ato, acessível à auto-
tematização do sujeito constituinte, determinaria a priori sua significação. A significação
do ato apresentar-se-ia como simples indexação transcendental da particularidade do caso;
o que esvaziaria toda dignidade ontológica do sensível no interior da experiência moral.
Aqui, o procedimento transcendental parecia suficiente para dar significação à pragmática,
até porque haveria entre das Gute e a Lei uma relação de completa imanência. De certa
forma, é isto que Adorno tem em mente ao ver a “verdadeira natureza do esquematismo”
como o ato de “harmonizar exteriormente o universal e o particular, o conceito e a instância
singular”280. Ao contrário, trata-se de insistir que a significação do ato só se dá a posteriori
a partir dos modos de determinação social
No entanto, o termo “heteronomia” é mais pesado do que pode supor esta simples
mediação pelo outro como condição para a determinação do sentido da ação. È neste ponto
que devemos insistir na relação entre modos de reconhecimento de estruturas
intersubjetivas prévias e processos de socialização capazes de constituir sujeitos enquanto
tais (como o sujeito deve ser para ser reconhecido enquanto membro de um “reino dos
fins”). É levando tal articulação em conta que Adorno afirmará o caráter antagônico do
interesse pela liberdade. Por um lado, ele liberta o sujeito da “minoridade” de se estar
submetido à causalidade natural; por outro, ele favoriza uma nova opressão presente no

277
KANT, Kritik der praktischen Vernunft, p. 36
278
KANT, idem, p. 40
279
ADORNO, Negative Dialektik, p.232
280
ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do esclarecimento,p. 83
próprio princípio racional. Daí esta afirmação absolutamente central: “Identidade de si e
alienação de si (Identität des Selbst und Selbstentfremdgung) estão juntas desde o início”281.
Ou seja, o processo de socialização que permite a produção de uma auto-identidade através
da submissão das exigências pulsionais à unidade sintética do Eu é, ao mesmo tempo, um
processo de alienação de si na figura de um princípio de unidade e identidade socialmente
produzido. Princípio cuja assunção é condição o processo de integração social.
Mas estabelecer tal solidariedade entre socialização e alienação isto não significa
operar uma negação simples da liberdade através das exigências de integração social. Se
este fosse o caso, a dialética negativa nos levaria a uma simples descrição e classificação de
comportamentos reificados (maneira com que Adorno compreende o bahaviourismo). A
inexistência de prioridade ontológica do sujeito em relação à realidade social não deve nos
levar à redução da estrutura de comportamento a um esquema estímulo-resposta. Não
podemos assumir uma ideologia da adaptação para a qual só há, da parte do sujeito, reação
a estímulos exteriores e receptividade. Mesmo o princípio de auto-conservação exige mais
do que o simples reflexo condicionado. Ele exige uma unidade que transcende a simples
adaptação a configurações regionais do meio.
Neste ponto, Adorno apela para uma compreensão não totalmente adaptativa dos
processos de socialização, compreensão fundada na dicotomias psicanalíticas entre
processos primários e processos secundários. È isto que ele tem em vista ao lembrar que:
“A consciência nascente da liberdade alimenta-se da memória (Erinnerung) do impulso
(Impuls) arcaico, não ainda guiado por um eu sólido”282. Na verdade, vemos aqui como
Adorno tem em vista o processo de unificação de moções pulsionais auto-eróticas. Ele
insiste que tal processo deve ser lido como o correlato interno de uma dinâmica de
dominação da natureza. Neste sentido, a desativação da dicotomia natureza/liberdade passa
pela exposição da maneira com que a ação se deixa marcar por estes impulsos arcaicos que
aparecem não totalmente subsumidos a processos de socialização. Modo de reconciliação
entre sujeito e natureza. Daí esta afirmação central:

Apenas lá onde se age como um Eu, não de maneira reativa, pode o agir ser
chamado livre. Mas seria igualmente livre o que não é dominado (Gebändigte) pelo
Eu como princípio de toda determinação, aquilo que aparece como não-livre para o
Eu e que, como na filosofia moral de Kant, foi até hoje não-livre283.

Neste sentido, Adorno chega a afirmar que a neurose, com seus rituais compulsivos,
não aparece apenas como situação de não-liberdade, mas ela tem um conteúdo de verdade
por ser prova da não-liberdade do eu, por ser vivência da Lei como o que há de estranho em
relação aos interesses alojados nos impulsos não-unificados pelo Eu.
Mas ficamos aqui com a questão de saber como tais impulsos pré-egóico podem
fornecer um conceito positivo de liberdade. Muito haverá a se dizer a este respeito.
Podemos apenas iniciar a discussão lembrando de algumas considerações fundamentais de
Adorno sobre a causalidade da vontade livre.
Ao analisar a causalidade da vontade livre, Adorno critica a idéia da causalidade
pela liberdade a fim de falar do suplemento (das Hizutretende) como causa do ato

281
ADORNO, ND, p. 216
282
ADORNO, ND, p. 221
283
ADORNO, ND., p. 222
(Handlung) que não se esgota na transparência da consciência. Através dele, Adorno pode
insistir no fato de que reduzir a vontade à uma razão centrada na consciência nada mais é
do que um exercício de “abstração”. Pois este suplemento é algo de corporal ligado à razão
mas qualitativamente diferente dela. Sua gênese está ligada ao impulso (Impuls) vindo de
uma fase auto-erótica na qual o dualismo do extra e do intramental não estava
completamente fixado.
A causalidade do ato só pode assim ser pensada através de um outro conceito de
razão capaz de englobar aquilo que, como causa do ato, excede a consciência através do
corpo:

Isto também toca o conceito de vontade, que tem por conteúdo os chamado fatos de
consciência mas que, ao mesmo tempo, de um ponto de vista puramente descritivo,
não se reduz a eles: eis o que se esconde na passagem da vontade à praxis284.

Pois, se é verdade que não há consciência sem vontade, isto não significa que estamos aí
diante de uma identidade simples. A recuperação da noção de impulso visa exatamente
insistir em tal descompasso. Trata-se de demonstrar como não há vontade pensada como
logos puro.
Nas suas lições sobre Metafísica, Adorno volta a trabalhar esta questão de um
suplemento corporal como causa racional do ato moral. Novamente, as referências
psicanalíticas são evidentes, isto a ponto de Adorno lembrar que a esfera da sexualidade
infantil está necessariamente relacionada com o problema da determinação do suplemento.
O que não significa recorrer a alguma forma de irracionalismo, mas simplesmente
reconhecer que: “a mais simples existência física, como esta com a qual somos
confrontados nestes fenômenos, está conectada com os mais altos interesses da
humanidade”285, fato que teria sido ignorado pelo pensamento até então. Isto lhe permite
afirmar, por exemplo, que o princípio metafísico que suporta injunções como: “Não infligir
dor” não se sustenta na pura idéia da razão, mas no recurso à realidade material e corporal,
recurso à afinidade mimética com o “corpo torturável”, com o sofrimento do corpo do
outro. O que leva Adorno a criticar a negação simples da compaixão na determinação da
causalidade da ação moral, o que o leva a instaurar: “no eixo do impuro uma nova Crítica
da razão”286.

284
ADORNO, ND, p. 228
285
ADORNO, Metaphysics, Stanford University Press, 1998, p. 117
286
LACAN, E., p. 775
Curso Adorno
Aula final

Os homens só são humanos quando não agem e não se põem (setzen) mais como
pessoas; esta parte difusa da natureza na qual os homens não são pessoas
assemelha-se ao delineamento de uma essência (Wesen) inteligível, a um Si que
seria desprovido de eu (jenes Selbst, das vom Ich erlöst wäre). A arte
contemporânea sugere algo disto287.

Foi com estas afirmações que comecei nosso curso e é retornando a elas que eu gostaria de
terminá-lo. Na nossa primeira aula, afirmei que tratava-se de um trecho central da Dialética
Negativa porque aqui estavam indicadas estratégias fundamentais para a compreensão da
peculiaridade da experiência intelectual adorniana em sua fase final. Estratégias que dizem
respeito à reconfiguração de dois dispositivos maiores da reflexão filosófica
contemporânea: a categoria de sujeito com suas articulações internas entre subjetividade,
auto-identidade, auto-determinação e a relação entre conceito e formalização estética. Uma
reconfiguração que, ao menos no que se refere à categoria de sujeito, deve alcançar, ao
mesmo tempo, a dimensão prática (o agir) e a dimensão propriamente judicativa (o pôr).
Eu havia insistido que deveríamos partir de uma reposição da Dialética negativa no
interior da experiência intelectual adorniana. Sabemos que um dos sentidos do projeto da
Dialética do Esclarecimento, de 1947, consistia em, através de uma auto-crítica totalizante
da razão e de seus movimentos de interversão em práticas de dominação, fornecer as
condições de possibilidade para o advento de uma reorientação do fundamento dos
processos de racionalização. Assim: “a crítica aí feita deve preparar um conceito positivo
de esclarecimento, que o solte do emaranhado que o prende a uma dominação cega”288.
Este conceito positivo de esclarecimento será fornecido vinte anos depois pela Dialética
negativa.
No entanto, durante toda a Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer não
deixaram de operar com um postulado que orienta a auto-reflexão da razão ao menos desde
Hegel. Trata-se da compreensão de que toda verdadeira crítica da razão tem seu solo na
crítica àquilo que serve de fundamento às operações de categorização e de constituição do
objeto de experiências que aspiram preencher critérios racionais de validade. Este
fundamento não é outro que a própria categoria de sujeito. Submeter a crítica da razão à
crítica do sujeito é um dispositivo maior que permite a articulação da dialética de inspiração
hegeliana. Uma crítica que não segue a figura heideggeriana de exigência de
ultrapassamento da “metafísica do sujeito”, mas que compreende que reformulações
estruturais da categoria de sujeito implicam em modificações na significação de operações
lógicas elementares do pensar como: a identidade, a identificação, a constituição de
relações e a unificação. Reformulações que aparecem como condição para o advento de
uma figura renovada da razão.
Mas além de vincular crítica da razão e crítica do sujeito, Adorno fazia mais. Ele
procurava transformar a crítica da razão no solo de uma reflexão de larga escala sobre os
vínculos sociais e sobre os processos de reprodução cultural no capitalismo tardio. No
entanto, sabemos como sua crítica da razão era fundamentalmente animada por

287
ADORNO, Negative Dialektik, Frankfurt, Suhrkamp, 1975, p. 274
288
ADORNO e HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro, Zahar, 1991, p. 15
tematizações a respeito da necessidade de “com a força do sujeito, quebrar a ilusão (Trug)
da subjetividade constitutiva”289. Esta foi a aposta de Adorno para a realização do programa
de constituição de um conceito positivo de razão. É ela que o leva a procurar um “Si
desprovido de Eu”, ou seja, um sujeito não mais vinculado à entificação das capacidades
sintéticas e unificadoras do Eu. Um sujeito que deixa de ser uma entidade substancial que
fundamenta os processo de auto-determinação e de constituição identitária de objetos, isto
para transformar-se no locus da não-identidade e da clivagem. Neste sentido, a questão
fundamental que parece animar a reflexão social adorniana é: como devem ser as estruturas
sociais para que elas sejam capazes de realizar exigências de reconhecimento de sujeitos
não-substanciais, marcados pela realidade da não-identidade? E mesmo que a reflexão
filosófica veja-se impossibilitada de fornecer quadros institucionais ideais para a realização
de tais exigências de reconhecimento (devido, por exemplo, ao diagnóstico histórico de
imbricação sistêmica entre mercados e instituições sociais no capitalismo avançado como
bloqueio para a realização de qualquer expectativa de racionalização não-instrumental da
dimensão prática), ela pode apelar a um domínio específico de práticas discursivas sociais
(como a estética) que ganharia, assim, função de modelo. Neste sentido, vale sempre a pena
insistir que a impossibilidade adorniana de fornecer tais quadros institucionais ideais está
vinculada a uma crítica bastante presente a dinâmicas de reconciliação social que tomam
por figura privilegiada o direito. A este respeito, Adorno chega mesmo a fazer afirmações
peremptórias como:

O direito é o fenômeno primordial (Urphänomen) da racionalidade irracional. Nele,


o princípio de equivalência formal advém norma, todo são medidos pelo mesmo
padrão (...) Que o indivíduo se sinta injustiçado quando o antagonismo de interesses
o impulsiona à esfera jurídica não é, como Hegel gostaria de fazer acreditar, sua
culpa, isto no sentido de que ele seria muito cego para reconhecer seu próprio
interesse na norma jurídica e em suas garantias; na verdade, é muito mais a culpa
dos constituintes da própria esfera jurídica290.

Por trás de afirmações desta natureza, coloca-se a exigência de pensar uma dimensão da
ação social que não regule suas expectativas de legitimidade através da conformação da
conduta a uma norma geral enquanto sistema de regras e proibições fundado na codificação
exaustiva de práticas. Uma ação social que herde, da estética, a idéia da singularidade dos
modos de relação e de confrontação a materiais sociais, aproximando tais práticas de uma
estilística individualizadora ligada ao cálculo do momento, da situação, do contexto e a
afastam da normatividade do direito.
De qualquer forma, por mais improvável que isto possa parecer, sustentei em vários
momentos que esta estratégia adorniana de síntese de um conceito positivo de razão era, em
larga medida hegeliana. Na verdade, um dos pontos recorrentes deste curso foi a defesa de
que a distância que separa Hegel e Adorno é muito menor do que o próprio Adorno estava
disposto a aceitar. Vimos como, em vários momentos, Adorno era obrigado a apelar a
conceitos articulados em chave claramente hegeliana, como infinitude, sistema, mediação,
dialética essência/aparência, a dialética sujeito/objeto, entre outros. De qualquer forma, a
distância entre os dois não está lá onde Adorno acredita encontrá-la, ou seja, na teoria das

289
ADORNO, Negative Dialektik, p. 10
290
ADORNO, ND, p. 304
negações que suportam as experiências intelectuais dos dois filósofos. Gostaria de retomar
este ponto de confrontação maneira mais sistemática a fim de fornecer o quadro de
articulação entre Hegel e Adorno que me parece mais preciso.
Il me semble qu´à la base de l´expérience intellectuelle hégélienne il y a une
intuition fondamentale : toute théorie de la reconnaissance qui vise à fonder un horizon
régulateur pour la dimension pratique doit dériver de considérations sur l´ontogenèse des
capacités pratico-cognitives, une ontogenèse qui se déploie à travers des processus de
socialisation et d´individuation. Néanmoins, ces processus ne peuvent pas être décrits
simplement à partir des considérations sur les pressions de conformation et de contrainte
présentes dans les noyaux élémentaires d´interaction sociale (famille, société civile,
institutions, Etat). Hegel a compris que les structures élémentaires qui orientent l´enjeu
propre à ces noyaux d´interaction sont des figures privilégiées de la raison. D´ailleurs, les
exigences de rationalité présentes dans ces noyaux sont, nécessairement, des manifestations
privilégiées de ce que nous sommes disposés à compter comme rationnel.
Néanmoins, si ceci est l´intuition fondamentale de Hegel, plusieurs problèmes
continuent à empêcher toute tentative de donner une actualité à la perspective hégélienne. Il
suffit de se rappeler, par exemple, cette question toujours posée par les théoriciens de
l´Ecole de Francfort, question avivée par la psychanalyse freudienne et sa description
conflictuelle d´une ontogenèse des capacités pratico-cognitives : qu´est-ce qu´il faut perdre
afin de se conformer aux exigences de rationalité présentes dans des processus
hégémoniques de socialisation et d´individuation? Ou encore : quel est le prix à payer afin
de rendre viables ces exigences?
Vimos, no capítulo dedicado à metacrítica da razão prática, como Adorno procurava
vincular claramente ontogênese das capacidades prático-cognitivas e reflexão sobre a
dimensão prática da razão. Através da reconstrução desta ontogênese, ele quer mostrar
como: “Sujeito e objeto não são, como no esquema kantiano, firmemente opostos entre si,
mas se interpenetram (durchdringen) reciprocamente”291. Eles não são firmemente opostos
porque todo sujeito portaria em si mesmo “um núcleo do objeto (ein kern von Objekt)”
(ADORNO, 1990, p. 747), um pólo de opacidade normalmente vinculado a dimensões do
corpo não redutíveis aos processos de individuação e socialização. Por isto, a subjetividade
deveria ser reconhecida não mais exclusivamente através da sua remissão ao terreno
intersubjetivo que estrutura o campo dos processos de socialização e de interações sociais
simbolicamente estruturadas, mas em uma recuperação de confrontações próprias à
dialética entre sujeito e objeto.
Esta reflexão sobre a ontogênese das capacidades prático-cognitivas é claramente
posta por Adorno ao afirmar, por exemplo:

Em Kant, a consciência deve fundar toda identidade como unidade geral prévia. No
entanto, se ele olhar atrás de si, lá para onde ele começou a existir conscientemente,
o homem maduro poderá rememorar seu passado distante. Ele produz uma unidade,
por mais irreal que seja a infância que o escapa. Mas esta irrealidade, o Eu que se vê
rememorado, Eu que fora uma vez e que potenciamente pode ser ainda, advém um
Outro, estranho, observado de maneira destacada. Esta ambivalência entre
identidade e não-identidade permanece no problema lógica da identidade292.

291
idem, p. 142
292
ADORNO, ND, p. 157
A afirmação não poderia ser mais clara. Há uma experiência de ambivalência entre
identidade e não-identidade que só pode ser claramente apreendida a condição de
submetermos a dedução transcendental do sujeito constituinte à uma gênese empírica da
função do Eu. Tal gênese nos mostra que algo da infância conserva-se como o que é, ao
mesmo tempo, estranho ao Eu e parte do Si mesmo. No fundo, Adorno pensa :esta infância
como a dimensão de um campo de experiências ainda não submetidas à uma unidade
sintética. Na verdade, vemos aqui como Adorno se serve do esquema freudiano das
pulsionais auto-eróticas satisfeitas por objetos parciais que devem ser recalcadas para a
unificação das pulsões submetidas à auto-identidade do Eu. Desta forma, o Eu pode
aparecer como não-identidade na identidade. Maneira de insistir que uma perspectiva
genética nos permite reconsiderar a natureza das relações dialéticas entre sujeito e objeto.
Tais questões ontogenéticas têm conseqüências maiores. Adorno insiste claramente
que os modos de organização da realidade no capitalismo tardio, os regimes de
funcionamento de suas dinâmicas de interação e de trabalho, são o resultado da
implementação social de uma metafísica da identidade cuja gênese está ligada à uma
repressão constitutiva da categoria de sujeito. Uma noção de sujeito cuja ontogênese
deveria ser compreendida através da análise dos processos de internalização de exigências
de unidade que, por um lado, tocam necessariamente aquilo que é da ordem do corpo e da
pulsão, mas que, por outro lado, interferem de maneira decisiva na própria configuração das
estruturas cognitivo-instrumentais da consciência e nos seus modos de constituição de
objetos da experiência. Vimos como Adorno quer levar ás últimas conseqüências a idéia de
que: “Identidade de si e alienação de si (Identität des Selbst und Selbstentfremdgung) estão
juntas desde o início”293. A experiência da identidade é uma experiência social de
dominação daquilo que, no sujeito, guarda a opacidade dos objetos, não dos objetos
submetidos à projeção, mas dos objetos como pólo material de resistência à hipóstase do
conceito.
Desta forma, a análise da realidade social e a crítica da metafísica da identidade
seriam organicamente ligadas (até porque, seguindo aí uma tradição claramente marxista,
trata-se de se perguntar sobre a ilusão metafísica que sustenta a realidade social do
capitalismo). Daí a afirmação central de Adorno : “A identidade é a forma originária da
ideologia”.294; maneira astuta de vincular crítica social e crítica da razão. É tendo isto em
vista que devemos compreender certas estratégias de crítica social em Adorno. Ao analisar
o caráter paranóico do fascismo, a negação simples da diferença pelo fetichismo da forma-
equivalente que circula no interior da indústria cultural, a natureza social do trabalho
abstrato, Adorno procura fornecer o quadro das formas sociais que resultam
necessariamente de uma imbricação entre subjetividade moderna e princípio de identidade.
Neste sentido, devemos levar a sério afirmações aparentemente temerárias como:

Os sentidos já estão determinados pelo aparelho conceitual antes que a percepção


ocorra, o cidadão vê a priori o mundo como a matéria como a qual ele o produz para
si próprio. Kant antecipou intuitivamente o que só Hollywood realizou
conscientemente295.

293
ADORNO, ND, p. 216
294
ADORNO, Theodor; Dialectique Négative, Paris, Payot, 2000, p. 147
295
ADORNO e HORKHEIMER, DE, p. 83
Trata-se de lembrar que o diagnóstico social de bloqueio das aspirações de reconhecimento
da singularidade já estava inscrito no próprio cerne da constituição do projeto moderno.
No entanto, uma leitura precisa de Hegel nos mostra como ele é sensível aquilo que
não se determina integralmente de maneira positiva através dos processos de socialização e
de individuação. É verdade que o próprio Adorno não aceitaria esta leitura. Sabemos como,
para ele, o sujeito absoluto hegeliano não seria capaz de reconhecer a indissolubilidade de
um momento empírico, não-idêntico ligado ao conceito de sujeito. Para tanto, a filosofia
hegeliana precisaria também ser uma psicologia capaz de expor a maneira com que o
pensamento e o impulso corporal se relacionam, tal como o próprio Adorno fará recorrendo
maciçamente à psicanálise freudiana.
No entanto, podemos procurar defender Hegel afirmando que, no interior de sua
filosofia, a ontogênese do sujeito é a história permanente do conflito social, ela é o
reconhecimento de uma anterioridade ontológica do conflito que se manifesta nesta
maneira hegeliana de vincular subjetividade e ontologia da negação. Hegel chega mesma a
“naturalizar a noção de conflito” através sua filosofia da natureza, isto ao colocar o conflito
no coração do conceito mesmo de “vida”. Trata-se de uma perspectiva bastante distinta, por
exemplo, de Foucault, para quem o conflito é uma figura própria à forma hegemônica de
socialização na modernidade com suas dicotomias e polaridades, desta forma, sua realidade
é histórica, e não ontológica.
Esta perspectiva hegeliana é mais próxima de Adorno e uma rápida comparação
com Foucault serve para evidenciar este ponto. Pois se é verdade que tanto Adorno quanto
Foucault procuram descrever os processos de interversão das expectativas de racionalidade
em estruturas de dominação, devemos lembrar como, para Foucault, não se trata de ler tal
processo a partir dos móbiles de dominação da natureza externa ou da repressão da natureza
interna. “Natureza” é, para Foucault, apenas uma formação discursiva reificada, algo posto
e regulado pelas próprias práticas sociais de poder; posto como seu exterior, seu Outro. Daí,
por exemplo, toda a crítica foucauldiana àquilo que ele chama de “hipótese repressiva” na
relação à natureza interna. A figura de uma repressão da natureza apenas esconde como o
poder produz aquilo que ele parece reprimir.
No entanto, Adorno não está disposto a simplesmente anular o conceito de natureza.
Ele chega mesmo a afirmar que a experiência de determinação da essência está ligada ao
sofrimento resultante da repressão de relações constitutivas do que é da ordem da natureza.
No entanto, sabemos como em Adorno a natureza é uma figura do negativo, o que não é
estranho a alguém que sempre articula natureza externa e natureza interna e sempre lê o
problema da natureza interna a partir da teoria freudiana das pulsões – teoria que
desnaturaliza toda base instintual ao não reconhecer objeto natural algum à pulsão
insistindo, com isto, na inadequação fundamental entre a negatividade da pulsão e a
dimensão dos objetos empíricos. Esta idéia da natureza como figura do negativo pode nos
explicar afirmações como: “A arte só é fiel à natureza fenomenal (erscheinenden Natur)
quando ela representa a paisagem na expressão de sua própria negatividade” (ADORNO,
1973, p. 106). E se lembrarmos da afirmação adorniana segundo a qual os tempos
carregados de sentido que o jovem Lukàcs ansiava o retorno também eram produtos da
reificação, então devemos nos perguntar se o bloqueio de apresentação da natureza é na
realidade um problema de ordem histórica ou ontológica. Pois se for um problema de
ordem ontológica, então o acesso à natureza não é uma aporia, mas marca a manifestação
de uma essência que só pode pôr-se como negação dialética da aparência. De qualquer
forma, devemos insistir no seguinte ponto: a ontogênese hegeliana das capacidades prático-
cognitivas se deixa guiar por exigências de reconhecimento do que, no sujeito, só se
manifesta de maneira negativa e que encontram seu lugar em um conceito de natureza. Isto
vale também para Adorno.
Il est vrai qu’il existe une certaine interprétation hégémonique qui, au lieu d´insister
sur cette irréductibilité ontologique, affirme le caractère totalement provisoire du conflit
chez Hegel. Nous trouvons cette interprétation, par exemple, chez Deleuze, lorsqu´il
affirme :

La contradiction selon Hegel fait fort peu problème. Elle a une tout autre fonction:
la contradiction se résout et, se résolvant, résout la différence en la rapportant à un
fondement296.

Cette façon de résoudre la différence à travers les ruses de la contradiction aurait, comme
conséquence nécessaire, l’absorption infinie de la négativité à l´intérieur d´une réflexion
sociale qui essaie de privilégier le soutient d´un « institutionnalisme fort », voir les
Principes de la philosophie du droit. Esta é, por sinal, uma das bases da leitura adorniana
de Hegel. Mais, il est bien probable que cette lecture ne fasse pas justice à la complexité de
la pensée hégélienne. Il y a une articulation importante entre pragmatique, ontologie et
théorie du langage chez Hegel et, si nous analysons une telle articulation de façon précise,
nous pouvons trouver une nouvelle façon de comprendre des élaborations hégéliennes
tardives sur les problèmes des institutions et des pratiques sociales qui veulent remplir des
exigences de rationalité. Nous devons toujours nous demander quelle est l´ontologie qui
soutient la réflexion hégélienne sur la réalité et sur les exigences du lien social.
No fundo, ao tentar insistir nas proximidades entre Hegel e Adorno, esta foi a
estratégia que adotei na nossa leitura da Dialética Negativa. Ela implicou em certas
escolhas e recortes. Ela implicou também em certas perdas. Mas gostaria de reconstituí-la, a
fim, inclusive, de medir de maneira mais apurada seus limites e falhas.

Uma auto-crítica da razão

Vimos, no decorrer do nosso curso, como Adorno pensava, no interior da dialética,


os limites de um modo de conhecer vinculado à ilusão do sujeito constituinte. Insisti, várias
vezes, que tal estratégia tinha uma grande peculiaridade, já que tal crítica do caráter
constituinte da subjetividade não levara Adorno, em momento algum, a fazer alguma
espécie de defesa do acesso à “diversidade do não contraditório, da diferença simples”
(Mannigfaltigkeit des nicht Kontradiktorischen, dês einfach Unterschiedenen), atualizando
aquilo que ele chama à ocasião de “ideologia da concreção” (Konkretion). Ao contrário,
Adorno lembra que o preço da “disciplina dialética” é o sacrifício amargo da diversidade
qualitativa da experiência. Um sacrifício que será compensado mais à frente com a
recuperação da diferença qualitativa, não como elemento irredutível de uma intuição
imediata que nos garantiria alguma forma de acesso direto à imanência, mas como
resultado de um processo de diferenciação ínfima dos momentos que Adorno encontrará
inicialmente na análise da forma musical em Alban Berg.

296
DELEUZE, Gilles; Différence et répétition, Paris, PUF, 2000, p. 64
No entanto, no caso de Adorno, esta crítica do imediato é complexa pois não
assentada na desqualificação simples do que se oferece como ponto de excesso ao
pensamento conceitual Tratava-se de afirmar que “há na experiência relações
epistemicamente significantes com algo não-conceitual”297. O que Adorno admite
claramente ao dizer que: “todos conceitos, mesmo os conceitos filosóficos, vão em direção
(gehen) ao não-conceitual”298. Logo, uma pergunta maior foi sobre a possibilidade de
conciliar estas duas proposições aparentemente contraditórias e sempre presentes na
dialética negativa: todo dado é uma projeção do Eu com suas capacidades conceituais e há
algo na experiência que é não-conceitual? Adorno tentará pensar esta contradição no
interior de uma dialética entre particular e universal, ou seja, entre a irredutibilidade da
experiência do particular (deste particular a respeito do qual nada mais posso dizer a não
ser que se trata de um isto, de um algo, de um tode ti) e a universalidade do conceito. Uma
tensão entre universal e particular que nos explica porque o objeto maior da dialética
negativa é um conceito de diferença pensado sob a figura da não-identidade. A diferença é
o que se deixa pensar apenas como resto dos processos de identificação, como identidade
negada.
No entanto, fica um problema: pensar a diferença apenas no interior de uma
dialética entre universal e particular parece uma maneira astuta de enquadrar a diversidade
em um quadro de oposições onde um termo só se determina através da sua oposição ao
outro, o que nos levaria a uma determinação do outro como limite e internalização deste
limite como negação internalizada pelo próprio termo. Ou seja, uma transformação da
diversidade em contradição através dos usos da oposição que faz da diferença um momento
negativo da identidade e, conseqüentemente, nada de absolutamente diferente. Esta era a
crítica que, na mesma época, Deleuze endereçava à dialética: através da contradição,
resolver a diferença ao reportá-la sempre a um fundamento. Adorno reconhece esta
dificuldade ao afirmar:

Tal conceito de dialética [a Dialética Negativa] desperta dúvidas a respeito de sua


possibilidade. A antecipação do movimento constante através de contradições
aparenta ensinar o espírito como totalidade, ou seja, exatamente a tese da identidade
posta em questionamento (ausser Kraft gesetzte)299.

Tudo se passa como se Adorno lembrasse: a contradição só pode se resolver se, no interior
das relações de oposição, o pólo oposto funcionar como fundamento da identidade (como
se eles já fossem algo positivamente determinados fora da relação de oposição). Mas o que
acontece quando afirmamos, e esta é a estratégia adorniana, que a universalidade é
radicalmente antagônica? Não apenas que o conceito de universalidade é antagônico,
clivado, mas que a experiência social que orienta a determinação do sentido de processos
de universalização é antagônica. Isto não nos abriria às portas para uma passagem infinita
nos opostos, já que o próprio universal nos fornece uma experiência de antagonismo?
Lembremos como, neste contexto, Adorno era obrigado a recorrer a uma “idéia a
respeito da qual deve-se transformar a função, idéia legada pelo idealismo e, mais do que

297
O´CONNOR, Adorno and the problem of giveness in Revue Internationale de Philosophie, 2004, p. 85
298
ADORNO, ND, p. 23
299
ADORNO, ND, p. 21
todas, corrompida por ele: a idéia de infinito”300. O recurso não poderia ser mais preciso
pois “infinito” é a noção à qual Hegel recorre a fim de formalizar este processo através do
qual o conceito internaliza o antagonismo que o nega, seu próprio limite. Para Hegel,
infinito é aquilo que porta em si mesmo sua própria negação e que, ao invés de se auto-
destruir, conserva-se em uma determinidade. No entanto, se até aqui não é impossível
mostrar como o encaminhamento de Adorno é fundamentalmente hegeliano, devemos
insistir que, a partir daí, Adorno opera um deslocamento significativo em relação a Hegel e
que diz respeito à determinação do regime de experiência capaz de fornecer ao conceito o
horizonte adequado de formalização de seus limites:

O conceito só pode representar (vertreten) a coisa que ele recalca (verdrängte), a


mimesis, apropriando algo desta última em seu próprio modo de conduta, o que o
leva a perder-se nela. Por isto, o momento estético, por razões diversas das
levantadas por Schelling, não é acidental à filosofia301.

Tais considerações são fundamentais. Posta a questão sobre a maneira com que o
conceito internaliza o heterogêneo sem subsumí-lo sob o genérico do esquema categorial,
internalização que permitia algo da ordem da posição de uma experiência de infinitude,
Adorno recorrer a um conceito de mimesis inspirado na experiência estética. Ele afirma que
a mimesis seria exatamente o que fora recalcado pelas operações do conceito.
No entanto, a relação a Hegel ainda não pode se colocar sob o signo da ruptura
simples, pois, como vimos em nossas aulas, tudo se passava como se lá onde Hegel via
Verkehrung e Umschlagen, Adorno visse mimesis. Mas enquanto Hegel compreenderia tais
passagens no oposto como movimento interno ao sujeito, Adorno insistiria em um
postulado “realista” ao falar que se trata de um movimento da Coisa mesma, movimento
que só pode ser conceitualmente apreendido como desarticulação da submissão dos objetos
a esquemas categoriais prévios. De qualquer forma, Adorno já havia reconhecido, nos Três
estudos sobre Hegel, que o movimento do conceito hegeliano através de negações
determinadas implicava no reconhecimento de afinidades miméticas entre objetos: “O
conceito hegeliano salva (errettet) a mimesis através da auto-consciência do Espírito
(Besinnung des Geist auf sich selbst): a verdade não é uma questão de adaequatio, mas de
afinidade, e no declínio do idealismo, através de Hegel, o cuidado da razão com sua
essência mimética revela-se como um direito humano”302.

Modelos

Mas vimos, por outro lado, a peculiaridade da elaboração adorniana a respeito de uma
noção renovada de conceito, noção capaz de absorver o momento estético no interior
mesmo da reflexão sobre as elaborações conceituais. Esta peculiaridade poderia ser
sintetizada na exigência em pensar por modelos. Insisti que há três conceitos simétricos em
Adorno: modelos, constelação e crítica imanente.
O modelo é fundamentalmente aquilo capaz de formalizar a tensão entre a imersão
no singular e exigências de apreensão estrutural que exigem movimentos de transcendência.

300
ADORNO, ND, p. 24
301
idem, p. 26
302
ADORNO, Drei Studien zu Hegel, p. 285
De um certo aspecto, o modelo parece próximo a uma metáfora, um “ver como” que me
permite apreender certos objetos apenas no interior de relações transversais de analogia, já
que nenhuma apreensão conceitual direta de conteúdo parece possível. No entanto, há algo
de bastante peculiar a Adorno com sua insistência de que: “Pensar é sempre pensar a partir
de algo (Etwas)”303. Isto talvez fique mais claro se lembrarmos que o pensar por modelos é
um procedimento que encontra sua realização, por exemplo, na noção de “crítica
imanente”.
Em Crítica cultural e sociedade, Adorno lembrava, ao tentar desdobrar sua noção
de crítica imanente, que: “só é capaz de acompanhar a dinâmica do objeto aquele que não
estiver completamente envolvido por ele”304. Ou seja, acompanhar a dinâmica do objeto
implica em apreender suas determinações estruturais (ou sua idéia, para falar como
Benjamin), estas mesmas determinações que podem ser perdidas pela fascinação pela
reificação da aparência. No entanto, a verdadeira crítica imanente não se contenta com este
“desvelamento” estrutural todo ele inspirado em uma teoria da segunda natureza. Ela
procura expor, no interior do próprio objeto tal como ele é fornecido à experiência, a
contradição entre seu conceito e sua determinação fenomenal. É isto que Adorno tem em
vista ao falar da necessidade de pensar a “diferença imanente do fenômeno com suas
aspirações (beansruchen)”305. No entanto, este descompasso entre conceito e efetividade
desvelado pela crítica imanente e formalizado pelo modelo é, na verdade, apreensão do
conteúdo da experiência. Pois Adorno insiste que uma dialética verdadeiramente
materialista deve partir do reconhecimento da indissolubilidade da determinação empírica,
ou seja, daquilo que Hegel identifica como “Algo” (Etwas) e que, ao menos segundo
Adorno, estaria vinculada à dimensão da sensação (Empfindung) e do indissoluvelmente
ôntico. Isto nos leva à idéia de que conceitualizar é constituir uma constelação de conceitos
que se articulam sem jamais designar a referência de maneira imediata. Idéia de uma:
“deficiência determinável de todo conceito (bestimmbare Fehler aller Begriffe)" que leva à
necessidade de “fazer intervir outros”306 a fim de formar constelações. É esta estrutura de
constelações que pode formalizar aquilo que é da ordem do primado do objeto.
Vimos como este conceito de primado do objeto guardava mediações complexas.
Ele não indicava simples defesa da irredutibilidade do sensível, apelo a alguma forma de
retorno ao imediato da sensação ou a alguma forma de “mostrar” que não se submete ao
“conceitualizar”, isto em uma chave que será explorada, por exemplo, por Jean-François
Lyotard. No entanto, ele não é apenas reificação de experiências sociais sedimentadas sob a
forma de objeto. Experiências que adquiriram uma complexidade tal, uma
sobredeterminação tal que elas aparecem opacas aos sujeitos cognoscentes. Ou melhor, ela
é isto, mas a condição de compreendermos como Adorno procura desativar a confrontação
entre estes dois pólos na constituição de um conceito renovado de materialismo.
De fato, Adorno insiste que, sob a forma de objeto, há a sedimentação de
experiências históricas de interação social. No entanto, tais experiências não se deixam ler
através de estruturas simples de causalidade, de unidade e de relação. Por isto, nem no
limite elas aparecem como transparentes a uma forma do pensar própria ao entendimento.
Parece-me que o segredo do primado do objeto consiste em nos levar a pôr a seguinte

303
ADORNO, ND, p. 44
304
ADORNO, Prismas, São Paulo, Ática, p. 19
305
ADORNO, ND, p. 48
306
ADORNO, ND, p. 59.
questão: em que a experiência de rememoração da ontogênese das capacidades prático-
cognitivas dos sujeitos nos obriga a reorientar a compreensão das expectativas depositadas
nos processos de interação social? Em que tal ontogênese nos libera de uma representação
identitária dos interesses, aspirações e estruturas que constituem o solo dos processos de
interação social? Daí porque o problema do primado do objeto é necessariamente solidário
da questão sobre uma racionalidade mimética que, por operar através de afinidades
miméticas, não depende mais de estruturas representacionais de identidade e diferença.
Reconheço que esta articulação entre experiência social e reflexão filosófica sobre a
heterogeneidade do sensível, articulação fundamental para a constituição da noção central
de primado do objeto, talvez não tenha sido feita a contento. De maneira retroativa, parece-
me que pequei por secundarizar em demasia as reflexões, no interior da Dialética Negativa,
a respeito das especificidades do funcionamento do capitalismo contemporâneo. Neste
sentido, a articulação entre materialismo e experiência metafísica fica comprometida. Uma
coisa é certa, ela é central ao projeto adorniano. Vale a pena lembrarmos, mais uma vez,
deste trecho de uma carta a Scholem:

o que chamo de primado do objeto, neste debate em toda imanência gnoseológica


(...) parece-me ser, uma vez que nos livramos do idealismo, o resultado de se fazer
justiça ao materialismo. Os argumentos pertinentes que creio ter produzido contra o
idealismo apresentam-se (...) como materialistas. Mas no coração deste
materialismo, não há nada de terminado, nenhuma visão do mundo, nada que seja
fixo. É esta via em direção ao materialismo totalmente diferente do dogma que me
parece caucionar esta afinidade com a metafísica, eu teria quase dito: com a teologia
(...) A intenção de salvar a metafísica é efetivamente central na Dialética
Negativa307.

Um dos principais eixos deste curso consistiu em tentar pensar esta transformação
improvável da dialética materialista em um materialismo impregnado de uma metafísica
cujos conceitos não procuram mais ter uma potência normativa. Um materialismo para o
qual convergem temas marxistas relativos ao primado das relações sócio-econômicas e
temas psicanalíticos a respeito da estrutura dos impulsos e do corpo, ou seja, “a
aproximação possível entre psicanálise e análise do sistema econômico”308, tão
desacreditada, por exemplo, por Axel Honneth. Olhando retroativamente, parece-me que
faltou ao nosso curso um cuidado maior exatamente a respeito dos “temas marxistas
relativos ao primado das relações sócio-econômicas” e, se oferecer novamente este curso,
creio que este seria um ponto que certamente seria modificado. Isto apenas me faz querer
terminar este curso com uma frase de Michel Foucault:

Quanto a estes para quem se esforçar, começar e recomeçar, tentar, enganar-se, tudo
retomar tudo de cima abaixo e ainda encontrar meios de hesitar a cada passo, quanto
a estes para quem, em suma, trabalhar mantendo-se em reserva e em inquietação
equivale à demissão, pois bem, nós não somos, e isto é evidente, do mesmo
planeta309.

307
ADORNO, Carta a Scholem 14/03/1967 apud MÜLLER-DOOHM, Adorno, Paris, Gallimard, 2003
308
HONNETH, Critic of power, MIT Press, 1991, p. 101
309
FOUCAULT, Histoire de la séxualité II, p. 14

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