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MARIANA, MEU AMOR

Da Autora:

Sei Lá
Não Há Coincidências
As Crónicas da Margarida
Alma de Pássaro
Artista de Circo
I'm in Love With a Pop Star
Nazarenas e Matrioskas
Pessoas Como Nós
Diário da Tua Ausência
Vou Contar-te Um Segredo
A Rapariga que Perdeu o Coração
Português Suave
Gugui, o Dragão Azul
Onde Reside o Amor
O Dia em que Te Esqueci
A Minha Casa é o Teu Coração
Minha Querida Inês
O Amor é Outra Coisa
Há Sempre uma Primeira Vez
Os Milagres Acontecem Devagar
Margarida Rebelo Pinto

MARIANA,
MEU AMOR
À descoberta de Mariana Alcoforado,
a freira portuguesa que conquistou o mundo
com as suas cartas apaixonadas
Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor.
Reprodução proibida por todos e quaisquer meios.

Por vontade expressa da autora, a presente edição não segue o Acordo


Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

© 2015, Margarida Rebelo Pinto


Direitos para esta edição:
© 2015, Clube do Autor, S. A.
Avenida António Augusto de Aguiar, 108 - 6.º
1050-019 Lisboa, Portugal
Tel.: 21 414 93 00 / Fax: 21 414 17 21
info@clubedoautor.pt

Título: Mariana, Meu Amor


Autor: Margarida Rebelo Pinto
Revisão: Tavares e Castro e Silvina de Sousa
Paginação: Maria João Gomes,
em caracteres Revival
Impressão: Cafilesa – Soluções Gráficas, Lda. (Portugal)

ISBN: 978-989-724-268-7
Depósito legal: 399497/15
1.ª edição: Novembro, 2015

www.clubedoautor.pt
Para a Teresinha, Paula, Patrícia, Titi, Holly, Maha e Jaqueline.

Para os homens da minha vida: o meu filho Lourenço,


o meu irmão Gonçalo, os meus Antónios
e o meu querido pai Jaime.
Tudo o que existe, existe por dentro.
José Agostinho Baptista

A palavra é o domínio que temos sobre o mundo.


Clarice Lispector
Em 1715, há três séculos, Mariana
Alcoforado, ou Soror Mariana, como
também ficou conhecida, completava
75 anos. A sua morada continuava a ser a
mesma onde vivera o grande amor da sua
vida. Um amor tão intenso e apaixonado
que a inspirou a escrever cinco cartas ao
Cavaleiro de Chamilly, Noël Bouton, fale-
cido nesse ano.

O livro Cartas de Amor de Uma Freira


Portuguesa foi publicado em França no
ano de 1669. Ninguém sabe como essas
cartas foram entregues ao editor. O livro
tornou-se um enorme sucesso e é ainda
hoje considerado um marco da literatura
romântica universal.
PARTE I
Beja, Convento de Nossa Senhora da Conceição,
22 de Abril de 1715

V
em, minha noviça Benedita, senta-te à secretária e
prepara-te para cumprir aquela que será porventura
a mais audaciosa e importante missão da tua vida. A
partir de hoje estás dispensada das orações vespertinas.
Sei que és devota fiel a Nosso Senhor Jesus Cristo, mas
a partir deste dia tens outra missão, e quem a decide sou
eu, que já fui abadessa deste convento, a minha morada
desde os 16 anos, idade em que meu pai, por vontade
dele e a mesma expressa em testamento por minha mãe,
determinou que aqui fosse vivida a minha vida, quer assim
o quisesse ou não.
Completo neste dia de fria Primavera 75 anos de vida.
Vê bem como é irónica a existência: afinal sobrevivi.
Imaginei-me a morrer de tristeza, de desgosto, de solidão
e de desespero. Mas a vida é sempre outra coisa. Quis o
Altíssimo que não partisse quando o que eu mais queria
era falecer, e nem sequer padeci de doenças crónicas ao
longo da vida. Pulmões, estômago, rins, fígado e intesti-
nos, nada me dá cuidado. Tampouco o coração, a quem

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MARGARIDA REBELO PINTO

as grandes lições da vida transformaram num monstro


couraçado. Quando ele se cansar, não será por amor ou
desespero, que dentro dele, durante tantos anos, foram
uma e a mesma coisa.
Decerto foi ensejo de Deus Nosso Senhor Misericor-
dioso e Bom abençoar-me com a saúde de uma lavadeira
dos campos a perder de vista do nosso amado Alentejo,
terra de gente rija e valente. Foi aqui que se ganhou a
Guerra da Restauração, sabias? As batalhas decisivas para
a vitória final deram-se nestas paragens: Elvas, Ameal e
Montes Claros. O Alentejo foi o berço da Restauração.
Por aqui passaram soldados de muitas partes, e um deles
roubou-me o coração, mas isso já toda a gente sabe.

Às vezes doem-me os ossos antes das chuvas. Para o


povo é sinal de velhice, para mim é um arauto de sabe-
doria e não de fraqueza. A única desgraça que me assola
é ter quase perdido a visão, por isso te chamei. A partir
de hoje virás todas as tardes, depois da janta, enquanto
a luz do Sol assim o permitir, escutar a minha verdadeira
história e escrevê-la. Ou melhor, transcrevê-la. Não te
esqueças de que estás ao meu serviço e por isso não
poderás mudar uma palavra, uma vírgula que seja, enten-
des? Conto com a tua lealdade. Para traição, bastou-me
a vaidade do meu amante, que, não contente por me ter
abandonado, vendeu os meus segredos mais íntimos ao
mundo, ou, quem sabe, deixou que alguém lhe roubasse
as cartas e disso tirasse proveito. Ainda que não sendo
o autor de tal enormidade, nada fez para a evitar, o que
o torna um patife, ladrão de corações e de segredos. Ao
menos tu não irás enganar-me. És ainda leda e pura, sem

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MARIANA, MEU AMOR

mágoa nem mácula, o teu coração nunca foi conspurcado


nem pela vaidade nem pela ganância e, na qualidade de
tua protectora, tudo farei para que tais defeitos de carác-
ter não manchem a tua alma.
Promete-me que em momento algum revelarás, dentro
ou fora das portas do convento, o intuito que te traz todas
as tardes à minha câmara. Ninguém pode saber da tua
missão. Se me falhares nisto, expulso-te do convento, por
isso não te arrisques. Escolhi-te porque és a única pessoa
em quem confio, não só por seres boa, mas porque ainda
que quisesses usar da língua para exercer a maldade,
nenhum som te sairia da garganta.
Já te disse que a senhora minha mãe, súbdita de meu
pai, como todo o povo de Beja, sempre velou mais pe-
las vontades dele do que pela minha? E que meu irmão
Baltasar, que cuidei em pequeno como um filho e que
jurou amar-me e proteger-me, foi quem trouxe à minha
morada o Belzebu em forma de homem? E que a nossa
irmã mais velha, Ana Maria, por direito de ser a primeira,
casou-se cedo, tem a vida dela, nunca quis saber de mim
para nada? Triste sorte para uma menina que nasceu rica.
De que me serviu a riqueza se ninguém cuidou da minha
felicidade?

Estamos sós no mundo, sempre estivemos, o nosso


mundo é este lugar, dentro do convento, e não é por ser
mais confinado que é mais pequeno do que o mundo lá
fora. Isto sou eu a pensar alto, porque tudo o que oiço do
que se passa para lá dos muros sobre a condição humana
me deixa desolada. O mundo é do tamanho dos nossos
sonhos e, quando se perde o dom de sonhar, tanto faz

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MARGARIDA REBELO PINTO

estar fechada num convento como perdida num deserto.


Ao menos aqui há comida quente, um tecto, lençóis la-
vados e calor para as noites frias. E a protecção de Deus
Nosso Senhor Misericordioso Pai, que nos guia e nos dá
alento, até ao momento do nosso último suspiro.
O que te peço é que a partir de hoje venhas todas as
tardes para me ouvires e escreveres o que te disser que
seja de escrever. No final de cada dia, antes que seja a
hora de dar descanso ao corpo e ao espírito, guardare-
mos o que escreveste no meu cofre pessoal no fundo da
arcas dos linhos. Quando terminarmos, dir-te-ei o destino
a dar ao meu testemunho.
Agora agasalha-te, põe aquele xaile de lã de cordeiro
em volta dos ombros e começa a escrever. Vais ouvir a
verdadeira história de Mariana Alcoforado que se fez no-
viça sem vontade, se perdeu de amores por um crápula e
sobreviveu mais de 40 anos à dor da perda e do abando-
no. Talvez te conte mais tarde a razão por que te escolhi,
mas isso fica para depois. Hoje acordei com muitas ideias
na cabeça, tenho de me ver livre delas antes que rebentem
como disparos de canhão.

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1.

Se queres calar, cala primeiro, ensinou-me a minha avó


Ema, que também me disse: Há duas desgraças que atra-
vessam o destino feminino: a paixão e a cozinha. Como vai
ser impossível não te apaixonares, pelo menos não aprendas
a cozinhar, senão a vida apanha-te na curva do fogão e ficas
presa para sempre.

Lembro-me com frequência deste e de outros conselhos


da minha sábia avó que me criou como se fosse minha mãe.
Sobretudo quando, apesar de ter aprendido o designado
trivial das artes de culinária, já fui umas quantas vezes ao
tapete por causa de amores mal resolvidos, como é aliás
expectável ao comum mortal, desde que venha equipado
com coração para bater mais depressa, hormonas em abun-
dância e cérebro para as processar.
Quando não se consegue esquecer uma história de
amor, só há três caminhos possíveis: mudar de casa, mudar
de país ou encontrar outro amor. Ou parecido. Não valem
paliativos. Sexo puro e duro não conta. Pelo menos para

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MARGARIDA REBELO PINTO

as mulheres. E para os homens também acredito que não.


Tem de ser algo mais próximo, mais terno, que nos faça
sentir, ainda que seja apenas por breves instantes, que o
outro já ficou arrumado no passado e não mais voltará a
perturbar-nos. Às vezes um antigo amante serve este pro-
pósito. É como jogar em casa; não tem o sabor da novida-
de, mas também não constitui perigo. Claro que todas as
tentativas de mudança não passam de alterações temporá-
rias ao percurso marcado, ilusões fabricadas ou inesperadas
que nos atiram para um oásis qualquer que logo se esfu-
ma. Podemos desviar-nos temporariamente, mas uma força
maior voltará a pôr-nos naquele caminho. Até ao dia em
que o próprio caminho altera o seu rumo e nos limitamos a
percorrê-lo, finalmente, em paz.
Penso na alteração possível que possa emprestar-me
uma ilusão de mudança. Não me apetece mudar de casa.
Já o fiz duas vezes. Resultou. Comprei uma e vendi outra, o
mercado estava em alta, tive lucro e lavei a alma, regenerei-
-me. Espaços novos emprestam-nos quase sempre a sensa-
ção de uma vida nova. Mas agora não é uma boa solução.
A minha biblioteca cresceu ao longo dos anos, só de pensar
em procurar um lugar onde caibam todos os meus livros
sem me sentir no armazém de uma editora provoca-me
uma sensação de cansaço esmagadora. Também já recorri
à táctica mais eficaz, encontrar outra pessoa. Mas para isso
são precisas duas coisas: vontade e sorte.
Sexo é escolha, amor é sorte, canta a Rita Lee. Ouvimos
várias vezes essa música no carro, fazia parte da nossa playlist,
lembras-te? Sábias palavras. Toda a gente sabe que a sorte
não nos bate à porta duas vezes seguidas. Aliás, raramen-
te nos bate à porta. Temos de a procurar. Além do mais,

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MARIANA, MEU AMOR

encontrar outra pessoa não passa por ir para a cama com


um simpático qualquer em quem tropeçamos e que parece
estar ali à mão para nos salvar. Ninguém salva ninguém. Se
existe alguém que nos deita a mão, são as amigas incansá-
veis e os amigos castos. O sexo nunca é um caminho. Até
pode resultar com algumas pessoas em determinados mo-
mentos, mas para mim nenhuma das opções mencionadas
está em aberto. Escolho a terceira via, que é apanhar um
avião para um lugar qualquer, longe, sem memórias próxi-
mas, onde a tua presença se dilua nos dias.

Sou dona do meu tempo e do meu dinheiro, tenho essa


sorte, construída a pulso, ao longo de quase duas décadas
de trabalho. Comecei a trabalhar cedo como jornalista free-
lancer no último ano do secundário, cinco anos antes de
me formar em Comunicação Social na Universidade Nova.
Naquela época a média era alta, só entravam os melhores,
por isso muitos dos meus colegas de curso estão hoje em
cargos de direcção. Podia ter feito o mesmo caminho, mas
não há ordenado nem cargo que paguem a minha liberdade.
Faço 36 anos daqui a seis meses. Estado civil: solteira.
Sem filhos e com o instinto maternal adormecido. Não sou
a única do meu grupo de amigas. Há mais solteiras e boas
raparigas sem o relógio biológico com um cuco impertinen-
te e histérico a picar-lhes os miolos. E também há umas
quantas casadas. Arrisco-me a dizer: quase todas malcasa-
das. Fartas dos maridos porque ficaram chatos, ou fartas de
levar com histórias que envolvem outros elementos do sexo
feminino, crises, ou o que se quiser chamar-lhe, quando
quem sofre deste mal não tem coragem de dizer a palavra
que existe no léxico português para o caso: cornos. Cada

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MARGARIDA REBELO PINTO

qual com a sua cruz. Às vezes as solteiras queixam-se da sua


condição, sentem-se sozinhas, têm medo de ficar encalha-
das, ao mesmo tempo que as casadas se lamentam da falta
de liberdade e das saudades da vida de solteira.
A Patrícia e a Inês parecem felizes, estão bem-casadas.
Mas são casos raros. Talvez a mais resolvida seja a Laura,
separada há quatro anos depois de um casamento estável,
no final do qual o Sérgio virou pessoa de família, como ela
diz por graça, o que corresponde à verdade, e tem por isso
mesmo ainda mais piada. Parece que há imensos casais assim,
mas não consigo imaginar-me a dormir todas as noites ao
lado de um homem por quem não tenha desejo, ou que
não sinta desejo por mim. Concordo com a Laura, mais
vale ficar sozinha. Têm dois filhos que vão crescendo num
esquema harmonioso e pacífico de guarda conjunta. Moram
perto e ficaram óptimos amigos, ajudam-se mutuamente
e almoçam juntos ao fim-de-semana. Mesmo quando está
chateada, é como eu, queixa-se pouco. O silêncio é uma
arte que se cultiva.
Aprendi muito cedo a não me queixar e a manter a
boca fechada, porque o perigo reside em começar a falar.
Depois, é difícil não contares mais isto e aquilo. Se queres
calar, cala primeiro, ditado romano que repito como um
mantra sempre que me sinto com vontade de explodir. A
minha avó tinha razão. Deus guarde em paz a sua alma.
O silêncio protege e o trabalho salva, acrescentava. Foram
princípios básicos como estes que me prepararam para a
vida. Sempre que sinto que me posso ir abaixo, encho-
-me de trabalho, de tarefas e de distracções. Qualquer dia
tiro um curso de língua gestual, só para matar o tempo.
Sou feliz em qualquer lugar do mundo, desde que tenha

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MARIANA, MEU AMOR

trabalho e afecto. Com o tempo criei uma extensa rede de


contactos. Quando escolho um destino já sei que vou inven-
tar trabalho quando lá chegar, e o que ganhar irá cobrir e
ultrapassar as despesas.
Encontrar outra pessoa é que nem pensar. Não me sinto
nem com moral nem com energia. Olho-me ao espelho e as
primeiras marcas da idade já começaram a aparecer. Linhas
longitudinais muito finas no pescoço, ténues, é provável
que só eu as veja, mas sinto-as. Quando acordo baça por
dentro, é como se essa opacidade se visse à flor da pele. Na
maior parte dos dias a minha cara mantém-se lisa e fresca.
Mas a tristeza vê-se no olhar. Vem de dentro, não a consi-
go disfarçar. Se me concentrar, consigo apagá-la, ainda que
apenas momentaneamente. Basta-me treinar o meio sorriso
da praxe, levantar as sobrancelhas, maquilhar-me um boca-
dinho e já está: pareço outra, como quando acordava a bri-
lhar, a pele toda esticada, feliz contigo ao meu lado. Dizias
que eu cheirava a pipocas, e quando te contei que uma das
minhas melhores amigas me chamava Açúcar, nunca mais
me chamaste outro nome. Açúcar e pipocas, o calor morno
dos corpos ao acordar, não foi assim há tanto tempo, querido,
e, no entanto, cada dia de silêncio dói-me mais do que o
anterior. Devia ser ao contrário, mas não consigo.
Os calções do teu pijama estão guardados na gaveta da
cómoda, em adultério pacífico com as minhas camisas de
noite que visto antes de ir para a cama, por pudor de andar
nua pela casa, porque sabes que gosto de dormir sem nada.
Mesmo no Inverno não aguento nenhum tecido em cima da
pele. A não ser uma segunda pele. Gosto de me esfregar na
capa do edredom quando durmo sozinha, ou de me encai-
xar em ti, quando dormíamos juntos.

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MARGARIDA REBELO PINTO

Há meses que não dormes na minha cama, o melhor é


nem pensar nisso. Há semanas que oiço a Laura, que tem,
entre outras, a função de ser a voz da minha consciência,
preocupada com as minhas divagações: Olhos no futuro, Alice,
quem manda nesta história és tu. O gato das caretas já era.
Não te liga e nem sequer responde às tuas mensagens.
Não sabes que te chamo Jasper, o gato da Alice, por-
que, justiça te seja feita, nunca passaste a vida a aparecer
e a desaparecer, foste mais coerente do que isso, mas não
consigo ver-te como o coelho da história, porque em todas
as versões ele é feio e gordo, usa uma casaca ridícula, óculos
na ponta do focinho, um relógio de bolso enorme e os den-
tes de fora, e não consigo encontrar nenhuma semelhança
entre ti e qualquer outra personagem da saga do País das
Maravilhas.

Objectivo da próxima viagem: fugir do frio a que o Inverno


rigoroso condenou o país e da solidão que me invade os poros
todas as manhãs ao acordar. Ou seja, ir para o hemisfério sul.
Tenho amigos no Brasil e lugar onde ficar. Conheço bem o
Rio de Janeiro. A viagem é longa, mas com as milhas acumu-
ladas no Cartão Vitória talvez consiga um upgrade. Consulto
os voos e apanho uma promoção. Faço uma reserva que pre-
ciso de confirmar em 24 horas. O Marcelo está online no
skype, ligo sem hesitar. Somos grandes amigos desde a mi-
nha primeira ida ao Brasil. Foi o primeiro brasileiro de quem
fiquei amiga e está entre os homens mais inteligentes e inte-
ressantes que já conheci, aquém e além-mar. Passamos horas
a conversar desde o dia em que nos conhecemos, primeiro
por carta e depois por skype. Sempre que lhe ligo, sinto-o
muito próximo. A distância tem destas coisas.

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MARIANA, MEU AMOR

O Marcelo atende, está de óculos e de tronco nu.


— Oi, querido, tudo bem?
— Alôo, Alicinha, que surpresa! E aí? Tá tudo bem em
Portugau?
Ele pronuncia Portugau, que legau, sociau, dá-me sempre
vontade de rir. E aquele alô alongado, tão aberto no final,
que soa como a primeira letra do alfabeto. O sotaque carioca
é maravilhoso.
— Está muito frio aqui. Um gelo. Dá até vontade de
fugir.
— Aqui estão trinta e oito graus, tenho o ar ligado todo
o dia. Mas você está bem?
— Pensei em viajar… ir até ao Rio, será que dá para ficar
em tua casa?
— Claro que sim, meu bem, a casa é sua, venha o tempo
que você quiser.
— Posso ir duas semanas? Estou precisando de sair da-
qui — digo. O gerúndio sai-me assim que começo a falar
com ele. É automático.
— Óbvio. Vem descansar. De repente a gente faz uns
trabalhos juntos, eu te arrumo contactos de atrizes que
estão de moda, você faz entrevistas, pode fazer uma maté-
ria sobre a peça que estou estreando agora, Sonho de Uma
Noite de Verão. Estão rolando muitas coisas aqui. Sabe que
o Vidigal aqui atrás virou chic? O David Beckham comprou
casa lá, inclusive. E a Madonna também.
— Então eu vou. Já fiz uma reserva, tenho um dia para
confirmar, queria acertar tudo contigo antes. Dia oito estou
aí, está bom para ti?
— Tá ótimo, meu amorr. Vem pegar um sol que só te
faz bem. Está fazendo um calor incrível. Te aguardo.

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MARGARIDA REBELO PINTO

Gosto do sotaque carioca, como eles dizem meu amorrr,


com os erres bem carregados. Dá-me conforto. E pronto,
já está. Em menos de dez minutos tomei a decisão, reservei
os voos, arranjei poiso. Só faltam dez dias. Ser solteira tem
várias vantagens. Ser livre é a maior de todas.

Nunca mais me ligaste. De vez em quando envio-te uma


mensagem. Nem sempre respondes. Tenho imensas sauda-
des tuas, mas agora o melhor é estar quieta e calada, tudo
o que fizer ou disser pode ser e será usado contra mim.
Desligaste, arrumaste o assunto. Já não estamos no mesmo
lugar. Eu queria ficar contigo e tu quiseste ficar com a tua
vida. Nada mais claro. E nada mais difícil de aceitar. Mas
não tenho outro remédio. Tenho vontade te enviar um post
que diz let’s pretend that nothing has happened, mas con-
tenho-me. É que não é bem verdade. Tu és bom a fingir que
não aconteceu nada, eu nunca consegui fazer isso. Estou
há demasiado tempo mergulhada neste torpor, uns dias
aguento-me e acho que sou feliz, outros acordo a agonizar
de saudades tuas. Literalmente em sofrimento, com todas
as células do meu corpo à procura das tuas. E são muitas,
acredita.
Nesses dias em que tudo é mais difícil, protejo cada
gesto com lentidão para não tropeçar na tristeza e não me
cansar, porque nem me apetece sair da cama. Mas saio e
faço tudo o que tenho para fazer. Nunca deixo de ser fun-
cional. O trabalho salva e o desporto ajuda. Parar é morrer.
Espero que no meio da tua vida atarefada continues em
forma, querido Pedro. Quando te conheci, estavas cheio de
vida. Também me apaixonei pela tua energia e alegria de
viver, desde o primeiro momento.

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MARIANA, MEU AMOR

Há um brilho no olhar que nunca mais se esquece e eu


vi-o em ti. Vinte e quatro horas depois disseste-me que eu
tinha o mesmo brilho. Não sei onde o procurar agora. Já
não estás aqui. Tenho a certeza de que se entrasses pela por-
ta, tudo voltaria a ser como foi. Ou melhor. Mas para isso
acontecer, o mundo teria de dar muitas voltas. Talvez seja
mais fácil dar eu uma volta até ao outro lado do Atlântico,
onde tudo é mais fácil, mais leve e menos frio.

29
2.

O trabalho salva e às vezes traz-nos surpresas. Dois dias


antes de embarcar, ligou-me a Patrícia — sócia de uma pe-
quena editora —, com quem trabalhei há alguns anos numa
revista feminina.
— O que andas a fazer, Açúcar?
Foi a Patrícia que me baptizou assim, acho que já te
tinha contado. Chama-me Açúcar desde o liceu, acha-me
uma dengosa natural, apesar de conseguir manter peran-
te quase toda a gente uma frieza aparentemente genuína e
inexpugnável que treinei desde miúda. É muito inteligente,
percebi logo que não ia conseguir enganá-la. Ficámos ami-
gas de um dia para o outro e nunca mais deixámos de ser
próximas.
A Patrícia cansou-se do jornalismo e juntou-se com a
Inês, que também se fartou dos jornais, e montaram uma
pequena editora que tem tido algum sucesso, apesar da
crise. O trabalho delas é inventar livros a partir de ideias,
encomendá-los a alguém em que confiam para os realizar.
É simples e fácil de pôr em prática se as ideias forem boas

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MARGARIDA REBELO PINTO

e as pessoas escolhidas para o trabalho forem as adequadas.


Não há margem para erros de casting. Até agora as coisas
têm corrido bem.
— Vou depois de amanhã para o Brasil, porquê?
— Trabalhar? Ou arejar os cornos?
— As duas coisas. Estou mesmo a precisar.
— Ok. Mas consegues passar cá amanhã?
— Só se tiveres uma coisa muito boa para mim, tipo o
Brad Pitt embalado numa caixa de chocolates.
— A Inês e eu tivemos uma ideia espectacular para
fazeres um livro para nós.
— Um livro? Vou-me embora agora, querida…
— Mas depois voltas. E vais gostar, acredita. Além disso é
uma coisa que nunca fizeste, eu sei que tu adoras coisas novas.
Cabra, conhece-me bem. Já me apanhou na curva com
o argumento infalível, o novo é irresistível, ouve-me dizer
há tantos anos. Pela boca morre o peixe.

No dia seguinte vou ter com elas. O escritório é no


sexto andar de um prédio desafogado perto da Praça de
Espanha. Tudo pequeno, funcional, claro e optimizado. Só
mulheres, uma equipa de cinco. Parece uma minicolmeia,
tudo ali funciona. Sentamo-nos na mesa de reuniões no
canto do open space, protegida por prateleiras repletas de
livros que já publicaram. Sim, senhora, isto é que é serviço.
Começaram há quatro anos e já têm dezenas de títulos, vá-
rios deles estiveram no top. São as melhores amigas, unha
com carne, uma mata e a outra esfola, um Dream Team.
Como tu nos chamavas. E como podíamos ter sido.
A Patrícia mostra-me a fotografia antiga e amarelada de
uma religiosa.

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MARIANA, MEU AMOR

— Sabes quem é esta mulher?


— Não faço ideia.
— Sabes quem foi a Soror Mariana Alcoforado?
— Claro, a freira que se apaixonou por um francês e lhe
escreveu seis cartas de amor alucinadas.
— Foram cinco. Já as leste?
— Há muitos anos, quando era miúda. Gostei imenso.
Mas já não me lembro de nada. Tenho o livro lá em casa, ao
pé dos outros livros de cartas de amor, sabes que é o meu
género preferido.
— Por isso mesmo. Nós queremos que escrevas um
livro sobre ela. Que faças uma revisitação das cartas ao
mesmo tempo que contas a vida dela e todos os pormeno-
res que rodearam o seu destino. Há imensos, todos muito
interessantes e relevantes. Sabes que as cartas tiveram mais
de cem edições diferentes e foram um bestseller mundial
nos séculos dezassete e dezoito?
— Não fazia ideia.
— Nem nós. Mas do pouco que já investigámos, há mui-
to material interessante. Queremos que sejas tu a fazer este
livro.
— Mas porquê eu?
— Porque tu vais fazer isto bem. Temos a certeza.
— Não me estou a ver a investigar a vida de uma frei-
ra que levou com os pés de um palerma qualquer e ficou
fechada num convento até ao fim da vida. Foi o que lhe
aconteceu, certo?
— Porque não? Não tens curiosidade em descobrir
como venceu a tristeza? — pergunta a Patrícia.
— Para quê? Achas que isto vai ajudar as mulheres a
lidar melhor com a rejeição?

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MARGARIDA REBELO PINTO

— Talvez sim, porque agora as mulheres têm liberdade


de escolha, só engolem sapos se quiserem. Pelo menos no
mundo ocidental. E é bom que nunca se esqueçam disso.
Ou já te esqueceste? — pergunta a Inês.
Fico calada por alguns instantes. A Inês não sabe que
tu existes, ou exististe, mas a Patrícia sabe. É uma das três
amigas a quem contei. Não sei o que dizer. Tudo o que que-
ro agora é desligar-me de Portugal, ir para casa acabar de
fazer a mala, fugir do frio e do vazio, atravessar o Atlântico
e virar as costas a tudo.
— Não me apetece nada fazer isto agora. Não estou na
melhor fase para lidar com um desgosto de amor.
— Pois eu acho exactamente o contrário. Esta é a al-
tura certa — corta a Patrícia, fixando os seus olhos muito
azuis nos meus. Engraçado, dizem que os olhos azuis são
frios, mas sinto um calor bom a invadir-me a cara. Ela está
a querer dizer-me: Tu és forte, Açúcar, tu aguentas isto tudo
e vais-te safar, como sempre te safaste, vais dar a volta por
cima porque já passaste por muito pior e nunca ninguém te
derrotou. Consigo ler tudo no olhar dela, somos amigas des-
de os 15 anos, nunca houve segredos entre nós, conhece-me
tão bem como conhece os filhos.
— E vocês querem isto para quando?
— Não decidimos ainda. Quando estiver pronto, logo
se vê.
— Não sei trabalhar sem prazos…
— Está bem, então damos-te um prazo. Seis meses,
pode ser? E damos-te um adiantamento.
— Estou-me nas tintas para o dinheiro. Na verdade,
neste momento da minha vida, estou-me nas tintas para
tudo. Por isso é que vou para o Brasil.

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MARIANA, MEU AMOR

— Mas damos-te na mesma. Assim sabemos que não


nos vais falhar. Então, aceitas o desafio?
Encosto-me na cadeira e começo a escorregar devagar.
Imagino-me a desaparecer debaixo da mesa, mas não seria boa
ideia. Sei que não me apetece fazer este trabalho agora, mas
sinto que devo. Pode resultar num efeito inesperado. Quem
sabe, pedagógico. Catártico. Talvez mesmo curativo. Sou uma
sobrevivente, aguento tudo. Até escrever sobre o desgosto de
amor de uma freira do século xvii quando estou toda partida
com um desgosto cuja dimensão não soube, ou não quis, cal-
cular. Do mal, o menos. Se me encomendassem um livro
sobre os grandes massacres do século xxi era pior. Antes isto
do que escrever acerca do Estado Islâmico. Vou aceitar. Espero
que a vida da freira não seja uma seca, senão estou tramada.
— Ok, podem contar comigo. Já têm algum material de
pesquisa?
A Patrícia empurra-me uma pasta com vários prints e
uma pilha de livros velhos, com cheiro a alfarrabista.
— Toma. Agora lê, descasca, interpreta, escreve tudo
o que te apetecer e como te apetecer, apresenta-nos uma
estrutura e depois falamos.
— Mas vocês querem que eu leve isto tudo na mala?
— Não. Leva só um ou dois. E a pasta. Acho que te vais
apaixonar pela história dela.
A Inês levanta-se para atender o telemóvel. Fico a olhar
para a pilha de livros sem reacção.
— Cheiram a mofo… — resmungo entre dentes.
— Esse caso mal resolvido é que já cheira a mofo, mulher.
Já acabaste com isso?
— Quem me dera. Ele desapareceu, mas ainda estou
com tudo cá dentro virado do avesso. Acordo todos os

35
MARGARIDA REBELO PINTO

dias como se tivesse acabado de descer da montanha-


-russa.
— Oh, meu Deus, pensei que já estivesses numa fase
mais adiantada.
— Também eu, querida. Mas desta vez está a demorar
um bocado. Se soubesse o que sei hoje, nunca o tinha ido
entrevistar. Mas uma pessoa não escolhe por quem se apai-
xona.
— Pois não, mas escolhe saltar fora, certo? Sabes o que
diz o Murakami: a dor é inevitável…
— E o sofrimento é opcional. Eu sei. Nem me reconhe-
ço. Não sou nada dada a estas parvoíces. Olha o André, fez
merda, levou um par de patins e um mês depois já tinha
sido substituído.
— Não era homem para ti, mas este também não é.
Ele já tinha a vida dele antes de te conhecer e nunca quis
mudá-la por ti, essa é a realidade, não há volta a dar. Pensa
só numa coisa, como é que podes gostar de um tipo tão
egoísta?
Nunca tinha visto as coisas desta maneira, mas talvez ela
tenha alguma razão. Despedimo-nos com um longo abraço.
A pergunta da Patrícia fica a ecoar na minha cabeça durante
o resto do dia e noite fora, até chegar a hora de me deitar
e adormecer.

Como é que chegámos aqui, Pedro? Lembras-te como


tudo começou? E o quanto fomos felizes, para agora se
perder tudo na espuma dos dias? Que cliché mais batido,
mulher solteira e livre apaixona-se por homem mais velho e
casado, vivem o Verão Azul e depois acaba tudo com a que-
da das primeiras folhas do Outono. Que grande palhaçada.

36
MARIANA, MEU AMOR

Um de nós deve ser completamente maluco. E não devo


ser eu. Se não fossem os amigos, estava bem lixada, para
não usar outro verbo. Mas não vale a pena. O outro verbo,
tu sabes qual é.

37
3.

O trabalho salva, como eu dizia, mas de vez em quando


também te dá cabo da vida.
Foi a minha amiga Isabel, a editora de sociedade da
revista Sábado, que me pediu para fazer o teu perfil. Não
quero ninguém da Política nem da Economia, sabes que os
tipos são todos uns nerds, não resistem a bajular sempre
um bocado quem tem poder. Tinhas acabado de recusar
o convite para secretário de Estado das Finanças, preferiste
manter-te na sociedade de advogados que fundaste há
25 anos. No meio jornalístico dizem que és um génio do
Direito Fiscal, conhecido por ter feito jurisprudência na
área, és convidado para conferências e assinas há anos uma
coluna de opinião num semanário de referência.
Apesar do teu percurso brilhante, sempre foste muito
discreto, não ia ser fácil sacar-te uma entrevista. A Isabel
deu-me o telemóvel da tua secretária. Usa o teu charme e
atira o barro à parede. Se fores tu a ligar, podes explicar
que queres fazer um perfil de carreira mais humano e menos

39
MARGARIDA REBELO PINTO

técnico. Os tipos com poder e massa são todos uns vaidosões,


pode ser que consigas.
Consegui. Recebeste-me na tua sala, que memorizei até
ao mais ínfimo pormenor com o meu scanner mental. O
último andar de um prédio elegante, situado na Avenida
Sidónio Pais, com vista para o Parque Eduardo VII, sim-
ples e despojado, nada a armar, sem quadros de pintores
na moda nem a clássica foto de família em moldura de pra-
ta em cima da secretária, que sempre aparece nos décors
estereotipados das séries de televisão. Tinhas mudado de
escritório havia poucas semanas, talvez a tua mulher ainda
não tivesse tido tempo de dar conta da incumbência.
Não usavas aliança, esse foi o primeiro sinal. Deste-me
total abertura na entrevista, não pediste perguntas pre-
viamente enviadas e recebeste-me com grande simpatia.
Antes de ligar o dictafone, fizeste questão de me dizer que
me seguias na imprensa há anos e que admiravas o rigor,
a idoneidade e a humanidade que eu punha naquilo que
escrevia. E antes que eu pensasse que te levavas muito a
sério, começaste a rir e disseste: Bem, fui um bocado pre-
tensioso a explicar-me, o que lhe quero dizer é que você é
sem dúvida uma das melhores repórteres e entrevistadoras
da imprensa e, portanto, será com certeza um prazer ter
um perfil meu feito por si. Rigor, idoneidade, humanidade.
Parecia uma frase tirada da Revolução Francesa: liberdade,
igualdade, fraternidade. Que pinta, pensei.
Eu via os teus olhos a brilhar enquanto sorrias. Sorrias
muito, mesmo quando falavas das coisas mais sérias.
Perguntei-te porque tinhas recusado o cargo. Gosto de me
manter independente do poder político, respondeste. E,
além disso, deixava de ter vida própria, concluíste, com

40
MARIANA, MEU AMOR

um sorriso não totalmente inocente. És mais bonito ao


vivo do que em fotografia.
Lembro-me de ter reparado em ti há alguns anos. Sóbrio,
sempre de fato escuro, gravatas discretas mas de primeira
linha, o cabelo puxado para trás com gel, sem entradas,
já com algumas brancas. A pele lisa e a barba curta, bem
aparada, que usas desde que me lembro de ti, muitos anos
antes desta moda dos Lumber Jack, homens da cidade ves-
tidos de lenhadores, estilo que o meu ex achava o máximo
e que nunca me agradou. Gosto de senhores, como o meu
avô Vicente, nada a fazer. E tu és um senhor a sério, botões
de punho, camisas imaculadas, relógio de corda herdado do
pai, sapatos ingleses e fatos à medida. Só te falta o chapéu,
como o meu avô usava, mas agora está fora de moda. E eu
de jeans e de camisa branca, botas rasas e um blazer justo
que me marcava o peito. O encantamento foi instantâneo,
mútuo, incontrolável e, portanto, mortal.
Quando desliguei o iPhone perguntaste-me onde já ti-
nha trabalhado e descobrimos uma dúzia de amigos em co-
mum, deixando cair pelo caminho os mais variados nomes
de palermas e imbecis do mercado, tanto do teu lado, do
poder e da finança, como do meu, da imprensa escrita e da
malta das televisões.
— Podemos tratar-nos por tu?
— Claro que sim, Pedro. Nada de formalidades. Não
tenho feitio. Se tivesse, estava agora enfiada numa edito-
ria cinzenta de uma redacção qualquer de uma publicação
igualmente cinzenta.
— Que bom. Também sou assim por natureza, mas o
meu trabalho obriga-me a manter um perfil aparentemen-
te cinzento. Tenho inveja da vida de freelancer. Na minha

41
MARGARIDA REBELO PINTO

coluna do jornal aproveito para escrever mais o que pen-


so… é tão bom escrever. Mas o melhor é fazer disso um
modo de vida. Tenho uma grande admiração por quem é
dono do seu próprio tempo. Não sei o que faria se fosse
dono do meu.
— Mas eu sei. Isso era um assunto que se resolvia
num instante — respondi, com o meu melhor sorriso.
Já me estava a meter contigo, foi sempre mais forte do
que eu.
— Gostas de montar a cavalo? — perguntaste quando
eu já estava de saída.
— Não monto desde miúda, mas o meu avô passava a
vida no Jockey, tive aulas durante alguns anos.
— E não tens saudades de montar?
— Talvez, agora que falas nisso. Mas acho que já perdi
o jeito.
— Ora, isso nunca se perde. Queres vir montar comigo
um dia destes?
— Onde? — perguntei, desconfiada.
— No Jockey. Tenho lá dois cavalos, o meu e um para
os meus filhos. Podes montar o Orelhudo, que é um três
quarto árabe com lusitano. É calmo… vais gostar.
Comecei a rir. Nunca me tinha acontecido sair de uma
entrevista com um convite tão original.
— Orelhudo??? Isso é nome que se ponha a um cavalo?
— Sabes que os nomes são dados pelo ano de nascimen-
to, cada ano corresponde a uma letra. Antes Orelhudo do
que Otário. Foram os meus filhos que escolheram — jus-
tificaste.
— Ou Obama — respondi, já a imaginar-me no picadeiro.
— Está bem, mas antes disso vamos almoçar, pode ser?

42
MARIANA, MEU AMOR

— No Jockey? — Outra vez o mesmo sorriso, não com-


pletamente inocente. Senti as palmas das mãos a transpirar
e um calor inesperado na cara.
— Há mais de dez anos que não vou lá, desde que o
meu avô morreu. Vai ser uma viagem sentimental, se tive-
res paciência para ouvir as minhas histórias de infância.
— Pois é isso mesmo que eu gostava que acontecesse.
Despedimo-nos com um beijo na cara. Estava a entrar
numa nuvem e desci no elevador como quem sobe para
o céu. Entrei no carro, respirei fundo. Liguei o ar condi-
cionado e abri a janela. Na Smooth FM, o Tony Bennett
e o Stevie Wonder cantavam For once in my life. Dei por
mim a rir sozinha. Foi tão bom conhecer-te. Apetecia-me
ter ficado o resto do dia contigo. Menos de dez minutos
depois recebi a primeira mensagem. Que grande surpresa,
disseste, seguido de um smile. Não tenhas uma dúvida,
respondi, também gostei imeeenso, de propósito com mais
vogais do que mandam as regras da ortografia. Queria enfa-
tizar tudo. Sempre quis enfatizar tudo, é aquela tendência
para a hiper-romantização que ataca as almas desprevenidas
quando se apaixonam. E nunca mais nos calámos. A dança
dos WhatsApp prolongou-se por toda a tarde e pelo serão.
No dia seguinte, antes das nove da manhã, convidaste-me
para almoçar.
Comecei por recusar, alegando muito trabalho, mas
foste persistente, apenas consegui adiar o nosso encontro
por alguns dias. Há uns anos, a Patrícia ofereceu-me a re-
produção de um desenho da Paula Rego com o Lobo Mau
em primeiro plano e a Capuchinho Vermelho num plano
recuado. Disse-me: Tu és igual a ela, sabes que o caminho
seguro é o da estrada, mas vais sempre pela floresta. Sábias

43
MARGARIDA REBELO PINTO

palavras. Resistir-te era afinal uma questão de tempo. Na


semana seguinte dei por mim a passar a cancela do Jockey.
Tivemos um almoço maravilhoso, depois demos uma
volta a pé e viajei até à minha infância. Descobrimos tantas
coisas em comum tão depressa, parecia que nos conhecía-
mos há anos. Fomos ver o Orelhudo à box. Lembro-me de
estares sempre a sorrir, enquanto eu lhe fazia festas.
E estivemos juntos no dia seguinte, e um dia depois, e
nunca mais nos largámos. Não conseguíamos. É tão fácil
ir para fora de pé. Relevei o facto de seres casado, estava
sozinha há dois meses, depois de descobrir que o meu na-
morado me traíra. Ocorreu-me que conhecer-te tinha sido
mais do que uma feliz coincidência. O meu optimismo ina-
balável fez-me pensar que fora um golpe de sorte. Karma
works fast, pensei. Livrei-me de um mentiroso infantilóide
que não sabe o que quer e encontrei um Homem a Sério.

Tinha descoberto que o meu namorado me enganara


nos últimos dois meses com pelo menos duas gajas. Nem
sequer eram casos, eram mesmo gajas, histórias sem histó-
ria, aventuras esporádicas de uma noite e pouco mais. Não
sei se eram estreias ou reprises, mas existiam. E isso, entre
outras coisas, precipitou o fim.
A bomba rebentou no dia dos meus anos. Ele andava es-
tranho há semanas, e eu a não querer perceber. Ausentou-
-se da minha festa de final de tarde numa esplanada da
moda para ir ao carro fumar um charro. Há meses que an-
dava arisco e misterioso, a cama era pouca, e eu irritada,
a temer o pior. Mas nesses dias de festa todas as pessoas
conseguem encenar uma normalidade inexistente e fingir
que está tudo bem.

44
MARIANA, MEU AMOR

Fingir não é difícil. Difícil é fingir durante muito tempo


para muitas pessoas. Era o que o André andava a fazer, não
admira que isso o deixasse esgotado. Nessa noite, enquanto
ele tomava duche antes de nos irmos deitar, vi uma men-
sagem entrar no seu telemóvel. Demorei menos de cinco
minutos a encontrar várias mensagens com informação
explícita nas últimas semanas.
O mais difícil de perdoar foi o abandono a que me votou,
porque me traía durante o fim-de-semana, enquanto eu
estava sozinha, a pensar nele, cheia de saudades e de dú-
vidas. É a mentira que mais nos dói, porque nos mentem
com descaramento. Enfiei-lhe um estalo no dia da chama-
da grande conversa, que é quando um homem vai pedir
desculpas e já sabe que lhe pode acontecer tudo. Pediu
para me ver e queria subir, mas preferi andar a pé com ele.
Ainda me sentia enjoada com o que descobrira, considerei
que um passeio a pé seria mais suportável do que tê-lo sen-
tado no meu sofá. Desci as escadas devagar, respirei fundo,
recusei um abraço desajeitado, baixei os olhos e comecei a
caminhar, ele a seguir-me um passo atrás, como fazem os
cães. Fui directa ao assunto e perguntei-lhe quantas vezes
me tinha enganado.
— Não sei — respondeu num tom neutro e distante.
Parei de andar. A rua estava deserta. Olhei-o de frente.
— Não sabes?
— Não.
Ceguei de raiva e não precisei de pensar, o corpo res-
pondeu por mim. Um estalo foi pouco para a merda que
ele fizera, mas considerando que foi dado com toda a força
que tenho com a mão bem puxada atrás, e que o André,
apesar do seu 1,88 m de altura, deu um passo para o lado

45
MARGARIDA REBELO PINTO

com o embate, surtiu o impacto desejado. Além disso, soube-


me bem. Era mais do que merecido. Foi sem avisar, para
acentuar o efeito dramático. Apanhei-o de surpresa, ficou
estupefacto.
— Podes bater-me as vezes que quiseres, eu mereço.
Espertinho, a fazer-se de vítima para virar o jogo a seu
favor. Mantive a calma. Afinal, era a única coisa que me
restava.
— Não é preciso. Basta um, para sentires na pele o que
é levar um choque quando te fazem uma sacanice. Agora
vamos conversar para saber o que se passa nessa cabeça e
arrumar este assunto.
Conversámos durante duas horas, sentados na beira do
cais com o rio aos nossos pés. Ele choramingou como um
adolescente, e eu também, com raiva por não me ter pou-
pado a todo aquele disparate, e com mágoa por não o ver
rojar-se a meus pés a pedir uma segunda oportunidade. Já
não havia amor, só ego e orgulho ferido. Estava tudo acabado,
não havia volta a dar.

O primeiro almoço no Jockey foi apenas o início. Nunca


mais deixámos de estar ligados. A partir daí, trocávamos
WhatsApp sem cessar, falávamos duas ou três vezes ao lon-
go do dia e conseguíamos encontrar-nos quase todas as noi-
tes. Duas semanas depois, a tua mulher e os miúdos foram
de férias. Recuperei as minhas calças e botas de montar que
estavam na arrecadação, fiz um saco para o fim-de-semana e
fui ter contigo. Passámos a manhã no picadeiro grande e de-
pois almoçámos tranquilamente. A seguir ao almoço levas-
te-me para Sevilha. Nunca perguntei para onde íamos nem
durante quanto tempo. Sempre te fiz poucas perguntas.

46
MARIANA, MEU AMOR

Sabia que me contarias o que quisesses. E foi assim que,


logo no primeiro almoço, soube do casamento morto, dos
quatro miúdos, dois rapazes e as gémeas, nascidas já muito
mais tarde, quando equacionavas separar-te. A caminho
de Espanha falaste-me da tua infância em Sevilha. És filho
de um engenheiro algarvio que se casou com uma menina
de boas famílias da Andaluzia. Daí usares o nome da tua
mãe, Morales, como é comum entre nuestros hermanos,
até os teus pais se mudarem para Lisboa para tu e a tua
irmã Amparo estudarem, primeiro no Instituto Espanhol
e depois na Universidade Católica, os dois Direito. Falas
sem sotaque, mas tens muito de espanhol. O gosto pelo hi-
pismo vem-te do teu único tio do lado materno, criador de
cavalos na Andaluzia. Só falavas do teu tio Quico e do avô
materno, Alfonso, que insinuaste pertencer aos Grandes de
Espanha. Quando perguntei pela tua avó espanhola, elabo-
raste uma resposta fabricada que deu a entender que não
seria da mesma estirpe. Definiste-a como uma beleza ciga-
na que fazia parar a Feira de Sevilha no tempo de Franco e
mudaste de assunto. Talvez tenhas herdado de um bisavô
cigano o queixo proeminente e o nariz aquilino. E a boca
rasgada, que usavas tão bem para tudo, pelo meu corpo de
alto a baixo, desde a minha única tatuagem, duas borbole-
tas minúsculas escondidas na parte de trás do pescoço, e
depois no meu peito, barriga, coxas e pernas, e por aí fora.
Nunca te contei porque a fiz. É a celebração de duas
almas que se amaram desde sempre, os meus queridos
avós, e que tiveram a sorte de partir ao mesmo tempo,
num amaldiçoado acidente de carro na A2, a caminho de
Beja, onde tinham uma casa que entretanto vendi. Esta é
uma das inúmeras histórias que ficaram por contar entre

47
MARGARIDA REBELO PINTO

nós, todos os dias me lembro de mais uma coisa para te


dizer, mas calo-me. Também tenho saudades de tudo o que
não partilhámos, o que no meu espírito inquieto representa
uma grande contrariedade.

Vou para o Rio porque não quero procurar nada nem


ninguém. Preciso de te limpar do sistema. E vou conseguir.
Espero que 15 dias cheguem. O meu maior medo é ter
vontade de te telefonar ou enviar um WhatsApp assim que
aterrar. Que Deus me proteja de tal disparate! Já cometi o
erro de andar atrás de ti por demasiado tempo. Basta ya! Se
a ETA já acabou, isto também pode acabar. E se for preciso
sair outra vez de Portugal, saio. Ando sempre a apregoar ao
mundo que sou livre, tenho de me aguentar. Quero gozar
a minha liberdade, mas para isso tenho de a criar dentro
de mim. De a fazer crescer. E para que cresça, tenho de te
erradicar, como se fosses uma célula terrorista. Conseguir
ignorar a tua existência, isso sim, seria a grande vitória das
Forças Aliadas de Alice contra o Eixo que desistiu de tudo
o que tinha que ver comigo, recuando quase sem aviso para
o seu território soberano, construindo tijolo a tijolo um
novo Muro de Berlim, cada vez mais alto, mais largo e mais
bem defendido.
Fecho os olhos e imagino o arame farpado, os soldados
de metralhadora, os focos de luz branca, imagens da minha
infância que se misturam com o que sinto. O Muro foi
erguido da noite para o dia e demorou 38 anos a cair.
Mariana Alcoforado sobreviveu ao desgosto de amor mais
de 50 anos fechada num convento. O que fez dos seus dias,
como os ocupava, de que forma expurgou a paixão do corpo
e do coração são mistérios que ninguém até agora conseguiu

48
MARIANA, MEU AMOR

desvendar. Mas sobreviveu, fechada entre quatro paredes.


Os muros servem para isso mesmo: para nos isolar do mun-
do. Foi assim no Convento de Nossa Senhora da Conceição
em Beja, no século xvii, e em Berlim, no século xx. E agora
é assim na tua vida, ou será que posso dizer, na tua outra
vida?
Apenas o tempo e a vida me dirão quanto tempo o teu
muro vai demorar a cair, até à derrocada final. Tal como
aconteceu com o de Berlim e tantos outros, só será possível
se houver uma revolução no mundo. E não sou eu que a vou
fazer. Sou de paz, mais depressa me sento à porta como o
chinês a ver se o mundo muda do que pego numa bandeira
para defender uma causa. Se escolheste o outro lado da tua
vida, só tu podes fazer com que o muro caia. E enquanto
nada muda, vou ali e já venho.

49
S abes tu o que é amor? Pois, não podes saber. És muito
nova para isso e nunca saíste deste lugar. Tens 16
anos, a mesma idade que eu tinha quando aqui entrei.
Ao contrário de mim, não te obrigaram; vieste por tua
livre vontade, já que sentiste dentro de ti o Chamamento
do Senhor, ainda eras pequenina, tinhas quantos anos?
Mostras-me as duas mãos espalmadas. Dez anos tinhas
tu, minha menina. E já te sentias próxima de Deus. Apontas
para o teu terço para me dizeres que conheces o amor ao
Altíssimo. Mas tens mesmo a certeza de que é Ele quem
amas, ou não pudeste escolher outro caminho? Tal como
eu e tantas outras raparigas e senhoras que vêm para
este convento, és filha da alta nobreza, cresceste por isso
confinada a um palácio e jardins murados. Imagina que
tinhas sido criada ao deus-dará, que os teus pais eram
feirantes e viajavam de terra em terra; acreditas que ama-
rias o Senhor com igual fervor e paixão? Amamos aquilo
que conhecemos, minha criança inocente. Só os mais
aventureiros se arriscam por caminhos desconhecidos.

51
MARGARIDA REBELO PINTO

Tiveste sorte, porque o defeito de nascença não te


afectou a audição. Quase todos os mudos são mudos
porque são surdos. Como não ouvem, não conseguem
imitar a fala corrente. Como o poderiam fazer, se não a
escutam? Mas tu és diferente: tu ouves tudo e o teu en-
tendimento vai muito para além daquilo que ouves. Tens
uma inteligência sagaz e um bom coração. Nunca tiveste
vontade de fugir daqui e de descobrir o mundo?
Quando me perdi de amores por Noël, também dese-
jei fugir. Ou ser idiota, para esquecer depressa a dor do
abandono. Se o fosse, talvez não tivesse escrito aquelas
malditas cinco cartas. Não as renego porque me saíram
do peito a sangrar, mas confrangem-me pela sua inge-
nuidade, que acabou por se revelar uma grande estu-
pidez. Sim, fui muito estúpida do início ao fim daque-
le triste episódio que maculou a minha existência para
sempre. E ouve bem o que te digo, porque é importante:
maculou-me aos olhos do mundo e aos meus próprios
olhos, ainda que o meu nome não esteja nelas inscrito.
Chamam-me a Freira Portuguesa, e há tantas, mas o povo
sabe que sou eu. Ao sentimento de expiação, junta-se o
da vergonha maior, quando te olhas ao espelho e vês uma
pessoa diferente, distorcida, alguém que nunca quiseste
ser. Quando percebes que o amor que sentiste se trans-
formou primeiro em desespero rebelde, depois em tristeza
conformada, para finalmente se cristalizar numa raiva
surda, essa, sim, mais surda e mais cega do que todos os
que sofrem de cegueira e de surdez que eu já conheci. É
dessa raiva maldita que o meu coração se reveste até aos
dias de hoje, e os sulcos que tenho no rosto desenharam-
se muito antes da velhice, foram esculpidos pela tristeza.

52
MARIANA, MEU AMOR

Tristeza e raiva, sou obrigada a admitir. Essa raiva, que eu


julgara morta, reacendeu-se há pouco tempo: quase reju-
bilei quando soube que o único homem que amei já não
está neste mundo. Morreu este ano, no final de Janeiro,
só há poucas semanas soube da notícia. Recebi-a sem
um sobressalto no peito, confesso-te que senti até um
certo alívio, que o Altíssimo me perdoe tal pecado, mas é
melhor que tenha partido antes de mim. A sua presença
não mais voltará a afrontar-me, a não ser em sonhos,
aquele lugar mágico em que acertamos contas com os
vivos e conversamos com os mortos.
Já me estou a alongar, por isso senta-te e começa a
escrever: Eu, Mariana Alcoforado, abadessa do Convento
de Nossa Senhora da Conceição da mui nobre cidade de
Beja, quero aqui deixar relatados todas as histórias, epi-
sódios, sentimentos e segredos que vivi e assisti ao longo
de mais de 50 anos de clausura. Tenho como escrivã e
testemunha Benedita, cujo nome de família não me apraz
revelar, para protecção da mesma. É ela quem irá contar
ao mundo o que jamais foi dito sobre o que se passa do
lado de dentro de um convento.
Espera, não escrevas agora. Será que devia dizer o que
se passa dentro dos conventos? O mundo é muito pare-
cido, as histórias repetem-se sempre, quem sabe se este
lugar é apenas um retrato idêntico ao que se passa em
tantos outros? Talvez não me fique bem tanta arrogância.
Mais acertado será contar o que vi e vivi, sem ambicionar
arquitectar uma teoria geral sobre as práticas conven-
tuais. Um dia, daqui a muitos anos, quando este docu-
mento for descoberto e publicado, desejo que alcance os
quatro cantos da Terra, como as minhas cartas o fizeram

53
MARGARIDA REBELO PINTO

há mais de 40 anos. Pois não é que aquele bandalho nem


sequer as soube guardar para ele? E como sei eu que
delas se fizeram tantas edições? Pois se ainda outro dia,
por via do irmão da nossa querida abadessa, Inês de Mello
Lobo, me chegou um exemplar em mandarim, imagina!
Está escondido no fundo da arca, juntamente com os
outros livros que me foram entregando, as minhas cartas
traduzidas para línguas de tantos reinos, sem contar com
as que não são do meu conhecimento, mas que a minha
imaginação congemina.
Andou muita gente estes anos todos a encher os bol-
sos com a minha prosa inflamada, mas não é o dinheiro
que me envergonha, porque nasci rica e, como tal, com
algum pendor para o desprezar, traço leviano do meu
carácter, reconheço. Mas é mesmo assim que as coisas
se passam. É como a ingratidão: já viste quão comum
é ela nas classes mais altas? A ingratidão e a preguiça,
porque nunca tiveram de agradecer nada, nem de traba-
lhar. Apenas os valentes abraçaram as armas, como o
meu irmão Baltasar, para depois se entregar a Deus, como
nós. Baltasar teve em toda esta tragédia um desempenho
muito mais importante do que o próprio alguma vez ima-
ginou. Sempre me adorou, o meu querido irmão, herdeiro
do morgadio, a quem criei como um filho. Ainda menina,
fazia tudo por ele, cuidando do seu sono, higiene e ali-
mentação como se lhe desse leite do meu peito, embora
a minha tenra idade não mo permitisse. Há coisas que se
sentem, mesmo quando não as tens, sobretudo quando
não as tens. Não precisas de ter o peito grande e farto
de leite para o sentir a rebentar de amor por um ser frágil
que crias como um filho. Foi assim com Baltasar. E foi

54
MARIANA, MEU AMOR

quando já despontavam em mim as formas e a vontade de


ser mulher e mãe que meu pai ordenou a minha clausura
aqui para sempre, pagando por isso muito menos do que
o que teria de ceder por um dote, com a salvaguarda de
a família Alcoforado continuar a receber, depois da minha
morte, através de seu morgado, um terço da terça das
receitas do convento.
Não vejo o meu pai como um bom homem. Nunca
matou nem roubou, mas também nunca teve compaixão
pelo meu coração. E um homem sem compaixão também
é cúmplice de crueldades, ainda que estas pareçam nor-
mais à vista da sociedade, entendes? Não penses com
isto que desprezo os homens em geral. Apenas desprezo
aqueles que não sabem amar. Devia ter aprendido a
ignorá-los, como Noël me ignorou quando lhe escrevia
sem pudor nem vergonha, longe de imaginar que as
minhas cartas jamais seriam expostas aos olhares do
mundo.
Estás a perguntar-me por gestos se ele me respondeu?
Claro que sim, mas as suas missivas não coincidiam com
as que eu lhe enviava. Coitado, talvez nem soubesse es-
crever decentemente. A palavra escrita bem usada é um
dom raro e, mesmo assim, de pouco serve quando a quem
a oferecemos não a agarra. As suas respostas eram de
um vazio indescritível. Sei que os meus conhecimentos da
língua francesa são vastos e precisos, domino o idioma
pelo qual me apaixonei quando era ainda uma crian-
ça, arrisco-me a dizer, passe a arrogância, que escrevia
melhor na sua língua materna do que ele. E quando um
homem deixa de te responder é porque já não tem nada
para te dizer.

55
MARGARIDA REBELO PINTO

Talvez nunca o tenha conhecido verdadeiramente,


entendes? Apaixonei-me por uma imagem, encarnada em
forma de homem que entrava sorrateiro para possuir o
meu corpo, já maduro e sedento de desejo. E eu já me
familiarizara com o desejo, querida muda, desde muito
cedo, muito antes da idade que agora tens. A minha pele
chamava e pedia que lhe tocassem. Quando Noël me
tocou, já estava preparada para o receber, para me en-
tregar de corpo, de alma e de coração, que é como as
mulheres sentem o amor.
Os homens são diferentes; eles encenam o amor para
obter favores em forma de luxúria. É o mais antigo engodo
da humanidade. Por isso existem as mulheres de má vida:
fazem o mesmo que eles e, como tal, não as condeno.
Tratam-nos de igual para igual: fingem amá-los quando
na verdade só querem que eles lhe paguem o pão para
o almoço e um caldo quente para a janta. Os homens
sempre quiseram mulheres ricas, com dote; portanto são
em muitas coisas iguais a essas mulheres. E também se
deitam com todas as que apanham, como elas fazem com
eles. Homens e meretrizes são pena do mesmo pato e por
isso eternos cúmplices que se protegem uns aos outros. E
perguntas tu agora por escrito: então onde entra o amor?
O amor é traiçoeiro e volúvel, muda de cor e de forma,
de cheiro e de corpo, o amor entra e sai, nunca se sabe
de onde vem, nunca se adivinha nem quando nem como
acaba. O amor é o maior tormento das mulheres, aquilo
que nos dá cabo da vida. Por isso é tão mais sensato amar
o Divino; ao menos Esse não entra pelo teu catre para te
abrir as pernas, te penetrar, te fazer sentir leve como um
pássaro e invencível como um Deus pagão, para depois

56
MARIANA, MEU AMOR

se ausentar e te deixar mergulhada num poço sem fundo,


numa masmorra sem luz nem norte. O Divino vive dentro
da tua alma, mas não te revolve as entranhas, aloja-se no
espírito e instala-se na tua alma. Se te invade o corpo,
é apenas para o acalmar. O amor terreno, ao invés, é
carnal, efémero, e por isso cruel e impiedoso. Quando és
apanhada por ele, é como uma presa capturada pelo seu
predador. O teu fim aproxima-se, irás capitular, morrer,
ser devorada, atirada ao esquecimento, e os teus restos,
picados por abutres preguiçosos. Trata-se apenas de uma
questão de tempo.
Certamente já te sentiste de alguma forma possuída
pelo Divino, durante as orações e os cânticos diários.
Nesses momentos foste invadida por uma paz imensa,
sentiste uma luz branca a iluminar-te por dentro. Eu sei
que assim é porque também já o senti. Pois fica saben-
do que o amor terreno nada tem de pacífico. Uma alma
ingénua e inexperiente pode até acreditar que é isso que
sente, mas esta paz, feita da união carnal de dois corpos,
pouco tempo dura. E o preço a pagar por viver tal pecado
ultrapassa quase sempre os limites do razoável.
Para as mulheres, o amor é uma ocupação, para os
homens, uma distracção. Os seus espíritos encontram
satisfação em outras coisas: na guerra, na caça, no po-
der, nas amizades com os seus pares. E nós ficamos fora
desse mundo vasto e misterioso. Mesmo as mulheres que
não vivem fechadas como nós estão aprisionadas na vida
doméstica. Afinal, os nossos dias aqui no convento são
mais livres do que os das mulheres que vivem para além
dos muros que nos rodeiam. Lá fora, existem violadores,
assassinos, outras mulheres cegas de ciúme capazes de

57
MARGARIDA REBELO PINTO

cortar a goela a outra que lhes conquiste o marido. O


mundo lá fora continua em guerra, apesar de dizerem
que a guerra já acabou, porque o mundo vive em eterno
conflito. Todos querem riqueza e poder, todos lutam e
se matam para conseguir favores do rei ou de senhores
influentes. Os homens vivem para a glória, as mulheres
para os servir. Porque pensas tu que há tantas senhoras
de fortuna, beleza e juventude que escolheram aqui vi-
ver? Por estas portas só passa quem nós queremos. E eu
quis que Noël entrasse e me possuísse quantas vezes lhe
aprouvesse. Não vou negar que ser a madre porteira do
convento no ano em que o conheci me ajudou a alcançar
o céu e o inferno com ele. Fui eu quem deu instruções
a Cremilde, minha fiel serva que me acompanhou desde
criança e que Deus já tem em Sua guarda, para que lhe
abrisse todas as portas e levantasse todos os ferrolhos
que o conduziram à minha câmara para me encharcar
de prazer em meu catre. No dia seguinte eram tantas as
marcas das nossas guerras amorosas que a pobre coitada
fugia com os lençóis enrolados debaixo das suas vestes
para os lavar às escondidas no ribeiro atrás da horta.
Felizmente a minha mãe dotou-me de um enxoval tão
extenso que podia mudar todos os dias os panos do leito
sem nunca faltar linho na arca.

Não sei se tenho o direito de te iniciar nestes assuntos


da condição carnal, tão íntimos e, no entanto, tão ver-
dadeiros. A luxúria não é o pior dos pecados, mas sendo
feita de prazer, será porventura às mulheres o que mais
prazer dá, isto para aquelas que o sentem, porque a maior
parte, ao que parece, nem sabe do que aqui te falo. Um

58
MARIANA, MEU AMOR

corpo que nunca foi despertado para o prazer pode viver


e morrer sem nunca o sentir. Algumas mulheres, poucas,
descobrem o prazer sozinhas. A maior parte tem de ser
iniciada, ensinada. Não, não me peças tal sacrilégio. Na
nossa religião, tais feitos são julgados e condenados como
crimes. Talvez noutras terras distantes as mulheres se aju-
dem umas às outras, mas em Portugal, isso não existe.
A não ser entre portas fechadas de quartos escondidos,
quem sabe até, paredes-meias com as nossas câmaras.
Na verdade, o prazer carnal é pecaminoso porque nos
prende ao desejo de tal maneira que nunca mais queremos
deixar de o sentir. O desejo puxa o desejo, a vontade puxa
a vontade. Quanto mais prazer sentes, mais queres sentir.
Agora que os físicos já admitiram que a Terra é redonda,
vejo o prazer da mesma maneira; não tem fim, nunca tem
fim. Só morre quando o corpo se esvai e se apaga, mas,
nesse caso, também já cá não estás, partiste para a com-
panhia do Senhor, que te recebe em Seus braços etéreos
e celestiais, num lugar onde não há frio, nem calor, nem
fome, nem desejo, só luz e paz, o Paraíso.

Muito tinha para te dizer do prazer carnal, das diferen-


tes formas de agradar a um homem, deixando-te dominar
por ele, ou montando-o com suavidade e leveza como
se monta uma égua mansa, da forma como se acaricia o
seu membro mais querido, por entre as mãos ou usando a
boca, os lábios, o cuspo e a língua, tudo ao mesmo tempo,
em movimentos acertados, guiados pelo coração e pelo
desejo. O desejo não é cego, Maria Benedita. O desejo
sabe muito bem o que quer e por onde vai, que cami-
nhos percorrer para alcançar aquele momento em que te

59
MARGARIDA REBELO PINTO

sentes um ser alado, uma fonte que jorra das pedras, uma
árvore que abraça o mundo. Chegar a esse lugar no corpo
é um privilégio raro. A grande tragédia é que nunca mais
queres deixar de o alcançar. Por isso, quando Noël partiu,
aprendi a fazer tudo sozinha, mas faltava-me o peso do
seu corpo, o odor suado da sua pele, o leite derramado
do seu prazer misturado com o meu. Faltava-me o sal
da sua presença, mas como deixara de me amar e com o
tempo percebi que nunca iria voltar, ao contrário do que
me prometera, aprendi a viver com isso o melhor possível.
E acredita, querida Benedita, que o prazer carnal pode
ajudar-nos a lutar contra a morte. Até ao dia em que o teu
corpo já não te pede mais que lhe toques, e sabes então
que estás finalmente livre dos teus demónios. Mas isso
pode suceder-te antes de envelheceres, ou apenas no dia
em que morres. Nunca ninguém sabe bem de si, muito
menos dos outros, e este é um dos mais tristes mistérios
da condição humana.
O amor carnal é o céu e o inferno ao mesmo tempo,
porque quando o teu amado te deixa, o seu espírito e o
seu corpo já se colaram à tua pele e já te marcaram nas
entranhas. Acordas noites e mais noites cuidando que
ele voltou, que está a possuir-te, sentes o seu membro
dentro do teu corpo, agarras os seus cabelos no vazio e
a tua imaginação faz-te sentir a boca dele, molhada, ávi-
da, presa na tua, como se fosse verdade, como se o que
imaginas está a suceder-te de facto, entendes? Abanas
a cabeça, o que quer dizer que não, e ainda bem. Não
queiras experimentar tal prisão, querida irmã, porque nela
me fechei durante muitos e longos anos, e se porventura
dela me consegui libertar, foi mais por cansaço do que por

60
MARIANA, MEU AMOR

falta de vontade de o fazer. O prazer é um vício e a tris-


teza também. Começas a sentir que a tua vida não é mais
do que a dor que carregas, mas como não tens chagas
abertas nem nenhuma infecção a escorrer pus, ninguém
sofre contigo. Aguentas sozinha a ausência, as saudades,
a certeza de que aquele que ainda amas já te esqueceu. E
acredita, ser esquecida por alguém que amamos também
é uma espécie de morte.
Mas já me estou a perder em meus pensamentos caó-
ticos, sempre fui assim, de pensar e de sentir muito tudo o
que vivenciava. Noël gostava disso em mim, sabias? Dizia
que era uma mulher de uma beleza inteligente. Admirava
o meu espírito, a rapidez das minhas respostas, a minha
arte de conversação.
Nunca fui bonita, tenho um nariz excessivamente gran-
de, os olhos demasiado juntos e as sobrancelhas muito
espessas. Diz a sabedoria popular que ter as sobrance-
lhas grandes e fartas é sinal de força interior. Quando
era pequena, diziam que me parecia com uma águia.
E no entanto nunca voei, a não ser nas noites de prazer,
e depois, dentro das minhas memórias e da minha imagi-
nação, onde misturava tudo.
Anos mais tarde, o meu entendimento da realidade
mudara: já não tinha saudades de Noël, em boa verdade,
já não conseguia reconstituir na minha memória os traços
da sua cara e a imagem do seu corpo atenuara-se como
um reflexo trémulo em águas quase paradas. Sem querer,
começara finalmente a esquecê-lo. Mas antes de lá che-
garmos, vou contar-te tudo desde o início, e escreverás o
que for dizendo para escreveres, para que um dia o mundo
saiba o outro lado da minha história de amor.

61
PARTE II
4.

O voo para o Rio de Janeiro é sempre uma grande seca


e este não foi excepção. Gosto tanto de ir ao Rio como de-
testo andar de avião. Mas tem de ser. A nado nunca mais lá
chegava e não tenho vocação de marinheiro.
Trouxe os livros sobre a freira no meu saco de mão e um
moleskine de capa preta para começar a cozinhar o mate-
rial. Nunca fiz um livro histórico, mas com método e rigor
tudo se consegue; primeiro tenho de montar uma estrutu-
ra, escolher o que vou contar, delimitar a acção no tempo e
no espaço, definir as personagens mais importantes, e, por
fim, escolher o tom e a voz com que vou relatar a história.
Soror Mariana Alcoforado nasceu em 1640 e morreu
com 83 anos. Aos 16 anos entrou para o Convento de Nossa
Senhora da Conceição, em Beja, onde chegou a ser abades-
sa, e no qual também viveu a sua irmã mais nova, Maria.
O amante morreu poucos anos antes dela, em 1715. Terá
a freira sabido da vida e da morte do seu amado depois de
este ter regressado a França a pretexto de ir em auxílio do
irmão que estava doente? Noël Bouton de Chamilly, então

65
MARGARIDA REBELO PINTO

conde de Saint-Léger, foi tenente de cavalaria ao serviço


do general Armando Frederico de Schomberg, no final da
Guerra da Restauração, que durou até 1668. Foi durante
esse período que conheceu Mariana.
Dez anos depois, casou com Elisabeth de Bouchet, uma
senhora gorda, feia e mais velha do que ele, e ascendeu na
carreira militar até ao topo. Será que Mariana soube do ca-
samento? Tudo indica que Noël era um homem ambicioso,
chegou a governador da cidade de Estrasburgo, depois de
ter participado em inúmeras batalhas. A sua carreira mili-
tar começou cedo e acabou tarde. Era um guerreiro, um
estratega, um homem ligado ao poder e à glória. Luís XIV,
o Rei-Sol, nomeou-o marechal de França, em 1703. Era um
homem do mundo, feito para a conquista, a luta e a guerra.
É natural que uma monja portuguesa não lhe enchesse as
medidas, por mais encantos que lhe proporcionasse na
alcova. Terá sido para ele uma distracção, talvez uma pai-
xão, intensa e fugaz, como mandam as regras das paixões
de homens em missões fora do seu país. Ou, como se diz
agora em termos culinários modernos, um amuse-bouche.
Coitada da Mariana. Saiu-lhe caro o desvario. Se as cin-
co cartas escritas pela sua mão ansiosa e ardente foram para
muitos consideradas falsas — Rousseau afirmou que nenhu-
ma mulher poderia escrever com tanta propriedade, embo-
ra Rilke, que conhecia bem o eterno feminino, tenha tido
a sensibilidade de a defender e de a elogiar —, a verdade é
que a teoria mais credível alvitra que os erros de construção
sintática de algumas frases constituem prova de que estas
não foram escritas por alguém para quem o francês fosse a
língua-mãe. Alexandre Herculano e Camilo Castelo Branco
também não acreditavam que o autor de tanta força, poesia

66
MARIANA, MEU AMOR

e beleza pudesse ser uma mulher. Estavam enganados.


Apesar da profundidade poética, as falhas estão lá, e ainda
bem, porque Soror Mariana era portuguesa de gema, alen-
tejana de coração. Uma mulher quente, de cabeça perdida,
que despe a alma e entrega a sua dor, sem orgulho nem
pudor, ao amado que a abandona.
Não deixa de ser estranho que, pouco mais de um ano
depois de enviadas a Noël, as cartas tenham aparecido pu-
blicadas em livro e chegado aos quatro cantos do mundo.
Durante os anos seguintes inúmeros editores ganharam
dinheiro com este bestseller, enquanto a monja continua-
va a sua existência pacata, encarcerada no Convento da
Conceição. Outros tempos, nos quais o mundo não era
uma central imensa de biliões de vasos comunicantes, mas
um lugar onde as distâncias eram reais, o tempo se contava
em luas e meses e as mulheres tinham pouco espaço de
manobra e quase nunca voz própria.
Matisse prestou-lhe homenagem com uma série de
desenhos, o mesmo fez Klimt. Imagino que Lou Andreas-
-Salomé, amiga do grupo de artistas e intelectuais do qual
faziam parte Rilke, Matisse e Klimt — a sua biografia indica
que terá sido amante pelo menos dos dois primeiros —, tam-
bém tenha lido as cartas de Mariana. Tiveram vidas opos-
tas, uma fechada para sempre num convento e a outra, livre
como uma borboleta, amante de quem mais deleite lhe tra-
zia à existência, incluindo Freud, que lhe dizia: Tu sabes
sempre o que te quero dizer para além do que te digo. Frase
que usámos tantas vezes entre nós, lembras-te? Fazia par-
te da nossa linguagem secreta, entre nomes de código que
trocávamos por pura diversão e um conjunto de expres-
sões que, apanhadas fora de contexto, seriam consideradas

67
MARGARIDA REBELO PINTO

encriptações dignas de um qualquer 007 ao serviço de uma


qualquer majestade.
Adiante. Não quero perder o fio à meada, quero voltar a
Mariana, porque quanto mais leio sobre o seu triste destino,
mais me interesso por ele. O pai mandou-a para o convento
porque já tinha casado a filha mais velha e não queria des-
falcar a sua fortuna, que era imensa. Este era o destino na-
tural das segundas filhas. O irmão mais novo, Baltasar, que
ela ajudou a criar e que lhe era muito afeiçoado, seria o her-
deiro de toda a fortuna, segundo a Lei dos Morgadios. Para
quê casar as filhas se os dotes lhe saíam do pêlo, terá pen-
sado o avarento pai, mais conhecido por Dom Possimando
do que pelo seu nome de baptismo, enquanto olhava para
os campos de trigo que rodeavam a cidade a perder de vista
e que lhe pertenciam por inteiro. Era tão rico que a sua for-
tuna em moedas não era contada, mas pesada em alqueires,
e quanto mais tinha, a mais ambicionava.
A ganância é inimiga do coração. Como é que um ho-
mem, sendo tão rico, ainda assim não permitiu que a se-
gunda filha se casasse, porque não estava disposto a perder
algum dinheiro? Ou seria uma forma de a proteger da guer-
ra? E como é que Mariana, que parece tão voluntariosa nas
suas cartas, acabou por aceitar a vida eclesiástica e nunca
se rebelou? Provavelmente teria fugido com Noël, se este
cumprisse a promessa de a vir buscar, o que nunca acon-
teceu, tal como fugi contigo alguns dias para Sevilha para
conhecer a tua casa e brincar à outra contigo, pensando que
era a legítima.

Os disparates que uma pessoa faz quando está apaixo-


nada não têm explicação. A paixão dá-nos cabo da lucidez

68
MARIANA, MEU AMOR

e do discernimento, entre outras coisas. Mariana estava


apaixonada, e Noël também. Mas a paixão é a pilhas, um
dia acaba, e o amor é a bateria, vai-se carregando. Noël terá
gostado dela, terá sentido eventualmente uma paixão fogo-
sa que lhe tomou as carnes e o espírito, mas não a amou, ou
não teria regressado a França sob o pretexto de auxiliar o
irmão doente, quando, em abono da verdade, a Guerra da
Restauração estava a chegar ao fim e, consequentemente,
também a missão junto do general Schomberg, que servia.
Noël tinha mais em que pensar e muito mais a fazer.
As cartas alimentaram-lhe o ego e, embora ninguém até à
data tenha descoberto como foram parar às mãos do edi-
tor Claude Barbin, não consigo afastar a ideia de que foi o
próprio quem as entregou, num acto da mais reles vaidade.
O ego fala sempre mais alto. Deve ter-se sentido um pavão
com tamanho legado amoroso. Os homens estão mais habi-
tuados a ouvir a palavra não do que a obter todos os favo-
res de uma dama. E se esta perde a cabeça e se desfaz em
declarações inflamadas, ignorando o silêncio e a distância,
tais desvarios não vão certamente trazer de volta o amante
perdido, porque um amante só volta se tiver medo de nos
perder. Andar atrás dá sempre um de dois resultados: ou
mau, ou péssimo.
Todos sabemos disso, é do mais elementar bom senso. E
no entanto, todos caímos no mesmo erro. Porquê? Porque,
no nosso cérebro, as áreas que são estimuladas quando
estamos apaixonados são as mesmas de quando perdemos a
pessoa que queríamos. São impulsos internos e profundos,
mecanismos auto-suficientes quase impossíveis de contro-
lar. Não sabemos se é no cérebro, no coração ou nos intes-
tinos que se concentram as emoções, provavelmente estão

69
MARGARIDA REBELO PINTO

espalhadas por todo o organismo, mas sabemos que o cora-


ção não vai para onde queres, nem fica onde decides. Tem
vontade própria e é ele quem faz a própria agenda. Podes
segui-lo ou ignorá-lo, mas não percas tempo em tentar mu-
dar-lhe a vontade. É um país soberano com moeda própria
que só se deixa invadir quando quer. Tentar mandar nele é
o mesmo que tentar conquistar a Grã-Bretanha. Já pensas-
te porque é que os ingleses não têm um dia para festejar a
independência? Porque nunca foram invadidos.
A ganância é infinita e a maldade também. A vida das
mulheres pouco valia; não sabiam trabalhar nem tinham
braços para ir para a guerra. Saíam sempre caras, por dote
no casamento ou por não possuírem meios de sustento.
E se por má sorte se apaixonavam, estavam condenadas
a sofrer as consequências de tamanha irresponsabilidade.
Mariana foi parar ao convento com 16 anos, sem qualquer
vocação religiosa. Como a desenvolveu e se agarrou a ela
depois de ter sido abandonada pelo amante é um mistério
que tenciono desvendar. Ou talvez o caminho não seja esse.
Afinal, não temos de entender tudo. Talvez eu aceite a sua
conversão sem a compreender. Praticar a aceitação tam-
bém faz parte da vida.
Antes de partir, na busca de uma paz possível, dedi-
quei-me à busca de alguns princípios das filosofias orientais,
já que nunca fui uma crente fervorosa na religião católi-
ca, apesar de ter andado na catequese e feito a primeira
comunhão. Além da incompreensível filosofia budista que
cultiva o desapego e desprendimento daqueles que mais
amamos, descobri os quatro princípios da espiritualidade
na Índia que decorei por me parecerem sensatos. A saber:
1— As pessoas que aparecem na tua vida são aquelas de

70
MARIANA, MEU AMOR

que precisas. 2 — A tua vida não podia ter sido outra e tudo
o que te aconteceu não podia ter ocorrido de forma dife-
rente. 3 — As coisas acontecem-te quando estás preparado
para as viver e as aceitar. 4 — Tudo tem um fim e por isso
é preciso saber aceitar que tudo acaba e que aquilo que vi-
vemos é um caminho para a libertação porque nos ensinou
a ver mais claro, a ser pessoas melhores.

Era tão bom que fosse verdade, mas verdade é o que


se sente. No meio da travessia transatlântica com mais de
90 por cento dos passageiros a dormir, sinto que carrego a
minha tristeza no porão. Quando viajamos, os problemas
viajam connosco, e tu tornaste-te um problema na minha
vida. O silêncio do avião estica o tempo como um elástico
infinito. Minutos que pesam como horas, horas que pare-
cem dias. O meu corpo tem muitas saudades do teu. A
minha voz tem saudades da tua. Todos os dias me lembro
de um livro diferente que gostava de te emprestar. Se pu-
desse, falava contigo todos os dias. Se pudesse, era, ainda e
sempre, tua namorada.
Não sei quanto tempo vou demorar até conseguir olhar
para a realidade com outros olhos. Oiço as vozes da Patrícia
e da Laura, nada do que me dizem é animador. Querem
o melhor para mim, ficam aflitas por me verem tão triste.
Pergunto-me o que diria a minha avó Ema sobre o assun-
to. Provavelmente encolheria os ombros e, sem me julgar,
aconselharia recuo e prudência.
Os mortos continuam a fazer falta muitos anos depois
de terem partido.

71
5.

O Rio de Janeiro continua lindo. Parece menos violento,


mas na verdade está quase tudo na mesma, embora em São
Conrado as coisas tenham melhorado, desde que expulsa-
ram os traficantes do morro do Vidigal. Na Avenida Oscar
Niemeyer, que desce até ao Leblon, onde já há dez anos
se ouviam balas perdidas durante a noite, estão agora a fi-
nalizar a construção de uma ciclovia e tudo parece calmo.
Apanho o ónibus que me deixa no início da Avenida Delfim
Santos, em frente ao Posto 12.
Os dias começam com 34 graus, portanto é acordar, beber
um café, lavar a cara, vestir um bikini e ir directa para a praia
com um bom livro e atirar-me ao mar com cuidado porque
as ondas suaves puxam para fora enquanto o diabo esfrega
um olho e por isso nada de grandes banhos, é entrar e sair. É
o que faço todas as manhãs, até não aguentar mais o calor e
regressar a casa, esperando que o Marcelo já tenha acordado.
Ser hóspede de um homem nunca é fácil, mesmo quan-
do a amizade é forte e sólida como uma rocha. O Marcelo
guarda ainda uma tristeza muda pelo amor perdido com a

73
MARGARIDA REBELO PINTO

Laura há 15 anos. O tempo não vale nada, o tempo não tem


razão, canta o Jorge Palma. Para a Laura, foi apenas uma
paixão dos 20 anos, daquelas típicas de viagem que depois
se apagam no tempo e na memória. Conheceram-se na pri-
meira vez que vim ao Brasil e a trouxe comigo. Ela tinha 22
anos e ele 35. Era alto, magro, tinha um cabelo lindo, cor de
avelã, comprido e encaracolado que ela penteava todos os
dias depois do duche. Conheceram-se no meu segundo dia
no Rio. Ao quarto dia mudou-se para o apartamento dele à
beira da lagoa Rodrigo de Freitas e deixou-me sozinha num
conjugado que alugáramos as duas no Leblon. Ditado brasi-
leiro a fixar: Amor de pica, quando bate, fica.
A Laura apaixonou-se perdidamente. Foi a única vez
que a vi louca por um homem, antes do Sérgio. Dizia que o
sexo era maravilhoso e ele também: lindo, inteligente, cal-
mo, tranquilo, um homem. Estudara na Sorbonne e vivera
em Nova Iorque. Brasileiro culto, conhecedor profundo de
Machado de Assis, que recitava A Tabacaria tão bem como
João Villaret. Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não pos-
so querer ser nada./ À parte isso, tenho em mim todos os
sonhos do mundo. E ela pasma, maravilhada, com todos os
sonhos de um grande amor de proporções épicas, transa-
tlânticas. A Laura nunca se interessou por literatura, mas
eu já lia Jorge Amado e Machado de Assis, a literatura foi a
base da nossa amizade. O Marcelo obrigou-me a comprar a
obra completa de Clarice Lispector, gesto pelo qual ainda
hoje lhe sou grata. Amava Flaubert tanto como eu. A pai-
xão entre eles foi intensa e com fim à vista, a nossa amizade
tornou-se séria e eterna.
A Laura regressou contrariada a Lisboa, dividida entre
a paixão transatlântica e a vida organizada: trabalhava na

74
MARIANA, MEU AMOR

Antena 1, para onde voltou, retomando a rotina. Pouco


tempo depois conheceu o Sérgio, viu nele qualquer coisa
que nunca vira em nenhum outro homem e, para grande
espanto do mundo, ficou à espera de bebé e casou grávida,
linda, sem barriga e com a expressão mais feliz que alguma
vez vi numa mulher.
O Marcelo nunca mais lhe perdoou. Pergunta sempre
por ela, com um sorriso triste, que, curiosamente, são
muitas vezes os sorrisos mais belos. A Laura chama-lhe o
Dramático. As pessoas nunca ficam no mesmo lugar quan-
do as relações acabam. Uma vira as costas e a outra fica a
ver a outra a ir-se embora. O amor raramente é um lugar
justo.
A tristeza dele aproximou-nos. Dava-me pena ver aque-
le homenzarrão com um metro e noventa sofrer pela bai-
xinha atrevida que lhe virara a cabeça. Lá está, é o meu
lado de dengosa natural, salvadora do mundo, amiga dos
coitadinhos, como diz a Patrícia. Escrevíamo-nos com re-
gularidade por mail e ele perguntava por ela. Não percebia
como é que em tão pouco tempo a paixão se apagara e
fora substituído como um pneu sobresselente. Nunca lhe
consegui explicar que ele era o pneu sobresselente da vida
dela e que o pragmatismo de Laura estaria sempre acima de
qualquer sentimento. O Marcelo chegou a equacionar vir
a Lisboa várias vezes, mas consegui convencê-lo a desistir.
Para quê? Ela já tinha a cabeça, o coração e o corpo noutro
lugar. Escolhera outra vida.
O Marcelo demorou anos a perdoar-lhe. É um homem
inteligente e com bom coração, a estima e o respeito preva-
leceram. E a nossa amizade fortaleceu-se com o tempo e a
distância. Nunca mais lhe conheci uma namorada. De vez em

75
MARGARIDA REBELO PINTO

quando mencionava um caso ou outro, mas pouco tempo


depois deixava de falar no assunto. Acredito que foi per-
dendo a fé no amor e agora talvez já nem sinta a falta de
alguém. Uma pessoa habitua-se a tudo, mesmo ao que à
partida lhe parece impossível de suportar.

Folheio um dos livros que trouxe sobre a freira da auto-


ria de Alice d’Oliveira, Vida Amorosa de Sóror Mariana,
uma edição de 1944, com a capa a desfazer-se e as folhas
amarelecidas pelo tempo. Um tempo em que se usavam os
apóstrofos nos nomes e a palavra Soror ainda levava acento.
Senhores, apraz-vos ouvir a singela história de Mariana, a
monja portuguesa que pecou e se perdeu por amor, se res-
gatou por meio de penitências e a quem muito se perdoou
porque muito havia amado. Então sabei que há longes tem-
pos viveu em Beja, nobre cidade do reino de Portugal, no-
bre ambicioso, Dom Possimando, que só pensava em juntar
dobrões de oiro e em criar um grande morgadio. O fidalgo — a
quem também chamavam D. Francisco da Costa Alcoforado —
morava num opulento palácio que tinha uma capela, tre-
ze casas de soalho e grandes celeiros e adegas tão cheios
de trigo, de azeite e de vinho, que era um louvor a Deus.
A riqueza do pai de Mariana era inversamente propor-
cional à sua generosidade. Mas deu às filhas uma boa educa-
ção, porque as três aprenderam a língua francesa e o gosto
pela leitura foi cultivado com uma biblioteca de livros raros
doada por um tio erudito. Terá sido entre esses livros que
Mariana vibrou com a tragédia de Tristão e Isolda, interio-
rizando o mito do amor amaldiçoado pela guerra? E havia,
naqueles tempos, outra forma de viver o amor romântico
que não a do sacrifício, da abnegação e da ausência?

76
MARIANA, MEU AMOR

São os primeiros amores que nos marcam, tanto como


os primeiros livros que lemos ou as primeiras músicas que
ouvimos. Se o meu primeiro livro não tivesse sido O Meu
Pé de Laranja-Lima e se as primeiras músicas que aprendi
de cor, ainda sem saber ler nem escrever, não fossem da
bossa-nova, provavelmente não seria tão ligada ao Brasil,
para onde viajo agora, que as portas do teu coração parecem
ter-se fechado, Dom Possimando do século xxi. O nome
assenta-te como uma luva porque, quando decidiste o que
querias, nem sequer fui consultada. Não houve cimeiras
nem negociações. O muro levantou-se e já nada havia a
dizer.
A vida é feita de portas fechadas. E de armadilhas. E de
todas as coisas que podiam ter acontecido e nunca aconte-
ceram. A vida é isto: anos depois, eu precisava de sair de
Portugal e pedi ao Marcelo para me receber. É para isso
que servem os amigos, não é? E aqui estou eu, à espera
que ele acorde, como faço quase todos os dias, por uma ra-
zão ou outra, porque nunca aguento muito tempo na praia.
Trabalha de noite e dorme até tarde. Desde que cheguei só
jantou comigo uma vez. Está a ensaiar duas peças ao mesmo
tempo que vão estrear-se com uma semana de diferença.
Olho para a vista sobre a baía do Leblon e de Ipanema e
deixo-me embalar pelo som do mar. O apartamento é no
quarto andar, mas como já é a meio da colina, parece mais
alto. A vista é um consolo e a música das ondas acalma-me.
Há dez anos tinha medo de sair de casa e de levar com
uma bala perdida enquanto não passava um táxi. Depois
da grande limpeza feita pela Polícia Militar no tempo de
Fernando Henrique Cardoso, o morro pacificado ficou na
moda. Agora transformou-se em atracção turística, tem

77
MARGARIDA REBELO PINTO

hostels e um hotel, e europeus a viver lá. O morro do


Vigidal é uma espécie de tubo de ensaio humano, um mini-
laboratório que mostra como o Brasil é um lugar estranho,
do qual se esperam sempre transformações, que depois
nunca acontecem. Veremos o que sucede quando forem os
Jogos Olímpicos.
Não tenho medo de andar sozinha pela cidade. Temo
que já me tenhas esquecido. Não me importo que durmas
com outras porque, se o fizeres, tenho quase a certeza de
que terás saudades minhas. Impossível não teres. A pele
é o maior órgão do corpo, tem uma memória que nunca
mais acaba. O corpo humano tem aproximadamente dez
triliões de células. Agora imagina que todas têm memória.
O nosso sexo era maravilhoso porque estávamos apaixo-
nados, e o amor muda tudo. Sobretudo o sexo. E quando
estás nesse lugar, é difícil saltar para outro. Não queres.
Auto-encarceras-te. És outra vez um escravo do tempo do
Império, transportado como carga da tua aldeia perdida
num lugar sem nome nos confins do continente africano
por um navio de esclavagistas, traficantes do teu destino.
Ficas assim durante algum tempo. O tempo que for preciso
até conseguires reagir.
Às vezes ainda me sinto nesse lugar. O mesmo onde
Marcelo ficou há 15 anos quando a Laura lhe ligou para
o telefone de casa e o informou de que se apaixonara por
outro homem, assunto em relação ao qual, como é habitual
nela, não tinha a menor dúvida. Ele ainda hoje comenta
essa frase da Laura, sem a menor dúvida, disse-lhe, para
não lhe dar margem nenhuma. Repete-a de forma enfáti-
ca, elegante, usando a auto-ironia para se proteger e tornar
tudo mais leve. E isso faz-me sorrir e sentir-me grata por

78
MARIANA, MEU AMOR

ter preservado a nossa amizade, apesar da decepção que a


Laura lhe impôs.
A nossa amizade fortaleceu-se com o tempo, alimen-
tada por visitas posteriores dele com amigos a Lisboa e
minhas ao Rio, conversas de skype e trocas de livros por
correio. O Marcelo engordou e perdeu todo o cabelo que
tinha. Usa óculos e continua muito carismático. As mu-
lheres são loucas por ele. É muito espiritual, medita todos
os dias, venera o Yogi e tem fotos do guru espalhadas pela
casa. Machado de Assis com Yogi, só mesmo no Brasil, a
terra de todas as misturas, de todos os mistérios, de todas
as loucuras. E, no entanto, sinto-me estranhamente calma
aqui. Vou para a praia e o meu olhar perde-se no horizonte
enquanto observo distraída os surfistas de pele bronzeada
e corpos perfeitos. Alguns arriscam cruzar o olhar comigo,
mas não os vejo, as ondas desenhadas confundem-se com
os pés descalços e poeirentos que se cruzam com os meus,
enquanto caminho com os olhos postos no calçadão. Não
vejo nada, não quero ver. Só quero contemplar o azul do
mar e o bater das ondas, fazer uma caminhada ao final da
tarde do Leblon até ao Arpoador, de ténis e passo rápido, e
voltar, sozinha, em silêncio, rodeada de estranhos.
Existe um conforto inexplicável em sentir-me invi-
sível. Estou sozinha no mundo, este momento é só meu.
Por instantes, não preciso de nada nem de ninguém. Subo
ao Arpoador e fixo o oceano, Copacabana à esquerda e a
baía de Guanabara. Não quero falar, nem ouvir ninguém.
Consigo baixar o volume do ruído em meu redor dentro
da minha cabeça, a mistura do linguajar poliglota que me
rodeia desaparece. Quero sentir-me só comigo. Com a mi-
nha respiração, a minha memória, os meus olhos e o meu

79
MARGARIDA REBELO PINTO

coração a bater devagar. Não quero que ninguém me veja


nem me toque. Tenho o coração no estaleiro, preciso de me
manter sossegada.

80
6.

Já estive várias vezes em guerra contra a tristeza, nada


disto é novo para mim. Vou mudando de táctica. Uns dias
zango-me com a vida, outros contigo, outros comigo. Os
melhores dias são aqueles em que estou em paz, mesmo
que sinta cá no fundo a tristeza a roer-me as entranhas.
É pior quando sobe ao coração e o faz disparar, ou me do-
mina o espírito como um invasor implacável. O pensamento
deve ser um hóspede do espírito e não o seu dono. Pensamento
hindu que o meu amigo Márcio partilhou comigo ontem,
enquanto jantávamos no café da Livraria Travessa, em
Ipanema, que responde pelo nome de Terrazza Lado B.
O Márcio é jornalista, fizemos uma reportagem juntos
há alguns anos, aquando da expulsão dos traficantes do
Vidigal, e ficámos amigos. Não é um homem bonito, mas
tem um je ne sais quoi de adorável. Nunca houve tensão
entre nós, mas sempre houve mimo. Chama-me Alicinha
desde o primeiro dia e faz muitas metáforas com o meu
nome, misturando os episódios da minha vida com as pe-
ripécias e as personagens da Alice mais famosa do mundo.

81
MARGARIDA REBELO PINTO

— Você ainda está caindo no poço, meu amor.


— Há seis meses? — argumentei, desesperada.
— Sim. Mas não foi atrás do coelho, não. Foi atrás de
um garoto que te ama e morre de medo de você.
— O Pedro não é um garoto, é um advogado brilhante,
pai de família e vai fazer cinquenta anos.
— Isso não quer dizer nada. Eu tenho quarenta e sete,
também sou pai e, olha lá, sou muito garoto em muitas
coisas.
— Medo? Mas que medo? Nunca entendi esse medo
que os homens têm das mulheres.
— Homem que é homem tem medo. E se ama muito,
tem pavor. Você é um assunto sério, querida. Ele é feito de
regras, de leis e de rotinas, você é toda liberdade e roman-
tismo. Você virou a cabeça do cara.
— E por isso construiu o Muro de Berlim.
— Isso. Ele está tentando se proteger.
— Mas você acha que ele não gostou de mim?
— Ele te amou, meu bem. Esse é que é o problema.
Alice, você é linda e inteligente, você é uma revolucionária
mascarada de deusa, o vosso caso foi pior do que entrar na
casa dele metida de assaltante, tá entendendo o que eu
estou te falando? Porque em você ele não manda em nada.
O amor tem dessas coisas, ninguém manda. E o fato de
saber que não manda nada provoca um medo imenso nele.
— Mas eu só me apaixonei por ele… — respondo, já
com sentimentos de culpa.
— Então fica mansa. Se ele te amar, ele volta. É tran-
quilo.
— Aqui, no Brasil, para vocês, é tudo tranquilo — res-
pondo, com a voz embargada —, gosto muito dele, queria

82
MARIANA, MEU AMOR

muito que ele fosse o Homem que Eu Escolhi Para Ficar


Comigo. Mas não posso fazer nada.
— Pode sim. Pode seguir a sua vida e confiar que o me-
lhor vai-te aparecer.
— Tens razão. Quando não há nada a fazer, o melhor é
usar essa impotência como forma de libertação.
— Que impotência, mulher? Ele precisa de tempo
e você de espaço. Não foi para isso que veio para o Rio?
Então dê tempo e espaço na sua vida, dê tempo e espaço a
ele para sentir a tua falta, respire, relaxe, saboreie. Ele está
escondido em algum lugar. Quem sabe, mais no fundo do
poço do que você? Não pense nele, não vai adiantar nada. E
fale com ele, não faça esse braço-de-ferro. Pergunte como
está, se está tudo bem. Tenho a certeza de que ele vai te
responder.
— OK, vou fazer isso. Também estou cansada de ser
orgulhosa. Não tenho o menor talento. Nunca consigo. Sou
fraca.
— Não aguentar o silêncio é uma qualidade humana,
querida, não tem nada de fraqueza. É só delicadeza. Procure
a paz. Era o que eu mais queria. Uma mulher que me desse
paz. Um dia conheci a Mirna e me apaixonei direto. Sabe o
que quer dizer Mirna? Paz. A gente sempre encontra o que
é o melhor para nós. A vida é grata para as pessoas genero-
sas. E sábia para as pessoas sábias. Fique mansa, Alicinha.
Os ventos vão mudar. Você devia ficar mais tempo no Rio.
Fica um pouco mais. Muda o teu mapa emocional. Se for-
talece aqui. Eu ajudo.
Pedimos mais um chá e passamos o resto do serão a falar
de livros, de viagens, de poetas, de sonhos e de projectos
até a livraria fechar.

83
MARGARIDA REBELO PINTO

— Agora só me falta uma amiga que me leve às compras


e que tenha tempo para mim — disse-lhe.
— Já encontrei pra você, querida — respondeu. — É a
Mirna. Eu vou passar o seu celular para ela e amanhã mesmo
ela te liga.
Apanho um táxi para casa. Ainda bem que me abri tan-
to com o Márcio hoje. Forrou-me a alma a papel de seda,
os amigos têm esse efeito. Fiquei apaziguada com aquele
momento de partilha. Sinto-me abençoada por ter amigos
tão queridos do outro lado do mundo. O Márcio está certo.
Ficar mansa. Eu sou mansa. Não sou da guerra. A minha
guerra é comigo, contra a minha tristeza, contra os sonhos
que construo sozinha, imaginando que te vais magicamente
encaixar neles.

Nessa noite dormi um sono tranquilo e sem sonhos, mas


não te iludas. Não foi a conversa com o Márcio que me
apazigou, mas o poder das benzodiazepinas. Trouxe uma
lamela, tenho-as contadas, para o caso de precisar de tomar
um Victan por noite. Ando há meses nisto. Às vezes consi-
go deixar de tomar, mas quando a ansiedade dispara e me
rouba horas de sono, mais vale poupar-me ao sofrimento
de querer desesperadamente dormir e não conseguir. Na
manhã seguinte despertei com o toque do meu telemóvel
brasileiro.
— Oi, Alice, tudo bem? Daqui é a Mirna. O Márcio me
falou muito de você, quer pegar uma praia ali no Posto 12?
O Márcio é o maior.
— Que boa ideia, vamos sim.
Já passava das 11 da manhã, o sol estava a pique,
37 graus na rua. Apanhei um táxi. Alugámos cadeiras e

84
MARIANA, MEU AMOR

chapéu-de-sol. Bebemos água de coco e comemos espetadas


de camarão, salada de frutas e empadinhas. Mirna é actriz,
pequenina, perfeita, olhos grandes, cabelo ondulado cas-
tanho-claro, sorriso rasgado e bunda empinada. Um amor.
Está muito apaixonada. A nossa conversa ganhou rapida-
mente uma intimidade rápida e confortável. O Márcio deve
ter-lhe dito que eu precisava de uma amiga para desabafar,
por isso o assunto foi directo aos homens.
— Ainda bem que eu comi muito filho da puta, cafajes-
te e canalha antes de encontrar o Márcio. Caso contrário,
não sabia dar valor ao que tenho.
— Filho da puta, cafajeste, canalha, não são tudo a mes-
ma coisa?
— Não, querida. Filho da puta é todo o cara que te
dá cantada sem gostar de você. O cafajeste te dá cantada
e depois desaparece. Pode até ficar um tempo, mas ou
assume ou some. O canalha é aquele tipo que te promete
o mundo, te faz pensar num futuro a dois, você chega a
mudar a sua vida por ele, coisas logísticas como aluguel,
por exemplo, e depois de muita promessa e castelos no ar,
desiste ou desaparece, ou as duas coisas.
— E o que é um homem que não é nada disso, que tem
bom coração e se apaixonou, mas não quer largar a família
porque prefere ficar com os filhos?
— É um cara confuso, com boas intenções e bom co-
ração. Só isso. Não o julgue nem o odeie. Tudo o mundo
pode-se enganar.
— Então o que é que faço?
— Mergulha no mar e esquece a tristeza. Lava a alma e
limpa seu coração. Se alimenta e se fortalece. Iemanjá vai-te
ajudar. E eu também. E trabalhe, querida, se ocupe.

85
MARGARIDA REBELO PINTO

— Eu sei. Trouxe um livro para fazer, sobre uma freira


que escreveu cinco cartas de amor, mas não estou com ins-
piração.
— A inspiração não existe, querida. Já dizia o Picasso,
que a inspiração te apanhe a trabalhar. Mas talvez você ago-
ra precise de descansar um pouco. Relaxe. Não deixe a tris-
teza alimentar a tristeza. Primeiro se livre disso, e depois
devagar, vá domando esse livro. Vai ser uma luta difícil, mas
você vai vencer.
O seu sorriso era tão querido que lhe dei um abraço
imenso e ficámos um bom bocado agarradas na praia. O
Brasil é isto: gente quente e carinhosa, sem medo de falar.
Dizem tudo: puta, caralho, fodeu, vai tomar no cu, veado,
canalha, boiola, bicha louca, como nós dizemos parvos,
estúpido ou malcriado. São assim, livres e soltos. E o que
for, será. Acho que já estou a apanhar a onda.
Nessa noite vamos ver o musical do Cazuza. É bem fei-
to, fiel à vida do cantor, excepto na personagem do Ney
Matogrosso. Mostram-no afectado e cheio de tiques. O
Ney é o brasileiro mais sóbrio que conheci em toda a minha
vida. Não cheguei a conhecer o Cazuza. Era lindo. Num
ataque de nostalgia, envio-te uma música dele. Nunca te
perguntei se gostas de Cazuza. Mas ouvias muita música
brasileira, por isso pode ser que gostes. Morte trágica, me-
diática, pública, horrível, quando a sida matava em meses.
Garoto de praia, rebelde, sexo, drogas e rock & roll. Filho
do papai e da mamãe. O pai fundou a editora Som Livre,
onde ele gravou quando fez a banda Barão Vermelho, e
depois a solo. A mãe era cantora.
Às vezes penso que as mães portuguesas mimam os fi-
lhos demais, mas isso é para quem não conhece a cultura

86
MARIANA, MEU AMOR

brasileira. Aqui é muito pior. Elas não os largam. Não admira


que haja tanto gay neste país. Mas aqui o índice de felicidade
é mais elevado do que na Europa. Aqui, é quase proibido
por lei ficar triste. Até parece que se paga mais impostos
só por isso. Estar triste no Rio é como ir à praia e não dar
um mergulho. Apesar de o mar puxar aqui no Leblon e
em Ipanema. Saio ofegante, o coração fora do peito, mas
regenerada. É como nas relações, não há nada mais fácil
do que ir para fora de pé, e nada mais difícil do que voltar
a terra. É o que estou a tentar há meses. E vou conseguir.
Tudo passa.
— Virão outros — diz a Mirna, enrolando o seu braço
no meu com carinho.
— Claro que sim, querida, eu sei. Só queria que já
tivesse passado.
— Quem sabe o cara cai nele, morre de saudades suas
e tenta voltar?
— Isso é impossível, não consigo passar mais de uma
semana sem comunicar com ele. Ou tentar comunicar, por-
que ele nem sempre responde. O Márcio falou em tempo e
espaço. Espaço sempre soube dar, mas com o tempo é que
não sei lidar, não sou boa nisso. Cortar laços para mim é a
coisa mais difícil do mundo. É como se me cortassem os de-
dos. Uma parte de mim fica com a outra pessoa. Sinto-me
diminuída. E então, como sei que vou sofrer muito, tento,
tento, faço o luto em presença, até ao dia em que tudo se
dissipa naturalmente. Não consigo cortar o mal pela raiz.
Arrancar do peito. Como é que se arranca do peito quem
você mais quer que viva lá?
— E então prefere ficar velando defunto de corpo
ausente, Alice? Tem de conseguir acabar com essa agonia.

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MARGARIDA REBELO PINTO

Não se apresse, mas defina esse objetivo. Em pequenas coi-


sas que a façam feliz: nadar, ler, escrever, conhecer pessoas,
você sabe. E quando acordar, não dar ao cara mais de dois mi-
nutos do seu pensamento. Um já é demais. A vida não pára,
como cantava o Cazuza, lembra? Ninguém espera por nin-
guém. Não tem por que esperar. Não existe fundamento
nisso. Pode até ser poético, mas não te serve para nada. Ou
quer envelhecer de repente, antes de tempo? Não faça isso
a você mesma. Pula fora, porque se o cara pulou, não há
nada a fazer.
Afinal, a razão pela qual é tão difícil esquecer alguém é
puramente química. Esquece o coração enquanto entidade
amorosa abstracta, poderosa e prevalecente, tudo se passa
nas tuas células, no teu cérebro e na forma como ele rea-
ge ao medo e ao perigo. Choras, perdes o apetite e peso,
dormes muito ou nada, perdes o interesse por sexo e a
capacidade de concentração, tens dificuldade em organizar
as actividades quotidianas. Acontece a todos, faz parte do
processo. Esta é a primeira fase do desespero. Depois, com
o tempo, todos estes sintomas de desespero começam a
combinar-se com a resignação, o cérebro diminui a produ-
ção de dopamina. E os níveis decrescentes de dopamina
estão associados à letargia e à tristeza profunda que podem
ser confundidas com depressão. Mas nem todos sofremos
de igual forma e com a mesma intensidade, embora, em
bom rigor, não exista uma máquina que consiga medir até
que ponto vai o nosso sofrimento. Acredito que vai até
onde o deixarmos. Há pessoas que precisam de ir ao fundo
e levar literalmente com a porta na cara para desistir, ir a
zeros e acordar no dia seguinte de cabeça erguida. Claro
que nunca é no dia seguinte, pode demorar alguns dias ou

88
MARIANA, MEU AMOR

semanas. E na verdade só nos sentimos a salvo quando acre-


ditamos estar longe de tudo o que vivemos, quando aquela
pessoa que foi tudo para nós volta a dissolver-se na amál-
gama indistinta de pessoas que nos rodeiam.
As feridas demoram tempo a fechar, mas fecham, por-
que é uma questão de sobrevivência. Quem tem ligações
afectivas seguras com a família e amigos supera mais de-
pressa. Quem consegue encontrar no sexo puro e duro uma
forma de alívio atinge mais facilmente um estado de de-
sapego daquele que amou. É a velha historia da ferida de
cão que só se cura com o pêlo de outro cão. Viajar pode
ser uma solução, mas não é para esquecer o outro, é para
apreciar novas realidades e olhar para o mundo com outros
olhos. O mundo está cheio de possibilidades, é recomendável
inverter o funil e abrir para o mundo, mantendo o coração
blindado. Conhecer pessoas, conversar, trocar ideias, dar
abraços e, se der vontade, praticar sexo sem apego, só pelo
prazer de dar e de receber prazer. Tentar compensar a per-
da de alguém que foi importante com alguém que se torne
importante é o maior disparate que se pode fazer. Esquecer
um grande amor com outro grande amor só nos vai deixar
mais frágeis, porque se as coisas correrem mal, vamos ter
trabalho a dobrar. Esquecer alguém é uma tarefa árdua e
longa, mas não pode ser uma tarefa perpétua.

O tempo, a vida e a realidade vão domesticando a nossa


vontade. O sonho perdido é substituído por uma realidade
estimulante e libertadora. A tristeza vai-se apagando dos
nossos dias, aos poucos voltamos a nós e quando olhamos
para trás, se formos fortes, rimo-nos dos disparates que
fizemos, das mensagens inflamadas que escrevemos, de

89
MARGARIDA REBELO PINTO

tudo o que tentámos fazer para que voltasse. Nada serviu


de nada, a não ser para perceber que não vale a pena insistir,
correr atrás, lutar por quem não quer estar ao nosso lado.
Aprender a sair à francesa, antes que nos mandem
embora, não é uma arte ao alcance de todos. Mas podemos
tentar perceber como é eficaz para a nossa própria protec-
ção em vez de dar um tempo ou esperar que o outro mude
de ideias. O outro que faça o que entender, o que ele fizer
ou quiser fazer já não é mais da nossa conta. Custa? Custa
muito. Dói? Dói imenso. Dói todos os dias no peito, nos
olhos, nas pernas pesadas, no coração que se sente cansado,
na cabeça que não desliga, no espírito aplacado pela dura
realidade de que o outro, que vimos como um par, simples-
mente está noutra. Mariana ficou fechada, eu atravessei o
mar. Mariana escreveu cartas, eu vou mandando WhatsApp
e músicas. Mariana esperou e desesperou, conformou-se e
sossegou. Eu ainda não, mas estou a fazer o meu caminho.
Cada dia espero menos de ti.
Tudo passa, e diz a sabedoria popular que só há dois
tipos de enfermidades, as que matam e as que se curam
sozinhas. Nem é bem assim, porque é necessário um esfor-
ço para não olhar para trás, para esquecer e seguir em fren-
te, mas a vida ajuda, a vida empurra, a vida vai-nos dando
pistas para seguirmos outros caminhos onde com o tempo
seremos mais felizes.

90
O
brigada pelos mimos, minha doce Benedita. Sabes
que nunca fui dada às artes da culinária nem da
doçaria, mas nos últimos anos tenho descoberto novos
prazeres no paladar. Agora, sempre que posso, regalo-
-me com um docinho, e quando os trazes às escondidas,
ainda me sabem melhor. És uma boa menina, afinal não te
custa nada, e lá nas cozinhas todas as irmãs já conhecem
o meu vício, que não chega a ser pecado, se for praticado
com parcimónia e em perfeito juízo dos riscos em que
me meto. Não me sinto pesada, sou demasiado inquieta
para acumular gorduras nas carnes. Queres um para ti?
Come, filha, não te acanhes. Assim escreves o que te vou
ditar com o estômago mais consolado. Bendito açúcar,
essa raridade que o povo nunca provou e que por aqui
vai havendo em quantidades suficientes para agradar ao
governador e aos juízes de fora. Em havendo ovos com
fartura, que os temos, graças a Deus, ninguém ganha ao
Convento da Nossa Senhora da Conceição nos doces
conventuais.

91
MARGARIDA REBELO PINTO

As nossas iguarias são tão deliciosas que todas as


gentes que os provam, acabam lambendo os beiços como
as bestas e os dedos no final, suspirando por mais. Mas
agora chega de conversa fiada, vamos ao trabalho, pois
muito tenho para te contar da minha história e da história
de nosso bem-amado reino d’aquém e d’além-mar.

Quis Deus Nosso Senhor que o meu nascimento se


desse no mesmo ano da Restauração, em 1640, quando
o duque de Bragança, apoiado pelo conhecido grupo dos
conjurados, 40 homens de nobreza e valentia, reclamou o
trono de Portugal. Conta-se que vários deles foram a Vila
Viçosa convencê-lo a cumprir tal demanda. Entre os mais
importantes e influentes contavam-se cavaleiros de gran-
de gabarito, como Pedro de Mendonça Furtado, Antão de
Almada, Francisco de Melo, marquês de Ferreira, também
ele um Bragança, e o velho Miguel Almeida, da nobre casa
de Abrantes. Poucas gentes sabem que só assumiu tal de-
manda depois de consultar sua querida e amada esposa,
Dona Leonor de Guzmán, mui nobre senhora, descendente
de uma das casas mais poderosas de Espanha, com que
el-rei Filipe lhe arranjara casamento no intuito de evitar
que o duque se enchesse de ambições. Mas a Guzmán,
que Deus levou para junto Dele há quase dez anos, era
mulher ambiciosa e determinada. Ouve bem o que ela
disse: Mais vale rainha por um dia do que duquesa toda a
vida, proclamou a quem quisesse ouvir nas cortes. Nobres
e povo não mais esqueceram tal frase de coragem e de
valor. E assim foi. Há mulheres que comandam o mundo.
Não são muitas, mas quando têm poder e meios para
meter as mãos à obra, nunca deixam nada pela metade.

92
MARIANA, MEU AMOR

Foram centro de operações três palácios, onde esses


bravos homens se reuniam para que o plano não falhasse,
de forma secreta, não fosse o Diabo tecê-las, e tais inten-
ções chegarem aos ouvidos da então regente, a duquesa
da Mântua, e do secretário de Estado nomeado por el-rei
Filipe, Miguel de Vasconcelos. Eram esses palácios o de
Jorge de Melo, numa terra junto ao Tejo chamada Xabregas,
o dos duques de Bragança, no bairro do Chiado, e o palá-
cio de Almada, de Antão de Almada, na Praça do Rossio,
lugares de grande encanto e beleza, que os meus olhos
nunca vislumbraram, senão em gravuras de livros que
desde cedo folheava com avidez na biblioteca de casa de
meus pais.
Deves perguntar-te como sei tanto sobre tais assun-
tos que são do comum interesse dos homens e não das
mulheres. Foi meu pai que me relatou tudo quando era
pequena, certamente desejoso de ter um filho varão, que
nasceu depois de mim. E ficas a saber que também o
senhor meu pai, além de executor do almoxarifado de Beja,
procurador das Cortes, coudel-mor e juiz de fora, também
pertenceu à Ordem de Cristo e foi destemido guerreiro.
Defendeu Moura durante a Guerra da Restauração, que
findou no ano seguinte a eu ter conhecido o meu amado,
sustentando a cidade às suas custas durante seis me-
ses. E foi ele que me contou que Miguel de Vasconcelos
encontrou a morte defenestrado por uma das janelas da
Torre de Belém.
A guerra prolongou-se durante quase 30 anos, mui-
tas mulheres nobres procuraram por isso protecção em
conventos, e o nosso não foi excepção. Apesar da apa-
rente calmaria, os ventos da guerra sopraram dentro dos

93
MARGARIDA REBELO PINTO

muros. Como é natural, as religiosas tomaram posições


próximas das de suas famílias. Alguma nobreza tinha-se
acomodado ao domínio espanhol; outros aspiravam ao
regresso da independência. Como bem sabes, sempre
fomos assistidas em trabalhos dos conventos por fran-
ciscanos, que eram adeptos do duque de Bragança. Em
1642, a então abadessa Dona Catarina Henriques, num
acto de inteligente prudência e querendo cuidar de todas
nós o melhor que sabia, escreveu a el-rei D. João IV pe-
dindo protecção. El-rei respondeu prontamente e de seu
agrado. Mesmo assim, antes que a guerra findasse, para
que não fôssemos vítimas do jugo filipino, caso a cidade
caísse nas mãos do inimigo, era necessária a protecção
de Roma. E foi João Ponte da Silva, procurador do mos-
teiro em Roma, que conseguiu junto do papado os privilé-
gios que vieram agraciar o nosso mosteiro por parte dos
três papas que governaram o Vaticano durante a guerra:
Urbano VIII, Inocêncio X e também Alexandre VII.
Sempre estivemos protegidas, é certo. Nunca vimos os
horrores da guerra, e talvez por isso tenha eu construído
em minha imaginação poética e pueril um ideal de bra-
vura e de glória que não incluía o sangue e a morte. Meu
irmão Baltasar serviu com garbo Armando Frederico de
Schomberg, e foi no campo de batalha que se fez amigo
de Noël, conde de Chamilly e de Saint-Léger, que trouxe ao
convento depois de o ter avistado da janela a que chamam
a Janela de Mértola, por estar nessa direcção orientada.
Meu pobre irmão nunca imaginou que Noël me iria
invadir o corpo e roubar o coração, ou será que foi o
inverso? Agora que recordo a primeira vez que o vi, sinto
uma palpitação leve e, ainda assim, mais forte em meu

94
MARIANA, MEU AMOR

peito. Não era alto, nem bonito, embora o seu sorriso ale-
gre e os seus olhos azuis brilhassem como duas estrelas.
A beleza pode ser uma forma de desgraça, e os homens
não se querem belos. Põe tento em el-rei D. Sebastião,
que possuía uma beleza frágil e feminina; perdeu-se nas
brumas de Alcácer Quibir e com ele sumiram tantos e tão
valentes nobres, que a casa de Habsburgo pela mão de
el-rei Filipe logo deitou mão ao nosso reino. E foram pre-
cisos 60 anos e mais quase 30 de guerra para voltarmos
a ser Portugal na paz com Deus e com o mundo.
A beleza só afecta os homens, já de si fracos e vaido-
sos, sempre prontos a mostrar ao mundo tudo aquilo de
que são capazes. Uns pavões emproados, com os seus
leques em arco. Não se lhes pode dar confiança, pois é
certo que se desinteressam. Claro que para ti nada disto
tem mister, não entendo porque arregalas os olhos sem-
pre que te falo deles. Será que a minha desventura des-
perta em ti alguma luxúria? Não te deixes levar pelo que te
conto, Benedita, não te metas em trabalhos, põe cuidado
no que te digo. Vale mais encharcares-te em doces das
nossas cozinhas — reconhecidos em todo o reino como
dos melhores que há, não só do nosso Alentejo, como de
todo o território: queijadas, tortilhas de mel, ovos reais,
queijinhos do céu, lampreias de ovos e outras habilida-
des — do que entregares o corpo aos prazeres da carne.
Come e dorme, reza e canta, e escreve o que te digo. Vale
mais meia dúzia de trouxas-de-ovos ou de papos-de-anjo
do que um beijo de homem que te promete o mundo e
depois desaparece. Contenta-te com o que a vida te dá e
não queiras sonhar com o mundo, ou viverás prisioneira
dentro da tua revolta como uma condenada.

95
MARGARIDA REBELO PINTO

O maior trabalho é deixar de amar alguém a quem


confiámos o nosso coração. É como sofrer um castigo
por um mal que nunca cometeste e, em virtude de tal
infortúnio, seres obrigada a trabalhos forçados. Carregar
um coração partido pesa tanto quanto vinte alqueires de
trigo. Ou talvez mais, pois as dores da tristeza não se
podem medir. O que é invisível dói sempre mais, como as
doenças que nos devoram as entranhas ou nos atacam
a memória ou o juízo. Uma pessoa pode ficar doente de
amor e nunca mais conseguir curar-se. Ou pode vencer a
dor e dobrá-la, queimando-a, como um ferreiro malhando
em ferro forjado até a moldar à forma que lhe quer dar,
que é como a queremos lembrar. Noël foi marechal, che-
gou a governador, casou com uma mulher feia, gorda e
mais velha do que ele, ignoro se a sua ambição lhe trouxe
felicidade. No entanto, enquanto mulher que sentiu nas
carnes o prazer terreno e pecaminoso que a Igreja tanto
condena, ao mesmo tempo que deixa passar toda a sorte
de tonteiras cometidas sob seus tectos, quero acreditar
que Noël nunca me esqueceu.
O que acontece quando acreditas numa pessoa?
Pensas que tudo o que ela te diz é verdade. Acreditas em
cada gesto, em cada palavra. E pensas que ela é toda
como se mostra ser. Estás tão enlevada que nem cui-
das que as pessoas mostram apenas uma cara, aquela
que pensam que nos irá agradar, conquistar e derreter,
quando, em abono da verdade, se há tantas palavras di-
ferentes que significam amor, também tantos homens há
com muitas caras. Mas tu queres que seja tudo verdade;
não precisas de muitas provas, porque tudo o que mais
desejas é deixar-te levar por ela. Perdes as defesas, tudo

96
MARIANA, MEU AMOR

te parece tão claro, limpo e transparente. De repente, o


mundo é um paraíso ameno e tranquilo. Quando tudo
bate certo, acreditas que chegaste a um novo lugar onde
sempre quiseste estar, e começas a construir sonhos. É
apenas natural que o faças. Toda a gente gosta de cons-
truir sonhos, toda a gente deseja torná-los realidade. O
que estás a fazer é legítimo. Mas tens de saber se podes
acreditar. O tempo e o Outro irão dar-te essa resposta.
E se não for a que esperavas, tens de deixar de acreditar.
Acreditamos em Deus porque queremos. A ideia que
temos d’O Senhor não se altera: Ele é sempre Grande e
Misericordioso, Ele está sempre de braços abertos para
nos acolher, Ele é perfeito, eterno e indestrutível, sem
defeito nem mácula. Deus é o espelho de tudo o que
ambicionamos ser, o expoente máximo da criação, que
nos criou à Sua imagem, para com Ele aprendermos o
caminho para a Vida Eterna em paz e plenitude. Se acre-
ditares em Deus, Ele nunca te irá desiludir. Ao invés, se
acreditares num homem a ponto de o endeusar, é mais do
que certo que vais sofrer com tal despautério. Quando a
vida te encosta à parede, está a querer dar-te uma lição.
Tens de ganhar fôlego e discernimento para entenderes
o que te espera. Tens de conseguir ler na vida o que as
cartas não te dizem. O silêncio pode ser a mais forte
das respostas, percebes, querida Benedita? Na verdade,
há sempre uma resposta, mas pode ser tão dura que te
recusas a aceitá-la. Lá diz a sabedoria popular, o pior
cego é aquele que não quer ver. Nunca vi tudo tão cla-
ro como desde que comecei a perder a visão. É preciso
ter coragem para enfrentar a verdade. Mas quase nin-
guém quer saber da verdade. Pensa nos frades e outros

97
MARGARIDA REBELO PINTO

homens, livres ou casados, que aqui já entraram e que


deixaram filhos que foram mortos à nascença ou entre-
gues a familiares às escondidas. Ninguém quer saber da
dor destas mães a quem Deus proibiu a maternidade, mas
cuja carne desafiou a Lei Sagrada. Não te consigo contar
quantas mulheres vi sofrer de amor, por abandono, de dor
no coração e depois no corpo, os enjoos, a deformação
física, o apetite descontrolado, o desespero premente em
tentar esconder a sua condição. Nem quantas morreram,
esvaídas em sangue tentando tirar das suas entranhas a
semente plantada às mãos de parteiras assassinas. Ou
quantas morreram ou se deixaram morrer nas dores de
parto, sabendo que nunca poderiam amamentar os seus
próprios filhos. E aquelas que os mataram com as suas
próprias mãos para esconder o pecado das suas vidas.
Fecha a boca, Maria Benedita, senão ainda engoles
uma mosca, e sabe-se lá que maleitas esses seres trans-
portam em seus corpos imundos. É tal e qual como te
conto. O amor ao Senhor e a Devoção ao Divino nem
sempre calam os desejos da carne. Há quem tenha essa
fortuna, mas também há quem vista o hábito de dia e abra
as pernas de noite a homens que as visitam furtivamente
ou a outras mulheres que parecem tão castas como elas.
Imagina: tu estás aqui fechada comigo e ninguém
cuida do que fazemos. Estás incumbida de uma missão
secreta. Podes vir todos os dias e ninguém te pergunta
nada. Sabes porquê? Porque ninguém quer saber. Só te
pergunta quem não tiver nada a esconder, quem puder
responder com a verdade a quem lhe perguntar de volta.
A verdade tem sempre um espelho, somos nós, entendes?
Nós construímos uma verdade na nossa cabeça e é a

98
MARIANA, MEU AMOR

única que vemos. Mas se te olhares ao espelho, ainda que


ele reflicta imperfeições que não vês por defeito de fa-
brico, na verdade não sabes se o defeito está na imagem
ou em ti, entendes o que te digo? A verdade dói, por isso
nem todos sabem viver com ela. Mas no final, é sempre
a verdade que vence sobre todas as coisas. As mães que
mataram os seus filhos pagarão no Inferno os seus pe-
cados. E as que cometeram apenas o pecado da luxúria,
é mais do que certo que as espera um longo Purgatório.
Fui mais esperta, pois infligi a mim mesma um tempo de
Purgatório. Chorei, rezei e pedi perdão durante anos a
Deus até sentir que ele enfim me libertara. Sei que, quan-
do partir, o Paraíso espera a minha alma sem atalhos. E
é isso que te quero contar a seguir, por isso começa a
escrever o que daqui em diante te vou ditar.

99
PARTE III
7.

O s dias passam lânguidos e cada vez mais leves. Tudo o


que não quero é voltar. Lisboa está gelada e cheia de
ti. A minha casa é grande demais sem a tua presença, ape-
sar de ter sido breve. Afinal, consigo trabalhar em qualquer
lugar, tenho a vida facilitada. Sou uma globetrotter. Assim
que os editores dos jornais, televisões e revistas com quem
trabalho sabem que vou viajar, pedem-me artigos, reporta-
gens e entrevistas.
Hoje vou entrevistar o Ney Matogrosso. É fácil, sabes
porquê? Porque é amigo do Marcelo e por isso também
meu amigo desde a minha primeira estadia no Rio. Vou
lanchar a casa dele, despacho a entrevista em meia hora, ele
cede-me fotos recentes que ainda não foram publicadas na
Europa e passamos o resto da tarde a beber chá e a comer
pãezinhos de queijo e a pôr a conversa em dia.

A entrevista foi longa e intimista. Conversámos sobre


muitas coisas. Um bálsamo. É um homem inteligente, cul-
to, que gosta de receber com requinte e simplicidade, tenho

103
MARGARIDA REBELO PINTO

a certeza de que ias gostar de o conhecer. Nessa noite caiu


uma tempestade tropical que deixou a cidade num caos e,
de certa forma, me lavou a alma. Tenho dormido melhor e
já não acordo zangada nem contigo nem com o mundo.
Ontem recebi a confirmação da revista do Expresso que
aceitou a minha sugestão de entrevistar a Luísa Meneres,
actriz portuguesa que está cá a fazer uma novela para a
Rede Globo. Já a entrevistei várias vezes. Embora não se-
jamos propriamente amigas, temos uma óptima relação, o
que torna a entrevista fácil de marcar.
Encontramo-nos no Posto 10 porque ela mora em
Ipanema. Digo-lhe que não tenho fotógrafo, mas aqui é
tudo muito organizado, a Globo fornece o que for preciso às
suas estrelas. O Marcelo, que trabalhou dez anos na Globo
como realizador, diz que é como uma doença que destrói
as pessoas, mas a Luísa parece óptima. Está com 35 anos,
mas aparenta 28. É bonita, magra e tem um toque aristo-
crático, raro nas actrizes brasileiras. Vem com uma amiga
simpática e de porte militar, responsável pelo styling para
as produções de fotografia. Pouco depois chega o Bruno,
fotógrafo da Globo, típico garoto de praia, todo malhado,
calções de ganga pelo joelho, ténis de marca e uma T-shirt
colada ao corpo, cabelo despenteado com franja à Tintin
e barba bem aparada, olhos verdes, pele clara mas bron-
zeada. Simpático. Muito simpático. Talvez excessivamente
simpático, o que indicia outro tipo de interesse. Tudo bem.
Já estou cá há mais de uma semana, também vim ao Brasil
para me divertir.
No final da entrevista, a Luísa convida-me para ir pe-
tiscar qualquer coisa no Leblon. É quinta-feira, o melhor
dia para ir ao Jobi, diz-me. O Jobi é um bar mínimo e sem

104
MARIANA, MEU AMOR

graça que, por uma razão qualquer, está na moda há anos e


se tornou o epicentro da vida cosmopolita do Leblon. Tudo
passa pelo Jobi, quem quer ver e ser visto, é onde vai.
O Bruno continua muito simpático, atencioso, cavalhei-
ro, a lançar-me todo o charme que trouxe na mochila. Faz
perguntas sobre o meu trabalho, mostra-se interessado
pelas minhas histórias de repórter sem fronteiras que já
andou uma semana no deserto com uma tribo Masai, entre
outras proezas que incluem duas visitas à Faixa de Gaza
e várias idas a morros no tempo da limpeza dos militares
levada a cabo pelo presidente Fernando Henrique Cardoso,
de quem agora toda a gente afinal tem saudades, depois
do grande desastre que é a corrupção federal à volta da
Petrobrás, iniciada com o Lula e continuada com a Dilma.
E a propósito discutimos a lei da maioridade que permi-
te que miúdos de 15 anos assaltem e matem transeuntes
e turistas para lhes roubar desde as carteiras até às bici-
cletas, que a Polícia prende e a Justiça solta dias depois.
Contamos histórias e trocamos piadas Está fascinado com a
minha conversa, deve achar que sou a namorada do Tarzan,
ou uma super-heroína da Marvel. Eu também gostava de o
ser, mas acho que ele está só um pouco confuso. As tatua-
gens provocam sempre um certo frisson na rapaziada, isso
já se sabe, por isso levanto o cabelo e mostro-lhe as duas
borboletas atrás do pescoço para ele ver como sou radical.
Que lindo, comenta, visivelmente encantado. Sorri sem pa-
rar, está-se mesmo a ver no que isto vai dar. Quando ele se
levanta para ir à casa de banho, a Luísa diz:
— Esse cara quer-te comer.
Já está a falar à brasileira, disse na entrevista que o Brasil
é irresistível e que tudo o que tem de bom se entranha no

105
MARGARIDA REBELO PINTO

sangue enquanto o diabo esfrega um olho. O diabo está


em toda a parte aqui, acrescenta, tapando o microfone no
iPhone enquanto me pisca o olho. Refere-se obviamente
aos homens brasileiros. Está feliz com o trabalho e com a
vida boa de garota de Ipanema a quem corre tudo mara-
vilhosamente. O namorado dela acabou de chegar, outro
garoto de praia, amigo do fotógrafo, Caio. Meninos do Rio,
como lhes chama o Caetano Veloso. Calor que provoca
arrepio. Dragão tatuado no braço, calção, corpo aberto no
espaço. Coração de eterno flirt. Tal como na canção do
baiano. Além de bonito e simpático, o Caio é bem-educado.
Pergunta o que queremos tomar e vai ao balcão buscar as
nossas bebidas.
— E então? Não vais aproveitar? — pergunta a Luísa.
— Não sei. É giro e tesudo, mas tem ar de quem come
tudo.
— Faz o que te apetecer — responde a Luísa. — Se
fosse a ti, aproveitava.
— Tenho pelo menos mais dez anos do que ele.
— Por isso mesmo. É o futuro, amiga. O Caio tem menos
sete do que eu e nunca me senti tão amada e desejada. Eles
cá adoram mulheres mais velhas. No Brasil há muito dis-
to. São sexualmente muito evoluídos, sabem o que é bom.
Aproveita, Alice. Há quanto tempo não te divertes?
— Há meses. Estou de coração partido. Naquelas fases
em que ninguém entra lá dentro, sabes como é.
— Sei muito bem — responde a Luísa. — Estive seis
meses assim, até vir para cá. Depois conheci o Caio e tudo
mudou. Estou in love total.
— Que bom. Também estive, mas já acabou.
— Oh! Então?

106
MARIANA, MEU AMOR

— Era casado.
— Deixa lá. Acontece a todas. Faz parte. Vêm mais a
seguir. Vêm sempre.
Engraçado, a Mirna disse o mesmo. O mundo está cheio
de gente, talvez tenha chegado o momento de inverter o
funil e começar a viver outra vez.
O Bruno volta da casa de banho. Olha-me de alto a bai-
xo. Olha-me assim desde que me viu, é um sedutor pro-
fissional. O Caio chega com cervejas para todos. Depois o
Bruno paga a terceira rodada e encomendamos uns petis-
cos. Passamos a noite a rir e a conversar como velhos ami-
gos. Gosto deste afecto fácil e solto, tão diferente do nosso.
É tudo sem peso, sem culpa, sem medo de perder. Perder
o quê? Aqui ninguém quer conquistar nada, as pessoas que-
rem curtir numa boa, e se for isso, já foi ótchimo, com um
ligeiro ch aspirado depois do t, como eles dizem.
Olho para o relógio, são 11 e meia. Com o jetlag, para
mim é uma e meia, por isso alego cansaço e informo que
vou para casa.
— Eu levo você, gata — dispara o Bruno, com um sor-
riso que faz lembrar o teclado de um piano. Giro que se
farta, raio do miúdo. E sabe. E sabe que eu sei. Sabes muito,
penso, mas não digo. Ninguém anda aqui a brincar, quando
é para ir a jogo, é a sério. OK, vamos ver até onde te esticas,
menino do Rio.
A Luísa e o Caio dão as mãos e riem-se, cúmplices.
— Moro a três quadras daqui, querida. Vamos a pé para
casa — diz-me a Luísa, piscando-me o olho. Ela está a que-
rer dizer-me vai com ele, aproveita, não sejas parva.
— Você mora longe? — pergunta o Bruno.
— Não, estou em São Conrado, mesmo no início.

107
MARGARIDA REBELO PINTO

— Então deixa eu te dar uma carona — diz o boneco,


afoito, pondo a mão na minha cintura.
Desisto de resistir. Porquê e para quê? Estamos há ho-
ras nisto, desde que ele chegou à praia para fotografar a
Luísa. Não vale a pena negar a evidência. Vou deixar-me
ir. A Luísa despede-se com um abraço caloroso e promete
que irá comigo à praia durante o fim-de-semana, quando
estiver de folga das gravações da novela. O Caio despede-se
com um beijo fraterno e os dois caminham de mãos dadas
para casa em direcção à felicidade. O Bruno aperta a minha
cintura com mais força e vira-me para ele.
— Você é linda, sabia?
Eu sorrio com cara de parva. Já vi este filme, mas não
faz mal. É como a Música no Coração, vejo outra vez.
— E você não parou de olhar para mim, pois não?
— Você é um mulherão, essa saia é linda, marca a sua
cintura fina, tem cara de boneca, quer que eu faça o quê?
Passa a outra mão pelo meu pescoço, levanta o cabe-
lo e espreita as borboletas. Gosta de pormenores, é dos
meus.
— Posso-te roubar um beijo?
Não resisto. O Bruno dá-me um beijo magnífico, segui-
do de mais quatro ou cinco. Entramos no carro e continua-
mos. Sem cerimónia, ele arruma o material com a mão por
cima dos calções de ganga.
— Já está assim, é?
— Estou assim desde que olhei pra você, gata. Já faz
umas horas. Até me está doendo um pouco.
Não quero parar, apetece-me isto, mas de repente é
como se o sangue gelasse nas minhas veias. Eu não quero
isto. Quis sentir-me desejada, soube-me bem, mas não vou

108
MARIANA, MEU AMOR

conseguir. Não sou capaz de me desligar da minha realidade.


Encosto-me no banco e deixo sair um suspiro.
— O que foi, gata?
— Não sei, Bruno. Mas não quero ir mais longe.
— Mas está tão bom… e você é tão gostosa.
— Não vai dar. Deixa-me em casa, por favor. Outro dia,
quem sabe… — contemporizo. Estou a mentir e ele sabe,
mas ambos fingimos que não percebemos o que estou a
fazer.
— O que te fizer mais feliz, gata — responde o Bruno,
sem oferecer resistência. Tem 25 anos e o mundo inteiro
para explorar. Deve sacar uma mulher ou duas por semana,
às vezes mais. Tanto lhe faz.
— Posso-te ligar antes de você ir embora? Quem sabe a
gente ainda se vê por aí.
— Claro que sim. Fica com o meu número. E vira à di-
reita a seguir ao Sheraton, na próxima entrada, por favor, é
o portão do meu prédio.
Assim que o segurança abre a cancela, dou-lhe um beijo
rápido na cara e salto do carro. Estou a fugir, mas é melhor
assim. Sinto as grilhetas nos tornozelos. Estão cá, invisíveis.
Oiço o ranger dos ferros que arrasto até ao elevador. Chego
a casa, lavo a cara, digo ao Marcelo que estou com dores de
cabeça e fecho-me no quarto. Tomo um Victan e fecho os
olhos. Espero um dia ser mais forte e conseguir ver-me livre
de tanto peso. Mas ainda é cedo.

109
8.

No dia seguinte o calor aumenta, chega aos 42 graus.


Para escapar ao forno a céu aberto dos trópicos, refugio-
me na Livraria Argumento, na Gávea, onde compro o úl-
timo romance do Chico Buarque e passo horas à caça de
novos autores. Também compro um dos meus romances
preferidos da Martha Medeiros, que em tempos emprestei
a alguém e ao qual infelizmente perdi o rasto. Fora de mim.
Aqui está ele de novo nas minhas mãos, um objecto ao mes-
mo tempo familiar e estranho, porque tem uma capa nova
e um formato diferente, maior, mais pesado. É um gran-
de livro. Mas é sobre a dor de uma separação, vai chegar
a Lisboa directo para a prateleira dos autores brasileiros
sem o abrir. Não me apetece sangrar mais do coração. Sei
que gostas de literatura brasileira, gasto algum tempo a
percorrer os novos autores tentando adivinhar o que já
leste. Como qualquer coisa, depois passeio pelo Shopping
da Gávea, compro dois vestidos e um par de sandálias.
Hoje é a estreia de uma das peças do Marcelo e quero ir
bonita.

111
MARGARIDA REBELO PINTO

A peça é um clássico: Sonho de Uma Noite de Verão.


A sala está cheia, vários actores famosos da novela da Globo
vêm assistir ao trabalho de outros colegas e são entrevista-
dos pela imprensa. Ainda me passa pela cabeça desafiar o
Bruno, mas fiquei com a sensação de que não nos íamos vol-
tar a ver, apesar de me ter perguntado quando regressava
a Lisboa. É raro a intuição falhar-me. O Bruno é simpático,
mas não é confiável. Nem inteligente. Nem subtil. Nem se-
quer tem uma conversa interessante. Não precisa, acha que
o corpo e o sexo o levam aonde quiser. Está certo, Bruno.
Aceito a tua condição de queca fácil. Obrigada pelos servi-
ços, mas não vou usufruir, nem me parece que sirvas para
amigo. O tempo o dirá.
A Luísa pergunta como foi, digo-lhe que correu tudo
bem, mas fugi. A Mirna, que parece conhecer-me há tantos
anos como a Laura, comenta em voz baixa: Você gostou do
jogo de sedução, mas esse Pedro continua na tua cabeça, não
é, querida? Na cabeça e em todo o lado, respondo. A grande
vantagem de teres o coração completamente partido é que
não entra lá ninguém, remato. Mas isso vai passar. Se dê
um tempo, não seja demasiado exigente consigo mesma. Você
não escolhe quando se apaixona por um homem, nem decide
quando deixa de gostar. São forças que nos ultrapassam. O
importante é você se deixar levar pela vida, até ela te trazer
tantas coisas boas que a presença desse homem se dissolva
na espuma dos dias, e não você quem se dissolve, entende?
Entendo tudo, querida Mirna, és uma mulher linda,
superiormente inteligente, com uma sensibilidade extraor-
dinária e um coração de ouro. Fiz uma amiga para a vida,
vales mais do que 20 Brunos, que só servem como paliativo
para a carne se sentir viva. É o que penso quando as luzes

112
MARIANA, MEU AMOR

se apagam e sinto a mão dela agarrada à minha, como que a


sustentar-me na tristeza latente que se instala na escuridão
da sala.
— Olha aquele ali, lindo — sussurra muito baixo, apon-
tando discretamente para o actor que faz de Lisandro —,
meu amigo, o Gustavo. É um cara muito legal. Não tem
nada que ver com esse Bruno. Educado, sério, bom carácter,
esse era bom pra você conhecer.
— Estás louca? Ainda ontem escapei de um, já me que-
res meter debaixo de outro?
— Nada disso, quero é que vocês se conheçam. O que
vier depois, virá. Olha que o Márcio gosta dele, não é um
atorzinho qualquer, metido a garoto interessante. É um ser
humano que vale a pena conhecer. Pergunta para o Marcelo,
ele conhece a condição humana melhor que ninguém, tra-
balha com atores todos os dias há vinte anos.
Estou maravilhada com a peça. O cenário é lindo, o guar-
da-roupa está original e, no entanto, adequado, a encenação
é fabulosa. Não é por acaso que o Marcelo é dos encenado-
res mais premiados no Brasil. Concentro-me no Gustavo,
ou melhor, no Lisandro, que ama Hérmia, que ama Lisandro
e é amada por Demétrio, que é amado por Helena; depois,
Demétrio ama Helena, que ama Demétrio e é amada por
Lisandro, que é amado por Hérmia. Na manhã seguinte,
tudo se resolve, porque é só uma história e Shakespeare
sabe desfazer nós como ninguém. Lembra aquele poema
do Carlos Drummond de Andrade, Quadrilha, que recito
mentalmente: João amava Teresa que amava Raimundo,
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que
não amava ninguém. O resto já me escapa, mas no final
havia alguém que se casava com uma personagem que não

113
MARGARIDA REBELO PINTO

entrava na história. Lembro-me que a Teresa foi para o con-


vento e a Maria ficou para tia. A Soror Mariana nunca mais
saiu do convento. Outra que ficou presa para sempre.

Não me vai acontecer nem uma coisa nem outra. Não


tenho irmãos, pelo menos que eu saiba. A minha mãe mor-
reu quando eu tinha 15 anos, esquecida num canto da Meia
Laranja no Casal Ventoso, e o meu pai está tão doente há
tantos anos que, no dia em que morrer, nem vou chorar. Se
não fossem os meus queridos avós, não sei o que teria sido
de mim. Com os dois pais metidos na branca até ao tutano,
o mais provável era ter crescido num orfanato, e depois ser
atirada para a dança das famílias de acolhimento. Mas Deus
é grande e a Divina Providência tinha dois nomes: Avó Ema
e Avô Vicente. Fui viver com os meus avós aos quatro anos
e nunca mais deixei a casa deles, até ao dia em que comecei
a trabalhar e decidi que tinha chegado o momento de viver
sozinha.
O primeiro andar que comprei era perto da casa onde
sempre morara, na Rua Damasceno Monteiro, com uma
vista maravilhosa sobre Lisboa, o Convento de São Vicente
de Fora à esquerda e o rio ao fundo. Os meus avós viviam
no último piso, direito e esquerdo. Fechei a comunicação
entre os dois andares, vendi o que tinha menos vista quando
os dois partiram, apanhados numa curva na A2. Valorizara
para o dobro e com o dinheiro da venda dei entrada para
outro com vista, uma rua acima. Arrendei o do lado, sou
a única herdeira. Senti-me incapaz de lá viver depois de
eles terem morrido. Ainda hoje sinto arrepios sempre que
tenho de lá entrar. Uma parte de mim ficou refém daquelas
paredes, não sei bem qual, mas sinto-a a gritar cá dentro

114
MARIANA, MEU AMOR

sempre que regresso, como se toda a casa se fechasse em


meu redor e se transformasse no Grito do Munch. É hor-
rível. Revivo a minha infância protegida, com desculpas ar-
dilosas para me poupar à verdade. A tua mãe foi tirar um
curso no estrangeiro, a tua mãe arranjou um trabalho longe
de Lisboa e por isso não te pode visitar. Até ao dia em que
disseram: Os teus pais morreram num acidente de carro,
mas tens-nos a nós, que te tratamos como filha e nunca te
vai faltar nada.
E, claro, como a vida consegue sempre ser mais sur-
preendente do que a ficção, morreram os dois num aciden-
te de carro há dez anos. Que irónico, a minha avó morrer
da mesma forma que encenou durante anos a morte da
minha mãe. Só quando cheguei à adolescência e o meu pai
apareceu à porta do liceu sem avisar, é que os meus avós
me contaram toda a verdade. E nesse dia houve uma coi-
sa qualquer que se partiu cá dentro, talvez para sempre.
Nunca mais deixei de odiar os meus pais por me terem
abandonado e de amar com toda a gratidão os meus avós,
por tudo o que fizeram por mim. Todos os anos visito as
campas deles, mas nunca visitei a campa da minha mãe, e
até fazer 18 anos nunca mais quis ver o meu pai.
Não fui uma adolescente rebelde. Não me passava pela
cabeça desafiar quem fizera tanto por mim. E quando me
mudei para perto, ia visitá-los todos os dias e almoçava
sempre com eles ao domingo. Os meus avós foram os meus
verdadeiros pais, tive mais sorte do que muitos da minha
geração que os perderam na Meia Laranja e não tiveram
quem olhasse por eles.
Pouco tempo depois de ter mudado de casa, conheci
o Martim no Bairro Alto, menino inútil de boas famílias

115
MARGARIDA REBELO PINTO

com o curso de Gestão por acabar e mediador de seguros,


ou pelo menos era o que ele dizia. Sem eu dar por isso,
meteu-se em minha casa e começou subtilmente a viver à
minha conta. E eu, como é meu costume e defeito, a fingir
que não percebia. A Laura, que o topou logo, avisou-me:
Olha que esse gajo é um parasita e tem fama de chulo. Um
cão com pulgas. Já se tentou enfiar em casa de uma amiga
minha. E eu, muito parva, sempre a desculpá-lo, até ao dia
em que percebi que os longos banhos de imersão que toma-
va ao final da tarde e aos fim-de-semanas eram temperados
com chinesas.
O cabrão fumava heroína todos os dias, por isso tinha
tão bom feitio e era tão indolente. Que karma. Sou filha
de dois toxicodependentes, nunca fumei um charro nem
cheirei uma linha de coca em toda a minha vida e meti um
drogado em casa.
Demorei dois dias a tomar uma atitude e a resolver
a situação. Numa manhã em que ele saiu mais cedo, su-
postamente para ir trabalhar, tirei o dia para a Operação
Limpeza, como a Laura lhe chamou. Mandei trocar as fe-
chaduras, peguei em tudo o que lhe pertencia, meti a tralha
e a roupa em caixotes, carreguei o carro e deixei o espólio
em casa da mãe dele.
Foi a Laura quem me ajudou do princípio ao fim, des-
de a ideia de mudar as fechaduras até empacotar as coisas
dele. Vou contigo fazer a entrega, mulher, tens de te livrar
desse estropício de uma vez por todas. E foi. Quando o
Martim meteu a chave à porta nessa tarde, já não entrou.
A Laura saiu, enfrentou-o, disse-lhe que sabíamos que era
agarrado ao cavalo e que se não se pusesse a milhas, ela
pedia ao marido que falasse com a Polícia para me arranjar

116
MARIANA, MEU AMOR

protecção. Ambas sabíamos que o Sérgio, apesar de ser


advogado e ter boas ligações com a PJ, não podia legalmente
accionar nada, mas ele não sabia. E como o Sérgio é do tipo
de meter medo quando é preciso, o Martim enfiou o rabo
entre as pernas e foi-se embora.
No entanto, nada é tão simples quanto parece. Poucos
dias depois, começou a perseguir-me. Fazia-me esperas à
porta do prédio, no café do outro lado da rua. Pedia-me
para voltar, dizia que estava limpo, que me adorava, que
tinha aprendido a lição. Teve azar. Sou filha de dois agarrados,
sei como é difícil largar o cavalo e conheço a condição
humana, é quase sempre fraca.
Nunca te contei nada disto, pois não? Só te disse que
os meus pais tinham morrido cedo, num desastre de carro
a caminho do Algarve. Não te quis revelar a verdade, tive
vergonha. Sinto poucas vezes vergonha de poucas coisas na
vida, mas tu mostravas por mim tanta admiração e orgu-
lho que perdi a coragem de partilhar contigo o lado mais
obscuro da minha vida, do qual nem sequer tenho culpa,
porque ninguém escolhe nem os pais nem os filhos. Talvez
seja por isso que penso tão pouco em ter filhos. Para quê?
Para os deixar neste mundo cheio de vícios e de lixo? E será
que conseguiria ser uma boa mãe? Nem sobrinhos tenho
para brincar às mães, só os filhos das minhas amigas, com
quem me dou bem e cuja companhia me diverte. Gosto de
crianças mas não tenho familiaridade com elas.
Cresci com dois velhos, só fiz amigos no final do secun-
dário. Quando era miúda, a minha avó protegia-me muito
das outras crianças, com medo de que alguém no bairro me
viesse contar a verdade. Durante a adolescência, tinha ver-
gonha da minha história e não a contava a ninguém.

117
MARGARIDA REBELO PINTO

Foi no 10.º ano que conheci a Laura. Era muito sexy,


magra, baixinha, com um peito enorme, olhos arregalados
e uma gargalhada fácil e cristalina. Tinha os rapazes todos
atrás dela e não lhes ligava nenhuma. Seduzia-os quando
lhe apetecia e depois largava-os. Era a rainha do liceu, man-
dava literalmente naquilo tudo e o mais engraçado é que
se estava nas tintas. Quando íamos sair, vestia-se de forma
provocante e passava a noite a dar conversa a todos quan-
tos lhe apetecia, e depois escolhia o que a atraía, fazia-lhe
um broche no carro dele à porta de casa, para despachar
a coisa, como ela dizia. Se lhe dava muito tesão, levava-o
a um lugar qualquer à beira do rio, dava-lhe uma queca
dentro do carro e considerava o caso um assunto arrumado.
Next. A fila anda, dizia. No dia seguinte, dava ordens à
Arminda, a empregada de casa da mãe, para atender o tele-
fone e informar quem ligasse que não estava em casa. Não
quero cá melgas, dizia, senão ainda me apaixono e tenho
para mim que o amor enfraquece. Enquanto andar distraí-
da com vários, nenhum me agarra. Quem te ensinou isso?,
perguntava-lhe. A minha mãe. Toda a vida fez deles o que
quis. Está-me no sangue. E está mesmo, até hoje. Só se
apaixonou pelo Sérgio. E quando deixou de sentir paixão,
quando perdeu o desejo e percebeu que o casamento ia
ficar morno para sempre, separou-se apesar de o adorar.
Tenho de acabar com isto antes de começar a fazer merda.
Toda a vida fiz tudo o que me apeteceu com todos os gajos,
mas com o Sérgio, não posso. Antes divorciada e amiga dele,
do que casada a pôr-lhe os cornos. Há que manter os míni-
mos, disse, enquanto acendia mais um charro, uma semana
depois de o Sérgio ter saído de casa. São grandes amigos até
hoje. Não trocam confidências sobre a vida pessoal de cada

118
MARIANA, MEU AMOR

um. Há um pudor que se mantém. Por estas e por outras


é que gosto tanto dela. É forte e lúcida, sabe ver as coisas
como são, não tem contemplações mas também não tem
uma visão cínica da realidade.
O facto de sermos amigas subiu os meus índices de po-
pularidade no liceu. Foi a única amiga a quem contei a mi-
nha história, além da Patrícia e da Inês. Nunca deixámos de
ser próximas. Fui madrinha de casamento, chorei na hora
do sim, apanhámos uma grande bebedeira no copo-d’água
e embalei os filhos dela no colo desde que nasceram. São o
que de mais próximo tenho daquilo a que se pode chamar
sobrinhos e gosto imenso deles. Deve ser óptimo ter filhos.
Lembro-me dos teus olhos a brilhar sempre que me falavas
do teu colégio, como lhes chamavas. Gostava de os ter
conhecido. Não tive essa sorte.

É impressionante a quantidade de coisas que nos passa


pela cabeça enquanto assistimos a um concerto ou a uma
peça de teatro. Voamos para longe, vivemos momentos
de intimidade muito fortes com os nossos fantasmas,
com o nosso passado e os nossos segredos. A minha mãe
também se chamava Alice, sabias? Caiu no poço e nunca
mais voltou. Estúpida. Ainda bem que morreu cedo, ao
menos não guardo dela memórias macabras. Parece linda
nas fotografias que a minha avó Ema guardou numa caixa
de sapatos debaixo da cama, que descobri quando tinha
10 ou 11 anos. Não devia ter cabeça nenhuma. De pou-
co lhe serviu a beleza, senão para se prostituir por mais
uma dose. E pensar que foi o cabrão do meu pai que a
meteu naquela vida, quando andavam os dois no liceu.
Até aí era uma menina bem-comportada, boa aluna, que

119
MARGARIDA REBELO PINTO

frequentava as aulas de ballet da Voz do Operário e ia à


missa todos os domingos com os meus avós. O meu pai
deu cabo dela. Ela morreu cedo e o gajo ainda se arrasta,
que ironia. Detesto drogados. Detesto gente fraca. Detesto
quando as minhas amigas se queixam porque os maridos
as encornam, em vez de lhes trocarem a fechadura e irem
comer um gajo qualquer nas barbas deles, para aprenderem
a não ser cabrões.

Começo a chorar. Estou a assistir a uma comédia, a peça


está no final, o pano cai, toda a gente aplaude, o pano sobe,
os actores agradecem numa vénia concertada e eu choro
como uma madalena. A Mirna envolve-me com um braço
pelos ombros e limpa-me as lágrimas em silêncio. Nenhuma
de nós diz nada. Talvez um dia lhe conte a minha história.
A Mirna pode saber. O resto do mundo é que não. Disfarço
o melhor que consigo, tenho anos de prática a dissimular
a tristeza, ninguém se apercebe do meu estado. O teatro
vai-se esvaziando e esperamos pelo elenco e pelo Marcelo
à saída. A Luísa e o Caio saíram logo a seguir ao fim do
espectáculo, estão naquela fase de se comer furiosamente
todos os dias. Que saudades. Passámos metade do Verão
assim, lembras-te? Se calhar agora queres esquecer-te, por
isso tento também esquecer-me.
— Oi, Gustavo, tudo bem? — diz a Mirna assim que vê
o amigo. — Esta é a minha amiga Alice, de Portugal, grande
amiga do Márcio. Está em casa do Marcelo. Parabéns, a
peça está maravilhosa.
O Gustavo olha-me fixamente. Não me está a comer
com os olhos, apenas a observar-me. Quer absorver a infor-
mação que a Mirna lhe está a passar. Portuguesa, amiga do

120
MARIANA, MEU AMOR

Márcio, convidada do encenador. Por fim começa a sorrir e


apresenta-se:
— Gustavo Freitas, muito prazer em conhecê-la, Alice.
Você gostou da peça?
— Sim, gosto sempre do trabalho do Marcelo, somos
amigos há muitos anos, já vi várias peças dele e é sempre
uma surpresa.
— É um grande diretor. Uma honra trabalhar com ele.
E uma honra te conhecer, Alice.
Meu Deus, quanta cortesia. Parece o diálogo de uma
novela de época passada no tempo do Império.
— E veio de férias, se divertir? Ou em trabalho?
— As duas coisas.
— Que bom. Posso perguntar qual é o seu trabalho?
A formalidade mantém-se. É tão estranho que estou a
adorar.
— Sou jornalista. Freelancer. Faço de tudo um pouco.
Desde reportagem sobre conflitos armados a entrevistas a
celebridades.
— Que sorte! Então viaja muito e pode trabalhar onde
quiser. É um privilégio.
— É verdade.
— Vocês não querem ir comer a algum lugar? — per-
gunta a Mirna. Entretanto, o Marcelo junta-se a nós e
comenta: Que bom que vocês já se conhecem. Gustavo,
esta é a jornalista de quem te falei que está em minha
casa.
— Você quer, Alice? — pergunta-me o Gustavo, aten-
cioso e educado.
— Sim, claro. Vamos a um lugar divertido. O que vocês
sugerem?

121
MARGARIDA REBELO PINTO

— Já foi nos bares do Baixo Gávea? Ainda não? Está


ótimo agora.
Apanhamos um táxi. Marcelo, o patriarca, vai à frente.
O Gustavo senta-se entre as duas. Tem umas mãos enor-
mes, um perfil aquilino, com o queixo marcado com uma
mosca bem aparada, o cabelo curto, parece um guerreiro
espartano. Estou a olhar para outro homem? Para dois em
menos de 24 horas? De facto, não existe pecado do lado
debaixo do Equador. A conversa continua, vagamente ceri-
moniosa, ao mesmo tempo calorosa. Gustavo não é carioca,
é mineiro. Veio para o Rio quando era garoto porque tinha
uma avó carioca, mas tem uma forma de falar mais séria,
mais tranquila, mais composta. E eu acho graça a esta diver-
sidade, a tanta informação diferente em tão pouco tempo.
Estou de férias, a trabalhar um bocadinho, mas finalmente
sinto-me leve. E não estou sozinha. Sou um espírito livre,
posso voar para onde quero, onde sentir afecto e tiver tra-
balho, estou sempre bem.

122
9.

C ombino encontrar-me com o Gustavo no dia seguinte.


Vem ter comigo ao Posto 10, atravessamos o Leblon
até à lagoa Rodrigo de Freitas, paramos para beber uma água
de coco, ele pergunta se já tenho alguma coisa combinada
ou se quero passar o resto do dia com ele. Respondo que
sim, com todo o gosto, enquanto penso, é isso que me ape-
tece, é disto que preciso. As horas correm leves, recheadas
de boa conversa. É um homem bonito, inteligente e culto,
faz-me lembrar o Marcelo quando o conheci. Tal como o
Marcelo, e a maior parte dos brasileiros, tem muito sangue
misturado: italiano, índio, negro e português. Tem uma voz
grave, bem colocada, voz de actor. Move-se com firmeza,
sem um traço de rudeza. Parece muito calmo, embora esteja
nervoso. Já ontem estava, muito mais do que eu. Quando
a tarde cai, pergunta se me pode convidar para jantar em
casa dele. Aceito e apanhamos um táxi para o Bairro das
Laranjeiras.
— Não se assuste com a minha casa, vivo num lugar
bem humilde, mas é limpo e sossegado — avisa-me antes

123
MARGARIDA REBELO PINTO

de chegarmos, enquanto o táxi serpenteia as subidas sinuo-


sas de um dos bairros mais antigos do Rio de Janeiro, onde
mansões do tempo do Império se misturam com prédios
sem traça, feios e incaracterísticos.
Estou a sair da Zona Sul, o cenário preferido dos turis-
tas, dos novos e dos velhos ricos, e a entrar no verdadeiro
Rio de Janeiro. Por fim chegamos a um portão verde que dá
para uma fileira de escadas com três patamares. O Gustavo
mora no anexo de uma moradia de má construção e sem
gosto. No alto do patamar, entalado entre dois muros, fica
o anexo onde vive há três anos.
A minha respiração sustém-se com o que vejo. Estou
perante o limiar da pobreza. O anexo com o tecto muito
baixo tem uma porta de ferro que dá para uma sala exígua
onde está uma mesa de madeira barata com dvds e livros
empilhados, um computador e duas cadeiras de praia. Não
tem sofá nem televisão. Não há um tapete no chão, nem
um quadro na parede. A sala é iluminada por uma lâmpada
que torna o amarelo da parede ainda mais desolador. Uma
porta do lado esquerdo deixa ver um quarto pequeno com
um roupeiro dos anos 60, lacado a branco e azul, com
fechos prateados em meia-lua. Do lado direito, um hall
minúsculo conduz a uma cozinha sem portas onde ronca
um frigorífico ferrugento e a uma casa de banho pequena
e velha. É tudo triste, despojado, real.
Nunca estive numa casa assim, nunca convivi com alguém
que vivesse em condições tão precárias. E, no entanto, em
cima da mesa só estão grandes autores: Clarice Lispector,
Bukowski, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade,
Fernando Pessoa, Machado de Assis. O mesmo acontece
com os filmes. Blade Runner, Fightclub, Blood Diamond,

124
MARIANA, MEU AMOR

O Grande Gatsby, 21 Gramas, Ensaio sobre a Cegueira,


entre outros.
Respiro fundo, muito devagar, para que o Gustavo não
se aperceba do meu choque. Oferece-me um sumo de
laranja natural, espremida com a mão porque não tem
espremedor de sumos, enquanto anuncia que sabe fazer
uma pasta com tomate, pimenta e sardinha, que é uma de-
lícia. Nunca me sentei numa cadeira de praia entre quatro
paredes, não sei se consigo, por isso ofereço-me para o aju-
dar a cozinhar, mas ele recusa. Com toda a simpatia, sugere
que me estenda um pouco em cima da cama.
— Você parece cansada, Alicinha, vai descansar um
pouco, querida, eu te chamo quando estiver pronto.
Deito-me na cama e fecho os olhos por alguns minutos.
A minha mãe deve ter andado em antros destes, ou pio-
res, quando andava a dar no cavalo, é assim que vivem as
pessoas com os tostões contados. E, no entanto, o Gustavo
teve a coragem e a dignidade de me trazer para aqui, sa-
bendo que sou uma menina europeia, habituada a uma vida
de luxo, comparada com a simplicidade em que vive. Sem
complexos e sem vergonha. Este tipo tem um grande par
de tomates. Não tem dinheiro para me convidar para jan-
tar fora e está a cozinhar para mim com todo o afecto e
carinho. Não há mesa de jantar, nem fora de casa, porque
o anexo está encostado a um muro. O Gustavo dorme ali
todas as noites, rodeado de janelas com grades, e acorda
todos os dias a olhar para um muro.

Como é que me posso queixar da minha vida de prince-


sa só porque me deixaste e decidiste voltar à tua existência
de executivo de topo, bem na vida, carrinha BMW e Jeep

125
MARGARIDA REBELO PINTO

Mercedes ML para passear ao fim-de-semana com uma


mulher com quem não dormes e de quem nunca falaste
com carinho? Imagino a cara dela, inexpressiva, um olhar
vazio que raramente se cruza com o teu, e não acredito
que com ela oiças a Rita Lee. Imagino o colégio sentado
no banco de trás, as gémeas vestidas de igual, e tu e a tua
legítima a fingir que são felizes. Que espécie de tipo eras tu,
Pedro, quando dizias que me amavas e que nunca te sentiras
assim, para depois me deixares cair e deitar fora tudo o que
vivemos?
A resposta é simples: antes de te apaixonares por mim
já tinhas outra vida. Quando apareci, ficaste com duas. E
para quem tem duas vidas, é mais fácil escolher. Mas eu só
tenho uma e tu entraste nela a mil, quando quiseste e como
quiseste, porque me deixei ir, num ataque de romantismo
suicida, sem medir os prós e os contras, esquecendo-me
de que as probabilidades eram muito baixas desde o início.
Afinal, porque haverias de mudar a tua vida se tens tudo o
que queres?
Tenho quase a certeza de que, quando paras e passas as
mãos pelo cabelo, te lembras dos meus dedos entrelaça-
dos no teu pescoço, depois de fazermos amor. Ainda sinto
saudades desses minutos de paz em que mergulhávamos
a seguir. Tu sabes que consigo esticar a paz como se fosse
um elástico, e tentas perceber o que se passa na cabeça de
uma mulher que te pareceu tranquila e segura, que estava
sempre feliz quando chegavas, que te fazia poucas pergun-
tas porque confiava em ti e se dava sem medo nem pudor,
e pensas onde estarei agora, o que se passa pela minha ca-
beça para não desligar, para não desistir e não ir à minha
vida, quando mandaste evacuar os soldadinhos, subir todas

126
MARIANA, MEU AMOR

as pontes, enterrar a cabeça na areia com ar de quem afinal


não fez nada de mais, como se o Verão fosse uma estação
inconsequente. E foi.
Eu fui à minha vida. Ou melhor, voltei a ela. Enganei
as estações do ano e fugi para outro Verão, do outro lado
do Atlântico, aí nem me sentia bem a respirar, aqui é tudo
mais leve, mais fácil, menos triste.
A vida é breve, não quero perder a minha alegria nem a
minha energia com alguém que não me ama, nunca mais,
entendes? Fica onde estás, enquanto aprendo a ser humilde
com a dignidade dos outros e me comovo com um homem
que cozinha para mim porque não me pode levar a jantar
fora e que vai perguntando se gosto de cebola, se gosto de
pimentão, se gosto de caril, se gosto de picante, pequenos
gestos que há muito não recebo de um homem.
Jantamos sentados no chão, a pasta está deliciosa. Os
pratos são de vidro riscado pelo uso e os talheres de má
qualidade, mas não me lembro há quanto tempo uma refei-
ção me sabia tão bem.
O Gustavo percebe que estou emocionada, mas não
sabe porquê e não faz perguntas. Ontem estava rouca.
Hoje, ao longo do dia, de tanto falar e com tanta emoção
misturada, perdi a voz. Explico-lhe que é do calor e do
contraste com o ar condicionado nos táxis, restaurantes,
teatros e centros comerciais, ele faz-me um remédio ca-
seiro com própolis, sumo de limão e mel, que vou toman-
do em pequenos goles. O Gustavo vê a tristeza no meu
olhar e diz:
— Você fingiu o dia todo que está tudo bem, mas eu te
sinto muito triste, alguém entrou no seu coração e o levou,
você está descorçoada. Mal te conheço mas é assim que te

127
MARGARIDA REBELO PINTO

vejo e te sinto. Você deveria dormir. Fique cá, eu te acon-


chego, te passo um cafuné como se faz com as crianças, eu
nem tento transar, tenho desejo, mas não é disso que você
precisa, por isso fica quieta, descansa, dorme, eu te embalo
nos meus braços e amanhã já será outro dia.
Levanto-me, deixo o prato na pia da cozinha, levo a chá-
vena com a mezinha caseira para o quarto, peço uma T-shirt
emprestada ao Gustavo, dou-lhe um abraço enquanto lhe
digo ao ouvido no fio de voz que me resta: Obrigada por
tudo, querido Gustavo, você é um sábio e um anjo e um
homem a sério. Deito-me na cama e adormeço instantanea-
mente.

Na manhã seguinte acordo antes do Gustavo, ainda não


totalmente ajustada ao fuso horário. Dobro as pernas para
dentro da T-shirt, hesitando entre manter-me acordada ou
tentar adormecer de novo. Escolhi a maior, por ser a mais
comprida, tentando evitar qualquer contacto erótico, o que
nos trópicos é praticamente uma impossibilidade.
Acordei várias vezes durante a noite apesar de ter ador-
mecido repentinamente. Senti-me presa àquele lugar. Não
conheço o bairro, não saberia que direcção seguir se saísse à
procura de um táxi e não poderia fazer isso ao Gustavo, não
depois de todo o carinho e atenção que ele me deu. O meu
vestido Ralph Lauren enrolado no chão como um trapo pa-
rece-me anacrónico e deslocado. Estou num anexo na Zona
Norte do Rio de Janeiro, janelas com grades e sem corti-
nas, a dormir na cama de um homem com quem simpatizo,
por quem não sinto desejo e que sei que não vai entrar na
minha vida. Somos de mundos diferentes, ambos sabemos
disso, mas ele parece importar-se menos do que eu.

128
MARIANA, MEU AMOR

Quando desperta tenta dar-me um beijo, mas não me


deixo apanhar. Salto da cama e peço uma toalha turca,
agarro no vestido e refugio-me na casa de banho. O duche
é um fio de água quente, prendo o cabelo com um gancho
para não o molhar, esfrego-me com sabonete e visto-me,
desconfortável por não ter roupa lavada. Quando saio, o
Gustavo ainda está na cama, faz uma última tentativa para
me seduzir, mas corto-lhe as vazas com elegância e firmeza.
Explico-lhe que não estou preparada. E é verdade. Sexo
por sexo é uma coisa. Há homens que só servem para isso.
Os Brunos da vida. Mas sexo com um homem com cora-
ção que está encantado comigo, a quem não posso oferecer
nada a não ser a minha amizade, está fora de questão. Oiço
a voz pausada e cristalina da Laura a dizer: Há que manter
os mínimos. O Gustavo percebe, aceita e vai tomar um
duche enquanto me visto.
Ainda é cedo quando saímos de casa e descemos pelo
bairro serpenteado de casas. Ele pergunta-me o que quero
fazer. Quero beber um café e comer alguma coisa, por isso
vamos a um sanduíche-bar ali perto e planeamos passar o
dia no Jardim Botânico. É um lugar lindo, sereno, silencio-
so, com árvores gigantes vindas de todos os cantos do mun-
do, cheio de pérgolas, de caminhos secretos, de recantos,
de bancos e de atalhos misteriosos. O verde é suave e mis-
tura-se com o céu que acordou azul e limpo. O ar é puro,
famílias e casais passeiam, turistas fazem selfies e passamos
um dia inteiro a conversar. O Gustavo conta-me que de-
morou dois anos a esquecer a namorada com quem viveu.
Digo-lhe que estou de coração partido por tua causa, sem
entrar em pormenores, animamo-nos um ao outro como
velhos amigos. Ele recita Carlos Drummond de Andrade

129
MARGARIDA REBELO PINTO

e eu Alberto Caeiro, o Amor é Uma Companhia, de modo


expressivo e teatral, caminhando em passos leves de braços
abertos por entre as árvores, O amor é uma companhia. Já
não sei andar só pelos caminhos,/porque já não posso andar
só./Um pensamento visível faz-me andar mais depressa,/ver
menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo./
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo./E eu
gosto tanto dela que não sei como a desejar./Se a não vejo,
imagino-a e sou forte como as árvores altas./Mas se a vejo
tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona./Toda a rea-
lidade olha para mim como um girassol com a cara dela
no meio. Quando paro, ligeiramente ofegante, o Gustavo
está sentado na relva, extasiado, a olhar para mim com um
sorriso enorme.
— Que lindo, Alice! Como você está leve e bonita!
Parece uma borboleta, pensei de repente que fosse voar.
Sento-me ao lado dele e depois deito-me e descanso a
cabeça no seu colo.
— Quem me dera ser uma borboleta — respondo —,
teria uma vida curta, mas feliz.
— A vida está-te pesando mais do que o seu próprio
peso, não é, querida?
— É isso mesmo, amigo.
— A você e a todo o mundo. Mas tem vários truques
para aliviar esse peso. Um deles é combater o tédio. Não
se deixe levar pela vida, deixe que a vida te leve. Você quer
controlar tudo e a vida está-te mostrando que não é por aí.
Eu nunca pensei conhecer uma mulher tão inteligente e
querida, nem quando te vi a primeira vez te imaginei assim,
sei que não te posso ter, e mesmo assim me sinto feliz,

130
MARIANA, MEU AMOR

entende? Eu vivo com o que a vida me dá, não reclamo do


que não tenho, porque tenho pouco. Se reclamasse, não
me sobraria energia para viver. Na verdade, eu tenho muito
porque tenho o meu trabalho que é a minha paixão, igual
a você. Imagina que tínhamos os dois uma profissão horrí-
vel, que vivíamos sós, sem amor, nem amizade, nem poesia.
Isso seria uma vida ruim. E a vida é que nem o amor, como
dizia o Drummond: Hoje beija, amanhã não beija,/depois
de amanhã é domingo/e segunda-feira ninguém sabe/o que
será.
— Que lindo, não conhecia. Vou memorizar. Repete por
favor.
O Gustavo repetiu até eu decorar. E depois interiorizar.
Amanhã regresso a Lisboa. Hoje janto com o Marcelo, a
Mirna e o Márcio, em casa. Convido o Gustavo para se jun-
tar a nós, mas ele recusa, com aquele modo muito mineiro
de ser, meio orgulhoso, meio envergonhado.
— Obrigado, querida, mas eu já tive esses dois dias ma-
ravilhosos com você, foi um presente de Deus, não quero
me apegar e já estou ficando apegado, entende? Você é lin-
da, meiga, sincera, séria, tem um coração muito bom, por
isso eu quero guardar esses dias na minha memória como
um tesouro. Vai ter com os teus amigos, eu te levo até lá,
passamos o final do dia na praia e depois você segue a sua
vida e eu a minha.
E assim foi. O final da tarde carregou-se de nuvens quan-
do nos sentámos nos degraus de pedra junto ao Posto 12,
eu um degrau mais abaixo para me encaixar entre os seus
braços fortes e bronzeados. Já não me apetecia separar-me
dele, sentia que aquele homem me podia amar. Não sei há
quanto tempo sentia isto. Talvez desde o Verão passado e já

131
MARGARIDA REBELO PINTO

estamos em Fevereiro. Será que voltarei a sentir o mesmo


ainda durante este ano?
Voltar para Portugal é voltar para o frio, para o deserto
emocional, para a cama vazia e o teu pijama a dormir entre
as minhas camisas de noite. Voltar para Lisboa é assumir
que te perdi, que perdi tudo, que já não fazes parte da
minha vida, que a minha realidade é sentar-me ao compu-
tador e escrever ou inventar trabalho para fazer, porque sou
livre, não tenho patrão nem horários; por isso, se não tiver
juízo, enlouqueço.
— Não me apetece voltar. Sou tão feliz aqui… — deixo
escapar, entre duas lágrimas lamechas.
— Você só pode chorar de alegria, Alice. Porque a vida é
boa e com você é ótima. Veja só o que ganhou com a estadia
no Rio, renovou velhas amizades, fez novas, que vão ficar
para toda a vida, a Mirna, eu. Não se entristeça com o fu-
turo. Quem sabe esse seu amor está morrendo de saudades
e vai voltar?
— Há homens que nunca olham para trás — respondo,
limpando as lágrimas.
— Isso não existe, querida. Todos os homens olham para
trás. Podem não falar nada, mas olham e sofrem e choram
em silêncio, em lugares secretos onde ninguém os possa
ver, entende? Também choramos, mas não partilhamos as
lágrimas. Tenho quase a certeza de que esse Pedro já chorou
em silêncio por não te ter. Você precisa de pensar mais em
você e menos nesse caso. Se ele te amar, ele volta. Quem
ama, volta sempre. Não tem outro jeito.
Despedimo-nos com um abraço que não queremos
que acabe. Apanho um táxi para casa, tomo outro duche,
mudo de roupa, espero pelo Marcelo, a Mirna e o Márcio.

132
MARIANA, MEU AMOR

Conto-lhes como vive o Gustavo, o jantar maravilhoso e


o remédio para a garganta que ele me preparou, o dia no
Jardim Botânico, a despedida na praia, a grande lição de
vida que aprendi em 24 horas. Encomendamos sushi e
sashimi, bebemos saké e brindamos ao meu amor pelo Rio
e ao amor que há no Rio por mim.
Adormeço em paz, serena, com a alma sossegada.
Mansa, como diz o Márcio. Sonho que te zangas comigo,
temos uma grande discussão, não consigo perceber porquê,
nunca te vi zangado sem ser em sonhos, às vezes acontece-
-me. Tenho medo de um dia nos zangarmos e nunca mais
falarmos. Como se voltarmos a falar venha mudar alguma
coisa.
O passado é um lugar estranho, mas o futuro também.
Nunca sabemos quem pode vir a lá morar. Ou quem pode
para lá voltar.

133
V
ieste mais cedo hoje, Maria Benedita. Ainda bem,
pois tenho em meu discernimento que te contarei
mais sobre as minhas aventuras com Noël do que jamais
o fiz com outro ser terreno, já que ao Divino nada preciso
de relatar, pois em Sua Omnisciência, tudo sabe do que
se passa em nossas vidas e nossas almas.
Quero que registes todas as minhas palavras e os
meus pensamentos, pois o que tenho para contar pode
ajudar muitas mulheres no mundo a entender melhor o
seu próprio sofrimento, e, como tal, é minha obrigação
deixar-lhes este legado.
O amor nasce na tua imaginação. Este é o lugar onde
se semeiam os ideais amorosos que atravessam a tua
alma e a tua vida até ao fim dos teus dias, ainda que a
má sorte te conduza a que deles sejas vítima. O meu era
o de um cavaleiro loiro, montado no seu cavalo branco,
brilhando em sua armadura de prata, atravessando a pla-
nície à hora do poente rubro. Amas uma ideia, um sonho
que te alimenta a vida. Amas todos os dias o futuro que

135
MARGARIDA REBELO PINTO

ainda não viveste. E, um dia, esse cavaleiro idealizado


encarna num corpo de homem e tu confundes os dois.
Se pensares quantos santos de altares do convento são de
cavaleiros guerreiros como S. Miguel, S. Jorge ou S. Rafael,
que vês no retábulo do coro de cima, decerto entendes
que a imagem em meu espírito era a de um homem bravo
e digno, capaz de alcançar grandes glórias. Um homem
puro e sério, uma espécie de santo guerreiro, que na
verdade só existe nas lendas, mas que no descuido da
juventude cremos ser real.
Foi tudo isso que vi em Noël a primeira vez que o avistei
da janela, altivo e cheio de garbo, no alto da sua montada.
O conde Noël Bouton de Chamilly, conde de Saint-Léger,
que mais tarde veio a ser governador de Estrasburgo e
marechal de França. Abraçou a carreira militar ainda
muito novo por sua vontade, a paixão pelas armas corria-
-lhe no sangue, já que seu pai e irmão foram valorosos
guerreiros. Lutou em várias batalhas e chegou a ser feito
prisioneiro no cerco de Valenciennes. Quando veio para
Portugal no regimento do conde de Schomberg, era já um
guerreiro experiente. Sem a estratégia, a valentia e o regi-
mento de Schomberg, Portugal não teria reconquistado a
sua independência, da qual tanto nos orgulhamos desde
a fundação do reino por el-rei D. Afonso Henriques. É
desta matéria que são feitos os heróis, querida Benedita.

Foi da janela gradeada que o vi pela primeira vez.


Vinha a seu lado meu irmão Baltasar, montando um lusi-
tano de boa linhagem, oferecido por meu pai, senhor da
paz e da guerra, que queria ver o seu morgado sobressair
entre os outros soldados do batalhão. E é essa primeira

136
MARIANA, MEU AMOR

imagem que a tua memória guarda para sempre, a par de


outros momentos cruciais do grande encontro da vida, si-
nais inequívocos da aproximação fatal à tua alma gémea,
aquela que o Altíssimo te destinou em sorte, para esta
vida e todas as outras que se seguirem.
Não era novo, mas também não tinha o semblante
cansado que imaginas em Dom Quixote quando lês as
suas aventuras. Li-o em castelhano, embora desde que a
Restauração vingou, poetas e escritores do país vizinho
já não sejam admirados. Meu pai sempre disse que era
um livro importante, li-o com grande avidez e serviu-me
para entreter Baltasar quando era ainda tão pequeno que,
sentado em meu colo, os pés não chegavam ao chão.
Noël era já era um homem feito. Eu tinha 29 anos, e
ele 33. Desde logo tomou Baltasar como seu protegido,
caindo assim nas boas graças da senhora minha mãe e de
meu pai, que o povo, por ser tão rico e poderoso, chamava
Dom Possimando. Agora que o véu do tempo me permite
ver o passado com mais distância, tenho para mim que tal
amizade não foi um acaso. Noël sempre foi um estratega:
tomar como protegido o filho varão do nobre mais rico de
Beja era conquistar a sua confiança e ganhar um lugar em
sua casa. Ninguém poderia jamais imaginar que esse lu-
gar também fosse conquistado em meu leito, tirando-me
a virgindade com toda a arte e carinho na primeira noite
em que, depois de muitos dias de visita e de conversa,
acedi em deixar-me tomar como sua.
O meu querido irmão visitava-me com frequência e
gostava de trazer os seus companheiros de glória, os
irmãos Lobo, amigos de infância, que eu via como meus
irmãos. Quando Noël passou a acompanhá-lo, eu já me

137
MARGARIDA REBELO PINTO

enamorara por ele. A sua presença próxima só confirmava


no meu coração que lhe iria ceder em tudo. Não cuides,
porém, que o meu corpo cedeu de imediato. Sentia-me
demasiado inquieta, o anúncio da sua chegada bastava
para que ruborizasse de imediato e todo o meu corpo tre-
messe. Conquistei-o em longas conversas sobre História
e Literatura, graças à minha esmerada e erudita educa-
ção. Ficou surpreendido quando lhe disse que não lera
apenas romances de cavalaria, como era costume entre
as donzelas nobres, mas também as aventuras de Dom
Quixote. Ouvia-me com atenção, ria-se das minhas opi-
niões sobre a vida, apesar de estar aqui fechada, e, mais
importante do que tudo isso, olhava para mim. Nunca um
homem olhara para mim antes, entendes? Até conhecer
Noël, nunca sentira em minha pele a alegria de um olhar
de homem. Quando um homem te olha nos olhos e eles
brilham de alegria, nunca mais te esqueces desse olhar.
E nunca mais queres deixar de o sentir sobre a tua pele
acesa.
Andámos nesta dança sem passos marcados quase
uma lua, Noël passou a visitar-me só, cada vez mais tarde.
Cremilde tudo fazia para que ele entrasse sem ser notado.
Até que numa noite de lua cheia, desisti de lhe resistir. O
meu corpo não aguentava mais. Há muito que lhe ofere-
cera o meu espírito e o meu coração. Abrir-me para ele
era apenas o desfecho inevitável que eu adiara o mais que
pudera. Não me arrependo do tempo que esperei, pois o
tempo não respeita o que é feito sem ele, mas quando me
entreguei, sabia que a minha vida iria mudar para sempre.
Foi uma noite de dor e de loucura. Eu sentia o seu
membro a rasgar-me por dentro, mas não lhe conseguia

138
MARIANA, MEU AMOR

resistir. Dos meus olhos assustados e surpreendidos


caíam lágrimas que Noël limpava com carinho e delicade-
za. Não custa nada, vais ver, daqui a pouco já não sentes
dor, vais começar a sentir prazer e depois o teu corpo irá
chamar por mais e mais, dizia-me ao ouvido, aliviando o
peso do seu corpo em cima do meu, enquanto me agar-
rava os peitos que pareciam crescer debaixo das suas
mãos. Chegou a lavar-me com uma bacia de água morna
para me aliviar a dor, e logo a seguir, a sua boca começou
a explorar a minha flor desflorada. A sua língua viajava
por todo o lado, com tanta arte e perfeição que a dor foi
esquecida e um prazer desconhecido começou a subir-
me pelo corpo, dentro das veias, até me invadir as têmpo-
ras de suor. Tinha uma língua do Demo, pois esta nunca
parava de me lamber, desde as pernas até às orelhas e,
sentindo o meu suor, lambia-me ainda mais, dizia que
eu sabia a mar, mas como nunca vi o mar, não sei bem
do que falava. Perguntei-lhe: a que sabe o mar? Sabe a
salgado e a infinito, como tu. Há palavras tão perigosas
como setas. As dele atravessaram o meu coração para
sempre.
Foi assim na primeira de várias noites, não te sei agora
dizer ao certo quantas, pois a minha memória já se perdeu
para números e minudências desse tipo. Talvez tenham
sido menos do que a minha memória imaginou. Ainda
assim, estou em crer que só a Divina Providência impediu
que o meu ventre não cumprisse a missão que se espera
de uma mulher. Ou talvez fosse já demasiado velha para
conceber, não te sei dizer. A verdade é que nem sempre
o dono do meu corpo e do meu coração esgotava o seu
prazer dentro do meu corpo. Preferia fazê-lo sobre o meu

139
MARGARIDA REBELO PINTO

ventre e às vezes na minha boca. O sabor era estranho


e amargo, não te vou dizer que gostei, mas com o tempo
habituei-me. Fazia tudo para lhe agradar, já era sua escrava,
mesmo sem o saber.
Não existe caminho mais curto para a perversão do
que a inocência, pois quando nada sabes, tudo aprendes
sem culpa nem medo, cuidando que nenhum pecado daí
pode resultar. Noël brincava comigo e com o meu corpo
e eu deixava e rejubilava, sem imaginar que mais tarde
iria fazer o mesmo com o meu coração. Cuidei que me
amava de verdade e que me levaria dali para me desposar,
raptando-me como Páris fez com Helena.
Agora entendo como fui ingénua: à custa de ler tan-
tas histórias de amor em que os homens tudo fazem
para ficar com a sua amada, tomei como realidade o
que lera nos livros e andei muito tempo a enganar-me.
É verdade que Noël me disse que me amava, e fez juras
de me levar daqui, mas eu acreditei, entendes? Acreditei
porque, como te expliquei, quando amas perdidamente
um homem, confias a tua vida nas mãos dele, e tudo o
que te disser é palavra de lei. Como fui estúpida! Ele era
um homem do poder e da guerra, jamais iria arriscar a
sua reputação ao fugir com uma freira. Isso iria man-
char para sempre o seu caminho. E, no entanto, teve a
ousadia de divulgar as minhas cartas, cuidando que nun-
ca chegariam a Portugal, deixando o meu pai coberto de
raiva e de vergonha.
Antes de ele partir, já meu irmão me avisara de que
pelas ruas de Beja se falava à boca pequena das visitas
nocturnas de Noël, mas até ao momento em que as car-
tas chegaram ao meu pai, estava a salvo. Tenho quase

140
MARIANA, MEU AMOR

a certeza de que me teria matado, se não estivesse aqui


fechada. Durante meses temi que enviasse algum criado
com comida envenenada, tal era a fúria que tinha sobre
mim. E agradeci a Deus a sorte de me encontrar protegi-
da, acarinhada pela madre Dona Brites, que me ensinou o
ofício de escrivã e por mim ganhou uma afeição materna
que em muito me ajudou quando ele partiu.
Ninguém podia nem queria expulsar-me, pois meu pai
muito pagara para que fosse para sempre esta a minha
morada. Em vez disso, fizeram de mim clarissa, cuidando
que o negro véu me ajudaria a apagar as mágoas. Mas
o meu espírito nunca se libertou do peso da matéria. E a
morte de minha mãe, pouco tempo antes, deixara outra
ferida aberta em meu coração. Essas duas feridas demo-
raram anos a fechar, querida Benedita. Na verdade, nunca
fecharam, mas com o tempo fui-me esquecendo delas,
porque o tempo é um ladrão, rouba-te tudo, até a tristeza.

141
PARTE IV
10.

Sabe bem aterrar em Lisboa. O voo é cansativo, mas


assim que piso a placa do aeroporto da Portela, sinto-me
em casa. Apanho um táxi e vou conversando com o moto-
rista, que se queixa da chuva e do frio, da austeridade e do
Sporting. Dou-lhe uma boa gorjeta e carrego as duas malas
com toda a calma pelas escadas acima porque o elevador
está avariado. Desfaço-as e separo a roupa para lavar. Ligo
à Laura, que anda de passarinho novo. Nada de sério, diz-
-me. Já sabes como sou. Quem me dera ser assim, respon-
do. Não és porque não queres. Já esqueceste o Jasper? Mais
ou menos? Então, mulher, isso é que não pode ser. Foste ao
Brasil para quê? Ao menos deste umas voltas?
Desvio a conversa e combino jantar, se não adormecer
entretanto. Estou estoirada, não sei se me aguento até às
nove da noite sem cair para o lado. Pago contas atrasadas,
ponho os mails em dia, faço uma máquina de roupa, envio
recibos para facturar os trabalhos que fiz no Brasil, como
um crepe de chocolate e, quando paro, penso em ti. Tenho
de me aguentar. Agora começa a parte mais difícil, estar

145
MARGARIDA REBELO PINTO

em Lisboa como se não existisses, como se nunca tivesses


existido. Dormito uma hora, tomo um duche e vou ter com
a Laura a casa dela. Mora nas Avenidas Novas, num prédio
restaurado, um quarteirão abaixo do Sérgio. Recebe-me
com um abraço caloroso e expectante.
— E então, passou-te a parvoíce, ou não?
Abano a cabeça com desconsolo.
— Devias ter ficado lá. Duas semanas é pouco para lim-
par estas merdas do sistema — conclui, fleumática.
— Não podia. Já estava a pesar ao Marcelo, sabes como
é. Ficar em casa de um homem nunca é como ficar com
uma amiga, acabas sempre por fazer cerimónia.
— E não conheceste ninguém em casa de quem pudes-
ses ficar?
— Sim, fiz uma nova amiga, daquelas para a vida, mas
não tive lata de me fazer convidada.
— E o Pedro disse alguma coisa?
— Nada.
— E tu?
— Já me conheces, mandei alguns sms, umas músicas,
coisas de adolescente, uma estupidez.
— Servem-te de muito — respondeu a Laura, enco-
lhendo os ombros. — Essa história já só existe na tua cabe-
ça. Se fosse para largar a mulher, já teria feito alguma coisa.
Tens de aceitar.
— Pois tenho. Que remédio. Ainda hoje cheguei e já me
sinto a esbracejar no pastel de nata.
— Isso é porque foste uma otária e não aproveitaste o
Brasil como devias. Conta lá a história do fotógrafo.
— Não há nada para contar. Era giríssimo, fez-se à pista,
deu-me vontade na altura, mas depois cortei-me. E conheci

146
MARIANA, MEU AMOR

um actor óptimo, bom carácter e bom coração, mas ficá-


mos só amigos.
— Devias ter curtido mais, Alice.
— Eu sei. Mas o corpo e a cabeça não deixaram. Fiquei
travada.
— Isto tem de ter um fim, mulher. Já estás a entrar em
looping. Foste para o Rio para quê, afinal?
— Trabalhar. E tentar esquecer. Mas os problemas via-
jam connosco. Acho sinceramente que, mesmo que me ti-
vesse enrolado com o Bruno ou com o Gustavo, não teria
mudado nada.
— Mas ao menos fazias uma lavagem de pele. Tens de te
ir embora outra vez.
— Estás louca? A minha vida é aqui. Tenho trabalho
regular e, além disso, comprometi-me com a Patrícia para
fazer um livro sobre a Soror Mariana Alcoforado.
— A freira maluca das cartas de amor?
— Essa mesma.
— Alice, isso é um veneno emocional para ti. Não me
lembro bem da história, mas ela não foi abandonada pelo
amante? Queres reviver o drama a dobrar? Não te chega
carregar a tua cruz, ainda te metes em trabalhos para carre-
gar a de uma freira louca e desvairada que deve ter passado
o resto da vida a lamentar-se da sua triste sorte? Sai dessa,
é terreno pantanoso.
— Não é bem assim, Laura. As cartas dela são impres-
sionantes, foi uma mulher temerária, muito à frente do seu
tempo. Ela conseguiu vencer-se a si mesma, neste momento
não consigo imaginar nada mais difícil, este livro não é um
tormento, é uma inspiração. E, além disso, sabes que não
sou de desistir de nada.

147
MARGARIDA REBELO PINTO

— Antes fosses. Se tivesses desistido desta palhaçada


com o Pedro, já estavas de certeza muito melhor. Queres
mergulhar ainda mais na tua tristeza, ou queres ser feliz?
Não te chegaram estes meses de neura? A tua vida é onde
quiseres, Alice. Não tens filhos, és organizada, tens uma
renda que te assegura os básicos, podes alugar a tua casa se
quiseres…
— Pois posso fazer isso tudo, mas não sei se quero.
— Então queres o quê? Ficar aqui à espera que as coisas
mudem? Não percebes que o Pedro é uma guerra perdida e
que nunca mais vai voltar?
— Isso não sabemos.
E pronto, aqui vou eu outra vez muito estúpida a tentar
negar a evidência.
— Alice, podes acordar para a vida, por favor? O Pedro
está noutra, na dele, com a vida que sempre teve e a famí-
lia. Eu fui casada com um advogado, sei muito bem como
funcionam aquelas cabeças. Só uma ingénua como tu é que
ainda acredita no Pai Natal.
Baixo a cabeça e ponho-a entre as pernas. Porque é que
não consigo aceitar que seja esta a realidade? Sinto-me a
pessoa mais estúpida do mundo.
— Mas nós tivemos uma relação espectacular, não acre-
dito que isso não tenha deixado saudades.
— Claro que ele tem saudades, mas tem mais em que
pensar: as duas miúdas pequenas, o status, a vida organi-
zada, levar os miúdos ao Jockey ao fim-de-semana e uma
mulher que faça tudo o que ele quer, não percebes, porra?
— Não.
— Não percebes porque nunca foste casada. Ao fim de
uns anos, o outro vira parente, como dizem lá no Brasil.

148
MARIANA, MEU AMOR

Deixa de existir aquele frisson, a excitação, os miúdos dão-


-nos cabo do tempo e da energia, instala-se uma rotina,
uma moinha surda que vai corroendo o romantismo até
só sobrar logística e conveniência. Eu era completamente
apaixonada pelo Sérgio, durante anos tive um tesão louco
por ele, mas depois as coisas mudaram. E mudaram sozi-
nhas, sem que eu quisesse ou fizesse alguma coisa por isso.
Não pude fazer nada para evitar essa mudança. Esse lado da
relação adoeceu, agonizou e morreu. Ou continuava casada
e começava a olhar para o lado e a fazer merda, ou me sepa-
rava e voltava à vida de antes. Essa fantasia que tu tens dos
casais viverem felizes para sempre é típica de quem nunca
lidou com a vida conjugal. Cada ano de casamento é um ano
canino, pesa como se fossem sete. Tu sabes lá o que é ter de
baixar o tampo da retrete todos os dias, ouvir um homem
a ressonar todas as noites, aturar os atrasos diários quando
são workaholics como o Sérgio, ou inúteis como tantos que
conhecemos. Estão sempre num extremo ou no outro, ou
trabalham demais e são uns indigentes, ou são loucos por
nós ou se desinteressam, e depois começas a perceber que
pode haver uma gaja qualquer aqui e ali, não sabes se é
importante ou não, se é ele a querer ir marcar pontos para
provar a si mesmo que ainda está aí para as curvas, ou se é
uma puta qualquer que decidiu sacar-te o marido. Muitas
vezes é uma amiga tua, alguém próximo em quem confias,
visita de tua casa, que apresentaste de boa-fé, uma amiga
de sempre que vai aparecendo, recém-divorciada, e quando
dás por isso começas a perceber que ali há gato, e a tua vida
transforma-se num inferno, começas a imaginar o pior. E o
pior é que o teu instinto quase nunca falha.
Ela tem razão. Tem sempre razão. Continuo a ouvi-la.

149
MARGARIDA REBELO PINTO

— Desculpa ser tão bruta, mas esta é a verdade, não


percebo porque insistes numa merda que te ia pesar. Quatro
crianças, Alice? E olha, nas costas dos outros vemos as nos-
sas. Se o gajo engana a mulher com essa facilidade, podia
fazer-te o mesmo. Não percebo como, depois de tudo o
que passaste quando eras uma miúda, ainda embarcas em
certos disparates. Tu levaste com o lixo do mundo, como
é que não viste o que ia acontecer, que o mais provável era
ele curtir um Verão Azul contigo e continuar com a vida
dele?
— Eu cresci com outro tipo de lixo, Laura. Os meus
pais eram os dois drogados, sem norte. O meu pai foi o
avô Vicente, que tu conheceste, queres maior exemplo de
integridade e de carácter? Eu pensei que o Pedro era um
tipo sério.
— Querida, um tipo sério, quando se apaixona, separa-
-se, como fez o Sérgio. Um tipo sério tem outra conduta,
outro carácter. Ele sabe que te apaixonaste. Agora sim, está
a ser sério, porque tomou uma decisão e já não te procura.
Percebeu o que querias, e como não quer alimentar os teus
sonhos, retira-se. Agora ele está a ser um senhor, devias
perceber que te está a proteger. Se quisesses ser só amante,
isso até podia durar…
— Estás parva? Só servem para amantes homens de
quem não se gosta. Quando estou apaixonada quero tudo.
Ou tudo ou nada.
— Então aceita o nada, porque é o que tens, mete a vio-
la no saco e siga a marinha. Aceita e aguenta, não tens outro
remédio. E como dizia a tua avó Ema…
— O que não tem remédio, remediado está. Eu sei. É
isso mesmo. Agora é só conseguir passar essa informação

150
MARIANA, MEU AMOR

toda da cabeça para a pele e para o coração. Essa é a parte


mais lixada.
— Se arranjares outro gajo é mais fácil.
— Se ao menos tivesse vontade, nem que fosse um bo-
cadinho. Mas não tenho.
— Mas vais ter, mulher. Tens de te virar. Pior do que
estás já não vais ficar. Agora é levantar a cabeça e seguir ca-
minho. Deixa lá o professor de equitação na vida dele. Tens
liberdade de escolha, deste tudo, tentaste o melhor que
soubeste, estás há meses à espera de uma coisa que não vai
acontecer. Não percas mais tempo, Alice. Já chega.

Passaram duas semanas desde que cheguei do Brasil.


A minha casa está fria e vazia. Tento concentrar-me na
Mariana Alcoforado e no seu triste destino. Na Sábado
gostaram das minhas entrevistas e reportagens e encomen-
dam-me mais trabalho. Saiu a entrevista da Luísa na revista
do Expresso e recebi vários elogios. O Rodrigo, director da
Sábado, pergunta-me se tenho alguma ideia para a edição
online e sugiro-lhe lugares mágicos de Lisboa, uma espécie
de revisitação de espaços antigos reabilitados ou de coisas
novas que estão a dar. Sugiro o Jockey. O Rodrigo fica sur-
preendido. Isso ainda mexe?, pergunta. Confia em mim,
vou fazer uma crónica gira. OK, responde, faz o que quise-
res, na verdade o que mais estamos à procura é de origina-
lidade, por isso o Jockey parece-me bem.
Dedico mais três dias à minha Soror. As cartas são de
uma beleza pungente. Releio-as e escrevo notas sem cessar,
já sei, vou reescrevê-las, anos depois, quando a razão já era
dona do seu coração. Há um decrescendo da primeira para
a última missiva. Mariana começa por chamá-lo à sua razão,

151
MARGARIDA REBELO PINTO

mostrando-se ofendida com a partida dele. Considera, meu


amor, até que ponto foste imprevidente! Oh infeliz, que foste
enganado e a mim também enganaste com esperanças ilusó-
rias. Uma paixão sobre a qual tinhas feito tantos projectos
de prazeres não te causa agora mais do que mortal desespe-
ro, só comparável à crueldade da ausência que o provoca.
É assim que Mariana se dirige ao seu amado. A cada linha
vai acusando e desculpando-o ao mesmo tempo, confusa,
perdida no seu coração, paradoxal, ou como seria moderno
dizer-se, bipolar. Mariana avança e recua, troca de tom de
um parágrafo para o outro, enquanto sente o seu amor a
naufragar. Mil vezes ao dia, dirijo para ti os meus suspiros,
eles procuram-te em toda a parte e, como recompensa de
tantas inquietações, apenas me trazem o aviso demasiado
sincero da minha triste sorte.
Mariana é uma leoa, luta como uma guerreira, mas sem
inimigo presente a luta torna-se impossível de travar. É
como tentar enfiar um fantasma num frasco de vidro. Por
muito que se ame o outro, se o outro partiu e já nos esque-
ceu, nada o fará voltar. Ela sabia desde a primeira carta que
Noël não voltaria, e mesmo assim não desistiu. Ou talvez
por isso mesmo. Entrou em modo braço-de-ferro com o
amante, que é o que as mulheres fazem quando querem
acreditar que têm tudo a ganhar, mas já sabem que não têm
nada a perder. De modo nenhum quero imaginar que me te-
nhas esquecido. Não sou eu já suficientemente infeliz, para
me atormentar com falsas suspeitas? E por que razão havia
de me esforçar por esquecer todos os desvelos que puseste em
me testemunhar amor? Noël escrevera-lhe, ao que parece,
uma missiva que a desiludira. E, no entanto, Mariana agar-
ra-se ao passado como se pudesse lá voltar. Estou decidida

152
MARIANA, MEU AMOR

a adorar-te para toda a vida e a não ter olhos para mais


ninguém. E asseguro-te que também tu farás bem em não
amar mais ninguém.
Consigo imaginar o desconforto de Noël ao receber pa-
lavras tão inflamadas. Chego mesmo a pensar que o sosse-
gou o facto de Mariana não poder sair do convento. Estava
fora de si, confinada aos muros de pedra e à janela onde
o esperara tantas noites. Se fosse livre, certamente teria
encontrado forma de fugir e estou em crer que, no meio
da sua loucura, terá engendrado um esquema de fuga. Será
que não o concretizou por falta de meios, ou por ter medo
de ser rejeitada à chegada? Viajar sozinha para França no
século xviii era certamente mais complicado do que chegar
às montanhas do Ladak, perdidas no meio do Butão, no
século xxi.
Mariana lutou com as palavras porque eram a única
arma que possuía. Usou-as para perpetuar na memória do
amante tudo o que viveram quando se encontravam à re-
velia do mundo. Como todas as almas feridas e solitárias,
inventou com o seu interlocutor um monólogo, cuidando
que ele a ouvia. Tão bonito, o verbo cuidar, quando é usado
no sentido de crer. O português ganhou com os neologis-
mos, mas perdeu com o esquecimento de verbos e expres-
sões, como, por exemplo, bem-haja. Não é tão mais bonito
agradecer com um bem-haja do que com um obrigada?
Bolas, já estou a divagar. Se não me concentro, não tenho
livro nem daqui a seis meses, nem daqui a um ano.
A freira portuguesa, como ficou conhecida no mundo,
sobreviveu mais de 40 anos ao desgosto. O amor não mata.
Torna-se abadessa do Convento da Conceição, autoridade
suprema da sua prisão perpétua, é enterrada como uma

153
MARGARIDA REBELO PINTO

grande devota, mas será que encontrou na paz espiritual


algum tipo de amor, de conforto, de afecto? Ou foi apenas
estóica e aprendeu a calar a tristeza, até que a erosão do
tempo e a realidade finalmente dissiparam a sua tristeza?
O que pode curar os males do coração? Não acredito
no poder da resignação para servir tal fim. A entrega só se
resgata com mais entrega, um amor só se cura com outro
amor, mais forte e mais feliz. Ou estará o ser humano tão
habituado a sofrer que as suas células se programam para
situações recorrentes de auto-abuso? Quando um homem
nos deixa, só continuamos a sofrer por ele se quisermos.
Acredito que o que aceitamos de abuso, no sentido de per-
mitir que alguém não nos trate com amor e respeito, tem
que ver com a capacidade que temos em aguentar o nosso
auto-abuso; se o Outro for mais longe do que nós, conse-
guimos escapar-lhe, mas se for quase tão longe, é algo que
já conhecemos e por isso aguentamos. E podemos aguentar
durante anos, apesar de nos destruir ainda mais.
No século xvii, as mulheres não eram livres. Nem de
corpo, nem de coração, nem de espírito. A sua existência
era, sob muitos aspectos, semelhante à de um escravo do
Império. Nem sequer precisavam de andar acorrentadas
porque a sociedade já as continha num espartilho moral
mais pesado do que todas as grilhetas do tempo da escrava-
tura. A filha mais velha casava-se, o destino da filha segun-
da, ir para um convento, o que era considerado melhor do
que ficar solteirona num mundo onde não havia lugar para
ela.
O mundo mudou. Tu partiste-me o coração, viajei, mu-
dei de ares, sou livre e, no entanto, não me consigo sentir
livre. Ainda não aceitei que acabou. Estarei a provocar em

154
MARIANA, MEU AMOR

mim uma situação de auto-abuso? A adversidade fortalece


o carácter. Mariana parece ter sido mais forte do que eu.
Se na primeira carta a minha heroína luta contra o esque-
cimento, apelando ao bom coração do amante, já na última
assume que aceita o abandono, e junta à sua derradeira mis-
siva os presentes que Noël lhe dera.
A primeira missiva é repleta de frases arrebatadas.
Poderias, acaso, contentar-te com uma paixão mais ardente
do que a minha? Encontrarás talvez maior beleza (e, no entan-
to, disseste-me outrora que não me faltava beleza) mas não
encontrarás jamais amor tamanho — e o resto não conta.
Lembro-me de me dizeres que me achavas muito boni-
ta. Nunca fui uma beleza clássica, talvez tenha o queixo
demasiado fino ou a testa demasiado grande, há uma des-
proporção qualquer na minha fisionomia que eu estranho
e que os homens parecem considerar atraente. Ajuda-me a
cor dos olhos, de um verde muito claro, e uma boca grande,
desenhada por natureza, como se tivesse nascido pintada.
Todos os homens gostam de bocas bem desenhadas e de
olhos claros. Mariana não era bonita, segundo as ilustrações
que existem da época. Mas quando Matisse a desenhou,
emprestou-lhe uma beleza inesperada.
Imagino-a bonita, por ter sido tão forte, por ter feito
tudo o que fez, por ter aberto a porta do seu corpo e do
seu coração àquele que amava e por ter tido a coragem de
lhe escrever tão belas cartas. E também por ter conseguido
dizer-lhe adeus de uma forma digna, bela e serena. Logo
numa prova de subtileza, passa do cordial tratamento por
tu para o cerimonioso você: Ah! Fui a culpada de todas
as minhas desgraças: primeiro habituei-o a uma grande
paixão, onde havia demasiada simplicidade — e é preciso

155
MARGARIDA REBELO PINTO

artifícios para se fazer amar; é preciso procurar, com uma


certa habilidade, os meios de inflamar, pois o amor, só por
si, não gera amor. Usando o seu orgulho como arma, acres-
centa: Prometo-lhe não o odiar; por demais desconfio dos
sentimentos violentos para me atrever a fazê-lo.
Mariana entende que lhe foi demasiado dedicada, de-
masiado fácil, e que a ausência de mistério ajudou a matar
o encantamento. Mais adiante, acrescenta: Eu era jovem,
era crédula, tinham-me encerrado neste convento desde a
minha infância, só tinha visto pessoas desagradáveis, nunca
ouvira as lisonjas que sem cessar me dirigia. Parecia-me
que era a si que eu devia os encantamentos que dizia encon-
trar em mim e de que fazia dar conta.
É bom não esquecer que Noël era grande amigo do seu
irmão Baltasar, o qual, depois do escândalo, se arrependeu
de os ter apresentado e de ter sido ele o mensageiro da
correspondência que viria a ser misteriosamente publicada
cerca de um ano depois de ter chegado às mãos de Noël.
Mariana não lhe perdoa quando escreve, já na última car-
ta: Ouvira falar bem de si, toda a gente me falava em seu
favor, e, pela sua parte, fazia quanto era preciso para des-
pertar o meu amor. Mas, finalmente, regressei desse encan-
tamento. Deu-me para tanto uma grande ajuda e confesso
que dela tinha extrema necessidade. Embora lhe devolva
as suas cartas, guardarei cuidadosamente as duas últimas
que me escreveu, e hei-de lê-las ainda mais vezes do que
li as primeiras, a fim de não voltar a cair nas minhas fra-
quezas. E mesmo antes do fim, acrescenta: Prometi a mim
própria um estado mais sereno e que lá hei-de chegar!
Grande Mariana. Tenho muito a aprender com ela.
Soube bater com a porta, dizer-lhe que era forte e que o

156
MARIANA, MEU AMOR

conseguia esquecer. Soube ser mais forte do que o amor


que sentia por ele, e por isso mesmo, mais forte do que o
seu próprio destino. Sem o saber, foi uma das feministas
mais importantes da história da literatura europeia. Quem
me dera já ter o meu coração nesse lugar de orgulho e de
distância. Se não tentar, não vou conseguir.

157
11.

Hoje é dia de me dar uma pausa e regressar ao mundo


real. Volto ao Jockey, onde almoçámos tantas vezes, e almo-
ço sozinha, na nossa mesa. Os empregados parecem reco-
nhecer-me porque quando um deles me pergunta se espero
alguém e lhe digo que estou só, abana a cabeça enquanto
levanta o prato e os talheres do lugar da frente. Estou sen-
tada na última mesa do fundo, junto à janela, de costas
para a porta, para não ter de ver ninguém. Começo a tirar
notas. Chamo o chefe de mesa para me contar histórias
e curiosidades de um dos mais antigos clubes de Lisboa.
Ainda se lembra dos meus avós, desenha um sorriso franco
e carinhoso quando ouve o nome deles.
— Então não me lembro, menina? O senhor engenhei-
ro, sempre de lenço na lapela, e a sua avó, muito bonita,
loira, assim prò vistosa, sempre muito chic, sabe que ela
pedia sempre bolo de bolacha para acompanhar o café?
Que engraçado, pensei. Fiz o mesmo sempre que almo-
cei contigo e nem me lembrava que a minha avó era doida
pelo bolo de bolacha do Jockey.

159
MARGARIDA REBELO PINTO

— A sua avó era a Dona Ema, não era?


— Sim, é extraordinário como ainda se lembra do nome
dela.
— É a velhice, menina. Uma pessoa lembra-se mais do
que está lá para trás do que se fosse há meia hora. Também
eram outros tempos, em que o clube era como uma casa
de família. Agora está cheio de gente desconhecida, estran-
geiros, advogados, empresários que não percebem nada de
cavalos mas que acham fino ter cá os filhos para se gabarem
aos amigos, a menina entende o que eu lhe estou a querer
dizer, não entende?
— Entendo sim, senhor Alberto. Mas olhe que o restau-
rante continua muito bom.
— É como tudo, menina, tem dias. Mas o importante é
que a menina se sinta bem. Também se chama Ema como
a senhora sua avó?
— Não, sou Alice, como a minha mãe.
— Ah pois, já me lembro da sua mãezinha. Era magrinha,
cabelo comprido, muito alta, espigada… a menina dá ares a ela.
OK. Afinal a minha mãe ainda teve uma vida normal
antes de se perder na Meia Laranja. Mais valia ter-se apai-
xonado por um tratador de cavalos do que pelo meu pai.
Mas a vida tinha outro destino marcado e ela não soube ser
mais forte do que o próprio destino. E eu, será que consigo
ser mais forte? Estou para aqui a olhar para a janela e a lem-
brar-me dos nossos almoços, das voltas no picadeiro, das
semanas em minha casa quando a tua família foi de férias,
do teu pijama na minha gaveta. Já regressei do Rio há se-
manas e, no entanto, não sinto grandes mudanças. As coisas
nunca acabam nem quando nem como queremos. Acabam
quando têm de acabar. No entanto custa-me a acreditar

160
MARIANA, MEU AMOR

que não tenhas saudades minhas, que não tenhas vontade


de me telefonar. Posso estar a ser infantil e teimosa, mas a
minha intuição diz-me isto que ainda não acabou.
— O senhor Alberto não se importa de tirar uma foto-
grafia comigo? É para um artigo que estou a escrever sobre
o Jockey.
— Ó menina, não me peça uma coisa dessas. Quem sou
eu afinal? Já estou tão velho…
— É o empregado mais antigo da casa. Vá lá, faça-me
essa simpatia.
E faço uma selfie com o senhor Alberto antes de ele
me servir um café com uma fatia de bolo de bolacha que
hoje está mais delicioso que nunca. Talvez achem graça para
ilustrar a crónica. Afinal, tem o seu quê de pitoresco. E se
fosse à box ver o Orelhudo? Será que ainda se lembra de
mim? E se lá for, será que te vai dizer que passei por cá?
Até me passa pela cabeça tirar uma selfie com ele e enviar-te.
Meu Deus, cada dia estou pior, só penso em disparates.
Era o que me faltava, ir tirar uma selfie com um cavalo. A
Laura tem razão, talvez não fosse má ideia fazer as malas e
voltar para o Rio. Lá não há Orelhudos nem memórias de ti,
a cidade é só minha, não lhe chegas nem lhe tocas.
O meu iPhone dá sinal de mensagem. Não é o toque
normal de sms. É o teu toque. O teu toque é diferente, tan-
to o de mensagem como o de chamada. Chamas-te 007. Se
não fosse pela tua fotografia de perfil, seria quase impossí-
vel descobrir a verdadeira identidade do meu James Bond.
Pára tudo. Enviaste-me uma mensagem. Beijinhos com
saudades. Só isto. E chegou para o mundo parar de girar
em meu redor. Nem acredito. Não tenho notícias tuas há
várias semanas. Calma. Pode não ser nada. Não é nada com

161
MARGARIDA REBELO PINTO

certeza. É só o que vem escrito: beijinhos e saudades. É


normal mandares beijinhos, é normal teres saudades. São
tudo coisas que fazem parte da vida. O carinho que fica por
alguém de quem gostámos. E as saudades do que vivemos.
Mas o meu coração dispara como o de uma adolescente e
a minha cabeça começa a confabular. E se for mais do que
isto? E se tiveres muitas saudades, tantas que te façam vir
ter comigo? E se eu puxar por ti, será que vens?
Eu sabia. Sabia que era impossível não teres vontade
de me ver. Eu tenho todos os dias, sempre que acordo. É
apenas natural que também tenhas, mesmo que não seja
todos os dias. Há um momento qualquer em que te bate
uma coisa dentro da cabeça ou do coração e pensas em
mim. Pegas no telefone e escreves o que sentes. Beijinhos
e saudades. Fico a olhar para o visor. Não vou responder.
Não já. Vou esperar um bocadinho, o tempo que conseguir.
Quero saborear antecipadamente algo que não sei o que é
mas que sei que é bom. Sinto que vais voltar. É apenas uma
questão de tempo.
Mandaste a mensagem à hora que paras para almoçar,
entre a uma e meia e as duas da tarde. Era a essa hora que
falávamos sempre, quando vivias a tua segunda vida em ple-
no. Paraste e pensaste em mim. E nem pensaste, enviaste
logo. Se tivesses pensado, não terias enviado. O teu lado
racional hoje estava distraído. Que sorte para mim. Ainda
penso em ligar à Laura, mas ia parecer uma estupidez ligar-
-lhe só porque me enviaste um sms. Pode não ser nada. Não
deve ser nada. Não aguento, vou responder.
Estou no Jockey.
A sério? Estive mesmo para ir aí almoçar hoje.
Então vem, respondo. Mas já estou no café.

162
MARIANA, MEU AMOR

Com bolo de bolacha  ?


Sim .
E fico à espera da tua resposta. Passa um minuto. Passam
dois minutos.
Queres que vá aí beber um café contigo?
Não.
Escrevo “não” antes de pensar, porque se pensar, vou
dizer “sim, vem já, estou a morrer de saudades tuas”.
E se eu for na mesma?
Eu fujo .
Está bem, querida, como queiras.
Como queiras, meu amor, como queiras, costumavas
dizer, citando Jorge de Senna. Dois minutos depois, já sem
aguentar o ruído que as batidas do meu coração provocam
dentro da minha cabeça, respondo:
Então vem .
Em menos de 10 minutos estou aí : não fujas, Açúcar.
Já estou a ir.
Fugir como, se as pernas são como duas estacas pre-
gadas ao chão? Fugir de quê, se estou há meses à espera
deste momento? O dia clareia lá fora, as nuvens afastam-se a
grande velocidade empurradas pelo meu optimismo súbito
em direcção a norte, o sol brilha, a relva do campo de saltos
ganha uma nova luz, brilhante e intensa. Bem, pelo menos
tenho de conseguir levantar-me para ir à casa de banho re-
tocar a maquilhagem. Estou de jeans, ténis All Stars e uma
T-shirt branca semitransparente da American Vintage de
que tu gostas. Lavei o cabelo hoje. Menos mal. Em cin-
co minutos escovo-o, retoco a base e o antiolheiras, ponho
batom de cieiro, um bocadinho de blush e um leve risco
cinzento na parte de dentro dos olhos. E um bocadinho de

163
MARGARIDA REBELO PINTO

rímel. Os meus olhos estão mais verdes. As minhas mãos


tremem. Volto a sentar-me à mesa e peço mais uma fatia de
bolo de bolacha ao senhor Alberto.
Sinto as palmas das mãos secas. Passo um creme rá-
pido pelas mãos. Respiro fundo e fecho os olhos para te
ver melhor. Estás a chegar, já não conto os minutos, agora
é tudo uma questão de segundos, imagino-te a passar a
cancela do clube, a estacionar o carro, a vestir o casaco, a
entrar no restaurante. Oiço passos largos atrás de mim e
viro a cabeça.
Chegaste. Levanto-me e damos um abraço imenso, sem
sequer olhar em volta. O restaurante está vazio, mas ainda
que estivesse cheio teríamos feito exactamente o mesmo.
Não te abraço há mais de três meses, mas quando chegas, é
como se nunca te tivesses ido embora.
— Estás tão bonita, Alice… anda, vamos sair daqui —
dizes-me baixinho.
— Mas eu pedi outra fatia de bolo…
— Comemos em tua casa — respondes. — Senhor
Alberto, embrulhe o bolo da menina Alice e ponha tudo na
minha conta, por favor.
Os teus dedos tamborilam em cima do balcão enquanto
esperas o embrulho. Nenhum de nós fala. Olhas-me fixa-
mente e quase sorris. Eu não consigo parar de sorrir, mas
não sei o que te dizer. Tenho tanta alegria atravessada na
garganta que mal consigo falar.
— Ainda bem que vieste — digo, baixinho, para nin-
guém ouvir.
— Já não aguentava mais de saudades tuas, querida —
respondes. O teu olhar é sério, já não sorris. Pegas no saco
de plástico que o senhor Alberto te entrega e levas-me pela

164
MARIANA, MEU AMOR

mão, como se eu fosse uma criança num sonho de uma


noite de Verão.
— Vamos.
Entramos no teu carro e guias depressa, concentrado nas
ruas de Lisboa. Estacionas perto da minha porta, onde nun-
ca há lugar, mas hoje há. Subimos as escadas a correr. Assim
que entramos em casa, encostas-me à parede e começas a
despir-me ali mesmo, e depois no corredor a caminho do
quarto. Tens o sobrolho franzido, há um ar de gravidade,
de quase transtorno espelhado na tua cara. Sempre fizeste
amor de uma forma séria, mas hoje é diferente. Hoje esta-
mos os dois de cabeça perdida. Andamos há meses a pensar
nisto, tu e eu, cada um na sua, a fingir que não queremos,
que não gostamos um do outro, que não somos importantes
um para o outro. O corpo a chamar. Os triliões de células
em festa. A tua pele igual à minha, sobre a minha, colada à
minha até ser a mesma pele, a mesma carne. Beijos e mais
beijos, na boca, na cara, no meu corpo, os meus no teu
corpo, eu com saudades do teu peito e tu, ávido do meu.
Prendes-me um braço em cima da cabeça para me beijar
o corpo todo muito devagar, há uma solenidade em cada
gesto, uma espécie de elevação que sempre existiu, desde a
primeira vez. A outra mão a dar-me prazer. E eu ali, entre-
gue, inteira e desfeita ao mesmo tempo, com todos os sen-
tidos a responder muito depressa, os dois surpreendidos e
maravilhados com o que estamos a fazer, a dar e a receber,
a sentir, a viver. Os teus olhos fixos nos meus, a tua voz a
dizer é tão bom é tão bom, eu a responder, tive tantas sau-
dades, e a fazer-te tudo o que tu gostas e das formas que
mais gostas, nenhum pára, nenhum quer parar, entras em
mim devagar, eu começo logo a vir-me, já me tinha vindo

165
MARGARIDA REBELO PINTO

só de me tocares, foi sempre assim desde a primeira vez,


sempre perfeito, sempre inesperado, sempre mais e me-
lhor e melhor e mais, nenhum pára, nenhum quer parar,
agarras-me as duas mãos contra o teu peito, beijos e mais
beijos, sinto os teus olhos dentro dos meus, estás todo cá
dentro, trouxeste o coração contigo e oiço-o a conversar
com o meu. Quero ficar contigo, quero que a minha vida
seja isto, quero-te de volta na minha cama quando a noite
cai e no meu sofá ao final da tarde a dormir uma sesta como
fazias quando chegavas mais cedo, quero voltar a almoçar
e a jantar contigo como fazíamos quando estivemos juntos,
continuo completamente apaixonada por ti, Pedro, não me
digas que não sentes o mesmo, está cá tudo, nunca foi só
desejo, é muito desejo com muita paixão e entendimento,
é uma paz que nunca senti com mais nenhum homem, os
teus olhos brilham e dizes baixinho: Tão linda que ficas
quando fazemos amor. Não me perguntes como nem por-
quê, mas continuo a confiar em ti, eu quero confiar em ti e
acreditar que tudo é possível, querido, por favor, ouve-me
e ouve o teu coração, não desistas de nós, estas coisas acon-
tecem poucas vezes na vida, não vale a pena fugir, mais vale
aprender a aceitar e pensar como podemos fazer porque
está cá tudo, não desistas, por favor, não desistas…
Nunca fiz amor assim com ninguém, acredito que tu
também não, já falámos disto algumas vezes, desde o dia
em que demos o primeiro beijo e atrasámos a primeira vez
para ser perfeita e podermos ficar juntos até ao dia seguinte
e depois todas as noites que ficaste comigo, os fins-de-semana
em Madrid e em Sevilha, e as vezes que vieste à hora do
jantar ou do almoço, quando já tinhas desistido de ficar
comigo mas eu não queria aceitar a evidência. Eu sabia que

166
MARIANA, MEU AMOR

ias voltar, Pedro, era impossível negar isto, por ser tão sério,
tão profundo, tão perfeito, tão tudo.
Passa mais de uma hora até terminarmos, exaustos, en-
charcados, o teu cabelo desalinhado, o meu num caos. A
minha pele a brilhar, a tua respiração ofegante, e ainda bei-
jos e abraços, muitos beijos como se fossem esgotar, até à
recta final. E depois desacelerar, o coração aos pulos, vejo-o
a bater no peito, como se fosse saltar. Agarro na tua mão
para o acalmar e ficamos quietos, entrelaçados, as pernas
presas umas nas outras, a tua cara encostada na almofada
do meu lado e a minha mão a afagar-te o cabelo. Quero per-
guntar-te se recebeste o meu presente de anos, se gostaste,
porque demoraste tanto tempo a voltar, mas de repente
os teus olhos perdem expressão, transformam-se em duas
bolas de vidro. Quando pergunto como estão os miúdos,
respondes evasivamente: Estão bem, agora acabou o frio
e por isso já não se constipam. Não queres falar deles, não
queres falar de nada. Só queres prolongar um pouco mais
o êxtase, o prazer, a bolha. Morri de saudades, dizes com
um ar triste. Eu também, mas agora estamos aqui, querido.
Aproveita e saboreia, está cá tudo e é tão bom…
Não me respondes. O teu olhar já está a afastar-se. Ainda
sinto o teu corpo ligado ao meu, mas já me escapas a cada se-
gundo que passa. Dez minutos depois saímos de casa. Guias
pela cidade, o olhar cada vez mais vago, de mão dada comigo,
em silêncio. Deixas-me na porta do Jockey para ir buscar o
meu carro. Dás-me um beijo imenso, fazes-me uma festa na
cara, dizes com um sorriso largo e feliz, até já.

Os dias passam e não voltamos a falar. Não respondes


aos sms nem aos e-mails. Não ouso ligar-te, raras vezes te

167
MARGARIDA REBELO PINTO

liguei, nunca tive esse hábito porque me ligavas sempre,


podes estar em reunião ou no tribunal, conheço de cor as
tuas rotinas, sei a que horas sais de casa e quanto tempo
demoras a fazer o trajecto até ao escritório. Uma semana
depois mando-te por correio um envelope cheio de bor-
boletas de cartão que comprei numa loja no Príncipe Real,
cada uma diz uma palavra e está numerada, todas juntas
formam uma frase, não desapareças da minha vida, adoro-
-te, pensa bem, não nos deites fora, um beijinho.
Nada. Não me respondes a nada. Durante a primeira
semana aguento-me, trabalho o melhor que posso, guardei
para mim o nosso último encontro, mas depois do segun-
do fim-de-semana sem notícias tuas, começo a desesperar.
Ligo para a tua secretária que me informa que estás em
viagem, envio-te enfim uma mensagem de voz por mail,
sinto-me triste e zangada, digo-te tudo o que penso e o que
sinto, peço-te para nunca mais me tratares assim, não sou
uma aventura, nunca fui, isto não foi só sexo nem nunca
será, peço-te que sejas corajoso como quero acreditar que
és e que fales comigo. Ainda assim não me respondes, nun-
ca mais me respondes, não queres saber o que penso nem
o que sinto, talvez nem saibas porque vieste ter comigo,
talvez estejas tão baralhado como eu, ou então isto acabou
há muito tempo e eu não quis aceitar, o nosso encontro
foi apenas um momento, como o último estertor de um
moribundo que parece recuperar minutos antes de morrer.
Deixo de ter apetite, perco a concentração, acordo a cho-
rar, não tenho vontade de me levantar da cama, procuro o
colo da Laura, que me dá almoço e jantar durante vários
dias, que me limpa as lágrimas enquanto me pede por fa-
vor para nunca mais te abrir a porta. Adio a reunião com a

168
MARIANA, MEU AMOR

Patrícia por causa do livro, digo-lhe que estou doente, ela


percebe o que se passa mas nem me pergunta, adio duas
entrevistas que não consigo preparar a tempo, perco peso,
o cabelo começa a cair às mechas, tenho dores de barriga e
dores de cabeça todos os dias, as únicas coisas que consigo
fazer sem sentir dor é ir ao ginásio, ver episódios de séries
em catadupa, comer chocolates e dormir à custa das benzo-
diazepinas. Tento ler mas não me consigo concentrar, assim
que começo a ouvir música dá-me vontade de chorar, os
dias ficam cada vez mais vazios e mais pesados, até a estu-
pefacção me esgotar por completo.
Demoro três semanas a perceber que até já não existe,
nunca existiu. Não consigo aceitar a tristeza e o silêncio.
Mas agora não tenho outro remédio. Queres esquecer-me,
vou fazer tudo por tudo para te deixar em paz e imitar-
-te. Vou fingir que consigo, até conseguir. Fake it until you
make it. Não vais ser mais forte do que eu. Nada pode ser
mais forte do que a minha vontade. Sou uma sobrevivente,
já passei por muito, não és tu quem me vai deitar abaixo.
Mariana soube pôr-se no seu lugar quando escreveu: Mas
lembre-se que prometi a mim mesma um estado mais sereno
e que hei-de lá chegar! É preciso que o deixe e que deixe de
pensar em si. Julgo mesmo que não voltarei a escrever-lhe.
Tenho alguma obrigação de lhe dar conta dos meus actos?
Se Mariana conseguiu esquecer Noël fechada num con-
vento e sem outro caminho que não o do amor-próprio e
da resignação, então também serei mais forte do que o meu
próprio destino.
É preciso matar as coisas antes que elas nos matem.

169
12.

Adormeço em luta contra o que sinto por ti, contra o


passado recente, contra tudo o que me aconteceu e que
não escolhi. Sonho que a minha casa foi invadida por insec-
tos gigantes que crescem e se multiplicam. As portas e as
janelas estão todas fechadas, excepto a do meu quarto, por
isso refugio-me na varanda, faço uma escada improvisada
com os lençóis da cama e desço para o saguão do prédio,
mas não tenho a chave da porta que liga o saguão ao prédio.
Tento arrombar a porta sem sucesso, enquanto vejo, aterro-
rizada, os bichos que descem pelos lençóis. Começo a gritar
por ti, porque é que não estás aqui para me ajudar?
O toque do telemóvel liberta-me do pesadelo. Demoro
alguns segundos a recuperar, estou encharcada em suor. Há
sonhos tão vívidos que nos agarram noutra dimensão, parece
quase impossível voltar à realidade. A janela do quarto está
fechada. Não há bichos nas paredes. Ao menos isso. Atendo
um número que não conheço, embora me pareça vagamente
familiar.
— Bom dia, estou a falar com Alice Mendonça?

171
MARGARIDA REBELO PINTO

— Sim, sou eu.


— É a parente mais próxima de Manuel Mendonça?
— Sou a filha, porquê?
— Lamentamos informar que o seu pai faleceu esta
noite de pneumonia. Estava internado há três semanas,
tentámos ligar para a avisar do internamento, mas nunca
atendeu. Ele pediu várias vezes, nós insistimos…
O meu pai morreu. E tentou falar comigo. Por isso
sonhei com os insectos gigantes e a sensação de claustrofo-
bia, a fuga pela varanda, para chegar a um lugar sem saída.
Desconcertante, tudo isto; o sonho e o anúncio da morte
do meu pai, tudo ao mesmo tempo.
É verdade. Não atendi números que não conhecia.
Nestas três semanas não atendi quase ninguém, não me
sentia com vontade nem com forças para falar com desco-
nhecidos. O meu pai morreu depois de anos de agonia, de
solidão e de sofrimento. Deve ter pressentido a chegada
do anjo da morte, diz-se que os moribundos reconhecem a
hora da partida, e eu nem soube que ele estava internado.
Morreu sozinho, ou pior, morreu à espera que eu o visitasse,
e eu, fechada em casa a chorar por um amor perdido.
Quando oiço a notícia, é como se estivessem a dar a
informação a outra pessoa sobre um estranho. Não sinto
nada. Não consigo sentir nada porque o meu pai foi o meu
avô Vicente. O meu pai biológico, como agora se diz, que
expressão horrível, foi só dador de esperma, foi quem ti-
rou a minha mãe da catequese e a meteu a dar na fruta.
Não sei quem disse que a inocência é o caminho mais curto
para a perversão, nem sei porque estou agora a pensar nis-
to. Odiei-o tantos anos por me ter roubado a minha mãe
e lhe ter roubado a vida, por lhe ter sobrevivido, ainda o

172
MARIANA, MEU AMOR

odeio, embora também sinta pena, porque sempre foi um


fraco. Estou em choque porque a morte de alguém próximo
deixa-nos sempre uma sensação de estupefacção. Nunca
levamos a morte a sério até ao dia em que ela nos mostra a
foice. Mas sei que é apenas uma questão de dias. Em pouco
tempo vou esquecer este incidente, daqui a uma semana o
facto de o meu pai estar morto vai ser igual ao litro.
— Então e agora?
— Agora precisamos que, na qualidade do familiar mais
próximo, venha ao hospital tratar das formalidades.
Ligo à Laura, que vem ter comigo. Estou completamen-
te desorientada, sinto-me perdida. Invade-me uma sensa-
ção de remorso horrível por não ter atendido as chamadas
do hospital, mas não tinha o número identificado, como é
que ia adivinhar?
— Agora vamos tratar do que for preciso, vamos en-
terrar esse estropício e tu vais-te embora, ou para Londres
ou para o Brasil, ou para outro lado qualquer, não importa
qual, porque aqui não és feliz e não aguento mais ver-te
assim — diz-me a Laura.
— Nem eu — respondo. — Muito gostas tu da palavra
estropício.
— Eu não gosto, tu é que os puxas, a começar pelo teu
pai, que Deus o tenha em paz e me perdoe por dizer estas
barbaridades, mas infelizmente é a verdade.
— Vens comigo ao hospital?
— Claro. Vamos já despachar esse assunto.
A Laura guia em silêncio. Chegamos ao hospital, onde
nos indicam o piso da morgue. Pedem-me para reconhecer
o corpo e faço-o quase sem olhar para a cara que descobrem
ao abrir o fecho de correr. Entregam-me um saco pequeno

173
MARGARIDA REBELO PINTO

de plástico com um par de óculos muito velho e riscado e


um fio de prata com uma pequena chave. Foi tudo o que
ele levou para o hospital. Sinto náuseas, mas controlo-me.
Nunca mais vou esquecer o cheiro da morgue nem o ruído
do fecho do saco de plástico a subir e a descer. Mas já
esqueci o que restava da cara do meu pai, cinzenta, só osso
e pele, o queixo pontiagudo e duas bolas salientes debaixo
das pálpebras, para sempre fechadas.
Vamos à pensão onde vivia, na Rua da Madalena, a mora-
da que os serviços do hospital registaram no processo quan-
do ele deu entrada, e deixam-nos entrar no quarto onde
viveu os últimos anos. O dono da pensão é um velho seboso
com cara de pedófilo, talvez tenha lavado o pouco cabelo
que lhe resta antes da entrada de Portugal para a União
Europeia, mas revela-se prestável e solidário com a des-
graça alheia. Vive dela, é normal que de vez em quando se
sinta compelido a aliviá-la.
É assim que vivem centenas de milhares de pessoas em
Lisboa, sem eira nem beira, contando os cêntimos, sem sa-
ber se no dia seguinte o dinheiro vai chegar para um pão
com manteiga e um café, alimentando-se na mitra e pedin-
do fiado na mercearia do bairro, que os vai ajudando como
pode. Agradeço em silêncio como quem reza aos meus
queridos avós, que sempre me protegeram da miséria dos
meus pais, fazem-me muita falta, mas há muito que parti-
ram e o tempo ensina-nos a aceitar a ausência daqueles que
amámos e que já perdemos, porque é a única maneira de
continuarmos vivos.
O dono da pensão chama-se Amílcar, como o Presidente,
comenta a Laura, que mesmo nas situações mais dramáticas
nunca perde o sentido de humor.

174
MARIANA, MEU AMOR

— Eu tive a impressão de que se estava a finar e já não


ia voltar, por isso guardei as coisas dele na arrecadação, vou
buscar para a menina levar.
Ainda tento dizer que não quero ver nada, mas nos úl-
timos dias fiquei tão rouca que não me sai uma palavra.
A Laura, que comanda as operações, pede-lhe que traga
tudo o que era do meu pai. Regressa com um saco cheio de
roupas velhas e duas caixas de sapatos. Dentro de uma das
caixas está uma Bíblia fechada com um cadeado. Dá-me o
fio, diz imediatamente a Laura, que podia ser detective nas
horas vagas. Abrimos a Bíblia. Tem notas de 50 euros em
várias páginas. Morreu pobre mas ao menos deixou algum
para o enterro, diz a Laura, impassível. Nem consigo falar,
isto é tudo tão horrível, tão deprimente, é um mundo que
não quero conhecer, uma realidade que desejo esquecer,
para continuar viva e em paz.
No meio das roupas velhas encontro recortes de repor-
tagens minhas, coisas antigas, algumas já nem me lembrava
de as ter feito. São páginas arrancadas de revistas, em todas
têm a minha fotografia. Nunca cuidou de mim, mas guarda-
va tudo o que apanhava relacionado comigo. Que tristeza.
— Olha aqui um telemóvel do tempo da Maria Cachu-
cha — repara a Laura, sempre atenta —, está sem bateria.
O que lhe fazemos?
— Vai fora, com o resto das porcarias.
— Não. Pode ter informação que te interesse. Vamos
pô-lo a carregar.
— Não vamos conseguir ligá-lo. Não sabemos o pin.
— Não faz mal, descobrimos.
— Como?
— Como tudo na vida, por tentativa e erro.

175
MARGARIDA REBELO PINTO

— És muito optimista, Laura.


— Não sou, é uma questão de lógica. É com certeza
uma sequência simples de quatro números iguais, ou uma
capicua ou uma data, tipo o ano do teu nascimento. Vais
ver que descubro num instante. Pode ser a data de nasci-
mento dele ou o dia dos teus anos. O número sete. Os ho-
mens têm uma fixação no número sete, deve ser por causa
do zero, zero, sete. Só tenho três tentativas mas acho que
vou conseguir — conclui com um sorriso triunfante.
— Porque é que não trabalhas para a Brigada Anti-
terrorista?
— Porque preciso de tempo para ir ao cabeleireiro e
arranjar as unhas — responde com ar sério.
— E o resto? — pergunto, apontando para o saco preto
que tem as roupas e a caixa.
— Metemos tudo no primeiro caixote que encontrarmos.
— Mesmo a Bíblia?
— Sim. Tudo. Contei trinta e cinco notas de cinquenta
euros. Quanto dá?
— Mil setecentos e cinquenta euros.
— Então já ajuda a pagar o enterro. Anda, vamos sair daqui.
Perguntamos ao senhor Amílcar se o meu pai deixou
contas por pagar. Abana a cabeça.
— Não, menina, tinha pago o quarto dois dias antes de
ser internado, pode estar descansada. Vá em paz e boa sorte.
Boa sorte. Sorte é estar viva e não ter sido criada ao
deus-dará por dois irresponsáveis que gostavam mais do ca-
valo do que de mim. Sorte foi ter tido os meus queridos
avós. Sorte é nunca me ter dado para fazer disparates, nem
com álcool, nem com drogas. Sorte era não seres casado.
Daí até alcançar a boa sorte vai um passo de gigante.

176
MARIANA, MEU AMOR

Tratamos do enterro, sem missa, só uma cerimónia sim-


ples no cemitério, antes da cremação. A capela está cheia
de flores dos mortos anteriores. O ar é pesado, impregnado
daquele cheiro horrível a flores fechadas, o cheiro da tris-
teza dos mortos. No dia do enterro envio um sms à lista
completa de contactos do velho Nokia do meu pai, a in-
formar a hora e o local: 17 horas, cemitério do Alto de
São João. A Laura tinha razão, o código era uma sequência
repetida de números, quatro setes. Tão simples que pare-
ceu surpreendente.
— Sabes como os homens são previsíveis — rematou
com a sua fleuma habitual.
Crio um grupo no WhatsApp para avisar os amigos mais
próximos e os meus colegas de trabalho de quem mais gosto.
— Achas que avise o Pedro? — ainda arrisco a perguntar.
— Para quê? Ele nunca te acompanhou em nada, achas
que agora, que o teu pai morreu, vai mudar alguma coisa?
Esquece esse palhaço de vez, Alice. Só serve para te atrapa-
lhar a vida. Tens bons amigos, não precisas dele para nada.
Ou agora queres ficar amiguinha dele?
— Não. Nem sei se vou conseguir isso um dia.
— Não vais conseguir porque não vais querer, percebes-
te? Bolas, Alice, não tens orgulho? O gajo andou a brincar
contigo aos casais e voltou para a vida dele como se não
existisses, e tu ainda pensas nele? Esquece-o de vez.
— O pior é que nem sequer consigo odiá-lo.
— Não tens de o odiar. Tens de o ignorar. E, portanto,
não lhe vais dizer nada sobre a tua vida, porque ele não tem
nada que saber, estamos combinadas?
— Estamos. Não te preocupes. Já me magoei tanto com
esta relação que mais é impossível.

177
MARGARIDA REBELO PINTO

— Ele é que fez a merda toda, querida. Tu só acreditaste


num senhor bem-parecido que te disse tudo o que querias
ouvir e se apaixonou por ti. Eu também teria caído na con-
versa dele. Qualquer mulher solteira e sozinha se apaixona
por um tipo daqueles. Só que era tudo mentira. Ele demo-
rou algum tempo a escolher, mas escolheu a vida que tinha,
por isso tu vais escolher a tua e vais-te embora, percebeste?
Aqui só vais ficar pior.
A Laura tem razão. Sigo-a como um robot com as pilhas
em baixo enquanto ela resolve tudo com a funerária. É uma
máquina, a irmã que nunca tive. Sinto-me fora do meu cor-
po, a minha voz continua por um fio. Chego a casa, como
uma sopa e fruta, tomo mais dois calmantes e adormeço
sem sonhos. Um sono pesado, inerte, exausto. No dia se-
guinte tomo um duche quase frio, maquilho-me levemente
e visto umas calças de ganga e uma T-shirt preta. Devia ves-
tir-me melhor para o enterro do meu pai, mas não consigo.
Não vou armar-me em órfã desconsolada. O meu pai foi o
meu avô Vicente.
A Laura vem buscar-me a casa. Tranquila, solene, triste
por me ver triste. Os meus amigos mais próximos apare-
cem quase todos no enterro. Até o Martim, coitado, todo
carocho, quase careca, cara encovada, um farrapo. Em boa
hora me vi livre deste traste, mais um fraco apanhado pelo
cavalo.
O André foi dos primeiros a chegar e dos últimos a sair.
Estava com um ar de cão arrependido, pediu-me desculpa
por me ter falhado, expressão dele, mas mal ouvi o que me
disse. Estou-me nas tintas, esqueci-o muito mais depressa
do que pensei ser possível. Disse-lhe que estava tudo bem,
agradeci-lhe o tempo, a companhia e a solidariedade. Está

178
MARIANA, MEU AMOR

mais magro, envelheceu no último ano. Tem rugas novas na


cara, perdeu cabelo e o que tem embranqueceu. Há quem
diga que o remorso mata, deve ser verdade. Perguntou-me
se precisava de ajuda para alguma coisa e se queria ir ao ci-
nema na próxima semana. Até o senhor Amílcar, que deve
ter pouco que fazer além de cobrar a renda aos desgraçados
que vão passando pela sua pensão, se apresentou no ce-
mitério com uma expressão combalida e solidária. Parece
que as pessoas, a partir de uma certa idade, ganham um
gosto mórbido por ir a enterros. Deve ser porque começam
a morrer muitas pessoas, torna-se um hábito.
Nunca gostei de enterros, não fui ao da minha mãe, os
meus avós só me disseram que ela morrera uma semana
depois de a terem enterrado, neste mesmo cemitério. Se
calhar é por isso que não consigo despedir-me das pes-
soas. Se calhar devia ir visitar a campa da minha mãe, mas
não sinto vontade nem forças. Para quê? Nunca foi minha
mãe, o que me liga a ela é o mesmo que me liga ao pobre
diabo que hoje se vai libertar do invólucro humano através
da cremação: genes sem vínculo afectivo. Não admira que
não tenha instinto maternal. Nem os homens em grande
conta.
Vários colegas de trabalho vêm dar-me um abraço, não
me sinto assim tão só no mundo. Mas é estranho porque
o meu pai era filho único, tal como a minha mãe, todos os
meus avós já morreram. Não tenho família, ponto. Aquilo
a que as pessoas chamam a segunda família, ou a família
escolhida, composta pelos amigos, é a minha única família.
A Laura, a Patrícia e a Inês não me largam um instan-
te, nessa noite vamos as quatro jantar. Não tenho fome, fi-
quei exausta com toda a logística e perplexa com as pessoas

179
MARGARIDA REBELO PINTO

estranhas que apareceram no enterro: outros drogados


como ele, ex-toxicodependentes, uma enfermeira do hos-
pital, uma brasileira quarentona toda reboluda, a Josiane,
que me tentou abraçar como se fosse minha amiga e me
deu um cartão-de-visita que diz Josiane Fulgêncio, Fadas
do Lar, limpezas e arrumações ao domicílio, impresso em
papel azul-bebé brilhante, com as letras douradas em ara-
bescos. Mais foleiro era impossível. Ri-me quando li o car-
tão, se não fossem ao domicílio, seriam onde? A vida tem
coisas tão absurdas. Quando você quiser, me ligue, porque
tenho uma coisa pra lhe falar do seu pai.
Fingi que não ouvi. No jantar, a seguir à segunda caixa
de saké, contei o diálogo da Josiane.
— Achei a criatura com um ar muito confiante — diz a
Patrícia com os seus olhos muito azuis, brilhando como dois
faróis de nevoeiro. — Deve ter alguma coisa importante
para te dizer, ou não se chegava à frente daquela maneira.
Sinto um arrepio a descer pela espinha.
— Amanhã pensas nisso — corta a Laura. — Agora, me-
ninas, é o seguinte: a Alice vai-se embora outra vez.
— Então e o nosso livro? — reclama a Inês. — Já passa-
ram três meses e ainda não nos mostraste nada.
— Mas estou a trabalhar. Já tenho um plano. Confiem
em mim.
— Nós confiamos — diz a Patrícia. — Vais para onde?
— Vai para o Rio de Janeiro — responde a Laura por
mim.
— Outra vez? Mas ainda agora vieste de lá!
— Por isso mesmo. Gosto daquilo. Lá sou mais feliz,
não sei explicar.
— Claro, está cheio de bonecos — diz a Inês.

180
MARIANA, MEU AMOR

— Nem é por isso. É a cidade, a praia, o calor, fiz novos


amigos, o astral é outro, mais leve…
— E não tens medo dos assaltos?
— Não, ando na rua de dia e de noite sem medo ne-
nhum. Já aprendi a viver com isso. É só saberes por onde
não deves andar. E ter sempre cinquenta reais de lado, caso
apareça um bando de pivetes.
— Tu é que sabes — diz a Patrícia —, eu também adoro
o Rio de Janeiro, mas sinto medo sempre que lá vou.
— E estou longe. Não sei o que faria se o Jasper apare-
cesse lá — digo, sem pensar.
— Mas tu perdeste o juízo de vez, mulher? Depois de
tudo o que ele te fez? — pergunta a Laura.
— Ele voltou? — pergunta a Patrícia.
— Quem é o Jasper? — pergunta a Inês, que nunca soube.
— Um idiota casado com quem ela andou enrolada.
— Tu, com um tipo casado, Alice! — espanta-se a Inês.
— Nunca te deu para isso.
— Há uma primeira vez para tudo — respondo.
— E uma última também, não é, Açúcar? — remata a
Patrícia.
— Mas quem é o palhaço?
— Deixa lá, Inês, agora já não interessa. Na verdade,
nunca interessou.
— Podemos voltar à questão importante? Ajudar a Alice
a ir para um lado qualquer, para ver se a vida dela muda?
— Eu voto no Rio — diz a Patrícia. — Tens trabalho,
está calor, e se tens amigos novos… E tens onde ficar?
— Posso pedir a uma amiga.
— Sim. Sempre é melhor do que ficares em casa do
Dramático — diz a Laura.

181
MARGARIDA REBELO PINTO

— Quem é o Dramático?
— É aquele meu ex que ficou todo lixado quando me
casei com o Sérgio. O encenador.
— Sim, prefiro ficar em casa de uma mulher. Posso pe-
dir para ficar em casa de uma amiga nova, um actriz querida
que conheci, a Mirna.
— Então fala com ela e vai — diz a Inês. — Quanto
mais longe, melhor. Um lugar onde esse teu ex não te apa-
nhe. Londres ou Paris estão muito perto. O ideal era Kuala
Lumpur. Quanto mais longe, melhor.
— Mas vai sem pensar quando voltas. É a melhor ma-
neira de ir. Para ficar. E quando tiveres o livro pronto e o
coração curado, voltas e publicamos isso. Tens de trabalhar
no livro, por amor de Deus!
— Claro que sim. Aqui é que não posso ficar. O dia de
hoje foi a gota de água.
— É o fim de um ciclo — conclui a Laura.
— E o início de outro — acrescento, tentando conven-
cer-me de que é o melhor para mim.
— Isso mesmo. Atira-te à vida, miúda, já passaste por
pior — diz a Patrícia.
— Por muito pior. E estás aqui, inteira. Por isso põe-te a
andar, mulher — remata a Inês.
O empregado aproxima-se da mesa e expulsa educada-
mente a Laura, que se levanta e vai fumar para a rua com
a Inês. A Patrícia pega-me na mão. Começo a chorar. Não
chorei há dois dias, quando soube da notícia, nem hoje no
enterro, em algum momento a tristeza iria explodir.
— Tens de deixar de atrair esses homens inseguros, ou
dependentes, ou jogadores, querida. O teu coração está
cansado. E mereces melhor.

182
MARIANA, MEU AMOR

— E há outros?
— Claro que há. Se a Inês e eu encontrámos, tu tam-
bém vais encontrar. Mas o segredo é não procurar. E sobre-
tudo não dar corda aos gajos errados. Como esse.
— Eu sei. Só não me posso esquecer. Senão ainda me
espeto outra vez.
— Não podes. Nem agora nem nunca. Chega. Esse tipo
foi desastroso. Não podes cair numa destas outra vez, per-
cebes, querida?
— Percebo. Não fales comigo como se eu tivesse quinze
anos.
— Falo, porque às vezes tens. Nunca te casaste nem
tens filhos, há uma parte da vida que não conheces, porque
nunca a viveste. Tens uma visão demasiado romântica do
amor. Criaste um mito de perfeição com esse homem, mas
a perfeição não existe. Larga isso, Açúcar. Deixa cair. Atira
a toalha ao chão. Não vai dar. Não deu até agora, a tua vida
é outra. Aproveita a liberdade e vai-te embora o mais de-
pressa possível.
— Já fui uma vez e quando voltei ainda foi pior…
— Mas agora vais conseguir, porque agora não sabes
quando voltas. Tens de ir com isso na cabeça, sem pensar no
regresso. Deixar a vida fluir, decidir por ti. Ficar é morrer.
Não és a Mariana Alcoforado, usa tudo o que estás a sentir
para o teu livro. Vais ajudar outras mulheres que passaram
pelo mesmo. Tu és forte, querida. És livre porque podes
ser livre. Aproveita. Ficas lá até te sentires forte. E quando
voltares, cá estamos para te receber.
A Laura e a Inês regressam e pedimos a conta. Sinto-
-me sem forças, quero ir para casa, mas hoje não quero ficar
sozinha.

183
MARGARIDA REBELO PINTO

— Fica comigo hoje — peço à Laura.


— Claro que sim, querida. Deixa-me só confirmar com
o Sérgio para ele ficar com os miúdos.
— Estou tão farta de dormir sozinha, de acordar sozi-
nha... Saudades de uma respiração, vocês sabem.
— Sim — responde a Patrícia —, mas olha que quando
eles ressonam e se viram a meio da noite e nunca acordam
para mudar a fralda ou pôr a chucha nos miúdos, também
se tornam um peso, e a malta não tem outro remédio senão
aguentá-los.
— E aquela mania de nunca baixar o tampo debaixo da
retrete? O tampo de cima ainda percebo, o de baixo é que
me ultrapassa.
— É para não sujarem à volta. Sabes que a pontaria não
é uma ciência exacta — troça a Laura. — Não que eu sofra
desses males. Só com o meu filho, mas ele tem a casa de
banho dele. Há anos que não aturo um senhor a ressonar na
minha cama, prefiro ir a casa deles despachar o assunto, e
como não sou de namoros, não passo nem por essas secas,
nem por essas carências.
— Mas não tens saudades de te apaixonar? — ainda
arrisco, à espera de uma resposta que sei que não vai ser
diferente.
— Querida, todas temos saudades de nos apaixonarmos,
apesar de gostarmos dos nossos maridos, mas a questão não
é essa — explica a Inês. — Tu foste sempre autónoma e
forte, mas dás demasiada confiança aos homens. Olha esse,
por exemplo. Se tivesses despachado o assunto a seguir
ao Verão, tinhas-te poupado a um Inverno de solidão e de
tristeza. Tens de aprender a dar na justa medida daquilo
que recebes, em vez de ficares à espera, tipo Rapunzel. Isso

184
MARIANA, MEU AMOR

nunca deu bom resultado. Eles ou querem ou não querem,


e quando não querem, é bater com a porta e seguir em
frente. Assim que chegares ao Rio, ficas óptima, vais ver. É
tudo uma questão de vontade e de clima.
— Tens razão. Amores de Verão enterram-se na areia.
— Então esse assunto fica arrumado ou não? — pergunta
a Patrícia, com cara de subchefe da PSP.
— Fica. Vai ficar. Um dia de cada vez. Mas eu dou conta
disto.
— E já agora do livro — acrescenta a Inês. — Para fac-
turarmos no Natal.
— Está combinado. Não se preocupem, vou atirar-me
ao bicho.
Despedimo-nos com abraços calorosos. A Laura e eu
caminhamos devagar para o carro.
— Já te sentes melhor?
— Já. O meu pai nunca foi meu pai. Agora que a sua
alma partiu, ao menos que descanse em paz num lugar
qualquer onde a sua sombra não me pese. Não estou só no
mundo, nunca estive. E vocês são as maiores.
— Somos tuas amigas e gostamos de ti. Preocupamo-
-nos contigo. Ao contrário desse palhaço. Por isso é que
tens mesmo de deixar de pensar nele.
Não lhe digo que ainda penso em ti. Não vou mentir a
mim mesma, mas agora chega. As saudades serão substituí-
das por uma nova vida. E quem tem bons amigos, nunca
está só.

185
13.

No dia seguinte ligo para a Sábado. Já tenho um plano, e


quem tem planos tem um caminho. Não posso ficar parada
nem mais um minuto. A Isabel fica entusiasmada, diz-me
para passar por lá. A caminho da revista cai-me o cartão
da Josiane da carteira. Nem me tinha lembrado mais dela.
Ligo ou não ligo? E se for um embuste? Não sou rica, o meu
pai morreu na miséria, não deixou bens, que mal me pode
querer fazer a Josiane? Arrisco e ligo. Não tenho nada a
perder. Já que estou de partida, quero saber o que me quer
contar. Combino um café com ela no Colombo, a seguir ao
almoço. Mora na Amadora, onde tem a empresa, por isso
não lhe fica fora de mão. Detesto o Colombo, mas não me
ocorre outro lugar para me encontrar com uma brasileira
de saia de ganga desfiada e brincos do tamanho de bananas
do Equador.
O Rodrigo recebe-me informalmente, sem me fazer
esperar. Propõe-me trocar o trabalho que estou a fazer na
edição online por uma avença de três meses para ir para
o Rio. Gostou do trabalho que fiz e considera-me um

187
MARGARIDA REBELO PINTO

investimento para o grupo. Fomos colegas na faculdade, ele


dois anos abaixo. Lembro-me vagamente dos caracóis e dos
óculos, sempre foi simpático, mas com um ligeiro toque
de nerd que, entretanto, perdeu com a idade. Emagreceu
e deve usar lentes de contacto. Se não tivesse o cabelo tão
comprido, podia ser giro. Assim é só quase. Mas gosto dele.
É bom tipo.
— OK. Já me chamaram muita coisa, mas investimento
ainda não — respondo com um sorriso de orelha a orelha.
A Isabel também sorri e concorda com tudo. Nem he-
sito. Acertamos um valor acima do que pensei ser possível.
Mais bilhete de ida e volta e ajudas de custo. As estrelas
estão a alinhar-se, o universo conspira e respira a meu fa-
vor. A Isabel acompanha-me à saída e deseja-me boa sorte.
Olha-me intensamente com grande simpatia, como se me
quisesse dizer alguma coisa. Por momentos passa-me pela
cabeça que ela sabe que existes. Quem é que disse que as
três coisas mais difíceis da vida são guardar um segredo, per-
doar uma ofensa e ocupar bem o tempo? Mesmo assim, não
me desmancho. Fico na minha. Não somos amigas, apenas
boas colegas de trabalho, não vou trocar confidências: não
agora, que estou a entrar noutra dimensão. Despedimo-nos
com um abraço, ela pede-me que dê notícias assim que
chegar, e vou para o Colombo.
Combinei com a brasuca à porta da Fnac e, enquanto
espero, pergunto-me se ela já terá lido algum livro. Chega
à hora combinada. Subimos as escadas para o foodcourt.
Veio de saia justa pelo joelho, camisa e blazer, está visto
que tentou vestir-se o melhor que soube para o encontro.
Parece bastante nervosa. Peço uma água e um café e ela um
café e um bolo de arroz.

188
MARIANA, MEU AMOR

— Então em que posso ser-lhe útil? — pergunto, com o


sorriso mais afável que me é possível fabricar.
— Bem, na verdade, eu é que lhe poderia ser útil, mas
tem de se preparar, porque essa vida é muito louca e nos
traz muitas surpresas.
Este sotaque não é carioca.
— Você é de onde?
— Do Nordeste, querida.
Estes brasileiros com a mania de chamar querida a toda
a gente, que nervos. Lá, não me faz confusão, mas em pleno
Colombo soa muito falso.
— E como é que veio parar a Portugal?
— Vim há muitos anos, era muito jovem, foi quando
conheci o seu pai.
Se calhar também andou a dar na fruta.
— E então? Você teve um caso com ele e quer-me con-
tar isso, não é? — Já estou a enervar-me, mas em vez de
tamborilar os dedos em cima da mesa, enrolo-os uns nos
outros no colo, para que ela não perceba.
— Não é bem isso — responde, batendo as pestanas
com extensões. Toda ela é extensões; cabelos, unhas, pes-
tanas, silicone.
— Então é o quê? — Estou um bocado irritada, tenho
de me acalmar, ela não me fez mal nenhum. Não percebo
porque fiquei assim, mas está literalmente a bulir com os
meus nervos.
— É que o seu pai e eu tivemos uma filha. A Jaqueline.
Os carrilhões do Convento de Mafra começam a tocar
todos ao mesmo tempo dentro do meu cérebro.
— Como?!
— É. Eu engravidei e quis tirar, mas depois desisti.

189
MARGARIDA REBELO PINTO

— E teve a criança?
— Sim. Uma menina, linda. Queria muito ser mãe.
Quando a garota nasceu, não tinha condição para cuidar dela.
— E o que é que fez?
— Pedi ajuda à minha mãe e ela veio buscá-la e criou-a
como filha.
Em uma semana o meu pai morre, decido ir para o Brasil
e descubro que tenho uma meia-irmã. Se ela me diz que a
minha meia-irmã vive no Rio, corto os pulsos. A Patrícia
acertou. Mais uma vez. Acerta sempre. Sibila encartada. É
das que nunca falham.
— Você gostaria de conhecer ela? — pergunta-me a
Josiane, impávida, com um sorriso plástico.
— Não sei… acho que sim.
— Ela usa o mesmo sobrenome, vocês aqui chamam
apelido. Jaqueline Mendonça. Se procurar no Face, você
vai achar.
Senhoras e senhores, bem-vindos ao admirável mundo
novo, com toda e qualquer informação à distância de um
clic. Em dois minutos fico a saber que tenho uma irmã e
que a posso encontrar no Facebook. Até lhe posso pedir
amizade, sei lá. Envio um inbox a dizer: Olá, como vai?
Sou a sua irmã portuguesa, me adicione por favor. Isto está
bonito. O Pedro Almodóvar ia adorar este enredo de novela
das seis. Foda-se, o que mais me irá acontecer? O Brasil a
cruzar-se com o meu futuro, com a minha vida profissional
e agora com a minha vida pessoal, e tudo ao mesmo tem-
po. Respiro fundo e tento articular um discurso racional e
convincente.
— Bem, Josiane, agradeço a sua simpatia em me passar
esta informação, mas tenho de digerir o que me contou.

190
MARIANA, MEU AMOR

— Ocorre-me perguntar como é que sabe que a miúda é


mesmo filha dele. Vou perguntar, não tenho nada a perder.
— Desculpe, mas preciso de lhe fazer uma pergunta: como
é que tem a certeza de que é filha dele?
A Josiane abana a cabeça, consternada. Perdeu o sorriso
plástico. Fui um bocado estúpida. Tenho de ser mais tole-
rante. Afinal, deu-se ao trabalho de me contar a sua vida.
É preciso coragem.
— Ó querida, se você vir a cara dela, não vai ter a menor
dúvida. Ela é igual ao seu pai.
E, sem me dar tempo para respirar, saca do iPhone 4, já
todo arranhado, e mostra-me a fotografia que tem no visor.
É uma miúda morena, linda, de cara redonda, boca bem
desenhada e uns olhos enormes. Os olhos do meu pai. E o
sorriso rasgado, malandro e simpático, igual ao dele quando
era novo. Meu Deus! O meu coração dispara.
— Tá vendo? — exclama a Josiane. — São ou não são
parecidos?
Meu Deus, Almodóvar, dá-me aqui uma ajuda a resol-
ver este guião, estou a ficar com tonturas. O ruído ensur-
decedor dos carrilhões chegou ao volume máximo. Sinto a
cabeça a rebentar e o meu coração dispara. E agora? O que
é suposto fazer a seguir? Quais são as cenas dos próximos
capítulos?
— Você não fica feliz de saber que tem uma irmã?
— Não sei.
— Mas você não tem mais família?
— Não. — Mas porque é que estou a contar a mi-
nha vida a uma estranha? Devo estar mesmo frágil, bolas.
Calma, Alice, ela é uma estranha, mas é a mãe da tua irmã.
E o importante aqui é que tens uma irmã.

191
MARGARIDA REBELO PINTO

— Então agora ganhou uma irmã. E ela sabe que você


existe.
— Como é que sabe?
— Porque eu falei pra ela, querida. Além disso, você é
uma super-repórter, aparece em revistas, eu até mandei pra
ela umas reportagens suas, aquela entrevista que você fez
ao Ney Matogrosso.
Meu Deus! Onde é que isto já vai. Tenho uma meia-irmã
no Brasil que sabe quem eu sou e o que faço. Isto é muita
informação ao mesmo tempo, um Victan agora dava-me
um jeitão. Abro o meu porta-moedas e vejo a luz ao fundo
do túnel. Engulo o comprimido disfarçadamente. Respirar
fundo, vamos lá, Alice, isto é como um jogo de PlayStation,
está difícil, mas foi sempre difícil, nunca será fácil, nem
para ti nem para ninguém, a vida é sempre complicada, só
tens de aprender a lidar com os novos dados, só tens de
continuar a jogar e passar ao próximo nível.
— A vida é assim mesmo — filosofa a Josiane —, sem-
pre tem coisas rolando que a gente não sabe.
— E porque é que você não volta para o Brasil? Não tem
saudades dela?
— Eu tenho a minha vida aqui, arrumei um namorado
que tem uma boa situação, um militar reformado, aqui é
seguro, não tem assalto. E a Jaque está muito bem lá, é actriz,
tá ganhando algum dinheiro, mas ainda mando algum para
ela, entende? Se voltasse agora para lá, quem me iria aju-
dar? E o Rio está muito perigoso, já me habituei a esta vida
tranquila.
Claro que te habituaste. Tens tudo organizado: uma em-
presa de faxineiras e um velho para te comprar trapos e bu-
gigangas. Alcançaste o teu objectivo de vida, estabilidade e

192
MARIANA, MEU AMOR

segurança. Um homem bom para te amparar, que banque,


como eles dizem. Bancar virá de banco? Pode ser. Quando
chegar a casa vou estudar a etimologia da palavra.
Pareço uma bruxa, só vejo o mal nos outros. Não sei
quando isto começou, mas tem de parar já, não gosto de
mim assim.
— Que bom para si — comento, com uma vaga ponta
de ironia que ela não capta. Melhor assim. Ninguém me
manda ser amarga com o próximo. Controla-te, Alice, pára
de ser má, não foi assim que os teus avós te educaram.
— Bem, tenho de ir — digo, olhando para o pulso.
— É. Eu também já estou atrasada — responde a bra-
suca. Jogo de cintura não lhe falta. — Foi um prazer te
conhecer melhor, Alice.
É maluca. Não me conhece, nem bem, nem mal. Não se
enxerga, mas tudo bem. Estou a ser injusta e cruel em des-
carregar a minha raiva em cima dela. Não deve ter sido fá-
cil separar-se da miúda, só não percebo porque não voltou
para lá. Tento sentir alguma compaixão por ela. Por se ter
separado da filha. Por nunca ter perdido o contacto com o
meu pai. Por se ter dado ao trabalho de me contar. Não sei
o que pensar. Não sou mãe. É um mundo que desconheço.
Não tenho o direito de fazer juízos de valor. Nunca sabe-
mos o inferno pelo qual os outros passam. O nosso inferno
pessoal já nos basta.
Despedimo-nos com um beijo na cara. Ia estender-lhe a
mão, mas achei horrível. Entro no parque de estacionamen-
to com a cabeça a latejar. Os carrilhões foram substituídos
por mil britadeiras a picarem-me os miolos. Não encontro
o cartão do parque. Por fim, aparece no fundo da minha
carteira sempre desarrumada. Entro no carro e ligo à Laura.

193
MARGARIDA REBELO PINTO

— Pode não ser mau de todo — responde-me, depois de


lhe ter contado as novidades. — Sabes onde é que ela vive?
— Não, bolas, esqueci-me de perguntar, estava com os
nervos, sabes como é.
— Então vamos descobrir no Facebook. Viste uma fo-
tografia dela, não viste? Consegues reconhecê-la, se a vires?
— Claro. É parecidíssima com o meu pai.
— Então vamos a isso. Na volta é uma miúda bestial,
sabes lá o que a vida te pode trazer?
— Achas?
— Querida, o Brasil está a cruzar-se na tua vida em mui-
tos aspectos, acho que de lá só podem vir coisas boas.

Compro o bilhete assim que chego a casa e marco o


regresso para três meses depois. Peço à Mirna para ficar em
casa dela 15 dias até arranjar um apartamento. A Mirna diz
logo que sim: Fique o tempo que precisar, querida, já esta-
mos morrendo de saudades suas, responde por WhatsApp.
Que bom, calor e afecto, agora é tudo o que preciso.
Começo a organizar as coisas: remédios, a mala, os contac-
tos de entrevistas que quero fazer no Rio e em São Paulo.
Procuro o perfil da Jaqueline e encontro-o logo. Quando
chegar ao Rio, logo vejo como faço para a conhecer. Tem
cara de boneca, é bonita, toda espiritual, a julgar pelos posts.
É casada. Que estranho, com 25 anos e já casada. Mas no
Brasil é assim, fazem tudo cedo. No Brasil e no mundo. Só
na Europa é que as funções mais básicas da existência se
vão protelando. Quanto mais evoluídos parecemos numas
coisas, mais atrasados vamos ficando noutras.
Mando-te uma mensagem a pedir para me ligares. Como
nunca peço, respondes que me ligas daí a poucos minutos.

194
MARIANA, MEU AMOR

Sento-me no sofá e espero. O coração outra vez a disparar.


Vou à cozinha buscar um copo de água. Volto para a sala.
Desligo a função de chamada em espera para ninguém me
ligar enquanto estivermos a falar. Passam vários minutos,
talvez cinco. Continuo sentada. Finalmente o telefona toca.
São quase oito da noite. Deves ir no carro, a caminho de
casa. Pergunto-te como estás. Respondes: Com muito tra-
balho, o costume. Pergunto se os miúdos estão bem, respon-
des que sim. E se já tens a cabeça ligada ao coração. Oiço
um suspiro de cansaço do outro lado.
— O meu coração não entra nesta conversa porque
sempre que tomei decisões com o coração dei-me mal, por-
tanto é a razão que me interessa.
— Então como queres conversar? Sabes que sou toda
coração.
A frase soa-me terrivelmente pirosa, parece uma letra
da Ágata, mas paciência. Não tenho nada a perder porque
já perdi tudo contigo.
— Eu sei. És uma pessoa apaixonada, mas nem todas as
pessoas são como tu. Nem as podes obrigar a ser, Alice. Eu
tenho a minha vida, já a tinha quando me conheceste.
— Então o que te deu no Verão para estares o tempo
todo comigo?
— Alice, não me faças voltar aí, por favor. Eu apaixo-
nei-me por ti, foi tudo maravilhoso e tu sabes o quanto
gostei de ti, mas não dá, não me quero separar, não quero
estar longe dos meus filhos, não és uma prioridade na mi-
nha vida.
— Então sou o quê?
— És uma pessoa especial, era impossível não me
apaixonar, eu tinha prometido a mim mesmo que nunca

195
MARGARIDA REBELO PINTO

mais me metia em nada, mas aconteceu, e lamento o


mal que te fiz, foi sem querer, acredita. Já te disse isto
antes, não consigo, nem quero, estar longe dos miúdos, e
tu tens de perceber isso. Eu até podia ver-te mais vezes,
mas sempre que isso acontece, queres mudar a minha
vida.
— Pois quero. Ou queria. Mas se é isso que queres, então
não há muito mais a acrescentar. Só queria dizer-te que me
vou embora.
Do outro lado alguém parou de respirar.
— Vais para onde?
— Para longe, com um oceano pelo meio. Vou para o
Rio de Janeiro.
— Para o Brasil? Outra vez?
— Sim. Tenho lá trabalho, e sabes que onde tiver traba-
lho e afecto, estou bem. Tenho bons amigos e, afinal, o que
é que me prende aqui? E também não quero na minha vida
uma pessoa que não tem a cabeça ligada ao coração.
Do outro lado nem um som. Só uma pedra encostada à
garganta.
— Bem, tenho de desligar, estou a chegar a casa.
— Um beijo, tudo de bom para ti e para os miúdos.
E desligo, sem lhe dar tempo para se despedir.
As palavras-chave da nossa conversa repetem-se na mi-
nha cabeça sem que o consiga impedir. Egoísta de merda,
sempre a pensar só nele. Não merece nem mais um minuto
da minha atenção. Game over. Há mais mundo à minha
espera.
Quatro dias depois, apanho o avião com uma mala cheia
de roupa e de livros e o coração ainda pesado. A seu tempo
e longe daqui, tudo irá voltar ao lugar. O trabalho salva e o

196
MARIANA, MEU AMOR

mundo é muito mais do que este jardim à beira-mar plan-


tado. Oiço sem cessar uma música do Renato Russo, Quase
sem querer, cantada pela Maria Gadu. Tenho andado dis-
traído, impaciente e indeciso, ainda estou confuso, mas ago-
ra é diferente, estou tão tranquilo e tão contente. Ainda não
estou, mas vou estar. É o meu mantra até ao momento de
entrar no avião. Me fiz em mil pedaços para você me achar
e quis encontrar uma explicação para tudo o que eu sentia.
Vou ali e desta vez durante mais tempo. Levo a Soror
comigo. De uma forma ou de outra, vou ter de acabar este
livro. Eu escrevo mais para mim do que para ti, e aquilo que
procuro é consolar-me, confessa Mariana no final da penúl-
tima carta. Pobre Mariana. Das cinco cartas, talvez a mais
pungente seja a quarta. Depois, muda o tom e a forma de
o tratar. A razão cala a voz do coração, o desespero é do-
minado pelo orgulho. O que a levou a arrumar a cabeça e
amansar o coração da penúltima para a última missiva per-
manece um mistério. As cartas não estão datadas, e pouco
se sabe da sua vida quotidiana, a não ser o que a própria
relata. As religiosas, mesmo as mais severas, têm pena do
estado em que me encontro e que até lhes inspira uma cer-
ta consideração e um certo respeito por mim. Toda a gente
está impressionada com o meu amor. Só tu permaneces nessa
profunda indiferença, sem me escrever senão cartas frias,
cheias de banalidades: metade do papel está em branco e
parece que estás morto por acabar depressa.
Noël já não sabia o que lhe dizer, a paixão morreu e ela
tornou-se um fardo. O mais provável é que lhe respon-
desse só e apenas por uma questão de cortesia. Um dos
mais belos poemas de Eugénio de Andrade assalta-me a
memória:

197
MARGARIDA REBELO PINTO

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,/e o que


nos ficou não chega/para afastar o frio de quatro paredes./
Gastámos tudo menos o silêncio.
Podia enviar-te este poema, mas não vale a pena.
Também já gastámos as palavras. Sobra-me o silêncio em
meu redor, como se Lisboa tivesse subitamente adorme-
cido. Quero ir-me embora sem data de regresso, porque
não quero regressar enquanto a ferida não fechar. E quando
voltar, voltarei mais forte, mais feliz, melhor pessoa. Para
mim e para o mundo. Adeus.

198
E
m criança, talvez por ter lido romances de cavalaria,
como Tristão e Isolda, dei em cismar que no amor
iria encontrar respostas para tudo e nele descobrir o sen-
tido para a minha existência. E esse terá sido porventura
o meu erro primordial. Para a Igreja, esta ilusão de que
sabemos mais do que os outros chama-se soberba. Uma
alma acreditar que sabe mais, que sente melhor, que é
maior do que as outras, só porque ama, quando na ver-
dade o amor é uma calamidade. Quantas guerras foram
provocadas por histórias de amor? E quanto sangue foi
derramado em causa alheia por histórias de amor mal
resolvidas? Uma só paixão já arruinou muitos reinos. A
paixão é um veneno que cega e dá cabo dos homens. Mas
nem é de paixão que te quero falar, é de amor. Juntos, são
o Céu e o Inferno; há por isso que aprender a separá-los.
O senhor meu pai possui uma vasta biblioteca, que foi
enriquecida com livros raros oferecidos por um senhor
seu tio. Esses livros, entre eles muitos franceses, ficaram
amontoados no sótão, onde cresci a lê-los. Eram livros

199
MARGARIDA REBELO PINTO

muito belos, com imagens magníficas pintadas à mão,


enaltecendo as façanhas de Rolando, o cavaleiro, os
amores do rei Artur com Mariana e os grandes feitos dos
cavaleiros do Santo Graal. Foi nessas leituras secretas
que aprendi a amar o silêncio que reina na planície abra-
sada, que me entrava pelas vigias pequenas e por entre
as frestas das telhas. Legiões de cavaleiros corajosos e
impávidos em suas demandas alimentavam-me os sonhos,
enquanto me imaginava uma das donzelas que por eles
esperava, por entre seres celestes que me protegiam. Eu
era a princesa das lendas, vestida com trajes bordados
a oiro, como as damas das iluminuras que guardava em
minha memória. Durante o dia, contava ao meu querido
irmão, que não sabia ainda ler, as aventuras dos meus
heróis misturadas com pinceladas da minha imaginação
galopante, a mesma que me fez crer que Noël me amava
e iria ficar comigo.
Mas o amor pode passar de tudo a nada sem que
a nossa vontade assim o determine. Sabias tu, minha
doce Benedita, que existem mais de 100 palavras para o
amor? Na biblioteca de casa de meus pais havia um cofre.
Quando aprendi a ler, cuidava que guardava oiro, jóias e
ornamentos de valor. Como sou muito curiosa, não des-
cansei enquanto não descobri o segredo para o abrir. Pela
madrugada, enquanto todos dormiam, ia descalça até à
biblioteca para vasculhar o que existia lá dentro. Foi assim
que dei comigo a usurpar livros proibidos pela Igreja, pela
moral e pelos bons costumes. Um deles, já muito antigo,
pequeno — cabia nos bolsos das minhas saias —, tinha
uma lista de 100 espécies de amor. Espera, queres vê-lo?
Trouxe-o comigo quando vim para cá, escondido entre

200
MARIANA, MEU AMOR

as minhas roupas de vestir. Nunca o mostrei a ninguém.


Está guardado atrás de uma pedra, por entre muitas a
ela iguais, que se retira da parede. Não sabias que quase
todas as celas possuem esconderijos? Então como queres
que almas que vivem encarceradas libertem a sua alma e
o seu espírito? Podem prender o corpo, mas ninguém tem
mão no espírito, e o próprio ainda menos.
Ora aqui está ele. Tens de o folhear com cuidado, já
é quase pó, cinzas e nada, como todos seremos um dia.
Ah, é verdade, não o podes ler porque não aprendeste
francês, como eu. Cuidado, pois trata-se de um livro muito
raro. E quando morrer, certamente antes
de ti, promete-me que o escondes debaixo dos meus
paramentos para que me acompanhe na grande viagem
rumo à Eternidade. Quem sabe, ganho coragem de per-
guntar ao Criador o que pensa do assunto. Oh, Deus meu,
todo misericordioso, Pai do Céu e da Terra, perdoai-me
tal atrevimento, mas como quereis Vós que renunciemos
à carne se é através dela que respiramos e nos mantemos
vivos? Como poderei pedir-vos para calar a voz do cora-
ção, se ao deixar de bater, nos irá tirar a vida?
Como é difícil entender Deus, pensava eu com a tua
idade, e depois anos mais tarde quando me perdi de amor
por Noël. Agora é tudo mais simples. Aprendi a aceitar.
Mas antes que a minha memória se apague, deixa-me
folheá-lo e explicar-te porque o que nele aprendi me foi
tão importante.
Trata-se de um pequeno compêndio traduzido do
árabe para francês sobre as várias espécies de amor.
Segundo ele, 100. Nunca imaginaste que o amor pudesse
manifestar-se de tantas formas diferentes, pois não?

201
MARGARIDA REBELO PINTO

Ainda jovem e pura era quando o li, as palavras es-


tranhas que continha não me fizeram sentido. Até ao dia
em que vi Noël da varanda e descobri que o amor nunca
é igual, muda como as marés, altera-se como o curso de
um rio, muitas vezes não sabemos de onde vem e onde
acaba. Muito do que lera nesta preciosidade só mais tar-
de veio a ganhar sentido em meu espírito e em meu co-
ração, porque há certas coisas na vida que só consegues
entender depois de teres passado por elas.
Comecemos com o Ichq, que é composto por um amor
sentimento (houbb), paixão (hawá), afinidade (mou-
chakala) e companhia (ilf). Diz o livro que começa, agrava-
-se, detém-se e depois cai progressivamente até à sua
total decomposição na hora da lassitude. Sabemos que
quando se junta o amor à paixão e à afinidade, quando
existe uma atracção natural, ou seja, o amor dos homens
pelas mulheres e das mulheres pelos homens, que é
normal a todos os machos e fêmeas de todos os grupos
animais, resulta o Ichq, verdadeiro.
Mas há muito mais a aprender nesta relíquia de sa-
bedoria amorosa: Haboub é aquele que ama demais
e exterioriza facilmente os seus estados de alma. Sou
eu, entendes? Mouhbibb, ou, no feminino, Mouhbibba, é
aquele ou aquela que ama. Mahoub ou Mahoubba é o
amado, ou amada. Mas isto é apenas o início: existe o
amor divino, fundado na correspondência entre o Criador
e a Criatura, como ambas temos pelo Senhor, o amor pelo
amor em si, que senti no peito quando escrevi de forma
inflamada ao meu amante ausente, o amor alegre, ligado
ao êxtase dos sentidos, o amor cego, resultado de uma
paixão de que se é vassalo. Sobre este, os Infiéis citam

202
MARIANA, MEU AMOR

um ditado sábio, o amor faz-nos vassalos e mudos. E é


verdade, porque um dia cansas-te de escrever e de falar,
e percebes que só no silêncio consegues encontrar o ca-
minho para a libertação.
Vou ensinar-te outra palavra, Wadd, o amor-afeição,
que é puro, elevado e grandioso. É esta espécie de amor
que faz com que as mulheres não desistam de lutar pelo
seu amado. Já o senti, é muito belo. Faz-te mais forte,
mais atenta aos sinais do mundo, mais paciente com
aqueles que amas. Mergulhas numa plenitude interior da
qual nunca mais queres sair. Voltamos ao Ichq, o desejo
violento. Aquele que sofre deste amor chama-se Achiq,
porque a sua paixão o enfraquece e o torna frágil como um
lírio, que em árabe se diz Achaqua. Este amor traz consigo
a lascívia, ou deleite. Cuidado, porque quando este tipo
de amor te apanha, podes ficar presa a ele para sempre.
Estou sempre a falar-te dele porque é o mais delicioso de
se sentir, e por isso mesmo o mais difícil de esquecer.
Poucos sabem que o amor cortês, tão popular no nos-
so reino e em reinos vizinhos, é de origem árabe: chama-
se Ghazal. É um amor casto, que é cantado e enaltecido,
mas que se quebra quando os amantes se tocam. Como
um feitiço que se desfaz. À atracção súbita, violenta e
apaixonada, os árabes chamam-lhe Hawa. Foi o que senti
assim que avistei o meu guerreiro da janela. O meu peito
parecia querer pegar fogo de tanto arder. E foi de repen-
te, porque, minha querida Benedita, a verdade é que não
escolhes aquele que te rouba o sossego do coração. O
amor também é um ladrão, entre tantas outras coisas.
Quando te assombra o pensamento até ao estado da
loucura, chama-se Al-lam.

203
MARGARIDA REBELO PINTO

Muitas mais espécies de amor existem, segundo esta


relíquia, mas delas não te falo, porque apenas posso falar
daquilo que conheço e que já vivi. E de todas estas por
mim mencionadas, a última é a mais perigosa, porque te
afasta do discernimento e te faz mergulhar no desespero
do vazio, quando o teu amado, no crepúsculo que acom-
panha os amantes insones, te anuncia que se vai embora
e não sabe quando volta.
Vou contar-te a nossa última noite. Pouco depois de
ter entrado, já deitado sobre o meu corpo, pois a cada
vez que me visitava, tudo se tornava mais rápido no início
e mais longo no final, vi em seu semblante algo que me
pôs os sentidos em alerta. Olhava-me mas não estou
certa de que me visse, os seus olhos fugiam para lugares
imaginários. Agarrava-me ainda com mais desejo, pren-
dia-me os braços por cima da minha cabeça e percorria o
meu corpo com a sua língua incansável, como se bebesse
da minha pele o sabor a mar de que tanto falava. Depois
subia, voltava a entrar em mim, mas virava-me de costas
e fazia-o com toda a força que possuía, como se me qui-
sesse partir ao meio.
Já te disse que entre a dor e o prazer existe uma linha
muito ténue? É como um jogo que aprendes à primeira e
nunca mais esqueces. Nunca me importei de sentir al-
guma dor, o seu membro parecia-me enorme, e cada vez
maior a cada noite que comigo ficava. Quando lhe dizia
isso, via o seu olhar brilhar. Cuidei que era de amor por
mim, mas agora sei que era apenas vaidade. A vaidade
cega os homens de poder, seja no campo de batalha, seja
na cama, a vaidade também mata o amor. Apaixonas-te
por ti mesmo e deixas de ver o outro. Mas eu não era um

204
MARIANA, MEU AMOR

lago, embora o prazer escorresse do meu corpo como


uma fonte. Era apenas uma mulher apaixonada, e por
isso Narciso não caiu nem se afogou na sua vaidade.
O meu Narciso era um estratega, tinha tudo planeado.
Primeiro amou-me de todas as formas que sabia, depois
descansou ao meu lado, fechando os olhos sem contudo
adormecer. De repente levantou-se, começou a vestir-se
e disse-me que tinha de partir.
Assim que ouvi as suas palavras, o breu da noite voltou
a toldar-me a visão. A imagem de Noël tremeu, as paredes
da minha câmara giraram como se estivesse dentro de
uma roda.
— Recebi uma carta do meu irmão Hérard, minha que-
rida Mariana. Está muito doente. É meu dever ir ao seu
encontro. Decerto entendes a gravidade do assunto. Meu
irmão não pode morrer.
— Então e eu? — perguntei. — Se te fores embora,
morrerei também, de dor e de tristeza.
— Mas eu volto. Um dia venho buscar-te. Acredita
em mim.
E eu acreditei. Não consegui dizer nem mais uma pa-
lavra. A minha garganta secou como a tua. Não voltei a
falar durante semanas. Esperei uma missiva, um recado,
não chegou nada. Essa foi a nossa última noite.

Esperei por notícias suas durante uma lua, num misto


de esperança e terror. Angustiada pela ausência de no-
tícias, escrevi-lhe a primeira carta. O meu irmão Baltasar
mantinha relações próximas com Noël, foi fácil encontrar
um emissário. Noël respondeu-me, seis luas depois, mas
as suas palavras eram vagas. Ao contrário daquilo que me

205
MARGARIDA REBELO PINTO

prometera na noite da sua partida, nunca falava em me


vir buscar. Justificava a sua ausência com a doença do
irmão e as exigências do seu rei, a quem devia lealdade
acima de todos os outros monarcas. As outras quatro
cartas foram escritas num estado de loucura. Passei por
todos os sentimentos. Esperança, raiva, desespero, tris-
teza, abandono.
Por fim, esgotada de lhe explicar o que sentia, des-
pedi-me o melhor que soube na última carta. Era ainda
tão ingénua que teimava em acreditar que no amor existe
justiça, causa e consequência, como se na cegueira da
paixão, a razão falasse mais alto. A razão pode falar o que
quiser, mas se o coração não a ouve, nada a fazer. Só a
erosão do tempo ajuda a apagar o amor, a dor, a triste-
za. O tempo pode tudo; é ladrão e curandeiro. E não é o
tempo que passa por nós, somos nós que passamos por
ele, porque um dia estaremos todos mortos e enterrados
e o tempo continua vivo, inalterável.
A fronteira entre o amor feliz e o amor infeliz é infi-
nitamente estreita. Como é fácil perder a razão quando
o infortúnio te apanha! Não queres crer em tal desgraça,
recusas a realidade como quem recusa que o sol nasce e
se põe todos os dias. Quem te rodeia cuida que ensan-
deceste. Sentes tudo ao mesmo tempo; revolta por teres
sido abandonada, e uma raiva mais profunda, pela tristeza
que carregas desse abandono.
Com o tempo, a vergonha e o horror ao ridículo vão-te
tomando o juízo, o que não quer dizer que to devolvam,
porque te sentes a afogar num pântano cinzento, infinito
e silencioso onde o nevoeiro que te rodeia não te deixa
ouvir os outros nem ser escutada por eles. Há uma névoa

206
MARIANA, MEU AMOR

espessa que te cerca o coração, e mesmo quando te


tocam por carinho, não consegues receber o amparo de
quem te quer bem, mal sentes na pele o peso e o calor
de outras mãos.
Estás perdida dentro de ti, o teu labirinto é o maior
do mundo e não existe um fio que te puxe para a saída.
Apenas o tempo, a vontade férrea, a crença no Divino, o
silêncio e a abnegação te podem salvar do caos enevoa-
do que te prende como uma teia. Quando a alma está
fraca e o espírito se deixa levar para o fundo da tristeza,
se te habituas a tanta mágoa, acabas por aprender a
viver com ela e dela retirar um prazer quase voluptuoso,
porque, na verdade, é melhor sentir dor e desespero do
que não sentir nada.
Escreveste tudo o que te disse? Oh, meu Deus, estás
mais branca do que todos os círios que alumiam o con-
vento. Acaso te sentes mal? Porque tens uma mão na
barriga e outra na boca? Precisas de vomitar? Dói-te a
cabeça também? Então estás doente, minha noviça. Vou
dar-te descanso por uns dias. Assalta-me o pensamento
de estar a fazer-te mal com a missão que te obriguei a
aceitar. Mas não tinha mais ninguém a quem recorrer. Se
pudesse, escrevia eu mesma tudo o que desejo legar ao
mundo, mas sabes bem que os meus olhos, de tanto ler
e escrever, se cansaram de ver. Ou talvez porque deixei
de sonhar. Se acreditas que os sonhos te alimentam a
vida, o que acontece quando deixas de sonhar? Apagas-
te devagar, um bocadinho mais a cada dia de silêncio e a
cada noite de solidão.
O consolo solitário das carnes só te apazigua por
umas horas. Mas não te preenche o vazio. Falta-te o

207
MARGARIDA REBELO PINTO

Outro, aquele a quem tanto amaste. E se por desventura,


para ele, te tornaste invisível, então de nada te serve fugir
destes muros e enfrentar o mundo, porque o mundo deixa
de existir se ele não olhar para ti, não te procurar para
te encontrar aqui ou no meio de uma multidão de gente.
Quando o homem que amaste de todas as formas que
atrás te ditei te deixa e não volta para te resgatar, leva
a tua carne e metade do teu coração. Depois de tantos
anos, reside ainda em mim o mistério de lhe ter sobrevi-
vido. Talvez o meu coração doente tenha aprendido a ser
mais forte, justo por se sentir tão fraco.
É nos momentos mais difíceis que temos de provar ao
mundo e a nós mesmas que nada nos vence. Nem mes-
mo aquilo que sentimos como mais sério e verdadeiro em
nós. Não sei se me amo a mim mesma ou ao Altíssimo
mais do que amei Noël, apenas sei que já não o amo, e
isso agora chega-me para continuar viva.

208
PARTE V
14.

Mais uma viagem de avião entalada numa cadeira incó-


moda depois de ter trocado dinheiro no aeroporto. Já sei
o que me espera, desta vez organizei-me. Trago chocolates,
o iPhone carregado de música e fones. Entro em modo de
voo total, ou seja, isolo-me do ambiente, fecho os olhos e
viajo no futuro. Imagino o sorriso aberto do Marcelo e os
seus abraços imensos como ele, o humor fino do Márcio,
sempre pronto a ouvir-me e a fazer-me rir, e os braços
calorosos da Mirna.
Antes de partir, enviei um inbox ao Bruno via Facebook.
Escreveu-me algumas vezes do Rio enquanto estive em
Lisboa. Já se sabe, quando não levam a melhor, ficam a re-
moer. Assim que soube que eu ia, foi perguntando todos os
dias quando chegava, mas não lhe disse a data certa. Quando
aterrar, logo vejo se me apetece estar com ele. Pensando
bem, não se perde nada. É bonito e posso divertir-me. Sou
solteira e livre, não devo nada a ninguém. Depende de mui-
ta coisa. Primeiro quero chegar, instalar-me, procurar um
estúdio em Ipanema, o meu bairro de eleição. É onde a

211
MARGARIDA REBELO PINTO

Mirna mora, na Rua do Redentor. Gosto da zona, é tranqui-


la, perto da rua principal de Ipanema, a Avenida Visconde
de Pirajá, onde fica a minha livraria preferida da cidade, a
Travessa.
A viagem desta vez pareceu mais curta, talvez porque já
me esteja a habituar a isto. Vou ouvindo música e tirando
notas sobre a minha Mariana. A informação sobre a idade
em que entra no convento diverge. Tanto pode ter sido aos
11, como aos 15 ou ainda aos 16 anos. Cantava no coro com
as suas companheiras, Arcângela Baptista e Maria Rezende.
Foi escrivã, porteira e abadessa. Num dos romances é dito
que a sua mãe, Dona Leonor, lhe aparecia na grade para a
visitar, enchendo o coração de Mariana de saudades do lar e
dos carinhos maternais, mas não consigo apurar em que ano
morreu a mãe. Ao que parece, o pai raramente a visitava,
ocupado em enriquecer cada dia mais. O irmão mais novo,
Baltasar, morgado da casa era apelidado pelo povo de Beja
como o Menino d’Oiro, visitava a irmã sempre que podia.
Dom Possimando nem imaginava que anos mais tarde,
quando rebentou o escândalo, o filho em que depositara a
esperança de continuidade, viria a renegar a fortuna para
se dedicar à vida religiosa. Baltasar adorava Mariana, que
o ajudara a criar. Nunca imaginou ser ao mesmo tempo o
arauto e o mensageiro da desgraça. Baltasar certamente terá
sentido o desgosto e a vergonha pela qual Mariana passou,
ou não se teria rebelado contra o pai. Foi um bom soldado
e tornou-se inseparável do seu chefe de campo, o conde de
Chamilly.
Terá Mariana confundido a criatura com o Criador e vis-
to em Noël a imagem da perfeição? Nos retratos da época,
ele não é um homem bonito. Mas o convívio estreito na

212
MARIANA, MEU AMOR

corte de Luís XIV com damas da época terá feito dele um


sedutor profissional, exímio na arte do galanteio. Era um
grande caçador e um militar de craveira. Certamente culto,
usando o seu charme como quem distribui flores. Mariana
era fluente na língua francesa, e antes dos prazeres carnais,
imagino-os longas horas à conversa. Do aplauso nasce o
amor. A paixão vem da carne, mas o amor vem de todo
o lado; da alma, do coração, da imaginação e também do
desejo. As cinco cartas de Mariana são um dos mais belos
legados de amor alguma vez escritos.
Extenuada, fecho os livros e o caderno. Tento dormir,
mas o meu espírito está impregnado de imagens da minha
heroína romântica: imagino-a de hábito negro, já coberta
com o véu de clarissa, a vaguear como uma condenada por
corredores largos e escuros, chorando sem cessar, agarrada
a um terço. O passo errante e o olhar ausente, sem saber o
que pensar, esmagada pelo desgosto.
Quando o avião aterra, acordo em sobressalto, mas assim
que saio do avião, sou invadida por uma paz inesperada.
Voltei a casa.
Recolho a mala e apanho um táxi. Sabe-me bem reco-
nhecer o caminho. Ainda é cedo mas já amanheceu, e o Rio
continua lindo. A Mirna está à minha espera e recebe-me
com um abraço quentinho. Como dormi algumas horas no
avião, tomamos o pequeno-almoço e vou-lhe contando o
que venho fazer ao Rio e como é bom estar ali, num ambiente
familiar.
— Você se vai dar muito bem cá, querida.
— Preciso de criar uma rotina — explico-lhe. — Ginásio,
cabeleireiro, essas coisas que me façam sentir em casa.
— Claro, vamos organizar a sua vida.

213
MARGARIDA REBELO PINTO

Dois gatos passeiam-se pela casa. Pompom e Amélia.


Pompom porque sempre foi gordo e Amélia porque é nome
de garota tonta e ingénua, como explica a Mirna.
Apesar da travessia transatlântica, sinto-me com ener-
gia. Vamos dar um passeio pela lagoa Rodrigo de Freitas.
A casa dela fica a meio caminho entre a lagoa e a praia,
depende se virar à esquerda ou à direita. Tenho muitos dias
para ir à praia, apetece-me explorar lugares novos. Depois
de caminharmos durante 40 minutos, paramos para beber
uma água de coco.
— E aí, Alice, já esqueceu o advogado cinquentão?
— Não sei, querida. Mas não vou sair do Brasil sem esse
assunto arquivado na minha cabeça e no meu coração.
— E vai querer ver o Gustavo? E o Bruno?
— Sim, porque não? Um pode ser bom amigo e o outro
ainda não sei bem o que pode ser.
— O outro é para trepar, amiga. Mas trepa com ele, sem
medo nem culpa. O que não faltam aqui no Rio são homens
interessantes que se vão interessar por você.
— Oxalá eu me interesse por eles — respondo com um
suspiro.
— Como está o Márcio?
— Muito querido, como sempre. É como você fala,
sexo é escolha, amor é sorte. E eu dei sorte, desta vez dei
mesmo.
Engraçado, os brasileiros dizem dar sorte quando que-
rem dizer ter sorte. Trocam o verbo ter com o dar. Dá que
pensar.
— Tenho uma novidade séria para te contar — digo.
— O que foi? Já tem outro gatinho e não me falou nada?
— Não, nada disso. O meu pai morreu.

214
MARIANA, MEU AMOR

— Oh, sinto muito.


— Não, ele estava doente há muito tempo. Mas no enter-
ro apareceu uma brasileira que me disse que eu tinha uma
irmã no Rio. Com vinte e cinco anos, actriz, imagina.
— E como é o nome dela?
— Jaqueline Mendonça.
— Você está brincando? A Jaqueline foi produtora de
uma peça que eu fiz há um ano. Que loucura…
— Mas ela não é actriz?
— Sim, mas aqui, quando não tem trabalho, a gente
inventa, entende? Eu não, porque estou na Globo, mas as
atrizes de teatro independente têm de se virar. A Jaque é
uma ótima produtora, boa menina, muito espiritualizada.
Espiritualizada. Adorei a palavra. Nunca usei, mas existe.
— Mas quais são as probabilidades de eu descobrir que
tenho uma irmã no Rio e de você a conhecer? — espanto-me.
— Bem, até é meio normal, porque o meio artístico aqui
não é tão grande assim. Não estamos em Hollywood, que-
rida, só estamos no Rio de Janeiro — responde, rindo alto.
— Que maravilha! Você é irmã da Jaque! Quem diria? São
tão diferentes!
— É porque eu sou muito parecida com a minha mãe,
ela puxa mais ao meu pai.
— Que história mais absurda. E você quer conhecer ela?
— Acho que sim…
Ciclistas madrugadores passam por nós e sorriem. Mirna
sorri de volta, de forma abstracta, como se nem os visse.
— Você vai gostar dela, Alice. Ela é do bem, como nós.
Eu vou organizar isso para você.
— Acho que preciso de dormir uma sesta, querida. É muita
informação junta.

215
MARGARIDA REBELO PINTO

— Então vamos para casa, amor. Hoje gravo a partir da


uma da tarde, ainda tenho de me aprontar.
A Mirna sai em meia hora e deixa-me uma chave. Durmo
duas horas, tomo um duche e visto uma roupa prática. Calças
pretas e T-shirt branca. Roupa de casting, como diz a Mirna.
Caminho pela Visconde Pirajá, onde já reconheço as lojas, o
cabeleireiro onde arranjo as mãos, as lojas que vendem pro-
dutos naturais, as sapatarias. Vou até à Travessa e subo ao
primeiro andar para beber um café e passar os olhos por um
livro do Rubem Fonseca e outro do Machado de Assis, que
trouxe do andar de baixo. O tempo voa, sinto-me bem aqui.
Gosto do Rio de Janeiro. Gosto da Zona Sul, com a praia a
três quarteirões. Gosto dos restaurantes sofisticados que não
são pretensiosos. Gosto do sorriso fácil dos cariocas, das se-
nhoras de idade que passeiam de braço dado com as empre-
gadas, das crianças sempre a sorrir, dos taxistas educados e
dos vendedores ambulantes na praia sempre de bom humor.
Há um afecto natural, um calor humano que envolve assim
que se chega, que não vem só do clima ameno, mas de uma
natureza humana afável, dócil, cordial. O Márcio aparece de
surpresa. Trocamos um abraço imenso.
— Como sabia que me ia encontrar aqui?
— É um dos seus lugares preferidos no Rio e está perto
de casa. A minha intuição me guiou até você.
— A intuição é o olhar do coração.
— É mesmo. E o meu olha direito, graças a Deus. E como
está o seu?
— Não sei bem. Mas veio comigo para eu tratar dele
enquanto cá estiver.
— Isso já é bom. É que tem gente que não usa o coração,
você sabe.

216
MARIANA, MEU AMOR

— Eu sei. É terrível.
Conto-lhe o que se passou, a última vez que te vi, como
me senti depois e depois e depois, até perceber que não ias
voltar. E a nossa conversa por telefone.
— Eu tenho uma solução para isso, querida.
— Então chuta.
— Você sabe que eu também escrevo livros para crian-
ças, certo?
— Sei.
— Então vamos inventar um super-herói baseado nesse
seu Pedro. É um cara que quer voar, mas tem medo de te
amar. Ou não sabe, ou não usa o coração para você. Homem
que tem medo, o que é?
— Sei lá. É egoísta? É um fraco?
— Isso. Tá chegando lá. Fraquinho.
— Tadinho — respondo sem pensar.
— Pensa o seguinte: você tem de se ligar nas pessoas
e nas coisas que te fazem feliz e leve, por isso veio para o
Brasil, certo?
— Certo.
— Esse homem te ama? Te deseja? Até pode ser que
sim. Mas ele te dá o que você precisa e merece? Ele te
satisfaz e te faz feliz?
— Não. Pelo contrário.
— Isso é o que mais importa, Alicinha, o nosso bem-
-estar. Por muito louca que seja a viagem, entende? Ele
pode ter muita química contigo, pode ser gostoso, pode
ser um príncipe. Até pode ser um bom homem. Mas não
tem nada que ver contigo nem com a frequência da energia
que te faz feliz de verdade. Não tem maturidade para uma
mulher como você, que voa alto, ele não te apanha. Ele

217
MARGARIDA REBELO PINTO

quis-te esquecer, meu bem. Não esqueça você isso, porque


é isso que vai ficar na sua vida. Um cara que amou e quis
esquecer. Olha só quanta tristeza, quanto desconsolo. As
asas curtas não aguentaram a sua leveza, querida, quanto
mais o seu amor.
— É verdade. Nunca ouvi nem desculpe nem obrigado
daquela boca.
— E, no entanto, você fez tudo bem: acreditou, deu
tempo, não o pressionou, falou sempre verdade, aguentou
firme esse Inverno, e para quê?
— Para nada.
— Não é bem assim. Nunca nada é em vão. Você está
de volta ao Rio, querida, tem aqui amigos que te amam,
tem um trabalho novo pela frente, vai escrever um livro
maravilhoso, aqui todo o mundo te dá colo, você aqui se
sente livre.
— Totalmente. Tudo sem peso nem culpa.
— Pensa comigo, você escolheu ser feliz. E vai ser. Olha
que bênção. Tem muita gente que nem sequer consegue
equacionar como mudar a sua realidade. Mas você fez isso.
Você veio para outro lugar onde sabe que vai se sentir cada
dia mais forte. Virou as costas à tristeza, não lhe deu mais
confiança. Conseguiu virar a página. Sozinha. Você é linda,
sabia? Se um homem não tem o entendimento de te ver
como você é, é porque também não te merece.
Quando olho para o relógio já são seis da tarde. Em
Lisboa são dez da noite, estou a ficar com sono. A Mirna vai
chegar tarde hoje, o Márcio acompanha-me a casa e dá-me
mais um abraço.
— Tenho a certeza de que você já está melhor só de ter
chegado ao Rio.

218
MARIANA, MEU AMOR

— É verdade. Só passou um dia e já me sinto outra


pessoa.
— Não é outra, não, é você mesma. Como eu te conheci
há cinco anos, corajosa e determinada quando fomos no
Vidigal e você subiu sem medo para fazer a reportagem,
lembra?
— Sim, mas íamos acompanhados pela Polícia Militar.
— Foi o período que teve mais violência na cidade, mu-
lher. As balas perdidas choviam de todos os lados. E você
sem medo de nada, nunca vou esquecer isso.
— Estava a trabalhar, Márcio. E o trabalho salva.
— Então agora trabalha o seu coração para ficar mais
forte. Descanse a alma e amanhã comece a sua nova vida.
Você vai ser muito feliz aqui.
Regresso a casa e adormeço cedo, em paz. Gosto do
meu novo lar. O meu quarto é pequeno e aconchegante.
Enrolo-me no cheiro a lavado dos lençóis, saboreio o sossego
da casa, o silêncio dos gatos.
Amanhã mesmo vou escrever à minha irmã via Facebook.
Quero conhecê-la, também foi para isso que vim para o Rio
de Janeiro.

219
15.

Olá, Jaqueline, como vai? A sua mãe deve ter-lhe conta-


do que estou no Rio por uma temporada. Não sei bem como
lhe dizer isto, mas fiquei com vontade de a conhecer. Até há
uma semana nem sabia da sua existência, mas agora é dife-
rente. Vou ficar três meses e acredito que seria bom para as
duas. Temos uma amiga em comum, a Mirna Vasquez, estou
em casa dela, um beijo, até breve.
Será que está bom assim? Envio ou não envio? Faço ou
não um pedido de amizade? Talvez não. Opto por enviar
o inbox. É mais correcto. Tomo um duche demorado, lavo
o cabelo, preparo o pequeno-almoço e abro a agenda para
organizar a minha vida nas próximas semanas. Preciso de
me concentrar, o que se tem tornado particularmente di-
fícil. De repente vêm-me à memória flashes do teu corpo
em cima do meu, tu a brincar comigo, beijos e mais beijos.
Isto vai ser difícil, mas nada é impossível. Curtir o Brasil
passa por me distrair, certo? Envio um WhatsApp ao Bruno
sem pensar:
Oi, querido, cheguei ontem, como vai?

221
MARGARIDA REBELO PINTO

A resposta é rápida.
Olá, querida, bem-vinda. Tou com saudade. Queria muito
te ver .
Quando?
Agora.
E a seguir manda aquele boneco de cabeça tapada que
quer sempre dizer malandrice e que eu nunca consigo en-
contrar no meio de tantos ícones. Respondo sem pensar,
porque se pensar, a resposta vai ser outra.
De repente, até que pode rolar 
Você quer vir ter comigo agora?
Como agora?
Estou em casa, sozinho, pensando em você. Vem…
Ele nem deve acreditar que posso mesmo ir, mas arrisca
e atira o barro à parede; manda a morada, no Bairro das
Laranjeiras, onde mora o Gustavo.
Respiro fundo. O corpo acorda. Antes de te rever, esti-
ve meses sem ninguém e depois foi o que se sabe. Já passou
um mês. Tenho de acabar com o luto, já vou na segunda vol-
ta, na segunda viagem, isto está a dar-me demasiado traba-
lho. Milhões de células agitam-se em festa dentro de mim.
Então me aguarde. Vou pegar um táxi e vou-te ver, sim 
Vem, querida, que eu vou-te fazer muito feliz, responde
o Bruno.
Ainda me lembro dos beijos que me deu. Maravilhosos.
E das mãos em volta da minha cintura, a puxar-me para ele.
Do momento em que podia ter dito que sim e disse não.
E do último beijo no carro com um sorriso de predador que
não engana ninguém.
Lavo os dentes, escovo o cabelo, retoco a cara com uma
maquilhagem leve, pego em três notas de 50 reais e saio de

222
MARIANA, MEU AMOR

casa. Apanho um táxi e indico a morada. O taxista apanha


a Vieira Souto junto à praia, passa pelo túnel, vira à direita
na primeira saída e começa a serpentear pelo bairro. Sobe
uma rua inclinada com prédios de ambos os lados, que pa-
rece não ter fim. Lá em cima vejo o Bruno de telemóvel na
mão à minha espera na rua, calções de banho e tronco nu.
Sinto-me uma boneca europeia com o meu vestido branco
de malha sem mangas e as minhas sandálias de marca. O
Bruno abre-me a porta do táxi com um meio sorriso, agar-
ra-me na mão e diz:
— Você está ainda mais linda, Alice. Vem, vamos subir.
O prédio é um labirinto de escadas e portas, deve ter
mais de 20 apartamentos por piso, subimos vários lances
até alcançar o patamar onde ele vive. Abre a porta e aponta-
-me com o dedo o final do corredor que não tem mais de
quatro metros de comprimento. É um quarto pequeno,
com o tecto baixo e um armário de um lado e uma janela
do outro. A cama está feita, na mesa-de-cabeceira está o
computador com o Facebook aberto. Conversamos pouco,
não me apetece conversar, apetece-me começar logo tudo,
afinal venho com um objectivo bem claro, que é o mesmo
que o dele.
Despe-me devagar e beija-me durante muito tem-
po. Depois eu dispo-o e faço-lhe tudo o que me apetece.
Sinto-o muito concentrado em tudo o que faz e recebe.
Tem um corpo fabuloso, esculpido de pedra dos pés à cabe-
ça. Muito ginásio e 28 anos dá nisto. Não há amor nenhum
aqui, só sexo e prazer. Mas é bom. É tudo muito bom, muito
melhor do que eu podia alguma vez imaginar. Desfrutamos
cada instante, queremos mais, não paramos. Ele agarra-me
com força. Sabe muito bem o que faz, a Laura já me tinha

223
MARGARIDA REBELO PINTO

dito que os brasileiros são umas bombas na cama, mas só


agora percebo o que ela queria dizer. O tempo passa, o prazer
prolonga-se.
Por fim, ficamos os dois enroscados a conversar. Pergunto-
-lhe como vai a vida. O Bruno é freelancer, uns meses tem
muito trabalho, outros fica mais parado. Comenta que gos-
taria de trabalhar comigo, podíamos fazer reportagens os
dois, quem sabe, atira para o ar como quem lança um avião
de papel. Pode ser, respondo de forma vaga. Não sei se será
boa ideia trabalharmos juntos. Não me imagino com ele
noutro lugar sem ser entre quatro paredes, a fazer o que
nos apetece, longe dos olhos do mundo.
— Eu pensei muito em você esse tempo, Alice.
— Não pensou nada, cara, não me fale disparates.
— Adoro essa palavra. Disparates — repete, imitando o
sotaque português.
— Não troces do meu sotaque, Bruno. Se eu não tivesse
colonizado o Brasil, vocês estariam todos na selva, pendu-
rados nas árvores, falando tupi.
— Meu amor, se tivesse sido você, de fato, a nos coloni-
zar, o Brasil seria um lugar muito melhor.
Este miúdo tem graça. Mas não vou desarmar. Cariocas
são safados, toda a gente sabe.
— Só pensou em mim porque não acontecera nada
entre nós.
— Não, eu pensei porque eu sabia que, se acontecesse,
seria assim gostoso, como está sendo.
Eu também, ia acrescentar, mas depois calei-me. É um
miúdo simpático, só isso. Vai ser uma distracção, uma vírgu-
la na minha vida. Nada de ilusões. Também não tinha como
criá-las. O meu coração não bate mais depressa por ele.

224
MARIANA, MEU AMOR

O meu corpo responde, mas o coração fica quieto. É como


eu digo, quando um coração está partido, não entra nin-
guém lá dentro. É como deitar chá num bule rachado. Mas
nunca vale a pena chorar o leite derramado, já perdi dema-
siado tempo com isso. Aliás, agora nem tenho tempo para
pensar em nada porque o Bruno já está a preparar a segunda
volta, ainda melhor do que a primeira. Se isto começa assim,
vou ser mesmo feliz aqui, no Brasil.
Uma hora depois continuamos em cima da cama, exaus-
tos e felizes. O prazer puro é isto: ou pega ou não pega.
E quando pega é uma delícia.
— Você vai voltar para a Zona Sul?
— Vou, porquê?
— Me deixa ali em Botafogo? Tenho de ir pegar a minha
bike, que ficou em casa de um amigo.
— Claro, vem comigo.
— Então deixa só eu tomar um duche rápido e vamos,
não se importa de esperar?
— Não, tranquilo. Não tenho nada marcado para hoje.
O Bruno desaparece e regressa menos de cinco minutos
depois. Veste uns calções e uma T-shirt verde-limão. Põe
perfume, penteia-se ao espelho, pega na minha mão, dá-
-me dois beijos maravilhosos e descemos o labirinto de mão
dada. Apanhamos um táxi. O Bruno enrosca-se em mim e
diz-me ao ouvido:
— Alicinha, só tem coisa boa entre nós, não é?
— É o que você quiser, Bruno. Para mim está óptimo.
— Gostou de estar comigo?
— Claro que sim.
— Eu amei, gata. Você é muito gostosa. Ainda melhor
do que imaginei.

225
MARGARIDA REBELO PINTO

— E você é um sedutor barato que fala o mesmo para


todas, Bruno.
— Não sou, não. Sou tranquilo. Mas tudo bem, só quero
te ver feliz.
Deixo-o em Botafogo e regresso a casa. Tomo outro du-
che, como uma salada de alface, tomate e palmito, e vou
para a praia. Apesar de ser Inverno aqui, está um dia de sol
e o termómetro da rua marca 26 graus. O Rio de Janeiro é
onde o Inverno vem passar o Verão, como diz o Marcelo.
Tenho de lhe ligar. Estou com saudades dele. Levo comigo
o último livro do Pedro Paixão, Espécie de Amor, que estou
a reler. É absolutamente brilhante. Daqueles que nunca po-
demos emprestar a ninguém, sob o risco de nos provocar
a mesma sensação de perder um grande amigo. O livro é
sobre isso mesmo, o início, o apogeu e o fim de uma grande
amizade. Há livros tão bons que queremos que fiquem gra-
vados para sempre na nossa memória.
Gosto de levar as coisas até ao fim, como fiz com o li-
vro do Pedro Paixão, que já está todo marcado, sublinhado,
a capa com dobras, as páginas sujas de tanto lhe mexer.
Gosto de repetir as coisas de que mais gosto, e, se for pre-
ciso, de as esgotar, levando-as até ao fim. Vou sempre ao
fundo das questões, mesmo que isso me obrigue a ir ao
fundo. E depois regresso ao mundo e a mim. Lembro-me
de uma frase que li na página da minha irmã desconheci-
da: não existe um caminho para a paz, a paz é o caminho.
Como será a minha irmã? Estou curiosa, mas nada receosa.
No Posto 10, os vendedores ambulantes percorrem a
praia. Há um louco que caminha muito depressa, com os
olhos de fora e grita em voz de falsete: Você me chamou?
Você quer biscoito? É o biscoito Globo. Tem ar de drogado,

226
MARIANA, MEU AMOR

provavelmente crack. E há outro, um negro enorme que


ronca em voz grave de um megafone: Açaí, açaí, com banana.
Parece o Darth Vader, dá-me vontade de rir. O sol está
quente, a praia tranquila, o mar com ondas mas morno,
onde entro e dou um mergulho rápido porque a corrente
puxa. Como é bom estar aqui, sozinha, na minha, saboreando
o meu tempo e a minha liberdade.
Amanhã começo a procurar um apartamento e a marcar
entrevistas, hoje o dia é meu e só meu. Não sei quem disse
que liberdade é não ter ninguém à espera quando chegas a
casa à noite. Talvez seja. Mas não estou só. Tenho amigos e
vou fazer mais.
Regresso a casa e tenho uma mensagem da Jaqueline no
Facebook.
Olá, querida, que bom que você está aqui. Estou espe-
rando para te conhecer há anos. Pode ser hoje mesmo? Você
quer jantar? Vem com a Mirna, eu adoro ela . Vamos?
Esta miúda deve ser mesmo boa onda. O Rio é assim,
tudo sem filtros. Cariocas são cariocas e mais nada. A Mirna
chega dos estúdios da Projac da Globo. Pergunto-lhe se
quer vir jantar.
— Claro que sim, querida. Quero assistir a esse momento
histórico, você abraçar a sua irmã. Você vai amar ela, confia
em mim.
Combinamos no Baixo Gávea, às oito. Apanhamos um
táxi e quando chegamos, a Jaqueline já lá está, ansiosa,
entrelaçando os dedos, como eu faço quando me sinto
impaciente. É muito parecida com o meu pai. Os mes-
mos olhos grandes e amendoados, o mesmo sorriso terno.
Damos um abraço. Está comovida. Eu também estou, mas
disfarço. Afinal sou a irmã mais velha, cabe-me o papel de

227
MARGARIDA REBELO PINTO

ser a forte. Sentamo-nos as três num restaurante japonês.


É divertida e bonita, articulada e inteligente. Passa um gru-
po de homens, cinco ou seis, todos giríssimos, com ar de
cariocas.
— Meninas, baixou a nave! — exclama, com um sorriso
rasgado.
— Que nave? — pergunto.
— A nave dos gatinhos, Alice. Olha só. E são muitos.
Viro a cabeça. É verdade. São vários. E todos giros.
Parece que saem debaixo das pedras.
— Olhem à vontade, meninas, porque o meu coração
está comprometido — comenta a Mirna.
— Podes olhar, burro amarrado também pasta — argu-
mento. Elas riem-se, não conheciam a expressão.
A noite corre devagar, suave e tranquila. Sou tão feliz aqui.
— Você fica por quanto tempo, querida?
— Três meses. Vim trabalhar, fazer entrevistas, termi-
nar um livro. Queria fugir do frio de Lisboa.
— Fez bem. Veio para o lugar certo. E vai ficar onde?
— Estou procurando um lugar.
— Quer ficar comigo? Estou procurando alguém para
dividir apartamento. A renda é cara, aqui, no Rio, os preços
estão subindo muito, vou ter de dividir de qualquer jeito.
Com você seria maravilhoso.
O convite deixa-me tão surpreendida que não sei como
reagir. A Mirna percebe o meu embaraço.
— Pode ser uma boa, Alice. O apartamento da Jaque é
no final de Ipanema, num prédio seguro.
— Tem segurança vinte e quatro horas por dia — ex-
plica a Jaqueline. — É pequeno, mas eu acho que você vai
gostar. Vem ver amanhã e depois decide.

228
MARIANA, MEU AMOR

— Mas você não é casada?


— Era, mas me separei há dois meses. Foi ele que ter-
minou tudo e me deixou.
— Oh! Mas porquê?
— Por dinheiro. É uma longa história.
— Mas você parece estar óptima…
— Se ele não me quis por um motivo tão baixo, só por-
que eu não ganhava o suficiente, sendo ele rico, com ren-
das, filhinho mimado de papai com grana, não vou chorar
por uma pessoa assim, querida. A vida é tão maior.
Que coragem! Separada há dois meses e está melhor do
que eu. Nada acontece por acaso. Esta miúda tem muito
para me ensinar. Lembro-me de um dos quatro princípios
da filosofia indiana que me têm ajudado a andar para a fren-
te com paz e espírito de aceitação: na vida aparecem as
pessoas que tu precisas quando precisas delas. Estamos a
precisar uma da outra.
Esta é a terra onde tudo acontece.

229
16.

Vamos a isto, Mariana Alcoforado, é a tua hora. Ando


a evitar-te há três meses, mas chegou o momento de te
enfrentar. O teu desgosto é semelhante ao meu. Falo-
-te no presente porque o amor, sem ser eterno, é a for-
ma que o ser humano encontrou para tocar a eternidade.
Amamos para estar mais longe da morte, para adiar a en-
tropia, a certeza de que um dia tudo vai acabar. Amamos
porque temos amor para dar, e dar faz parte da nossa
sobrevivência. Amamos como sabemos, quase nunca da
melhor maneira, porque sabemos que é sempre melhor
amar do que não amar. Tal como tu escreveste: Só conheci
bem os excessos do meu amor quando fiz todos os esforços
para me curar dele e receio que não tivesse ousado aven-
turar-me a essa empresa se tivesse podido prever-lhe todos
os riscos. Estou convencida de que teria experimentado
sensações menos desagradáveis amando-o, embora ingra-
to, como é, do que deixando-o para sempre. Tive então a
prova de que lhe quero menos do que à minha paixão. E
suportarei dores indescritíveis em a combater, depois que

231
MARGARIDA REBELO PINTO

a infâmia da sua maneira de proceder o tornaram odioso


aos meus olhos.
Não te faças de ingénua, Mariana. Tu sabias que Noël
estava em Portugal numa campanha, mais cedo ou mais
tarde voltaria ao seu país. Conhecias as suas ambições
pessoais. Sendo uma mulher inteligente e com quase 30
anos, não te deixaste ir com inocência nessa aventura do
coração e da carne. Tu quiseste ir. Já conhecias a natureza
masculina. O teu pai sempre foi um homem frio e egoísta.
Se tivesses nascido no século xx e soubesses os mais rudi-
mentares ensinamentos de Freud, terias percebido que te
deixaste maltratar por Noël porque já o teu pai te maltra-
tara, te abandonara, condenando o teu destino à solidão dos
claustros para não ficar menos pobre. O teu pai não teve
coração, nem compaixão. Nem tão-pouco Noël. O que o
tenente sentiu por ti foi desejo. E usou-te como sua presa
e objecto de sedução porque te puseste a jeito. Tu mesma
quiseste correr os riscos de um envolvimento tão perigoso
quanto inconsequente. Tal como eu, tens um coração ka-
mikase; quanto mais difícil a tarefa, mais esforço, empenho
e fé metes nela. Olha para mim: o meu primeiro amor era
um drogado como o meu pai; o segundo, infiel e mentiroso;
e o terceiro… bem, o terceiro foi o que foi e também me
abandonou. Mas nunca me prometeu nada, e mesmo quan-
do voltou, não me enganou.
Vou confessar-te uma coisa, Mariana, porque aprendi
que a verdade é a minha maior aliada neste caminho que
percorro sozinha, tal como tu. Quando o Pedro me quis
ver da última vez, tentou evitar o encontro. No meio de
todas as mensagens, omiti duas muito importantes. Numa
ele disse: Não podemos encontrar-nos. Quando perguntei

232
MARIANA, MEU AMOR

porquê, ele respondeu: Porque não vou alterar a minha


posição. Mesmo assim, pedi-lhe para ele vir, sabendo que
podia desaparecer a seguir. Foi claro e honesto. Mas eu fui
estúpida, entendes? Nada acontece por acaso na vida. As
coisas têm uma razão. E a razão é que somos estúpidos, ou
teimosos, ou egocêntricos — o que muitas vezes acaba por
ser a mesma coisa —, e tomamos as decisões erradas. O
nosso orgulho impede-nos de aceitar a realidade tal como
ela é.
Eu fui avisada, não posso lamentar as minhas escolhas
depois disso. Ele disse-me que nada ia mudar. É claro que
ambos fomos dominados pelo desejo, mas não foi aí que ele
falhou. E se prefere manter-se afastado de mim, indepen-
dentemente de ainda me amar ou não, é porque fez uma
escolha e foi coerente com ela. Foi por isso que me afastei.
Para o respeitar e para recuperar o respeito por mim.
Tenho muito mais sorte do que tu, nasci no século da
emancipação da mulher. Tu ficaste fechada e encontraste o
teu caminho através da espiritualidade. Eu apanhei um avião
e vim viver uma nova vida do outro lado do Atlântico. Mas
o que me separa do Pedro, como canta o Chico Buarque,
tantas léguas a nos separar, tanto mar, tanto mar, não são
só dez mil quilómetros de água, mas o facto de ele que-
rer viver a vida dele como bem entende. Cabe-me apenas
respeitar a sua escolha e aprender a ser feliz aceitando-a,
acreditando que é o melhor para os dois.
Escolhi o mundo porque posso, mas também porque
tive essa coragem. Podia ter ficado em Lisboa, fazendo-me
de vítima e apontando o dedo ao meu carrasco. Nada se-
ria mais injusto, tanto para mim como para ele. O Pedro
amou-me, apenas não quis, ou não conseguiu, encaixar-me

233
MARGARIDA REBELO PINTO

na realidade dele. Juntos vivemos um sonho. E quando foi


preciso acordar e descer da nuvem, ambos demorámos
algum tempo até conseguir encontrar terreno firme. Tenho
a certeza de que para ele também foi difícil. E que me amou
durante mais tempo do que aquele que se deixou mostrar.
Senão, porque me enviaria mensagens a chamar-me paixão?
O Pedro não é um homem sádico, nem sequer tem mau
carácter, é um homem como qualquer outro. Imperfeito e
incoerente, como eu. Ambos tivemos um ataque de ado-
lescência e ambos sofremos com tudo o que arriscámos.
Noël nunca te disse que iria desistir da sua carreira militar
para ficar contigo, pois não, Mariana? Afirmas que ele pro-
meteu vir-te buscar, mas será que prometeu mesmo, ou a
tua imaginação forjou esse desejo com tanta vontade que o
transformou numa convicção?
As mulheres fortes não são as que aguentam estoica-
mente um desgosto de amor, são as que aprendem com os
seus erros. De que te serviu a glória ingrata de tanto sofri-
mento? Escreveste cinco cartas magníficas que se tornaram
património da humanidade. O teu sofrimento inflamou
muitos corações cansados e ajudou muitas mulheres aban-
donadas. Foste a voz de milhares de mulheres ao longo de
séculos em todo o mundo. Graças a ti, muitas conseguiram
fazer o que eu fiz, uma catarse de tudo o que vivi e seguir
o meu caminho.
Sem saber, foste precursora da heroína romântica,
frágil, magoada, trágica, que sobreviveu até aos dias de
hoje. Contudo, nem todas estas heroínas são iguais: exis-
tem aquelas que são mais fortes do que o seu próprio
destino e as outras, como tu, que o enfrentam e acabam
por vencê-lo.

234
MARIANA, MEU AMOR

Se vivesses agora, verias em várias mulheres famosas os


traços de personalidade das mais fracas, as que não conse-
guiram vencer-se a si mesmas. Marilyn Monroe é um caso
clássico, que cultivou o mito da tonta desprotegida. É certo
que a sua infância não foi fácil, mas ela fazia-se de burra
quando era inteligente, porque, se não fosse inteligente,
o Arthur Miller não se teria casado com ela. Teria dormi-
do com ela, mas nunca casado. E sabes porque se separou
dela? Porque percebeu que não a conseguia ajudar: ela já
mergulhara sem retorno no papel da mulher frágil, vítima
do mundo, dos homens, e, em última análise, de si mesma.
Morreu aos 42 anos, sozinha, encharcada em álcool e barbi-
túricos. O mundo glorificou a sua beleza para sempre, mas
de nada lhe serviu, porque estava morta.
Na literatura portuguesa, a figura de Luisinha, em O
Primo Basílio, encarna a mulher ferida e destruída para
sempre por um amor imprudente e desastroso. Eça de
Queiroz foi muito cruel ao criar uma mulher tão bela e tão
facilmente manipulável, mas as Luisinhas existem, ou ele
não a teria criado. Não sabemos como o mito alimenta a
realidade nem o seu inverso, a criação literária pode imitar
a realidade ou o contrário, mas este mito enfraquece-nos
enquanto mulheres.
Há uma diferença entre precisar de protecção e gritar
ao mundo que morremos se não a tivermos. Nada é mais
falso. Sempre nos aguentámos sem a protecção masculi-
na e os mitos servem para confirmar a realidade existente.
Penélope nunca cedeu a nenhum pretendente. A rainha
Isabel I casou-se com a Inglaterra. Joana d’Arc lutou pelos
seus ideais por sua conta e risco. A Padeira de Aljubarrota
evitou uma invasão. Ao longo da história da humanidade

235
MARGARIDA REBELO PINTO

tens inúmeras mulheres que são verdadeiras heroínas e


nunca contaram com os homens para as ajudar ou prote-
ger. E não penses que os homens não gostam de mulheres
fortes. Eles gostam muito, porque as admiram. Podem ter
medo, mas gostam, porque eles também precisam de se
sentir protegidos. E não são as nossas palavras que os prote-
gem, mas os nossos actos.
Não tenhas a ilusão de que as tuas cartas tocaram o co-
ração do teu amado da forma que gostas de imaginar; quan-
do alguém ainda ama e o outro já não, todas as missivas do
que ficou lá atrás perdem força e alma. O outro sente pena
de nós e não há nada pior do que alguém sentir pena de nós.
Eu tenho pena de um cão com três patas ou de um gato
cego, porque, na verdade, não posso fazer nada por eles.
Ter pena é não poder ajudar. Não passa de um sentimento
herdado da nossa educação cristã. Temos pena, encolhemos
os ombros e continuamos com a nossa vida, como o Pedro,
o Noël, como tu e eu. A vida continua, implacável, e ainda
bem. O passado apaga-se com o tempo, porque o tempo
cura quase tudo. E tu és a prova viva do que estou a dizer.
Noël partiu-te o coração quando tinhas 29 anos, pensaste
que morrerias de amor e viveste até aos 83. Como vês, o
desgosto não te matou, tornou-te mais forte. É para isso
que servem os desgostos de amor. Para aprender a blindar
o coração. Aprender a amar apenas aqueles que nos amam,
a dar amor apenas a quem o merece, a trabalhar o dar e o
receber com justiça e com verdade.
Também lamento quase todas as mensagens e e-mails
que enviei ao Pedro quando ele se quis afastar. Tinha
tanto medo de o perder que acabei por me perder nesse
medo. E olha de que me serviu: só agora me sinto de

236
MARIANA, MEU AMOR

novo inteira, e tive de atravessar duas vezes o Atlântico,


porque da primeira vez não fiquei tempo suficiente para
me reerguer.
Não penses que um amante ocasional é importante para
a minha reconstrução interior. Nada disso. O consolo da
carne e do desejo dissipa-se rapidamente depois de satisfei-
to. É bom para mim e para eles, mas apenas enquanto dura.
A solidão de que padeço é a que escolhi quando decidi em-
barcar numa aventura com riscos à vista, ou, na linguagem
dos economistas, jogar com probabilidades muito baixas.
Estava a apostar na lotaria convencida de que ia ganhar
um quiz show por mérito próprio. Tal como tu, acreditei
demasiado nos meus poderes encantatórios; pensei que o
desejo, o prazer e a felicidade imediatos iriam vencer uma
vida construída a pulso. Vês agora como fomos as duas ar-
rogantes e pouco inteligentes? Pensa um pouco no papel
da mulher na sociedade: em que momento os homens nos
viram como aliadas, como seres iguais a eles? Eles vão para
a guerra, nós ficamos em casa. Eles caçam e lutam, nós re-
colhemos alimentos e tricotamos agasalhos, cuidamos dos
filhos e protegemos o lar. Os homens são feitos de outra
matéria, querida Mariana.
Não duvides por um momento que Noël te amou. Mas
o amor não vence a vida e ele tinha a vida dele. A tua tragé-
dia pessoal foi não poder escolher a vida que querias. Eras
uma mulher fogosa e apaixonada, o teu destino foi injusto
e cruel. As paixões da carne só se dominam com a própria
carne, ou com grande espírito de abnegação. Se encontraste
paz interior no convento e dele te tornaste abadessa, então
venceste, porque soubeste ser mais forte do que o teu pró-
prio destino. És muito maior do que as cartas que deixaste.

237
MARGARIDA REBELO PINTO

O que fizeste por todas as noviças que entraram depois de


ti, como as ajudaste a encontrar a paz no amor de Cristo é
tão mais grandioso e belo do que as tuas palavras, entendes
isso?
O que conta não é o que escrevemos, mas o que faze-
mos. O que deixamos ao mundo como nosso legado. Eu
vou deixar um livro sobre ti, sobre o teu sofrimento, mas o
meu legado ao mundo será mostrar como sou feliz na mi-
nha liberdade pessoal. Não sou mais forte do que as outras
mulheres, sou só mais persistente. E acredito que tenho o
dever de ser feliz. Repara que não escrevi a palavra direito,
mas dever, porque aí reside a diferença fundamental entre
olhar para o mundo como uma vítima que reclama tudo
aquilo a que pensa ter direito ou como uma guerreira dis-
posta a conquistar o que for o melhor para a sua paz e a sua
felicidade.
Tu não mataste o amor que tinhas por Noël, apenas o
transmutaste em outra energia: a energia do Divino, na qual
o espírito se transporta para outras dimensões. Imagino-te
a rezar na capela do crucifixo, o teu recanto preferido do
convento. Imagino-te absorvida nas tarefas diárias de ges-
tão dos alimentos que é da tua responsabilidade, enquanto
ensinas às noviças os segredos culinários da doçaria que tor-
naram conhecido o Convento da Conceição. Não vives só.
Estás rodeada de dezenas de mulheres, entre as quais pro-
fessas, educandas, pupilas e senhoras recolhidas, como tu.
Com o teu ímpeto natural, é fácil imaginar-te a comandar
as mulheres em teu redor. Encontraste o teu caminho, fe-
chada para sempre nesse lugar repleto de capelas e altares.
A abnegação e a purificação da tua alma venceram as fra-
quezas da carne que não te eram permitidas. Tenho dúvidas

238
MARIANA, MEU AMOR

de que, depois de as provares, o teu corpo não te tenha


pedido mais. Mas também sei que, quando o nosso coração
e o nosso corpo pertencem apenas a um homem, se torna
um santuário onde mais ninguém pode entrar. Tornamo-
-nos vestais da nossa paixão e fechamos o nosso espírito
para prazeres exteriores. É assim o jogo da entrega: dás o
que queres receber, e quando queres tudo, dás-te toda. E o
outro, se não quer dar-se como nós, escolhe ir-se embora.
A grande vantagem de ofereceres o teu amor ao Divino
é que Este nunca to irá recusar. E se d’Ele fores crente,
encontrarás finalmente a tua paz. Eu também encontrei a
minha, curiosamente num caminho próximo do teu, sem
ter de entrar num convento. A coragem de me abrir para
o mundo trouxe-me uma das maiores dádivas que o ser
humano pode receber: uma família e um caminho para a
serenidade. E agora vou contar-te como alcancei, a pulso
e com esforço, a paz possível que me ajudou a esquecer
a tristeza que carregava no peito. Ninguém pode ser mais
forte do que eu quando se trata do meu destino. Só Deus.
Um homem, nem pensar.

239
V
ens aqui há quatro dias e só agora me apercebo de
que não te confidenciei o que diziam as famosas
cartas que levaram o meu desgosto aos quatro cantos do
mundo. Na verdade, cuidei que nunca mais as leria, pois
delas não fiz cópias, e tive o cuidado de enviar de volta
todas as que recebera de Noël, excepto as duas últimas,
bem como os presentes que me ofereceu juntamente com
o envio da minha última missiva, que em muito difere das
anteriores. Os objectos possuem um valor mágico, po-
dem prender-te como um laço que não consegues desfa-
zer, achei por bem de tudo me libertar, renegando assim
aquele que tanto amara.
Quis o destino, cruel e castigador, que as palavras
que me ajudaram a lavar a alma nas cinco cartas que lhe
escrevi retornassem a mim, impressas em livros, primeiro
em francês, depois em outras línguas. Não tenho pala-
vras para te explicar o susto que dá ver as tuas palavras
mais íntimas nas mãos do mundo, à mercê do julga-
mento alheio, ainda que ninguém saiba quem é a freira

241
MARGARIDA REBELO PINTO

portuguesa nem o cavaleiro por quem se perdeu de amo-


res. Já me disseram que nas cortes dos reinos vizinhos o
assunto é por demais comentado entre damas e senho-
res. Em França, diz-se que o nobre soldado é Chamilly, e
que até Luís XIV faz em seus salões de Versailles graçolas
sobre as qualidades másculas do meu amante. Viver aqui
fechada acaba por ser uma bênção. Não me imagino a
entrar em salões mundanos e sentir sobre a minha pele o
olhar curioso e inquisidor de quem suspeita que sou eu a
autora das cartas.
Ainda assim, talvez fiques surpresa se te disser que, se
soubesse que seriam publicadas, não teria deixado de as
escrever nem de as enviar. Sabes porquê? Porque quando
te perdes de amores, perdes a vergonha, o brio, o amor a
ti mesma e o temor a Deus. Nada te perturba, pois o teu
próprio veneno já te deu cabo da vida. Está tudo perdido,
por isso já nada importa. Eu não sei quem sou, nem o que
faço, nem o que desejo; encontro-me dilacerada por mil
movimentos contrários. Poder-se-á imaginar estado mais
deplorável?, confesso-lhe sem pudor na terceira carta.
A terceira e a quarta foram as mais difíceis de escrever.
E são também as mais patéticas. Sim, não te espantes
com as palavras que uso. É verdade que as cartas são
belas mas também patéticas, porque não alcançaram o
fito que me propusera: reconquistar o meu amor com
o dom da palavra, já que o do corpo me fora privado pela
sua ausência.
Conheço bem as armadilhas da memória. A pele não
esquece a pele que amou. O teu olfacto recordará para
sempre o odor a suor adocicado dos dois corpos em
delírio. Por vezes nem é preciso fechar os olhos para

242
MARIANA, MEU AMOR

ver aquele que amas a sorrir-te e a beijar-te a boca,


enquanto te aperta em seus braços vigorosos. Nunca
esqueces nada, mesmo quando queres esquecer, ou tal-
vez quando aquilo que mais queres é esquecer. Por
mais que apeles à razão e rezes pedindo auxílio ao
Altíssimo, só a erosão do tempo irá levar consigo o teu
desassossego, a tua aflição no peito, o teu desgosto.
E mesmo assim, a mágoa e a raiva não se dissipam. Ficam
guardadas num recanto obscuro da tua alma, como os-
sadas perdidas.
Vamos então às cartas. Depois de as reler, apercebi-
me de quanto o meu espírito se encontrava perturbado
naquela época. Noël partira de repente, depois de ter
sabido que seu irmão se encontrava doente e fora em seu
auxílio. Nunca cuidei que fosse uma desculpa. Também
me disse que o seu rei, Luís XIV, que tanto o apreciava,
precisava dos seus serviços. Quem ousa recusar ou atra-
sar as ordens de um soberano, ainda mais do Rei-Sol, um
dos homens mais poderosos da Terra? Noël não conse-
guia disfarçar a sua vaidade quando me confidenciou que
o rei precisava dele. A vaidade brilhava-lhe nos olhos,
tanto ou mais do que quando me amava em meu catre.
Se me encontrasse em meu perfeito juízo, teria desde logo
entendido que o meu curto e secreto reinado em seu co-
ração se extinguira com as ordens vindas de França. Mas
a paixão toldou-me a lucidez. E foi então que lhe escrevi
as cinco cartas, nem sempre esperando uma resposta,
porque se não lhe dissesse tudo o que sentia, o meu co-
ração podia rebentar. Comecei com esperança, passei da
ilusão ao desespero, do êxtase ao calvário, da tristeza à
raiva, até que me enchi de orgulho e me despedi na última

243
MARGARIDA REBELO PINTO

missiva. Como bem podes entender, tratava-se de um


orgulho forjado, mas eu sabia que as minhas palavras se-
riam o único sinal visível do que sentia. Ele não podia ver
as lágrimas que corriam como fios pela minha cara, nem a
mão que tremia enquanto escrevia. Não tinha como adi-
vinhar as dores que sentia em todos os membros, sobre-
tudo nas pernas, durante os meses que foram passando,
da primeira à última carta. Cuidei que as minhas palavras
o magoavam, provocando-lhe culpa e remorso, por todo o
mal que me causou. Mas, em nome da verdade, de nada
me serviram, pois já se encontrava longe, distraído com
os seus deveres e ambições pessoais.
As cartas, escritas para ele, acabaram por servir a
muitos corações, sem no entanto tocar o único que se
propunham. As suas respostas eram vazias e ausentes
de afecto. Limitou-se a ser um homem de bons modos.
Ao recebê-las, embora o meu coração batesse mais forte,
no fundo sabia que não eram importantes, pois não tra-
ziam dentro delas o amor que em tempos teve por mim.
Esse ficou em meu catre, desfez-se com o tempo e com a
vida, a vida que ele escolheu, da qual fiquei para sempre
de fora. Apenas guardei as duas últimas, como te disse,
porque nelas foi honrado e me disse que já não me amava
e que não voltaria a Beja. Reli-as vezes sem conta até
conseguir acreditar em suas palavras.
Senti que o meu coração e o meu corpo eram como
uma estalagem assaltada e fechei-os para sempre. O
abandono de que tanto me queixo nas cartas era a maior
dor que sentia, por isso me repetia tantas vezes.
Noël nunca mais voltou a Portugal porque, se o fizesse,
estou em crer que não resistiria, e de novo me bateria à

244
MARIANA, MEU AMOR

porta. Mas a publicação das cartas tornou tudo ainda


mais difícil. Noël não podia passar por Beja sem ser reco-
nhecido. Durante anos não se falava de outra coisa para
lá dos muros do convento. Só aqui dentro, as minhas irmãs,
solidárias com a minha dor, calaram as criadas e outras
servas, proibindo que a minha tragédia fosse falada.
Entendes agora porque amo tanto este lugar? Aqui
encontrei o silêncio e a protecção que me salvaram do
escárnio e, quem sabe, da forca. E foi assim que entendi
que Deus é infinitamente misericordioso e por todos zela,
sem nunca cessar a sua missão. Foi Deus que me sal-
vou, guardando-me neste lugar. Quando a minha alma
acordou para tal verdade, não mais deixei de rezar e de
conversar com Ele. E foi assim que aos poucos encontrei
o caminho da paz e da aceitação. Rezando, cantando,
educando outras noviças, esquecendo o que vivera, como
se a minha vida com Noël tivesse sido outra, como se
fosse possível ter mais do que uma vida, coisa na qual
não creio.
A realidade mudou e a verdade também. O meu cora-
ção cansado encontrou na Fé o seu caminho. E aqui me
encontro a ditar-te os meus ensinamentos, guiada pela
luz do Altíssimo, que não mais me abandonou. Aprendi
a ser feliz com Deus e por Deus. Aprendi a apreciar em
minhas companheiras a grande afeição que as mulheres
sentem quando uma companheira precisa de um abraço,
de um aconchego, de uma palavra de ânimo. Ensinei às
noviças as artes da caligrafia e, durante os anos que fui
abadessa, governei este lugar com clemência e justiça.
Hoje sou respeitada e admirada por todos, pois todos
sabem a tragédia pela qual passei e como lhe sobrevivi.

245
MARGARIDA REBELO PINTO

Amo muito a Deus e amo a minha alma por ter conse-


guido salvar-se. Estou serena. O que quero dizer ao mun-
do está dito. Um convento é só mais um lugar no mundo,
igual a tantos outros, onde a virtude e o pecado vivem
paredes-meias. O amor a Deus não vem de rezas nem de
missas, mas do coração e da alma. Mesmo quem pensa
nunca ter Fé, um dia pode senti-la a rebentar no peito, e
essa Fé é feita de Amor. A carne ganha quase sempre ao
espírito, mas o tempo ganha a tudo. O amor está em ti,
quando o dás aos outros, nunca se perde. E se os outros
não o querem, tens de saber o que fazer com ele, porque
é teu, sangue do teu sangue, carne da tua carne. A vida
ensina-te a aprender a estar calada e quieta. As noites
ensinam-te a aguentar a solidão. Os dias mostram-te que
há sempre luz, antes e depois da escuridão. E mesmo
que a razão não te vença, a verdade vence-te sempre.
Tens um destino marcado e não lhe podes fugir. E a
cruz que Deus te deu para carregar é só tua e de mais nin-
guém. Resta-te a inteligência de a levar pela vida o melhor
que sabes, para que cada dia se torne mais leve. Com o
tempo sentirás que já não te pesa, os teus pés começam
a levantar-se do chão, a tua serenidade faz-te pairar sobre
todas as coisas. És toda feita de amor e de clemência,
desejas apenas saúde àqueles que amas e paz no mundo.
Chegas ao Céu na Terra, porque já não desejas nada que
não possas alcançar. És finalmente dona da tua vontade
e do teu desejo. Alcançaste a plenitude. E amanhã será
sempre um dia melhor.
Vai descansar, Maria Benedita. Vou rezar por ti e por
tudo o que fizeste por mim. Guarda bem o que escrevi e,
quando eu morrer, entrega-o a alguém da tua confiança e

246
MARIANA, MEU AMOR

que faça com que as minhas palavras sejam publicadas.


Espera, falta ainda o título. Pega numa folha em branco e
escreve na mais bela caligrafia que te ensinei: Cartas ao
Mundo de Soror Mariana. Depois prende tudo com uma
fita de veludo vermelha, da cor do meu coração, que irá
bater para sempre nas palavras que deixo ao mundo.
Tudo o que não é dado perde-se e morrerei na paz
de saber que dei sempre tudo o que tinha: o meu amor a
Noël, que nunca o mereceu, e depois a todas vós e a Deus,
que juntos são as melhores criaturas do Céu e da Terra.
Bem hajas, minha fiel escrivã, pela tua dedicação e silên-
cio. Vai em paz e que Deus Nosso Senhor te acompanhe.
Vou agora fechar meus olhos cansados, com a certeza de
que cumpri a minha missão nesta terra. Deus lá sabe o
que faz e porquê. Descansa, amanhã é outro dia.

247
17.

No dia seguinte fiz as malas, apanhei um táxi até ao final


de Ipanema e fui recebida pela Jaqueline de braços abertos.
Senti uma agitação, uma energia no ar, diferente de tudo o
que já vivi. Finalmente iríamos ter tempo para nos conhe-
cer e trocar confidências.
A Jaque separou-se há dois meses. Casou-se de véu e
grinalda no dia de Santo António. O ex-marido é filho do
dono de uma rede de drogarias no Rio de Janeiro e rece-
bia uma renda do pai para viver. O dinheiro caía-lhe do
céu, o que lhe permitia ser actor de teatro e encenador
quando lhe apetecia. Mas, segundo o Marcelo, quem não
vive do seu trabalho enquanto artista, não pode ser con-
siderado como tal. Foi o que comentou connosco quando
o convidámos para jantar em nossa casa, semanas depois
de me ter instalado com a minha nova irmã. Só viu o
meu pai algumas vezes, quando passava férias com a mãe
em Portugal. Aos 15 anos revoltou-se com o facto de a
mãe a ter entregado aos avós, que ainda estão vivos e que
trata como pais. Ficou emocionada quando lhe contei

249
MARGARIDA REBELO PINTO

que também fui criada pelos meus e que ambos já tinham


morrido.
— Não imagino a minha vida sem os meus avós. Você
não se sente só?
— Sim, mas sempre fui uma pessoa sozinha. Com
grandes amigas, mas sem família. É uma questão de há-
bito. E existe uma diferença entre ser só e me sentir sozi-
nha. A verdadeira solidão é quando não podemos estar com
quem amamos. Passei por uma fase complicada recente-
mente, que se arrastou tempo demais.
— Com a morte do nosso pai?
— Não, ele estava doente há muito tempo e não tínha-
mos uma ligação forte. Fiz o luto em vida, acho. A morte
dele só ajudou a fechar um ciclo. Foram outras coisas, his-
tórias de homens, você sabe como é.
— Claro que sei. A minha separação foi horrível. E não
gosto de viver sozinha, portanto o fato de você ter apareci-
do justo agora é uma bênção, entende? Aqui você não vai
se sentir só. Não enquanto ficar comigo. E vai conhecer os
meus avós. Eles almoçam cá em casa todos os domingos.
São muito fofos, você vai gostar deles.
— Porque é que aos quinze anos não voltaste mais a
Portugal?
— Foi a idade da rebeldia, de me afirmar, sem saber
ao certo como. Nunca criei laços fortes com a minha mãe,
cada vez que ia vê-la, sentia-me só e perdida. Lisboa é linda,
gosto do lugar, mas a minha mãe e eu somos muito diferen-
tes. E como não cresci com ela, nunca criámos uma ligação
profunda. Não era nem mãe, nem amiga, entende? Nunca
encontrei um lugar na minha vida para ela, porque ela tam-
bém nunca encontrou um lugar para mim.

250
MARIANA, MEU AMOR

— Quem me dera ser tão pragmática.


— Não é pragmatismo, é sentido de justiça, acho. Como
é que você quer dar amor, tempo, espaço e carinho a quem
não te dá nada disso? Como diz a Mirna, a vida é tão maior!
Tem tanta gente procurando o mesmo que você, com capa-
cidade de dar e de amar, para quê perder tempo com quem
não tem essa capacidade ou vontade?
— E com o meu, aliás, o nosso pai? Nunca criaste um
laço?
— Eu via-o como um cavaleiro distante, uma entida-
de misteriosa que aparecia e desaparecia, me dava bonecos
que riam e choravam e bonecas com roupas para mudar,
mas depois a minha mãe falou que ele estava doente e acho
que foi aí que decidi não ir mais a Portugal. Naquela idade
afastei-me do mundo que conhecia. Fui viver para a selva,
no meio de uma comunidade hippie. E foi aí que aprendi
a meditar, no sossego do mato. Vivi lá seis meses, e teria
ficado mais se o meu avô não tivesse ido lá para me trazer
de volta.
— E foi bom?
— Foi maravilhoso. Aprendi a viver com pouco e a ser
feliz com isso. Aprendi a escutar os sinais da Natureza e a
ajudar quem precisa, sem esperar nenhum tipo de retri-
buição. Aprendi a meditar e a ensinar os outros a meditar.
Numa palavra, acho que aprendi a ser mais feliz. E quando
a vida me traz um problema sério, como foi a minha sepa-
ração, meditei muito para limpar a tristeza, a zanga, esse
lixo tóxico que uma pessoa sempre acumula numa relação.
— Que bom. Então vais-me ensinar?
— Claro, começamos já amanhã, antes do café, você quer?
— É difícil?

251
MARGARIDA REBELO PINTO

— Não. Se você abrir o seu coração e o seu pensamen-


to para receber e transmutar energia pelo seu corpo, é
fácil. Quer experimentar? Eu acho que você vai apanhar
rápido.
Nesse primeiro dia, a Jaque cozinhou para mim, depois
fomos às compras, demos uma volta pelo bairro, caminhá-
mos no calçadão, jantámos em casa e acabámos o serão com
ela a tocar violão e as duas a cantar Chega de Saudade,
Leãozinho, Quase sem Querer, Eu Preciso Dizer Que Te
Amo, Amor e Sexo e Baila Comigo.
O apartamento fica no quinto andar de uma das ruas
principais de Ipanema. Quando saio de casa, se virar para
a esquerda, vou para Copacabana, se seguir em frente, vou
dar ao Arpoador, se virar à direita, vou dar à Praça General
Osório, onde às terças há o mercado de legumes e frutas e,
ao domingo, a feira hippie. É pequeno, não deve ter mais
de 50 metros quadrados. Está decorado com simplicidade
e amor. A Jaque dorme num mezanino do tamanho de uma
cama de solteiro. Eu durmo por baixo, numa cama de ca-
sal com a capa de edredom forrado a borboletas. Quando
cheguei com as malas e comecei a ver borboletas por todo
o lado, em quadros, em toalhas de banho, até no sabonete,
a Jaque levantou a T-shirt e mostrou a sua tatuagem de asas
de borboleta nas costas. Mostrei-lhe a minha tatuagem e
demos um abraço imenso, talvez o melhor de toda a mi-
nha vida. Não é todos os dias que se ganha uma irmã, mas
eu tive ainda mais sorte, porque me saiu um anjo na rifa.
Inteligente, bonita, meiga, feliz por nos termos finalmente
encontrado.
Vou conhecendo pessoas, fazendo novos amigos e re-
forçando as amizades que já tinha. O trabalho vai rolando,

252
MARIANA, MEU AMOR

como se diz em português do Brasil, sem stresse, amigos


que vivem em São Paulo apanham o avião para vir passar
o fim-de-semana. Sinto-me mais leve, a vida torna-se mais
fácil e muito mais tranquila.
A meditação entrou na minha rotina. Andava há anos a
pensar que podia fazer-me bem, mas nunca imaginei que
os efeitos fossem tão rápidos e eficazes. Meditar é fácil,
porque é profundamente humano. Não tem nada de espe-
cial, embora com o tempo se transforme numa actividade
peculiar. Meditar diariamente trouxe-me uma nova paz,
não emprestada pelas circunstâncias, mas conquistada às
circunstâncias, o que é completamente diferente. Quem
olha para fora, sonha, quem olha para dentro, acorda. Não
é difícil, a Jaque tinha razão. É como uma viagem para um
lugar em que o vazio enche tudo.
Cada pessoa sente a meditação de forma diferente. Não
existem receitas mágicas. É uma experiência vivida dia após
dia. Há dias em que sentimos que correu bem e outros em
que não nos conseguimos concentrar a ponto de nos deixar-
mos ir. E, no entanto, quando regressamos ao plano terre-
no, sentimo-nos sempre melhor, mesmo sem saber porquê.
Ao atingir o estado da consciência presente, de sentir a vida
a pulsar aqui e agora sem tentar justificar o que estamos a
viver, alcançamos paz de espírito. Ou, melhor dizendo, paz
no nosso espírito. Sem grandes teorias nem explicações,
tudo se vai tornando mais simples.
Não é a realidade que se altera, mas a forma como a
vemos. A percepção pode ser a nossa maior aliada ou o
nosso pior inimigo. O que vemos com os olhos é infinita-
mente menos importante do que aquilo que vemos com o
coração, com o medo ou com a esperança. Olhar e ver não

253
MARGARIDA REBELO PINTO

são a mesma coisa. Olho para o meu passado e está sempre


a mudar. Há dias em que vejo só as coisas boas; os meus
queridos avós que me ensinaram a ser independente e ín-
tegra, as minhas grandes amizades, o meu trabalho de que
tanto gosto, a minha saúde de ferro, os dias maravilhosos
que vivi contigo. Mas esses dias são muitas vezes alternados
com outros, sombrios e nostálgicos, nos quais a imagem da
minha mãe em fotografias esbatidas paira sobre mim, o dia
em que perdi os meus avós me persegue, a cara do meu pai
na morgue me atormenta. E as noites de frio e de ausência,
aquele até já que nunca chegou a ser um regresso. A vida
é isto, uns dias parece-nos fácil, fluida, leve. E outros, uma
cruz impossível de carregar. Mas há sempre o dia seguinte,
a possibilidade de melhorar em tudo o que estiver ao nosso
alcance, de descobrir novos caminhos. É assim que me sin-
to na Cidade Maravilhosa. O Rio é a minha segunda casa.
Quantas pessoas têm a sorte de ter duas casas, dois mundos,
dois caminhos que se vão cruzando e não são incompatíveis?

Você devia viver aqui, diz-me o Márcio cada vez que nos
encontramos para beber uma água de coco na praia, junto
ao Forte, no final de Copacabana, que fica perto da casa
dele. Esta cidade cura as pessoas. A Mirna concorda com
ele. E a Jaque também diz o mesmo. Cada dia me sinto
melhor: mais forte, mais equilibrada, mais acompanhada,
mais feliz.
Os dias voam porque são cheios, tão diferentes dos meus
de Lisboa, apenas povoados por idas a casa da Laura e pou-
co mais. De vez em quando o Rodrigo aparece no Facebook
a perguntar como estão a correr as coisas. Que simpático.
Deve ser bom tipo. De Portugal chegam diariamente várias

254
MARIANA, MEU AMOR

mensagens de amigos com saudades. Nada como desapare-


cer durante uns tempos para as pessoas se lembrarem de
nós. Perguntam-me quando volto. Respondo que não sei.
Não quero saber. Só quero viver o presente acima de tudo.
Aproveitar cada dia, abraçar o momento.
Tenho cada vez menos saudades tuas, mas ainda está
tudo à flor da pele. Nesses momentos respiro fundo e de-
sejo o melhor do mundo, para ti e para os teus filhos. Vai
passar, penso. Primeiro arruma-se a cabeça, depois o cora-
ção. Dá muito trabalho e requer grande espírito de disci-
plina. As feridas internas são as que mais tempo demoram
a fechar.

Numa manhã particularmente luminosa, sento-me a


escrever-te um mail por impulso, sem pensar no que estou
a fazer. Pergunto-te como estás e acabo por abrir o meu
coração. Falo-te da minha solidão, da morte do meu pai,
das entrevistas, do meu livro sobre Soror Mariana. Conto-te
como a vida me trouxe a Jaqueline e o bem que o Rio de
Janeiro me faz. Respiro fundo enquanto te escrevo, com a
certeza de que irás ouvir tudo o que aqui te deixo, por isso
continuo, convicta de cada palavra. Não quero alongar-me,
por isso, despeço-me.
Dá-me notícias se te apetecer e se para ti fizer sentido.
Nunca cortámos os laços, apenas precisamos de ir apren-
dendo a viver com eles de outra forma. E encontrar paz na
realidade que escolhemos. Que estas escolhas nos tragam a
paz de que tanto precisamos para ser felizes e dar essa feli-
cidade a quem de nós depende 
Um beijinho muito grande
Alice.

255
MARGARIDA REBELO PINTO

Releio cada palavra, o meu indicador direito sobe o cur-


sor até à seta mágica. Já foi. Onde quer que estejas, vou
chegar a ti. Solto um suspiro profundo. Sinto-me como se
tivesse lançado um boomerang. Tenho a certeza de que me
vais responder.
A Jaque olha-me de lado.
— O que é que você está fazendo, querida? A sua cara
mudou, parece outra pessoa.
Digo-lhe que te enviei um mail. Meia hora depois res-
pondes-me. Tens saudades. Estás cheio de trabalho. Sugeres
apanhar o avião e vir cá ver alguns clientes. Perguntas-me se
já marquei o regresso e qual é a data.
O meu coração dispara, o meu espírito viaja até à Lua,
as mãos começam a suar, a cara a ficar quente. Mostro o teu
mail à minha irmã.
— E agora?
— Agora você vai pensar se quer arriscar a sua paz e
ver esse cara para o perder de novo, ou se vai deixar a
poeira pousar e depois, com calma, decidir o que a fizer
mais feliz.
— Não consigo pensar com a cabeça, Jaque. Tenho o
corpo a chamar.
— Então vai ter de meditar sobre esse chakra, queri-
da, você não pode deixar que o desejo a domine, pois não?
Deixe passar dois ou três dias antes de responder.
Passo o primeiro dia a pairar. Tens saudades minhas,
pensas em mim. Talvez não esteja tudo perdido. No final
da tarde fazemos uma caminhada de mais de uma hora.
Sinto-me a transbordar de energia, a Jaque já está can-
sada, mas não quero parar. Nessa noite, pela primeira
vez em semanas, durmo mal. Na manhã seguinte acordo

256
MARIANA, MEU AMOR

angustiada. As panquecas colam-se à frigideira e duran-


te a meditação tenho dificuldade em concentrar-me. Ao
longo do dia vou-me sentindo mais triste e mais insegura.
O Bruno quer encontrar-se comigo, digo-lhe que estou
cheia de trabalho.
Saio de casa, vou até ao Posto 10 a pé e sento-me na areia
com a cabeça entre as pernas. A rebentação está grande e
perigosa, hoje ninguém está no mar, nem mesmo os surfistas
do costume. O barulho das ondas acalma-me durante alguns
minutos. Cada dia é diferente. A realidade muda depressa.
Muda quando queremos e quando não queremos. As coisas
vão e vêm, às vezes somos nós a puxar por elas, outras, são
resultado das luas, das marés, do acaso, da sorte ou da fal-
ta dela. Vivemos na ilusão de que controlamos tudo, mas
é quando mexemos na realidade e a queremos mudar que
ela se vira contra nós. Há três dias estava tranquila, feliz,
pacificada. Dormia bem e sentia-me leve e livre. Mexi os
dedos para te escrever e acabei por tocar numa ferida ainda
por fechar. Fui eu que me tirei do sossego, fui eu que me
desprotegi outra vez. Tudo o que fazemos aos outros, faze-
mos primeiro a nós. Não posso correr riscos. Não agora, que
me sinto mais forte. Voltar a ver-te poderia deitar por terra
todo o esforço que fiz nos últimos três meses.
Regresso a casa e vou ao ginásio porque a Jaque che-
ga mais tarde. Jantamos em casa. Estou obcecada contigo,
com a ideia de vires cá passar uns dias, não consigo fa-
lar de mais nada. Imagino-te sentado no bar da piscina do
Copacabana Palace a ver-me chegar de vestido comprido
e sandálias rasas. A cena repete-se sempre que fecho os
olhos. Volto a dormir mal, um sono agitado e triste que me
deixa exausta.

257
MARGARIDA REBELO PINTO

Na manhã seguinte acordo mais cedo do que o habitual.


A Jaque ainda dorme. Dói-me tudo: as pernas, os braços,
as costas, a cabeça e o peito. Voltaste a entrar-me para o
sangue e a tua presença é nociva. Tenho de ser mais forte,
tenho de conseguir limpar-te do meu sistema e aprender,
de uma vez por todas, a ser feliz sem ti. Na verdade já sou,
mas por vezes esqueço-me. E não me posso esquecer, nun-
ca me posso esquecer. Sigo o meu instinto mais profundo,
encho-me de coragem e gravo uma mensagem a pedir-te
para não vires. A minha voz assemelha-se à de uma hospe-
deira da British Airways, mal me reconheço. E, no entanto,
sei que sou eu, que o que te digo expressa o que de mais
forte sinto. Eu não te quero numa visita-relâmpago ao Rio
para depois desapareceres e voltares à tua vida. Eu quero-
-te, ou quis-te, na minha vida. E tu não queres isso. Queres
outra coisa. Isto é um braço-de-ferro e já perdi. O melhor é
esquecer tudo, digo no final, desejando-te o melhor.
Por momentos, antevejo o que vou sentir quando re-
gressar a Lisboa e pondero não voltar. Mas não posso. O vis-
to acaba ao fim de três meses. A Jaque já entrevistou outra
pessoa para dividir o apartamento quando me for embora.
No final de três meses, nada indica que a Sábado me renove
o contrato e vou começar a gastar sem ganhar. Na tua vida
aparecem as pessoas de que precisas e tudo tem um fim,
não foi o que aprendi? Ganhei uma irmã que nunca mais
vou perder. Fiz um bom trabalho no Brasil. Tenho o voo
de regresso marcado. Dias depois de chegar vou festejar o
meu aniversário sem ti. Completo mais um ciclo. Trinta e
seis anos. Estarei com as minhas amigas e amigos. E terei de
aceitar que esta é a minha vida, a minha realidade. Aceitar
que sou livre, mas que não te tenho.

258
MARIANA, MEU AMOR

Falo com a Jaque sobre tudo isto enquanto fazemos a


nossa caminhada habitual no calçadão.
— Fique pelo menos até ao seu aniversário, querida.
É só mais uma semana. Você é tão querida por nós todos
aqui, no Rio, aproveite para celebrar connosco a sua nova
vida, tudo o que você descobriu, aprendeu e ganhou aqui,
no Rio. Lisboa pode esperar, o livro pode esperar, as suas
editoras podem esperar, é só mais um tempo, vai-lhe fazer
bem.
Pondero adiar o regresso mais uma semana. A taxa de
alteração do voo não é cara. Decido alterar. Na manhã se-
guinte envio um mail à Isabel a avisar que fico mais uma
semana e pergunto se querem que faça outra entrevista ou
reportagem. A Jaque comunica a todos os amigos que vou
ficar para o meu aniversário e começa desde logo a organizar
um jantar para esse dia.

259
18.

Amanhã faço anos. No dia seguinte regresso a Lisboa.


Passei os últimos dias a escrever furiosamente. O meu livro
cresceu todos os dias mais três ou quatro páginas. Aproveito
o final da tarde para caminhar no calçadão e para comprar
presentes para a Laura, a Patrícia e a Inês; bikinis, havaia-
nas, pulseiras de cabedal. Já não passo um dia sem meditar.
Cada instante parece correr mais depressa, como se o re-
lógio estivesse a brincar comigo. Faço a lista de tudo o que
ainda quero comprar. Não esquecer os sabonetes Phebo, a
essência de alfazema para ajudar a dormir melhor e uma
carteira de camurça com franjas que vi na feira hippie. Os
meus níveis de concentração estão no máximo. Sinto-me
bem na minha pele, tão carioca como a minha irmã. O Rio
de Janeiro nunca mais vai deixar de ser a minha segunda
casa. Penso cada vez mais na minha heroína Soror, noviça
feita à força, amante apaixonada e devota convicta.
Querida Mariana, na última semana o teu livro ganhou
asas. Está quase terminado. Apaixonei-me por ti, pelo
teu destino e pela coragem com que o enfrentaste. Como

261
MARGARIDA REBELO PINTO

era dura a vida das mulheres no teu tempo e em todos os


tempos! Sinto-me abençoada de ter nascido no século xx,
numa Europa democrática que respeita e valoriza as mu-
lheres. O teu sentido de liberdade revelou-se mais forte
do que o meu, porque a alcançaste dentro de ti, confinada
entre muros. Eu tive de atravessar duas vezes o Atlântico
para a conseguir. Foste sempre muito forte, mesmo quando
sem orgulho despiste o coração nas cartas que escreveste.
Ou justamente ao fazê-lo, pois só os mais fortes não temem
revelar as suas fraquezas. Comecei este livro contrariada,
pensando que as tuas desventuras só iriam aumentar a minha
tristeza.
O tempo provou o contrário. O teu legado é extraordi-
nário. Mostraste ao mundo como as mulheres amam e so-
frem. Tocaste a eternidade, deixaste uma marca única que
perdura ao longo do tempo. Reler-te foi como rever-me.
Chorei, sofri, esperei e sonhei contigo um regresso impos-
sível. Encontraste a paz na devoção a Deus, eu encontrei a
paz na meditação e na capacidade de aceitar o que a vida
me traz, em vez de querer controlar tudo. Nunca o verbo
aceitar me foi tão providencial. Aprendi a domesticar a ansie-
dade e a dominar o desejo. Está tudo cá dentro, mas sou eu
que mando. Já não sou refém de nada nem de ninguém.
E é essa a minha grande vitória.
Não sei se estou mais forte, mas estou mais feliz. Vivo
uma serenidade construída a cada dia. E a cada dia sinto-me
melhor comigo e com o mundo. As cores vão-se alterando,
como se sobre elas caísse um manto muito ténue de paz e
de esperança. Talvez esteja próxima de alcançar o sossego
da minha alma. E talvez o caminho seja o objectivo e não
um fim a alcançar. O fim só vem com a morte, e para quem

262
MARIANA, MEU AMOR

escreve, não chega nunca, porque o corpo morre mas as


palavras perduram, passam de mão em mão. Cada coração
que as ler irá dar-lhes uma nova vida, a sua, entendes? Da
forma mais inesperada, o teu livro também me guiou, me
ajudou e ajudou à salvação da minha paz e do meu bem-
-estar interior.
Tal como encontraste na muda Maria Benedita o eco
para a tua voz, eu encontrei a minha voz nas tuas cartas. As
nossas vidas a partir de agora estão cruzadas para sempre.
Quando o livro for publicado, vou resgatar a tua memó-
ria e a tua grandeza 300 anos depois. E todas as mulheres
apaixonadas irão beber das tuas palavras. Voltarás a es-
tar viva, de mão em mão, de coração em coração. Valeu
a pena viajar até ao século xvii, chorar a tua perda como
minha, aprender que perder alguém não é perder a vida,
mas tão-só aprender a viver com o que temos em vez de
nos perdermos naquilo que não temos. Trocaste o amor
carnal pela devoção a Deus, troquei o sonho por uma vida
nova. Tu venceste a dor, voltaste a ti. Foste íntegra, digna.
A tua última carta é de uma força incrível. Escrevo-lhe pela
última vez, e espero fazer-lhe saber, pela diferença do tom
e dos termos desta carta, que, finalmente, me persuadiu de
que já não me amava e que, portanto, também eu devo dei-
xar de o amar. Devolves o retrato e as pulseiras que Noël
te ofereceu, e também as cartas, com excepção das duas
últimas, decerto aquelas em que o teu amado te dizia que
tudo estava terminado. Reconheces o teu desvario e até que
ponto te perdeste nele. Só conheci bem os excessos do meu
amor quando fiz todos os esforços para me curar dele, e re-
ceio que não tivesse ousado aventurar-me a essa empresa se
tivesse podido prever-lhe todas as dificuldades e violências.

263
MARGARIDA REBELO PINTO

Usando um orgulho que, tenho quase por certo, não era


genuíno, pedes-lhe que não te responda. Se tudo o que por
si pode merecer que tenha algum respeito pelos favores que
lhe peço, conjuro-o a que nunca mais me escreva e me ajude
a esquecê-lo inteiramente. Mais adiante acrescentas: Pro-
meto-lhe não o odiar; por demais desconfio dos sentimentos
violentos para me atrever a fazê-lo.
Tu sabes quão próximos são o amor e o ódio, o prazer
e a dor, a plenitude e o desespero, a paz e a guerra. Mais à
frente, reflectes: Conheço bem demais o meu destino para
procurar opor-me a ele. A tua inteligência e a tua lucidez,
tão acima do que seria esperado de uma mulher no teu
tempo, fazem-te perceber que, mesmo quando o amavas,
não eras feliz. Serei uma desgraçada toda a vida; e já não
o era, quando o via todos os dias? Eu morria com o receio
de que não me fosse fiel; desejava vê-lo a cada momento, e
isso não era possível; atormentava-me o perigo que corria
entrando neste convento; não era vida o que eu vivia quan-
do estava na guerra; e desesperava por não ser mais bela
e mais digna de si. O amor paga-se sempre com algum
sofrimento, mas quando o sofrimento ultrapassa em muito
o amor que vivemos, é tempo de virar a página. Terminas
sem margem para dúvidas: Julgo mesmo que não voltarei a
escrever-lhe. Tenho alguma obrigação de lhe dar contas dos
meus actos?

Assim termina a quinta e derradeira carta, a tua vida


continuou depois dela. Os livros acabam, a vida continua.
Os grandes amores não se esquecem, a vida encarrega-se
de os arrumar num canto qualquer esquecido do nosso
coração, e a nossa memória, que durante tanto temo nos

264
MARIANA, MEU AMOR

atraiçoou com as mais belas recordações, também se vai


esquecendo de tudo. É essa a sua maior qualidade.
— Querida, você parece uma possuída escrevendo, foi a
freira que baixou em você? — pergunta a Jaqueline. — Fiz
uma tarte de espinafres e cogumelos maravilhosa para o
nosso almoço, vamos comer?
Desperto do meu transe e comento com a Jaque o que
estava a escrever. Conto-lhe como o livro me ajudou a che-
gar aqui, em paz, com o corpo tranquilo e o coração apazi-
guado.
— O amor é isto, querida. Está em nós. Sentimos o
amor porque somos amor. E quem é feito de amor põe
amor em todos os gestos. Até para cozinhar. Viu como ficou
boa essa tarte?
— És um génio, minha irmãzinha. Pareces a irmã mais
velha que nunca tive.
— E você é uma guerreira, Alice. Vamos um pouco na
praia, querida? Ou quer continuar escrevendo?
— Vamos, sim. Já falta pouco, estou a sentir o fim a
chegar, já tenho o livro na mão. Um mergulho só me pode
fazer bem.
Saímos poucos minutos depois e caminhamos até ao
Posto 10. O mar está calmo, parece feito de chão. Dou vá-
rios mergulhos e nado durante mais de 20 minutos. Sinto-
-me cheia de energia. Finalmente estou livre. Sou outra
vez dona do meu espírito.
Hoje o céu está limpo, apesar de ser Inverno, o calor
sente-se na pele. Passamos a tarde a dar mergulhos e deita-
das na areia a conversar sobre homens.
— O meu luto acabou — digo-lhe. — Finalmente.
— Sabe que mais? O meu também.

265
MARGARIDA REBELO PINTO

— Ah é? Então vamos sair hoje?


A Jaque não sabe o que responder. Diz-me que sente
algum medo, não sabe bem de quê, mas incito-a a sair da
toca.
— Vou ligar à Mirna e vamos sair as três. Vamos à Dias
Ferreira, no Leblon, que tem sempre restaurantes novos, e
depois seguimos para o Jobi e para o Diagonal.
— Mas eu nem tenho nada de novo e bonito para
vestir…
— Não faz mal. Levas um dos meus vestidos. Sei que
gostas de quase todos, escolhe o que quiseres.
— OK, algum dia tem de ser o primeiro. Será hoje
então — concorda a Jaqueline.
Regressamos a casa e tomamos um duche, secamos o
cabelo como se tivéssemos ido ao cabeleireiro, a Jaque pro-
va os meus vestidos quase todos; parece uma borboleta re-
cém-saída da sua crisálida, cheia de energia e de esperança
no futuro.
Escolho um vestido traçado, modelo envelope da Diane
von Fustenberg, com padrão em animal. É dos meus pre-
feridos. Faço caracóis no meu cabelo, que cresceu imenso
desde que cheguei ao Brasil. Maquilho a Jaque como se es-
tivesse a brincar às bonecas. Parecemos duas miúdas a brin-
car. E somos. A Mirna marca para as nove no Stuzzi. Antes
de sairmos, o meu iPhone dá sinal no WhatsApp. É o Pedro.
Olá, Açúcar, onde estás? 
Nem quero acreditar. Mostro a mensagem à Jaque.
— Você vai responder? Esse idiota não sabe que você
está no Rio de Janeiro?
— Claro que sabe. Se eu tivesse voltado, ele já tinha
visto no Facebook.

266
MARIANA, MEU AMOR

— Então porque é que está perguntando? Olha lá, Alice,


isso traz água no bico.
Porquê?
Nada como uma pergunta para responder a outra per-
gunta.
Porque preciso de saber
E porque é que precisas de saber?
Porque é importante.
Tu sabes que estou no Rio de Janeiro…
Estás boa?
Estou óptima. E tu, estás bem? Precisas de alguma coisa?
Só preciso de saber onde estás.
Que chato. Não percebo nada desta conversa. A Jaqueline
fita-me intensamente, tentando perceber o que me está a
passar pela cabeça.
— Mas afinal o que é que esse cara quer agora?
— Não tenho a menor ideia — respondo.
— Então não lhe responda mais. De qualquer jeito, é
irrelevante onde você estiver, aqui ou em Xangai, querida.
Ele não faz mais parte da sua vida. Vamos embora, a Mirna
já saiu, chega antes de nós, não a vamos fazer esperar, pois
não?
Guardo o iPhone na minha bolsa de tiracolo que uso
para sair à noite, com as chaves e algum dinheiro. Assim
que saímos de casa, deixo de ter wi-fi.
— Você ficou estranha, querida.
— É que não entendo que bicho lhe mordeu. Há tanto
tempo sem falarmos.
— Eu também acho um pouco bizarro.
— Não é bem assim — respondo, à saída do prédio.
— Enviei aquele mail que agitou tudo. E ele respondeu.

267
MARGARIDA REBELO PINTO

— E a seguir você disse que queria sossego, não foi? Eu


ouvi a sua mensagem de voz. Era muito clara. O que é que
ele está querendo agora? — pergunta-me a Jaque, enquanto
estende o braço para chamar um táxi.
— Não sei. Provavelmente quer atenção. Não é o que
todos queremos?
— Sei não, querida. Essas mensagens não são inocentes.
— Sejam o que forem, agora não pode falar mais comigo,
porque estou sem wi-fi.
— Isso é bom. Ó moço, vamos na Dias Ferreira, por
favor — diz a Jaqueline ao motorista.
O taxista vira para a Vieira Souto, segue até ao fim da
Delfim Santos e vira à direita.
Quando chegamos ao restaurante, a Mirna já lá está,
numa mesa na esplanada, linda como sempre. Apanhou o
cabelo, o que realça ainda os seus traços bem desenhados,
os olhos enormes e a boca perfeita. As mulheres cariocas
sabem mesmo sorrir, penso, enquanto observo a minha
irmã e a minha amiga. Um empregado de cabelo apanhado
e ar absorto traz-nos a lista. Não me consigo concentrar no
que leio.
— Nem imaginas o que aconteceu, o Pedro está a enviar-
-me WhatsApp.
— Credo! — exclama a Mirna —, falando o quê?
— Perguntando onde estou. Como se não soubesse que
estou no Rio.
O meu iPhone volta a dar sinal de vida. Bolas, ligou-se
directamete ao wi-fi do restaurante. Já cá tinha vindo, me-
moriza todas as redes. Estas máquinas infernais são mais
inteligentes do que nós. Só não tiram cafés.
— É ele? — pergunta a Jaqueline

268
MARIANA, MEU AMOR

— É. Pergunta se já jantei.
— Esse cara é muito louco, meu Deus — diz a Mirna.
— Olhe, querida, para um louco, só mesmo uma resposta
de louco. Fale que está no Stuzzi. Ele não faz a menor ideia
onde é, por isso é igual o que você disser.
Estou no Stuzzi a jantar com a minha irmã e uma amiga.
Mas afinal o que se passa?
 Nada, Açúcar.
Até já.
O sangue começa a gelar-me nas veias. Nem consigo fa-
lar. Mostro a mensagem às duas. As sobrancelhas da Mirna
arqueiam-se até ao infinito. A Jaqueline está de boca aberta,
como se tivesse acabado de engolir uma bola de golfe.
— Até já??? Ele está no Rio, querida. Ele pegou o avião e
veio ter com você — diz finalmente a minha irmã.
— Não pode ser! Ele nem sequer sabia quando é que eu
voltava para Portugal…
— Tem a certeza? Você não publicou no Facebook que
iria passar o seu aniversário aqui, no Rio?
— Sim, mas fiz com acesso restrito, só para os amigos
mais próximos. Ele não está nessa lista.
— Mas encontrou uma forma de descobrir. Vamos
pedir esse jantar ou não? — diz a Mirna, chamando o em-
pregado com o braço no ar.
Peço uma salada qualquer, de repente fiquei sem fome.
O meu estômago está cheio de borboletas a voar em todas
as direcções.
— Vamos beber um vinho? — sugere a Jaque. — Estou
sentindo muita tensão no ar. Querida, tenta relaxar. O cara
não vai te aparecer do nada, ele não é o David Copperfield,
pois não?

269
MARGARIDA REBELO PINTO

— Vamos, sim. Um branco chileno ou argentino.


Escolham vocês, eu só conheço vinhos portugueses.
Por momentos mergulhamos as três num silêncio pro-
fundo, cada uma perdida nos seus pensamentos.
— Vou ligar ao Márcio, para saber se vem ter com a
gente — diz a Mirna.
— Isso, boa ideia — remato.
Para ocupar a cabeça puxo a conversa sobre os projectos
de trabalho. As duas conversam animadamente. A Mirna
já está exausta da novela, prolongaram mais 60 episódios,
tinha férias marcadas com o Márcio para Buenos Aires e
já não podem ir. A Jaque quer produzir uma peça com o
Marcelo, mas queixa-se de que é difícil trabalhar com
ele. A Mirna, que foi aluna do Marcelo, concorda.
— Foi o melhor professor em todo o curso de teatro,
mas é um cara difícil. Quando me dirigiu na peça de final de
curso, chorava quase todos os dias. Eram textos do Nelson
Rodrigues, uma colagem sensacional, eu fazia três persona-
gens diferentes, uma loucura. No final deu tudo certo.
— Então, isso é o importante — contemporiza a Jaque-
line. — E se ele quiser te dirigir de novo, você aceita?
— Seria ótimo, mas vou ter de me centrar e concentrar,
porque trabalhar com ele é uma loucura. Mas é claro que
sim, quem não quer trabalhar com o Marcelo? Ele é o di-
rector de teatro mais prestigiado do Rio. Seria ótimo, ago-
ra depois da novela, voltar aos palcos. Tem outro encanto,
outra magia.
— É verdade — concorda a Jaqueline. — Nunca fiz no-
vela, mas adoro teatro. Não tem nada mais gostoso de fazer.
— Você não quer escrever uma peça de teatro sobre
mulheres, Alice? Ou adaptar esse livro da freira apaixonada

270
MARIANA, MEU AMOR

para a gente? Seria bem legal. E uma forma de você voltar


logo para o Rio. O Marcelo fala que você escreve super bem,
tenho a certeza de que ele adoraria dirigir um texto seu.
A minha querida Mariana em teatro, pode estar aqui a
nascer um sonho. Era lindo, uma peça de teatro no Rio de
Janeiro com um texto meu. Passava de jornalista freelancer
a dramaturga internacional, que chique.
— Adoro a ideia. Mas primeiro tenho de acabar o livro
e publicá-lo. Nunca escrevi para teatro, mas posso tentar.
Seria tão novo e diferente, de repente, até podia dar certo.
— Então vamos fazer um brinde — exclama a Mirna, já
empolgada com o novíssimo projecto que acabou de nascer
ali à mesa.
Quando levanto o copo, sinto um arrepio. O meu cora-
ção começa a bater mais depressa. Um táxi pára à porta do
restaurante. És tu, és tu, sempre vieste, enfim. Os versos
da Florbela ecoam-me no cérebro. Estás no Rio de Janeiro.
Sais do táxi e caminhas na direcção da minha mesa. Vens
sorridente e nervoso, de camisa branca fora dos jeans e té-
nis All Stars, iguais aos meus. Se não fossem os cabelos
brancos junto à cara, parecias um miúdo. Fico pregada à ca-
deira a ver-te avançar, como uma imagem em câmara lenta.
— Boa noite — dizes, impassível, como se fosse a coisa
mais normal do mundo apareceres à hora do jantar ali, no
Leblon, out of the blue.
A Mirna volta a arquear as sobrancelhas e a Jaqueline a
abrir a boca. Parecem dois cartoons. O Pedro abraça-me e
o meu corpo eleva-se até ficar enroscada no dele. Não me
lembrava que era tão alto.
— O que é que estás aqui a fazer? — pergunto, com a
boca encostada ao teu ouvido.

271
MARGARIDA REBELO PINTO

— Vim ter contigo, querida. Não fazes anos amanhã?


Os seus braços desprendem-se do meu corpo devagar,
sem deixar de me tocar. Estende a mão para a Mirna e para
a Jaque.
— Olá, eu sou o Pedro. E vocês são?...
— O meu nome é Mirna — responde a minha amiga,
com frieza e cortesia.
— Eu sou a irmã da Alice, Jaqueline.
As duas estendem-lhe a mão cerimoniosamente, como
se fossem damas da corte de Luís XIV. São actrizes, já
entraram as duas em personagem; estão a fazer o papel da
Amiga Solidária Que Despreza o Ex-Namorado que me
Tratou Mal. Um clássico dos arquétipos contemporâneos.
— Mas quando é que chegaste?
— No voo da manhã.
— E onde estás?
— No Copacabana Palace. Posso sentar-me?
— Claro que sim — respondo. Não sei o que pensar, o
que sentir, o que lhe dizer.
A Mirna e a Jaqueline devoram cada uma a sua salada,
silenciosamente. Parece-me que estão a comer muito de-
pressa, mas como sinto o mundo a girar à minha roda, pode
ser impressão minha.
— Jaque, você não que vir comigo ali na rua enquanto
eu fumo um cigarro? — pergunta a Mirna
— Claro, vamos — e levantam-se as duas.
Viro-me para ti. Tens os olhos a brilhar. Conheço esse
brilho. E o mesmo meio sorriso com que te conheci, igual
desde o primeiro encontro, do primeiro almoço, do primei-
ro jantar, do primeiro beijo. E também igual ao que tinhas
a última vez que te vi há quase seis meses.

272
MARIANA, MEU AMOR

— O que é que tu estás aqui a fazer, Pedro? Não te disse


que não queria que viesses?
— Vim-te buscar, Alice.
— O quê?
— Vim-te buscar, querida.
— Como? Porquê?
— Como? Vim de avião, como toda a gente. Porquê?
Porque quero estar contigo. E quero ficar contigo.
— Ficar como?
— Ficar contigo. Ouviste o que disse ou não? Podemos
ir embora e conversar noutro lugar?
Não sei o que fazer. Levanto-me e vou ter com a Jaque e
a Mirna ao passeio. A rua está cheia de gente, a confusão do
ruído em meu redor deixa-me ainda mais atordoada.
— Ele veio-me buscar.
Ficam as duas especadas a olhar para mim.
— Então vai, querida — responde a Mirna, apagando a
beata com a ponta do pé. — Vai com ele. Escuta o que tem
para te dizer e ouve o teu coração.
— Vá já, nós pagamos a conta — acrescenta a Jaque,
apertando o meu braço com carinho.
Volto para a mesa e pego-te pela mão, viro à esquerda,
em direção ao Posto 12.
— Onde vamos? — perguntas.
— Vamos passear. Preciso de apanhar ar e de andar.
— E não é perigoso?
— Claro que é perigoso, mas não sei se é mais perigoso
ir sozinha ou contigo.
— Não fiques assim, Açúcar. Não estás feliz por me veres?
— Não sei. Tenho de perceber bem o que tudo isto
significa.

273
MARGARIDA REBELO PINTO

Percorremos a Dias Ferreira a passo rápido, atravessa-


mos a avenida e caminhamos pelo calçadão. Não consigo
largar a mão dele. Os meus dez triliões de células agitam-
-se numa revolução silenciosa. As revoluções silenciosas são
sempre as piores, as que provocam mais danos.
— Eu fui um cabrão e por isso, em primeiro lugar, devo-
-te um pedido de desculpas.
— É verdade. Partiste-me o coração duas vezes. Quando
foste desaparecendo, a seguir ao Verão, e depois quando
pensei que ias voltar. Foi horrível, Pedro. Não imaginas.
— Pois não. Mas tu não imaginas as saudades que senti
desde que vieste para cá.
— E da outra vez que vim também sentiste, não foi?
Por isso é que foste ter comigo. Mas nem pensaste no que
estavas a fazer, não mediste as consequências! Viveste o
teu Verão Azul, voltaste para a família, depois apareceste
para desaparecer outra vez, fazes ideia do que se passou
na minha vida entretanto? Sabes por acaso que o meu pai
morreu, que descobri que tinha uma irmã, que estou a tra-
balhar para a Sábado?
— Sei, sei mais do que pensas. Olha para isto, Alice. Foi
isto que me trouxe até ti.
Tiras do bolso um livro minúsculo, amarelecido pelo
tempo, dobrado e usado. Reconheço a imagem da capa, são
as cartas da Mariana.
— Encontrei-o num alfarrabista no Chiado, aqueles de
sábado à tarde. Estava na ponta de uma bancada, a chamar
por mim. Qual foi o escritor que disse que não somos nós
que encontramos os livros, mas são eles que nos encon-
tram? Tinha recebido o teu mail há dias, quis saber sobre
o que era o teu livro, quem foi a freira, o que escreveu,

274
MARIANA, MEU AMOR

porque é que as cartas se tornaram tão importantes na lite-


ratura, e porque é que tu quiseste fazer um livro sobre ela.
— E em que é que isso muda a minha vida?
— Não penses que não senti na pele o mal que te fiz
todos estes meses durante os quais me mantive afastado…
— E como foste inconsequente e egoísta.
— Eu sei, eu sei, mas ouve-me. Sempre te disse tudo.
— Até ao dia em que deixaste de falar comigo e passas-
te do tudo ao quase nada.
— É verdade. Mas apaixonei-me por ti, e uma pessoa
não escolhe por quem se apaixona, não é?
— Pois não. Se me dissessem há um ano que me ia apai-
xonar por um tipo casado, não acreditava. E, no entanto, foi
um inferno, nunca mais quero passar pelo mesmo.
— Mas nunca mais vais passar, Alice, por isso é que
estou aqui.
Estamos a chegar ao Posto 11. O calçadão está quase
deserto. Se não fosse perigoso, ia até à praia, mas não é boa
ideia.
— Estás cansada? Queres sentar-te um bocado?
— É melhor não. Só se for ali mais à frente, num quios-
que que vende água de coco.
— Então vamos.
Cruzo os braços por baixo do peito enquanto caminho
de cabeça baixa. Não percebo o que ele me está a dizer.
Não acredito nele. Já não consigo acreditar.
Sentamo-nos nas escadas junto ao quiosque, cada um
com a sua água de coco.
— Ouve bem, Pedro, porque o que te vou dizer é mes-
mo do fundo do meu coração. Tu não podes desaparecer e
aparecer na minha vida quando queres, tipo Gato da Alice.

275
MARGARIDA REBELO PINTO

Aconteceram muitas coisas, entretanto, aprendi a ser feliz


sem ti. Na verdade, já nem sei se ainda gosto de ti. Fui
deixando de gostar aos poucos, quando percebi que não me
amavas, quando deixaste de partilhar a tua vida comigo,
quando já não era uma prioridade para ti. Demorei meses a
aceitar a realidade, acordar de manhã e já não ter uma men-
sagem tua, escrever-te e nem sempre responderes. Não há
coisas nem grandes nem pequenas, todas são importantes.
Por isso, quando passaste do tudo ao nada foi um grande
choque. E a seguir o meu pai morreu. Não estavas lá. É ver-
dade que não te disse na altura, mas para quê? Enterrei-o
e virei as costas à minha vida em Portugal. Vim para o Rio,
fiz novos amigos, tive a bênção de ganhar uma irmã, e no
entanto tu estavas sempre presente no meu espírito e no
meu coração. Eras como uma febre que vai e vem, apare-
cias quando menos esperava. Muitas vezes fui eu que te
puxei para mim, tinha saudades de me sentir doente. Passei
momentos de grande solidão porque só queria estar con-
tigo. E de profunda tristeza por não me conseguir ligar a
mais ninguém. Mas já não espero nada de ti. E é quando já
não esperamos nada das pessoas que elas morrem no nosso
coração. 
Calo-me. Não consigo dizer mais nada, como se tivesse
gasto todas as palavras. Ponho as mãos na cara para tapar as
lágrimas. Baixo a cabeça e escondo-a entre os joelhos.
— Não acredito que já não gostes de mim, Alice.
— Não é não gostar, Pedro. É não confiar, entendes?
Como é que posso gostar de uma pessoa em quem não
confio?
— Mas eu nunca te menti. Quando te disse que tinha
um casamento morto, era verdade. Quando te disse que não

276
MARIANA, MEU AMOR

queria viver longe dos meus filhos, também era verdade.


E quando me apaixonei por ti, sabes tão bem como eu que
é verdade. Nunca vivi nada tão verdadeiro na minha vida.
— Então porque é que deitaste tudo a perder?
— Porque os homens são racionais e têm medo de amar.
Têm medo de perder o controlo e tu tiraste-me o tapete,
mesmo sem saber. Nunca estive apaixonado pela minha
mulher, sabes isso, já te disse várias vezes. E durante muito
tempo, aquela vida organizada fazia sentido. Mas tu apare-
ceste e trocaste-me as voltas com o teu sentido de liber-
dade, com a tua cabeça arejada, o teu optimismo e a tua
alegria de viver. Foi uma grande viragem na minha vida,
na minha segurança, em tudo o que construíra antes. Não
sabia o que fazer contigo. Fiquei maluco e desesperado ao
mesmo tempo. Por isso decidi o mais fácil, ficar em casa,
como se nada se tivesse passado. Fui burro, demorei meses
a perceber que depois de viver em verdade já não conse-
gui aguentar aquela casa, ela sempre com um sorriso de
circunstância a olhar para mim como quem diz, eu sei que
tens o coração noutro lugar, mas não me importo desde que
as aparências se mantenham. Eu já não queria viver assim,
o que vivi contigo confrontou-me com a mediocridade da
minha vidinha toda montada, mas presa por fios. O meu ca-
samento era uma parceria. Sempre foi. A minha mulher é
a mãe dos meus quatro filhos, mas engravidou do primeiro
sem me dizer e, como sabes, quando ficou à espera das gé-
meas, eu já tinha decidido sair de casa. Senti-me um idiota
por ter sido manipulado por ti, quando, em bom rigor, fui
sempre manipulado por ela. Foi como se acordasse de um
sonho, só que demorei muito tempo a acordar, entendes?
Roma e Pavia não se fizeram num dia. Mas agora já está. Ela

277
MARGARIDA REBELO PINTO

sabe que vim ter contigo. E sabe que quando regressar, já


não volto para casa. Mesmo que não fiques comigo, a deci-
são está tomada. Não quero mais aquela vida.
— Então e os miúdos?
— Os miúdos crescem e percebem que a verdade é o
mais importante. Não quero que um dia descubram que o
pai deles lhes mentia.
— E o que queres fazer da tua vida?
— Quero fazer o que tu me deixares fazer, Alice. Se me
aceitares, volto para Lisboa contigo e ficamos juntos.
— Juntos onde? Como?
— Onde quiseres. Como quiseres. Na tua casa, ou numa
maior, onde caibam os miúdos. Tu escolhes. Desde que
fiques comigo.
Não consigo parar de chorar. Não acredito em tudo o
que ouvi. Mariana, onde quer que estejas, reza por nós.
Foram as tuas cartas que o trouxeram a mim, isso deve
querer dizer alguma coisa.
— Não sei se consigo confiar em ti outra vez, Pedro.
— Eu também não sei se consegues, Alice. Mas queres
ficar comigo?
Abraça-me e limpa-me a cara com o punho da camisa.
Está aflito por me ver assim, não sabe o que fazer.
Mariana, fala comigo. O que farias no meu lugar? O que
terias feito se Noël te tivesse ido buscar a Beja? Tenho qua-
se a certeza de que o perdoarias. Amar também é perdoar.
A verdade é que nunca deixei de o amar, apenas apren-
di a esquecê-lo, porque não tinha outro caminho. Mas o
teu Deus, ou o meu Universo, sei lá que entidade for, sabe
sempre o que tem guardado para nós.

278
MARIANA, MEU AMOR

A Lua sobe devagar por cima do Arpoador. Corre uma


brisa morna, o barulho sincopado das ondas a bater na
rebentação aconchega-me a alma, ajuda-me a ter fé no
futuro. Sinto-me invadida por um estado de conforto que
há muito não sentia. O Rio continua lindo, mas chegou a
hora de regressar.
A minha viagem acabou. É tempo de começar outra.
A mais importante da minha vida. Dás-me um beijo, tão
suave e apaixonado como o primeiro. O tempo não passou,
estou outra vez a passear contigo no Jockey, depois do
nosso primeiro almoço. Passas-me a mão pelo cabelo, como
se fosse a primeira vez. Tudo igual. A mesma paz, o mesmo
sossego, o que sempre fomos um para o outro continua
igual, intocável. Há coisas que nunca mudam.
Quero ficar contigo, apesar de tudo, vou arriscar.
Sempre esperei o melhor de ti. Juntos, somos um Dream
Team, não era como tu nos chamavas?
— Não dizes nada, Açúcar?
— Cala-te. Vamos para casa.

Santos, 23 de Junho de 2015

279
CRONOLOGIA DE FACTOS HISTÓRICOS

22 de Abril de 1640 — Nasce Mariana Alcoforado.

Maio de 1640 — Início da revolta da Catalunha.

1 de Dezembro de 1640 — Dia da Restauração da inde-


pendência de Portugal; D. João IV (1604) é aclamado rei
de Portugal.

17 de Janeiro de 1641 — Auto-proclamação da República


da Catalunha com o apoio de França.

1 de Junho de 1641 — Aliança Franco-Portuguesa contra


Espanha.

26 de Maio de 1644 — Batalha do Montijo: o exército por-


tuguês trava o avanço dos espanhóis a caminho de Lisboa;
é a primeira vitória de Portugal na Guerra da Restauração.

Novembro de 1644 — Cerco de Elvas: termina ao fim de nove


dias com a retirada das tropas espanholas e pesadas baixas.

281
MARGARIDA REBELO PINTO

1648 — Fim da Guerra dos Trinta Anos na Europa, porém


a guerra entre França e Espanha mantém-se até 1659.

15 de Maio de 1653 — Morre D. Teodósio (n. 1634),


duque de Bragança, herdeiro do trono de Portugal, com
reconhecidas capacidades intelectuais para os seus poucos
anos.

1656 (?) — Mariana Alcoforado dá entrada no Convento


de Nossa Senhora da Conceição, em Beja.

6 de Novembro de 1656 — Morre D. João IV; D. Afonso


VI (n. 1643) é aclamado rei ainda jovem mas com for-
tes indícios de incapacidades físicas e mentais; sua mãe,
D. Luísa de Gusmão (n. 1633), é nomeada regente por
testamento do rei.

5 de Novembro de 1659 — Assinatura do Tratado dos


Pirenéus pondo fim à Guerra Franco-Hispânica, iniciada
em 1635, e à revolta da Catalunha.

1660 — O tenente-general Frédéric-Armand, conde de


Schomberg, é contratado para comandar os exércitos de
Portugal no Alentejo, com o apoio secreto do rei Luís XIV
de França e do rei Carlos II de Inglaterra. Este veterano
de guerra, de origem alemã, estivera ao serviço da França
contra a Espanha.

21 de Maio de 1662 — D. Catarina de Bragança (n. 1638),


irmã do rei D. Afonso IV, casa com o rei Carlos II de
Inglaterra.

282
MARIANA, MEU AMOR

Junho de 1662 — Fim da regência de D. Luísa de Gusmão;


D. Afonso VI nomeia Luís de Vasconcelos e Sousa, 3.º con-
de de Castelo Melhor, escrivão da puridade.

1663 — Noël Bouton (n. 1636), cavaleiro de Chamilly e


conde de Saint-Léger, junta-se ao comando de Schomberg
como capitão de cavalaria.

8 de Junho de 1663 — Batalha do Ameixial: o exército es-


panhol é derrotado, pelo português, nos campos de Santa
Vitória do Ameixial, próximos de Estremoz, sob o comando
de D. Sancho Manoel de Vilhena, conde de Vila Flor, au-
xiliado pelo conde de Schomberg e pelo conde da Ericeira.

17 de Junho de 1665 — Batalha de Montes Claros: tra-


vada perto de Borba e ganha pelos exércitos portugueses
sob o comando de António Luís de Meneses, marquês de
Marialva, e pelo conde de Schomberg; foi decisiva para
a independência de Portugal, que seria reconhecida por
Espanha três anos mais tarde.

17 de Setembro de 1665 — Morre Filipe IV de Espanha,


que nunca aceitou a independência de Portugal; Carlos II
é rei de Espanha mas, por problemas de consanguinida-
de, tem deficiências físicas e mentais; a mãe, Mariana de
Áustria, é regente.

Dezembro de 1665 — Noël Bouton é promovido a mestre


de campo e capitão da 1.ª Companhia do Regimento de
Cavalaria.

283
MARGARIDA REBELO PINTO

27 de Fevereiro de 1666 — Morre D. Luísa de Gusmão.

27 de Janeiro de 1668 — O irmão do rei, D. Pedro, é no-


meado regente, após um golpe de Estado.

13 de Fevereiro de 1668 — Fim da Guerra da Restauração:


é ratificado o Tratado de Lisboa, acordo de paz entre
Portugal e Espanha com mediação da Inglaterra.

1668 — Noël Bouton parte para a ilha de Creta, para


combater os Otomanos ao lado dos Cavaleiros de Malta;
no ano seguinte é ferido no cerco de Candia (actual
Heráklion).

1669 — D. Afonso VI é desterrado para os Açores.

1669 — Publicação em França das cartas de Mariana


Alcoforado, Lettres Portugaises, pelo editor Claude Barbin,
atribuídas ao escritor Gabriel de Guillerauges.

14 de Setembro de 1674 — D. Afonso VI é encerrado no


palácio de Sintra durante nove anos.

12 de Setembro de 1683 — Morre Afonso VI; D. Pedro II


é aclamado rei.

1703 — Noël Bouton é nomeado, por Luís XIV, marechal


do exército de França e governador de Estrasburgo.

1704 — Filipe V de Espanha declara guerra a Portugal no


âmbito da Guerra da Sucessão Espanhola, por alegadas

284
MARIANA, MEU AMOR

pretensões ao reino vizinho. Só em  1712 é que Portugal


assinou armistícios com a Espanha e com a França.

9 de Dezembro de 1706 — Morre D. Pedro II; D. João V


é aclamado rei de Portugal.

8 de Janeiro de 1715 — Morre Noël Bouton, conde de Saint-


-Léger, marquês de Chamilly e marechal de França.

28 de Julho de 1723 — Morre Soror Mariana Alcoforado,


aos 83 anos.

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