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Relendo Freud - Ainda a via régia

323 - agosto de 2022


Sumário
Editorial
Editorial

Temática
​ isparos: a dimensão do despertar entre Freud e Lacan - Alexei Conte Indursky
D
Sonhos - Hugo Dvoskin
Sobre o lugar dos sonhos: possibilidades do reler-se e revisitar-se - Chaveli Dockorn B. Kinn
​“De quem é o sonho?” - Ana Paula Carvalho da Costa
Associações e restos: o nascimento do significante de Lacan, na interpretação de Freud. - Sidnei Artur Goldberg
Buraco, fios, nó, umbigo dos sonhos, nó, fios, buraco - Simone M. Brenner
A Caverna dos Sonhos Esquecidos - Leonardo Beni Tkacz
A representação da pulsão a propósito da natureza psíquica do desejar - Luís Fernando Lofrano de Oliveira

Debates
Amazônia: palavras para apagar incêndios - Edson Luiz André de Sousa
Editorial
Editorial
Em maio deste ano, fizemos a retomada, presencial, do evento Relendo Freud. Este é um momento importante de nossa associação,
em que celebramos a possibilidade do reencontro com textos fundamentais de Freud, os quais nos permitem seguir trabalhando as
perguntas que a clínica, e também a cultura, nos endereçam. Dessa vez, o evento marcou, ainda, o reencontro entre os associados
da APPOA, após mais de dois anos de pandemia.

Neste ano, o trabalho se deu sobre o texto fundante da psicanálise, A Interpretação do Sonhos, em que Freud traz novas ideias
acerca do que se entendia sobre os sonhos, não mais como meros guardiões do sono, mas como mensagens cifradas, pensamentos
inconscientes, que buscam comunicar. A partir do relato das imagens e palavras do sonho, um trabalho de interpretação e decifração
se inicia, para acesso à outra Cena. Por vezes, apontando também para o umbigo do sonho, ou para os furos na representação,
marcando aqui um consequente limite na interpretação. Como via régia de acesso ao inconsciente, os sonhos são aberturas
importantes para o trabalho com o desejo. Em um tempo de esvaziamento das palavras, a produção onírica surge como um
despertar.

Esse Correio traz grande parte dos textos apresentados no Relendo Freud, a partir dos quais os autores puderam retomar e
possibilitar uma nova leitura de aspectos fundamentais presentes nessa obra. Essa edição segue o propósito de compartilhar ideias
que se atualizam e que permanecem nos interrogando, a partir da via régia freudiana.

Além desses textos, se faz presente também, na sessão Debates, o texto Amazônia: palavras para apagar incêndios, do colega
Edson Luiz André de Sousa, sobre o filme Um poeta na Amazônia, de José Huerta.

Desejamos a todas e todos uma boa leitura!


Temática
​Disparos: a dimensão do despertar entre Freud e Lacan
Alexei Conte Indursky

A casa está queimando? O país onde vive, a Europa ou o mundo inteiro? Talvez
as casas e as cidades já estejam queimadas, não sabemos desde quando, numa
única e imensa fogueira que fingimos não ver [...] Vivemos em casas, cidades
queimadas de cima a baixo como se ainda estivessem de pé, as pessoas fingem
viver aí e saem pelas ruas mascaradas entre ruínas, como se ainda fossem os
bairros familiares de outrora.

Agamben, Giorgio (2021)

Começo com essa passagem de Agamben. Um disparo.

“Que tiro foi esse?”, diria Jojo Todinho (2017). Que tiro foi esse que queima nossa casa? Aonde nos atingiu? Estamos vivos?
Sonhando? Insones? É necessário despertar. Mas como? E para qual realidade? Se tudo mais parece um sonho dentro de um sonho,
dentro de um pesadelo.

Melhor dizer, para quê tempo? Pós, pré, novo, neo, dis, tecno, multi? O tempo está fora dos gonzos. Já dizia Hamlet, após a aparição
do espectro do pai que clama por justiça. Mas já não estava antes? Ou éramos nós que dormíamos desavisados? E aquilo que
vivemos hoje como exceção, outros vivem como norma desde muito?

“Será que este povo é deste mundo? [...] Passei o olhar naquele povo para ver se apresentava aspecto humano ou aspecto de
fantasma” (MARIA DE JESUS, 2020, p.135). A dúvida de Carolina Maria de Jesus ressoa no lamento de Hamlet. O luto como um
tempo de habitar com os fantasmas, não apenas os nossos, mas igualmente os fantasmas dos corpos espectrais, os corpos daqueles
que ainda não são, que ainda não foram, que ainda não nasceram ou que nasceram, mas sequer serão. Enfim, o retorno do fantasma
como uma experiência de crise e crítica da temporalidade, bem como de uma urgência de engendrar porvires.

****

“Solicita-se que fechem os olhos”. Um gesto denegatório, condensado a um sentimento de culpa, irrompe no sonho de Freud à
véspera do funeral de Jacob, seu pai. Pedido de indulgência do filho frente a um pai simples, sem pompas vultosas. Uma perda que
inicialmente lhe parece sem maior sofrimento, depois de um tempo de latência, se revela nas palavras de Freud “a perda mais
pungente da vida de um homem” (FREUD, 1900, p.17).

O tempo dessa latência passou, por certo, pela escrita de A Interpretação dos Sonhos, decantando daí “um significado subjetivo, que
só pude compreender ao terminá-la” (FREUD, 1900, 17). Nas palavras de Peter Gay (2002), “[essa perda] funcionou como um seixo
atirado a um lago tranquilo, provocando sucessivos círculos de raio insuspeitado” (GAY, 2002, p.96). Imagem potente que declina o
real da pedra à possibilidade de ler seus efeitos sintomáticos como uma partitura na água.

Ela me evoca uma outra imagem, presente na poesia de Paul Celan (2004)1. Diz ele:

Ouvi dizer que na água havia

uma pedra e um círculo

e sobre a água uma palavra

que põe o círculo à volta da pedra.

Nessa remontagem do tempo sofrido, o olho da história de Celan joga com os efeitos que a linguagem possui de, ao bordear o real da
pedra, da perda, do tiro, inscrever o círculo, que guardará um traço do irrepresentável em seu centro. É possível que Freud estivesse
bordeando esse furo ao longo da travessia de A interpretação dos sonhos: escrevendo os fundamentos de sua teoria, ao inscrever-se
em sua obra.

Antes do sonho de “Solicita-se que fechem os olhos” há o sonho da “Injeção de Irma”, que, como sabemos, coloca em cena a
hesitação de Freud na relação com Fliess. Esse substituto paterno, tão importante na vida de Freud. No sonho, Freud tenta poupar
Fliess da responsabilidade pelo erro na cirurgia no nariz de Emma Eckstein. Como pano de fundo, está o limite da suposição de saber
que Freud depositara em Fliess, uma vez que o sofrimento da paciente não era de origem orgânica, como supunha o amigo.

Há o sonho do Conde Thun – político austríaco reacionário – em que Freud cantarola imaginariamente versos de As Bodas de Fígaro,
em que um plebeu enfrenta o nobre. Sonho cuja interpretação o leva a cenas infantis, em que o jovem Freud faz xixi no quarto dos
pais e ouve como reprimenda de Jacob: “Assim não chegarás a lugar nenhum”. Enfim, a lista de sonhos poderia continuar...

****

Considerado isso, talvez não seja por acaso que Freud escolha o sonho “Pai, não vês que estou queimando?” para abrir o capítulo
VII, capítulo que enlaça as conclusões desse estudo tão ambicioso. Um sonho sonhado por um terceiro, um espectro outro, que
anima o fantasma do enlutado Freud.
Há, inicialmente, a interpretação sobre o enunciado do sonho. Enquanto realização de desejo, o sonho colocara em cena o desejo do
pai: que o filho voltasse à vida, antes de ele acordar, para constatar o fogo. Ou seja, se o sonho é o guardião do sono, antes do
despertar causado pela angústia da frase enunciada pelo filho, o sonho ofereceria um ganho de prazer ao pai, ‘colocando em cena’
seu filho vivo. Freud ainda acrescentaria que as frases “Pai, não vês”, “estou queimando” possuiriam uma carga afetiva
sobredeterminada, mas que não está em condições de interpretá-las. A equivocidade dessa última frase fica por minha conta.

Mas haveria igualmente um lugar de enunciação: Pai, não vês que estou queimando? É possível que esse lugar tenha guardado uma
função importante no luto de Freud. Do pedido de “fechar os olhos” à interpelação veemente para que se veja, instaura-se um tempo
de escrever as palavras não ditas ao pai, o tempo de um encontro perdido, conjugado ao despertar de sua teoria, de sua autoria, de
que sim, chegará a algum lugar...

Sabemos que esse trabalho de luto irá acompanhar Freud ao longo de muitos anos, numa espécie de obediência a posteriori,
prescrita e teorizada por ele mesmo, que o reaproximará do estudo do judaísmo, desejo de seu pai, não de forma religiosa, mas
psicanalítica, como mostra muito bem Yerushalmi (1993) em Judaísmo terminável e interminável.

****

Em um contexto não menos fecundo, Lacan irá realizar uma inflexão na interpretação freudiana do sonho do “Pai, não vês”, na
abertura de seu Seminário Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise.

Diz ele:

“Se Freud, maravilhado, vê aqui confirmada a teoria do desejo, isto é mesmo sinal de que o sonho não é apenas uma fantasia
preenchendo uma aspiração. Pois não é que, no sonho, se sustente que o filho vive ainda. Mas o filho morto pegando seu pai pelo
braço, visão atroz, designa um mais-além que se faz ouvir no sonho. O desejo aí se presentifica pela perda imajada ao ponto mais
cruel, do objeto. É no sonho somente que se pode dar esse encontro verdadeiramente único. Só um rito, um ato sempre repetido,
pode comemorar esse encontro imemorável” (LACAN, 1973, 65).

Preciosa releitura de Lacan, que demarca sua dissidência frente à doxa da IPA. Tudo parece estar aí em gérmen: a inflexão de uma
clínica do desvelamento/revelação para uma clínica do real; da decifragem do sonho ao reconhecimento de seu furo e limite
interpretativo; de um estatuto ôntico a um estatuto ético do inconsciente; bem como de uma noção de luto outra, em que a dimensão
do rito sempre repetido – ausente na teoria freudiana – reaparece nas palavras de Lacan para recolocar em cena a dimensão de
encontro perdido do trauma.

Detenhamo-nos nessa experiência da repetição que o sonho apresenta. Ao abordá-la, Lacan parece estar nos alertando sobre uma
dimensão muito peculiar da experiência do despertar. O despertar importaria a Lacan menos pela realidade/alienação que ele
desvela, e mais pela dimensão de uma temporalidade que pode se abrir.

Se Freud afirmara ao final de seu estudo que “ao representar um desejo como realizado, o sonho nos estaria levando para o futuro”
(FREUD, 1900, 675), conjugando, assim, o despertar para o desejo à abertura de um porvir, Lacan irá, a sua maneira, recuperar essa
dimensão de um futuro que não seja uma mera projeção das condições de possibilidade do presente.

A repetição em análise, por mais semelhante que pareça, nunca repete a mesma experiência vivida porque não elaborada. Tampouco
a história seria uma dialética de tempos se recuperando e sendo suprassumidos. A repetição seria, antes, uma forma que o tempo
tem de manifestar uma abertura, um rasgo da temporalidade que só se exprime pelo real e que ao acaso se materializa em nossos
sonhos, sintomas e falas.

Recuperação importante dessa experiência que tanto nos consome e preocupa atualmente. Se a fórmula que ele apresenta na
sequência, “o trauma é aquilo que retorna sempre no mesmo lugar”, irá se consagrar no campo lacaniano pela referência à dimensão
do topos, do mesmo lugar, é importante lembrarmos que Lacan procurava nos alertar de que o trauma é também uma forma de
experimentarmos a possibilidade de uma nova experiência do tempo. Ou seja, urge repensarmos o real como um operador da
temporalidade e retirá-lo de uma dimensão a-histórica na qual se conservou no campo psicanalítico.

****

Para encerrar retomo o último parágrafo do texto de Agamben. Diz ele:

“Hoje, os humanos desaparecem como um rosto desenhado na areia é apagado pelas ondas. Mas o que toma seu lugar não tem
mais um mundo, é apenas uma vida nua muda e sem história, à mercê dos cálculos do poder e da ciência. Mas talvez seja apenas a
partir dessa destruição que algo poderá um dia, lenta ou bruscamente, aparecer – não um deus, por certo, mas nem mesmo um outro
homem -, um novo animal, talvez, uma alma que vive de outra forma” (AGAMBEM, 2021).

Articulando com as lições de Freud e Lacan, me permito aqui completar a frase do filósofo italiano: “uma alma que viva de outra
forma” a sua temporalidade. Que o luto pelos nossos reconstrua um solo comum da experiência. Que o retorno do fantasma que
clama por justiça, encontre eco nos espectros das vidas precárias que não soubemos reconhecer outrora. Não pela esperança de um
tempo reconciliado, mas pela urgência de expandirmos nossa própria experiência da temporalidade e engendrarmos novos mundos.

Referências Bibliográficas:

AGAMBEN, Giorgio. (2021). Quando a casa queima. Disponível em https://www.n-1edicoes.org/textos/196, acessado em 18 de Maio
de 2022.

CELAN, Paul. (2004), Obras completas. Madrid: Editorial Trotta.

FREUD, Sigmund. (1900). “A interpretação dos sonhos”. In. Obras Completas vol. 4. São Paulo, Companhia das letras, 2019.

GAY, Peter. (1989). Freud: uma vida para nosso tempo. São Paulo, Companhia das letras.
LACAN, Jacques. (1973). O seminário 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de janeiro, Zahar, 2008.

MARIA DE JESUS, Carolina. (1960). Quarto de despejo. São Paulo, Ática, 2020.

TODYNHO, Jojo. (2017). “Que tiro foi esse?”. In. Que Tiro foi esse? Ed. Universal Music, Brasil.

YERUSHALMI, Yosef. (1993). O Moisés de Freud. Judaísmo terminável e interminável, Rio de Janeiro: Imago.

Autor: Alexei Conte Indursky

Alexei Conte Indursky é psicanalista - APPOA.

1. Agradeço a Edson de Sousa pela oferta generosa desta imagem.

Sonhos
Hugo Dvoskin

Como dizia Calvino, os textos clássicos possuem a virtude de nunca esgotarem o que têm a dizer. É exatamente isso o que acontece
com “A interpretação dos sonhos”. Mesmo tendo sido alvo de inúmeras leituras, muitas delas erradas – das quais, inclusive, eu
participei- não

Refiro-me à ideia repetida e ensinada de que um elemento decisivo na formação do sonho era a diminuição da censura, uma certa
queda da resistência. Porém, Freud minimiza esse efeito, até quase deixa-lo de lado.

Leiamos juntos as seguintes citações: “O que foi o que permitiu, em geral, que o sonho se formasse em oposição a essa resistência?
E Freud responde “Nossa conclusão é que a resistência perdeu parte do seu poder; sabemos que não foi cancelada, pois na
desfiguração onírica podemos assinalar seu aporte à formação do sonho. Porém, se impõe a possibilidade de que estivesse mitigada
durante a noite e, por essa mitigação da resistência, foi possível o sonho”.

Provavelmente, nas minhas leituras anteriores fiquei satisfeito com essa explicação. Porém, quase imediatamente, Freud relativiza a
questão criando uma expectativa que ainda não dirime: “Quando tivermos aprofundado um pouco a psicologia do sonho, saberemos
que há um outro modo de conceber a via pela qual é possível sua formação. Quiçá, a resistência para que os pensamentos oníricos
se tornem conscientes pode ser evitada, ainda que a resistência não tenha experimentado diminuição”.(p.520)

Três parágrafos depois da figura 3, Freud examina a questão, no tópico “a regressão”. No estilo dele –antecipar perguntas que o leitor
ainda não pensou- avança nesse assunto: “Se (a formação do sonho), fosse possibilitada pelo fato de que pela noite diminui a
resistência que fica de guarda entre a fronteira inconsciente e o pré-consciente, receberíamos no material das nossas representações
uns sonhos que não mostrariam a caraterística alucinatória que agora nos interessa” (p. 535). Freud conclui, logicamente, que a
caraterística alucinatória, efeito do caminho que regride para o polo perceptivo, supõe necessariamente que não houve diminuição
significativa da censura.

Finalmente, Freud anuncia que pôr a ênfase no caminho da regressão não envolve esquecer que no começo do devir, os
pensamentos inconscientes progridem e, justamente por efeito da censura assumem o rumo da regressão. Isso, além da atração que
puderem exercer os conteúdos inconscientes. “O primeiro tramo se estende, no sentido progredinte, depois as cenas ou fantasias
inconscientes, até o pré-consciente; o segundo tramo volta desde o limite da censura até as percepções”.

Ou seja, segundo esta leitura, Freud diz que a resistência não diminui significativamente, senão que, justamente por essa censura é
que o sonho é possível no outro polo, no perceptivo e em forma alucinatória.

Esta ideia da censura será articulada depois com o micélio,ao qual a interpretação dos sonhos nunca chega. Versa de outra questão
que merece um comentário à parte.
[1]
Diz a doutora em biologia que gerencia “Mundhongo” em Merlo, San Luis, Argentina. “Sobre a vida e a genética animal sabemos
quiçá o 90%, acerca do reino ‘funghi’ pouco menos do 10%”. Acrescenta dois elementos: 1) o “micélio” possui vida própria, 2) o
chapéu –o que conhecemos como “fungo”- é contingente, é possível mas, não é necessário (utiliza esses termos mesmo não tendo
lido Lacan). Os motivos pelos quais às vezes aparece o chapéu e às vezes não, são desconhecidos, é parte do 90% que não
sabemos.

Desde os começos, Freud abriu espaço para aquilo que ficaria nas sombras: “ainda nos sonhos melhor interpretados é necessário,
frequentemente, deixar um lugar nas sombras…” (p. 519). Também, no final do texto que conhecemos como Signorelli (“O
esquecimento dos nomes próprios”), Freud, cauto, afirma que “junto ao esquecimento comum de nomes próprios, alguns são por
recalque”. Esquecimentos que não serão desvelados, sonhos que não se desenrolam. (...) na interpretação se observa que aí começa
uma meada de pensamentos oníricos que não se deixam desenrolar” (p. 519).

O recalque primário, a contracatexia e o Isso encontram nestes traços, nestes rascunhos clínicos, seus antecedentes conceituais.
Sombras que por sua vez são o suporte de leituras e de lógicas: 1) a do “não tudo” (não tudo poderá ser interpretado), 2) a do “saber
suposto” (o saber está em quem fala e não em quem escuta) e 3) a ética supõe não ir além das falas e das ligações feitas pelo
analisante (abstinência e não prejulgar).
Freud já tinha incorporada a metáfora do parceiro empresário e o parceiro capitalista. Com o empresário não há maiores problemas,
pois é um resto diurno não tramitado. Já o capitalista começa a se cindir como muitos conceitos da teoria. Uma parte do parceiro
capitalista é o desejo, o coração, o caroço do sonho. Outra parte, surpresa, nem sequer contribui –pelo menos não há certeza de que
o faça - com os pensamentos que não se deixam desenrolar, “também não fizeram outras contribuições ao sonho”.

Assim, Freud propõe situar o umbigo do sonho “o lugar no qual o sonho se assenta, naquilo conhecido”. Não é um lugar que
contribua, é um lugar no qual o sonho se assenta. Freud começa a armar uma instância de vida própria, cujos “conteúdos” ficarão
desconhecidos. Talvez porque o micélio não seja senão uma conjectura, uma força, uma atração centrípeta, um redemoinho, acaso
[2]
um vão. É “fenotipizado” pela negativa, pela interrupção de associações, por seus vãos discursivos que nos dirigem – se o
imaginamos como um ponto de fuga- ao “não sei nada sobre isso” do texto “Batem uma criança”. Lacaniamente diríamos, do Real
nunca saberemos nada.

Freud aposta no micélio como apoio do desejo que se tornará sonho: “Desde um lugar mais espesso desse tecido, se eleva depois o
desejo do sonho como o fungo do seu micélio” (p. 519). Acompanhemos a metáfora: 1) o ponto de espessura será o tronco onde o
desejo se tece, o relato do sonho e as associações, os filamentos do fungo que conduzem a escutar o desejo; 2) nas profundezas,
finos fios, embaraçados, gigantescos como conjunto e quase invisíveis individualmente, o micélio que possui vida própria e vale pelo
desconhecido.

Freud aposta no micélio e não no rizoma. Não é um dado menor. Não é uma continuidade como a do rizoma, de algo que possamos
acessar, desembaraçar, puxando de cada sintagma, de cada expressão e que, por outra parte, vive da sua conjunção com a árvore
ou com a planta. O rizoma é parte, é raiz. Sem tê-lo conhecido, Freud se afasta de Derrida e assume uma posição mais extrema, pois
o micélio pode viver só, com independência. Poderia não dar “frutos” (não dar chapéus). Nesse caso, na metáfora, o micélio não é
mais do que uma quimera.

Quando o desejo do micélio, na tentativa de virar fungo, produzir um sintoma ou alguma marca que não for parte do universo dos
signos, se tornar significante e desvelar a existência de um sujeito detrás das palavras, adquirirá a dignidade da conjectura.

Agradeço a Freud por possibilitar novas leituras, e a APPOA por possibilitar releituras.

Autor: Hugo Dvoskin

Hugo Dvoskin é psicanalista - APPOA

[1] Mundhongo é um sítio onde se cultiva, colheita, cozinha e processa artesanalmente diversidade de fungos comestíveis. Fica na
cidade de Merlo, na província de San Luís, no centro da Argentina.

[2] Neologismo do termo fenotipo.

Sobre o lugar dos sonhos: possibilidades do reler-se e revisitar-se


Chaveli Dockorn B. Kinn

Quem está gestando e quem está sendo gestado, dorme.

Quem recém pariu. Quem acabou de nascer. Em seguida, dorme.

Quem cresce, quem adolesce, quem adoece, quem entristece…

Quem de alguma forma cansou-se. Dorme.

Cria intervalo. Sonha…

E quem morre?

Sonha… Para sempre.

Compartilho um pouco das reflexões fragmentárias que foram tendo lugar no desenrolar de um breve tempo de estudo em cartel, a
propósito da temática dos sonhos enquanto via régia do inconsciente, durante o qual deparei-me em paralelo com dois pequenos
fragmentos de obras da escritora Clarice Lispector que me chamaram especial atenção. Acredito que elas conversam diretamente
com o que Sigmund Freud nos aponta na sua obra “A interpretação dos sonhos” (1900), e que tem a ver mais especificamente com o
que ele escreve no seu segundo capítulo, intitulado “O Método de Interpretação dos Sonhos: Análise de um Sonho Modelo”, onde diz
o seguinte:

“...E agora devo pedir ao leitor que faça dos meus interesses os seus próprios por um período bastante longo, e que mergulhe comigo
nos menores detalhes de minha vida, pois esse tipo de transferência é obrigatoriamente exigido por nosso interesse no sentido oculto
dos sonhos.”(p.140)

Em relação a isso, trago o primeiro dos trechos da obra de Clarice Lispector, “A paixão segundo G.H.”:
“Dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria. Muitas vezes antes de adormecer - nessa pequena luta por não perder a
consciência e entrar no mundo maior- muitas vezes, antes de ter a coragem de ir para a grandeza do sono, finjo que alguém está me
dando a mão e então vou, vou para a enorme ausência de forma que é o sono. E quando mesmo assim não tenho coragem, então eu
sonho. Ir para o sono se parece tanto com o modo como agora eu tenho de ir para a minha liberdade. Entregar-me ao que não
entendo será pôr-me à beira do nada. Será ir apenas indo, e essa coisa sobrenatural que é viver. O viver que eu havia domesticado
para torná-lo familiar. Essa coisa corajosa que será entregar-me ...” (p. 15)

Este fragmento do romance traz em seu enredo uma personagem identificada apenas pelas iniciais G.H., que depois de demitir a
funcionária da casa e tentar limpar seu quarto, o qual imaginava imundo e repleto de inutilidades, o que encontra é um cômodo limpo,
arrumado, e na sequência uma barata. Depois de esmagar o animal e provar do seu interior branco, o que se dá é como uma
revelação para G.H., ela revisita-se e se reconstrói a partir daquele episódio. No dia seguinte ela narra a própria impotência em
descrever o ocorrido, como se não houvesse palavras suficientes ou à altura.

A história se organiza em capítulos de sequência sistemática - cada um começa com a mesma frase que serve de fechamento ao
anterior. A interrupção, assim, é elemento de continuidade, numa representação simbólica do que é a experiência de vida para G. H.

Temos a chance de acompanhar o desenrolar da narrativa da personagem principal com uma estrutura muito parecida a de um
sonho. O sonhar e o devanear como a construção de elos e continuidades, entre o que seria uma vivência subjetiva e íntima e a
realidade externa, portanto, através do sonhar, restabelecer um diálogo entre diferentes registros psíquicos e o contato com o mundo
externo.

Para seguir pensando sobre a teoria freudiana, reencontrei e tomei em auxílio o material da primeira leitura que fiz sobre Freud, um
livro pocket intitulado por Renato Mezan “A Conquista do Proibido”(1985), hoje meu, mas na ocasião do início da graduação no Curso
de Psicologia, tomei-o emprestado da biblioteca de meu pai. No capítulo inicial intitulado “Silêncio, por favor…”, Mezan discorre a
respeito de um desafio muito próximo do descrito pela personagem G. H. quando descreve as dificuldades encontradas ao tentar
narrar o que vivenciou, e com o qual os leitores de “A Interpretação dos Sonhos” (1900) se deparam ao encontrar a seguinte
afirmação de Freud:

"É preciso dominar enérgicas resistências interiores, a compreensível aversão a comunicar intimidades de minha vida psíquica, e o
temor de que pessoas estranhas as interpretem erroneamente. Mas é necessário sobrepor-se a tudo isso.” (p. 9)

Freud aqui explicita desde qual lugar seguirá escrevendo, no caso, como analisante. Inaugura seu lugar de remetente, ao mesmo
tempo em que percebe-se como destinatário de muitos conteúdos que lhe fogem ao controle, irrompem e o interrogam, sendo este o
conteúdo de suas cartas e de grande parte do material compartilhado durante toda sua obra. Podemos pensar que primeiro ele vive,
deixa-se afetar, depois passa a escutar os ruídos destas vivências com toda atenção, seleciona o que lhe despertou maior
[1]
interrogação e depois conta . Somente a posteriori compartilha estas histórias com um outro interlocutor, um destinatário para quem
ele endereça suas produções, e que este por sua vez o acolhe em escuta, legitimando a existência de todo este conteúdo no laço de
uma relação de alteridade.

Sustentar o endereçamento que nos chega, acolher frágeis perguntas ainda pouco claramente formuladas, as quais não sabemos por
quanto tempo perdurarão em aberto com tamanhas resistências contribuindo para sua sustentação, é o desafio que o trabalho clínico
nos coloca. A escuta analítica inaugurada com o convite para associação livre oportuniza uma revisitação, não necessariamente por
novos caminhos, mas antes refazendo os antigos, talvez pela primeira vez, sinaliza aos pacientes de que sonhos valem a pena serem
considerados, assim como lapsos, atos falhos e esquecimentos.

Sobre esta forma de condução da escuta, é no capítulo 7 de “A interpretação dos Sonhos” (1900) - O Esquecimento dos Nomes
Próprios - que encontramos a descrição do que Freud nomeia como procedimento:

“Nosso procedimento consiste em abandonar todas as representações-meta que normalmente dirigem nossas reflexões (...).
Deixamo-nos impelir por nossos pensamentos, qualquer que seja a direção em que nos conduzam, e assim vagamos a esmo de uma
coisa a outra (...) chegaremos aos pensamentos oníricos de que se originou o sonho.” (p. 558)

Neste sentido, apostamos no fazer silêncio em si para escutar possíveis ruídos, atentar para eles e aos poucos entregar-nos para as
questões que têm a chance de inaugurar. Conteúdo íntimo, território “minado”, jamais antes percorrido pelo próprio paciente por
reconhecer como assombroso e constrangedor. Isso nada tem de simples, afinal de contas, disse-se que grandes incursões exigem
mergulhos um pouco mais profundos e algum tempo.

O que estamos tratando aqui? É da função que cumpre a criação de espaços de escuta em uma vida, de intervalos e paradas. A
atenção dirigida à função psíquica do sonhar reconecta o sujeito diretamente a suas marcas, aos seus desejos mais longínquos e por
isso mesmo obscuros, camuflados no seu interior, se é que possamos situar uma localização específica para estes; desvela algo que
diz de seu próprio conteúdo, sua massa branca, sua porção mais “barata” e enigmática como em “A paixão segundo G.H.”, e
justamente por isso mais valiosa e surpreendente.

Do que nos falam os analisantes? São de suas inseguranças, padecimentos, impasses e estranhamentos que os sintomas
engendram, dos emaranhados de nós e de excessos do qual não conseguem desvencilhar-se para poderem seguir adiante. Aos
poucos, do que vai se desfiando, parte cai como resto, mas também outros tantos passam a compor novos novelos, com potência
para novos enlaces. Partes do sonho que sonha em um sujeito pode vir a enlaçar-se a outros sujeitos que sonham partes do mesmo
sonho. Relembramos aqui o fragmento da música que diz “sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só”, mas a música
segue e também diz “sonho que se sonha junto é realidade”. Disso, o que podemos desdobrar?

O que a psicanálise inaugura é a defesa da circulação e elaboração da palavra, lembremos das somatizações das histéricas em um
corpo mudo, em que a palavra restava aprisionada. Então, libertar esta palavra, autoriza este sujeito na busca da construção de sua
verdade; de colocá-la em causa, de levá-la à suas últimas consequências, de fazer valer o seu desejo.
Levará um tempo diferente, e este precisará ser rigorosamente respeitado, para que dali em diante o sujeito passe a transitar de
forma mais familiarizada por seus próprios sobressaltos, tropeços e deslizes, intrínsecos ao caminhar. E, nesta caminhada, fará como
adentrar em um museu e deparar-se com uma variedade imensa de produções as mais variadas, diante das quais o espanto maior
será, sobre tudo ou nada, o que elas serão capazes de despertar entre afetos e associações, escancarar desconfortavelmente pontos
de total desconhecimento, ao mesmo tempo que de familiaridade. A surpresa será a de que ao final do passeio o visitante dar-se-á
por conta de ser ele próprio o curador da exposição, ao mesmo tempo que o artista responsável por todas as obras ali criadas.

E como tão bem o universo das artes em geral, através de suas palavras esculpidas nos presenteia, antecipando-nos com suas
[2]
formulações, finalizo com o segundo fragmento - com o qual me deparei a partir de um vídeo, onde dois atores realizam a
leitura/interpretação - de uma das crônicas do livro “A descoberta do mundo” (1984), intitulada “Não entender”, de Clarice Lispector:

“Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entendimento. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter
fronteiras. Eu sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender,
mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser
doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco.
Não demais: mas pelo menos entender que não entendo”.

Paradoxo. Radicalidade da construção e sustentação de uma pergunta a respeito de si. Investigação, portanto, das origens no que
isto implica de um desvendamento paulatino do passado e termina com a possibilidade da reconstrução de uma trajetória.

Referências bibliográficas:

FREUD, Sigmund. A Interpretação dos sonhos. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996.v.4

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984.

LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,

MEZAN, Renato. Freud, a conquista do proibido. São Paulo: Brasiliense, 1985.

Autor: Chaveli Dockorn B. Kinn

Chaveli Dockorn B. Kinn é psicanalista - APPOA

[1] Da morte de Freud, centenas de cartas suas foram publicadas, entre as quais as mais importantes destaca-se que sejam as
dirigidas a Wilhelm Fliess entre 1887 e 1902, período em que ocorreram suas descobertas fundamentais.

[2] Por Beatriz Azevedo e Moreno Veloso. “Até agora intocável”. YOUTUBE. CANAL: Inspiração Literária. Link:
https://www.youtube.com/watch?v=HRp04SmtGKo&t=49s

​“De quem é o sonho?”


Ana Paula Carvalho da Costa

Nessa cidade, todas as ruas vão terminar em você


(…)

Cartas e versos, contos para te alcançar.

(Frejat)

Sonhos como via régia

Muito feliz com trabalharmos no Relendo Freud a Interpretação dos Sonhos, por tê-lo estudado, um tempo atrás, em Cartel. Muito do
interesse pelo texto se deu a partir de algumas experiências clínicas. E também para retomar algumas questões sobre os sonhos,
sobre as quais me perguntava. Por exemplo: por que o sonho seria a via régia de acesso ao inconsciente? E não outra, ou outras das
manifestações do inconsciente? O que faria a diferença dos sonhos para os lapsos, os atos falhos, os esquecimentos?

Essas outras manifestações se dão no ato da análise, ainda que também permeados pelo recalque. Os sonhos, por sua vez, são
contados depois.

Letra-carta

Na busca pelo que seria o termo via-régia, algo que se encontrou: Régio: que pertence ao rei; que vem do rei ou nele tem sua origem;
ato régio; poder régio. O que remeteu, por sua vez, a Carta Régia: documento que, assinado pelo rei, seguia para uma autoridade
sem a aprovação da chancelaria, sem precisar do aval do ministério das relações exteriores, com indicações permanentes do rei.

Seriam as mensagens cifradas (ou rébus) que lhes dariam esse estatuto? Possibilitariam mais material para associar? Ou seriam a
via régia por ter sido por onde Freud inaugurou a psicanálise?

Num dos capítulos iniciais, em que Freud apresenta o método de interpretação dos sonhos, apresentando a análise do sonho modelo
(da injeção de Irma), ele escreve:
Foi no decorrer desses estudos psicanalíticos que me deparei com a interpretação dos sonhos. Meus pacientes assumiam o
compromisso de me comunicar todas as ideias ou pensamentos que lhes ocorressem em relação a um assunto específico; entre
outras coisas, narravam-me seus sonhos, e assim me ensinaram que o sonho pode ser inserido na cadeia psíquica a ser
retroativamente rastreada na memória a partir de uma ideia patológica. (p. 123)

Foi então pela clínica que a questão dos sonhos surgiu. Como no caso da paciente que disse para ele calar-se, que ela queria falar –
dando origem à associação livre.

Freud segue: “Faltava então apenas um pequeno passo para se tratar o próprio sonho como um sintoma e aplicar aos sonhos o
método de interpretação que fora elaborado para os sintomas.” (p. 123)

Essa ideia da carta aparece presente também em nota de rodapé no capítulo 4, A Distorção nos Sonhos: “como uma carta cifrada, a
inscrição onírica tomada como um palimpsesto, com o sonho revelando, sob seus caracteres superficiais destituídos de valor,
vestígios de uma comunicação antiga e preciosa.” (p. 152)

Recorte Clínico

Na minha clínica, a questão dos sonhos surgiu no caso de alguns pacientes, a grande maioria homens, que pouco associavam. Então
eu por vezes recorria aos aos sonhos, perguntando se sonhavam, ou se lembravam da produção onírica deles - como tentativa de
fazer falar. Era interessante que em alguns casos havia um instigar-se por aquilo que surgia, enquanto, no atendimento de outro
paciente, os sonhos eram contados um atrás do outro, sem produzir enigma nenhum - e, assim, ainda freando a associação livre.

A partir dos encontros do Relendo, vieram-me muito à lembrança algumas questões surgidas em um atendimento clínico. Era um
paciente jovem que gostava muito de falar sobre os seus sonhos, perguntando-se sobre o que poderia querer dizer aquilo com que
sonhava. Certa vez, falando de um de seus sonhos, refere estranhamento em relação ao fato de que uma das pessoas que aparecia
nesse sonho proferiu uma palavra que ele costumava falar para mim, nas sessões. O paciente então refere estranhamento pelo fato
de na produção onírica outro dizer o que ele falava, nas sessões, para mim. Frente a sua surpresa, pergunto: “mas de quem é o
sonho?”. E, após alguns instantes, ele diz: “pois é, sou eu que estou sonhando…”

Fiquei pensando aqui na inversão que se dá no caso Dora, quando Freud pergunta qual a responsabilidade dela frente a desordem
que lhe ocorre.

Destacaram-se então algumas perguntas: De quem é o sonho? Quem fala no sonho? Onde está o eu e onde está o sujeito do
inconsciente, no sonho? Ele está em todos os personagens? Ou pode estar?

E, ainda, como cada um se implica naquilo que foi sonhado? Como te implicas nisso que te sonhou? Um isso que te sonha, que nos
sonha. Como uma torção.

Frente a essa palavra que surge no sonho, resgatamos o que Freud refere sobre o aparecimento de palavras, ou frases, na produção
onírica: o autor afirma que os sonhos “pensam predominantemente em imagens visuais – mas não exclusivamente. Utilizam também
imagens auditivas e, em menor grau, impressões que pertencem aos outros sentidos.” (p.79) Ele fala em resíduos de representações
verbais. Indica que os sonhos alucinam – substituindo os pensamentos por alucinações -, ou dramatizam uma ideia (p. 80) “Nesse
sentido, não há distinção entre as representações visuais e acústicas” (p. 79).

Dispersão do Eu

Mais adiante, no texto, quando procede à análise do sonho de injeção de Irma, Freud parece apontar para a dispersão do eu no
sonho, quando várias imagens/pensamentos parecem conduzir a ele mesmo:

“Uma parte da pele do ombro esquerdo [de Irma] estava infiltrada. Vi imediatamente que isso era o reumatismo em meu próprio
ombro, que observo invariavelmente quando fico acordado até altas horas da noite.” (p. 134)

“Chamei imediatamente o Dr. M., e ele repetiu o exame.” O imediatamente remeteu a um evento trágico em sua clínica, quando Freud
provocou um grave estado tóxico numa paciente, receitando, repetidamente, o que na época era um remédio considerado inofensivo.
A paciente – que sucumbiu ao veneno – tinha o mesmo nome que sua filha mais velha. (pp. 132-133) Assim, elementos mais triviais
do sonho são indispensáveis.

“O Dr. M. disse: ‘É uma infecção, mas não tem importância. Sobrevirá uma disenteria e a toxina será eliminada’”. “Não tem
importância. Isso foi dito como consolo. (…) Tive a sensação de que, dessa maneira, eu estava apenas tentando desviar a culpa de
mim mesmo. O tratamento psicológico não poderia ser responsabilizado pela persistência de dores diftéricas.” (p. 134)

Dispersão do eu, que ocorre como distorção onírica que se dá a partir da censura, fazendo o sujeito aparecer estilhaçado em vários
lugares. Seriam então traços do sujeito?

Transferência

“De quem é o sonho?”, ou: “Quem fala no sonho?” aponta para a implicação do sujeito, ao mesmo tempo que introduz um enigma,
que permite o trabalho de associação. Além disso, está presente também a questão da transferência - quando se conta ou mesmo
quando se produz um sonho - “essa palavra que ela disse no sonho e que eu digo aqui com frequência”.

Análise como um sonho

A partir da lembrança desse recorte clínico, fiquei pensando se não seria possível também pensar as sessões de análise à luz da
imagem dos sonhos… ou como um sonho… em que, a partir do conteúdo manifesto, é possível abrir espaço para que o pensamento
latente se coloque, implicando-se o sujeito nas manifestações inconscientes. Uma possível resposta para o porquê do sonho como a
via-régia…
Referência bibliográfica:

FREUD, S. (1900 [s/d]). “A Interpretação dos Sonhos.” Vol. IV. Edição Standard das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro:
Imago, s/d.

Autor: Ana Paula Carvalho da Costa

Ana Paula Carvalho da Costa é psicanalista - APPOA

Associações e restos: o nascimento do significante de Lacan, na interpretação de Freud.


Sidnei Artur Goldberg

Eu tive um sonho, vou te contar: me faziam perguntas e eu respondia. Se você tivesse que viajar para um lugar distante, sem garantia
de volta e pudesse levar apenas um livro, qual levaria? – A interpretação dos sonhos, respondi. E se pudesse levar apenas um
capítulo deste livro? – Levaria o capítulo 7, Sobre a psicologia dos processos oníricos. E se a restrição fosse para que levasse apenas
um item de um capítulo? – Levaria o item A, O esquecimento dos sonhos. E, por fim, a pergunta afunilou: e se pudesse levar apenas
um conceito ou noção, qual seria a escolha? – Associação superficial disse sem pestanejar. Meu sonho, minhas preferências.

Associação superficial é um termo correlativo da única regra analítica imutável e inegociável: a associação livre, que de livre não tem
nada, e evidencia o determinismo psíquico, que, por sua vez, constitui uma rede preferencial de caminhos e investimentos psíquicos
que faz com que a repetição circunscreva um sujeito do Inconsciente, definição lacaniana para este fato.

Associação superficial é um conceito citado


[1]
com alguma frequência nos três textos apontados por Lacan como sendo os três de onde
partiu para fazer o seu Relendo Freud . A interpretação dos sonhos (ou, O sentido dos sonhos), A psicopatologia da vida cotidiana, e,
Os chistes e sua relação com o Inconsciente.

Associação superficial diz respeito ao processo de substituição realizado nas formações do Inconsciente e especificamente o primeiro
item do capítulo 7 da Traumdeutung, trata desse processo na formação dos sonhos. Freud define:

a situação em que as representações (ou imagens) emergentes aparecem ligadas entre si pelos laços da chamada associação
superficial, ou seja, por assonância, ambiguidade de palavras, coincidência cronológica sem relação interna de sentido – por todas
as associações que nos permitimos empregar no chiste e no jogo de palavras. [...] Sempre que um elemento estiver ligado a outro
por meio de uma associação chocante e superficial, também existe uma ligação correta e mais profunda entre ambos, submetida
à resistência da censura.(FREUD, 2012, p. 557)

Condensação, deslocamento e figurabilidade, metáfora, metonímia e rébus estão aqui implicados nestas ligações substitutivas. A
censura age de duas formas: ou sobre a ligação entre dois pensamentos - este é o modelo do processo que seria definido, anos
depois, por Freud como o isolamento na neurose obsessiva – ou sobre os dois pensamentos, que desaparecem, e, em seu lugar
aparecem outros dois, conectados por meio de uma associação superficial. Este segundo será o modelo mais próximo da formação
de sintomas na histeria.

Portanto, algo com trânsito livre no sistema Pr-Cs vai representar (no sentido de representação diplomática) na cena, no palco e na
tela do sonho graças ao processo da regressão, algo do Inconsciente. A ligação entre o substituído e o substituto tem esse aspecto de
absurdo, de superficial. Isso aproxima a expressão do Inconsciente dos processos poéticos, não sem um rigor lógico. É o que se
observa nos títulos de seis dos últimos seminários de Lacan. O que interliga moebianamente, através da instância da letra, o último
Lacan ao primeiro Freud. Esse trato das palavras e das letras em relação ao deslizar de sentidos e ao sem sentido aparece todo o
tempo nos três textos de Freud recém citados e em títulos de Lacan como Les non-dupes errent (os não tolos erram; ou os nomes do
pai).

***

Lacan, inspirado por Lévi-Strauss e por Jakobson, vai usar a noção saussuriana de significante, elevando-o à condição de conceito
fundamental para fazer seu movimento psicanalítico, o seu Retorno a Freud, seu Relendo Freud.

É com este conceito, na partida e até o final, que abordará a práxis freudiana. Chegará até mesmo, um dia, a inventar um conceito
para chamar de seu: o objeto a; mas, o significante, este indubitavelmente já estava em Freud. Não com esta nomeação, é verdade,
mas a aposta de Lacan é que ali estava, antecipado, em relação a Saussure, e aguardando sua leitura e releitura.Lacan, num
cruzamento entre esses dois autores, Freud e Saussure, produz sua própria teoria do significante, na qual se deduz um sujeito
suposto ao saber Inconsciente, representado e dividido entre dois significantes ou, entre um significante e uma malha, uma teia de
significantes. Operação de divisão que apresenta como resto aquilo que, aqui neste capítulo que hora estudamos, é nomeado por
Freud como o umbigo dos sonhos.

***
No início deste capítulo sete, Freud se detém em um sonho e o toma como exemplar. É algo curioso e que não deixa de chamar a
atenção. Um sonho a respeito do qual não sabemos quem é o sonhador. Um sonho a partir do qual não há associações e, ainda, um
sonho em que se realiza, quando muito, um desejo bem consciente: manter o filho morto vivo por mais alguns instantes. Sonho
contado por uma paciente que ouviu falar dele em uma conferência e que o ressonhou. Freud, não parece, para este sonho, como
uma exceção, pedir associações. Vaticina que tal sonho não coloca nenhuma tarefa à interpretação, pois seu sentido seria aberto. Isto
vai no sentido contrário, é estranho e incoerente em relação a tudo que havia preconizado até este ponto do livro sobre a forma de
interpretar um sonho.

Sabemos a partir do próprio Freud que este livro foi sua maneira de realizar o trabalho de luto pela morte de seu pai. Neste ponto
proponho uma leitura delirante que me ocorreu (delirante porque para que não fosse precisaria vir a partir da fala do sonhador).
Poderíamos considerar que na medida em que Freud conta a nós, seus leitores, este sonho, estaria ele também ressonhando esse
sonho? Se esta hipótese fizer algum sentido poderíamos dizer que o lugar de quem conta o sonho coincide com o lugar onde está o
Eu de Freud, enquanto que o lugar da criança que fala no sonho corresponde ao sujeito do inconsciente, em sua efemeridade
[2]
enunciativa, é Freud filho dizendo: “pai, não vês que estou ardendo a sua falta? Estou queimando. ”

***

Então, temos duas questões:

A primeira é: em que elemento extremamente específico de Freud aparece o significante em suas principais características
pressupostas por Lacan?

A segunda: a partir de que fenômeno definido por Freud se cria a relação que Lacan chama de significante?

O elemento freudiano é o resto diurno. Representações inofensivas, recentes e geralmente indiferentes que são esvaziadas de seus
sentidos usuais para poderem veicular sentidos inconscientes e assim simultaneamente burlar e se adequar ao recalcamento que
[3]
como nos dirá o colega Hugo em seu trabalho, não está tão dormente durante o processo onírico quanto acreditávamos.

O fenômeno é o da transferência (apesar de ainda não o aplicar à relação entre analisante e analista, seu preceito lógico já está aqui
presente por completo). Se “a representação inconsciente como tal é incapaz de entrar no pré-consciente e que só é capaz de
manifestar um efeito nele ao se ligar com uma representação inofensiva já pertencente ao pré-consciente, transferindo a ela sua
intensidade e se deixando cobrir por ela.” (FREUD, 2012, p. 590) A maneira pela qual é possibilitada essa transferência, de uma
representação à outra é por meio de uma associação superficial. Há que se ressaltar aqui essa ideia freudiana do esvaziamento de
significação, ou dos sentidos habituais de uma representação. Uma representação esvaziada de sentido nos aproxima do termo
usado por Freud adiante em sua obra, de representante da representação, essencial para os desenvolvimentos de Lacan, o
[4]
significante como embaixador, nasce dos restos diurnos de Freud .

***

No sonho da injeção de Irma, Freud se depara com uma fórmula, letras e números concatenados representando uma solução química
ao mesmo tempo conhecida e insignificante para ele em sua vida desperta. As letras se dão a alucinar quando concatenadas por uma
identidade perceptiva e se dão a ler quando encadeadas por identidade de pensamento. A fórmula do elemento trimetilamina aparece
no conteúdo do sonho como um resto diurno, losung, termo usado em alemão para referir a palavra solução que em nossa língua
produz o mesmo deslizamento de sentido obtido na língua germânica. Solução química que leva o sonhador a desvendar a solução
do enigma do sentido dos sonhos.

Lacan, em seu último ato em cena, na cena analítica, promove a dissolução de sua Escola, processo belicoso e desgastante. No
entanto, não deixa de aproveitar este momento de epílogo para homenagear e se servir uma vez mais do que recolheu em Freud e
transformou em sua herança. Num último giro de releitura apela à instância da letra para fraturar o título de sua derradeira carta à
Escola e aludir nesta operação significante a sua filiação freudiana. Sua dissolution é uma dit solution, a dissolução é uma diz
solução.

No início, no fim e no meio!

Autor: Sidnei Artur Goldberg

Sidnei Artur Goldberg é psicanalista - APPOA

[1] A expressão correta seria: sua Releitura de Freud, mas a escolha por seu Relendo Freud é uma brincadeira com o nome do evento
em que estava sendo apresentado esse trabalho, o: Relendo Freud, evento anual da APPOA que já está em sua 28ª edição.

[2] Falei essa frase de maneira interpretativa. A frase correta é: “Pai, você não vê que estou queimando?” (Freud, 2012, p. 535)

[3] Trabalho apresentado no mesmo evento e publicado nesta mesma edição do Correio com o título: Sonhos.

[4] “Freud mostra-nos como a palavra, isto é, a transmissão do desejo, pode se fazer reconhecer através de qualquer coisa, desde
que essa qualquer coisa seja organizada em sistema simbólico[...] O que é que nos diz Freud na sua primeira definição do
Ubertragung? Ele nos fala dos Tagesrest, dos restos diurno, que são, diz ele, desinvestidos do ponto de vista do desejo. São no
sonho formas errantes que, para o sujeito, se tornaram de menor importância – e se esvaziaram do seu sentido. É, pois, um material
significante. O material significante, quer seja fonemático, hieroglífico, etc. é constituído de formas destituídas do seu próprio sentido e
retomadas numa organização nova através da qual um outro sentido encontra como se exprimir. É exatamente a isso que Freud
chama Ubertragung. [Transferência]. (Lacan, 1986, p. 278).

Referências bibliográficas:
FREUD, Sigmund, A interpretação dos sonhos, volume 2, 1899. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012.

LACAN, Jacques, Os escritos técnicos de Freud, 3ª ed. -1953-54. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.

Buraco, fios, nó, umbigo dos sonhos, nó, fios, buraco


Simone M. Brenner

Vou começar pelo final do texto freudiano A Interpretação dos Sonhos.

De todos modos, siempre es muy instructivo ver el removido suelo sobre el que se alzan, orgullosas, nuestras
virtudes. La complicación dinámica de un carácter humano, no resulta ya explicable por medio de una simple
alternativa, como lo quería nuestra vieja teoría moral.

¿Y el valor del sueño para el conocimiento del porvenir?

En esto no hay naturalmente que pensar. Por gustosos que saludemos, como investigadores modestos y exentos
de prejuicios, la tendencia a incluir los fenómenos “ocultos” en el círculo de la investigación científica, mantenemos
nuestra convicción de que dichos estudios no llegarán nunca a procurarnos, ni la demostración de una segunda
existencia en el más allá ni el conocimiento del porvenir. Diríamos, en cambio, que el sueño nos revela el pasado,
pues procede de él en todos sentidos. Sin embargo, la antigua creencia de que el sueño nos muestra el porvenir no
carece por completo de verdad. Representándonos un deseo como realizado, nos lleva realmente al porvenir, pero
este porvenir que el soñador toma como presente, está formado por el deseo indestructible conforme al modelo de
dicho pasado (FREUD, [1953]/1900, p. 316)[1].

Ler esse texto freudiano me pareceu ser uma experiência analítica, que por excelência será sempre a de analisante.

Freud nos possibilita ao longo da leitura lançarmos muitas questões:

O que nos produz, o que esquecemos e o que lembramos de um sonho?

Onde estamos no sonho?

O que podemos decifrar do material onírico?

O que nos suscita o pavor e o fascínio de um sonho?

O que se decanta em nós de uma experiência onírica?

Essas perguntas, quase inevitáveis e muito importantes, nos acompanham no trabalho analítico, não só a partir dos sonhos, mas
também a partir do chiste, do lapso, da poesia, da pintura, do cinema, do teatro, da vergonha, do brincar - enfim, naqueles recursos
que a um humano ocorre para poder falar/escutar o inconsciente.

Me ocuparei um pouco de um desses, o brincar, partindo dos sonhos.

Freud parece nos propor trilharmos um caminho associativo para, a partir dele, chegarmos talvez à compreensão do inconsciente,
talvez torná-lo consciente, talvez atravessando o pré-consciente.

Nesse percurso freudiano ele vai nos alertando que no meio do caminho encontramos buracos, buracos no meio do caminho.

Associo esses buracos, semelhantes às pedras de Drummond com o dito freudiano: "A toda representación puede enlazarse
asociativamente algo, lo único notable es que esta concatenación arbitraria y exenta de todo fin lleve precisamente a las ideas
latentes. Los analíticos se engañan aquí de buena fe. Siguen la cadena de asociaciones que parte de un elemento, hasta que por un
motivo cualquiera, notan que se interrumpe" (FREUD, [1953]/1900, p. 239).[2]

Esse ponto que interrompe, que rompe a cadeia associativa poderia ser o “umbigo dos sonhos”?

Aquele “el punto por el que se alla ligado a lo desconocido. Las ideas latentes descubiertas en el análisis no llegan nunca a un límite y
tenemos que dejarlas perderse por todos lados, en el tejido reticular de nuestro mundo intelectual. De una parte más densa de este
tejido, se eleva luego el deseo del sueño” (ibid, p.237).[3]

Parece que aquilo que poderia ser um início, talvez um umbigo inaugural de origem ou o ponto final, chegando num suposto limite nas
associações, vai se tornando aquele que funciona como pontos de capitonê. Pontos que, de tempos em tempos, produzem um
esburacamento, ponto de interrupção daquilo que vem se seguindo, se associando, um buraco que nos dá notícias de outros fios, que
possibilitam outros nós…

Freud nos permite subverter a lógica de início, meio e fim. Nos possibilita pensarmos o umbigo dos sonhos operando ao longo do
tempo e do espaço de uma análise, funcionando como interrupções nas associações as quais podem deixar de ter o movimento
necessário por terem se tornado simplesmente, extensões, sucessões, sequência.

Quando Freud fala que no trabalho de análise dos sonhos, nos deparamos com pontos obscuros, algo das trevas, do demoníaco, do
umbigo dos sonhos, me ocorre do valor desses pontos que furam a sequência, furam a lógica do sentido.
Nas cenas de um brincar nos deparamos também com movimentos corporais, desenhos, palavras, imagens que nos parecem soltas,
desconexas, sem sentido. Talvez nossa necessidade de compreender um sonho, encontrar conexões possíveis para podermos
alinhavar esses tecidos soltos, habita nossa escuta diante de cenas do brincar.

Será que quando Freud fala sobre a importância de estarmos numa “posição modesta” e com o mínimo de “pre-juizos” para podermos
escutar o inconsciente que poderá advir do material onírico, poderia nos ajudar no trabalho analítico do brincar?

Parece ser inevitável querermos compreender como também acho que isso faz parte do “tecido reticular” que se arma na cena
analítica para, talvez, algo poder, nesse cenário, interromper, esburacar, como um ponto onde o que vem se sucedendo são muitas
vírgulas.

Me ocorre aqui a lembrança da minha surpresa e encanto quando, visitando a “Sagrada Família”, projetada pelo arquiteto catalão
Antoni Gaudí, visitamos os espaços que se encontravam no subterrâneo da igreja, onde estavam os desenhos dele. Gaudí traça
desenhos e constrói maquetes onde inicia a pensar as bases, a estrutura da obra por pontos. Ele propõe vários pontos donde partem
fios que pendurados se encontram com outros pontos, armando uma estrutura invertida (ele monta a estrutura de cabeça para baixo,
o que será a base está em cima). Há um trabalho de acompanhar a cadência dos fios, os pontos de encontro/amarração. Não é a
base sólida que sustenta a estrutura (como na engenharia tradicional) mas sim vários pontos, vários fios que encontrando-se em
alguns outros pontos, vão montando a estrutura. Nas montagens de Gaudí o que importa é que a estrutura se constitua a partir da
experiência de movimento, sem cálculos prévios. A carga vai se distribuindo a partir das tramas, dos pontos e fios diferentemente dos
cálculos tradicionais onde a estrutura prevê uma carga antecipadamente e nisso se estruturam as bases.

Quando temos como analisante uma criança, nos acompanha a questão da estrutura.

Fico com a hipótese de que as “brincadeiras” arquitetônicas de Gaudí podem, junto com as pistas que Freud e Lacan nos dão, nos
ajudar a pensar o trabalho analítico com crianças que brincam em suas análises. De podermos tomar o brincar como algo que
possamos decifrar que é diferente de compreender, diferente de, com ele, entendermos sobre a origem do sintoma e qual seria seu
futuro. Talvez fosse interessante tomá-lo como os fios oníricos.

Fios que compõem uma diversidade de cores, lugares, tempos, personagens, movimentos, gravidades (nos dois sentidos dessa
palavra), enfim, difíceis de entender. Porém talvez seja exatamente nessa composição que algum ponto possa, em transferência, se
tecer. Um ponto que talvez precise de um terreno que o sujeito possa “perder-se por todos os lados”.

Porém existem situações clínicas que nos colocam em posição de preocupação, pré-ocupação. Situações onde/quando talvez “o
umbigo” ainda se encontre sem possibilidades de tornar possível algumas formas de representações, onde/quando os fios estão à
espera de um ponto que possa talvez fazer um capitonê, um nó.

Mas então, se estamos supondo um “umbigo” que dele partem “notícias” de um buraco, de um desconhecido que não desiste de se
manifestar de formas enigmáticas, poderíamos diferenciar que estamos diante de um buraco que talvez não seja a mesma coisa que
o vazio?

Lacan, no seminário “Os não-tolos vagueiam” ([1973-1974], 2016, p. 24), nos diz:

"A ideia de Gênesis, de desenvolvimento, como se diz, do que seria não sei qual norma, graças a qual um ser que
só se especifica por ser falante em tudo o que diz respeito aos seus afetos, justamente, seria comandado por não
sei o quê, que qualquer um é incapaz de definir e que se chama o desenvolvimento. E é querendo reduzir a análise
a isso que se perde… faz-se o erro completo, o erro radical, quanto àquilo que diz respeito ao que o inconsciente
descobre.

Há alguma coisa que nos diz Freud, no último parágrafo da Traumdeutung e, aí, é sem ambiguidade: O valor do
sonho para o conhecimento do futuro. E é isso que é bonito. Porque se crê que, escrevendo isso, Freud faz alusão
ao famoso valor divinatório dos sonhos...

O que diz o final do parágrafo de Freud, a saber, que este futuro, sustentado pelo sonhador como presente, é
gestaltet, estruturado pela indestrutível demanda, na medida em que ela é sempre a mesma. A saber, que seria
essa viagem, a saber, esse desenvolvimento assim, pontuado, do nascimento à morte".

Por ora leio que Lacan nos propõe que Freud, ao longo da interpretação dos sonhos, nos possibilita pensar que o surgimento do
inconsciente nos aponta para uma ideia de que essa pretensa “viagem”, isso que com as formações do inconsciente vamos
desvendando, desvelando, seja algo que compreenda uma estrutura que está ali, desde sempre. Da mesma forma que o desejo, o
qual é “estritamente, durante toda a vida, sempre o mesmo. Simplesmente, das relações de um ser particular, em seu surgimento em
um mundo em que já é esse discurso que reina, ele é perfeitamente determinado quanto a seu desejo do início até o fim” (LACAN,
[1973-1974], p. 25).

Lacan nos adverte, “o inconsciente é um saber com o qual o sujeito pode se decifrar” e “não é um conhecimento, é um saber
desarmônico, que não se presta, de maneira nenhuma, a um casamento feliz, um casamento que seria feliz” (ibid, p 257).

Referências Bibliográficas:

FREUD, Sigmund. La Interpretación de los Sueños. Buenos Aires: Santiago Rueda-Editor, 1900-1953.

LACAN, Jacques. Os não-tolos vagueiam. Bahia: Espaço Moebius Psicanálise, 1973-1974, 2016.

Autor: Simone M. Brenner

Simone M. Brenner é psicanalista - APPOA


[1] Tradução da autora:
"Em todo caso, é sempre muito instrutivo ver o solo revolto sobre o qual nossas virtudes se erguem orgulhosamente. A complicação
dinâmica de um caráter humano, não resulta já explicável por meio de uma simples alternativa, como queria nossa velha teoria moral.

E o valor do sonho para o conhecimento do futuro?

Naturalmente não há razão para pensar sobre isso. Por mais que acolhamos, como pesquisadores modestos e sem preconceitos
(prejuicios: prejuízos, pre-juizos…), a tendência de incluir fenômenos ocultos no círculo da pesquisa científica, mantemos nossa
convicção de que tais estudos nunca nos proporcionarão nem a demonstração de uma segunda existência no além nem o
conhecimento do porvir. Diríamos, em vez disso, que o sonho nos revela o passado, pois dele procede em todas as direções. No
entanto, a antiga crença de que o sonho nos mostra o futuro não é totalmente sem verdade. Representando um desejo para nós
como realizado, ele realmente nos leva ao futuro, mas esse futuro que o sonhador toma como presente é formado pelo desejo
indestrutível segundo o modelo do dito passado".

[2] Tradução da autora:


"A toda representação pode enlaçar-se associativamente algo, o único notável é que esta concatenação arbitrária e isenta de todo fim
leve precisamente às ideias latentes. Os analíticos se enganam aqui de boa fé. Seguem a cadeia de associações que parte de um
elemento, até que por um motivo qualquer, notam que se interrompem".

[3] Tradução da autora:

"ponto pelo que se acha ligado ao desconhecido. As ideias latentes descobertas na análise não chegam nunca a um limite e temos
que deixá-las perder-se por todos os lados, no tecido reticular de nosso mundo intelectual. De uma parte mais densa desse tecido, se
eleva logo o desejo do sonho".

A Caverna dos Sonhos Esquecidos


Leonardo Beni Tkacz

Durante as reuniões do cartel, onde discutíamos o item “A regressão”, capítulo 7 de A interpretação dos sonhos (Freud, 2019),
lembrei-me do documentário A caverna dos sonhos esquecidos (Creative Differences e History films, 2010), do diretor e roteirista
Werner Herzog. Algumas cenas, imagens e falas tomaram relevo, como numa projeção na tela em 3D. Elas funcionaram como
associação de rastros de recordações (traços mnêmicos) de uma memória.

Assim, entre a moldura da tela do computador (discussões em cartel) e a moldura do documentário, ocorreu-me uma questão: O que
implica sonhar? Vou encaminhar essa questão numa certa temporalidade de escrita que nomearei como sendo “associação de rastros
de recordação”.

Relembro que Freud, no capítulo 7 da A interpretação dos sonhos, vai discutir a estrutura e função do aparelho psíquico. De alguma
forma, ele já o construía no texto sobre a afasia, de 1891, e no Projeto, de 1895. Desse modo, ele inventava sua topologia.

Trata-se de um aparelho psíquico que será construído pelas diferentes vias de facilitações (Bahnungen) que serão percorridas pelos
estímulos/pulsões, consequentemente ocorrerá uma diferenciação de sistemas e instâncias (o que incluiu a censura).

Os sistemas se diferenciam a partir do modo como os rastros (traços) se associam, se conectam: associações por simultaneidade que
advêm do sistema perceptivo e por associações de traços que são atraídos por semelhança, formando o sistema mnêmico. Aqui,
Freud situa a memória. Uma memória constituída pelas tramas desses traços, pelas tramas dos restos de recordação.

O sonho, segundo Freud, constitui-se como uma escritura, tecida por imagens que se articulam como uma linguagem. Temos assim
uma escritura pictográfica. Uma escritura que pode ser tomada como um rébus.

Um rébus, um jogo de enigmas, que só pode ser encenado porque houve uma formação de compromisso. Entre o quê? Entre um
desejo inconsciente e uma proibição do eu. Se um sonho pode ser tratado como uma escritura, um texto, este, portanto, demandará
pontuações (intervenções/interpretações/ato analítico) numa análise.

Lacan nomeava a invenção do aparelho psíquico por Freud como sendo um aparelho simbólico. Duas questões: como se estrutura
esse aparelho? Como o sonho se forma nesse aparelho simbólico?

Freud dirá que se, na vigília, a direção dos pensamentos segue da extremidade sensorial para a extremidade motora, no dormir, a
motilidade estará suspensa e o sonhar transferirá os pensamentos oníricos até o sistema perceptivo. Essa “volta para trás” ele
chamou de regressão.

Os pensamentos oníricos regridem de uma tópica a outra, percorrendo uma temporalidade que o sonhador vivencia como se esses
ocorressem em um tempo presente. Nessa regressão temporal, nessa “volta para trás”, os pensamentos oníricos serão reduzidos a
sua matéria prima, ou seja, aos restos diurnos que se associam aos traços indestrutíveis do inconsciente, formando a encenação do
sonho, sua figurabilidade.

Dessa forma, as imagens encenadas no sonho figuram os deslocamentos e as condensações significantes pelas quais um sujeito
dividido se relaciona com seus objetos perdidos, objetos a. Portanto, encena-se a realização deformada de um desejo. E a
interpretação?

Ainda que o tema da interpretação seja fundamental, esse requereria um outro trabalho para discuti-lo. Entretanto, há um aspecto do
tema da interpretação que me parece importante situar.
Freud nos adverte que haverá sempre um ponto obscuro, não interpretável, a que chamou de umbigo do sonho. Ele refere que

ali há um novelo de pensamentos oníricos que não é possível desembaraçar... é o umbigo do sonho, o ponto em que ele assenta
no desconhecido... Os pensamentos oníricos que encontramos na interpretação têm de permanecer geralmente inconclusos e
ramificar em todas as direções na emaranhada rede do nosso mundo de pensamentos. O desejo do sonho surge então de um
ponto mais denso desse tecido (…). (Freud, 2019, p. 575)

Lacan, no Seminário 11, dá um passo nessa advertência, quando afirma: “É nesse ponto de falha constitutiva do sonho, correlato ao
ponto do qual constituiu-se a fantasia fundamental do sujeito, que vamos ver nascer um novo saber que recoloca esse sujeito diante
do real que o constitui”. (Lacan, 1988, p. 38)

Esse correlato ao qual Lacan se refere nos remete, ao meu ver, a um ponto do Real impossível de ser simbolizado, um furo no tecido
da linguagem por onde o desejo vai percorrer a fim de reencontrar o objeto miticamente perdido. Diante dessa impossibilidade, o que
se pode encontrar?

No melhor dos casos, o sonhador, o sujeito que o subjaz, poderá situar, numa análise, as condições pelas quais emoldurou sua
relação fantasmática com seus objetos a; e tentar fazer outra coisa com os restos encontrados no percurso de uma análise.

Freud, no capítulo 7, faz uma analogia entre o aparelho psíquico e a máquina fotográfica, dizendo que tanto um quanto o outro são
formados por camadas. Um, por sistemas; o outro, por lentes. Se ele compara o aparelho psíquico a uma máquina fotográfica, logo é
possível pensar que ambas enquadram e recortam o campo do real. Nessa moldura, que enquadra e recorta, o que sustenta a
imagem é um resto, como Lacan costumava afirmar.

Numa regressão temporal, trago o documentário “A caverna dos sonhos esquecidos” do diretor Werner Herzog, exibido em 2013 no
Brasil. Neste, o documentarista/narrador procura enquadrar e recortar algum olhar que possa sustentar as imagens como restos de
recordação de uma história da humanidade. Do que se trata esse documentário?

A caverna foi descoberta em 1994 por arqueólogos franceses que exploravam a região Ardèche, sul da França, conhecida pela
importância arqueológica. Ela recebeu o nome Chauvet Pont d’Arc, numa condensação entre Chauvet (chefe da expedição) e Vallon–
Pont–d’Arc, cidade próxima da caverna.

Trata-se de uma caverna da era paleolítica preservada há 32 mil anos. O que mais impressionou foi o estado de conservação das
inúmeras pinturas rupestres nas paredes rochosas (leões, rinocerontes, lobos, cavalos), de alguns fósseis de animais espalhados,
além do contorno de pegadas de animais e humanos no solo arenoso. As pinturas estão localizadas na parte profunda da caverna.
Num jogo de luz e sombras, Herzog narra os prováveis movimentos dos animais desenhados nas paredes.

O documentarista se interroga e nos interroga: “O que sonharam aqueles seres, nossos ancestrais? Qual o motivo dessa trabalhosa
representação em imagens? Teriam algum fundo religioso ou não? Fariam parte de algum ritual?”.

Enquanto o diretor e sua equipe percorriam a caverna, um dos arqueólogos que servia de guia pede a todos que parem e
permaneçam em silêncio por alguns minutos, escutando a batida de seus corações. O silêncio toma conta da cena, e, em seguida,
surge a voz do narrador (Herzog): “Será que ouvimos nossas batidas, ou ouvimos as batidas daqueles que estiveram aqui há 32 mil
anos?”.

Dentre os depoimentos dos pesquisadores que estudam as descobertas dessas pinturas rupestres, há um pesquisador que disse:

Estamos avançando para criar uma nova compreensão da caverna, por meio de precisão e métodos científicos. Mas esse não é o
objetivo principal. O principal objetivo é criar histórias do que pode ter ocorrido na caverna, durante o passado... Sem dúvida,
nunca saberemos, pois o passado está definitivamente perdido. Nós nunca reconstruiremos o passado. Nós só podemos criar
algumas representações do que existe hoje... (arqueólogo/pesquisador, 2010).

De alguma forma, o documentário “A caverna dos sonhos esquecidos” questiona: quem os esqueceu? O que desejavam? Naquelas
inscrições nas paredes rochosas, as imagens das pinturas rupestres poderiam ser situadas como se fossem restos de recordação
que, como numa moldura, não deixasse de situar um ponto obscuro, um ponto que se assentaria no desconhecido, um olhar, como
um furo no real, onde os restos de recordação tentassem situar o desejo daquele que inscrevia algo a partir de um objeto miticamente
perdido.

Se fosse possível algum tipo de correlato entre o sonhar e a montagem do documentário, esse seria no ponto onde o furo no real
pode ser bordeado pelo simbólico, por onde um desejo se põe em movimento. Da impossibilidade, surge um possível, e uma verdade
pode se estruturar como uma ficção. Ainda assim, o que implica sonhar?

Referências bibliográficas:

FREUD, S. A Interpretação dos Sonhos. São Paulo. Companhia das Letras, 2019

HERZOG, W. Documentário. A Caverna dos Sonhos Esquecidos. Creative Differences e History films, 2010.

LACAN, J. O Seminário. Livro 11. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 1988.

Autor: Leonardo Beni Tkacz

Leonardo Beni Tkacz é psicanalista - APPOA.


A representação da pulsão a propósito da natureza psíquica do desejar
Luís Fernando Lofrano de Oliveira

Dentre as discussões possíveis a partir da leitura do Capítulo 7 de A interpretação dos sonhos (Freud, 1900), situamos, a seguir, uma
que concerne ao emprego do termo representação por Freud. Sob várias modalidades, esse termo é empregado 104 vezes pelo autor
ao longo do referido capítulo. Perguntamo-nos: trata-se da evocação de um nome comum ou de um conceito em psicanálise? A
insistência e os modos com que o autor procura contar com o termo representação no importante texto acima mencionado leva-nos a
pensá-lo como um potencial operador na clínica em psicanálise; ou seja, como um conceito concernente ao âmbito da transferência.
As considerações que se seguem partem da premissa de que representação, ou melhor, Vorstellung, refere-se a um conceito em
psicanálise.

O termo representação é a opção universal de tradução para Vorstellung, que é o termo escolhido por Freud em seus escritos. Não é
que Vorstellung não corresponda a representação, mas esta opção de tradução nomeia apenas em parte e, diremos nós,
figurativamente, o que o autor denomina com a palavra escolhida em alemão. Vorstellung corresponde, correntemente, a imaginação
ou a modo de apresentação; e também a proposição, preposição ou anteposição. É o termo que Freud reserva para dar nome tanto
ao processo da formação de imagens no psiquismo – aposição de libido, por parte do eu, em traços da percepção – como ao produto
deste processo – formações de imagem unitárias e associáveis. Optamos, por falta de alternativa, pela precária opção universal da
tradução de Vorstellung por representação; afinal, não é que não seja representação, assim como não é também que não seja
imaginação, modo de apresentação, proposição, etc. Esse “não é que não seja” parece um ponto forte da dita representação, que se
prestará, em todo caso, como material discursivo denegatório para alguém tratar de falar o que não dá para dizer.

Empregamos diferencialmente o termo representação para referência, no singular, ao processo da formação de imagens e, no plural,
às formações de imagem dele decorrentes. Assim, representação faz referência a uma ação de ordem psíquica e representações ao
produto resultante dessa ação. Não temos, de fato, notícia de outra ação psíquica que não seja a de representação da excitação
psíquica de alteridade chamada por Freud de pulsão. Eis a função em causa, para Freud, ao propor um aparelho psíquico: situar tanto
as possibilidades como as impossibilidades de tramitação sistemática desta excitação no psiquismo. Em suma, a ação de representar
corresponde a uma reação do eu ao surgimento da pulsão, já que, sem essa reação, a dita excitação aparece nele sob estado de
afeto. Trata-se, pois, de uma compulsão a representar. O resultado dessa ação encontra-se nas formações de imagem unitárias,
ordenadas ou associadas em séries ou em complexos de representação, que consistem no suporte para o discurso em sessão de
psicanálise. A transferência consiste no suporte dessa ação de representação e da consequente produção de representações.

O prefixo vor, em Vorstellung, quer dizer ante ou antes; ante, se o que estiver em questão for relativo ao espaço, ou antes, se for
relativo ao tempo. Em todo caso, para que no psiquismo haja noções de espaço ou tempo, ou ainda, de espaço e tempo, é preciso
fazê-las. Elas se fazem através do processo de representação. Este processo pode resultar em formações de imagem simples,
autorreferenciadas, ou em configurações complexas como as narcísicas. Estas últimas geram-se com base no alinhamento de pontos
determinados e projetados a partir de coordenadas tipo cartesianas. Firma-se, aos poucos, com ambas modalidades de
representações, uma noção de realidade: a chamada realidade psíquica. Trata-se daquela realidade da qual o paciente fala quando
quer nos dizer como vão as coisas; ou seja, de um complexo de representações. Na sessão, portanto, a presença pode tornar-se,
através da formação de tais complexos, ocasião para uma experiência de espaço e tempo necessária para as aspirações de
realização do desejo.

Stellung é, por sua vez, a ação do verbo stellen; a ação de pôr, de fazer lugar. A designação desta ação dará a Freud suporte material
para compor três termos-chave em suas considerações sobre a psicologia dos processos de sonho, que são Vorstellung, Darstellung
e Entstellung. O primeiro deles refere-se à dita representação, a formação de imagem no psiquismo. Seu destino é estar na
consciência e não poderá, portanto, ter duração. Tal formação prefigurará, de maneira coordenada, as possibilidades da presença de
algo ou alguém nos complexos de representação. As possibilidades determinadas de uma presumida presença no tempo e no espaço
estarão contempladas no que se verifica como Darstellung, que costumamos traduzir por figuração. Trata-se da condição de duração
temporária atribuída a certos elementos de representação no psiquismo que terão, enquanto formação de imagem, o destino da
desfiguração, ou seja, da Entstellung. Estes elementos ganharão o seu caráter unitário e lógico no psiquismo através dessa
desfiguração.

Freud procura, em suas considerações sobre a psicologia dos processos de sonho, rastrear insistentemente os meios de tramitação
da excitação no psiquismo com base na noção de representação. Isto nos leva a situar uma discussão acerca da representação da
pulsão. O propósito da Vorstellung seria de representar a pulsão e, com isto, permitir a sua tramitação até a descarga corporal. Este
propósito comporta e atrela uma erótica e uma lógica do psíquico. Como proposição, a representação pode portar uma erótica
correspondente às formações unitárias de imagem e uma lógica na associação de umas a outras dessas formações.

Com tais propriedades, as representações vêm fazer parte da interpretação de sonho. Elas compõem a versão do sonho em palavras,
o dito relato do sonhador, que Freud chama de conteúdo de sonho. Trata-se de um curso de representações, através do qual o
sonhador traz ordem e ligação ao sonho. Seus elementos serão base para processos de associação, dos quais se poderão obter
decursos de representações chamados de pensamentos involuntários. Através do enlace de certos pontos (Stellen) destacados
destes compõem-se os pensamentos de sonho, ou seja, aqueles caminhos de ligação entre representações que terão sido
interrompidos quando o sonho iniciou. Vemos, assim, o procedimento da interpretação de sonho encontrar suporte basicamente no
que se pode produzir, em transferência, como material de representação. Esse mesmo procedimento caberá também para a
interpretação de outras modalidades das ocorrências do inconsciente; ou melhor, nos termos de Freud, do insabido. São, em todo
caso, ocorrências que se dão, como nos mostra esse autor, em função do cumprimento de um desejo.

Desejo torna-se, assim, um ponto básico de apoio para a consideração de Freud acerca das ocorrências do insabido e, em especial,
da ocorrência do sonho. Por certo, o que se chama sonho na obra desse autor é outra coisa do que o evocado por esse termo em
sentido comum ou figurado. Da mesma maneira, desejo é uma referência precisa em sua obra. Nesse Capítulo 7, o autor traz uma
passagem a respeito da natureza psíquica do desejar que nos mostra essa precisão. Claro, para poder contar operacionalmente com
termos retirados do seu sentido comum é preciso dizer do que se trata, com ele, em psicanálise.
Na passagem acima mencionada, a respeito da natureza psíquica do desejar, Freud nos fala do desejo justamente a partir da
demanda. Esta última terá, por sua vez, origem em processos de representação. Isto porque a vivência de satisfação decorre do
encontro com o presumido objeto da pulsão, que será necessariamente fruto das pretensões de sua representação. Trata-se, em todo
caso, de encontrar caminho, no aparelho psíquico, para tramitação da excitação advinda de uma alteração interna na forma de
necessidade. A natureza psíquica do desejar está, portanto, na experiência da vivência de satisfação.

Nos termos do autor, que encontramos na página 557 da Ed. Amorrortu, a experiência dessa vivência suspende o estímulo interno.
Esta experiência compõe-se dessa vivência e da aparição de uma certa percepção. A imagem de recordação dessa percepção fica,
daí em diante, associada ao rastro de memória da excitação de necessidade. Na próxima vez que essa necessidade surja se
suscitará, graças ao enlace estabelecido, uma moção psíquica. Tal moção quererá investir de novo a imagem de recordação daquela
percepção e provocar de novo a mesma percepção; ou seja, restabelecer a situação primeira. Essa noção chama-se desejo. O
reaparecer da percepção é o cumprimento de desejo.

Nos parece pouco ficcional, romântica ou vaga essa definição do desejo. De fato, para falar de um vazio, não é preciso ser vago;
basta dizer do quê está falando. A incansável insistência de Freud em dizer que a ocorrência do insabido seria uma Wuncherfüllung
(preenchimento de desejo) nos deixa literalmente escancarado, com as letras f ü l l, o vazio próprio do que ele chama de desejo.
Interessa-nos sublinhar que a natureza desse vazio se deve aos anseios da representação da pulsão, que não se cumpre a não ser
por constituir, como falta, o irrepresentável. Para todos os efeitos, a pulsão como irrepresentável e o desejo como vazio se tornarão
compulsoriamente dois motores da repetição.

Referência bibliográfica:

FREUD, S (1900). La interpretación de los sueños. In: Obras completas. Buenos Aires; Amorrortu Editores, 1991, v. 5, pp. 504-608.

Autor: Luís Fernando Lofrano de Oliveira

Luís Fernando Lofrano de Oliveira é psicanalista - APPOA.


Debates
Amazônia: palavras para apagar incêndios
Edson Luiz André de Sousa

Por que continuo a lutar? Porque estou vivo!

Davi Kopenawa

Uma canção indígena, imagens de uma estrada à noite, a voz de Arnaldo Antunes lendo seu manifesto ‘Isto não é um poema’, escrito
em homenagem a Moa do Catendê, assassinado no dia da votação do primeiro turno nas eleições no Brasil em 2018. É essa a porta
de entrada do filme ‘Um poeta na Amazônia’, de José Huerta, cineasta espanhol radicado em Paris. As palavras do músico Arnaldo
Antunes dão o tom do que veremos no filme. Diante de um cenário obscuro e de urgência, em que “o Brasil nega qualquer Brasil
possível, cega qualquer futuro possível”, como reagir? O filme de Huerta parece ser uma resposta a essa cena inicial. Ele nos leva ao
coração da Amazônia, nos apresentando o trabalho do poeta César Felix, que criou um polo de resistência cultural em Rio Branco
(AC).

Félix abriu um espaço de encontros em um café e o nomeou Café com Poesia. Assim,toda uma comunidade de pessoas que se
sentem excluídas e ameaçadas por suas opções políticas e sexuais, encontram ali um lugar de acolhimento, de escuta, de troca de
ideias e de experiências. Huerta tem um olhar atento para o Brasil há anos, e já fez outros documentários em nosso país, como
‘Urubus’ (2007), ‘Em direção a uma terra sem dor’ (2007), ‘Uma semana em Parajuru’ (2009),‘To Blo Dayi – viagem às origens
africanas da capoeira’ (2015), e outros. Já filmou também na Bolívia, Peru, Colômbia, Senegal, Benin, Madagascar.

Estamos diante de um filme que quer auscultar o coração da floresta e daqueles que resistem bravamente à sua destruição. Não
lutam só pela sua sobrevivência, mas pela de todos nós, pois sabemos bem que a floresta amazônica significa vida para todo o
planeta. As motosserras, os dragões de ferro, como nomeia o poeta, abrem feridas profundas e, se não nos acordarmos a tempo,
perderemos tudo. O filme tenta registrar um pouco dessa dor no testemunho de muitas pessoas. Comovente o relato de Maria
Zenaide, a parteira de origem indígena que acompanha o nascimento de muitas crianças enfrentando situações de precariedade.
Uma figura musical, compositora e que insiste em nos dizer que a música traz saúde. Huerta está atento à composição dessas cenas
e as filma também à noite, com uma pequena vela nas mãos adentrando a mata, como um vagalume lutando pela vida. Em uma de
suas músicas ouvimos “os primeiros vagalumes são como as mulheres de força”.

Outro vagalume que ilumina o filme é Sebastião Pereira, o Tião. Entramos com ele na floresta onde ele mostra algumas de suas
riquezas. Ele raspa a casca da seringueira e mostra o seu efeito cicatrizante quando colocado em um ferimento. Diante de um Jatobá,
abre um pequeno orifício e vemos jorrar um líquido de dentro da árvore que tem uma função medicinal para anemia. É antinflamatório
e, segundo ele, é também o Viagra da floresta. Nesta cena surge então a pergunta: por que motivo se iria derrubar uma árvore como
esta?

Um dos fios condutores deste filme é um verso de César Felix, “Se oponha com sonhos, não com lágrimas”. Portanto, ao mostrar
alguns cenários de destruição vemos imediatamente também a força destas comunidades em tentar responder, como podem, a tantas
violências. O conhecimento da história é fundamental nesses movimentos, e o filme nos ajuda a construir uma narrativa da lógica de
ocupação da Amazônia, sobretudo a partir do período da ditadura militar no Brasil quando se pensava a floresta como um grande
vazio. Sabemos bem a quem interessava ocupar estes vazios fazendo terra arrasada de tudo que viam pela frente: flora, fauna,
comunidades indígenas e ribeirinhas. Esse cenário não mudou muito e só se agravou nos últimos anos em que as áreas de
destruição da floresta aumentaram assustadoramente e o número de assassinatos e expulsão de indígenas de suas terras, também.

O filme termina com um chamado de esperança, quando César Felix e José Huerta visitam uma comunidade indígena dos Ashaninka,
quase na fronteira com o Peru. São os povos dos pássaros e, assim, certa imagem de liberdade é transmitida na forma como vivem.
Em uma das cenas finais, vemos um indígena se pintando silenciosamente enquanto ouvimos uma fala do atual presidente dizendo o
seguinte: “Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou quilombola”. Mas a beleza da cena é mais forte, e a fala
deste indígena responde à ameaça. Ele diz em alto e bom tom: “Somos brasileiros e é neste país que vamos lutar pela
sobrevivência”. Vamos precisar de muitos poetas na Amazônia, e este filme não deixa de ser um chamado, pois a sobrevivência é
para todos nós.

Referência:

HUERTA, José. Um poeta na Amazônia – Se opõe com sonhos, não com lágrimas. Disponível em: https://vimeo.com/643064744.

Autor: Edson Luiz André de Sousa

Edson Luiz André de Sousa é psicanalista - APPOA.

Texto publicado originalmente no Caderno DOC do Jornal Zero Hora, em 13 de agosto de 2022.

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