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Ciências Sociais / Os Melhores Livros de 2022

O antídoto oniropolítico
Livro sobre sonhos Yanomami mostra que a escuta das
vozes dos povos originários é um ensinamento político
Christian Ingo Lenz Dunker

Hanna Limulja. O desejo dos outros: mortes irreparáveis (como a de Chi- var seus próprios xapiri-pë, versões de Moebius — ou seja, o sonho como
uma etnografia dos sonhos Yanomami. co Mendes), a invasão de minerado- intermediárias de si, espíritos prote- ponto de torção entre vivos e mortos,
Ubu • 192 pp • R$ 59,90
res são enfrentadas com o sonho. As tores ou vozes ajudantes que “tran- dia e noite, sonho individual e mito
decisões amorosas, os casamentos, a çam os fios da rede até o ponto delas coletivo — é também a chave para
O desejo dos outros se insere no debate guerras e os adoecimentos também. O se tornarem antenas para o céu”. In- pensar transformações políticas e clí-
brasileiro contemporâneo sobre psica- sonho é um método de conhecimen- versamente, durante os sonhos, eles nicas: “O próprio xamã vai elaboran-
nálise e antropologia para além de sua to, não apenas a expressão de uma in- nos protegem na convivência com do seu repertório mítico e amplian-
contribuição rigorosa para a descolo- dividualidade. Como tal, envolve uma os mortos, impedindo que “venham do suas experiências oníricas. Seus
nização do pensamento. A escuta das epistemologia política da maior im- para cá” ou que, movidos por sauda- sonhos transformam o mundo, mas
vozes dos povos originários não é ape- portância, não só como retrato pito- des, nós queiramos “ir para lá”. Eles isso só é possível porque ele mesmo
nas um benfazejo exercício para tratar resco ou folclórico que afinal seria a são a voz que diz: “Voltaremos para é transformado por esta experiência”.
nosso etnocentrismo, mas um ensina- “expressão” de um primitivismo ale- vocês, é claro! Mas sem pressa! Retor- Isso vale para as pequenas decisões do
mento político para todos que se per- górico e harmonioso, mas como for- nem ao lugar de onde vieram!” . cotidiano, para as escolhas inerentes à
guntam: onde está a porta pela qual ma de vida que pode efetivamente nos arte da caça, para os cuidados com a
posso sair da bolha? Ou: onde está a ajudar a enfrentar a crise bio-necro- segurança, mas sobretudo para os so-
catraca reversa que me colocará no política de nossos tempos. nhos que permeiam o trabalho de luto
antropoceno real e não no metaverso O antítodo oniropolítico começa
O sonho não é um e cercam a experiência da morte.
do Brasil paralelo? Hanna Limulja res- pela ideia de tornar os mortos agentes presságio, mas uma
ponde que a saída começa pelo sonho. políticos — aliás, como sempre foram espécie de enigma sobre Uma mulher que perdera a filha e acaba-
O sonho tem um sentido, diria Arte- —, mas aqui em um sentido algo dife- ra de incinerar os ossos dela se alegra ao
midoro de Daldis. Este sentido é dado rente. Primeiro porque envolve uma
o qual se deve agir reencontrar a filha morta, que não en-
pelo sonhador e referido ao seu dese- outra concepção de tempo e em parti- tende o que está acontecendo e pergun-
jo, diria Freud. O “eu” do sonhador é cular do futuro. Não se trata de ver no ta: ‘Mãe porque seu rosto está pintado
um Outro, diria Rimbault. Desejo de sonho uma prescrição, um destino ou Em uma cultura que partilha seus de preto?’ Mas a mãe tenta a todo custo
se tornar outro, diria Madame Bovary. uma escritura, mas uma experiência sonhos, a interpretação funciona de despistar a morta. Então ela olha para
Desejo do outro, diria Hegel. Desejo de de conhecimento testemunhal, que outra maneira. Menos do que um pro- o cesto que contém seus ossos incinera-
desejo do desejo do Outro, diria Lacan. orienta a ação coletiva das pessoas. Se- duto inesperado de si mesmo, as vi- dos e pergunta: ‘Mãe o que há dentro do
Outro desejo, nos dizem os Yanomami. gundo porque, em contraste dos bran- sões oníricas são parte de um mun- cesto?’. E a mãe dissimula, mas os papa-
Sonhar, para eles é “antes de tudo cos que reservam os sonhos ao cuida- do possível e real, eventualmente já gaios respondem: ‘Esses são seus ossos
viajar longe” e “escapar do familiar”. do restrito e sigiloso dos psicanalistas, acontecido ou em vias de acontecer. queimados’. Neste momento o Inhambu
É estar no limite no lugar dos mortos, os Yanomami entendem que um so- Por exemplo, sonhar com um sobri- [pássaro associado com a morte e o en-
representados pela noite, e também nho só se completa quando é contado, nho enfeitado com penas pode indi- tardecer] cantam e levantam voo.
dos vivos que habitam outros lugares, partilhado socialmente, às vezes con- car que seu adoecimento é mais sério
representados pelo dia. Entre os dois tado de viva voz no meio da aldeia. Ao do que se pensava e ele pode morrer, O sonho se insere na vida como uma
mundos há a experiência da penum- colocar o sonho “na roda” e ao relacio- porque é nesta condição que os corpos forma atenuada de morte. Numa so-
bra, da transição, da passagem. Lá ná-lo com problemas concretos da co- podem ser enfeitados. Porém o sonho ciedade na qual jamais se pronuncia o
está o reino das imagens. Assim como munidade, cria-se uma espécie de jogo não é um presságio, mas uma espécie nome do morto e todo rastro de vida
nossos artistas criam linguagens para em que a mesma situação se apresen- de enigma sobre o qual se deve agir: é apagado depois da festa fúnebre, a
um mundo que não está ainda presen- ta em outras perspectivas, sugerindo procurar um xamã, mudar o caminho presença da morte não faz monumen-
te, os sonhos Yanomami criam mun- assim novas soluções. Terceiro, novas da cura ou realizar um rito protetivo. to, história ou escrita. A decisão que
dos para linguagens que ainda não soluções de nada adiantam se conti- Isso sugere uma homologia com a interpreta o sonho como uma imagem
existem. Tais linguagens são o que se nuamos a ser as velhas pessoas. Neste política que a psicanálise tem com o mítica do passado ou como um mun-
pode chamar de perspectiva, ou seja, sentido, a decomposição da pessoa Ya- sonho: ele também é uma realização do possível no futuro é sobretudo um
o ponto de vista que corresponde a nomami envolve versões se si que fa- de desejo, mas, em vez de perguntar ato político. Vindo a morte sempre a
este mundo. A grande torção não con- riam inveja à qualquer teoria contem- qual desejo foi suprimido neste mun- partir de fora, seja este fora o inimi-
siste apenas em perguntar que mundo porânea do self: “o rosto que expressa do, os Yanomami perguntam: para go terreno ou as voluptuosas almas
quero para meu desejo, mas que de- pelo olhar” (pei pihi), o “espectro de este mundo, oniricamente revelado, dos mortos, os vivos têm menos do-
sejo é preciso inventar para o mundo si mesmo como morto” (né porepé), “a qual é o desejo que lhe corresponde? mínios de sua vida do que gostariam.
que vejo em meus sonhos. imagem interna de uma unidade cor- Se na psicanálise perguntamos pela Aqui, mais do que nunca, confirma-
O sonho é um intermediário epistê- poral: sombra, reflexo, eco” (pei utupé), relação que as pessoas mantêm com mos o dito de Lévi-Strauss para quem
mico entre o que sei porque testemu- o “alter ego animal” (rixi) . seu desejo, o xamanismo Yanomami o psicanalista é um xamã moderno:
nhei e o que sei porque ouvi falar so- pergunta pela pessoa que você preci-
bre. É uma negação dos dois modos Saber-fazer sa ser se o mundo assim se apresen- Se por um lado, o sonho é sempre de-
de funcionamento pois é uma expe- Se todos sonham, nem todos têm o tar. Se na psicanálise lemos os sonhos sencadeado pela vontade de um outro, e
riência profundamente minha, ocor- mesmo saber-fazer com os sonhos. para entender qual passado sexual in- o sonhador aparece como uma “presa”,
rida na solidão da noite; mas, ali onde Ainda que os xamãs sejam particular- fantil e recalcado corresponde ao futu- uma vítima, alguém à mercê do senti-
vivi aquilo, não era só este eu que me mente vocados nessa matéria, alguns ro realizado pelas imagens oníricas, no mento que lhe é alheio, por outro, o so-
habitava. Inversamente, o sonho só se ficarão fracos de tanto sonhar, outros transe xapiri o espírito do xamã fala do nhador não está de foram alguma intei-
torna sonho verdadeiro quando conta- serão assombrados pelos mortos, ou- passado mítico tendo em vista um fu- ramente subjugado ao sentimentos deste
do, quando passa a ser um saber dos tros ainda nem se lembrarão dos so- turo indeterminado. Por isso o modelo outro. Os vivos resistem aos apelos destes
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outros. As tragédias, os genocídios nhos. Para usar os sonhos de modo proposto por Limulja para pensar os outros, e é porque resistem que eles po-
(como o de Haximu, em 1993), as oniropolítico é preciso criar e culti- sonhos dos Yanomami como uma fita dem continuar existindo Yanomami. 

30  Quatro­ cinco um  dezembro 2022

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