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Sobrevivendo Ao Trauma
Sobrevivendo Ao Trauma
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Sobrevivendo ao trauma
Sobrevivendo ao Trauma
(Surviving Trauma)
Néstor A. Braunstein1*
Palavras-chave:
Trauma – Sobrevivência – Freud – Lacan – Neuroses Traumáticas.
Resumo:
O Traumatizado é um sobrevivente, um ser que, de forma metafórica, tomou o
lugar de um outro que vivia anteriormente., que poderia ter morrido mas não o
fez. Há uma troca de identidade apesar do nome próprio ser conservado. O outro
demanda do traumatizado que continue sendo aquele que ele era antes, porém, a
sua resposta é “I am not myself any longer” (Já não sou mais quem eu era) “The
mirror doesn’t work anymore” (O espelho deixou de funcionar). Há referências
ao trabalho de Freud e Lacan nos quais a noção de trauma é elaborada, incluindo
a desqualificação da idéia de que o trauma é o que é verdadeiro, feita por Lacan,
ao final de seu seminário. São considerados exemplos históricos, como das
catástrofes do Século XX e obras literárias (Shakespeare, Giorgio Bassani,
Sartre, Primo Levi, Istvan Kertesz). A neurose traumática é a forma mais
dramática de questionamento das identificações subjetivas.
Em um trauma alguém (some-body, um corpo) atravessa uma situação na qual
poderia morrer mas não o faz. Portanto, do trauma, o sujeito é um sobrevivente.
Um morto potencial que apesar disso continua vivendo. Alguém que vive além
do momento em que deveria ter morrido.
Se já viveu a morte (física ou anímica), porém sem morrer quando era hora, pelo
menos, não deveria viver. Está “entre duas mortes”. Uma que já passou e outra
que está por chegar.
O trauma corta a vida em duas partes: antes e depois. Só que aquele que respira
depois não é o mesmo de antes. Um morreu; outro ficou em seu lugar. O
sobrevivente deve fazer o luto por aquele que se foi, aquele que ele nunca mais
poderá voltar a ser, para que alguém que está para chegar, um outro, portador do
mesmo nome, dono das mesmas memórias, fale e viva em seu nome. Com que
direito?
O sobrevivente é um “morto sem sepultura” (Sartre). Chegou à existência
brotando de uma sepultura sem morto.
Será um impostor? Poderá deixar de sê-lo? O sujeito que acreditava ser um, com
identidade narcísica mais ou menos consolidada (“Eu sou eu”), encontra agora
sua divisão no real. A sombra da lápide caminha ao seu lado: a menos que ele (ou
ela) seja, da lápide, a sombra.
Aquele “que voltou a nascer”é um lesado, um sonâmbulo que carrega os restos
mortais daquele que não voltará mais. O trauma deixa cicatrizes inapagáveis. O
sobrevivente é também uma testemunha que mostra sua ferida: “Vejam o que sou
1
Profesor de Pós-graduação de la Facultad de Psicología de la Universidad Nacional de México. Doutor
en Medicina e Cirugía na Universidad Nacional de Córdoba , Argentina. Psicanalista. Hortensia 234 – 11
(01030) MÉXICO D. F. Tel (5255) 5661 1386 Fax (5255) 5662 2227 nabraunstein@laneta.apc.org
Tradutora: Marylink Kupferberg (maryk@vetor.com.br) PUC-Rio
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Real.
Cada um, se está submetido à compulsão de repetição (e quem não está?), é um
caso de neurose traumática. Um cenário para a atuação da pulsão traumatofílica.
A – pegado a seus traumas; (a) pegado. Criança batida (pegada) no encontro fatal
com o desejo do Outro.
José Saramago, em “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, conta que Jesus,
obedecendo a um conselho de Maria Magdalena, se nega a ressuscitar Lázaro
porque, segundo ela, ninguém na vida cometeu tantos pecados para que mereça
morrer duas vezes.
Todos somos sobreviventes, todos tocamos a morte com cada trauma padecido.
Estamos, como o Lázaro dos Evangelhos canônicos, não do piedoso Evangelho
de Saramago, entre duas (ou entre várias) mortes. Para Maria, a de Magdala, tão
mulher, bastava uma.
A idéia de ser sobrevivente por ter atravessado o trauma de nascer é
inconveniente: tira o sentido, primeiro, à noção de trauma que, ao ser a condição
de “todos”, passa a ser uma banalidade: é um universal do qual não valeria a pena
falar, e, segundo, retira o sentido também da noção de sobrevivência. O universal
“todos” não pode anular a odisséia dos particulares (cada um de “todos”, cada um
à sua maneira).
Contudo, o trauma não é uma vicissitude contingente. É uma necessidade
estrutural para que o falante (parlêtre) advenha. Não se pode entrar na linguagem
sem renunciar ao gozo. Esse é o conceito mesmo de castração. Por esta razão
Freud se negava, como já dissemos e já citamos, a separar a angústia de morte da
angústia de castração
Sobreviver à espera da segunda (ou enésima) morte, guardando as marcas da(s)
primeira (s) pode ser uma atrocidade. Porém é nosso destino, fecundo e fatal.
Podemos ser alguma coisa, porque somos o resultado da castração simbólica.
O acontecimento traumático, sim, é uma contingência: esse dia se poderia ter
estado em Kyoto e não em Hiroshima . Mas, quem estava em Hiroshima e não
morreu, será para sempre um hibakusha, um sobrevivente da bomba. O trauma é
o real, inevitável para a alma destroçada pela explosão e que nunca voltará a ser o
que era antes. Em troca, voltará sempre ao Verão de 1945. Por necessidade. Por
desgraça. Pelo império de um gozo maléfico.
O que se foi não desaparece: o buraco que fica no seu lugar, um buraco povoado
de fotografias e de recordações, o comemora. A lápide muda que não cabe em
nenhum cemitério diz as datas de nascimento e da primeira morte. Esse dia da
morte não acontecida é a do nascimento e a dos aniversários do sobrevivente.
Sabemos que devemos nascer duas vezes: uma da mãe, para respirar; outra do pai
para nos separarmos da mãe e ocuparmos um lugar na polis.
O primeiro nascimento não é traumático para o feto. O é, em troca, para a mãe:
“Poderia comparar-se a uma castração da mãe” (Freud, 1926/ , p. 123) (de acordo
com a equação filho = pênis).
O segundo nascimento, ex- padre natus, é nascer para a linguagem, é passar pela
castração, é renunciar à satisfação pulsional imediata, é perder o gozo do ser para
sempre. É renunciar à posição de substituto do falo materno. É fazer o luto pelo
lugar perdido e viver, sem retorno possível, no exílio.
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sentimento de uma tragédia a partir da qual já nunca será ele mesmo, pois ainda
não existe esse him/herself. Não há quem possa dizer logo: “Já não sou mesmo”.
Não há ruptura de nenhum performativo. Não há S (barrado) ; não existe sujeito
cindido do inconsciente.
I am not myself any longer, é a frase que escutava uma vez ou outra o
psicanalista C. Edward Robins (prelo) depois da catástrofe de 11 de Setembro. A
“mesmidade”, selfhood, é um efeito de linguagem que se constitui na fase do
espelho. Supõe uma continuidade do ser consigo mesmo que se iniciaria então (I
am myself) e que se interromperia por efeito do trauma (not any longer).
Um morreu; outro, sem havê-lo pedido, usurpa seu nome e seu lugar. O
sobrevivente é um morto camuflado. Tal é o significado de sobre-vivência. Vive-
se sobre um cadáver. Depois do trauma o sujeito volta a nascer e se pergunta, não
sem surpresa, como é possível que continue “vivenciando”, sentindo. Nas
catástrofes coletivas, a pergunta é “Por quê eu e não outro no meu lugar?”. Com
o conseqüente acompanhamento, sem pausas, da culpa. Com a sombra que
prognostica o suicídio por acontecer.
Voltar a nascer, voltar a morrer. Viver entre duas mortes. Voltar a escolher,
repetir. Não há aprendizagem. Os automatismos manejam o veículo que crê
conduzir o sujeito. Parece uma condenação: não o é ... pois a repetição sempre
falha. O que se produz após o trauma é algo novo, algo que historiciza o caminho
do sobrevivente (como nas bofetadas que Geo Josz dá no conde Scocca). Muitos
sentem o dever da escrita da experiência: querem protocolizar sua morte e
ressurreição. Como se fosse necessário deixar uma prova. Será que não acreditam
nele ou será um dever irrenunciável da memória?
A história é feita a golpes de memória dos que já foram para os que ainda não
são. No meio, entre uns e outros, entre já sim e todavia não, estão os escritores e
os historiógrafos. O sujeito é seu próprio historiador. Trata de estabelecer as
continuidades, de contar a história de si mesmo como uma substância estável que
viaja no tempo. O self quer a continuidade e preenche as lacunas mnêmicas.
O relato autobiográfico aspira a ser metonímico, a colocar-se na continuidade de
quem o escreve: a permanência suposta do escrito transcenderia a transitoriedade
do autor. O testemunho viveria no lugar da testemunha.
O trauma interrompe essa deriva. Se o sujeito depois do incêndio do WTC de 11
de Setembro de 2001, diz: “I am not myself any longer”, expressa uma verdade
indiscutível. Houve substituição: ele, o traumatizado, é a metáfora de outro que
não é nem está. Um usurpador ou um exilado de sua identidade anterior.
Quem tenta contar ou escrever a história de seu trauma se apresenta como mártir
ou como testemunha (etimologicamente é o mesmo). A palavra é, queira-se ou
não, uma tentativa de cicatrização. Ou de sufocação do grito.
Wo Ich war, Es wird.. Onde Eu estava, Isso chegou a ser. Não é essa a definição
de trauma enquanto funda uma sobrevivência? Aonde Eu era, Isso adveio. Itself
tomou o lugar de myself. O mar de gozo ilimitado e inominável desalojou os
polders. Poderia ser um quadro: O Triunfo da Morte (Brueghel).
O trauma sexual infantil descoberto por Freud como causa das neuroses dava
lugar à repressão de representações que retornavam como sintomas e como
repetições do acontecimento insuportável no ataque histérico.
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Um espírito vivente é o que aceita essa perda do passado para se abrir ao novo.
No sobre – vivente falta a falta, a queda da memória no esquecimento. O passado
segue atuante e presente. Um meteorito do passado se infiltrou na carne até o
ponto de enclausurar o restante da experiência possível.
A intromissão do passado traumático é a morte do espírito. Não se pode fazer o
luto do passado para que um novo presente permita virar a página. O livro da
vida se petrificou. O que perdeu o sujeito nas neuroses atuais, com predomínio
traumático? As páginas que seguem, os sonhos por sonhar. Os filhos por nascer.
Imre Kertesz (Kaddish por el hijo no nacido, 2001), traz sua experiência no
Lager e diz um não redondo. Não! Quando a mulher lhe manifesta o desejo de ter
um filho seu. Ele é um sobrevivente particular (como todos). Como se poderia
dar vida a uma nova criatura, sobreviver-se através de outro, dar lugar a uma
metonímia – o filho não é outra coisa, todo filho – quando o sujeito mesmo é
uma metáfora de alguém que se quebrou em uma sobrevivência jamais
sobrevivida ? Quem seria o pai, o que viveu ou o que sobreviveu?
Muitos destes “sobreviventes” (Améry, Celan, Levi, etc.) terminaram em
suicídio. Poucos como Semprún, souberam segurar a pena durante um tempo
prudente para dedicar-se a viver outra vida, uma vida na qual a morte era
impossível porque já havia sido vivida no campo. E poucos como Semprún se
atreveram depois a reviver, na escrita, essa morte.
Primo Levi se rebela contra as interpretações psicanalíticas que lhe parecem
imprecisas e simplistas, ainda que, como no caso de Bruno Bettelheim, seja
proveniente de alguém que atravessou a prova do Lager. “Todos padecíamos de
um mal-estar incessante que nos envenenava o sono e que não tinha nome.
Chamá-lo ‘neurose’ é simplista e ridículo. Seria mais justo ver nele uma angústia
atávica, aquela da qual se sente eco no segundo versículo de Gênesis: a angústia
inscrita em todos (agrego as itálicas) do universo deserto e vazio, esmagado sob o
espírito de Deus, e do qual o espírito do homem está ausente: ainda não nasceu e
já se extinguiu”(Levi, 19...,p. ).è preciso acrescentar o nome do livro na
bibliografia.
Dura é a vida do delegado que tem que ser porta-voz dos que desapareceram.
Dura até tornar-se impossível. É difícil emancipar-se da fantasia de que se vive
no lugar de outro, que se carrega o peso de cadáveres sem nome, enterrados em
fossas coletivas, jogados ao mar desde o aparato de alguma “Força Aérea”.
A vida definida como o conjunto das tendências que resistem à morte, é, segundo
se viu, sobrevivência. Posto termos atravessado distintos traumas, cada um dos
quais é um representante e uma antecipação da morte (trauma do nascimento,
trauma da ausência do Outro e do desamparo, trauma das separações, trauma de
acesso à linguagem e à sexualidade, trauma da castração, trauma de ser batido
pelo pai, como injeção da lei de proibição do incesto e como uma manifestação
do amor desse pai), somos sobreviventes que carregamos as cicatrizes de todas
essas mortes a partir das quais podemos ser o que somos. De todos os gozos aos
quais renunciamos pela interposição do Outro e para conservar o Outro.
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Freud acabava seu “De Guerra e Morte” com um conselho, “se queres suportar a
vida, prepara-te”(Freud, 1915, p. 300) para a morte Ao final da psicanálise
constatamos que o aniquilamento está programado, está por vir, já que está
sempre presente. É inelutável como o horizonte e nos acompanha aonde formos.
Como está aí, como já ocorreu não pode nos trazer nada de novo.
Não se pode inventar um novo significante. Só nos resta jogar e conjugar os que
temos: sobrevivente: se queres suportar a vida declara-te como já morto, constata
tuas certezas (servidões) imaginárias e segue transitando pelos rumos de teu
desejo inconsciente. Inventa o discurso que te representará para o Outro.
Alcançarás assim a transcendência? Certamente não. Apenas, a duras penas, te
liberarás de sua fantasia.
Referências bibliográficas:
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Manantial, Buenos Aires, 1994, p. 151-171.
Freud S, [1916-1917] Conferencias de Introduccion al psicoanalisis.Em: Obras
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Freud S., [1919] Introducción a Zur Psychoanalyse der Kriegsneursen. Vol. XVII,
pp.201-214.
Freud S., [1926]Inhibición, sintoma e angústia..Em: Obras Completas, Buenos
Aires: Amorrortu.Vol.XX, ano da edição.
Freud S.,[1925] Nota sobre la ‘pizarra mágica’ .Em: Obras Completas, Buenos
Aires: Amorrortu.Vol.XIX, ano da edição.
Freud S., [1937] Analisis Terminable y interminable. .Em: Obras Completas,
Buenos Aires: Amorrortu.Vol.XXIII, ano da edição.
Freud S., [1937]Construcciones en el análisis. .Em: Obras Completas, Buenos
Aires: Amorrortu.Vol.XXIII, ano da edição.
Kertész, I. Kaddish por el hijo no nacido, Narrativa Del Alcantilado, 5, 2001
Lacan J (1954)., Seminario I, cidade, editora, ano da edição
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