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A ensaística adorniana e o filosofar em educação

Adornian essay practice and philosophizing in


education
Divino José da Silva*
* Professor de Filosofia da Educação do Departamento de
Educação e Programa de Pós-Graduação em Educação em
nível de Mestrado e Doutorado da Faculdade de Ciências
e Tecnologia da UNESP/Presidente Prudente, SP.
E-mail: divino.js21@uol.com.br

Resumo
Em “O ensaio como forma”, Theodor Adorno critica o pensamento filosófico dominante que, por diferen-
tes vias, manifesta a pretensão de compreender o real em sua totalidade, em que o caráter universal
do conceito anula a singularidade do objeto. Adorno vislumbra no ensaio a possibilidade de se pensar
aspectos do objeto os quais foram, de modo coercitivo, negados pelo caráter identitário da razão. O nosso
objetivo neste artigo foi pensar a importância do ensaio para a filosofia da educação enquanto um modo
de reflexão sobre e na educação. O ensaio, nos termos adornianos, nos instiga a pôr em dúvida valores,
crenças e estereótipos que limitam nossa experiência educativa, ao mesmo tempo em que nos possibilita
resgatar nela o que foi esquecido pela razão, pelos saberes e pelas práticas pedagógicas, na atualidade.
Palavras-chave
Adorno. Filosofia da Educação. Prática Reflexiva.

Abstract
In “Essay as Form”, Theodor Adorno criticizes the dominant philosophical thinking that, by different me-
ans, claims understanding the reality as a whole, in which the universal nature of the concept nullifies
the singularity of the object. Adorno considers the essay as a possibility of thinking about aspects of the
object that were, coercively, denied by the identity nature of reason. Our aim in this article is to reflect on
the importance of the essay in philosophy of education as a way of reflection on education. The essay, in
adornian terms, encourages us to question values, believes, and stereotypes that restrain our educational
experience, and at the same time, it enable us to retrieve, within such experience, what has been forgotten
by reason, by knowledge, and by pedagogical practices of the present days.
Key words
Adorno. Philosophy of Education. Reflective Practice.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande, MS, n. 36, p. 33-48, jul./dez. 2013
Introdução [...] não é somente uma condição
necessária ao funcionamento da ra-
A filosofia da educação, enquanto cionalidade ocidental, é mais que isso
uma reflexão sistemática e intencional – ele configura uma tomada de poder
sobre a educação, exige de quem a pratica nada inocente sobre a realidade, e só
abertura e disposição para refletir sobre consegue apreendê-la pela violenta-
temas e problemas que são, em grande ção. (GAGNEBIN, 1997a, p. 114).
medida, circunstanciais, contextuais, que Esta constitui uma das preocu-
constituem verdadeiros desafios no con- pações que se fará presente em toda a
texto das práticas educacionais atuais. Por filosofia adorniana, expressa nessa perma-
esse motivo, trata-se de um filosofar ad hoc, nente denúncia ao caráter identitário da
sem desprezar o que a tradição e a filosofia razão, o qual reduz a realidade do objeto
contemporânea têm a nos dizer sobre os à estrutura do sujeito do conhecimento.
temas e problemas que nos afligem na Como pensar a verdade do objeto em sua
educação. O trabalho daqueles que se de- imagem não identitária, em sua diferença
dicam à filosofia e à filosofia da educação, e em seu outro esquecido? Ou seja, como
nesse caso, não é transpor diagnósticos pensar a verdade em um contexto que nos
de um passado para o presente nem rea- impossibilita situar fora da falsa totalidade
lizar uma leitura edificante da história da ideológico-social? O nosso objetivo, neste
filosofia. Consiste menos ainda em forjar texto, será retomar aspectos da crítica de
conceitos que se apoderam arbitrariamente Adorno ao pensamento filosófico domi-
da realidade e que só admitem como filo- nante1 que, por diferentes vias, manifesta
sofia o pensamento que torna o particular
transparente, submetendo-o à aplicação de
1
categorias universais. Esse tipo de prática Na aula inaugural proferida como livre-docente
filosófica “[...] só se preocupa com alguma na Universidade de Frankfurt, em 1931, intitulada
“Atualidade da filosofia”, Adorno explicita os alvos
obra particular do espírito na medida em de sua crítica identificados na filosofia da idealista
que esta possa ser utilizada para exempli- da Escola Neokantiana de Marburgo, que, basea-
ficar categorias universais [...]” (ADORNO, da num conceito de razão universal, despreza o
2003, p. 16). Contra essa forma de pensar, contexto histórico e social. Critica a fenomenologia
em que o caráter universal do conceito de Husserl e Max Scheler, cujo esforço, segundo
Adorno, estivera voltado para recuperar a ratio
anula a singularidade do objeto, Adorno autônoma, mas se valendo do mesmo aparato
vislumbra no ensaio a possibilidade de se conceitual do idealismo pós-cartesiano. Adorno
pensar aspectos do objeto os quais foram, critica também a ontologia de Heidegger, por não
de modo coercitivo, negados pelo caráter levar em conta o caráter fetichista dos objetos en-
identitário da razão, que ordena o real em quanto mercadoria, os quais não podem ser dados
imediatamente à experiência, mas estão mediados
sua multiplicidade. pelas relações de troca. Por fim, Adorno critica o
O conceito de identidade, no pensa- caráter reducionista das filosofias cientificistas iden-
mento adorniano, tificadas com a Escola de Viena, que restringe todo

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a pretensão de compreender o real em sua não pode se expressar, teimando em dizer
totalidade, por meio da identidade entre o indizível.” Adorno encontra no ensaio,
sujeito e objeto. Num segundo momento, enquanto forma de expressão intelectual,
interessa-nos pensar o que decorreria des- o lugar para o exercício da filosofia como
sa crítica para uma filosofia da educação experiência do próprio pensar que escapa
que tenha como preocupação situar-se ao primado da transparência, da unidade
nos interstícios da crítica ao pensamento e da identidade que o sujeito impõe ao
da identidade, na interpretação e análise objeto.
dos problemas do campo da educação. O
desafio, portanto, é continuar filosofando 1 O ensaio e a crítica às pretensões
sem cair nas armadilhas do pensamento da filosofia na atualidade
identitário, mantendo assim o paradoxo
O ensaio como forma de expressão
que perpassa a filosofia adorniana.
intelectual, esclarece Duarte (1997), en-
No artigo “O ensaio como forma”,
contra raízes profundas no pensamento
Theodor Adorno nos oferece um sentido
de Adorno que, já em 1931, em sua aula
para o filosofar e, nesse caso específico,
inaugural2 como livre-docente na Univer-
para o filosofar em educação, que se
sidade de Frankfurt, destaca os elementos
distancia da filosofia como verdade nos
que posteriormente apareceriam em sua
moldes postulados pela tradição moderna,
filosofia madura, dentre os quais se sobres-
para nos situar numa prática reflexiva que
sai a problemática do ensaio. Adorno inicia
toma o pensar enquanto experiência com
sua conferência com uma séria advertên-
o próprio pensamento, que sabe de seus
cia acerca das pretensões da filosofia, na
limites na atividade de pensar o pensado,
atualidade:
por isso põe em questão a relação sujeito-
objeto e as verdades que dela decorrem. Quem hoje em dia escolhe o trabalho
No modo de pensar essa relação, Adorno filosófico como profissão deve, de
(1995a) estabelece a precedência do objeto início, abandonar a ilusão de que
sobre o sujeito, evidenciando os limites do partiam antigamente os projetos
filosóficos: que é possível, pela capaci-
sujeito em sua pretensão em apreender
dade do pensamento, se apoderar da
e decifrar a verdade do objeto. Há em totalidade do real. [...] A filosofia, que
Adorno, ressalta Leo Maar (1995), uma hoje se apresenta como tal, não serve
atitude de “[...] dedicação e abertura frente para nada, a não ser para ocultar a
ao objeto, frente à coisa [...]. Como num realidade e perpetuar sua situação
diálogo com Wittgenstein, procura evitar atual. (ADORNO, 2000, p. 01).
o emudecimento do que aparentemente
2
Essa conferência foi intitulada “Atualidade da
filosofia” e publicada com esse mesmo título:
o conhecimento ao âmbito da experiência. Confira ADORNO, T. W. Gesammelte Schrifen 1. Philoso-
Adorno (2000), Buck-Morss (1981) e Pucci (2000). phische Frühschriften.

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Adorno evidencia o descompasso O artigo “O ensaio como forma”3
existente entre as pretensões das filosofias traduz a opção de Adorno por um estilo
que visam a abarcar com o pensamento em filosofia, por um modo de filosofar que
o real, em sua totalidade, e uma realidade se identifica com a escritura do ensaio.
que resiste a essa possibilidade e não se Nessa opção pelo ensaio, o autor encon-
rende à sistematicidade do pensamento. tra elementos que o distanciam do modo
Sustentar essas pretensões no horizonte tradicional de fazer filosofia, bem como
da reflexão filosófica significaria encobrir encontra nesse tipo de escrita uma forma
a realidade, mantendo-a em seu estado de pensar o próprio pensamento, num
atual. Posto isso, recai sobre o diagnóstico movimento de autorreflexão que não o
adorniano a seguinte questão: que exigên- salvará de seu profundo dilaceramento,
cias são postas a uma filosofia que põe em porque a pretensão ao absoluto traz em
dúvida a possibilidade do pensamento de si a falsidade do pensamento.
se apoderar da totalidade da realidade, a O ensaio, na leitura adorniana,
partir de categorias que estruturam a nossa confere atualidade à filosofia, já que
experiência? A resposta a essa pergunta encontra nele elementos que se opõem
está diretamente ligada ao modo como às pretensões do pensamento filosófico
Adorno se propõe filosofar e conferir atu- acadêmico que reivindica sua validade por
alidade à filosofia. Essa filosofia, assinala meio do acesso ao universal. O particular,
Safatle (2009), se constituirá a partir de um nesse caso, só desperta interesse quando
permanente movimento de confrontação pode ser subsumido ao universal e refe-
entre a elaboração conceitual e os cam- rendado por suas leis. “O ensaio [...] não
pos dispersivos do mundo empírico. Esse admite que seu âmbito de competência
cuidado em medir a distância entre esses lhe seja prescrito” (ADORNO, 2003, p. 16).
dois campos vai aparecer na configuração Por isso mesmo, lida com os objetos com
do texto filosófico. Os efeitos dessa relação o frescor da curiosidade de uma criança
podem ser identificados na interferência que é capaz de espantar-se com o mundo
oriunda das ciências empíricas, destaque no qual o olhar calejado dos adultos não
especial para a sociologia, na elaboração vê mais do que obviedades e filiações de
da reflexão filosófica. Essa atitude diminui sentidos. O ponto de partida do ensaio é
as pretensões da filosofia, pois lhe exige o que outros já fizeram e pensaram, por-
a adoção de um estilo fragmentário, que tanto ele não parte do zero, não cria do
gira em torno de algo que lhe escapa e nada, mas retoma o que foi dito sobre um
que só pode ser pensado e descrito por determinado assunto e busca fazer falar o
meio de suas resistências. Por essa razão, que nele foi esquecido. Além disso, é livre
Adorno toma o ensaio como forma privile-
giada para o exercício do pensar filosófico,
que resiste às totalizações apressadas do 3
A forma ensaio, conforme Duarte (1997), está
pensamento. presente em toda a obra de Adorno.

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para dizer o que lhe interessa e termina cultores da objetividade, da exatidão e da
onde não há mais nada a dizer, sem se eficiência, como uma espécie de inteligên-
preocupar, por conseguinte, em encontrar cia delirante que, ao final das contas, se
a causa primeira dos fenômenos e o fim revelaria impotente, pois insiste em expli-
para o qual eles convergiriam: “Ele não car o que não existe. Para esse modo de
começa com Adão e Eva, mas com aquilo pensar, que evita a negatividade e credita
sobre o que deseja falar” (ADORNO, 2003, ao sujeito as condições para conhecer
p. 17). Nisso reside a intensa relação entre o objeto, comenta Adorno (2003, p. 17),
a forma ensaio e a liberdade de espírito, da não restaria alternativa ao homem, senão
qual suspeita o pensamento oficial que o manter “[...] os pés no chão ou a cabeça nas
vê como um despropósito. nuvens”. O esforço do ensaísta em ir além
O ensaio não goza de boa reputação do imediatamente dado, na tentativa de
perante as formas tradicionais de fazer e entender as determinações do objeto em
pensar a filosofia, que o via como uma análise, “[...] é estigmatizado como ocioso,
mescla arbitrária de ciência e arte. Por como um abandonar-se a especulações
essa razão, atrai sobre si o preconceito e a soltas” (PUCCI, 2002, p. 322).
pecha de falta de seriedade. Afirma Adorno Adorno (2003) critica como ilusória a
(2003, p. 15): “Ainda hoje, elogiar alguém pretensão, bastante frequente entre aque-
como écrivain é o suficiente para excluir les que se dedicam à História da Filosofia,
do âmbito acadêmico aquele que está em realizar uma interpretação da obra de
sendo elogiado”. Ciente dessa má reputa- um autor, como se fosse possível identifi-
ção do ensaio, Adorno nos oferece uma car de maneira exata o que ele quis dizer.
reflexão que configura uma autorreflexão Uma prática filosofante que privilegia a
da filosofia acerca da própria forma de especialização extrema põe sérios limites
exposição do pensamento filosófico. Nesse à criatividade. Proceder assim é negar no
exercício, o filósofo expõe-nos, de maneira receptor sua espontaneidade e fantasia
meticulosa, os elementos constituintes subjetiva na recepção do objeto, que são
do ensaio, defendendo-o dos ataques da condenadas em nome da objetividade.
filosofia acadêmica e do positivismo, bem Contrapondo-se a essa pretensão, enfatiza
como dos riscos que o ensaio corre de Adorno (2003, p. 18):
se igualar às manifestações da indústria
Nada se deixa extrair pela interpreta-
cultural, na atualidade.
ção que já não tenha sido, ao mesmo
O ensaio como forma de expressão tempo, introduzido pela interpretação.
do pensamento, que se debruça longa- Os critérios desse procedimento são a
mente sobre seu objeto, é visto pelos compatibilidade com o texto e com a
amantes dos clichês e das formas de própria interpretação, e também a sua
pensar classificatórias como uma perda capacidade de dar voz ao conjunto de
de tempo. Quem se dedica a esse tipo elementos do objeto.
de atividade pensante é rotulado pelos

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É nesse sentido que, para Adorno ensaio nos fornece a medida do sentido do
(2003), o ensaio traz em si elementos da filosofar, em que conteúdo e forma, ideia e
arte, aproximando-se de uma autonomia estilo se interpenetram. Nesse ponto, Ador-
estética, ao mesmo tempo em que dela se no se distancia de Lukács, o qual definiu
diferencia, pois lida com conceitos e não o ensaio “[...] como uma forma artística”
desiste de sua pretensão à verdade que (apud ADORNO, 2003, p. 18), criticando o
expõe as fissuras do mundo, ciente da positivismo, que reivindica uma linguagem
impossibilidade de haver uma correspon- não artística para falar da arte. Em ambos
dência entre pensamento e objeto. Porém os casos, ocorreria a separação entre a
o cuidado no trato com os conceitos é a forma de expressão do pensamento e o
condição para se contrapor à ambivalência conteúdo do objeto. O ensaio não se situa
das palavras: “Sem apologia, ele [o ensaio], em nenhum desses polos, mas articula em
leva em conta a objeção de que não é seu interior o rigor no jogo dos conceitos
possível saber com certeza os sentidos com a necessidade de adequar a forma
que cada um encontrará sob seus con- de expressão à complexidade do objeto.
ceitos” (ADORNO, 2003, p. 29). Exige-se, Adorno encontra no ensaio os ele-
aqui, uma recíproca interação entre os mentos para sua crítica à metafísica e a
conceitos a qual quebre neles o caráter toda filosofia que se define como sistema.
de mônadas, bem como a necessidade No trecho a seguir, como que numa reto-
de se precisar com acuidade seus signifi- mada da censura de Nietzsche à tradição
cados. Nessa experiência intelectual com do pensamento ocidental, Adorno (2003,
os conceitos, eles não caminham em um p. 24) anuncia o mote que norteia sua
sentido único, mas se entrelaçam em seus reflexão a respeito do ensaio: “Em relação
vários momentos, chegando a tal ponto ao procedimento científico e sua funda-
em que “[...] o pensador, na verdade, nem mentação filosófica enquanto método, o
sequer pensa, mas sim faz de si mesmo ensaio, de acordo com sua idéia, tira todas
o palco da experiência intelectual, sem as conseqüências da crítica ao sistema.”
desemaranhá-la” (ADORNO, 2003, p. 37). Além de levar às últimas consequências
É essa experiência que o ensaio valoriza a crítica às filosofias que se definem como
e toma como parâmetro, sem fazer dela sistema, há no ensaio a recusa em reduzir
um método. Salienta ainda Adorno (2003, o conhecimento a um princípio que a
p. 37) que “[...] a consciência da não identi- tudo fundamenta. No entanto faz isso sem
dade entre o modo de exposição e a coisa negar o papel da própria teoria. A esse
impõe à exposição um esforço sem limites. respeito, escreve Barbosa (2006, p. 04):
Apenas nisso o ensaio é semelhante à
Com isso, o ensaio se apresenta como
arte [...]”. Desse modo, o cuidado com o
a forma de uma teoria crítica. O que
como expressar e com o saber-expressar torna crítica esta teoria não é o prima-
pode trazer à tona o que há de perigoso do da pergunta sobre as condições de
e incômodo nas próprias coisas. Assim, o

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possibilidade de todo o conhecimento linguagem. Pois a tragédia para a
– embora nem por isso o ensaio recue utopia do conhecimento consiste em
diante de uma crítica da razão. Contra que o singular só se deixa dizer pelo
toda espécie de filosofia transcenden- universal – portanto, que quando o
tal, de reflexão prévia seja sobre o singular é dito, já não é o singular que
sujeito, ou a consciência, seja sobre é dito, não restando outra alternativa
o Dasein, contra tudo que possa ser senão tentar dizê-lo sempre de novo,
o primeiro, o princípio, o fundamento, numa aproximação infinita ao não-
o ensaio faz de sua crítica da razão idêntico. (BARBOSA, 2006, p. 4).
uma crítica da idéia de uma filosofia
Se pudéssemos pensar em uma
primeira. (grifos do autor).
imagem para traduzir o caráter trágico
Não é sem motivo que Adorno reto- da linguagem, no ensaio adorniano, nos
ma Montaigne, por meio de Lukács, para reportaríamos a um trecho do belo poema
resgatar o espírito do ensaio. Montaigne de Manoel de Barros, intitulado “O menino
adota o ensaio como a maneira mais que carregava água na peneira”, em que,
adequada para falar das experiências for- ao tratar do ofício daqueles que se dedi-
madoras do eu. E, nele, o ensaio designa cam à literatura, à poesia, por conseguinte,
um modo de expressão, um estilo literário. à escrita, assinala o seguinte:
Mas esse não é apenas um estilo de es-
Com o tempo aquele menino que era
crita, mas um modo de pensar a relação cismado e esquisito/porque gostava
entre o eu e o mundo. Tal relação, ressalta de carregar água na peneira/com o
Adorno (2003), não obedece às regras do tempo descobriu que escrever seria o
conhecimento científico, em que haveria mesmo que carregar água na peneira.
uma correspondência entre a ordem das [...]. A mãe reparava o menino com ter-
coisas e a ordem das ideias. Em oposição nura. A mãe falou: meu filho você vai
aos grandes sistemas de razão, o ensa- ser poeta. Você vai carregar água na
ísta abandona qualquer esperança em peneira a vida toda. Você vai encher
alcançar algo definitivo, porque sabe que os vazios com as suas peraltagens
a linguagem não pode nomear o ser. As re- e algumas pessoas vão te amar por
seus despropósitos. (BARROS, 2005,
gras da linguagem e da lógica constituem
s/p).
um sistema arbitrário em que jogamos
com sombras. Há também a consciência Essa imagem parece fazer jus àque-
de que jamais sairemos do domínio das la em que Adorno (2003, p. 35) define o
palavras. Nesse aspecto, o ensaio tem algo ensaio como tentativa, como uma “inten-
de trágico: ção tateante”, que não traz em si nada de
programático. Por isso, mescla em si, como
No seu esforço de dizer o que não se
deixa dizer, de captar pelo conceito tentativa, “o ideal de acertar na mosca”, com
o que resiste ao conceito, o ensaio a consciência de sua própria contingência
mergulha até o fim na tragédia da e falibilidade. Isso significa que os pro-

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pósitos do ensaio como tentativa podem respeito dessa língua têm pouca utilidade.
ou não ser atingidos. A palavra ensaio, Na realidade, as regras gramaticais e as
como lembra Moreau (1961, p. 66-79), em definições dos dicionários engessam o
seu comentário a Montaigne, tem vários sentido das palavras, que só podem ser
sentidos. Pode significar experiência, “jogo compreendidas no contexto em que são
da imaginação e da inteligência”, “tentati- ditas. Nessa experiência, uma palavra só
vas apenas esboçadas”, “um exercício de adquire sentido depois de ouvida, uma
escrita, um rascunho, algo não definitivo”. infinidade de vezes, em diferentes con-
A definição de ensaio que nos é dada por textos. Esse tipo de aprendizado, sustenta
Starling (2004, p.06) é esclarecedora: Adorno (2003, p. 30), está sujeito ao erro,
A rigor, ensaios são uma forma de e o mesmo acontece com a forma ensaio,
exposição que desconfia do sentido que, por ser uma experiência intelectual
definitivo ou único dos acontecimen- aberta, está sujeita à dúvida, portanto
tos e das idéias, apresentado pela renuncia a qualquer ideal de certeza. Por
teoria ou pela história, perseguem as isso mesmo, ele é anticartesiano, porque
condições de acesso ao que neles foi não há regras fixas que regulam essa
preterido, eclipsado ou anulado como relação entre sujeito e objeto. Nesse caso,
inútil, e reconhecem o heterogêneo, cada objeto exige do sujeito a construção
o dissonante, ou fragmentário como dos elementos requeridos àquela situação
um método para interrogar o presente. específica em análise. O que faz o ensaio
O método ao qual se refere Starling, é tomar o objeto, aqui e agora, em sua es-
ao final da citação, não é o mesmo que pecificidade e naquilo que ele tem de vivo
Adorno combate, que tem em Descartes e problemático para o presente. É assim,
seu mais hábil articulador. O método ao dirá Adorno (2003, p. 33), “[...] que o en-
qual esses autores aludem corresponde saio abala a ilusão desse mundo simples,
a uma atitude de abertura do sujeito lógico até seus fundamentos, uma ilusão
em relação ao objeto, que carece de um que se presta comodamente à defesa do
conjunto de regras que, se supõe, garan- status quo”.
tiria ao sujeito representar a verdade do Expor de maneira cartesiana o
objeto. No ensaio, prevalece a memória objeto é submetê-lo à arbitrariedade do
da experiência do pensar enquanto ato, próprio método, logo, do próprio sujeito.
de um pensar que se desenrola “[...] meto- Aqui reside o caráter mesquinho do mé-
dicamente sem método” (ADORNO, 2003, todo, cuja pretensão é não deixar nada de
p. 30). Adorno compara essa experiência fora. Dessa forma, o método e a ciência
do pensar em ato àquela de alguém que, que dele se serve reprimem a angústia
estando em terra estrangeira, tem que e o medo do ameaçador, daquilo que
arriscar a falar a língua desse país, em não pode ser apreendido e dito. Nesse
que as regras que lhe foram ensinadas caso, “[...] a linguagem deve resignar-se ao
na escola ou as receitas dos manuais a cálculo; para conhecer a natureza, deve

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renunciar a pretensão de ser semelhante da própria razão a qual critica, sem se
a ela” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, render aos seus aspectos regressivos. Esse
31). A mímesis originária, aquela em aproximar-se do objeto sem violentá-lo, na
que o sujeito se entrega aos prazeres e, perspectiva adorniana, requer, como expli-
portanto, às ameaças que dela decorrem, ca Gagnebin (1997b, p. 103), uma nova
é substituída, segundo Gagnebin (1997b, mimésis, que se distancia tanto dos seus
p. 89), por uma mimésis “[...] perversa que aspectos originários presentes na magia
reproduz, na insensibilidade e no enrije- mítica, quanto dos elementos da mimésis
cimento do sujeito, a dureza do processo controladora identificada, sobretudo, com
pelo qual teve que passar para se adaptar os saberes modernos. Essa mimésis, à qual
ao mundo real [...]”. O método cartesiano remete a autora, privilegiaria uma dimen-
constitui o modelo para a racionalidade são lúdica do pensar, que nos permitiria
moderna, que não suporta o que insiste em uma aproximação do objeto sem exercer
sobreviver subterraneamente, o que lembra sobre ele violência, de tal maneira que
perder-se em mundos inteligíveis, o que fosse possível compreendê-lo e dizê-lo, sem
lembra o ócio e a inadaptação à discipli- oprimi-lo e desfigurá-lo. Nessa relação de
na do trabalho, motivo pelo qual se lança conhecimento, o medo e a angústia pre-
sobre ele de maneira compulsiva. O que o cisam ser eliminados, para que se respeite
ensaio pretende, no registro adorniano, é o espaço da diferença e da distância, con-
libertar o pensamento dessa “compulsão à tendo o desejo de dominação do sujeito
identidade” que elimina dele a curiosidade, que conhece.
“princípio do prazer do pensamento”. O en- Conforme Gagnebin (1997b), essas
saio não hostiliza a felicidade inerente ao dimensões da nova mimésis adorniana
ato de pensar movido por essa curiosidade aqui retomadas, rapidamente, constituem
que não se fecha à novidade. Ao proceder, uma ideia reguladora que está presente de
assim, “[...] o ensaio é presenteado, de vez diferentes maneiras nas obras de Adorno.
em quando, com o que escapa ao pensa- No livro Dialética do Esclarecimento, ela
mento oficial: o momento do indelével, da aparece na crítica ao conhecimento como
cor própria que não pode ser apagada” dominação e na oposição à dialética
(ADORNO, 2003, p. 36). hegeliana, que tudo reconcilia no espírito
Aqui, parece, chegamos a um ponto absoluto. Essa promessa de reconciliação
crucial da prática filosófica de Adorno, que e, ao mesmo tempo, a sua impossibilidade
é o vislumbre dessa possibilidade de o serão retomadas no conceito de dialética
pensamento escapar à relação identitária negativa, presente na última filosofia de
entre sujeito e objeto, portanto, da violência Adorno. E, por fim, na obra Teoria Estética,
que o primeiro exerce sobre o segundo. Adorno toma a arte como o lugar do com-
Esse é um problema que perpassa toda a portamento mimético em que se vislumbra
filosofia do autor, qual seja, o de postular a possibilidade de tocar com as próprias
uma forma de pensar situada no âmbito mãos o intocável e ouvir o inaudível com

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os próprios ouvidos. Adorno chama isso, na contramão do pensamento esclarecido
como lembra Gagnebin (1997a, p. 118), que tem horror à mimesis, que nos recorda
de “contato sensível com as coisas”; esse aspectos do imemorial superado em nós, e
aspecto, afirma a autora, de tudo aquilo que não estabelece limites
[...] assinala uma certa humildade do claros e fixos entre o ego e o mundo. O
pensar que quer seguir com ternura ensaio reivindica essa aproximação do que
os contornos do sensível, gratuita- foi recalcado pela cultura. Por isso, ele não
mente, por simples prazer e respeito, se ilude com a separação que as formas
sem calcular antes qual poderia ser o de pensar tradicionais estabelecem entre
‘lucro’ que daí resultaria ou não. Esse cultura e natureza. O que subjaz à cultura
gesto deverá assumir uma importân- é a sociedade em seus aspectos falsos e
cia crescente na filosofia de Adorno, contraditórios, em que as desigualdades,
alimentando toda a sua revalorização a dominação e o sofrimento humano são
do conceito de mímesis, não como ocultados. O ensaio não busca eliminar a
mera imitação nem como intuição
natureza, mas revelar seu caráter de não
aconceitual, mas, justamente, como
identidade soterrado pelo engodo da cultu-
uma flexibilidade aconchegante à
singularidade e à multiplicidade do ra. Nesse sentido, o ensaio leva a cultura a
concreto: o que desembocará na sua pensar em sua própria inverdade, enquan-
teoria estética. to uma espécie de segunda natureza: “Sob
o olhar do ensaio, a segunda natureza
Adorno (2003) constrói, a partir de toma consciência de si mesma como
Max Bense, uma imagem do ensaio em primeira natureza” (ADORNO, 2003, p. 40).
que conhecer é experimentar o objeto, é Nisso parece residir o caráter anamnético
apalpá-lo, revirá-lo e prová-lo, para depois do ensaio, que solapa as bases do pen-
submetê-lo à reflexão. É tomar o objeto samento que tem como meta sustentar
de diferentes lados e traduzir por meio de uma identidade com limites claros e fixos.
palavras o que dele se permite vislumbrar. É nesse ponto que o ensaio se vincula à
Nessa perspectiva, o ensaio como crítica tendência mimética que busca fazer jus
filosófica constitui, como salienta Barbosa ao objeto, não o violentando.
(2006, p. 6), um “[...] esforço paciente de Insistimos até o momento em des-
fazer falar o reprimido, o recalcado – de dar tacar aspectos da ensaística em Adorno,
voz ao sofrimento.” É por essa via, continua entendida enquanto forma de expressão
o autor, que “[...] a autorreflexão da razão intelectual que se distancia da prática filo-
torna-se assim uma anamnese – uma sófica nos moldes da filosofia tradicional,
recordação da natureza no sujeito”. em que se estabelece a identidade entre
Esse elemento da recordação, da sujeito e objeto como pressuposto para
anamnese, nos leva a pensar o ensaio o conhecimento da verdade do objeto.
como um esforço mimético de aproximação O pensamento de Adorno, bem como a
do sujeito ao objeto, o que o faz caminhar sua prática filosófica expressa na forma

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ensaio, denuncia os limites do sujeito na que essa opção ou pretensão comporta
compreensão do objeto. Por outro lado, o desafios, para os quais nos alerta Adorno.
filósofo encontra no ensaio a possibilida- Ciente desses desafios, o filosofar em edu-
de da experiência com o pensamento, na cação por meio do ensaio nos leva a pôr
qual permanece retesada a intransponível em dúvida os modismos em educação e
tensão entre as coisas e o sentido que a os regimes de verdade que eles arregimen-
elas conferimos. Adorno revigora um estilo tam, além de trazer à tona a fragilidade, os
em filosofia em que o exercício do filosofar limites da teoria frente à complexidade em
é incompatível com a certeza, visto ser o que se inserem as nossas práticas pedagó-
ensaio uma tentativa, um rascunho de algo gicas. Desse modo, o ensaio enquanto uma
que não é definitivo, por isso mesmo pode forma de reflexão sobre/na educação nos
ser retomado, relido e apreciado a partir de instiga a pôr em dúvida os valores, crenças
outras perspectivas. É dessa maneira que o e estereótipos que limitam nossa experi-
ensaio se presta à prática de um filosofar ência no presente, ao mesmo tempo em
ad hoc. Adorno e Horkheimer, lembrará que nos proporciona “[...] uma autorreflexão
Habermas (1998), depois de tecerem duras crítica” (ADORNO, 1995b, p. 121), capaz de
críticas à razão e de se proporem conti- contrapor-se à ausência de consciência a
nuar filosofando sem os subterfúgios da respeito do que somos, do que fazemos,
metafísica e sem as pretensões realistas do do como fazemos e do para que fazemos,
positivismo, optam por praticar negação ad em nossas práticas educativas.
hoc ou, se quisermos, uma filosofia ad hoc, À prática do ensaio, como o concebe
interessada em pensar a realidade a partir Adorno, acrescentamos uma indicação de
das determinações sociais. É por essa via Foucault acerca do papel da filosofia, a
que vão persistir na crítica negativa, sem qual deve se ocupar em exercer a crítica
deixá-la esmorecer. aos conteúdos e ideias que adquiriram,
ao longo da história, um valor de verdade.
2 O ensaio e o filosofar em educação Assim, interroga Foucault (2000, p. 180),
a respeito do que os regimes de verdade
Iniciamos este texto afirmando que a fizeram de nós: “[...] quem sou eu, que
atividade da reflexão filosófica, no campo pertenço a esta humanidade, talvez a esta
da filosofia da educação, exige de quem parte, a este momento, a este instante de
a pratica a abertura e a disposição para humanidade que está sujeitada ao poder
refletir sobre temas e problemas que são da verdade em geral e das verdades em
circunstanciais, contextuais e significativos particular?” Os problemas postos aqui por
para a educação no presente, de sorte que Foucault são aqueles que deveríamos
se trataria de um filosofar ad hoc, que enfrentar, no campo da reflexão filosófica
pudesse se ocupar de temas e problemas em educação, que ganhariam o seguinte
próprios do campo da educação, adotan- desdobramento: que efeitos de poder as
do a perspectiva do ensaio. Obviamente verdades oriundas de distintos campos

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do conhecimento exercem sobre nós? So- associação entre este filósofo e Adorno, é
mos afetados por essas verdades? Somos produzir deslocamentos e mudanças em
aquilo que elas dizem de nós? A escola nossa forma rígida de pensar, é pensar de
é aquilo que as ciências e as pesquisas forma diversa, de tal modo que nos seja
em educação afirmam sobre ela? Nesse possível modificar os valores estabelecidos
ponto, guardadas as diferenças entre que nos impedem de tornar outro do que
Adorno e Foucault, ambos concordariam se é.
que o ensaio enquanto forma de expres- A segunda finalidade da filosofia da
são intelectual leva a sério tais perguntas, educação deveria ter como preocupação
no trabalho de reflexão sobre o presente, a avaliação dos saberes e práticas que
as quais uma filosofia da educação que são dominantes no âmbito do fenômeno
se queira atenta e sintonizada com os educativo. Num primeiro esforço de expli-
problemas atuais deveria, também, tomar citação dessa finalidade, retomamos os
como suas questões. desafios que, segundo Rouanet (1987),
Dessa maneira, os vínculos entre deveriam ser enfrentados pela filosofia,
os desafios postos pela educação aos na atualidade: a consciência, depois de
filósofos da educação e a perspectiva Marx e Freud, de que não há uma razão
do filosofar ad hoc, a partir do ensaio, livre de condicionamentos materiais e psí-
possibilitam-nos redimensionar as finalida- quicos; não podemos ignorar a diferença
des do filosofar em educação. A primeira weberiana entre razão substantiva, que
dessas finalidades consiste em colocar em estabelece fins para a ação, e uma razão
dúvida conceitos, ideias, valores e práticas, formal, instrumental, que está muito mais
como uma atitude que recusa considerar preocupada em ajustar meios a fins; é pre-
a realidade como um dado natural que se ciso levar em conta os aspectos repressivos
apresenta imediatamente à consciência do da razão denunciados por Adorno, os quais
sujeito cognoscente. Há aqui uma intrínse- têm exercido o domínio sobre o homem e
ca afinidade com o sentido do ensaio, cujo sobre a natureza, ao longo da história; por
mote é evidenciar o caráter arbitrário das fim, não pode ser esquecida a denúncia
verdades e a violência que elas exercem foucaultiana de que saber e poder estão
sobre nós e sobre as coisas. Pensar nesse entrelaçados e que estaríamos impos-
registro permitiria àqueles que lidam com o sibilitados de nos situarmos fora dessa
fenômeno educativo, a partir da perspectiva relação, no campo do conhecimento. Essas
da filosofia da educação, se confrontar com diferentes críticas à razão iluminista têm
os regimes de verdade em que se encer- implicações para o campo da educação.
ram os saberes escolares e as ilusões que A crença, até certo ponto ingênua, de que
eles comportam. Dessa maneira, podemos a razão e a educação a que a ela se filia
pôr em dúvida esses regimes. O filosofar podem conduzir os indivíduos à emanci-
nesse caso, segundo Foucault (2000), pação precisa ser lida com desconfiança.
apenas para fazer mais uma vez uma livre As críticas acima, se tomadas a sério, põem

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em dúvida as nossas certezas sobre o que, podemos deixar nunca de fazê-la, uma vez
por que e como fazer, em nossas práticas que só assim podemos manter a evidência
educacionais. O que a filosofia de Adorno dos limites inerentes à própria razão e dos
faz e, em específico o ensaio por nós aqui conceitos com que ela opera, no trato com
abordado, é pôr em dúvida as pretensões as coisas.
do sujeito, da razão, em esgotar em si o O último aspecto para o qual cha-
objeto. É dessa perspectiva que podemos mamos a atenção, nessa aproximação
pensar o educar, o formar, como uma entre o ensaio e a prática em filosofia da
atividade complexa que está submetida a educação, refere-se à necessidade de um
regimes de verdade, crenças, valores, difí- exercício do pensar que leve em conta
ceis de serem explicitados por meio do es- a história da filosofia, mas que também
clarecimento ou pelo autoesclarecimento. seja capaz de ensinar a filosofar. Seria
A terceira consequência que a filoso- um despropósito filosofar em educação
fia da educação deveria retirar do ensaio, sem considerar a história da filosofia e
nos moldes aqui tratados, refere-se ao da filosofia da educação produzidas ao
esforço permanente em não se render a longo dos séculos. Por outro lado, ressal-
um pensar dogmático e manter, portanto, tamos que, nesse caso, não é suficiente
a consciência de que o trabalho do pen- fazer uma boa história da filosofia, mas
samento é sempre limitado. Não há, como é preciso que se dê lugar nessa prática
nos ensina Adorno, um caminho mais ao filosofar no presente. Adorno (2003)
curto e fácil para a definição em filosofia. se mostra resistente à filosofia acadêmica
Não há um modelo simples e lógico para que, fechada em si mesma e preocupada
se lidar com a realidade, porque esta é em garantir a verdade interna dos sistemas
fragmentária e fraturada. O desafio posto de pensamento, perdeu a capacidade de
à filosofia da educação, em um contexto problematizar o mundo. Obviamente, cabe
regido pela lógica da eficiência, pela busca aqui uma ressalva: Adorno não desprezou,
da melhor performance no mercado e pela como filósofo, a importância de se fazer
lógica do ganhar tempo, é o de resistir à História da Filosofia e dominar suas téc-
pressa e à adesão aos ares de normalidade nicas, porém, soube como ninguém evitar
com que são aceitas práticas autoritárias que sua prática filosófica se tornasse uma
e injustas, no âmbito das relações sociais, especialização, o que lhe facultou, em ra-
e seus efeitos no campo pedagógico. A zão de sua própria formação, um trânsito
pergunta com a qual deve se ocupar a por vários campos – literatura, música,
filosofia da educação é a seguinte: como filosofia e sociologia – e uma abertura para
resistir, no campo pedagógico, contra prá- pensar por meio do ensaio, temas e pro-
ticas autoritárias, veladas ou não, as quais blemas contemporâneos. Esse cuidado em
são inerentes à própria história da razão equilibrar história da filosofia com o filoso-
ocidental? Essa pergunta, obviamente, far no presente requer uma iniciação em
não é fácil de ser respondida, porém, não autores como Platão, Aristóteles, Rousseau,

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Kant, Hegel etc., nso quais se enfatizem, particularmente ao aprendizado
conforme assinala Porchat (1999, p. 135), filosófico, caberá ao mestre apontar
aspectos que ainda estejam presentes nas as necessárias imperfeições das pri-
discussões contemporâneas acerca dos meiras tentativas, sugerir leituras que
problemas atinentes à educação. Além possam ser utilizadas como ponto
de apoio para os passos seguintes,
disso, é importante que voltemos o nosso
corrigir falhas de argumentação,
olhar para os autores contemporâneos e estimular o debate filosófico entre e
atentemos para os temas e problemas com os estudantes.
os quais eles se ocupam. Nesse exercício
do filosofar e, nesse caso específico, do A sugestão de Porchat para que
filosofar na educação, deveríamos dar estimulemos nossos alunos a se exercita-
atenção especial aos “[...] problemas filosó- rem no ensaio é o ponto de partida para
ficos que são problemas para os nossos a prática do ensaio nos moldes como nos
alunos, questões que naturalmente os propõe Adorno.
preocupam” (PORCHAT, 1999, p. 135), o que Para finalizar, ressaltamos que,
possibilitaria estabelecer vínculos com o ao longo deste texto, o nosso intuito foi
debate filosófico contemporâneo. Para tan- buscar identificar aspectos na ensaística
to, é necessário e desejável que os nossos de Adorno, sobretudo no artigo “O ensaio
alunos sejam estimulados a expressar suas como forma” que, a nosso ver, são impor-
ideias e pontos de vista acerca dos temas e tantes para a prática do filosofar em educa-
assuntos tratados em sala de aula. Enfim, ção. Um filosofar ad hoc, que se ocupa dos
que sejam incentivados a ensaiar textos problemas do presente sem a pretensão de
e a criticar formulações de pensadores esgotar qualquer tema ou assunto, mas
importantes para o campo da educação. É que aponta sempre para a complexidade
por meio dessas tentativas que os nossos do objeto. Filosofar ad hoc em educação e
alunos vão começar o exercício da reflexão na perspectiva da ensaística adorniana é
filosófica em educação. Mesmo que esses se colocar numa postura de abertura para
exercícios se apresentem, inicialmente, a reflexão dos problemas contemporâneos
pouco rigorosos, desajeitados e ingênuos, que nos afligem, em nossas práticas edu-
poderão ser melhorados mediante acom- cativas. Trata-se, inclusive, de pensarmos a
panhamento do professor. A esse respeito, educação distanciando-nos de conceitos,
questiona Porchat (1999, p. 138): regras e leis universais, e buscar encontrar
nela o que é da ordem do acontecimento e
Haverá outra maneira de aprender
a fazer algo, no campo teórico ou que escapa ao previamente dado e regula-
prático, senão começando a fazer e do pelos saberes científicos em educação.
fazendo, de preferência sob o acom- Assim, o ensaio nos auxilia na lida com
panhamento e aconselhamento de a incerteza e com o imprevisto, os quais
um mestre, aquilo que se quer apren- passariam a figurar como desafios pró-
der fazer bem? [...] No que concerne prios do campo pedagógico, que exigem

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(re)significação para a instauração de um aproximação do objeto por meio de uma
novo começo. Podemos dizer também que, nova mimesis que busca resgatar nele
do mesmo modo que há no ensaio algo o que foi esquecido, soterrado e negado
de trágico, pois a linguagem e os conceitos pela própria razão ou, se quisermos, pelos
são sempre limitados para dizer e explicar nossos saberes e pelas nossas práticas pe-
a realidade, esse mesmo elemento permeia dagógicas. Não se trata, portanto, de negar
nossas práticas educativas, visto que os o papel da teoria, mas de encontrar formas
nossos saberes são sempre limitados, ain- de aproximação do não idêntico, em que
da que indispensáveis, na abordagem do “[...] conhecer não significa mais dominar,
fenômeno educativo. Além disso, o ensaio, mas muito mais atingir, tocar, ser atingido e
na leitura adorniana, nos possibilita uma tocado de volta” (GAGNEBIN, 2003, p. 109).

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Recebido em maio de 2012


Aprovado para publicação em junho de 2012

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