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Aula 1h 2h
06/jan 121 x
13/jan 92 x
1, 23, 24, 32, 50, 61, 63, 69, 72,
20/jan 16, 23, 32, 55, 57, 78
75, 82, 94, 109, 113, Veyne pref.
03/fev x x
1, 2, 6, 7 (NÃO CITADA), 8, 9, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 20, 23, 24, 26, 29, 32,
37, 38, 40, 50, 52, 55, 57, 58, 61, 63, 65, 69, 72, 74, 75, 78, 82, 83, 84, 88, 89,
90, 91, 92, 94, 95, 99, 106, 107, 108, 109, 113, 119, 121
Não está digitalizado o prefácio de Paul Veyne da edição francesa usada por
Foucault.
Carta 1
1 Procede deste modo, caro Lucílio: reclama o direito de dispores de ti,
concentra e aproveita todo o tempo que até agora te era roubado, te era
subtraído, que te fugia das mãos. Convence-te de que as coisas são tal como
as descrevo: uma parte do tempo é-nos tomada, outra parte vai-se sem darmos
por isso, outra deixamo-la escapar. Mas o pior de tudo é o tempo desperdiçado
por negligência. Se bem reparares, durante grande parte da vida agimos mal,
durante a maior parte não agimos nada, durante toda a vida agimos
inutilmente.
2 Podes indicar-me alguém que dê o justo valor ao tempo aproveite bem o
seu dia e pense que diariamente morre um pouco? É um erro imaginar que a
morte está à nossa frente: grande parte dela já pertence ao passado, toda a
nossa vida pretérita é já do domínio da morte!
Procede, portanto, caro Lucílio, conforme dizes: preenche todas as tuas
horas! Se tomares nas mãos o dia de hoje conseguirás depender menos do dia
de amanhã. De adiamento em adiamento, a vida vai-se passando.
3 Nada nos pertence, Lucílio, só o tempo é mesmo nosso. A natureza
concedeu-nos a posse desta coisa transitória e evanescente da qual quem
quer que seja nos pode expulsar. É tão grande a insensatez dos homens que
aceitam prestar contas de tudo quanto - mau grado o seu valor mínimo, ou
nulo, e pelo menos certamente recuperável - lhes é emprestado, mas ninguém
se julga na obrigação de justificar o tempo que recebeu, apesar de este ser o
único bem que, por maior que seja a nossa gratidão, nunca podemos restituir.
4 Talvez te apeteça perguntar como procedo eu, que te dou todos estes
preceitos. Dir-te-ei com franqueza: como alguém que vive bem, mas sem
esbanjamento. Tenho as minhas contas em dia! Não te posso dizer que nunca
perco tempo, mas sei dizer-te quanto, porquê e de que modo o perco. Posso
prestar contas da minha pobreza. A mim, porém, sucede-me o mesmo que a
muitos que, sem culpa própria, ficaram reduzidos à miséria: todos perdoam,
mas ninguém ajuda.
5 Que mais há a dizer? Não considero pobre aquele a quem basta o
poucochinho que tem. Prefiro, contudo, que tu preserves os teus bens e que o
comeces a fazer quanto antes. Conforme diziam os nossos maiores, “já vem
tarde a poupança quando o vinho está no fundo.”1 É que o que fica no fundo,
além de ser muito pouco, são apenas as borras!
Adeus2
1
[NOTA 1] Tradução quase literal de Hesíodo, Op., 369:
2
[NOTA 2] Todas as cartas terminam com a fórmula de saudação Vale (lit. “passa bem.”) “Adeus”. Dada
esta indicação, dispensámo-nos de aqui em diante de repetir o “adeus” no termo de cada carta.
Carta 2
1 Tanto aquilo que me escreves como o que oiço dizer de ti fazem-me ter
boas esperanças a teu respeito: não viajas continuamente nem te deixas agitar
por constantes deslocações. Um semelhante deambular é indício duma alma
doente: eu, de facto, entendo que o primeiro sinal de um espírito bem formado
2 consiste em ser capaz de parar e de coabitar consigo mesmo. Toma, porém,
atenção, não vá essa tua leitura de inúmeros autores e de volumes de toda a
espécie arrastar algo de indecisão e de instabilidade. Importa que te fixes em
determinados pensadores, que te nutras das suas ideias, se na verdade queres
que alguma coisa permaneça definitivamente no teu espírito. Estar em todo o
lado é o mesmo que não estar em parte alguma! Ora a quem passa a vida em
viagens acontece ter muitos conhecimentos fortuitos, mas nenhum amigo
verdadeiro; o mesmo sucede logicamente àqueles que não se aplicam
intimamente ao estudo de um pensador, mas sim percorrem todos de
3 passagem e a correr. Um alimento que mal é ingerido imediatamente é
“devolvido”, não aproveita nem dá força ao corpo; igualmente nada prejudica
tanto a saúde como a frequente mudança de medicamentos; uma ferida não
cicatriza quando se lhe aplicam tentativamente diversos remédios; uma planta
nunca se robustece se continuamente a mudamos de lugar; nada enfim, por
muito útil, conserva a utilidade em contínua mudança. Demasiada abundância
de livros é fonte de dispersão; assim, como não poderás ler tudo quanto
4 possuis, contenta-te em possuir apenas o que possas ler. Dirás tu: “Mas sinto
vontade de folhear ora este livro, ora aquele.”
3
[Nota 3] Epicuro, fr. 475 Usener.
Carta 6
5 Vou, pois, enviar-te os livros que utilizei, e para não perderes tempo à
procura dos passos mais úteis, eu assinalá-los-ei, de modo que encontres de
imediato aqueles que me merecem aprovação e respeito.
Uma conversa de viva voz ser-te-á, contudo, mais útil do que um discurso
escrito. Deves vir mesmo ver como as coisas se passam, primeiro porque
geralmente se dá mais crédito aos olhos do que aos ouvidos, segundo, porque
a via através de conselhos é longa, através de exemplo é curta e eficaz.
7 Por agora, como te devo o meu pequeno presente diário aqui tens uma
máxima que hoje encontrei com prazer em Hecatão4 “Queres saber o que
lucrei hoje? Comecei a ser amigo de mim próprio.” Muito lucrou, deste modo
nunca estará sozinho. Um tal amigo, fica sabendo, toda a gente o pode ter!
4
[Nota 9] Hecatão, fr. 26 Fowler.
Carta 7
1 Queres saber qual é a coisa que com maior empenho deves evitar? A
multidão! Ainda não estás em estado de frequentá-la em segurança. Eu
confesso-te sem rodeios a minha própria fraqueza: nunca regresso com o
mesmo carácter com que saí de casa; algo do que já pusera em ordem é
alterado, algo do que já conseguira eliminar, regressa! O mesmo que sucede
aos doentes que uma longa debilidade não deixa ir a parte alguma sem
recaída, nos acontece, a nós, cujo espírito se está refazendo de uma
2 prolongada enfermidade. É-nos prejudicial o convívio com muita gente: não há
ninguém que nos não pegue qualquer vício, nos contagie, nos contamine sem
nós darmos por isso. Por isso, quanto maior é a massa a que nos juntamos,
tanto maior é o perigo. E nada há tão nocivo aos bons costumes como ficar a
assistir a algum espectáculo, pois é pela via do prazer que os vícios se nos
insinuam mais facilmente.
3 Que pensas tu que eu quero dizer? Que regresso mais avaro, mais
ambicioso, mais propenso ao luxo? Mais do que isso: venho mais cruel e mais
desumano de ter estado em contacto com os homens. Fui casualmente assistir
ao espectáculo do meio-dia, à espera de encontrar algo de ligeiro, de divertido,
algo que descansasse os olhares dos homens da vista do sangue humano. Foi
o contrário que encontrei: todas as lutas anteriormente realizadas foram actos
de misericórdia; a esta hora, sem artifícios alguns, o que há são puros
homicídios. Os lutadores não têm protecção alguma; todo o seu corpo está
4 patente aos golpes, e nenhum golpe é desferido em vão. Muitos espectadores
preferem isto aos combates entre pares de gladiadores normais, e favoritos do
público. E como não hão-de preferir? Não há elmo nem escudo que se oponha
ao ferro do adversário! Armas defensivas para quê? Técnica para quê? Tudo
isso só serve para retardar a morte. Atiram-se homens aos leões e ursos de
manhã, aos próprios espectadores ao meio-dia! Os assassinos enfrentam
aqueles que os hão-de assassinar, e cada vencedor é reservado para morrer
mais tarde. Para estes lutadores a única saída é a morte. Matam-nos a ferro e
5 fogo. E isto o que se passa nos intervalos do circo. “Mas este homem cometeu
um crime, um homicídio”. E então? Se ele matou alguém, mereceu o castigo
por que está passando; mas tu, infeliz, o que fizeste para merecer ver isto?
“Mata, fere, queima! Porque se lança ele tão debilmente contra o ferro do
adversário? Porque mata ele o outro com tão pouca resolução? Levem-nos ao
combate à chicotada, recebam frontalmente os golpes um do outro com o peito
descoberto!” Interrompe-se o espectáculo: “enforquem alguns homens
entretanto, para fazer qualquer coisa”. Ora bem, não compreendeis que os
maus exemplos redundam em prejuízo daqueles que os dão? Agradecei aos
deuses imortais por terdes de ensinar a crueldade a quem não a pode aprender
por si.
6 Há que subtrair à influência do vulgo o ânimo fraco e pouco firme na
virtude: facilmente se passa para o lado do maior número. Sócrates, Catão,
Lélio - uma multidão inteiramente antagónica poderia abalar o seu carácter.
Digo-te mais: mesmo nós5 - e se nós nos esforçamos por robustecer o nosso
carácter! -, nenhum de nós seria capaz de fazer frente à avalanche dos vícios
7 no meio de uma turba. Um só exemplo de luxo ou de avareza basta para
provocar muito mal: um companheiro de mesa de gosto sofisticado acaba por
nos tirar a energia e austeridade, um vizinho rico excita os nossos desejos, um
amigo perverso propaga a sua peste por muito puros e simples que sejamos:
que pensas tu que sucederá àqueles costumes para que nos arrasta a
8 multidão? E forçoso ou que os imites, ou que os odeies. Ambas as atitudes,
porém, são de evitar: nem te deves assemelhar aos maus porque são muitos,
nem tornar-te inimigo de muitos porque são diferentes. Refugia-te em ti próprio
quanto puderes; dá-te com aqueles que te possam tornar melhor, convive com
aqueles que tu possas tornar melhores. Há que usar de reciprocidade:
9 enquanto se ensina aprende-se também. Por vão desejo de tornares conhecido
o teu talento não deves misturar-te com o público a ponto de desejares fazer
leituras ou participar em debates. Aconselhar-te-ia a fazê-lo se tivesses
mercadoria adequada a esta gente; mas entre ela não há quem pudesse
entender-te. É possível que casualmente apareça um ou outro de cuja
formação e educação te devas encarregar até o elevares ao teu nível. “Mas
então, em proveito de quem estudei eu?” Não tenhas receio: se tiveres
estudado em teu proveito não terás perdido o tempo.
10 E para que os meus estudos de hoje não tenham sido só em meu proveito,
vou-te citar três pensamentos notáveis que encontrei, mais ou menos com o
mesmo sentido. Um servirá para pagar o tributo desta carta, os outros dois
recebe-os como adiantamento. Afirma Demócrito: “um só homem vale para
11 mim um povo, um povo vale tanto como um só homem”6. Também tinha razão
aquele autor (sobre cuja identidade se discute) que, ao perguntarem-lhe por
que se aplicava com tanto empenho num tratado que seria acessível a tão
poucos, respondeu: “para mim, basta-me que sejam poucos, basta-me que
haja só um leitor, basta-me que não haja nenhum”. Em terceiro lugar há este
dito notável de Epicuro, em carta dirigida a um dos seus companheiros de
estudos: “eu não escrevi isto para muitos, mas sim para ti; contemplarmo-nos
um ao outro é espectáculo suficiente”7.
12 Estes pensamentos, caro Lucílio, tens que interiorizá-los, para reprimir o
prazer oriundo do aplauso da multidão. Quando muitos te cobrirem de louvores,
verifica se ainda tens motivo de agrado ante ti próprio, já que és homem que
muitos possam entender! Os teus autênticos bens são apenas do foro íntimo.
5
[Nota 10] Nós, entenda-se os seguidores do estoicismo.
6
[Nota 11] Demócrito, fr. 302 a Diels-Kranz.
7
[Nota 12] Epicuro, fr. 208 Usener.
Carta 8
8
[Nota 13] Ao contrário dos epicuristas, que defendiam para o filósofo a vida à margem das obrigações
políticas e sociais, os estóicos aconselhavam a participação activa do sábio na vida da cidade. Isto
explica, em boa parte pelo menos, a importante carreira pública do próprio Séneca. As condições sócio-
políticas podem ser tais, contudo, que obriguem o sábio a recolher-se à vida estritamente privada, como
fez Soneca a partir de 62. Sobre o assunto, v. o que Séneca diz no seu tratado de otio.
e decoração; pensai que só o espírito merece admiração, e para um grande
espírito nada há que seja grande.”
8 Talvez me queiras perguntar por que razão te cito eu tantas belas máximas
de Epicuro, em vez de as extrair dos nossos autores. Por que motivo, porém,
deveremos considerá-las de Epicuro, e não propriedade de todos? Quantos
poetas há que já disseram o que os filósofos ou já disseram também ou hão-de
dizer um dia! Nem preciso de recorrer aos trágicos, ou às nossas pretextas
(peças estas que possuem uma certa seriedade que as coloca a meio caminho
entre as comédias e as tragédias): até nos mimos, que quantidade se não
encontra de versos excelentes! Quantos versos não escreveu Publílio dignos
9 de personagens de coturno, e não de gente descalça! Vou citar-te um verso
dele que trata matéria filosófica, e precisamente aquele ponto que estive a
discutir atrás, ou seja, que não devemos ter por nosso aquilo que o acaso nos
dá:
10 A mesma ideia exprimiste tu, bem me lembro, num verso não menos
brilhante e conciso:
9
[Nota 14] Epicuro, fr. 199 Usener.
10
[Nota 15] Publílio Siro, fr. A 1 Meyer.
11
[Nota 16] Lucílio Júnior, fr. 1 Morei.
12
[Nota 17] Lucílio Júnior, fr. 2 Morei.
Carta 9
1 Estás com interesse em saber se Epicuro tem razão quando, numa das
suas cartas, censura aqueles que afirmam que o sábio se contenta consigo
mesmo e, por isso, não tem necessidade de amigos13. Esta crítica fá-la Epicuro
a Estilbão e a outros para quem o máximo bem consiste na impassibilidade do
2 espírito. Cairemos na ambiguidade se pretendermos à pressa traduzir
por um só vocábulo e usarmos o termo “impaciência”; pode suceder
que se entenda o contrário daquilo que pretendemos significar. Nós
pretendemos aludir a alguém capaz de repelir o sentimento da dor, mas a
palavra pode entender-se como significando a incapacidade de suportá-la14.
Pensa, portanto, se não seria preferível falarmos em “invulnerabilidade do
3 ânimo”, ou em “ânimo situado para lá de todo o sofrimento.” A diferença entre a
nossa escola e a deles é que o sábio, na nossa concepção, embora o sinta,
domina todo o sofrimento, na deles, nem sequer o sente. Entre nós e eles
existe um ponto comum: o sábio contenta-se consigo próprio. Tal não implica
que, embora se baste a si próprio, ele não deseje ter um amigo, um vizinho, um
4 companheiro. E até que ponto se contenta consigo mesmo mostra-o o facto de,
por vezes, se contentar com uma parte de si. Se uma doença, se um inimigo
lhe cortarem uma mão, se qualquer acidente lhe roubar um olho, ou mesmo os
dois, ele contentar-se-á com o que lhe resta, e conservará tanta alegria de
espírito depois de mutilado e estropiado como tinha quando possuia um corpo
válido. No entanto, embora não se queixe da sua mutilação, prefere não a
5 sofrer. É neste sentido que o sábio se contenta consigo mesmo: não que
deseje, mas sim que possa prescindir de amigos. E ao dizer “que possa”
entendo que suportará com firmeza de ânimo a perda de algum. Na realidade
ele nunca estará sem qualquer amigo pois tem a possibilidade de rapidamente
reparar a falta de algum. Tal como Fídias, se perdesse uma estátua,
imediatamente esculpiria outra, assim o sábio, verdadeiro especialista em fazer
amizades, em lugar do amigo perdido depressa arranjaria outro. Como é que
6 rapidamente ele conseguirá conciliar outro amigo? Dir-to-ei, se estiveres de
acordo em que te pague já a minha dívida e que, quanto a esta carta, fiquemos
com as contas em dia. Diz Hecatão: “vou indicar-te uma receita para o amor
que dispensa o recurso a filtros, ervas ou fórmulas de feiticeira: se queres ser
amado, ama!”15. Não apenas a prática de uma amizade antiga e firme traz
consigo grande prazer, mas também o início e a conciliação de uma nova. A
13
[NOTA 18] Epicuro, fr. 174 Usener.
14
[NOTA 19] O termo grego (Apatheia, donde o port. apatia) significa literalmente
“ausência de sofrimento”. O seu correspondente latino, porém, Reveste, como diz Séneca,
alguma ambiguidade: impatientia, de facto, tanto pode entender-se etimologicamente como
significando “ausência de sofrimento” (tal como o vocábulo grego) como também ter o sentido
de “incapacidade para aceitar o sofrimento” (e este sentido explica o port. impaciência).
15
[NOTA 20] Hecatão, fr. 27 Fowler.
7 mesma diferença que há entre o agricultor que ceifa a seara e o que a semeia,
existe entre aquele que já conciliou e o que está conciliando um amigo. O
filósofo Átalo costumava dizer que é mais agradável fazer do que ter um amigo,
“tal como ao pintor dá mais prazer pintar do que terminar o quadro”. A atenção
dada à pintura a realizar encontra na respectiva ocupação um imenso prazer, o
qual já não toca tão intensamente o artista quando afasta as mãos da obra
terminada. Neste caso ele goza o fruto da sua arte; enquanto pintava, porém,
saboreava a própria arte. Se a adolescência dos filhos é mais rica em
promessas cumpridas, o certo é que é mais doce a sua infância.
8 Mas voltemos à nossa questão. O sábio, embora se baste a si mesmo,
deseja no entanto ter um amigo, quanto mais não seja para exercer a amizade,
para que uma tão grande virtude não fique inactiva; não (como na mesma carta
afirmava Epicuro) “para ter alguém que o ajude na doença e o socorra se for
encarcerado ou cair na miséria”16, mas, pelo contrário, para ter alguém a quem
ajude na doença, alguém que, caso seja capturado, possa libertar das prisões
inimigas. Quem só cuida de si e procura amizades com fins egoístas não pensa
correctamente. Tal como começou assim acabará: arranjou um amigo para o
auxiliar contra a prisão, mas assim que os ferros rangerem tal amigo evaporar-
9 se-á! Amizades deste tipo chama-se-lhes correntemente “oportunistas”; alguém
que seja tomado por amigo por motivo da sua utilidade deixará de agradar
quando deixar de ser útil. Por isso mesmo grande cópia de amigos rodeia os
ricaços, enquanto a solidão é apanágio dos arruinados; os amigos fogem de
onde são postos à prova; daí todos estes tristes exemplos de deserções ou
traições ocasionadas pelo medo. Necessariamente nestas amizades o princípio
e o fim estão em completo acordo: quem começou a ser amigo por
conveniência, deixa de o ser também por conveniência; qualquer interesse
prevalecerá contra a amizade se nela se procurar outro interesse que não ela
própria.
10 “Para quê arranjar então um amigo?” Para ter alguém por quem possa
morrer, alguém que possa acompanhar ao exílio, alguém por quem me arrisque
e ofereça à morte. “Isso” a que aludis e que tem em vista o interesse, que
11 considera as vantagens práticas, isso não é amizade, é uma negociata! A
paixão amorosa tem indubitavelmente algo de semelhante com a amizade, a
ponto de a podermos considerar uma amizade levada até à loucura. Pois quem
há que se apaixone por motivos de interesse, de ambição, de glória? É o amor
que por si mesmo, abstraindo de tudo o mais, faz o espírito arder com o desejo
da beleza, de mistura com uma certa esperança de afecto recíproco. Ora bem,
será possível que de uma causa mais elevada resulte um afecto moralmente
12 condenável? “Não se trata agora” - dirás tu - “de saber se a amizade deve ser
desejada por si mesma”. Pelo contrário, nada importa mais demonstrar,
porquanto, se deve ser desejada por si mesma, então pode aceder a ela
16
[NOTA 21] Epicuro, fr. 175 Usener.
precisamente aquele homem que se basta a si próprio. “Aceder a ela de que
modo?” Do mesmo modo que à contemplação de um objecto belo: nem movido
por baixo interesse, nem receoso dos caprichos da fortuna. Conciliá-la com
vista às situações favoráveis, significa despojar a amizade da sua majestade
própria.
17
[NOTA 22] Crisipo, in S.V.F., III, 674.
18
[NOTA 23] Cf. Crisipo, in S.V.F., II, 1065 - Alusão à teoria estóica da conflagração.
tudo quanto para ele é bem dependa do exterior, e fará suas as palavras de
Estilbão, desse Estilbão que Epicuro tanto ataca na sua carta. A sua cidade
fora tomada, os filhos e a mulher pereceram, tudo era pasto das chamas;
sozinho, e apesar de tudo feliz, Estilbão partia, quando Demétrio, aquele que
das cidades destruídas tomou o cognome de Poliorcetes, lhe perguntou se
havia perdido alguma coisa. Resposta do filósofo: “não, todos os meus bens
19 estão aqui comigo”. Isto é que é ser um homem forte e indomável, capaz de
vencer a própria vitória do seu inimigo! “Nada perdi”, disse ele; e com isto
forçou Demétrio a duvidar do seu triunfo. “Todos os meus bens estão aqui
comigo”: a justiça, a virtude, a prudência, este simples facto de não considerar
como bem algo que se possa perder. Nós admiramos certos animais capazes
de atravessarem as chamas sem nada sofrer; quanto mais admirável é um
homem capaz de passar ileso e inatacável por entre as armas, a destruição, o
fogo! Estás vendo como pode ser mais fácil vencer um povo inteiro do que um
único homem? Esta simples frase faz de Estilbão um estóico, capaz, ele
também, de preservar os seus bens entre o incêndio total da cidade. Basta-se
a si mesmo: esta a fronteira que coloca à sua felicidade.
20 Não penses que só nós somos capazes de proferir sentenças sublimes. O
próprio Epicuro, o crítico de Estilbão, disse uma frase semelhante; aceita-a
como presente meu, apesar de por hoje já ter pago o tributo. “Quem considera
diminutos os seus bens mesmo quando é senhor de todo o mundo, esse
homem é um indigente.”19 Ou, se preferires a mesma coisa dita de outra
maneira (pois é preciso habituarmo-nos a considerar o sentido sem ficarmos
presos às palavras): “indigente é o homem que se não julga imensamente feliz
21 mesmo que seja imperador do mundo”. E para que vejas como este
pensamento foi ditado pela natureza à sabedoria popular citar-te-ei este verso
dum poeta cómico:
19
[NOTA 24] Epicuro, fr. 474 Usener.
20
[NOTA25] Ribbeck3, com. pall. inc., 77 (p. 147); Meyer atribui o verso a Publílio Siro (= N 61);
Bücheler pensa que se trata de um verso grego traduzido por Séneca.
Carta 12
1 Para onde quer que me vire, vejo indícios da minha velhice. Tinha ido à
minha quinta nos arredores e queixava-me das despesas a fazer com uma
casa em ruínas. O feitor diz-me que o mal não está em falta de cuidados seus,
simplesmente a casa é velha. Ora esta casa cresceu entre as minhas mãos:
como não estarei eu, se tão podres estão estas pedras da minha idade?
2 Irritado, aproveito a primeira ocasião para me zangar com o homem. “Parece”
digo-lhe eu “que estes plátanos não são cuidados. Não têm folhas nenhumas!
Olha como os ramos estão nodosos e ressequidos, como os troncos estão
macilentos e sujos! Isto não aconteceria se as árvores fossem escavadas e
regadas!”. O homem jura pelo meu Génio21 que faz tudo o que é preciso, que
toma todos os cuidados necessários: elas é que já são velhotas! Aqui entre
nós, fora eu que as plantara, eu que vira brotar as suas primeiras folhas.
4 Fico em dívida com a minha quinta: para onde quer que me virava fazia-
me dar conta da minha velhice. Pois abracemo-la, apreciemo-la: se a
soubermos usar, a velhice é uma fonte de prazer. Os frutos tornam-se mais
agradáveis quando estão a ficar passados; é no seu termo que mais brilha a
graça da infância; aos bebedores, o último copo é que dá mais prazer, aquele
que culmina e dá o último impulso à embriaguez; aquilo que cada prazer tem
5 de mais saboroso é guardado para o fim. É extremamente agradável esta
idade, já tendente para o fim embora ainda não a tombar; estar prestes a atingir
21
[NOTA 28] Na religião romana, o Génio [Genius] era uma das divindades domésticas (a par
dos Lares e dos Penates) individualmente associada a cada homem: cada homem possuía o seu
Genius, tal como cada mulher possuía uma contrapartida feminina, a sua Iuno. Especialmente
venerado era, em cada casa, o Genius do chefe de família, simbolizado por uma serpente
pintada no altar.
22
[NOTA 29] Por ocasião das Saturnais (Saturnalia), antigas festas do calendário romano
celebradas por volta de 17 de Dezembro de cada ano em honra de Saturno, era costume haver
troca de presentes entre amigos, e mesmo, como é aqui o caso, entre senhores e escravos (por
ex. os livros XIII e XIV de Marcial recolhem uma colecção de epigramas apensos pelo poeta a
presentes oferecidos por essas festas). Neste período, os escravos gozavam em relação aos
seus senhores de uma grande liberdade, como pode verificar-se, u.g., na sátira 7 do livro II de
Horácio (diálogo entre o Poeta e o seu escravo Davo).
a beira do telhado, acho que é situação dotada dos seus encantos; ou pelo
menos, em vez de encantos, bastará a simples ausência de necessidades.
Como é bom já ter cansado os nossos desejos, tê-los abandonado.
6 “Mas é penoso” - dirás - “ter a morte diante dos olhos.”
Bom, ter a morte diante dos olhos é coisa que tanto deve fazer um velho
como um jovem (já que ela nos não chama por ordem de idades); além disso,
não há ninguém tão velho que não tenha direito a esperar um dia mais. Aliás,
um dia é um degrau na vida. Toda a nossa existência consta de partes, de
círculos concêntricos em que os maiores abarcam os menores: há um círculo
que os abarca e rodeia a todos (este é o que contém todo o tempo do
nascimento à morte); há outro que delimita os anos da adolescência; outro que
dentro da sua órbita rodeia os anos da infância; além disso, cada ano de per si
contém as subdivisões do tempo, de cuja combinação resulta a nossa vida; um
mês está contido num círculo menor; um dia tem um perímetro ainda mais
7 curto, mas mesmo ele tem um princípio e um fim, uma origem e um termo. Por
isso dizia Heraclito, o filósofo que deveu a fama à sua linguagem obscura, “que
qualquer dia é igual a todos os outros”23.
Esta ideia foi expressa por outros, cada qual da sua maneira. Disse um
que é igual em número de horas, e com razão, pois, se um dia é um espaço de
tempo de vinte e quatro horas, necessariamente todos os dias são iguais entre
si: a noite tem a mais o que o dia tem a menos. Disse um outro que todos os
dias são iguais na sua aparência geral, porquanto nada há num enorme espaço
de tempo que se não possa encontrar num único dia - a luz e as trevas; no
constante alternar do universo, tudo isto aparece multiplicado, mas não
diferente, ...24 apenas numas vezes mais curto, noutras mais dilatado.
8 Organizemos, portanto, cada dia como se fosse o final da batalha, como se
fosse o limite, o termo da nossa vida. Pacúvio, que usufruía da Síria como se
lhe pertencesse de direito25, depois de a si mesmo se ter celebrado com
libações e sumptuosos banquetes fúnebres, fazia-se transportar do festim para
o quarto entre as palmas dos seus “amiguinhos” que cantavam em coro:
26
9 . Todos os dias fez o seu próprio funeral. Ora o que ele
fazia com a consciência pesada façamo-lo nós com ela tranquila, e ao irmos
dormir digamos, com satisfação e alegria,
23
[NOTA 30] Heraclito fr. 1.06 Diels-Kranz.
24
[NOTA 31] O texto apresenta aqui uma lacuna
25
[NOTA 32] O governador efectivo da Síria, nomeado por Tibério, era Élio Lâmia, que,
impedido de sair de Roma pelo Imperador, administrava a província por intermédio do seu
legado Pacúvio (cf. Tácito, Anais, VI, 27 e I, 80).
26
[NOTA 33] “Já viveu, já viveu!” (isto é, “está morto”!)
vivi, cumpri o curso que a fortuna me deu.27
Se a divindade nos conceder o novo dia, aceitemo-lo com alegria. O mais feliz
dos homens, o dono seguro de si próprio é aquele que aguarda sem ansiedade
o dia seguinte. Quem quotidianamente diz: “vivi”!, quotidianamente ficará a
lucrar.
10 Mas já é altura de fechar esta carta. - “Olá! Então e ela vem sem me
trazer brinde?” - Não te assustes: vai levar qualquer coisa. Qualquer coisa, não:
muita coisa. Que há, na verdade, de mais notável que esta frase que eu aqui
incluo para ti? “É um mal viver na necessidade, mas não há qualquer
necessidade de viver na necessidade.”28 Como não seria assim? Em todo o
lado estão patentes as vias para a liberdade: muitas, curtas e fáceis.
Agradeçamos à divindade o facto de ninguém poder ser obrigado a
permanecer vivo: é-nos possível dar um pontapé na própria necessidade.
11 Dirás tu: “Essa frase é de Epicuro; para quê recorrer à propriedade
alheia?” Tudo quanto é verdade, pertence-me. E vou continuar a citar-te
Epicuro para que todos quantos juram pelas palavras e se interessam, não pela
ideia mas pelo seu autor, fiquem sabendo que as ideias correctas são pertença
de todos.
27
[NOTA 34] Vergílio, Aen, IV, 653.
28
[NOTA 35] Epicuro, fr. 487 Usener.
Carta 13
16 Mas é tempo de terminar esta carta. Só falta imprimir nela o sinete, isto é,
citar alguma máxima importante sobre a qual tu medites.
“Entre outros defeitos, a insensatez tem ainda mais este: está sempre no
início da vida.”29 Pondera no que significa esta frase, Lucílio, meu amigo caro
entre todos! Verás como é repugnante a inconstância dos homens que todos
os dias constroem novos fundamentos para a sua vida, e que mesmo à beira
17 da morte concebem novas esperanças. Observa-os um por um: encontrarás
alguns velhos que, com o máximo empenho, enveredam pela intriga política,
pelas grandes expedições, pela vida dos negócios. Que há de mais repugnante
do que um velho iniciando uma nova vida? Não acrescentaria o nome do autor
desta frase se não se desse o facto de ela ser pouco conhecida e não
29
[NOTA 1] Epicuro, fr. 494 Usener.
pertencer ao número das máximas divulgadas de Epicuro que eu me tenho
permitido citar e adoptar como minhas!
Carta 14
1 Admito que é inata em nós a estima pelo próprio corpo, admito que temos
o dever de cuidar dele. Não nego que devamos dar-lhe atenção, mas nego que
devamos ser seus escravos. Será escravo de muitos quem for escravo do
próprio corpo, quem temer por ele em demasia, quem tudo fizer em função
2 dele. Devemos proceder não como quem vive no interesse do corpo, mas
simplesmente como quem não pode viver sem ele. Um excessivo interesse
pelo corpo inquieta-nos com temores, carrega-nos de apreensões, expõe-nos
aos insultos; o bem moral torna-se desprezível para aqueles que amam em
excesso o corpo. Tenhamos com ele o maior cuidado, mas na disposição de o
3 atirar às chamas quando a razão, a dignidade, a lealdade assim o exigirem. De
qualquer modo evitemos quanto possível mesmo os incómodos, e não somente
os perigos, coloquemo-nos em lugar seguro mas reflectindo desde logo nos
meios como afastar os motivos de temor. Tais motivos, se bem me lembro, são
de três tipos: podemos temer a indigência, ou as doenças, ou as violências
4 perpetradas pelos poderosos. De todos eles nada nos abala mais do que os
males ocasionados pela prepotência alheia, já que ocorrem acompanhados de
imenso estrépito e agitação. As calamidades naturais que referi, indigência e
doença, surgem silenciosamente e não incutem terror através da vista ou do
ouvido; o terceiro tipo de desgraça ocorre entre grande alarido, faz a sua
aparição entre armas, chamas, cadeias e bandos de feras treinadas para
5 rasgar aos homens as entranhas. Imagina, neste momento, o cárcere, as
cruzes, os cavaletes, os ganchos30, o pau que atravessa todo o corpo e acaba
por sair pela boca, os carros lançados em direcções opostas que despedaçam
os membros, a célebre túnica revestida e entretecida de matérias inflamáveis e
6 tudo o mais que a crueldade foi ainda capaz de inventar. Não é, portanto, de
admirar se o perigo que mais receio inspira é este, que se apresenta sob tanta
variedade de formas e rodeado de aparato terrível Tal qual como a tortura é
tanto mais eficaz quanto mais instrumentos dolorosos exibir (e assim vence
pela vista homens que resistiriam ao sofrimento), também daqueles receios
que nos afligem e abatem o ânimo, os mais eficazes são aqueles que se fazem
ver. Há outras calamidades não menos graves - por exemplo a fome, a sede,
as úlceras, a febre que parece queimar as entranhas -, mas que se não vêm,
que não chamam a atenção, que se não exibem; aquelas outras, ao contrário,
são como as guerras violentas, que nos vencem pelo seu aparato visível.
30
[NOTA 2] Os ganchos aqui referidos eram os que se usavam para arrastar os corpos dos
supliciados até junto às Gemoniae scalae “as escadas dos gemidos”, donde depois eram
lançados ao Tibre.
7 Tomemos, por isso, precauções para evitarmos ser ofensivos. Por vezes
é de todo o povo que nos devemos precaver; outras vezes, quando o governo
da cidade passa na sua maior parte pelo senado, são os seus membros que
importa conciliar; outras, são homens que, a título pessoal, receberam do povo
o poder que exercem contra o próprio povo. Tê-los a todos como amigos seria
ingente tarefa; basta que os não tenhamos por inimigos. O sábio,
consequentemente, não provocará as iras dos poderosos, antes as esquivará,
tal como no mar procuramos esquivar as tempestades. Quando foste à Sicília
8 tiveste de atravessar o mar. Se o piloto é temerário não cuida dos perigos do
austro31, o vento que agita o mar da Sicília e provoca os remoínhos, nem se
aproxima da margem à sua esquerda, antes navega por entre os turbilhões
causados por Caríbdis. Um outro mais prudente inquere dos conhecedores do
local o sentido das correntes ou os indícios a tirar das nuvens, e dirigirá a sua
rota longe daquelas paragens tão tristemente famosas pelos seus vórtices.
Idêntico método usará o sábio: evita a perniciosa companhia dos poderosos
mas tomando cautela para não aparentar evitá-la; em grande parte a
segurança reside em não a buscarmos de forma demasiado evidente, pois fugir
9 de alguma coisa é o mesmo que condená-la. Há, por conseguinte, que tomar
todos os cuidados para nos precavermos do vulgo. Para começar, não
devemos ter ambições: competição gera conflito! Em segundo lugar não
devemos possuir nada capaz de ser aliciante para um eventual salteador: não
ostentes quanto possível sobre ti o que possa ser tomado como espólio!
Ninguém chega a matar o seu semelhante por puro prazer de matar, ou, pelo
menos, muito poucos; mais numerosos são os que o fazem por cálculo do que
por ódio. Qualquer ladrão deixa em paz quem nada tem; mesmo numa estrada
10 infestada o pobre nada tem a temer. Há seguidamente três coisas que,
segundo o velho provérbio, se devem evitar: o ódio, a inveja, o desprezo. O
modo de consegui-lo, só a sabedoria pode indicá-lo. É, na verdade, difícil
conseguir o equilíbrio, e por isso importa ter cuidado, não vá o medo da inveja
fazer-nos incorrer no desprezo ou o receio de pisar os outros parecer significar
que os outros nos possam pisar. O poder de inspirar temor tem sido para
muitos causa de temor! Retiremo-no com precaução de todas as frentes: tão
11 perigoso é ser desprezado como inspirar suspeitas. A solução é procurar
refúgio na filosofia: a prática do seu estudo exerce, já não digo sobre as
pessoas de bem, mas mesmo sobre as não muito más, um efeito semelhante
ao das insígnias sacerdotais. A eloquência forense, ou mesmo outra
modalidade de eloquência que actue sobre as massas, gera inimizades; a
filosofia, arte pacífica e concentrada sobre si mesmo, não pode incorrer no
desprezo, ela que, mesmo entre gente inculta, leva a palma a todas as outras
artes. Nunca a perversidade ganhará tanta força, nunca se encarniçará tanto
31
[NOTA 3] Vento sul.
contra a virtude, que o nome da filosofia não permaneça como algo venerável e
sagrado. De resto, só com tranquilidade e modéstia se pode praticar a filosofia.
12 Aqui objectarás tu: “Pois quê, então achas que M. Catão praticou com
modéstia a filosofia, ele que se atreveu a votar contra a guerra civil? Que ousou
entremeter-se entre os dois generais entregues à fúria das armas? Que,
enquanto uns invectivavam Pompeio e outros César, ousou condená-los a
13 ambos?” Pode discutir-se se, numa ocasião daquelas, o sábio deveria ou não
participar na vida política. Que objectivo visava Marco Catão? Já não estava
em causa a liberdade, perdida de há muito. A questão era saber se o dono do
Estado seria César ou Pompeio: que interessava a Catão essa disputa?
Nenhum dos dois partidos era o seu! Escolhia-se um ditador: que lhe importava
a ele qual seria o vencedor? Era possível que viesse a vencer o melhor, mas
seria impossível que o pior não fosse o vitorioso! Mas estou-me referindo aos
últimos tempos de Catão. Quanto aos anos precedentes, em que o Estado era
disputado pela violência, também não eram próprios para aceitar a participação
do sábio. Que outra coisa fez Catão senão vociferar palavras que ninguém
ouvia, nesses dias em que ora era levado pelas mãos da populaça e, exposto
aos seus escravos, era arrastado à força para fora do foro, ou conduzido do
senado até ao cárcere?
32
[NOTA 4] Epicuro, epist. 3, p. 63, 19-20 Usener.
Carta 15
33
[NOTA 5] Uma das ideias em que Séneca não se cansa de insistir é a oposição entre os
adeptos da filosofia, ou seja, aqueles que, com maior ou menor dificuldade, tentam aproximar-
se do ideal do “sábio” (sapiens) estóico, e a grande massa dos stulti, os “insensatos, estúpidos,
incultos, dementes”. Deverá entender-se que Séneca, ao usar o adjectivo stultus (“estúpido”)
não está a fazer qualquer pressuposição sobre a inteligência do visado, mas tão somente a
sublinhar o seu afastamento em relação ao modelo ideal da Escola.
34
[NOTA 6] O óleo com que os atletas untavam o corpo antes dos exercícios físicos,
nomeadamente a luta.
35
[NOTA 7] O Colégio dos Sálios, confraria de sacerdotes consagrados ao culto do deus Marte,
realizava anualmente no mês de Março uma procissão pelas mas de Roma batendo nuns
que, em linguagem provocante, diria “o passo dos tintureiros”36. Escolhe algum
5 destes exercícios, cuja execução não é difícil37. Seja qual for o teu preferido,
não deixes de passar depressa do corpo para a alma: a esta, dá-lhe exercício
dia e noite, O exercício físico não te exigirá grande esforço; o da alma, nem o
6 frio ou o calor o interrompe, nem mesmo a velhice. Cultiva, por conseguinte,
um bem que vai melhorando com a idade! Não te digo que estejas sempre
debruçado sobre um livro ou um bloco de apontamentos; é preciso dar à alma
algum descanso, de modo tal, porém, que não perca a firmeza, apenas
repouse um pouco.
escudos sagrados que transportavam consigo (os ancilia), dançando uma dança guerreira ritual
e entoando em honra do deus hinos cujo texto, na época de Quintiliano, já nem os próprios
celebrantes compreendiam.
36
[NOTA 8] O “passo dos tintureiros”, ou seja, o pisar dos tecidos imersos em grandes tanques,
não deveria diferir muito do antigo processo de espremer as uvas calcando-as em vastos
recipientes.
37
[NOTA 9] Tradução conjectural; a corruptela que o texto apresenta neste passo, objecto de
diversas tentativas de correcção, ainda não foi sanada de modo a obter o consenso geral. De
qualquer forma, o sentido não deverá ser muito diferente do que escrevemos.
38
[NOTA 10] Quirites são os cidadãos romanos na plenitude dos seus direitos civis. A captatio
beneuolentiae (o apelo à benevolência do povo romano) ocorria, por norma, no termo do
discurso, quando o orador, depois de devidamente exposta a sua argumentação, recorria à
emoção a fim de conciliar o favor da assembleia.
iletrados. De facto, não é para exercitar a voz que fazemos estes exercícios
mas para que através dela nos exercitemos nós!
9 Já te libertei duma preocupação de certa importância: uma pequena
oferta - um dito grego - vai agora juntar-se ao benefício que já te fiz. Aqui tens
um preceito notável: “A vida do insensato carece de atractivos e abunda em
temores, já que está totalmente orientada para o futuro”39. Perguntas-me quem
é o autor: é o mesmo que anteriormente. O que imaginas tu que se entende por
“a vida do insensato”? A vida de Baba ou de Isião? Nada disso. É da nossa
vida que se trata; é de nós, que não pensamos em como é agradável não ter
de pedir seja o que for, em como é sublime sentirmo-nos satisfeitos e
10 independentes da fortuna. Pensa continuamente, Lucílio, em todos os bens que
já conseguiste obter; e quando reparares naqueles que te levam vantagem,
atenta igualmente em todos os que estão abaixo de ti. Se quiseres mostrar-te
grato para com os deuses e para com o que a vida te deu, pensa no grande
número daqueles a quem te superiorizaste. Mais: que te importam os outros, se
11 te superiorizaste a ti mesmo?! Marca um limite para lá do qual não passes,
ainda que o pretendesses! Afasta duma vez por todas o desejo desses bens
tão ilusórios, que até é preferível apenas desejá-los sem os obter! De resto, se
neles existisse algo de concreto, eles inevitavelmente nos saciariam; o que se
passa de facto é que quanto mais os saboreamos mais lhes sentimos a sede.
Afastemos de nós essas miragens sedutoras: tudo aquilo que se encontra nas
incertezas do futuro, por que motivo me será mais vantajoso consegui-lo da
fortuna, do que eu próprio disso prescindir? E porque não prescindir? Para quê
esquecer-me da fragilidade humana e pôr-me a acumular bens? Para quê
penar por eles? Este dia será o meu último dia; e se acaso o não for decerto
que o meu fim já não está distante!
39
[NOTA 11] Epicuro, fr. 491 Usener.
Carta 16
1 Tenho a certeza, Lucílio, que é para ti uma verdade evidente que ninguém
pode alcançar uma vida, já não digo feliz, mas nem sequer aceitável sem
praticar o estudo da filosofia; além disso, uma vida feliz é produto de uma
sabedoria totalmente realizada, ao passo que para ter uma vida aceitável basta
a iniciação filosófica. Uma verdade evidente, todavia, deve ser confirmada e
interiorizada bem no íntimo através da meditação quotidiana: é mais
trabalhoso, de facto, manter firmes os nossos propósitos do que fazer
propósitos honestos. É imprescindível persistir, é preciso robustecer num
esforço permanente as nossas ideias, se queremos que se tranforme em
sabedoria o que apenas era boa vontade.
2 Por esta razão não precisas de gastar comigo tantas palavras nem de
fazer tão longas profissões de fé: eu sei que tu já progrediste bastante. Sei bem
de que fonte nascem as tuas palavras, que nem são fingidas nem exageradas.
Dir-te-ei, contudo, o que penso: espero muito de ti, mas não confio ainda
totalmente. Aliás quero que tu faças o mesmo comigo, ou seja, que não
acredites no que te digo com excessiva prontidão. Observa-te a ti mesmo,
analisa-te de vários ângulos, estuda-te. Acima de tudo verifica se progrediste
3 no estudo da filosofia ou no teu próprio modo de vida. A filosofia não é uma
habilidade para exibir em público, não se destina a servir de espectáculo; a
filosofia não consiste em palavras, mas em acções. O seu fim não consiste em
fazer-nos passar o tempo com alguma distracção, nem em libertar o ócio do
tédio. O objectivo da filosofia consiste em dar forma e estrutura à nossa alma,
em ensinar-nos um rumo na vida, em orientar os nossos actos, em apontar-nos
o que devemos fazer ou pôr de lado, em sentar-se ao leme e fixar a rota de
quem flutua à deriva entre escolhos. Sem ela ninguém pode viver sem temor,
ninguém pode viver em segurança. A toda a hora nos vemos em inúmeras
situações em que carecemos de um conselho: pois é a filosofia que no-lo pode
4 dar. Haverá quem diga: “De que me serve a filosofia se existe o destino? De
que me serve ela se há um deus que tudo dirige? De que me serve ela se tudo
obedece ao acaso? De facto, tão impossível é alterar o que está
predeterminado como tomar providências em relação ao que é incerto, pois ou
as minhas decisões já foram antecipadas por um deus que me indicou como
agir, ou então é a fortuna que nada deixa entregue ao meu arbítrio”.
5 Qualquer que seja, caro Lucílio, o valor destes argumentos, e mesmo que
todos sejam válidos, devemos praticar a filosofia. Quer nos determine a lei
inexorável do destino, quer algum deus moderador do universo ordene todos
os acontecimentos, quer seja o acaso que, desordenadamente, empurre aos
baldões o curso da vida humana, a filosofia deverá proteger-nos. Ela nos
incitará a obedecer espontaneamente à divindade, a resistir a pé firme à
6 fortuna; ela nos ensinará a seguir a divindade, ou a suportar o acaso. Mas não
é agora oportuno começar a discutir os limites do nosso arbítrio no caso de
haver uma providência ordenadora, de o curso do destino nos arrastar
manietados, ou de predominarem as ocorrências súbitas e casuais. Agora
regresso ao meu ponto de partida: aconselhar-te com todo o empenho que
nunca deixes esmorecer ou esfriar o ímpeto que te vai na alma. Conserva-o,
dá-lhe forma, de modo a que esse ímpeto de hoje se torne configuração
permanente da tua alma.
40
[NOTA 12] Epicuro, fr. 201 Usener.
Carta 17
41
[NOTA 13] Cícero, Hort., fr. 98 p. 326 Mueller.
recompensa que te promete a filosofia é de longe superior: a liberdade
permanente, a ausência de receio quer ante os homens, quer ante os deuses.
Para alcançar tal recompensa não achas que vale a pena suportar até a fome?
7 Houve exércitos que experimentaram a mais completa carência, vivendo de
raízes, matando a fome com coisas que só até o mencioná-las repugna; e
aguentaram tudo para defender um reino - bem podes espantar-te -
estrangeiro!42 Para libertar a alma das paixões haverá quem hesite em suportar
a pobreza? Não há qualquer aquisição prévia a fazer: pode chegar-se à
8 filosofia mesmo sem viático! Pois quê, depois de teres tudo o mais é que
pretendes adquirir a sabedoria? Ela será apenas mais um objecto na tua vida,
será, por assim dizer, um mero acessório? Ora bem: se tu já possuis alguma
coisa começa a filosofar (doutro modo como saberás se as tuas posses não
são já demasiadas?); se nada possuis, procura a filosofia antes de mais nada.
9 “Mas faltar-me-ão recursos indispensáveis”. Para começar, não poderão faltar-
te recursos, porque as exigências naturais são mínimas e o sábio adapta-se ao
que é natural. Se se vir reduzido às mais extremas carências, nesse caso
abandonará a vida e deixará de ser um fardo para si próprio. Se dispuser dos
recursos mínimos indispensáveis à conservação da vida, usará esses recursos
e, sem se preocupar nem angustiar para além do indispensável, dará o “quanto
baste” ao estômago e aos músculos; observando as fadigas dos ricaços, a
agitação sem freio da corrida às riquezas, o sábio, tranquilo e contente, rir-se-á,
10 dizendo: “Para quê adiares a tua própria formação? Estás à espera de
receberes juros, de tirares lucro de alguma operação comercial, de seres
contemplado no testamento dum velho rico, quando podes tomar-te rico
instantaneamente? A sabedoria põe a riqueza à tua mão: ao mostrar que é
supérflua, está como que a oferecer-ta!” Mas estas considerações convirão
melhor a outros; tu estás mais perto da gente abastada. Se mudares de época,
serás rico em excesso, em todas as épocas uma só coisa permanece idêntica -
aquilo que é bastante.
11 Já podia terminar aqui esta carta se não tivesse criado em ti certos maus
hábitos! Aos reis Partos, ninguém os pode ir saudar sem levar uma oferenda; a
ti, não posso dizer adeus sem um presente!... Pois bem, vou saldar a dívida
com um dito de Epicuro:
“Conquistar riqueza tem sido para muitos não o fim, mas apenas a troca
de miséria.”43
12 Não é de admirar! O vício não está nas coisas, está na própria alma. O
mesmo defeito que nos faz achar insuportável a pobreza faz com que achemos
a riqueza insuportável! Podes deitar um enfermo num leito de madeira ou num
42
[NOTA 14] Em de ira 3, 20, 2 Séneca relata como os soldados de Cambises, devido à imprevidência do
rei, se viram forçados até a comer sola amolecida ao fogo.
43
[NOTA 15] Epicuro, fr. 479 Usener.
leito de ouro, não há alteração, pois para onde quer que o leves ele levará
consigo a sua enfermidade; do mesmo modo nada se altera se uma alma
doente viver na riqueza ou na pobreza: o seu vício segui-la-á sempre.
Carta 18
44
[NOTA 16] As Saturnais (v. livro I nota 29) comportavam elementos que em parte
correspondem às nossas festas de Natal (a troca de presentes) e em parte (a licenciosidade) se
aproximam do Carnaval. Na Apocol., Séneca diz que Cláudio “qual príncipe de Carnaval,
celebrava o mês de Saturno durante o ano inteiro” (8.2), e mais adiante comenta a tristeza dos
adeptos do imperador falecido dizendo: “eu bem vos dizia que o Carnaval não havia de durar
sempre!” (12.2).
45
[NOTA 17] Antigamente, trocava-se a toga pelo trajo militar em períodos de guerra
(“agitação”), ou por roupa de luto (“calamidades”); agora, só se usa roupa de festa, em
especial adequada para os banquetes! Cf. Marcial, V, 79: “Durante um só banquete, ó Zoilo,
levantaste-te onze vezes, para onze vezes ires trocar a túnica festiva, não fosse a tua veste ficar
húmida de suor ou uma corrente de ar fazer mal à tua cútis! Por que é que eu janto contigo, ó
Zoilo, e não fico a suar? Porque a minha única veste dá-me frescura que baste!”
46
[NOTA 18] O barrete frígio (pilleus) era usado especialmente nos dias de festa
(nomeadamente nas Saturnais); aos escravos libertos dava-se usualmente um destes barretes,
como sinal da sua nova condição de homens livres, e é a este hábito que Séneca aqui faz
alusão.
mesma coisa mas com uma diferente disposição de espírito. Afinal de contas, é
possível participar numa festa sem cair no deboche!
5 Tenho, aliás, tanta vontade de pôr à prova a tua firmeza de alma que,
com base nos preceitos de filósofos ilustres, forjaria este outro preceito
destinado à tua pessoa: fixa alguns dias intercalados nos quais mates a fome
com alimentos exíguos e vulgares, e te vistas com roupa o mais possível
grosseira, de modo a comentares para ti próprio: “era então disto que eu tinha
6 medo?” A alma deve preparar-se para as dificuldades durante os períodos de
tranquilidade, deve-se fortalecer contra as injúrias da fortuna nos períodos em
que ela nos sorri. Os soldados fazem manobras em tempos de paz, constroem
paliçadas mesmo sem haver inimigos, treinam-se através de esforços
supérfluos para serem capazes de afrontar as necessidades reais. Se não
queres que um homem entre em pânico perante uma situação concreta, treina-
o antes que tal situação ocorra. Este princípio foi posto em prática por aqueles
que todos os meses imitavam uma situação de pobreza a tal ponto que
atingiram quase a miséria extrema, na intenção de nunca terem de recear o
7 que de uma vez por todas aprendessem a suportar. Não penses que me estou
referindo aos jantares à moda de Tímon, aos cubículos miseráveis e a tudo o
mais que os ricos, entediados da própria riqueza, fazem gala em aceitar. Não,
eu quero autenticidade na tua enxerga, no teu saio grosseiro, no teu pão duro e
intragável! Leva esta vida uns três ou quatro dias, ocasionalmente mesmo por
períodos mais longos, a título, não de capricho, mas de experiência. Então,
Lucílio, podes crer que terás a satisfação de ver como matas a fome com dois
asses47, de compreender que, para viver em segurança, não precisamos da
fortuna para nada! Mesmo quando hostil, a fortuna não nos nega o que é
8 estritamente necessário. Procedendo assim, de resto, não há razão para
pensares que fazes uma grande coisa (fazes apenas o mesmo que muitos
milhares de escravos, que muitos milhares de pobres): apenas te dá direito a
gabares-te o facto de o não fazeres por coacção, o facto de te ser fácil suportar
para sempre aquilo que experimentaste ocasionalmente. Treinemo-nos
esgrimindo contra o poste: para a fortuna nos não encontrar impreparados,
façamos com que a pobreza se nos torne familiar. Seremos ricos com muito
9 maior tranquilidade se soubermos que não custa nada ser pobre! O grande
mestre do prazer que foi Epicuro tinha alguns dias fixos em que nunca comia à
sua vontade, para observar se algum detrimento daí resultava ao completo e
consumado prazer, até que ponto tal detrimento se fazia sentir, e também para
ver se merecia grandemente a pena eliminá-lo. Pelo menos é o que ele diz na
carta que escreveu a Polieno datada do arcontado de Carino48; gaba-se
47
[NOTA 19] É, naturalmente, impossível tentar uma equivalência entre as moedas romanas e
valores actuais. De qualquer modo “dois asses” é uma importância ridícula, tal como nós
poderíamos dizer “dois tostões”.
48
[NOTA 20] Epicuro, fr. 158 Usener.
mesmo que pode alimentar-se por menos de um asse, enquanto Metrodoro,
10 ainda num estado não tão avançado, necessita de um asse inteiro. Julgas que
este tipo de alimentação produz só saciedade? Produz também prazer, não um
prazer ligeiro e fugaz que continuamente se tem de espevitar, mas antes um
prazer constante e fixo. Não que seja agradável viver de água, de polenta, de
uma migalha de pão de centeio; mas é um prazer supremo conseguir sentir
prazer em tais alimentos e atingir assim um estado ao abrigo de toda e
11 qualquer injustiça da fortuna. Na prisão é mais abundante a comida; o carrasco
alimenta com menos parcimónia os condenados à pena capital. Vê então
quanta grandeza de alma há em sujeitar-se voluntariamente a uma alimentação
tão parca que mesmo os condenados à morte não estão a ela reduzidos! Tal
12 atitude equivale a despojar a fortuna das suas armas! Começa, pois, amigo
Lucílio, a imitar os hábitos destes filósofos, e fixa alguns dias em que renuncies
aos teus bens e te habitues a viver com o mínimo indispensável. Começa a
manter relações com a pobreza:
49
[NOTA 21] Vergílio, Aen., VIII, 364-5.
50
[NOTA 22] Epicuro, fr. 484 Usener.
Carta 20
10 “Pois quê?” - dirás tu. - “Não é possível sentir desprezo pelas riquezas
que temos na nossa posse?” Claro que é possível. Um homem que as veja à
sua volta, que longamente se admire como elas chegaram até si, que se ria
delas e as tenha como suas, não porque as sinta como tais, mas por “ouvir
dizer” - tal homem é um espírito superior. É altamente importante não nos
deixarmos corromper pela vizinhança da riqueza; viver como pobre no meio da
riqueza é indício de grandeza de alma.
11 “Não sei” - objectarás “como tal homem poderia suportar a pobreza se
nela caísse de repente.” Também eu não sei, Epicuro, como o teu pobre
fanfarrão desprezaria a riqueza se nela caísse de repente! Por isso mesmo,
num caso e noutro, importa averiguar a verdadeira intenção, e verificar se este
no fundo não gosta da pobreza e se aquele no fundo não gosta mesmo de ser
rico. A enxerga e os andrajos não são indício seguro de uma mentalidade
superior senão quando é evidente que eles são motivados por uma opção, e
12 não suportados por necessidade. Mais ainda, um carácter nobre não procura
apressadamente a miséria por ser uma situação preferível; prepara-se, porém,
para ela com uma situação fácil de aguentar. E é efectivamente fácil, Lucílio, e
mesmo agradável, quando acedemos a ela depois de uma meditação já vinda
de longe. Há na pobreza uma coisa indispensável para termos alegria: a
51
[NOTA 27] Epicuro, fr. 206 Usener.
13 segurança. Julgo, por conseguinte, ser necessário fazer o que, conforme já te
disse noutra carta,52 alguns grandes homens fizeram várias vezes: reservar
alguns dias para, vivendo numa pobreza imaginária, nos prepararmos para a
verdadeira. Coisa tanto mais necessária quanto nós, amolecidos pela vida fácil,
consideramos tudo como duro e penoso. Há que despertar do sono a nossa
alma, há que espicaçá-la, há que mostrar-lhe como é exíguo o que a natureza
nos concedeu. Ninguém nasce rico; no momento de vir à luz temos de
contentar-nos com uma fralda e um pouco de leite: e é a partir de tais começos
que chegamos a pensar que um reino é estreito para nós!...
52
[NOTA 28] V. supra carta 18, 5 ss.
Carta 23
1 Não penses que te escrevo para dizer como o inverno, que, aliás, foi curto
e pouco rigoroso, se portou bem connosco, ou como a primavera está
desagradável, ou como o frio chegou fora de tempo! Isso são frioleiras próprias
de quem fala por falar. Eu só escrevo aquilo que sinto ter utilidade, quer para ti,
quer para mim. Que outra coisa posso, portanto, fazer além de incitar-te à
conquista da sabedoria? Queres saber qual o fundamento da sabedoria? Não
tirar satisfação de coisas vãs. Falei em fundamento: na realidade é o ponto
2 culminante. Só atinge o ponto supremo quem sabe em que consiste a
verdadeira satisfação, quem não deixa a sua felicidade ao arbítrio dos outros.
Fica sempre angustiado e inseguro de si o homem que se deixa solicitar por
toda e qualquer esperança, ainda que ao seu alcance, ainda que fácil de
realizar, ainda que nunca esse homem tenha sido iludido nas suas
3 expectativas. O que tens a fazer antes de mais, caro Lucílio, é aprender a ser
alegre. Estás a pensar que eu te quero privar de muitos prazeres ao afastar de
ti os bens fortuitos, ao entender que devemos subtrair-nos ao doce canto das
sereias que é a esperança? Pelo contrário, o meu desejo é que nunca te falte a
alegria. O meu desejo é que a alegria habite sempre em tua casa; e fá-lo-á, se
começar a habitar dentro de ti. Os outros tipos de alegria não satisfazem a
alma; desanuviam o rosto, mas são superficiais. A menos que entendas que
estar alegre é estar a rir! Não, a alma deve estar desperta, confiante, acima das
4 contingências. Acredita-me, a verdadeira alegria é uma coisa muito séria.
Julgas tu que se pode pensar em desprezar a morte, em abrir as portas à
pobreza, em refrear os prazeres, em exercitar a capacidade de suportar a dor -
e tudo isto sem franzir a testa, sempre com o rosto, como diriam os nossos
jovens pretensiosos, descontraído? Quem interioriza estes pensamentos
alcança uma grande alegria, mas de ar pouco sorridente! O meu desejo é que
tu possuas uma alegria deste tipo. Quando algum dia souberes de que fonte
5 emana essa alegria, nunca mais ela deixará de te acompanhar. Os filões dos
metais ligeiros encontram-se à superfície, mas os metais mais preciosos são
aqueles cujos veios se encontram mais fundo e que, por isso mesmo,
compensam muito mais quem os explora. Os prazeres com que o vulgo se
deleita são ligeiros e superficiais, toda a alegria de importação carece de
fundamento. A alegria de que estou falando e à qual me esforço por fazer-te
aceder, essa é de natureza constante, e tanto mais dilatada, quanto mais
6 íntima. Peço-te, Lucílio amigo, age da única maneira possível para obteres a
felicidade: repele e despreza aqueles bens que só brilham por fora, que
dependem das promessas de fulano ou das benesses de cicrano. Faz do
verdadeiro bem o teu alvo, busca a alegria dentro de ti. Que significa “dentro de
ti”? Significa que a felicidade se origina em ti mesmo, na melhor parte de ti
mesmo. Este nosso corpo, embora sem ele nada possamos fazer, considera-o
como um utensílio, indispensável, sim, mas não valioso. O corpo alicia-nos
para prazeres ilusórios, de curta duração, prazeres que nos repugnam mal
terminam e que, se não forem doseados com extrema moderação, acabam por
se tornar no seu contrário. Assim mesmo: o prazer está à beira de um
precipício, e transforma-se em dor se não for gozado segundo a justa medida.
Por outro lado, é difícil guardar a justa medida daquilo que se nos afigura um
7 bem. Ora o desejo do verdadeiro bem está ao abrigo deste risco. Se queres
saber em que consiste e donde provém o verdadeiro bem, vou dizer-to:
consiste na boa consciência, nos propósitos honestos, nas acções justas, no
desprezo pelos bens fortuitos, no ritmo tranquilo e constante de uma vida que
trilha um único caminho. Aqueles que estão continuamente a mudar de
intenções e não apenas a mudar, mas a deixarem-se arrastar ao sabor do
acaso, como poderão apoiar-se em alguma certeza permanente se eles
8 próprios são hesitantes e instáveis? Raros são os homens que conseguem
ordenar reflectidamente a sua vida. Os outros, à maneira de destroços
arrastados por um rio, em vez de caminharem deixam-se levar à deriva. Se a
corrente é fraca ficam parados na água quase estagnada, se é forte, são
arrastados com violência; a uns, deixa-os a corrente em seco ao abrandar junto
à margem, a outros, um fluxo impetuoso acaba por lançá-los no mar. Por isso
mesmo é que nós devemos fixar de uma vez por todas o que queremos e
manter-nos firmes nesse propósito.
53
[NOTA 4] Epicuro, fr. 493 Usener.
Carta 24
9 Não estou a coligir exemplos apenas para aguçar o engenho, mas para
que te sirvam de exortação contra aquele que imaginamos ser o mais terrível
dos males. As minhas exortações tornar-se-ão mais fáceis se te demonstrar
que não são apenas os heróis a desprezar o momento de exalar o último
suspiro, mas que até mesmo homens pusilânimes são capazes em certas
situações de se elevar ao nível dos mais valorosos no momento decisivo. Foi
este o caso de Cipião, sogro de Gneu Pompeio. Arrastado para a costa de
África por ventos contrários, ao ver o seu navio ocupado pelos inimigos,
trespassou-se com a espada, e, quando aqueles lhe perguntaram o que era
10 feito do general, respondeu: “O general está são e salvo!” Estas palavras
fizeram dele o émulo dos seus maiores e permitiram a perpetuação da glória
dada pelo destino aos Cipiões nas terras de África. Se foi glorioso derrotar
Cartago, mais ainda o foi derrotar a morte. “O general está são e salvo”: que
forma de morrer haveria mais digna de um general, e de um general das tropas
11 de Catão? Não vou remeter-te para os livros de história, não vou enumerar
todos os homens, e muitos são, que através dos tempos têm demonstrado
desprezo pela morte. Considera apenas a nossa época, de cuja moleza e
volúpia amargamente nos queixamos. Em todas as ordens sociais, em todos os
graus de fortuna, em todos os níveis etários te saltarão à vista muitos homens
que puseram fim aos seus males com a morte. Acredita no que te digo, Lucílio:
não só não devemos recear a morte, como a ela devemos o termo dos nossos
12 receios! Ouve, pois, com calma as ameaças desse teu inimigo! E embora a
consciência te diga que deves estar confiante, como no processo intervêm
muitos factores de ordem externa, ainda que esperes te seja feita justiça,
prepara-te para a hipótese de vires a ser vítima da maior injustiça! Acima de
tudo nunca te esqueças disto: não dês a menor importância ao aparato
exterior, analisa com cuidado todos os factores em jogo, e verás que, na tua
13 situação, a única coisa temível é o teu próprio temor. Connosco passa-se o
mesmo fenómeno habitual nas crianças (o que bem comprova que nós não
passamos de crianças grandes): elas assustam-se quando vêem mascaradas
as pessoas a quem amam, a quem estão habituadas, com quem brincam. Pois
o que nós temos a fazer é tirar a máscara, não só às pessoas, como às coisas,
14 e restituir a cada uma o seu rosto próprio! Para quê essa exibição de gládios e
fogueiras, essa multidão de carrascos que se agita à tua volta? Despoja-te
desse aparato sob o qual te ocultas para assustar os insensatos: tu és apenas
a morte, aquela morte que ainda há pouco o meu escravo, a minha escrava
afrontaram sem temor! Para quê essa outra exibição, em grande estilo, de
chibatas e mesas de tortura? Para quê todo esse cortejo de instrumentos
especializados cada um em esquartejar a sua parte do corpo, todas essas
máquinas destinadas a reduzir um homem a pedaços? Afasta todo esse
aparato visual que nos deixa mudos de medo, põe termo aos gemidos e aos
ais, aos agudos gritos de dor suscitados pelo tormento: tu és apenas a dor,
aquela mesma dor que o gotoso aguenta sem gritar, que o doente do estômago
suporta enquanto come os mais delicados manjares, que a jovem parturiente
sofre enquanto dá à luz! Se te posso suportar, és uma dor ligeira, se não
posso, serás uma dor breve!
Acho melhor que leias as tuas palavras do que esta minha carta. Verificarás
como aquela morte que nos enche de medo é apenas a última, mas não a
única!
22 Estou a ver o que procuras: queres saber qual a valorosa máxima, qual o
útil preceito filosófico que eu escolhi para inserir nesta carta. Vou enviar-te uma
coisa decorrente da própria matéria que tenho estado a tratar. Epicuro não
censura com menos vigor os homens ansiosos pela morte do que os que dela
54
[NOTA 5] Epicuro, fr. 341 Usener.
55
[NOTA 6] Lucílio júnior, Fr. 3 Morel.
se mostram receosos. Diz ele: “É ridículo correr para a morte por
aborrecimento à vida, quando é o tipo de vida assumido que provoca a vontade
de correr para a morte.”56 E num outro passo escreve: “Que coisa mais ridícula
é o desejo da morte, quando é o medo da morte que enche a vida de
inquietação!”57 Podes juntar a estas, outra situação não menos ridícula:58 é tão
grande a insensatez, direi mesmo a loucura dos homens, que alguns há até
que se suicidam... por medo de morrer!... Se meditares em algum destes
tópicos ganharás força de ânimo para suportar quer a morte quer a vida. Em
ambos os sentidos devemos receber incitamento e firmeza, para que nem
amemos demasiado a vida nem a odiemos em excesso. Mesmo quando a
razão aconselhar a pôr termo à própria vida, nunca uma tal decisão deve ser
tomada impensada e impulsivamente. Um homem corajoso e sábio não deverá
fugir da vida, mas sim sair dela; acima de tudo importa evitar uma paixão que
tem assaltado muita gente: a paixão pela morte. Como em relação a outros
assuntos, também em relação ao fenómeno da morte existe uma inconsiderada
tendência de espírito capaz de dominar frequentemente quer homens
animosos e de carácter firme, quer gente sem força e sem coragem; só que
enquanto os primeiros sentem desprezo pela vida, os outros não lhe suportam
o peso. Muitas pessoas fartam-se de fazer e ver sempre a mesma coisa e são
assim levadas a sentir, não ódio, mas náusea pela vida. Aliás, até a própria
filosofia nos pode conduzir a essa náusea quando nos diz: “Até quando
aguentaremos sempre o mesmo? Nunca faremos outra coisa senão acordar e
adormecer, comer e sentir fome, ter frio e calor?! Coisa alguma tem um termo,
está tudo urdido em círculo, tudo se sucede alternadamente sem parar: a noite
põe termo ao dia, e o dia à noite, o verão vai findar no outono, ao outono
segue-se o inverno, que por seu turno é destronado pela primavera; tudo passa
para regressar novamente. Não realizamos nada de novo, não vemos nada de
novo: e aqui reside por vezes a causa da náusea!” Muitos são os que pensam
que a vida, não sendo dura, é supérflua.
56
[NOTA 7] Epicuro, fr. 496 Usener.
57
[NOTA 8] Epicuro, fr. 498 Usener.
58
[NOTA 9] Epicuro, fr. 497 Usener.
Carta 29
1 Perguntas-me como vai e o que faz o nosso amigo Marcelino. Ele vem
pouco a minha casa, pela pura e simples razão de que tem medo de ouvir a
verdade. Desse perigo, aliás, está ele livre, pois eu acho que se não deve dizê-
la senão a quem está disposto a ouvi-la. Por essa razão se tem posto em
causa se Diógenes, bem como os outros cínicos, que falavam sem peias e
admoestavam indiferentemente todos os passantes, tinham o direito de
proceder assim. Qual o resultado de arengar a surdos ou a mudos, de
2 nascença, ou por doença? “Para quê” — objectarás tu — “poupar as palavras?
São de graça! Eu não posso saber se vou ser útil àquele a quem dou os meus
conselhos, mas serei de certeza útil a alguém se prodigalizar conselhos a
muitos. Sejamos liberais a socorrer os outros: à força de tentar, é impossível
que uma vez por outra não tenhamos sucesso!”
3 Meu caro Lucílio, aí está uma coisa que, em meu entender, um homem de
valor não deve fazer! A proceder assim a sua autoridade como que se dilui e
perde peso em face daqueles que, sendo menos desperdiçada, poderia ajudar
a corrigir-se. Um bom arqueiro não é o que acerta algumas vezes, mas sim o
que só ocasionalmente falha; uma arte não é válida quando atinge o seu
objectivo por acaso. Ora a sabedoria é uma arte: deve atingir um alvo seguro,
escolher discípulos capazes de aperfeiçoamento e afastar-se dos casos
desesperados, embora não de chofre e sem tentar um último remédio, mesmo
sem nenhuma esperança.
4 Eu ainda não desesperei do nosso Marcelino. E um homem que ainda
pode salvar-se, desde que lhe deitemos a mão urgentemente. O perigo é ele
arrastar consigo quem lhe deitar a mão! Marcelino tem um espírito muito
vigoroso, embora com tendência para o mal. De qualquer modo vou arriscar-
5 me a esse perigo e atrever-me a apontar-lhe os seus defeitos. Ele procederá
como de costume, recorrendo às suas pilhérias capazes de fazerem rir mesmo
quem está de luto, troçará de si próprio primeiro, da nossa escola em seguida,
e atalhará de imediato tudo quanto eu lhe disser. Passará em revista as
escolas filosóficas e imputará aos filósofos os subornos que recebem, as
6 amantes, o prazer da mesa; indicar-me-á um que comete adultério, outro que
frequenta a taberna, outro, a corte; apontar-me-á Aríston, o alegre filósofo que
dá as suas lições de liteira, a altura melhor que escolheu para cumprir as suas
obrigações... Tanto que quando alguém perguntou a que escola pertencia,
Escauro respondeu: “Peripatético é que não é, de certeza!”59 Também a esse
homem notável que é Júlio Grecino perguntaram o que pensava de Aríston.
“Não posso dizer, nao sei do que ele é capaz quando anda a pé!”, respondeu,
como se o interrogassem sobre um essedário.”60
59
[Nota 20] Os periparéticos receberam este nome devido ao hábito de Aristóteles, o fundador
da Escola, discutir com os seus discípulos caminhando de um lado para o outro (em grego
). Aríston nunca poderia, por isso ser peripatérico!
60
[NOTA 21] Essedário; gladiador que combatia em carro de guerra (esseda).
sujeitar-me às suas graçolas: ele far-me-á talvez rir, mas pode ser que eu o
faça chorar, e se ele teimar no riso, então eu, tanto quanto é possível quando
as coisas vão mal, alegrar-me-ei por ao menos lhe ter cabido em sorte um tipo
de loucura bem disposta! Esta hilariedade, porém, não dura muito: repara e
verás que em breve espaço de tempo as mesmas pessoas riem e entram em
8 fúria com igual intensidade. Estou decidido a abordar Marcelino e a mostrar-lhe
como ele valia tanto mais quanto menos caía no agrado de muitos. Se não
conseguir eliminar-lhe os vícios, pelo menos refreá-los-ei; não cessarão, mas
tornar-se-ão menos frequentes; ou até talvez cessem se criarem o hábito de
ser menos frequentes. Mesmo este resultado não seria despiciendo, pois em
casos de doença grave um bom período de acalmia é quase equivalente à
saúde.
61
[NOTA 22] Epicuro, fr. 187 Usener.
Carta 32
1 A toda a gente que vem lá das tuas bandas eu pergunto por ti, procuro
saber como vais, onde e com quem costumas dar-te. Não podes enganar-me:
estou na tua companhia. Vive como se todos os teus actos me fossem
relatados, ou melhor, como se eu próprio assistisse a eles. Daquilo que oiço
dizer de ti sabes o que me dá mais satisfação? É não ouvir dizer nada, uma
vez que a maior parte daqueles que eu interrogo ignora o que tu andas a fazer.
2 Aí está uma coisa salutar, não te relacionares com pessoas de índole e
objectivos distintos dos teus. Tenho a convicção de que essas pessoas não
poderiam desviar-te e de que tu manterias os teus propósitos ainda que uma
multidão te rodeasse e procurasse dissuadir-te de o fazeres. Quero eu dizer:
não receio que te façam mudar de direcção, mas temo que te estorvem a
marcha. Dificultarem-nos o avanço é um prejuízo de monta: é como se, apesar
da tremenda brevidade desta vida que a nossa inconstância ainda torna mais
breve, estivéssemos de momento a momento a dar os primeiros passos.
Reduzimos a vida a migalhas, fazêmo-la em bocadinhos... Avança, portanto,
meu caro Lucílio, pensa quanto maior seria a tua velocidade se algum inimigo
corresse atrás de ti, se suspeitasses que um esquadrão de cavalaria se
3 aproximava seguindo a pista dos fugitivos. É isto mesmo o que sucede: estás a
ser perseguido. Anda mais rápido, foge, põe-te em segurança; pensa ainda
como será admirável consumarmos a vida antes de morrer, e podermos depois
aguardar em segurança o que nos restar para viver, sem nada mais
desejarmos já para nós mesmos, gozando a plena posse de uma vida feliz,
uma vida que, embora se prolongue, não poderá ser mais feliz do que já é.
Quando virá o tempo em que tu percebas como o tempo já te não diz respeito,
em que atinjas a mais completa tranquilidade, indiferente ao dia de amanhã,
perfeitamente satisfeito da vida que já tiveste! Sabes o que torna os homens
4
ávidos do futuro? O facto de nenhum conseguir realizar-se! Os teus
progenitores desejaram para ti certos bens; eu, pelo contrário, o que te desejo
é a capacidade de sentir desprezo por tudo aquilo que os outros te desejaram
em abundância! Os desejos dos teus familiares amontoavam pilhas de
moedas, para fazerem de ti um homem rico, esquecidos de que, para te darem
a ti, teriam de tirar a outros. O que eu te desejo é o domínio sobre ti mesmo, é
que o teu espírito, atormentado por pensamentos inconstantes, acabe por se
afirmar e ganhar convicções sólidas, e se sinta contente de si mesmo; é, em
suma, que, uma vez compreendida a natureza do verdadeiro bem (e
5
compreendê-la é possuí-la!), o teu espírito não careça de prolongar a sua
existência. O homem que consegue realizar a sua vida está, de uma vez por
todas, acima de todas as contingências, está desmobilizado é um homem livre!
Carta 37
62
[NOTA 13] A mais nobre: a prática da filosofia; a mais vil: a de gladiador.
63
[NOTA 14] Vergílio, Aen., II, 494.
64
[NOTA 15] Recorde-se que por “ignorância” não deve entender-se meramente a ausência de
conhecimentos, mas antes o estado de quem voluntária ou involuntariamente vive à margem
dos princípios morais estabelecidos pela filosofia, O “ignorante”, ou “insensato”, é a antítese
do ideal do sábio” estóico.
Carta 38
1 Tens toda a razão em exigir que tornemos mais frequente esta nossa
troca de cartas. A conversação é sobremaneira útil, porquanto se grava no
espírito a pouco e pouco; os discursos preparados e pronunciados perante um
auditório, se se revestem de mais aparato, carecem de familiariedade. Digamos
que a filosofia é um bom conselho: ora ninguém dá conselhos em público! Uma
vez por outra pode ser necessário usar um estilo, digamos assim, oratório,
quando se trata de obrigar a decidir-se alguém que está hesitante; mas quando
pretendemos não incutir em alguém a vontade de aprender, mas sim transmitir
ensinamentos, então é preferível recorrer a palavras mais despretensiosas, que
penetram e se gravam na ideia com mais facilidade. De facto, o que é
2 necessário não é a abundância, mas sim a eficácia das palavras. Devemos
distribuí-las como se fossem sementes; ora uma semente, ainda que
minúscula, se cai em terra favorável, multiplica as suas energias e alcança, de
exígua que era, dimensões assaz consideráveis. O mesmo sucede com a
razão. À primeira vista não parece ter grande raio de acção; mas à medida que
vai agindo ganha força. As nossas palavras são breves, mas se o nosso
espírito as acolher favoravelmente, elas enrijarão e florescerão. E como te digo,
a condição das nossas sentenças é semelhante à das sementes: os frutos são
numerosos, as dimensões muito reduzidas! Basta apenas, como já disse, que
um espírito propício as entenda e as interiorize; se assim for, em breve esse
espírito estará por sua vez a produzir muitas outras, mais numerosas mesmo
do que as recebidas.
Carta 40
65
[NOTA 16] Ilíada, III, 222 (sobre a eloquência de Ulisses, o “orador jovem”) I, 249, (sobre
Nestor, o “orador ancião”).
que se possa querer aprender ou imitar? Que juízo se pode fazer sobre o
espírito de homens cujo estilo não passa de palavreado sem ordem e sem
7 freio? Quando corremos por uma ladeira abaixo não conseguimos deter-nos
onde queríamos, mas, levados involuntariamente pela força da velocidade
adquirida, vamos parar mais longe do que desejávamos; do mesmo modo a
elocução apressada não só é incapaz de dominar-se a si mesma, como está
aquém da dignidade da filosofia, a qual deve ir “colocando”, e não “atirando”, o
8 seu discurso, numa marcha calma e segura. “Que dizes? Então a filosofia não
pode ocasionalmente usar um estilo mais arrebatado?” Claro que pode, mas
sem prejuízo da sua dignidade moral, que é comprometida precisamente por
uma eloquência violenta e demasiado brutal. O estilo filosófico deve ter força,
mas sem perder a moderação; deve ser um rio a fluir, e não uma torrente!
Mesmo num orador me custaria a aceitar uma tal velocidade de elocução,
incapaz de retomar o curso das ideias, espraiando-se sem qualquer retenção.
Como poderia, aliás, um juiz seguir a linha da argumentâço, sobretudo se fosse
um homem pouco dotado e ainda inexperiente? Quando o desejo de se exibir
ou a paixão irrefreável do orador o levarem a falar com agitação, mesmo assim
a sua velocidade de dicção não deve ser tanta que impeça o auditório de
9 acompanhá-lo. Só farás bem, portanto, se evitares escutar esses “filósofos” a
quem interessa mais a quantidade do que a qualidade do que dizem. Se tal for
necessário, andarás bem falando como P. Vinício. “E como falava ele?”66
Quando perguntaram a Asélio como achava a dicção de Vínício a resposta foi:
“Arrastada!” Gémino Valério, por seu lado, comentou: “Não percebo como
chamam eloquente a este homem! Não é capaz de dizer três palavras de
10 seguida!...” Mas tu, porque não haverias de preferir falar como Vinício? Por
medo de que te aparecesse algum brincalhão, como aquele que, vendo Vinício
a arrancar as palavras uma a uma como se, em vez de falar, estivesse a ditar,
comentou: “Diz qualquer coisa! Quando te decides a dizer alguma coisa?”67
Quanto ao estilo “em passo de corrida” de Q. Hatério, o mais célebre orador da
sua época, gostaria que qualquer homem sensato o evitasse o mais possível.
Hatério não tinha hesitações, não fazia pausas: começava falar e acabava,
tudo de um fôlego!
66
[NOTA 17] Todo texto, entre estes dois pontos (notas 5 e 6), é pouco seguro!
67
[NOTA 17] Olhar nota 17.
eloquência sem perda do respeito que deves a ti mesmo: terás de assumir um
ar natural, não prestar atenção ao que dizes pois fugindo à tua vigilância, o teu
ímpeto oratório levar-te-á a dizer muita coisa que gostarias de poder não ter
dito. Repito que nunca alcançarás a eloquência sem menosprezo da tua
dignidade. Além do mais é uma arte que exige treino diário, ou seja, em vez de
te ocupares de coisas, passarias a ocupar-te de palavras! E ainda que as
palavras te não faltassem e te ocorressem ao espírito sem o menor esforço da
tua parte, mesmo assim haveria que tomar as rédeas ao discurso, pois a um
sábio tanto convém uma apresentação bastante modesta como uma linguagem
concisa e sem audácias. Para terminar, a súmula dos meus conselhos é esta:
sê lento a falar!
Carta 50
1 Recebi a tua carta muitos meses depois de ma teres enviado. Julguei, por
isso, que seria inútil perguntar ao mensageiro como ia a tua vida. Era preciso
que ele tivesse uma memória de ferro para se recordar. De resto, espero que tu
já vivas de modo tal que, onde quer que estejas, eu possa sempre saber como
vai a tua vida. Em que consiste, de facto, a tua vida senão em te aperfeiçoares
um pouco cada dia, em te libertares de um ou outro erro, em entenderes bem
como os vícios que imputas às coisas estão afinal dentro de ti? Certos vícios,
temos o hábito de atribuí-los aos condicionalismos do lugar e do tempo, mas o
certo é que, para onde quer que vamos, esses vícios nos acompanham. Sabes
2 que Harpaste, a boba da minha primeira mulher, continua em minha casa, pois
o testamento obrigava-me a assumir esse encargo. Pessoalmente não sinto o
menor interesse por estas pobres criaturas; se precisar de um bobo para me
divertir não preciso de ir buscá-lo muito longe: troço de mim mesmo! Ora a
boba perdeu subitamente a vista. Podes não acreditar, mas a verdade é que a
infeliz não percebe que está cega. De vez em quando pede ao escravo que a
3 trata que a leve para outra sala, porque a casa está toda às escuras!. Nesta
mulher faz-nos rir uma coisa que, espero que o entendas, sucede com a
generalidade das pessoas: ninguém se dá conta da própria avareza, da própria
ambição. Os cegos, ao menos, ainda pedem a alguém que os guie; nós
andamos aos tropeções, não queremos quem nos guie, e vamos repetindo:
“Não sou eu que sou ambicioso, o que sucede é que é impossível ter outro
estilo de vida em Roma; eu não sou amante do luxo, a cidade é que me obriga
a toda esta despesa; não é por culpa minha que me deixo encolerizar
facilmente, que ainda não acertei com um rumo certo na vida: isso é apenas o
fruto da juventude”!
4 Para quê iludirmo-nos? O nosso mal não vem do exterior, está dentro de
nós, enraizado nas nossas vísceras, e, como ignoramos o mal de que
sofremos, só com dificuldade recuperamos a saúde. E mesmo que já tenhamos
iniciado o tratamento, quando nos será possível levar de vencida a enorme
virulência de tão numerosas enfermidades? Nem sequer solicitamos a
presença do médico, quando afinal é mais fácil tratar uma doença ainda no
início. Almas ainda frescas e inexperientes obedecem sem tardar a quem lhes
5 indique o justo caminho. Só é difícil reconduzir à via da natureza quem
deliberadamente dela se apartou. Parece que temos vergonha de aprender a
sabedoria! Pelos deuses, se acharmos que é vergonhoso buscar um mestre,
então podemos perder a esperança de obter as vantagens da sabedoria por
obra do acaso. A sabedoria só se obtém pelo esforço. Para dizer a verdade,
nem sequer é necessário grande esforço se, como disse, começarmos a formar
6 e a corrigir a nossa alma antes que as más tendências cristalizem. Mas mesmo
já empedernidas, nem assim eu desespero: com esforço persistente, com
cuidados aturados e intensos, todas as más tendências serão vencidas.
Podemos aprumar toros de madeira, por muito tortos que estejam; por meio de
calor é possível endireitar pranchas curvas e adaptar a sua forma natural às
nossas conveniências. Com muito mais facilidade se pode dar forma à alma,
essa entidade flexível, mais maleável que qualquer líquido. De facto o que é a
alma senão uma espécie de sopro dotado de certa consistência? Ora tu podes
observar como o ar é mais elástico que as outras espécies de matéria
7 precisamente por ser a mais subtil. Não há, pois, Lucílio, motivo para
desesperares de nós pelo facto de a maldade nos dominar, nos possuir mesmo
há tanto tempo: ninguém atingiu a sabedoria sem primeiro passar pela
insensatez! Todos temos o inimigo dentro de casa: aprender as virtudes
8 equivale a desaprender os vícios. Com tanto maior vontade nos devemos
aplicar a emendar-nos: uma vez aprendidos, os bens da sabedoria
permanecem para sempre na nossa posse. A virtude nunca se esquece. As
plantas crescem com dificuldade num solo inadequado, e por isso será fácil
arrancá-las, eliminá-las; mas colocadas num terreno apropriado ganham raízes
9 firmes. A virtude está de acordo com a natureza; os vícios, esses, são como
plantas daninhas e nocivas. As virtudes adquiridas não podem ser extirpadas, é
com facilidade que as podemos conservar; adquiri-las, contudo, é tarefa árdua,
portanto é próprio de um espírito fraco e doente recear experiências
desconhecidas. Obriguemos, portanto, esse espírito a dar os primeiros passos.
Passada esta fase o tratamento deixa de amargar e torna-se mesmo, enquanto
se processa a cura, uma fonte de prazer. Com os remédios do corpo o prazer
só chega depois da cura; a filosofia, pelo contrário, é salutar e saborosa
simultaneamente.
Carta 52
1 Que tendência é esta, Lucílio, que nos desvia do rumo pretendido, que
nos empurra para o ponto donde pretendemos sair? Que debate se desenrola
2 na nossa alma e nos impede de manter uma vontade firme? Andamos à deriva
entre resoluções contrárias; não conseguimos ser fiéis a uma vontade livre,
absoluta, constante. Dirás tu que é prova de insensatez não ter um propósito
contínuo, um interesse permanente. Mas dessa insensatez como e quando nos
conseguiremos libertar? Por si só, ninguém conseguirá sair do remoinho; é
3 necessário alguém que estenda a mão e ajude a pisar terra firme. Diz Epicuro
que certos homens conseguiram atingir a verdade sem qualquer auxílio,
desbravando eles mesmos o seu caminho68; para esses, que se elevaram a si
próprios espontaneamente, vão os seus maiores louvores. Outros há, contudo,
que necessitam de apoio externo: são incapazes de marchar se não tiverem
um guia, mas, tendo-o, avançarão animosamente. Entre os homens deste tipo
Epicuro inclui Metrodoro. São espíritos apreciáveis, embora, por assim dizer,
de segunda escolha. Nós não pertencemos aos espíritos de primeira escolha, e
devemos dar-nos por felizes se formos aceites entre os de segunda. De resto
não se deve menosprezar alguém que se salva graças à ajuda dos outros, pois
4 querer ser salvo não é questão de somenos importância. Além dos
mencionados, poderás encontrar ainda um tipo de homens que igualmente não
deve ser tomado em pouca conta: trata-se daqueles que, por coacção, podem
ser compelidos a seguir o caminho do bem, que necessitam, não já apenas de
um guia, mas sim de alguém que os ampare e mesmo, passe a palavra, que os
force. Estes serão os de terceira escolha. Se quiseres um exemplo deste tipo,
Epicuro indicar-te-á Hermarco69. Se os do tipo anterior mereciam as felicitações
de Epicuro, os deste suscitavam antes a sua admiração; de facto, embora uns
e outros atingissem idêntico objectivo, os últimos são mais de louvar por se
5 defrontarem com matéria mais difícil. Imagina por exemplo que se constroem
dois edifícios iguais, ambos altos e soberbos. Um dos arquitectos tem à sua
disposição um terreno de qualidade onde a obra pode avançar sem problemas.
O outro vê-se a braços com um solo mole e friável e só à custa de imenso
esforço consegue atingir uma base sólida onde assentar as fundações do
edifício. Para o observador, a obra do primeiro*******70 quanto ao segundo, a
6 parte mais importante e difícil do seu trabalho fica oculta. Semelhantemente,
enquanto certos espíritos são abertos e receptivos, outros precisam, como soe
dizer-se, de se modelados à mão, de gastarem nas fundações o melhor do seu
esforço. Por essa razão eu considero mais afortunado o homem que não teve
problemas com o seu carácter, mas acho mais digno de apreço o que teve de
68
[nota 26] Epicuro, fr. 192 Usener.
69
[nota 27] Epicuro, ibidem.
70
[nota 28] Lacuna
vencer os seus defeitos naturais para alcançar a sabedoria, ou melhor, para se
elevar até ela à força de pulso.
7 Fica sabendo que o nosso espírito é deste último tipo: duro e trabalhoso.
Caminhamos através de obstáculos. Lutemos, portanto, sem temer pedir o
auxílio alheio. Perguntarás: “Mas a quem, a quem hei-de pedir auxílio?” Se
queres um conselho, dirige-te aos antigos, que estão disponíveis: para nos
8 auxiliar tanto podemos recorrer aos vivos como aos mortos. De entre os vivos,
devemos escolher não aqueles que têm o verbo fácil e corrente, que repisam
lugares comuns e se exibem em círculos restritos, mas sim os que comprovam
as suas palavras com os próprio actos e ensinam o que devemos evitar sem
nunca serem apanhados a fazer o que condenam. Em suma, escolhe para teu
9 mestre alguém que te mereça admiração pelas acções e não pelas palavras.
Isto não quer dizer que eu te proíba de escutar aqueles filósofos que têm o
hábito de dissertar em público, desde que no contacto com a multidão, eles
tenham por objectivo conseguir o aperfeiçoamento tanto do auditório como de
si próprios, e não sejam movidos por propósitos interesseiros. Não há nada
mais vil do que um filósofo em busca de aplausos! Será que algum doente dá
10 palmas ao cirurgião que o opera? Guardai um silêncio respeitoso, recebei de
bom grado a cura que a filosofia vos dá. Se soltardes exclamações, interpretá-
las-ei como um gemido provocado por sentirdes o dedo na ferida dos vossos
vícios. A vossa intenção é mostrar-vos atentos e abalados pela grandeza do
assunto? Muito bem: mas se a vossa ideia é exprimir um juízo de valor sobre
quem vale mais do que vós, como posso eu permitir-vos os aplausos? Os
discípulos de Pitágoras eram obrigados ao silêncio durante cinco anos: julgas
que, passado o prazo, eles tinham logo licença para falar e aplaudir?
11 Que perfeita loucura a do homem que termina a sua conferência sorrindo
satisfeito entre os aplausos dos ignorantes! Que satisfação te podem dar os
aplausos de gente que tu não tens motivo para aplaudir? Fabiano costumava
dissertar em público, mas era escutado com respeito. Se por vezes se fazia
ouvir o aplauso da assistência, tal aplauso era provocado pela elevação da
12 matéria, e não pela composição brilhante e harmoniosa do discurso. Tem de
haver uma diferença entre os aplausos no teatro e na escola: mesmo a aplaudir
há que guardar a justa medida. Se bem observarmos, os mais pequenos
pormenores podem ser elucidativos, em qualquer situação. Por exemplo, o
mínimo gesto pode servir de indício da moralidade das pessoas. Assim, o
homem depravado denuncia-se pelo modo de andar, pelos gestos, por um
aparte ocasional, pelo levar do dedo à testa, pelo revirar dos olhos; o aldrabão
trai-se pelo modo de rir, o louco, pelo rosto e pelas atitudes. Todos estes
defeitos se notam por certas marcas perceptíveis: se quiseres conhecer o
13 carácter de um homem observa como ele distribui ou provoca os aplausos. Em
todo o auditório estalam as palmas ao filósofo, o seu vulto perde-se entre a
multidão de admiradores entusiastas: pois bem, mais do que admiradores, são
autênticas carpideiras quem o está aplaudindo. Deixemos esses clamores para
aquelas artes que têm por finalidade agradar às massas: a filosofia tem de ser
14 adorada em silêncio. Uma vez por outra pode permitir-se aos jovens que
cedam ao impulso, por serem incapazes de ficar em silêncio. Este tipo de
aplauso pode servir de incitamento à própria assistência e de estímulo ao
espírito dos jovens. Mas importa que eles se entusiasmem com a matéria, não
com o estilo do discurso; de outro modo a eloquência, suscitando o interesse
não pelo assunto mas por ela própria, só poderá ser-lhes nociva.
15 Por agora, ponto final nesta questão. O modo de falar da filosofia em
público, aquilo que o filósofo se pode permitir em público e ao público, é
assunto que necessita de uma explanação completa e longa Que a filosofia se
degradou ao entregar-se às massas, disso não há qualquer dúvida. Poderá,
todavia, revelar-se no seu santuário próprio desde que para tanto se confie aos
sacerdotes e não aos vendilhões!
Carta 55
71
[NOTA 8] Sobre a gruta napolitana v. Estrabão 246 b c.
ficaria reduzida a fragmentos?72 Não, não faço, porque me parece laborar em
8 erro quem faz uma afirmação destas. Tal como uma chama não pode ser
comprimida (pois se escapa, e rodeia o objecto que tenta pressioná-la); tal
como o ar não é afectado por golpes ou estocadas, não se deixa sequer cortar,
antes imediatamente rodeia o objecto que tenta repeli-lo; assim também a
alma, que é feita de matéria extremamente ténue, não pode ser coagida nem
esmagada dentro do corpo: graças à sua subtileza, consegue escapar-se
através da massa que a comprime. O raio, mesmo que reluza com violência
por um largo espaço, acaba por escapar-se através de uma minúscula
abertura; a alma, ainda mais ténue do que o fogo, consegue escapulir-se seja
9 através de que corpo for. Resta agora é saber se a alma pode ser imortal73. Por
agora fica-te com esta certeza: se ela sobrevive ao corpo, então não há modo
algum de destruí-la, pois nem a imortalidade admite reserva, nem àquilo que é
eterno se pode fazer o mínimo mal.
72
[NOTA 9] Séneca não atribui nominalmente esta teoria a nenhum estóico em particular; o
passo é inserido entre os fragmentos de Crisipo por v. Arnim (S. V. F., II 820)
73
[NOTA 10] Cleantes admite a imortalidade de todas as almas (S. V. F., II, 811), Crisipo apenas
das dos sábios (ibid., 810, 811). Tal imortalidade, porém, apenas dura até à ocorrência da
conflagração universal. - Sobre a posição do estoicismo perante o problema da
imortalidade da alma v. René Hoven, Stoicisme et stoiciens face au probléme de l’au-delá, Paris
1971 (pp. 107 ss.: a posição de Séneca)
Carta 58
1 Até que ponto é grande a nossa pobreza, direi mesmo a nossa indigência
vocabular, nunca o tinha compreendido tão bem como hoje. Estávamos
casualmente falando de Platão: mil noções se nos depararam carentes, mas
desprovidas, de um vocábulo apropriado; em contrapartida há muitas outras
que tiveram nome, caído em desuso devido ao nosso gosto requintado. Ora ter
2 gostos requintados no meio da indigência é insuportável! Aquele insecto que
atormenta os rebanhos e os faz dispersar por todo o vale, chamado em grego
(“moscardo”), dava-se antigamente o nome de asilus. Do facto há o
testemunho de Vergílio:
5 Não te falo disto com tanta minúcia para que fiques a saber quanto tempo
eu perdi na escola do gramático, mas sim para que te dês conta da quantidade
de vocábulos, usados por Énio e Ácio, que se tornaram obsoletos; pois se
mesmo na obra de Vergílio, que sempre tem continuado a ser lida, já alguns
termos há que passaram de moda!
74
[NOTA 11] Vergílio, Geor., III, 146-50.
75
[NOTA 12] Vergílio, Aen., XII, 708-9.
76
[NOTA 13] Vergílio, Aen., XI, 467.
77
[NOTA 14] Cícero, frg. inc. K 10 p. 412 Mueller.
escritor eloquente, elegante e de estilo claro, mesmo para o nosso gosto
sofisticado. Pois que havia eu de fazer, Lucílio amigo? De que outro modo
traduzir o grego , essa noção imprescindível que, por natureza, constitui
o fundamento de tudo o mais? Peço-te, portanto, que me consintas o uso
daquele vocábulo. De resto farei o possível para usar com parcimónia a vénia
que me irás conceder; talvez mesmo me contente com o simples facto de ma
7 dares. Que me adiantará, aliás, a tua benevolência se tenho já aqui algo
impossível de dizer em latim, facto que originou a minha ira contra a nossa
língua? Maior será a tua condenação da pobreza vocabular romana quando
souberes que é uma única sílaba aquilo que eu não consigo traduzir. Queres
saber qual é? (“o ser”). Posso parecer-te homem de fraco engenho: há
um recurso imediato, posso verter esse conceito pela expressão quod est
(“aquilo que é”). Mas é evidente a diferença entre as duas: sou obrigado a usar
um verbo em vez de um nome. A necessidade obriga, porém, a dizer “aquilo
que é”!
15 Alguns estóicos são de opinião que o género primeiro seja o algo (quid),
pelo motivo que passo a dizer-te80. “Na natureza” - afirmam eles - “há coisas
que existem e coisas que não existem; ora mesmo estas estão compreendidas
na natureza. É o caso dos produtos da imaginação, tal como os Centauros e os
Gigantes, e tudo o mais que, originado por falsos conceitos, acaba por obter
uma certa imagem, embora desprovida de substância.”81
78
[NOTA15] V. infra § 15.
79
[NOTA 16] Alma = animus; princípio vital = anima.
80
[NOTA 17] Cf. S. V. F., II, 329, 333.
81
[NOTA 18] Este passo figura em S. V. F., II, com o número 332.
a impor ao quadro; essa configuração, a qual me guia e determina, e da qual
se gera a minha imitação, é a “ideia”. Ora bem, a natureza possui modelos
semelhantes, em número infinito, da espécie dos homens, da dos peixes, da
das árvores; segundo esses modelos conforma-se tudo quanto é susceptível
de vir a existir.
20 Em quarto lugar temos o eidos .82 Atenta com cuidado o que seja o
eidos, e, se a coisa te parecer difícil de entender, zanga-te com Platão e não
comigo. De resto, qualquer pensamento abstrato tem sempre a sua dificuldade.
Utilizei há pouco o exemplo do pintor. Se este quisesse representar Vergílio
numa pintura, olharia para o próprio Vergílio. A “ideia” era o rosto de Vergílio, o
modelo do futuro quadro; a forma que dela o artista extrai e impõe ao seu
trabalho será o eidos. Não entendes qual é a diferença? A ideia é o modelo, o
eidos é a forma deduzida do modelo e imposta ao quadro; a ideia é aquilo que
21
o artista imita, o eidos, aquilo que ele faz. Uma escultura tem uma determinada
forma: é o seu eidos. O próprio modelo que o artista, olhando-o, imprime à
estátua, tem também uma determinada forma: é a sua ideia. Se preferes uma
outra explanação, dir-te-ei que o eidos está na própria obra, enquanto a ideia é
exterior à obra, e não apenas exterior, mas ainda pré-existente à obra.
82
[NOTA 19] Literalmente é o “aspecto exterior de uma coisa”, a sua “forma” (cf. F. E.
Peters, Termos filosóficos gregos, Lisboa, F. C Gulbenkian, pp. 62 ss.).
83
[NOTA 20] O vazio (inane, ) e o tempo (tempus, ) constituíam para os estóicos,
juntamente com o espaço (locus, ) e o dito (dictum, ), as quatro espécies de seres
incorpóreos, cf. S. V. F., II, 331.
84
[NOTA 21] Heraclito, fr, 49 a Diels-Kranz (cf G. S. Kirk-J. E. Raven, Os filósofos pré-socráticos,
Lisboa, F. C. Gulbenkian, 2, ad., pp. 198 ss).
que é o corpo, e a temer morrermos um dia quando cada momento é a morte
do estado imediatamente anterior. Dispõe-te, portanto, a não recear que ocorra
24 um dia aquilo que continuamente está ocorrendo. Falei do homem, matéria
fluida, caduca, exposta a todos os imprevistos: o próprio mundo, que é eterno e
indestrutível, muda também, não permanece idêntico. Embora continue, de
facto a conter em si tudo quanto desde sempre conteve, contém-no de uma
maneira diferente do que antes, ou seja, alterou a ordem respectiva.
85
[NOTA 22] O nome Piarão (em grego ) provém do adj. (platýs) “largo,
corpulento”.
creio, que Platão ficou a dever aos seus rigorosos cuidados com a saúde o
facto de ter morrido no dia do seu aniversário, pelo que completou
rigorosamente oitenta e um anos de vida. Essa a razão por que alguns
astrólogos, de passagem por Atenas, fizeram sacrifícios ao filósofo falecido na
convicção de que ele excedera o destino normal do homem, porquanto a sua
idade atingira o mais perfeito dos números, obtido pela elevação de nove ao
quadrado. Não duvido de que tu possas reduzir alguns dias a este total, e
32 passar sem qualquer sacrifício! A sobriedade pode prolongar a vida até à
velhice, o que, se por mim não o considero desejável, de modo algum acho de
rejeitar. De facto será agradável convivermos connosco o mais possível, desde
que nos tenhamos tornado dignos de proporcionar uma companhia aprazível.
Para que a vida seja suficiente, o que conta não são os anos nem os dias,
mas a qualidade da alma. Eu já vivi o suficiente, meu caro Lucílio. Posso
aguardar a morte plenamente saciado.
Carta 63
86
[NOTA 1] Homero, Ilíada, XIX, 228-9: “É preciso enterrar sem mais hesitações o morto,
depois de o chorar por um dia apenas.” - Id., ibid., XXIV, 602-4: “Mesmo Níobe de belos
cabelos não descurou a alimentação, ela que viu morrer na sua casa doze filhos, seis raparigas
e seis rapazes na flor da idade.”
proporciona uma doce satisfação; quando os tinha comigo sabia que os havia
de perder, agora que os perdi é como se os tivesse sempre comigo!
Age com equidade, caro Lucílio, e não interpretes mal os benefícios que a
fortuna te concedeu: ela roubou-te um amigo, mas fora ela quem to tinha dado.
8 Gozemos intensamente a companhia dos nossos amigos, até porque não
podemos saber por quanto tempo o faremos. Pensemos também quantas
vezes os deixámos para partir em longas viagens, quantas vezes estivemos
sem os ver embora morando na mesma terra: compreenderemos deste modo
que, mesmo estando eles vivos, não aproveitámos a sua companhia a maior
9 parte do tempo. E que dizes tu daqueles que não ligam importância aos amigos
vivos, e os pranteiam exageradamente quando morrem? Parece que só têm
amizade pelos defuntos! Por isso mesmo os deploram veementemente, com
medo que a sua amizade por eles possa ser posta em dúvida, e daí esses
10 sinais de afecto já fora de horas. Se nós temos ainda outros amigos, julgá-los
compensação insuficiente pela perda de um só, equivale a desmerecer e
desconsiderar a sua amizade; se não os temos, então nós mesmos é que, mais
do que a fortuna, fomos cruéis para connosco, pois se a fortuna nos privou de
11 um amigo, nós fomos incapazes de fazer mais amizades. De resto, quem não
foi capaz de fazer mais do que um amigo, pouca amizade tinha certamente
para oferecer! Um homem a quem roubaram a sua única túnica e se põe a
autolamentar-se em vez de procurar os meios de se defender do frio, tentando
encontrar algo com que se cubra - não te parece que atingiu o auge da
insanidade? Tinhas um só amigo, acompanhaste o seu funeral; pois procura
outro a quem dês a tua amizade. Encontrar um novo amigo é mais importante
do que chorar o desaparecido.
12 O que vou dizer-te agora é uma verdade mais do que rebatida, mas nem
por andar em todas as bocas eu deixarei de a repetir: quando deliberadamente
não pomos nós um termo à nossa dor, o tempo o fará por nós. E nada há mais
inconveniente para um homem avisado do que deixar o cansaço servir de
remédio à dor. Prefiro que sejas tu a afastar de ti a dor do que seja ela a
afastar-se de ti. Cessa quanto antes de te entregar a manifestações de tristeza
13 que, de um modo ou de outro, nunca poderás prolongar indefinidamente. Os
antigos romanos instituíram para as mulheres um período de luto de um ano,
não para que levassem um ano a chorar, mas para não chorarem ainda mais
tempo.87 Para os homens não há prazo marcado pela lei, porque nenhum prazo
conviria à sua dignidade. De todas essas pobres mulheres que só a custo se
consegue afastar da pira fúnebre, arrancar de junto ao corpo do ente querido -
indica-me uma só cujas lágrimas tenham durado um mês inteiro! Coisa alguma
se torna aborrecida mais depressa do que a dor; uma dor recente suscita quem
a console e provoca a simpatia dos outros, enquanto uma dor demasiado
prolongada incorre no ridículo, e com razão, porquanto ou é fingida ou é idiota!
87
[NOTA 2] V. Ovídio, Fast., 1, 35-6: Durante idêntico espaço de tempo ( 10 meses) deve a
viúva manter na sua casa os sinais de luto após o funeral do marido”; cf. Id., ibdt, III, 134.
dor! Hoje, no entanto, condeno a minha atitude passada, e compreendo que a
principal causa do meu excessivo pranto foi o nunca me ter passado pela ideia
que ele pudesse morrer antes de mim. Ocorria-me apenas que ele era mais
novo, muito mais novo do que eu - como se o destino se preocupasse em
15 respeitar a ordem de idades! Mais uma razão para continuamente meditarmos
na nossa condição de mortais, nossa e daqueles a quem amamos. O que eu
deveria ter feito era dizer: “Sereno é mais novo do que eu, mas isso que tem?
Deverá morrer depois de mim, mas também pode morrer antes.” Não o fiz, e
assim o súbito golpe da fortuna encontrou-me desprevenido! Neste momento
medito em que tudo é mortal e que a mortalidade não obedece a qualquer lei; o
16 que é possível, tanto é possível hoje como em outro dia qualquer. Pensemos,
caro Lucílio, que em breve também nós iremos para onde foi agora, para
tristeza nossa, esse nosso amigo; até pode suceder que tenham razão os
sábios e haja um lugar onde todos iremos residir após a morte: se assim for,
esse amigo que julgamos ter morrido, limitou-se a partir para lá à nossa frente!
Carta 65
1 O meu dia de ontem foi repartido entre mim e a falta de saúde: a parte da
manhã coube-lhe a ela, de tarde pude dispor de mim próprio. Para começar
experimentei as minhas forças através da leitura; vendo que aguentavam,
atrevi-me a exigir mais delas, ou melhor, a deixá-las à vontade. Escrevi alguma
coisa, com mais cuidado mesmo do que é meu costume, quando luto com um
assunto difícil em que não quero dar-me por vencido, até que apareceram uns
amigos que me queriam obrigar a, doente como estava, não abusar de mim
mesmo.
88
[Nota 4]: Isto é, são sucessivamente discutidas as teses do estoicismo (§§2-3), de Aristóteles
(§§4-6) e de Platão (§§7-10) sobre o problema das causas.
89
V. S. V. F., I, 85 (= II, 300), II, 310.
90
Aristóteles, Metafísica, IV, 1013 a 24-35. — Sobre o (eîdos) cf. supra Carta 58, 20 ss.
5 Já te vou explicar o que isto significa. O bronze é a primeira causa da
estátua, pois esta nunca poderia ter sido feita se não existisse algo capaz de
ser fundido e moldado. A segunda causa é o artista, porquanto o bronze nunca
tomaria a forma de estátua sem ser trabalhado por mãos hábeis. A terceira
causa é a forma já que uma estátua não poderia ser rotulada de “doryphoros”
ou de “diadumenos”91 se não apresentasse expressamente as respectivas
características. A quarta causa é a finalidade com que a estátua foi feita; se
não houvesse uma finalidade não haveria estátua. E o que se entende por
6 finalidade? É o propósito que moveu o artista, o fim que procurou atingir: pode
ser o dinheiro, se fez a estátua para a vender, a glória, se trabalhou para obter
fama, o sentimento religioso, se a fez para a doar a um templo. Entre as
causas de uma obra deve, portanto, figurar aquilo que a motivou, a menos que
se entenda que não é causa da obra aquele elemento sem o qual ela nunca
teria sido feita.
91
Representações plásticas de um homem segurando uma lança (230), ou com a cabeça
cingida por uma fita ou diadema (230).
92
Cf. supra carta 58, 19.
dada a sua bondade, tudo o que é bom é digno do seu apreço; por isso criou o
mundo tão bom quanto lhe foi possível.”93
Diz agora de tua justiça qual a opinião que te parece a mais verossímil,
não a mais verdadeira, pois esta questão está tão acima de nós como a própria
verdade.
15 Expõe a tua opinião ou então, o que será mais fácil para ti neste tipo de
matérias, diz que não és capaz e manda-me prosseguir a mim. Dirás tu: “Mas
que prazer é o teu em perder tempo com tais questiúnculas que te não libertam
de nenhuma paixão nem de nenhum desejo?”
93
Cf. Platão, Timeu, 29 d-e.
94
S. V F., II, 338.
95
Cf. S. V. F., II 323.
96
V. S. V. F., 1, 85; II, 347, 348.
A verdade é que eu me ocupo de temas mais válidos97, que trato daquilo
que me tranquiliza o ânimo, que me observo a mim mesmo antes de observar o
16 universo. Mas mesmo nestas “questiúnculas” eu não perco tempo, como tu
julgas. Se nós não as dividirmos até ao infinito, ao ponto de tombar numa inútil
subtileza, elas elevam e sublimam o espírito, o qual, como que oprimido por um
pesado fardo, deseja libertar-se e regressar aos elementos de que já fez parte.
De facto este nosso corpo é para o espírito uma carga e um tormento; sob o
seu peso o espírito tortura-se, está aprisionado, a menos que dele se aproxime
a filosofia para o incitar a alçar-se à contemplação da natureza, a trocar o
mundo terreno pelo mundo divino. Esta a liberdade do espírito, estes os seus
voos: subtrair-se ocasionalmente à prisão e ir refazer as forças no firmamento!
17 Tal qual como os operários especializados num trabalho minucioso e
fatigante para os olhos, quer pela atenção requerida, quer pela luz deficiente e
fraca em que laboram, vêm de vez em quando à rua e, passeando por qualquer
lugar adequado ao lazer, deleitam os olhos com a luz do dia, assim também o
espírito, encerrado nesta morada obscura e triste, procura, sempre que pode, o
ar livre e repousa através da contemplação da natureza.
18 Quer o filósofo, quer o candidato a filósofo, estão colados ao seu corpo,
mas a melhor parte de si mesmo está liberta e dirige as suas meditações para
as alturas. Tal como um soldado arregimentado, considera a própria vida como
um serviço a cumprir; o seu carácter é tal que não sente pela vida nem amor
nem ódio, e sofre a sua condição de mortal embora sabendo que existe uma
existência Superior.
20 Donde vem toda esta luz? É fogo, ou algo mais luminoso do que o fogo?
Eu não hei-de investigar estas questões? Hei-de ignorar donde provim, se o
mundo apenas uma vez o vejo ou se nascerei mais vezes? E para onde irei
depois? Qual o lugar que acolherá a minha alma liberta das leis da humana
97
Passo corrupto, objecto de variadas propostas de saneamento. A tradução corresponde à
conjectura potiora de Hense (em vez do absurdo peiora dos mss.).
servidão? Queres proibir-me o acesso ao firmamento, por outras palavras,
pretendes que eu viva com os olhos no chão?98
21 Eu sou algo mais, eu nasci para algo mais do que para ser escravo do
meu corpo, a quem não tenho em maior conta do que a uma cadeia em torno à
minha liberdade. Este corpo, oponho-o como barreira aos golpes da fortuna, e
não consinto que através dele algum golpe chegue até mim. Se algo em mim
pode sofrer ataques é o corpo; mas neste desconfortável domicílio habita um
22 espírito livre. Nunca esta carne me compelirá ao medo, ou a alguma hipocrisia
indigna de um homem de bem; nunca serei levado a mentir por atenção a este
frágil corpo. Quando chegar a altura romperei a minha ligação com ele. E
mesmo agora, enquanto estamos colados um ao outro, não somos
companheiros com direitos iguais: o espírito arroga para si todos os direitos. O
desprezo pelo próprio corpo é a certeza da liberdade.
98
Sobre a importância que esta classe de problemas revestia para Séneca veja-se o prefácio ao
livro I das Naturales Quaestiones.
99
Não deverá ver-se aqui uma indecisão de Séneca ou um mal entendido eclectismo, mas
apenas a obediência a um princípio da pedagogia estóica que, desde Crisipo, aconselhava a
não contrariar frontalmente as convicções prévias dos discípulos, mas antes a, partindo destas,
e reinterpretando-as, levá-los gradualmente às posições da Escola (v. I. Hadot, Seneca und die
griechisch-römische Tradition der Seelenleitung, Berlin, 1965, p. 83).
100
A mesma ideia quase pelas mesmas palavras nas Troianas, 407-8: “Queres saber onde
ficarás depois da morte? Lá onde está o que ainda não nasceu!”
Carta 69
1 Não me agrada que andes sempre a mudar de terra, a saltitar de lugar
para lugar, primeiro porque tão frequentes mudanças denotam um ânimo
instável: nunca te sentirás firme na tua vida privada se primeiro não pões fim a
essas deambulações indecisas! Se queres dominar o teu espírito começa por
2 deter as peregrinações do teu corpo. Depois, porque os remédios são
sobretudo eficazes se aplicados com continuidade: a tranquilidade, o
esquecimento do teu tipo anterior de vida não admitem interrupções. Deixa que
os teus olhos desaprendam, deixa que os teus ouvidos se acostumem a
princípios mais sãos. De cada vez que te deslocares, encontrarás no trajecto
3 muita coisa capaz de reavivar os teus desejos. Quem se esforça por libertar-se
de uma paixão deve evitar tudo quanto lhe lembre a pessoa amada (pois nada
recrudesce tão rapidamente como o amor); do mesmo modo fará quem deseje
libertar-se dos desejos que antes o inflamavam, afastando os olhos e os
4 ouvidos dos seus interesses passados. A paixão é fácil de reacender. Onde
quer que lance o olhar não terá dificuldade em descobrir alguma vantagem no
tipo de ocupação em que se comprazia. Nenhum mal existe que não ofereça a
sua compensação! A avareza promete a posse de riquezas, a libertinagem
acena com as mais diversas espécies de prazer, a ambição alicia com a
5 púrpura, os aplausos, o acesso ao poder e a tudo a que o poder dá lugar. Os
vícios tentam-te oferecendo paga em troca; na vida privada terás de prescindir
de salário! Ainda que vivesses um século, a custo conseguirias refrear por
completo os vícios que uma duradoura permissividade deixou desenvolver; pior
ainda se a tal tarefa apenas dedicares os intervalos de uma existência já tão
curta! Somente uma aturada e atenta vigilância permite que levemos à
6 perfeição aquilo que nos propomos realizar. Se tu estás mesmo disposto a
escutar os meus conselhos, então medita sem descanso até te habituares a
aceitar a morte, ou mesmo, se tanto for necessário, a te antecipares a ela. Que
a morte venha ter connosco ou que vamos nós ao seu encontro, não tem a
mínima importância. Há quem diga: “A coisa mais bela é morrer de morte
natural!” Convence-te de que esta frase é um absurdo enunciado de um
espírito o mais inepto possível. Ninguém morre senão de morte natural! Em
outra coisa ainda deverás meditar: ninguém morre senão no seu próprio dia.
Do teu tempo, nunca perderás um segundo, pois todo o tempo que sobra já te
não pertence!
Carta 72
101
[NOTA 16] O livro antigo era um rolo de papiro, ou pergaminho, que se ia desenrolando à
medida que prosseguia a leitura; daí a metáfora.
contratempos provindos do exterior, tal como um homem de físico robusto não
está livre de um furúnculo ou de uma ferida superficial; em profundidade,
6 porém, não há mal que o atinja. A diferença existente, insisto ainda outra vez,
entre o homem que atingiu a plenitude da sabedoria e aquele que ainda lá não
chegou é a mesma que se verifica entre um homem são e um convalescente
de doença grave e prolongada. Para este a diminuição da intensidade da
doença já quase significa saúde mas, se não se precaver, o mal rapidamente
se agrava e volta à primitiva forma; o sábio, em contrapartida, nem pode
retroceder, nem sequer pode avançar mais na via da sapiência. A saúde do
corpo está à mercê do tempo e o médico, se a pode restituir, não a pode
garantir perpetuamente, e tanto assim é que com frequência o mesmo doente o
volta de novo a chamar; a saúde da alma, essa - obtém-se de uma vez por
7 todas - e totalmente! Dir-te-ei agora o que significa uma alma sã: é cada um
contentar-se consigo mesmo, ter confiança em si próprio, saber que todos os
votos feitos pelos homens, todos os benefícios que trocam entre si não têm a
mínima importância para a obtenção da felicidade. Uma coisa passível de
acréscimo não é uma coisa perfeita; o homem que quer vir a possuir uma
permanente alegria, tem de fruir apenas do que efectivamente lhe pertence.
Ora todos os bens a que o comum dos mortais aspira são, de uma forma ou
outra, transitórios, pois de coisa alguma a fortuna nos permite a posse para
sempre. Mesmo esses bens transitórios, contudo, podem ser-nos agradáveis
se estiverem sujeitos ao controlo e à influência da razão; apenas a razão pode
tornar recomendáveis esses bens, cujo usufruto se revela nocivo a quem os
8 ambiciona por si mesmos. Átalo usava habitualmente deste símile: “Já viste
com certeza um cão de boca aberta, pronto a agarrar os bocados de pão ou de
carne que o dono lhe atira? Cada bocado que apanha engole-o logo todo
inteiro, e novamente abre a goela na esperança do mais que há-de vir.
Connosco passa-se o mesmo: pomos imediatamente de lado tudo quanto a
fortuna nos atira para satisfação das nossas expectativas, e ficamos ansiosos e
embasbacados à espera de agarrar a próxima dádiva!” Atitude semelhante
nunca o sábio a tem: o sábio goza de plenitude; é com plena segurança que
recebe ou restitui os dons da fortuna; usufrui de uma alegria inexcedível,
9 permanente, sua, para sempre. Um homem dotado de boa vontade, já algo
avançado na prática da filosofia mas muito distante ainda da plenitude, pode
deixar-se afectar pelas alternâncias da sorte, sentindo-se umas vezes elevado
até ao céu e outras completamente prostrado por terra. Quanto àqueles que
por completo são destituídos de estudos filosóficos, a sua queda no abismo
não conhece limite: tudo se passa como se tombassem no caos de Epicuro, no
10 vazio sem fronteiras!102 Há ainda um terceiro género de homens: o daqueles
que se iniciaram na filosofia mas ainda a não dominam; têm-na, todavia, como
meta já visível, já - passe a expressão - ao alcance da mão! Este tipo de
homens já se não deixará abater, já avançou demais para retroceder: eles não
11 pisam ainda a terra firme, mas já se encontram dentro do porto! Dado que há,
como vimos, uma tão grande diferença entre o tipo superior e o tipo inferior de
homens; dado que mesmo o tipo intermédio está sujeito às suas flutuações,
nomeadamente ao perigo gravíssimo de regressar aos hábitos nocivos, impõe-
se esta conclusão: nós não devemos ceder às nossas ocupações! Temos de
nos livrar delas; se as deixarmos tomarem conta de nós, então, quando umas
102
[NOTA 17] Epicuro, fr. 270, 272, 273 Usener.
cessarem outras virão tomar o seu lugar! Façamos por as recusar
liminarmente; melhor é não começar a praticá-las do que ter de pôr-lhes fim
abruptamente!
Carta 74
10 Quem pretender ser feliz tem de admitir que não há outro bem senão o
bem moral. Se, em vez disto, considerar a possibilidade de existir outro bem,
começará por ajuizar mal da providência, por um lado porque os homens justos
sofrem frequentes atropelos, por outro, porque o espaço de tempo que nos é
concedido nesta vida é curto, é mesmo ínfimo se o compararmos à vida do
11 universo. Desta pessimista constatação resultará uma interpretação malévola
das intenções divinas; queixamo-nos de não viver sempre, de nos caber em
sorte uma vida limitada, incerta, transitória. A consequência é nós não
desejarmos viver nem morrer. Domina-nos o ódio à vida e o medo da morte! Os
nossos propósitos andam à deriva e não há felicidade que nos possa contentar.
O motivo é simples: não conseguimos atingir aquele bem imenso e insuperável
no qual necessariamente a nossa vontade se detém pois não há lugar algum
12 para lá do ponto supremo. Queres tu saber por que motivo a virtude não carece
de coisa alguma? Porque se satisfaz com o que tem à mão, sem ambicionar o
que está fora do seu alcance: tudo quanto é bastante lhe parece
suficientemente grande. Imagina agora que não pensas assim e verás como o
sentimento de solidariedade para com familiares e amigos logo começa a
vacilar, uma vez que quem deseja praticá-la tem de sujeitar-se a muitas
situações daquelas que o vulgo considera males e arriscar muito do que temos
13 como bens. Desaparece a coragem, a qual obriga forçosamente a pôr em risco
a própria vida; desaparece a grandeza de alma, a qual só pode manifestar-se
quando menosprezamos como coisas sem valor aquelas que o vulgo imagina
serem as mais importantes; desaparece a gratidão e o dever de retribuir um
favor quando receamos o esforço a dispender, ou julgamos que há algo
superior ao dever de lealdade, em suma, quando não tendemos para o bem
supremo.
14 Mas, deixando de lado esta questão, teremos de admitir que, ou aquilo a
que chamamos bens” não o são de facto, ou, se o forem, então o homem é
mais feliz do que a divindade, pois aquilo a que o comum dos homens dá valor
não tem a mínima utilidade para a divindade; esta, efectivamente, está acima
do desejo sexual, do prazer da mesa, da riqueza, de tudo, enfim, que tenta e
arrasta consigo o homem, e só o homem, com uma vil forma de prazer.
Consequentemente, ou teremos de acreditar que há bens inacessíveis à
divindade, ou então, o facto de a divindade deles prescindir nos servirá de
15 prova de que não são bens. Acrescente-se ainda que muitos dos
pretensamente chamados “bens” são gozados pelos animais mais
intensamente do que pelo homem. Aqueles consomem o alimento com maior
apetite, não estão tão sujeitos à fadiga sexual; a sua força muscular é mais
intensa e constante: logicamente os animais serão muito mais felizes do que o
homem! Na realidade eles passam a vida ignorantes da maldade e do engano;
gozam os seus prazeres, e obtêm-nos mais intensa e facilmente, sem qualquer
restrição imposta pela vergonha ou pelo arrependimento. Pensa tu, agora, se
16 realmente se pode chamar “bem” a uma coisa relativamente à qual o homem é
superior a deus e o animal é superior ao homem!
26 “Que dizes? Então não somos mais felizes quando nos rodeia um grande
número de amigos e filhos?” Como, mais felizes? Repara que o sumo bem não
padece diminuição ou acréscimo; mantém a sua própria grandeza seja qual for
o comportamento da fortuna. Quer um homem atinja uma extrema velhice quer
se extinga antes de chegar a ela, a grandeza do sumo bem é a mesma,
27 embora a duração da vida seja diversa. Podes desenhar um círculo maior ou
menor, a diferença entre eles está na área, mas não na forma; e mesmo que
conserves algum tempo um dos desenhos e apagues imediatamente o outro
alisando a areia em que o traçaste, ambos tiveram precisamente a mesma
forma. Uma linha recta não se avalia em termos de comprimento, de
quantidade, de duração, porquanto é impossível fazê-la encolher ou distender-
se. Abrevia quanto quiseres uma vida regida pela moral e, em vez de durar um
século, faz com que se limite a um único dia que nem por isso ela será menos
28 moral! Nuns casos a virtude tem oportunidade de se espraiar, governando
países, cidades ou províncias, emitindo leis, cultivando amizades, exercendo
os seus deveres para com os familiares, os filhos; noutros casos move-se
dentro de estreitos limites impostos pela pobreza, o exílio, a perda da família;
não se torna, contudo, menor por trocar uma alta posição social por uma
humilde, um cargo governativo pela vida privada, o vasto espaço da acção
29 pública pelo estreito limite da própria casa, dum mísero cantinho! A virtude será
igualmente grande mesmo quando reduzida a si mesma e privada de contactos
exteriores. Não perde por isso de forma alguma o seu ânimo elevado e amplo,
a sua inigualável prudência, a sua indefectível justiça. Consequentemente, em
qualquer dos casos o seu grau de felicidade será o mesmo; tal felicidade reside
num único ponto: o próprio espírito; e assim obtém a estabilidade, a grandeza,
a tranquilidade, coisas impossíveis de obter sem o conhecimento quer da
condição divina, quer da condição humana.
103
[NOTA 1] Tudo quanto, em sentido genérico, se relaciona com a “gesticulação” era tratado
pela retórica clássica na rubrica actio “acção”, v. Quintiliano, III, 3, 1-3 e, sobretudo, todo o
capítulo 3 do livro XI.
palavras? Dá-te por satisfeito se estiveres à altura dos teus deveres. Quando
aprenderás as grandes lições da filosofia? Quando interiorizarás a lição
aprendida de modo tal que nunca mais a esqueças? Quando porás à prova a
teoria? Na filosofia não basta, como é o caso nas outras ciências, confiar na
memória, devemos pô-la à prova através da acção. Para ser feliz não basta
conhecer a teoria, há que pô-la em prática.
8 “Que estás dizendo? Abaixo do nível superior não existe qualquer
gradação? Ou se atinge a sapiência ou se cai no abismo?” É exactamente
assim, segundo eu penso. Quem vai progredindo no estudo da filosofia
pertence ainda ao número dos não sábios, embora esteja a uma grande
distância do comum dos mortais. Mesmo entre os estudiosos da filosofia
existem consideráveis diferenças; há autores que dividem tais estudiosos em
três classes.104
9 A primeira classe abarca aqueles que, embora ainda não atingindo a
sapiência, já se encontram muito perto de o conseguir; o próprio facto de
estarem perto, contudo, implica que a sapiência ainda lhes é exterior. Se me
perguntas que classe de homens é esta, a minha resposta será: são os que se
libertaram já das paixões e dos vícios, e adquiriram os conhecimentos
necessários a esse fim, sem conseguirem ainda prosseguir nessa via com
confiança inabalável. Não alcançaram ainda na prática o sumo bem, mas já
não lhes é possível voltar aos vícios abandonados; o ponto a que chegaram já
não admite retrocesso, mas ainda não têm uma noção clara sobre si mesmos,
ou, conforme eu me lembro de já te ter escrito em outra carta, “não sabem que
sabem”!105 Já lhes é dado gozar do seu bem próprio, mas ainda não confiam
10 nele sem reservas. Esta classe de estudiosos é definida por outros autores
como abarcando os que já se libertaram das doenças da alma mas ainda não
104
[NOTA 2] Para o estoicismo antigo, os homens dividem-se em dois grupos exclusivos: os
“sábios” ( , sapientes), e os “não sábios, insanos, insensatos” ( ,insipientes,
stulti). Qualquer homem era rigorosamente incluído numa ou noutra destas duas categorias
(cf. por ex. S. V. F., I, 216), sem que se considerassem graus intermédios. A ideia de um estado
intermédio no qual se inserissem os proficientes, isto é, aqueles que iniciaram o estudo da
filosofia e que, em maior ou menor grau, se vão aproximando da sabedoria plena sem, no
entanto, a terem ainda alcançado, parece ter-se originado durante o chamado estoicismo
médio, nomeadamente com Panécio, cf. P. Grimal, Sénéque, De constantia sapientis,
Commentaire, p. 42. Séneca, porém, é mais rigoroso: mesmo os proficientes devem ser
considerados como pertencendo ao número dos insipientes, quanto mais não seja porque o
apenas iniciado pode ainda oscilar e recuar (71, 30; 72, 6; 35, 4), o que ao sábio não é possível
acontecer. Sublinhe-se, entretanto, como uma das mais importantes contribuições de Séneca
para a teoria estóica, o seu voluntarismo, “das erst er in Die Stoa hineintragt” (M. Pohlenz, Die
Stoa, I, p. 319); cf. ibid.: “Die alte Stoa schied die Menschen in Weise und Nichtwisser; bei
Seneca tritt daneben der Gegensatz des guten und des bösen Willens auf”.
105
[NOTA 3] V. supra, carta 71, 4.
das paixões, e que, portanto, ainda estão numa posição pouco segura, pois
apenas está ao abrigo do mal quem expulsou de si o mal por completo; por
outro lado, só pode expulsar de si o mal aquele que, em seu lugar, atinge por
completo a sapiência. Já muitas vezes te tenho dito qual a diferença entre as
11 doenças da alma e as paixões. Vou recordar-to uma vez mais: doenças da
alma são os vícios bem enraizados e violentos, tais como a avareza ou a
ambição; tais vícios ocupam a alma com tanta intensidade que se transformam
em enfermidades crónicas. Numa palavra, a doença da alma é um juízo de
valor que persiste no erro: por exemplo, considerar muito desejáveis coisas que
são apenas relativamente desejáveis. Se quiseres, ainda tens aqui outra
definição: desejar ardentemente coisas que apenas relativamente são de
desejar, ou são absolutamente não desejáveis; ou atribuir um grande valor a
coisas que pouco ou nenhum valor têm. As paixões, essas, são impulsos da
12 alma condenáveis, súbitos e intensos, os quais, se se tornarem frequentes e
não forem refreados, podem degenerar em doenças da alma: um pouco à
maneira do catarro, que, se apenas momentâneo, ocasional, se limita a
provocar tosse, mas se se tornar contínuo, crónico, degenera em tuberculose!
Em conclusão, os estudiosos mais avançados já estão libertos das doenças da
alma, mas, conquanto próximos da perfeição, encontram-se ainda sujeitos às
paixões.
13 A segunda classe compreende aqueles que se conseguiram libertar das
principais enfermidades da alma e das paixões, mas não a ponto de gozarem
definitivamente de um estado de perfeita tranquilidade. Por outras palavras,
estão ainda sujeitos a retroceder ao estádio precedente.
106
[NOTA 21] Recordação autobiográfica: G. César (Calígula) chegou a pensar em mandar
matar Séneca, desistindo da ideia por uma alta dama da corte (Agripina ??) o ter persuadido
da iminência da morte do escritor, cf. Díon Cássio, LIX, 19.
107
[NOTA 22] Cf. Epicuro, fr. 446 Usener.
108
[NOTA 23] Por pessoas inexperientes entenda-se os insipientes, os não sábios. Note-se
como a receita aqui indicada por Séneca para combater a dor - “separar a alma do corpo” - se
assemelha às técnicas praticadas pelos mestres de yoga.
grandes dificuldades para superar as dores físicas precisamente porque não se
acostumaram a contentar-se com a vida da alma, e dão portanto ao corpo uma
grande importância. Por isso mesmo, o homem entregue de coração à
sabedoria separa a alma do corpo e ocupa-se mais da primeira - a sua parte
melhor, de natureza divina -, e apenas dá ao corpo frágil e sempre queixoso! -
11 os cuidados estritamente indispensáveis. “Mas” - dir-se-á – “é penoso privarmo-
no dos prazeres habituais: deixar de comer, passar sede, passar fome.” Os
primeiros tempos de jejum são naturalmente penosos, mas depois o apetite vai
decrescendo, até porque os órgãos através dos quais se nos desperta o apetite
se vão cansando e perdendo as forças; o estômago torna-se preguiçoso, e
mesmo as pessoas ansiosas por comida acabam por sentir repugnância pelos
alimentos. Os próprios desejos cessam: afinal, não custa nada passar sem
12 uma coisa que se deixou de desejar. Acrescenta a isto que toda e qualquer dor
física está sujeita a intermitências, ou, pelo menos, diminui de intensidade.
Acrescenta a isto que é possível precavermo-nos contra a dor tomando
remédios quando ela está para chegar; de facto, não há dor que se não faça
anunciar, porquanto regressa habitualmente em circunstâncias já conhecidas.
E toda a doença é fácil de suportar desde que não liguemos importância à
ameaça mais grave que ela implica.
109
[NOTA 24] Vergílio, Aen., I, 203.
entumescidas, para as reabrir, para as cavar ainda mais fundas. No entanto,
submetido a estes tormentos houve alguém que não gemeu. Mais: que não
implorou. Mais: que não respondeu ao interrogatório. Mais ainda: que riu, e
com toda a alma. Perante este exemplo, já sentes coragem para fazer pouco
da dor?
20 Poderá objectar-se “que a doença não deixa as pessoas agir, impede-as
de cumprirem as suas obrigações.” Vejamos: a falta de saúde afecta o teu
corpo, mas não o teu espírito. Ou seja, pode impedir um corredor de usar as
pernas, um sapateiro ou outro qualquer artífice de usar as mãos. Mas se tu
estás habituado a usar o espírito poderás continuar a aconselhar e a ensinar, a
ouvir e a aprender, a investigar e a relembrar. Vamos lá a ver: tu julgas que, se
fores um doente paciente, ficas impossibilitado de agir? Não ficas: mostras aos
21 outros que a doença pode ser superada, ou pelo menos tolerada! Acredita no
que te digo: mesmo quando se está acamado há ensejo para manifestar
virtude. Não é só em combate, de armas na mão, que se pode dar mostras de
uma alma corajosa e intrépida ante o perigo: o homem de coragem até jazendo
num leito se impõe. Aqui tens matéria para agires: luta valorosamente com a
tua doença. Se ela te não dominar, te não subjugar - darás aos outros um belo
exemplo. Oh, que manancial de glória nós obteríamos se os outros nos
contemplassem na doença! Contempla-te a ti mesmo, dá a ti mesmo motivos
para te sentires contente contigo!
22 Também devemos pensar que há dois géneros de prazer. A doença
diminui os prazeres corporais, embora os não elimine; pelo contrário, vendo
bem até os estimula. É quando se tem sede que melhor sabe a bebida, e
quando se está com fome é quando a comida mais apetece. Em suma,
agarramos com mais avidez algo de que habitualmente estamos proibidos. Os
prazeres do espírito, contudo - que são muito superiores e seguros -, esses
nenhum médico os proíbe ao doente. Quem se entrega a estes prazeres e os
aprecia devidamente não atribui a menor relevância às seduções dos sentidos.
23 “Que infeliz doente!” Porquê? Porque não deita neve no copo para refrescar o
vinho? Porque não reaviva com gelo moído a frescura da bebida que preparou
numa taça enorme? Porque lhe não servem à mesa ostras do lago Lucrino,
abertas no momento? Porque, enquanto janta, não anda à volta dele uma
multidão de cozinheiros trazendo para a sala os próprios fogareiros onde se
cozinham os pratos? Sim, porque este é o último requinte da moda: para a
comida não arrefecer, para que não chegue às bocas calejadas sem ser a
24 ferver, a cozinha transfere-se para a sala de jantar!... “Que infeliz doente!” Pois
coma só o que é capaz de digerir; não ponham à vista dele um javali que ele
rejeita como se fora carne de segunda indigna da sua mesa, não lhe
apresentem nas travessas um monte de peitos de aves (já que ver as aves
inteiras lhe provoca enjoo!). Que infelicidade é a dele? Comerá como pessoa
que está doente, ou, melhor dizendo, como alguém que finalmente está de boa
saúde!
110
[NOTA 4] Frase mutilada; antes de deinde, o copista deve ter deixado escapar qualquer
palavra que os editores se empenham variamente em restituir.
conseguiremos através do conhecimento de nós mesmos e da natureza111.
Cada um deve procurar saber para onde vai, donde provém, em que consiste
para si o bem e o mal, quais as coisas a alcançar, quais as que são de evitar;
deve saber que coisa é essa razão graças à qual se torna apto a discernir as
metas a atingir e a evitar, essa razão que acalma a loucura dos desejos e
7 aniquila a ferocidade dos temores. Certos pensadores entendem que se
consegue reprimir estas últimas perturbações mesmo sem recorrer à filosofia.
No entanto, se um homem atravessou sem perigo todos os acasos da vida, a
declaração que então faça já vem tarde! Quero ouvi-lo falar é quando o
carrasco se está aprestando, quando a morte se está avizinhando. A esse
homem poderíamos dizer: “Tu estavas desafiando sem riscos males ausentes:
aqui tens agora a dor (que tu dizias suportar sem dificuldade), aqui tens agora
a morte (a respeito da qual proclamavas sentenças tao corajosas); estalam os
chicotes, brilham as espadas:
111
[NOTA 5] Sobre a importância que o conhecimento da natureza tem para o conhecimento
de nós mesmos veja-se o prefácio das Naturales Quaestiones que Séneca, como se sabe,
dedicou ao seu amigo Lucílio.
112
[NOTA 6] Vergílio, Aen., VI, 261.
113
[NOTA 7] Este silogismo forma o fr. 196 de S.V.F., I.
114
[NOTA 8] Sobre a teoria dos indiferentes cf. SV.F., I, 191 ss.; III, 117 ss.
gira à volta de coisas em si mesmo indiferentes. Entendo por “indiferentes”, isto
é, nem boas nem más, coisas como a doença, a dor, a pobreza, o exílio, a
11 morte. Nada disto, por si mesmo, pode ocasionar a glória, mas sem isto
também nada o faz. Objecto de louvor não é a pobreza, mas sim o homem que
se não deixa vencer nem abater pela pobreza; objecto de louvor não é o exílio,
mas sim quem parte para o exílio com mais serenidade no rosto do que se
exilasse alguém;115 objecto de louvor não é a dor, mas sim quem em nada
cedeu à dor; ninguém louva a morte em si, mas sim o homem que a morte
12 arrebata sem previamente lhe perturbar o ânimo. Nenhuma destas coisas tem
por si mesma valor moral ou glória; o que lhe atribui valor moral e glória é
somente o facto de nelas se ter de algum modo inserido a virtude. Tais coisas
estão, por assim dizer, a meio caminho: a diferença surge quando o homem as
enfrenta com cobardia ou com virtude. A mesma morte que em Catão foi
gloriosa tornou-se em Bruto vergonhosa e vil. Refiro-me àquele Bruto que,
condenado à morte, procurou todas as formas de adiar a execução: retirou-se
para aliviar o ventre, chamaram-no para ser executado, ordenaram-lhe que
submetesse o pescoço ao carrasco. “Eu submeto” - gritou - “mas deixem-me
viver!...” Que loucura esta de tentar fugir quando já se não pode retroceder! “Eu
submeto, mas deixem-me viver!” Só lhe faltou acrescentar: “Mesmo sob as
ordens de António!” Ó homem digno de ser condenado ... à vida!
115
[NOTA 9] Trata-se, uma vez mais, do célebre exemplo de Rutílio.
aniquilamento,...116 (e também) por imaginarmos que a morte nos vem
arrebatar imensos bens, nos vem subtrair ao infindável mundo de coisas que
nos habituámos a gozar. Repelimos ainda a ideia da morte porque, se
conhecemos bem este mundo, ignoramos tudo do mundo para que iremos,... e
o homem tem horror ao desconhecido! Mais: sofremos também do terror
natural pela escuridão, e é crença geral que a morte nos lançará nas trevas.
16 Todas estas considerações mostram que, se a morte é um “indiferente”, não é
apesar disso um daqueles que possamos tratar com ligeireza: para a alma se
dispor a encarar a aproximação da morte é indispensável robustecê-la à custa
de intenso treino. Não recear a morte é um dever nosso, mas não um hábito
generalizado: concebemos todas as fantasias acerca dela; muitos poetas
talentosos aplicaram-se à porfia a aumentar a má fama de que a morte
desfruta, com as suas descrições dos antros infernais como uma região
oprimida por uma noite eterna, um mundo em que
as almas exangues!”117
116
[NOTA 10] Lacuna postulada por Haupt, com a concordância de Reynolds.
117
[NOTA 11] Contaminação de dois passos de Vergulio:
a) Aen., VI, 400-1:
embora o gigantesco porteiro na caverna assuste com o seu ladrar incessante as almas
exangues
b) Aen., VIII, 296-7:
o porteiro do Orco, estendido no antro sangrento sobre ossadas meio roídas.
Séneca citava de cor, daí a contaminação. - O “porteiro do Orco” é Cérbero, o cão
infernal de três cabeças.
118
[NOTA 12] Também em Troianas, 405-6 Séneca chama às tradicionais descrições do mundo
infernal “ocos boatos, palavras sem sentido, fábulas semelhantes a pesadelos”. — Neste
ponto, aliás, é total o acordo entre estóicos e epicuristas, cf. Lucrécio, III, 978 ss.
contrário à natureza afrontar com decisão uma situação que consideramos ser
um mal: a acção será sempre lenta e hesitante. Também não é glorioso fazer-
se qualquer coisa contrariada e indecisamente. A virtude não age apenas por
18 estrita necessidade. Acrescenta ainda que nenhuma acção tem valor moral
senão quando nos aplicamos a ela com toda a nossa alma, quando nenhuma
parte do nosso ser lhe opõe resistência. Quando alguém afronta um mal, por
medo de algo pior ou na esperança de vir a obter algum bem, e apenas tenha
“engolido” pacientemente um único mal, - esse alguém sofrerá a acção de
impulsos opostos: por um lado, sentir-se-á incitado a levar até ao fim o seu
propósito, por outro sentirá vontade de retroceder e de se pôr a salvo de uma
conjuntura suspeita e perigosa; em suma, vê-se puxado simultaneamente em
direcções opostas. Quando se dá uma situação destas toda a glória se vai! A
virtude, porém, leva até ao fim a decisão tomada em bloco pela alma, sem
receio daquilo que vai fazer.
“Não cedas à desgraça, antes avança mais audaz ainda do que a própria
fortuna te permite!”119
19 Nunca poderás avançar com toda a audácia se pensares que vais enfrentar um
mal. Há que arrancar essa ideia do teu espírito, pois dúvida que persista em ti
só servirá para entravar-te o passo. Se queremos entrar, temos de empurrar as
portas com energia!
119
[NOTA 13] Vergílio, Aen., VI, 95-6.
persuasivo! Depois de o ouvir quem é que hesitaria em oferecer o peito às
espadas inimigas e morrer de pé?... Em contrapartida, vê agora o vigor com
que Leónidas lhes dirigiu a palavra: “Camaradas, jantai hoje na plena certeza
de que haveis de ir cear entre os mortos!” A comida não se lhes enrolou na
boca, não se lhes colou na garganta, não lhes caíu das mãos: antes foi com
22 energia que eles usaram as mãos quer ao jantar quer à ceia! Queres outro
exemplo? Vê o daquele general romano que, enviando os seus soldados ao
ataque de uma posição (o que os obrigava a atravessar as linhas do vasto
exército inimigo) lhes falou nestes termos: “Camaradas, é necessário marchar
sobre um local donde não é necessário regressar!” Vê bem como a virtude é
directa e imperiosa. Em contrapartida, onde está o homem a quem os
argumentos capciosos possam dar mais coragem e entusiasmo? Tais
argumentos só servem para embotar a alma e nunca ela menos deve ser
abatida e enredada em questiúnculas miudinhas do que quando vai afrontar
23 uma situação difícil. Não são apenas trezentos homens, é todo o género
humano que devemos libertar do medo da morte. De que modo farás
compreender a todos que a morte não é um mal? De que modo destruirás
neles uma ideia errada cimentada ao longo de toda a vida, bebida desde a
infância? Que recurso usarás para socorrer a fraqueza dos homens? Que
poderás dizer-lhes que os faça lançar-se com determinação no meio dos
perigos? Que discurso será o teu para poder vencer o consenso geral que
incita ao temor da morte, que energia intelectual terás de despender a fim de
eliminar essa convicção arreigada no espírito humano? Será que vais
congeminar argumentos arrevezados ou construir silogismos? Os grandes
24 monstros têm de ser combatidos com armas poderosas. A terrível serpente
africana (mais funesta para as legiões romanas do que a própria guerra) em
vão os nossos soldados tentaram feri-la com setas ou pedras: nem mesmo
Apolo Pítio a conseguiria trespassar! O seu tamanho gigantesco, a dureza da
pele que lhe cobria o corpo imenso repeliam o ferro e todas as outras armas
que contra ela se usaram: só com pedregulhos do tamanho de mós foi possível
matá-la. E tu vais empregar contra a morte argumentos tão miseráveis!... A tua
figura é a de quem defronta um leão com um canivete! Os teus raciocínios são
muito agudos; repara, porém, que nada é mais aguçado do que a ponta de
uma espiga, mas a própria finura de muitos instrumentos faz deles armas
inúteis e ineficazes!
Carta 83
121
[NOTA 15] S.V.F., 1, 229.
vocábulo, sobretudo tendo em conta que ele é usado por alguém que se
preocupa com a exactidão e propriedade dos termos que emprega.
Imaginemos agora que Zenão estava ciente deste significado da palavra mas
pretendeu que nós o não estivéssemos: neste caso, usando ambiguamente o
vocábulo, permitiu a introdução de um sofisma, o que não é o processo
12 correcto de chegar à verdade. Mas admitamos que fez assim conscientemente.
Neste caso, a conclusão a que chegou - ou seja, que a um homem
habitualmente ébrio ninguém confia um segredo é errónea. Basta que penses
quantas vezes um general, um tribuno ou um centurião tiveram de dar
instruções confidenciais a soldados nem sempre sóbrios! A tarefa de
assassinar Gaio César (refiro-me ao César que; após a vitória sobre Pompeio,
se tornou senhor do Estado romano)122 tanto foi confiada a Tílio Cimbro como a
Gaio Cássio. Ora, enquanto Cássio em toda a sua vida nunca bebeu senão
água, Tílio Cimbro era imoderado na bebida, o que o tornava um indivíduo
irascível. Ele próprio, aliás, admitia com ironia o seu vício, dizendo: “Como hei-
de eu aguentar um chefe supremo se nem consigo aguentar o vinho?”
122
[NOTA 16] A precisão de Séneca é necessária porque Gaio César era o nome comummente
usado para designar o imperador também conhecido pela alcunha de Calígula.
123
[NOTA 17] Cargo idêntico ao atribuído anteriormente a L. Pisão, isto é, chefe da polícia de
Roma. Cosso, portanto, foi sucessor de Pisão nestas delicadas funções.
16 Ponhamos, portanto, de lado as declamações deste tipo: O espírito
dominado pelo álcool nao é senhor de si mesmo. À maneira do mosto que, ao
fermentar, estoira com os próprios tone’is e faz vir ao de cima tudo quanto está
lá no fundo, assim o ébrio, sob a pressâo do vinho, deita cá para fora, diante de
toda a gente, todos os segredos que lá tem dentro. Sob o peso da bebida, um
ébrio, regorgitando de vinho, nao consegue sequer reter no estômago a
comida. E o mesmo faz com os segredos, pondo-se a revelar
17 indiscriminadamente tanto os próprios como os alheios.” É certo que, por
vezes, isto acontece. Mas acontece também nós discutirmos assuntos
prementes com pessoas que sabemos serem dadas à bebida.
Consequentemente, é falsa toda a argumentação aqui utilizada para provar
“que a um homem viciado na bebida ninguém costuma confiar segredos”.
“o líquido mel
124
[NOTA 2] Séneca viajava de liteira, pelo que na realidade quem fazia exercício eram os
escravos que carregavam o veículo! Cf., no entanto, a carta 55, em que Séneca refere até que
ponto um passeio de liteira pode equivaler a um exercício físico, até violento para um homem
de idade.
125
[NOTA 3] Vergílio, Aen., 1, 432-3; cf. Georg., 163-4 onde se lê: “outras (abelhas) acumulam o
mais puro mel e fazem inchar os favos com o líquido néctar.”
126
[NOTA 4] A cana de açúcar é, efectivamente, originária da Índia, donde foi trazida para a
Europa e posteriormente implantada nas Américas.
que as abelhas, devido a qualquer predisposição congénita, são capazes de
transformar em mel aqueles materiais que colheram das partes mais tenras das
plantas em plena floração, juntando-lhes, por assim dizer, um certo fermento
capaz de aglutinar sob a forma de um produto único esses materiais díspares.
5 Mas já estou a derivar para outro assunto. Voltemos à questão essencial:
nós devemos imitar as abelhas, discriminar os elementos colhidos nas diversas
leituras (pois a memória conserva-os melhor assim discriminados), e depois,
aplicando-lhes toda a atenção, todas as faculdades da nossa inteligência,
transformar num produto de sabor individual todos os vários sucos coligidos de
modo a que, mesmo quando é visível a fonte donde cada elemento provém,
ainda assim resulte um produto diferente daquele onde se inspirou. Um
processo idêntico àquele que nós vemos a natureza operar no nosso corpo
6 sem a mínima interferência da nossa parte (os alimentos que consumimos,
enquanto se conservam inteiros e flutuam sólidos no estômago são para este
um peso; mas quando se transformam, logo são assimilados e se tornam
músculos e sangue), um processo idêntico, dizia eu, devemos operar nos
alimentos da inteligência, sem permitir que as ideias recebidas se conservem
7 tal qual, como corpos estranhos. Assimilemo-las; se assim não for, elas podem
perdurar na memória, mas não penetram na inteligência. Demos-lhes a nossa
total concordância, façamo-las nossas, tornemos um grande número de ideias
num organismo único, tal como numa adição juntamos parcelas diferentes para
obter um único total. Que o nosso espírito faça a mesma coisa: mantenha
ocultas as parcelas de que se serviu para exibir tão somente o resultado global
8 obtido. Mesmo que seja visível em ti a semelhança com algum autor cuja
admiração se gravou mais profundamente em ti, que essa semelhança seja a
de um filho, não a de uma estátua: a estátua é um objecto morto. “Que dizes?
Então não deve ser evidente qual o autor de que se pretende imitar o estilo, a
argumentaçâo, as ideias?” Em meu entender, há casos em que isso nem
sequer é possível: quando um homem de superior inteligência consegue
imprimir o seu carácter aos vários elementos que colheu no seu modelo
9 predilecto de modo a que tais elementos resultem numa unidade. Não vês tu
como um coro é formado por grande número de vozes? Do conjunto, no
entanto, resulta como que uma voz única. Há vozes de tenor, de baixo, de
barítono; às vozes masculinas juntam-se as femininas, aqui e além surge o
acompanhamento da flauta: no entanto as vozes individuais não se
10 distinguem, fazem-se ouvir apenas como um conjunto. E falo do coro tal como
o conheceram os antigos filósofos, porque nos espectáculos de hoje participam
mais cantores do que alguma vez houve espectadores nos teatros. Quando
todas as coxias se enchem com as várias classes de cantores, a plateia fica
rodeada de trompetistas e no palco se faz ouvir simultaneamente toda a
espécie de flautas e outros instrumentos, todos estes elementos dissonantes
produzem um canto harmónico. É assim mesmo que eu quero o nosso espírito:
que ele domine muitas técnicas, conheça muitos preceitos e exemplos de
11 muitas épocas, mas tudo isso dotado de uma alma própria e individual. “Mas
como é isso possível?” — vais tu perguntar-me. Com uma aplicação sem
desfalecimento: se nós nada fizermos senão de acordo com os ditames da
razão, também nada evitaremos senão de acordo com os ditames da razão. Se
quiseres escutar a razão, eis o que ela te dirá: deixa de uma vez por todas tudo
quanto seduz a multidão! Deixa a riqueza, deixa os perigos e os fardos de ser
rico; deixa os prazeres, do corpo e do espírito, que só servem para amolecer as
energias; deixa a ambição que não passa de uma coisa artificialmente
empolada, inútil, inconsciente, incapaz de reconhecer limites, tão interessada
em não ter superiores como em evitar até os iguais, sempre torturada pela
inveja, e uma inveja ainda por cima dupla. Vê como de facto é infeliz quem,
12 objecto de inveja ele próprio, tem inveja por outros. Não estás vendo essas
casas dos grandes senhores, as suas portas cheias de clientes que se
atropelam na entrada? Para lá entrares, terias de sujeitar-te a inúmeras
injúrias, mas mais ainda terias de suportar se entrasses. Passa frente às
escadarias dos ricos senhores, aos seus átrios suspensos como terraços: se lá
puseres os pés será como estares à beira de uma escarpa, e de uma escarpa
prestes a ruir. Dirige antes os teus passos na via da sapiência, procura os seus
13 domínios cheios de tranquilidade, mas também de horizontes ilimitados. Tudo
quanto entre os homens é tomado como coisa eminente, muito embora de
valor reduzido e só notável em comparação com as coisas mais rasteiras,
mesmo assim só é acessível através de difíceis e duros atalhos. A via que
conduz ao cume da dignidade é extremamente árdua; mas se te dispuseres a
trepar até estas alturas sobre as quais a fortuna não tem poder, então poderás
ver a teus pés tudo quanto a opinião vulgar considera eminentíssimo, e desse
ponto em diante o teu caminho será plano até ao supremo bem.
Carta 88
1 Queres saber o que eu penso das “artes liberais”: não admiro, nem incluo
entre os bens autênticos um estudo que tenha por fim o lucro. São
conhecimentos subsidiários, úteis apenas enquanto servem de preparação ao
intelecto, mas desde que não sejam a sua única ocupação. Somente devemos
deter-nos na sua prática enquanto o nosso espírito não for capaz de tarefa
2 mais alta; são somente exercícios, não obras a sério. Compreendes por que
razão se lhes chama “estudos liberais”: porque são dignos de um homem livre.
No entanto, o único estudo verdadeiramente liberal é aquele que torna o
homem livre; e esse é o estudo — elevado, enérgico, magnânimo — da
sabedoria; os outros são brincadeira de crianças! Ou julgas tu que há algo de
bom em matérias que vês serem professadas pelos mais indignos e
prejudiciais dos mestres? Tais matérias devemos tê-las estudado uma vez, e
não continuar a estudá-las.
127
[NOTA 28] O ensino da gramática estava a cargo do “gramático”, o qual ministrava aos
jovens o que poderíamos chamar o primeiro grau de ensino, o ensino primário. Em que
consistia esse ensino, quais as matérias e a metodologia utilizadas pode ver-se em Quintiliano,
I, 9.
128
[NOTA 29] Este vejamos corresponde à lição uidendum oferecida por alguns manuscritos
inferiores. Nos principais manuscritos o início deste parágrafo apresenta uma lacuna.
129
[NOTA 30] Alusão ao célebre episódio (Odisseia, V, 206 as.) em que Calipso oferece a Ulisses
a imortalidade, que o herói rejeita.
recitais;130 outras, um peripatético, que considera três categorias de bens;131
outras ainda, um académico, afirmando que tudo quanto existe é incerto.132 É
evidente que em Homero não existe nenhuma destas teorias simplesmente
porque as há todas, e todas diferem umas das outras. Admitamos que Homero
foi filósofo: nessa altura, é porque foi um sábio ainda antes de saber o que
fosse a poesia; estudemos então as matérias que fizeram de Homero um
6 sábio. Pôr-me a indagar qual dos dois era mais velho, se Homero, se Hesíodo,
importa-me tanto como saber por que motivo Hécuba, que de resto era mais
nova do que Helena, suportava tão mal o peso da idade. Pois quê? Havemos
de considerar matéria de peso saber quantos anos tinham Pátroclo ou Aquiles?
Investigar por onde andou Ulisses errante, em vez de procurar não andar
7 errantes nós?133 Não há vagar para discretear se Ulisses passou tormentas
entre a Sicília e a Itália, ou se ultrapassou os limites do mundo conhecido (já
que uma errança tão longa mal caberia em tão curto espaço): é
quotidianamente que as tempestades da alma nos assaltam, que a
perversidade nos arrasta por todos os males por que passou Ulisses. Não
faltam coisas belas que nos atraiam perigosamente os olhos, não faltam
inimigos. De um lado há monstros cruéis, ávidos de sangue humano; de outro,
insidiosas lisonjas aos nossos ouvidos; de outro, naufrágios e calamidades de
toda a espécie. Ensina-me a amar a pátria, a esposa, o pai; ensina-me como,
8 mesmo após um naufrágio, eu poderei singrar na via da honestidade. Para quê
indagar se Penélope foi casta ou não, se com as suas palavras conseguiu
enganar os contemporâneos? Ou se, ainda antes de ter a certeza, ela já
suspeitava de que o homem que estava à sua frente era Ulisses? Ensina-me,
sim, o que é a castidade, até que ponto ela é um bem, e se está dependente do
corpo ou do espírito.
130
[NOTA 31] A ilha de Calipso, por exemplo, é um verdadeiro “jardim de Epicuro” (Odisseia, V,
63 ss.); também epicurista se pode considerar a vida no palácio de Alcínoo (ibid., IX, 5 as.)
131
[NOTA 32] Possível alusão à “tripartição dos bens” mencionada em Ilíada, XXIV, 376-7: a
beleza física (bens do corpo), a agudeza do espírito (bens do espírito), a prosperidade (bens
externos), cf. L. Robin, La morale antique, Paris, 1963, pp. 43-49.
132
[NOTA 33] Cf. a oposição entre o saber das Musas e a ignorância dos homens em llíada, II,
485-6.
133
[NOTA 34] Entre os “profundos conhecimentos” que o gramático devia ser capaz de ensinar
aos seus discípulos, Juvenal enumera o nome da ama de Anquises, a terra onde nasceu a
madrasta de Anquémolo, a idade de Acestes ou o número de ânforas de vinho oferecidas
pelos Sículos aos Troianos (Sat., VII, 233-6)!
nada interessam à minha formação, que um homem cujos bens deixam os
contabilistas fatigados não é mais feliz por isso; melhor, como são supérfluos
os bens cujo dono seria o mais infeliz dos homens se fosse coagido a
11 contabilizar pessoalmente tudo quanto possui. Que me importa saber como
lotear um terreno se não sei dividi-lo com o meu irmão? Que me importa medir
com toda a minúcia as dimensões de uma leira, e ver num relance se alguma
fracção ficou sem ser marcada, se a insolência de um vizinho que me subtrai
algum torrão me deixar em ânsias? Ensinam-me a não perder qualquer fracção
da minha propriedade: ora o que eu quero aprender é a ficar sem ela inteira e
12 manter o rosto alegre. Dir-se-á: “Expulsam-me das terras do meu pai, do meu
avô.” Sim? E antes do teu avô quem era o dono dessas terras? És capaz de
dizer, já não peço o nome do antigo dono, mas ao menos de que nação era
ele? Ocupaste esse terreno, não como proprietário, mas como colono. E colono
em proveito de quem? Se as coisas te correrem bem, do teu herdeiro! Os
juristas afirmam que não é possível tomar em usucapião a propriedade pública:
logo, aquilo que possuis, que dizes ser teu, é público, mais pertence ao género
13 humano. Que notável técnica: sabes medir círculos, reduzir à forma de um
quadrado qualquer polígono que te apresentem, sabes determinar as
distâncias entre os astros, não há nada a que não se apliquem os teus
instrumentos de medida: pois se és tão bom técnico, mede o espírito humano,
diz até que ponto ele é grande, ou é pequeno. Sabes o que é uma linha recta:
de que te serve isso se não souberes andar na vida com rectidão?
Que me adianta este saber? Ficar preocupado cada vez que Saturno e Marte
estão em oposição, ou Mercúrio entra no ocaso com Saturno ainda acima do
horizonte? Não seria melhor saber que, onde quer que estejam, os astros são
15 propícios e imutáveis? Move-os a ordem constante do destino, o seu curso
inevitável; eles seguem a trajectória que lhes foi fixada, e são causa ou indício
de todos os acontecimentos. Se são causa de tudo quanto acontece, em que
nos beneficia o conhecimento de algo que é imutável? Se são indício, que nos
adianta prever aquilo a que não podemos escapar? Quer previamente saibas,
quer não, as coisas acontecem.135
134
[NOTA 35] Vergílio, Georg., I, 336-7; o “ígneo deus de Cilene” é o planeta Mercúrio.
135
[NOTA 36] No universo predeterminado do estoicismo, a astrologia era um dos modos
possíveis de os deuses comunicarem com os homens, embora já mesmo na Stoa antiga nem
todos aceitassem a validade dos horóscopos (por ex. S.V.F.., III, Diógenes de Babilónia, fr. 36).
Panécio, em vez da influência dos astros, prefere sublinhar o papel da influência das condições
geográficas (v. Cícero, de diuinatione, II, 44, 93 ss.), mas Posidónio retoma a aceitação da
astrologia. A posição de Séneca pode não parecer inteiramente clara: aceita o pré-
determinismo do fatum, aceita a tese da providência (pro&noia), mas ao referir-se, por
exemplo, aos cometas diz que eles, ao contrário da superstição reinante, se são sinal de
16 “Se reparares no curso do Sol e na marcha ordenada
18 Neste ponto hás-de permitir-me que não siga a tradição: não consigo
admitir no número das “liberais” a arte do pintor, do escultor, do marmorista ou
de outros artesãos de peças de luxo. Também elimino do número das artes
liberais a prática da luta, técnica toda baseada no óleo e no pó, a menos que
deva incluir nelas a arte dos perfumes, a culinária e todas as demais que
existem para servir os nossos prazeres!...
19 O que há de liberal, pergunto eu, nestes indivíduos que vomitam em seco,
que quanto mais engordam o corpo mais deixam o espírito macilento e
letárgico? Podemos considerar alguma destas artes como estudo liberal para
os nossos jovens, os jovens cuja formação os nossos maiores asseguravam
fazendo-os brandir lanças, atirar chuços, dominar cavalos, lidar com armas?
Antigamente não ensinavam aos filhos nada que estes pudessem aprender
deitados! Diga-se que nem um nem outro tipo de educação ensina e
desenvolve a virtude. Que importa, de facto, saber dominar um cavalo e refrear
a sua corrida, se nos deixarmos levar pelas mais desenfreadas paixões? Que
interessa ser capaz de vencer na luta ou no pugilismo muitos adversários, se
nos deixarmos vencer pela cólera?
24 Uma objecção possível: “Tal como a filosofia tem uma parte natural, outra
moral e uma terceira racional,138 assim também o conjunto das artes liberais
exige lhe seja dado um lugar dentro da filosofia. Quando se abordam as
questões naturais, é imprescindível o contributo da geometria; logo, esta é a
parte da ciência a que dá o seu contributo.”
25 Há muitas coisas que nos prestam o seu contributo sem por isso serem
parte de nós mesmos; digo mais, se fossem parte não dariam contributo. A
alimentação é um contributo, mas não uma parte do nosso corpo. A geometria
presta-nos um determinado serviço, e por isso a filosofia necessita dela, tal
como ela necessita de um técnico, mas nem é parte da geometria nem a
26 geometria é parte da filosofia. Além disso, cada uma tem o seu domínio
próprio: o sábio investiga e descobre as causas dos fenómenos naturais, o
geómetra procura e calcula os números e as medidas. O sábio descobre as leis
que regem os corpos celestes, qual o seu alcance e a sua natureza: estudar o
curso da respectiva órbita, as inclinações que apresentam e devido às quais
137
[NOTA 38] Ou seja, aquelas artes a que Séneca se referiu no início da carta: gramática,
música, geometria, astronomia.
138
[NOTA 39] “Filosofia natural”, “filosofia moral” e “filosofia racional”: respectívamente a
fisíca, a ética e a lógica segundo a tripartição aceite pelo estoicismo, cf. infra carta 89, 9 ss.
descendem e ascendem, e por vezes parecem ficar parados (embora os
27 corpos celestes nunca possam parar), essa é a tarefa do matemático. O sábio
descobre a causa pela qual um espelho reflecte uma imagem: o geómetra
saberá dizer-te que distância deve existir entre o corpo e a imagem, e qual o
tipo de espelho que produz este ou aquele tipo de imagem. O filósofo
demonstrar-te-á que o Sol é grande, o matemático, baseado na prática e na
experiência, dir-te-á quanto ele mede. Mas como base o matemático necessita
de alguns postulados fundamentais, pois nenhuma arte existe de pleno direito
28 se os seus fundamentos forem deficientes. A filosofia não depende de nada,
constrói sozinha todo o seu edifício. A matemática, por assim dizer, é
usufrutuária, edifica em terreno alheio; recebe os elementos de base cuja
utilização lhe permite ir mais além. Se através dela fosse possível atingir a
verdade, se ela fosse capaz de abarcar a natureza do universo, eu diria que ela
era de grande utilidade para o espírito humano, o qual se eleva pelo estudo do
mundo celeste e como que recebe em si algo do céu.
38 Mesmo pelo que toca aos nossos estóicos, poderei indicar-te muita coisa
que deveria ser cortada. Uma saudação como esta: “Oh! Que homem erudito!”,
implica um enorme gasto de tempo e uma enorme maçadoria para os ouvidos
alheios. Contentemo-nos com este mais modesto título: “Oh! Que homem de
bem!” Pois então? É preciso ir revolver a história de todos os povos e investigar
quem foi o primeiro homem a escrever poemas? À falta de arquivos, terei de
pôr-me a conjecturar quanto tempo decorreu entre Orfeu e Homero? Hei-de
139
[NOTA 40] Gramático alexandrino do séc. 1 a.C., autor, entre outras obras, de um
compendioso comentário dos poemas homéricos.
aprender os sinais com que Aristarco140 expurgava os poemas dos outros, e
gastar a minha vida ocupado em sílabas? Ou hei-de permanecer fixo no pó da
geometria?141 Já me teria passado da lembrança aquele salutar preceito:
“Aproveita bem o tempo?” Tenho de saber tudo isso? O que posso ignorar
40 então? O gramático Ápion,142 que no tempo de Gaio César percorreu toda a
Grécia e foi adoptado por todas as cidades em honra de Homero, dizia que o
Poeta, após ter terminado toda a sua obra, a Odisseia e a Ilíada, tinha
acrescentado aos poemas um prólogo no qual narrava toda a guerra de Tróia.
E apresentava como prova o facto de Homero ter colocado no primeiro verso
duas letras pelas quais indicava subtilmente o número total dos seus cantos.143
41 Ora aqui está o tipo de coisas que deve saber quem quiser saber muito!
140
[NOTA 41] O mais célebre dos gramáticos alexandrinos (séc. II a. C.), autor de edições
justamente famosas de Homero, Hesíodo e outros poetas. Em alguns escólios dos manuscritos
homéricos conservam-se várias das suas observações críticas ao texto dos poemas.
141
[NOTA 42] Os geómetras resolviam os seus problemas desenhando numa superfície coberta
de areia as figuras que estudavam.
142
[NOTA 43] Retor do tempo de Tibério, cf. Plinío 30, 18.
143
[NOTA 44] As duas primeiras letras do primeiro verso da Ilíada são efectivamente, MH. Se
lhes atribuirmos o valor numérico habitual do sistema grego de numeração obtemos un´ = 48,
ou seja o número total dos cantos da llíada mais o número total de cantos da Odisseia.
144
[NOTA 45] Texto duvidoso; nenhuma das diversas tentativas de solução se apresenta
inteiramente convincente.
olhos. Se dou ouvidos a Protágoras, não há na natureza nada que não seja
incerto; se escuto Nausífanes, só há uma coisa certa: que nada é certo; se
acredito em Parménides, só existe o uno; se em Zenão, nem sequer o uno
46 existe. Então o que somos nós? O que é isto que nos rodeia, nos cria, nos
sustenta? Toda a natureza é uma sombra, ou vazia ou ilusória. Nem poderei
dizer quais são os que mais me irritam, se aqueles que nos não permitem
saber nada, se os que nem sequer nos deixam saber que nada sabemos!
Carta 89
145
[NOTA 1] A comédia “de toga” (fabula togata) distingue-se da comédia de imitação grega
(fabula palliata) apenas por a acção, o local da mesma e as personagens serem romanas, ao
contrário do que sucede com a palliata, em que as personagens conservam os nomes gregos e
a acção decorre em locais vários do mundo grego.
146
[NOTA 2] Cf. Ribbeck, Com. Rom. Frg.3, pp. 241 e 265. — Dosseno, o Corcunda, era uma das
personagens-tipo da comédia atelana (fabula atellana), remoto antepassado da commedia
dell’arte.
147
[NOTA 3] S.V.F., I, 45-46; II, 37-39, e cf. Pohlenz, Die Stoa, I, p. 33 ss.
que chamaram “sobre as regras do juízo” - ou seja, a lógica com outro nome -,
considerando-a como parte introdutória à filosofia natural148.
14 Admitida a tripartição da filosofia, comecemos por ver como, por sua vez,
se organiza a ética. A ética entende-se que igualmente deve ser tripartida. A
sua primeira parte consiste na análise e atribuição do valor legítimo a cada
coisa, na apreciação de como cada coisa deve ser valorizada; esta parte é
sobremaneira útil, pois o que há de mais necessário do que saber dar às coisas
o justo valor? A segunda parte ocupa-se das tendências. A terceira, enfim, das
acções. Antes de mais, em verdade, tu deves ajuizar quanto cada coisa vale,
em seguida manifestar para com cada uma tendência controlada e na medida
justa; finalmente importa que estejam de acordo a tua tendência e a tua acção,
de modo que em todos os teus actos te mostres consequente contigo mesmo.
15 Se alguma das três partes faltar, todo o sistema fica alterado. De que te
serve, afinal, teres construído uma justa e completa escala de valores se fores
demasiado impetuoso nas tuas tendências? De que te serve saber moderar as
tendências e dominar os desejos se, ao empreenderes uma acção, não
souberes decidir o momento, a natureza, o local e o modo oportunos de a levar
a cabo? Uma coisa é conhecer o valor justo de cada coisa, outra, a conjugação
das oportunidades, outra ainda, dominar os impulsos e empreender uma acção
sem precipitações. A vida só estará de acordo consigo mesma quando a acção
não desmentir o impulso e quando o impulso for à medida do valor de cada
coisa, mostrando-se mais ou menos intenso conforme essa coisa merecer que
a procuremos.
148
[NOTA 4] Epicuro, fr. 242 Usener.
149
[NOTA 5] Cyren. frg. 147 B Mannebach.
150
[NOTA 6] S.V.F., I, 357. - Cf. infra a Carta 94, em que Séneca discute amplamente estas
posições de Aríston.
contém o estudo da matéria, o da causa responsável pelo movimento, o dos
elementos propriamente ditos.
19 “Eu é que vos deveria perguntar: até quando laborareis em erro? Quereis
que os remédios cessem antes das moléstias? Repetirei tantas mais vezes a
minha pergunta, teimosamente, porquanto vós persistis no erro. Quando num
corpo insensível um simples toque provoca a dor, é sinal de que o remédio está
a actuar. Portanto, mesmo contra a vossa vontade, eu continuarei a repeti-la.
Algum dia vos chegarão aos ouvidos estas palavras duras; já que não quereis
ouvir a verdade individualmente, então escutai-a em público.
151
[NOTA 7] Vergílio, Aen., I, 342.
guindem as vossas vivendas? Um rio cujas margens não estejam cobertas das
vossas construções? Onde quer que brotem fontes de água quente, logo aí
nascerão novas mansões de recreio. Em qualquer lugar onde a costa forme
uma reentrância, logo aí edificareis molhes; não vos contentando senão com o
solo fabricado por vós, entrais pelo mar adentro! Podem por toda a parte
resplandecer os vossos palácios, aqui implantados nos montes para gozar o
panorama da terra ou do mar, além elevados na planície como se fossem
colinas; por mais e maiores que sejam os vossos edifícios, vós nunca passareis
de uns seres minúsculos! De que vos servem muitos quartos, se só vos deitais
num? Não é verdadeiramente vosso o local onde não estais!
22 “Passo agora a vós, cuja gula infinita, insaciável, devassa ora o mar ora a
terra, perseguindo a presa com anzóis, com armadilhas, com redes de toda a
espécie e através das maiores dificuldades. Só a saturação deixa os animais
em paz! Que ínfima parte desses manjares, preparados por tantas mãos, a
vossa boca embotada de prazeres é capaz de saborear! Que ínfima parte
desta fera, caçada com tanto risco, pode provar o senhor, cheio de náuseas,
incapaz de digerir! Que ínfima parte destes mariscos vindos de tão longe acaba
por ir parar a este estômago insaciável! Não vedes, desgraçados, até que
ponto o vosso apetite é maior do que o vosso estômago?”
23 Diz estas palavras aos outros, para que, ao dizê-las, as escutes também,
escreve-as, para que, ao escrevê-las, também as leias, tirando de tudo proveito
para a tua formação moral, para a repressão das paixões nocivas. Estuda, em
suma, não para saberes mais, mas para saberes melhor!
Carta 90
7 Até aqui, estou de acordo com Posidónio. Já não concordo é quando ele
diz que se deve à filosofia a invenção daquelas técnicas usadas nas
necessidades diárias da vida: não lhe concedo tal glória. “Foi a técnica” — diz
Posidónio — “que permitiu aos homens, que até então viviam dispersos, e se
recolhiam em cabanas, em cavernas, ou em troncos de árvores escavados, a
arte de construir casas.” Quanto a mim, a filosofia tanto se importou com a
técnica de edificar casas umas em cima das outras, ou de aumentar sempre
mais a área das cidades, como se importa agora com os viveiros de peixes,
bem protegidos para que as tempestades não façam a nossa gula passar
privações, para que, seja qual for a violência do mar-alto, o nosso luxo tenha
um porto seguro onde mantenha à engorda diversas raças de peixes! Essa
8 agora! Então foi a filosofia que ensinou aos homens o uso da chave e da
fechadura? Que significaria essa invenção senão dar luz verde à avareza? Foi
a filosofia que levou à edificação de blocos habitacionais em andares, para pôr
em grave perigo a segurança dos moradores? Até parece que não bastava
encontrar abrigos de ocasião, e obter sem artifício ou dificuldade formas
9 naturais de habitação! Podes crer, época feliz foi essa que precedeu o
aparecimento dos arquitectos e dos estucadores! O hábito de cortar
rigorosamente as madeiras, de talhar certeiramente as traves fazendo a serra
cortar segundo traços marcados previamente, acompanha os primeiros passos
da irrupção do luxo, já que
152
[NOTA 8] Vergílio, Georg., I, 144.
11 Igualmente discordo de Posidónio quando ele atribui aos sábios a
invenção das várias ferramentas; pela mesma ordem de ideias seriam os
sábios quem
14 Como é possível, pergunto eu, ter igual admiração por Diógenes e por
Dédalo? Qual destes dois te parece ser um sábio? O inventor da serra? Ou o
filósofo que, vendo um garoto a beber água pelas mãos em concha, partiu no
mesmo instante o copo que tirara da sacola, e a si próprio se repreendeu,
dizendo; “Oh! Como sou estúpido em andar carregado de objectos inúteis!”, o
mesmo filósofo que se enroscava dentro de uma barrica para passar a noite?
15 E nos dias de hoje, quem consideras tu como sábio? O técnico que sabe
montar repuxos de água perfumada através de canalizações invisíveis, o que é
capaz de encher ou esvaziar num instante os canais artificiais, o que sabe dar
diversas disposições aos caixotões móveis do tecto de modo a que o salão de
banquetes vá mudando de decoração à medida que vão surgindo os vários
pratos? Ou antes aquele que demonstra, a si mesmo e aos outros, que a
natureza nos não impõe nada que seja duro e difícil, que para termos uma casa
não carecemos de marmoristas ou marceneiros, que para nos vestirmos não
dependemos do comércio da seda, em suma, que para dispormos do essencial
à vida quotidiana nos basta aquilo que a terra nos apresenta à superfície? Se a
humanidade se dispusesse a seguir os conselhos de um tal homem
imediatamente perceberia que tão inútil é o cozinheiro como o soldado!
153
[NOTA 9] Vergílio, Georg., I, 139-40.
técnicos: basta que sigas a natureza! E a natureza não pretendeu fazer de nós
“especialistas”: a cada um ensinou como suprir as carências essenciais.
“Um homem nu não consegue aguentar o frio”. — É certo. Mas não serão
as peles dos animais capturados defesa mais do que suficiente contra o frio?
Não há muitos povos que cobrem o corpo com cascas de árvores
entrançadas? Não se podem fabricar peças de vestuário a partir de penas de
aves? Não é verdade que, ainda hoje, uma grande parte dos Citas se veste
com peles de raposa e de arminho, que não só são agradáveis ao tacto como
impermeáveis ao vento? Mais ainda: não é verdade que eles entretecem redes
de vime com que, cobertas de um pouco de lama, fazem paredes, e sobre as
quais colocam depois tectos de colmo ou outras plantas? E que a chuva
escorre pelo declive desses tectos, permitindo-lhes afrontar sem receio os
rigores do Inverno?
22 Como se tudo isto ainda fosse pouco, Posidónio vai ainda mandar o sábio
para o moinho! E aí o temos a explicar como o sábio foi conduzido pela
imitação da natureza até ao fabrico do pão. Cito as suas palavras: “Os cereais
introduzidos na boca são triturados pelo choque dos dentes uns contra os
outros; a língua encarrega-se de reconduzir aos dentes algum grão que se
escape; depois são humedecidos com saliva para que assim escorreguem
mais facilmente pelo esófago; ao chegarem ao estômago são cozidos à
23 temperatura constante natural; finalmente são assimilados pelo organismo. Da
observação deste modelo alguém tirou a ideia de, à semelhança dos dentes,
sobrepor duas mós de pedra rugosa, das quais uma permanecia fixa enquanto
a outra se movia sobre ela; pela fricção das duas pedras os grãos começam
por quebrar-se, e com a continuação vão sendo triturados até se tornarem em
pó, a farinha é depois misturada com água, é amassada, e à massa dá-se a
forma de pio, o pio era a princípio cozido sobre cinza quente ou num recipiente
de barro sobreaquecido; mais tarde veio a descobrir-se o forno e outras
maneiras de regular a produção do calor.”
154
[NOTA 10] Cf. Ovídio, Met., VI, 55-8.
24 Todas estas invenções são evidentemente imputáveis à razão, mas de
modo algum à forma superior de razão. São descobertas feitas pelo homem,
mas não pelo sábio. Estão ao mesmo nível que a invenção dos barcos com
que percorremos rios e mares, impulsionados por velas que recolhem a força
do vento, e dotados de lemes na retaguarda para imprimirem à embarcação
este ou aquele rumo. O modelo do leme proveio da observação dos peixes,
que se servem da cauda para, com um ligeiro movimento a um lado ou a outro,
imprimirem uma orientação à sua carreira.
34 Desejas saber o que o sábio investiga, o que é que ele traz à luz do dia?
Em primeiro lugar, a verdade acerca da natureza, que ele, ao contrário dos
outros seres vivos, não observa com os olhos do corpo, incapazes de atingirem
o plano divino; em seguida, as regras da nossa vida, que ele põe em
concordância com a lei do universo; consequentemente, ensina-nos não
apenas a conhecer os deuses mas a obedecer-lhes e a aceitar como ordens
suas tudo o que nos possa suceder. O sábio impede-nos de dar crédito às
falsas opiniões, e avalia tudo quanto existe pelo justo valor; condena os
prazeres de que nos podemos vir a arrepender, e exalta os bens cujo estatuto
permanece inalterável; demonstra que o homem mais feliz é o que é indiferente
à felicidade, que o homem mais poderoso é o que tem poder absoluto sobre si.
35 Não te estou falando daquela filosofia que expulsa o cidadão da sua
comunidade, coloca os deuses à margem do mundo e põe a virtude na
dependência do prazer155; falo-te, sim, daquela que aceita como único bem o
bem moral, que resiste soberanamente aos favores dos homens ou da fortuna,
e cujo maior preço consiste em estar acima de qualquer preço!156
Não creio que uma tal filosofia pudesse ter existido nesses tempos rudes
em que a indústria ainda não existia e em que se aprendia pela prática a
36 utilidade das coisas. Ela só pode ter vindo após a era afortunada em que as
benesses da natureza se encontravam à disposição de qualquer um, isto é,
antes de a avareza e o luxo terem introduzido a discórdia entre os homens e os
terem ensinado a roubar em vez de partilhar os seus bens. Os homens dessa
época não eram sábios, ainda que a sua conduta pudesse ser própria de
37 sábios. Seria impossível imaginar uma melhor condição para o género humano.
Se os deuses permitissem a qualquer de nós recriar o planeta e regulamentar
os costumes do seu povo, nenhuma situação seria mais merecedora da
aprovação do que aquela em que, como se conta,
38 Que situação mais feliz encontrar para o género humano? Todos usufruíam em
comum os dons da natureza; e esta, como autêntica mãe, chegava para suprir
as necessidades de todos. Como todos os bens eram comuns, a sua posse
não oferecia perigo. O mais rico de todos os povos não será aquele em que é
impossível encontrar um pobre?
155
[NOTA 11] Alusão evidente aos epicuristas.
156
[NOTA 12] Não menos evidente síntese das posições estóicas.
157
[NOTA 13] Vergílio, Georg., I, 125-8.
que a não saqueava. Quando se descobria qualquer produto natural, o prazer
de o comunicar aos outros não era menor do que o prazer da descoberta. Não
havia excessos, não havia carências: tudo era dividido irmãmente. O mais forte
ainda não sujeitava o mais fraco; o avarento, escondendo o que a si próprio é
inútil, ainda não privava os outros do indispensável. Cada um cuidava tanto de
41 si como do próximo. As armas jaziam ociosas; as mãos, isentas de sangue
humano, guardavam toda a violência para a luta com as feras. Esses homens
protegiam-se do sol apenas na sombra densa das florestas, viviam sob
humildes tectos de colmo como único abrigo contra as inclemências do inverno,
mas podiam ver as suas noites passarem-se sem angústia. Nós, no meio da
nossa púrpura, dormimos agitados, sujeitos ao violento aguilhão da ansiedade;
42 eles, dormindo na terra dura, que sono tranquilo gozavam! Não tinham sobre a
cabeça tectos trabalhados; dormindo ao relento, viam deslizar os astros sobre
as suas cabeças, viam o sublime espectáculo nocturno da mole imensa do
universo em silenciosa rotação. Quer de dia quer de noite tinham ante os olhos
a vastidão da belíssima morada que é a Terra; era um prazer para eles ver uns
astros declinando no meio do firmamento, enquanto outros, nascendo, faziam a
sua aparição. Como não gostariam eles de vaguear por entre todas estas
43 maravilhas? Vós, pelo contrário, tremeis de medo ao menor ruído nas vossas
casas; no meio das vossas pinturas, ao mínimo estalido fugis aterrorizados.
Eles não possuíam mansões do tamanho de cidades; o ar circulava livremente,
sem paredes que o retivessem; a sombra ligeira de um penhasco ou de uma
árvore, fontes transparentes, ribeiros correndo espontaneamente, e não
forçados a seguir um curso artificial através de hábeis canalizações, prados
belos sem o mínimo artifício, e no meio de tudo uma habitação campesina,
trabalho das suas mãos rústicas tal era a morada desses homens, uma morada
segundo a natureza, em que apetecia viver, nem causa nem objecto de
temores. As casas de hoje são uma das grandes fontes dos nossos receios.
158
[NOTA 14] Vergílio, Aen., III, 423-8.
maior austeridade a falta de seriedade, da maior pureza a intemperança capaz
de ir até ao incesto!
14 Outra objecção: “É certo que o sábio é feliz; no entanto, ele não atingirá o
supremo bem caso as suas condições naturais o não favoreçam. Quem possui
a virtude é certo que não é desgraçado; mas não pode ser maximamente feliz
quem for privado de certos bens naturais como a saúde e a integridade física.”
15 Vós, epicuristas, aceitais o que pareceria ser mais duro de aceitar: que um
homem não é desgraçado, e pode até ser feliz, mesmo sujeito a intensas e
prolongadas dores; mas recusais o mais fácil: que esse homem possa ser
sumamente feliz. Ora, se a virtude pode conseguir que um homem não seja
desgraçado, mais facilmente conseguirá que seja sumamente feliz; vai menos
distância da felicidade à máxima felicidade do que da desgraça à felicidade.
Então uma coisa que é capaz de pôr no número dos felizes um homem
esmagado por mil calamidades não conseguirá fazer o pouco que resta: fazê-lo
sumamente feliz? Faltar-lhe-ão as forças mesmo no fim da subida? Na vida há
coisas vantajosas e coisas desvantajosas; umas e outras não dependem de
16 nós. Se um homem de bem não é desgraçado mesmo que oprimido por todas
as adversidades, como não será sumamente feliz só por carecer de uma ou
outra vantagem? Tal como o peso das contrariedades o não reduz à
infelicidade, também a carência de vantagens o não afasta da suma felicidade;
tanto será sumamente feliz sem vantagens como, mesmo sob o peso da
adversidade, se não sente desgraçado. Ou então, se o sumo bem pode sofrer
17 decréscimo, também poderá ser-lhe arrancado! Dizia eu, há pouco, que a
chama de uma vela nada acrescenta à luz do sol, pois a claridade deste faz
desaparecer toda a luz que, sem ela, seria visível. “Há coisas” — dir-me-ão —
“que podem fazer barreira ao sol.” Só que o sol permanece tal qual é mesmo
diante das barreiras; ainda que algo se interponha e nos impeça de vê-lo, nem
assim ele deixará de brilhar e seguir o seu curso. Quando ele luz atrás das
nuvens não é menos intenso nem anda mais devagar do que quando o céu
está limpo; há uma grande diferença entre meter-se apenas à frente ou impedir
18 mesmo a passagem. Semelhantemente, o que se mete à frente da virtude em
nada a diminui; ela não será menor, conquanto possa brilhar menos. Talvez ela
não seja tão evidente e nítida à nossa vista, mas permanece idêntica perante si
mesma e, tal como o sol obscurecido por algum obstáculo, continua a agir. Ou
seja, contra a virtude têm os infortúnios, os sofrimentos e as injúrias tanto
poder como a névoa contra o sol!
19 Há também quem diga que o sábio, se tiver um corpo pouco robusto, não
é nem desgraçado nem feliz. Também esta posição é errada, já que coloca o
acaso ao nível da virtude, e tanta relevância dá à moralidade como ao que de
moralidade carece. Pode encontrar-se algo de mais repelente e indigno do que
equiparar o que merece respeito e o que merece desprezo? Dignas de respeito
são a justiça, a piedade, a coragem, a sabedoria; desprezíveis são, pelo
contrário, coisas como a robustez das pernas, a solidez dos músculos, a saúde
e firmeza dos dentes — tudo coisas, que muito frequentemente se encontram
20 entre os homens mais vis. De resto, se um sábio de corpo enfermiço não for
considerado nem desgraçado nem feliz, mas lhe atribuirmos como que um
estado intermédio, seguir-se-á que a sua vida não suscita nem emulação nem
repulsa. O que há de mais absurdo do que isto: a vida do sábio não suscitar
emulação? Ou o que há de tão inconcebível como uma forma de vida que não
suscita nem emulação nem repulsa? Aliás, se os defeitos físicos não tornam
um homem desgraçado, não o impedem de ser feliz, porquanto quem não tem
poder para reduzir alguém a uma condição inferior também o não terá para pôr
em questão a melhor possível das condições.
24 Venha outra objecção. “Como é isso? Então um sábio que tenha tido uma
vida mais longa, que nunca tenha sido incomodado pela dor, não é mais feliz
do que outro que tenha estado sempre em luta com a adversidade?” Vejamos:
ele foi melhor por isso, a sua moralidade foi superior? Se tal não foi o caso,
então também não foi mais feliz. Para termos uma vida mais feliz é necessário
viver com maior rectidão; se não é possível aumentar a rectidão, é impossível
também aumentar a felicidade. A virtude não é passível de gradações; logo,
também a felicidade o não é, porquanto da virtude provém. A virtude é um bem
tal que nem dá conta dos insignificantes acidentes que são a brevidade da
vida, a dor, as várias enfermidades físicas; o prazer não é coisa para que a
25 virtude se digne sequer olhar. O mais importante na virtude é a sua
independência em relação ao futuro, a sua indiferença pelo cômputo dos dias.
Por breve que seja o tempo ao seu dispor, ela leva à perfeição os bens
eternos. Isto pode parecer-nos inconcebível, como algo que excede a natureza
humana; na realidade, medimos a majestade da virtude pela nossa própria
debilidade, e atribuimos falsamente o nome de virtude aos nossos vícios. Pois
quê? Não nos parece igualmente inconcebível que um homem sujeito aos
maiores padecimentos possa exclamar: “Sou feliz!”? E no entanto estas
palavras foram ouvidas no próprio laboratório do prazer! “Este é o meu dia mais
feliz, o meu último dia, também!” — exclamou Epicuro no meio dos tormentos
que lhe causavam a sua dificuldade em urinar e as dores insuportáveis no
26 abdómen ulcerado159. Porquê então achar inconcebível tal atitude entre os
estóicos — que praticam o culto da virtude —, se ela se encontra também entre
os epicuristas — para quem o bem supremo é o prazer?! Até estes, apesar de
degenerados e de tão baixos ideais, sustentam que o sábio, mesmo no meio
das maiores dores, dos maiores infortúnios, nunca será nem desgraçado nem
feliz. Aqui está o que se me afigura inconcebível, muito mais inconcebível
mesmo; não consigo entender como é que a virtude, uma vez removida das
suas alturas, consegue não resvalar até ao mais baixo nível. Das duas uma: ou
a virtude torna o homem feliz, ou então, se lhe for recusada essa possibilidade,
não o consegue impedir de ser desgraçado. O seu combate não admite
complacências: ou vence, ou é vencida!
159
[NOTA 15] Cf. supra carta 66, 47.
27 “Somente os deuses imortais” — contestam — “têm acesso à virtude e à
felicidade; a nós não nos cabe mais do que uma sombra, um simulacro de tais
bens. Apenas podemos aproximar-nos deles, nunca alcançá-los.” Na realidade,
a razão é comum aos deuses e aos homens; naqueles atingiu a perfeição,
28 nestes é susceptível de a atingir. São os nossos vícios que nos conduzem ao
desespero. Esse outro tipo de homem é como alguém de segundo plano —
observador pouco constante dos mais altos princípios, cujo discernimento está
ainda sujeito ao erro e à incerteza. Opte à sua vontade pela acuidade dos olhos
e dos ouvidos, pela saúde, por um aspecto físico agradável e também por
29 chegar em perfeito estado ao termo de uma vida bem longa. Poderá levar-se
assim uma vida que não dê lugar a arrependimentos; mas um homem assim
imperfeito conservará em si um resto de maldade, na medida em que tem uma
alma instável, propensa ao mal embora não se trate de uma maldade
cristalizada e inamovível. Não é ainda um homem de bem, está-se formando
para o bem; todavia, todo aquele a quem falta algo para ser bom, é mau. Mas
equipara-se aos deuses e, lembrado das suas origens, tende a ir para junto
deles. Não há qualquer insolência em tentarmos subir ao lugar donde
descemos. E de resto, porque não admitir que há algo de divino num ser que é
parte integrante da divindade? Todo este universo que nos rodeia é uno, e é
Deus. Nós somos participantes dele, somos como que os seus membros. A
nossa alma tem capacidade bastante para se elevar até à divindade desde que
os vícios a não deitem por terra. Tal como a estrutura do nosso corpo está
organizada para se erguer em direcção ao céu, também a nossa alma — que
tem a capacidade para abarcar tudo quanto queira! — foi formada pela
natureza com a finalidade de conformar os seus propósitos aos dos deuses. E
se porventura usar plenamente as suas forças e se expandir pelo seu espaço
próprio, atingirá a plenitude seguindo uma via que lhe não é estranha. Seria
necessário grande esforço para subir ao céu, mas para a alma é um regresso.
31 Desde o momento em que enverede por este caminho, ela avança
intrepidamente sem dar importância a nada mais, sem ligar ao que se compra e
vende, sem avaliar o ouro ou a prata — metais bem dignos das trevas em que
estavam encerrados! — pelo brilho que revestem aos olhos dos insensatos,
mas sim de acordo com a lama donde os foi arrancar e desenterrar a ambição
humana. A alma sabe, insisto, que as verdadeiras riquezas não se encontram
onde nós as amontoamos: é a alma que nós devemos encher, não o cofre!
32 Àquela devemos nós conceder o domínio sobre tudo, atribuir a posse da
160
[NOTA 16] Vergílio, Aen., V, 363. — Uma vez mais, a citação não é inteiramente correcta
Vergílio escreveu in pectore (“no peito, no coração”), Séneca citou in corpore (“no corpo”). A
tradução proposta — dentro de si — vale para os dois casos, pois não nos parece que a
divergência se deva a mais do que um vulgar lapso de memória de Séneca.
natureza inteira de modo a que os seus limites coincidam com o oriente e o
ocaso, a que a alma, identicamente aos deuses, tudo possua, olhando
soberanamente do alto os ricos e as suas riquezas esses ricos a quem menos
alegria proporciona o que têm do que tristeza lhes dá o que aos outros
33 pertence! Quando se eleva a tais alturas, a alma passa a cuidar do corpo (esse
mal necessário!), não como amigo fiel, mas apenas como tutor, sem se
submeter à vontade de quem está sob sua tutela Ninguém pode
simultaneamente ser livre e escravo do corpo; para já não falar de outras
tiranias que o excessivo cuidado com ele nos impõe, a soberania do corpo tem
34 exigências que são autênticos caprichos. A alma desprende-se dele ora com
serenidade, ora de firme propósito — busca a sua saída sem se importar com a
sorte dessa pobre coisa que para aí fica! Nós não ligamos importância aos
pêlos da barba ou aos cabelos que acabámos de cortar; do mesmo modo, à
nossa alma divina, ao preparar-se para abandonar o corpo, de nada importa a
sorte dada ao seu invólucro — se o fogo o consome, se a terra o cobre ou as
feras o despedaçam; para ela, isso tem tanta importância como para o recém-
nascido a placenta. Que o corpo abandonado sirva de pasto às aves ou vá ser
consumido como
35 que importa isso para quem deixou esta vida? Mesmo quando ainda está entre
os homens, o sábio não receará as ameaças que para além da morte lhe
façam todos aqueles que acham pouco inspirar terror até ao momento da
morte. “Nada me assusta,” — dirá ele “o gancho ignominioso ou a imagem,
repugnante para quem a contemplar, do meu cadáver exposto e dilacerado.”162
Não peço a ninguém que me preste os últimos deveres, nem encarrego
ninguém de cuidar dos meus restos. A natureza providenciou para que
ninguém ficasse sem sepultura: o tempo sepultará todo o corpo que a
crueldade humana deixar ao abandono.” Mecenas afirmou expressivamente:
sepulta os abandonados”163
161
[NOTA 17] Vergílio, Aen., IX, 485.
162
[NOTA 18] Imagem tirada dos jogos do circo: o “gancho ignominioso” servia para arrastar os
corpos dos gladiadores mortos na arena.
163
[NOTA 19] Mecenas, fr. 6 Lunderstedt.
164
[NOTA 20] Lit. “um homem que tem o cinto bem apertado” de modo a erguer as roupas e
facilitar os movimentos, para a corrida ou para a luta (alte cinctum).
ânimo forte e viril. Pena foi que a prosperidade lhe tivesse roubado as
armas!165
165
[NOTA 21] A mesma imagem, lit. “lhe tivesse desapertado o cinto” deixando, portanto, que
as vestes soltas o incapacitassem de lutar.
Carta 94
4 Cleantes, por seu lado, considera útil esta parte da filosofia, mas
incompleta se não for derivada da teoria geral, isto é, se ignorar os princípios
básicos e as questões fundamentais da filosofia.
166
[NOTA 3] A moral prática, que ministra conselhos (praecepta), em grego parainetikh/
(parenética), por oposição à moral teórica (dogmatikh/, dogmática) que estabelece os
princípios de base (decreta).
consequentemente, de nada valem enquanto o erro persistir na nossa mente;
eliminado o erro, imediatamente teremos a percepção nítida dos nossos
deveres. Proceder de outro modo equivale a aconselhar um doente a actuar
6 como um homem saudável mas sem lhe restituir a saúde. Ensina-se um pobre
a agir como se fosse rico: como é possível isso no caso de ele continuar na
miséria? Indica-se a um esfomeado a actuação própria de um homem saciado:
melhor seria que o libertássemos da fome que o atormenta. O mesmo se dirá
de todos os outros vícios: o que importa é eliminar os próprios vícios, e não
ensinar um comportamento impossível enquanto eles persistirem. A menos que
eliminemos as falsas opiniões que nos induzem em erro, não conseguiremos
que um avaro aprenda a usar correctamente o dinheiro, ou um medroso
7 consiga desprezar o perigo. O que interessa é fazer compreender ao primeiro
que a riqueza nem é um bem nem é um mal; demonstrar-lhe que os ricos são,
afinal, uns miseráveis; fazer compreender ao segundo que aquilo de que
habitualmente se tem medo não é tão temível quanto se julga, que a dor não
dura sempre, que não se morre mais do que uma vez; que a morte, à qual a lei
natural nos sujeita, tem este grande benefício de só nos atingir uma vez; que
na dor nos servirá de remédio a firmeza de ânimo que nos leva a suportar mais
facilmente o que suportarmos com coragem; que a própria natureza da dor tem
isto de notável: nunca é grande uma dor prolongada, nem nunca se pode
prolongar uma grande dor; que, finalmente, devemos aceitar com firmeza
8 aquilo que nos é imposto pelas leis do universo. Quando conseguirmos que o
homem, instruído nestes princípios, tenha uma clara noção da condição
humana, quando tiver entendido que não é feliz a vida que obedece ao prazer
mas sim a que obedece à natureza, quando tiver passado a abraçar, como
único bem próprio do homem, a virtude e a evitar como único mal o vício,
quando tiver percebido que tudo o mais — riquezas, honras, saúde, força,
poder — ocupa uma posição intermédia, sem ser, em si mesmo, nem um bem
nem um mal, então ele não precisará de conselheiro para, em cada situação,
lhe dizer: “deves andar deste modo, deves jantar daquele; esta é a actuação
correcta de um homem, de uma mulher, de um casado ou de um solteiro”.
9 Aqueles que com mais aplicação prodigalizam tais conselhos não são sequer
capazes de os adoptar para si mesmos. Conselhos tais dá-os o pedagogo à
criança, a avó ao neto; é todo encolerizado que o mestre-escola ensina que
não nos devemos encolerizar! E se acaso entramos numa escola primária
encontraremos entre as frases que as crianças copiam estas máximas que os
filósofos proferem de cenho carregado!
13 Há duas causas que nos podem fazer cair em falta: ou o nosso espírito
enferma de qualquer vício contraído no contacto com as falsas opiniões, ou
então, ainda que não dominado por opiniões falsas, é propenso à falsidade e
facilmente se deixa corromper por uma aparência sedutora mas falaz. Por isso
devemos ou sanar a nossa mente enferma e libertá-la dos vícios, ou então,
quando ela carece de ideias justas mas é propensa às falsas, actuar
profilacticamente. Ambos estes objectivos são atingidos pelos princípios
14 básicos da filosofia; logo, o método preceptivo não serve para nada. Além
disso, se pretendêssemos dar preceitos individuais, a tarefa seria inesgotável:
haveria que procurar uns preceitos adequados aos prestamistas, outros aos
agricultores, outros aos comerciantes, outros aos cortesãos dos monarcas,
outros àqueles que só convivem com os seus pares, ou com os seus inferiores!
15 Para dar preceitos a um homem casado sobre o comportamento a ter com a
esposa, haveria que distinguir se ele casou com uma virgem ou com uma
mulher já anteriormente casada, com uma ricaça ou com uma mulher sem
dote. A menos que se admita não haver qualquer diferença entre uma mulher
estéril e uma fecunda, entre uma jovem e uma mulher de certa idade, entre
uma mãe e uma madrasta! Abarcar todos os casos é impossível; ora, enquanto
os casos individuais exigem um tratamento particular, os princípios da filosofia
16 são breves e compreendem todos os casos. Acrescente-se ainda que os
preceitos da sabedoria devem ser bem definidos, e rigorosos; se não forem
bem definidos, então estão fora da sabedoria, já que esta é capaz de definir
tudo com exactidão. Logo, a parte preceptiva deve ser eliminada, porquanto
não é capaz de proporcionar a todos o auxílio que se propõe dar a alguns; ora
17 a sabedoria diz respeito a todos. Entre a loucura do vulgo e aquela que
confiamos aos médicos só há uma diferença: esta última é motivada por uma
doença, a primeira é causada pelas falsas opiniões; a segunda, é loucura
motivada por uma perturbação física, a primeira consiste numa deficiência do
espírito. Se alguém for preceituar a um louco como ele deve falar, andar, agir
em público ou em privado, esse alguém será mais louco ainda do que o outro;
o que interessa é sanar a bílis negra, é eliminar a causa específica da loucura.
O mesmo método deveremos seguir no caso da insânia do espírito: devemos
eliminar o mal em si, de outro modo os preceitos cairão em saco roto.
Para começar, quando ele diz que, se há nos olhos alguma impureza que
impeça a visão, é preciso eliminá-la, admito que alguém nesta situação não
careça de preceitos para ver, mas sim de um remédio que lhe limpe os olhos e
remova o obstáculo a uma visão perfeita. O facto de vermos é um fenómeno da
natureza, e quando eliminamos a doença recuperamos o uso da vista. Não é a
natureza, no entanto, que indica a cada um de nós os respectivos deveres.
19 Além disso, quando alguém se cura das cataratas, pelo facto de ter recuperado
a vista, nem por isso pode restituir a vista a outros. No entanto, alguém que se
liberte do vício é capaz de libertar outros também. Não são precisos
incitamentos ou conselhos para que os olhos distingam as propriedades das
cores; mesmo sem preceptor qualquer um sabe distinguir o branco do preto. O
espírito, pelo contrário, carece de muitos preceitos até saber como agir na vida.
20 O médico, aliás, não se limita a curar os doentes dos olhos. Dirá: “Não deves
expor a vista ainda fraca a uma luz muito intensa; deves avançar do escuro
para a penumbra, depois continuar, até acabares por, gradualmente, te
habituar à luz do dia. Não deves pôr-te a estudar logo após o jantar, não deves
forçar os olhos ainda cheios de líquido e inchados; evita receber no rosto uma
corrente de ar frio”, e outros conselhos semelhantes, cuja utilidade não é
inferior à dos medicamentos. Aos remédios, a medicina faz seguir os
conselhos.
Eu admito que, por si só, os preceitos não sejam eficazes para corrigir as
convicções falsas do nosso espírito; são, todavia, úteis, desde que aliados a
outros métodos. Por um lado, avivam a memória; por outro, questões que,
vistas na globalidade, podiam parecer confusas são entendidas com maior
clareza quando encaradas separadamente. Se assim não fosse teríamos de
considerar supérfluas as consolações e as exortações; ora nem umas nem
outras são supérfluas; logo, os conselhos também o não são.
167
[NOTA 4] G. Licínio Calvo, orador e poeta contemporâneo de César e Cícero (cf. Brutas, 283
as.), amigo íntimo de Catulo (carme 14), célebre sobretudo pelos seus discursos contra Vatínio
(cf. Catulo 53), ainda lidos e admirados no tempo de Tácito (dial. de orat., 21, 2) e Plínio-o-
Moço (epist., 1, 2).
procedes. Por isso mesmo, a tua memória deve ser avivada; não interessa que
estes princípios lá estejam guardados, mas que estejam activos. Todas as
ideias salutares devem estar em movimento, em permanente actuação de
modo a serem para nós não só objecto de conhecimento mas também de
prática. Acrescenta a isto que, assim, as verdades evidentes se tornam ainda
mais evidentes.
168
[NOTA 5] Catão, ad filium, frg. 10 lordan.
169
[NOTA 6] Publílio Siro, I, 21 Meyer.
170
[NOTA 7] Vergílio, Aen., X, 284. — Os códices vergilianos apenas têm o primeiro hemistíquio
(audentis fortuna iuuat); o resto da frase é acrescento de Séneca, não se sabendo se se trata
de criação sua ou se o encontrou em alguma edição “corrigida” de Vergílio.
dextra consiga combinar as respectivas forças. Importa por isso congregá-las e
uni-las, para que aumente o seu poder e elevem mais o nosso ânimo.
30 Nota: se os preceitos não servem para nada, então acabe-se de vez com
a educação e fiquemos contentes com o que a natureza nos deu. Quem assim
fala não vê que há pessoas de espírito ágil e atento, outras de espírito lento e
pesado, em suma, que umas são mais inteligentes do que outras. Ora, o vigor
da inteligência alimenta-se e robustece-se com os preceitos, adiciona novas
convicções às inatas, corrige os erros em que labora.
31 “Se alguém” — afirma Aríston — “não possuí princípios justos, para que
lhe servem as admonições, manietado como está por ideias incorrectas?”
De modo nenhum. Tal homem pode saber em teoria o que tem o dever de
fazer sem que o distinga claramente na prática. Ou seja, não são somente as
paixões que nos impedem de fazer o que a razão nos indica, mas também a
incapacidade de achar a actuação indicada em cada circunstância. Pode
suceder que tenhamos um espírito dotado de excelente disposição, mas
indeciso e incapaz de descobrir a via do cumprimento do dever: aqui está o que
os preceitos podem indicar.
37 “As leis não nos conseguem obrigar a fazer o que devemos. Ora o que
são as leis senão preceitos entremeados de ameaças?”
Também a filosofia não! E isso não significa que ela seja inútil ou ineficaz
na formação do espírito. E o que é, afinal, a filosofia senão a lei que rege a
totalidade da vida? Mas admitamos que as leis não têm utilidade: isso não
implica que os preceitos também não tenham utilidade. Ou então, deveremos
negar utilidade aos tratados de consolação, de dissuasão, de exortação, de
admoestação, de exaltação. Tais tratados ministram variados tipos de
40 preceitos, e graças a eles consegue chegar-se a um estado de espírito
perfeitamente equilibrado. Nada nos induz mais no espírito os princípios justos,
nada reconduz melhor ao bom caminho os hesitantes ou os propensos ao mal
do que a convivência com as pessoas de bem; vê-las frequentemente, escutá-
las frequentemente é algo que a pouco e pouco se nos vai gravando no íntimo,
a ponto de actuar com o vigor de preceitos. Que digo, o simples encontro com
os sábios é proveitoso, há sempre algo de profícuo na presença de um grande
41 homem, ainda que em silêncio. Não me é fácil explicar-te até que ponto isso
pode ser útil, muito embora compreenda claramente em que medida me foi de
facto útil! “Há-lá pequenos insectos” — diz Fédon — “cuja mordedura se não
sente, tanto é subtil e disfarçada a sua periculosidade; apenas o inchaço revela
que houve mordedura, embora no próprio inchaço se não distinga qualquer
ferida.” O mesmo te sucederá se conviveres com os sábios: tu não darás conta
de como e quando tal convívio te está sendo útil, mas virás a compreender que
te foi útil.
“Nada em excesso”.171
171
[NOTA 8] Sentença oracular (em grego mhde\n a4gan), como as citadas acima no § 28.
172
[NOTA 9] Publílio Siro, A 55 Meyer.
173
[NOTA 10] Publílio Siro, A 2 Meyer.
seus preceitos sem recorrer à violência? E bem mais profícua, naturalmente, e
penetra mais a fundo uma preceptística que apoie os seus preceitos na razão,
que não omita os motivos por que se deve agir desta ou daquela maneira, que
indique os frutos ao alcance de quem aceita e obedece aos preceitos. Se o uso
da autoridade é útil, também o é o da preceptística; ora o uso da autoridade é
útil, logo também o é o da preceptística.
174
[NOTA 11] Salústio, Bell. Iugurt., X, 6.
49 Se admitirmos que isto é verdade, então também a consolação é
supérflua (pois também ela comparticipa das duas outras partes da filosofia),
bem como a exortação, a persuasão e a própria argumentação, pois esta, para
se desenvolver, pressupõe desde logo um carácter completa e perfeitamente
formado. No entanto, se bem que estes tipos de discurso procedam de uma
perfeita disposição do espírito, é certo que uma perfeita disposição do espírito
também é procedente daqueles; ou seja, esta simultaneamente origina-os e é
50 originada por eles. De resto a tua objecção é válida para um homem que já
atingiu a perfeição e o mais alto grau de felicidade humana. Só tarde, todavia,
se atinge um tal estádio; entretanto, a um indivíduo ainda imperfeito mas em
progresso, há que indicar a via correcta de agir. Talvez a sabedoria, por si só,
mesmo sem conselhos, possa indicá-la a si mesma, porquanto já conduziu a
alma a um ponto tal que lhe é impossível mover-se senão segundo a justiça.
Os espíritos mais fracos, contudo, necessitam de alguém que os guie, dizendo:
51 “Deves evitar isto, deves fazer aquilo”. Além disso, se quisermos esperar a
altura em que, por nós mesmos, saibamos qual o melhor modo de agir, iremos
entretanto cometendo erros, e esses erros impedir-nos-ão de atingir um ponto
em que possamos estar contentes connosco; devemos deixar-nos guiar
enquanto ainda estamos aprendendo a guiar-nos por nós mesmos. Também as
crianças aprendem a escrever pelo exemplo: pega-se-lhes nos dedos, a mão
do mestre guia-os sobre os desenhos das letras, depois diz-se-lhes que imitem
o modelo apresentado, e que por ele corrijam a sua caligrafia. Um tal auxílio
deve ser dado ao nosso espírito enquanto aprende a guiar-se por um modelo.
175
[NOTA 12] O tratamento desenvolvido deste problema, a saber, se a parenética, ou
preceptística, e por si só “bastante para a formação do sábio”, será reservado para a carta 95.
55 pior em cada indivíduo. Arranjemos, portanto, um protector que de vez em
quando nos puxe as orelhas, que dissipe as opiniões do vulgo, que proteste
contra as preferências da multidão. Enganas-te se pensas que os vícios
nasceram connosco: vieram por acréscimo, foram incutidos em nós! Que
frequentes admoestações nos ajudem a repelir as opiniões que à nossa volta
56 se difundem! A natureza não nos predestinou para nenhum vício, antes nos
gerou puros e livres. Não expôs à superfície nada que fosse susceptível de
despertar a nossa avareza: pôs-nos debaixo dos pés o ouro e a prata, para que
pisássemos e calcássemos algo que só merece ser pisado e calcado. A
natureza ergueu-nos o rosto para o céu, para que tudo quanto criou de belo e
magnificente fosse visto de cara ao alto: o nascer e o pôr das estrelas, o
movimento vertiginoso do mundo que durante o dia nos revela a vista da terra e
durante a noite a do céu; a marcha dos astros, tão lenta à escala do universo,
mas tão rápida se pensarmos no espaço enorme que percorrem com
velocidade constante; os eclipses do Sol e da Lua quando situados em
oposição; e tantos outros fenómenos dignos de admiração, quer ocorram
regularmente quer resultem de causas inesperadas, tais como os rastos de
fogo durante a noite, os relâmpagos que, sem ruído de trovão, como que
despedaçam o céu, as colunas, as traves e outras variedades de fogos
57 celestes!176 Tudo isto colocou a natureza sobre as nossas cabeças, ao passo
que escondeu o ouro e a prata, e também o ferro, o qual, por causa dos metais
preciosos, nunca descansa em paz — sinal de que é por nosso mal que os
obtemos! Nós é que expusemos à luz do dia esses metais que nos levam à
guerra, nós é que rasgamos o ventre da terra para dele extrair a causa e o
instrumento das nossas desgraças, nós é que imputámos à fortuna os nossos
males, sem corar de colocarmos acima de nós aquilo que jazia nas
58 profundezas telúricas. Queres saber até que ponto é ilusório esse fulgor que te
deslumbra? Nada há mais sujo, nada menos brilhante do que esses metais
enquanto jazem imersos, cobertos de lama. Como não seria assim, se eles são
extraídos das trevas de intérminas galerias? Nada há mais informe do que eles
quando são trabalhados e depurados das suas impurezas. Repara ainda nos
operários cujas mãos os limpam de toda a terra impura que trouxeram das
minas, e verás quanta sujidade neles se acumula.
176
[NOTA 13] Sobre esta classe de fenómenos pronunciou-se Séneca longamente nos livros I
(fenómenos luminosos na atmosfera) e II (relâmpagos e trovões) das suas Naturales
Quaestiones.
60 ambição, que te diga não haver motivo para invejar aqueles a quem a multidão
considera grandes e afortunados; não haver motivo para que a aprovação do
vulgo destrua em ti a sã disposição de um espírito justo; não haver motivo para
que os adornos da púrpura e dos fasces te faça aborrecer a tua tranquilidade
de espírito; não haver motivo para julgares que é mais feliz do que tu (a quem o
lictor afasta do caminho) aquele diante de quem se abrem alas. Se queres
exercer uma autoridade, útil a ti mesmo e não gravosa para alguém, então
reprime os vícios.
Pensas tu que G. Mário, cônsul uma só vez (pois só uma vez obteve o
consulado, das outras todas usurpou-o!), ao esmagar os Teutões e os Cimbros,
ao perseguir Jugurta pelos desertos da África, era movido a afrontar tantos
perigos por instinto da virtude? Mário dirigia o exército, mas quem dirigia Mário
era a ambição.
1 Pedes-me que trate de uma matéria que há tempo te disse dever ser
adiada para tempo oportuno, e dedique uma carta a expor se aquela parte
prática da filosofia a que os gregos dão o nome de paraenetice e nós o de
praeceptiua basta só por si para se atingir a plena sabedoria. Sei que não me
levarias a mal se eu me recusasse ao teu pedido. Por isso mesmo vou mais
2 longe, e acedo ao que pedes, até porque quero que se cumpra o ditado: “Não
te ponhas a pedir o que não pretendes obter!” E que sucede muitas vezes nós
pedirmos com empenho coisas que recusaríamos se alguém no-las
oferecesse. Por ligeireza? Por excesso de gentileza? Seja qual for a razão,
apliquemos-lhe um castigo: acedamos largamente ao pedido. Muitas coisas
nós desejamos parecer querer quando de facto as não queremos. Numa leitura
pública, um autor levou uma vez uma obra histórica enorme, escrita em letra
miudinha, num volume densíssimo, e, depois de ler a maior parte, disse: “Se
querem, fico por aqui.” Ora os auditores, embora o seu único desejo fosse que
o homem se calasse imediatamente, gritaram em coro: “Continua a leitura,
continua!” Muitas vezes, também, queremos uma coisa mas escolhemos outra,
e nem sequer aos deuses confessamos a verdade; o que vale é que os deuses
3 ou não nos atendem ou têm pena de nós! Quanto a mim, vou proceder sem
qualquer compaixão: vou mandar-te uma carta gigantesca! Se te custar muito
lê-la, não terás mais do que dizer: “Bonito serviço que eu arranjei!“, e põe o teu
nome entre o daqueles homens que se desfizeram em galanteios para casar
com uma megera, ou se fartaram de suar para conseguir riquezas e nelas só
encontraram angústias, ou usaram todos os truques e esforços para obter
cargos públicos em que se sentem destroçados, em suma, indui-te na lista dos
artífices dos próprios dissabores!
177
[NOTA 14] De rerum natura, I, 54-7.
todo o corpo, o ventre dilatado graças ao mau hábito de exceder a sua
capacidade. E também o rosto esverdeado pelo derramamento da bílis, a
corrupção das vísceras em putrefacção, os dedos deformados pela perda de
flexibilidade nos tendões, os nervos entorpecidos e sem sensibilidade, ou, pelo
17 contrário, em contínuos estremeções. Para quê mencionar ainda as sensações
de náusea, as moléstias dos olhos ou dos ouvidos, o formigueiro na cabeça
que parece estoirar, as afecções provocadas por toda a espécie de úlceras
internas? Mas temos ainda os inúmeros tipos de febres: há febres súbitas e
altíssimas, há outras, fracas, mas contínuas e desgastantes, outras que vêm
18 acompanhadas de arrepios e de grandes tremores no corpo. Para quê citar
ainda outras incontáveis doenças, tormentos resultantes da vida luxuriosa?! De
todos estes males estavam isentos os homens de outrora, não corrompidos
ainda pela artificialidade, homens que sabiam dominar-se e cuidar de si.
Endureciam o corpo no trabalho, no esforço a sério, o cansaço vinha-lhes das
caminhadas, da caça, do trabalho da terra; a alimentação de que dispunham
era tal que apenas a esfomeados podia agradar! Por isso mesmo não tinham
necessidade de grande aparato medicinal, de todo este moderno arsenal de
instrumentos e pomadas! Uma vida simples dava-lhes uma saúde simples: as
19 variedades gastronómicas trouxeram consigo a multiplicidade das doenças. Vê
bem a mistura de iguarias que o nosso luxo gastronómico — e para tal devasta
a terra e o mar! — consegue fazer passar por um só esófago!
Necessariamente, comidas tão antagónicas entre si colidem umas com as
outras, provocam más digestões com toda a gama de esforços que exigem ao
estômago. Não admira, pois, que de alimentos de tão diversa natureza
resultem doenças multiformes, que iguarias provenientes de opostos reinos da
natureza e forçadas a coabitar num único estômago provoquem indigestões.
Em suma, a vida moderna arrasta consigo doenças não menos modernas!
178
[NOTA 15] Cf. Hipócrates, Aph., 6.28 e 29 (vol. IV p. 570 Littré).
179
[NOTA 16] Isto é, na prática do atletismo, dado o hábito de os atletas friccionarem o corpo
com óleo.
aventuraram na via da licenciosidade que agora, com os homens, são elas
quem desempenha o papel activo! Porquê admirar-nos então que Hipócrates, a
glória da medicina, o maior conhecedor da natureza humana, seja assim
apanhado a mentir, dada a presente abundância de mulheres calvas e
atacadas da gota?! Elas perderam as regalias próprias do seu sexo e,
renunciando à feminilidade, viram-se condenadas às moléstias dos homens.
180
[NOTA 17] Sobre o garum cf. P. Grimal, A Vida em Roma na Antiguidade, trad. Port.,
Publicações Europa-América, pp. 90-1 e nota 47.
27 partido em bocadinhos... ouriços181... e rodovalhos sem espinhas! Até já se tem
preguiça de comer os petiscos um a um: faz-se uma mistura de todos os
sabores. Faz-se no prato, em suma, o que deveria fazer-se no estômago. Só
falta ver qualquer dia servir a comida já mastigada! Então não dá muito menos
trabalho tirar as conchas e as espinhas, e pôr o cozinheiro a fazer o trabalho
dos dentes? “É multo aborrecido saborear cada coisa de sua vez: junte-se
tudo, saboreie-se tudo de uma só vez! Para que hei-de eu estender a mão para
um prato simples? Venha tudo ao mesmo tempo, misturem-se numa só massa
28 os acompanhamentos de diversos pratos! Saibam quantos costumam dizer que
a exibição de pratos variados é uma prova de luxo e ostentação, que a comida
não é para ser vista, mas sim saboreada. Ponha-se numa travessa só o que se
costuma pôr em várias, tudo indiferentemente misturado; não haja diferenças:
ostras, ouriços, búzios, rodovalhos — sirva-se tudo cozinhado e misturado num
29 só prato!” Um vomitado não formaria uma massa mais confusa! E, do mesmo
modo que as comidas chegam a esta confusão, também as doenças que elas
ocasionam não são individualizadas, mas sim confusas, várias, multiformes;
para lhes fazer frente, teve a medicina de multiplicar também as formas de
tratamento e de observação.
181
[NOTA 18] Texto cheio de corruptelas.
33 “hoje exige-se rapidez de mão e todos os recursos da arte”182
O que se busca é apenas o prazer! Nenhum vício se conserva dentro dos seus
limites: o luxo degenerou em ganância! O desprezo pela moral invadiu todos os
domínios: nada se considera ignóbil quando se pode pagar o preço. O homem
que para o homem devia ser coisa sagrada é exposto à morte apenas para
servir de divertimento; já era sacrilégio treinar homens para ferirem e ser
feridos agora atiramo-los para o circo nus e inermes, basta-nos a simples morte
34 como espectáculo!183 Por conseguinte, uma tal perversão de costumes exige
uma técnica mais vigorosa do que o habitual para conseguir dominar estes
vícios enraizados: temos de inculcar princípios capazes de extirpar por
completo as falsas convicções em vigor. Se, concomitantemente com os
princípios, usarmos também preceitos, consolações, exortações, talvez aqueles
35 possam vir a prevalecer: só por si serão ineficazes. Se queremos manter os
homens obedientes aos princípios, se queremos arrancá-lo aos vícios que os
dominam, há que ensinar-lhes primeiro o que é o mal e o que é o bem, há que
dar-lhes a saber que, exceptuando a virtude, todas as coisas podem mudar de
qualificativo, e merecerem umas vezes serem consideradas como más e outras
como boas. Na vida militar, o mais forte vínculo é o respeito à hierarquia, o
amor às insígnias, o repúdio da deserção; nestas condições é fácil conseguir
tudo o mais que se queira dos recrutas que prestaram juramento. Do mesmo
modo, nos homens que desejamos aliciar para a verdadeira felicidade,
devemos inculcar os princípios de base, devemos meter dentro deles a virtude.
É necessário que se sintam ligados a ela como por um temor supersticioso, é
preciso que a amem, que queiram viver com ela, que não possam passar sem
ela.
36 “Que dizes? Então não tem havido homens que, mesmo não iniciados nas
subtilezas da filosofia, se revelaram basicamente honestos e conseguiram
grandes progressos limitando-se a obedecer aos preceitos de ordem prática?”
Não o nego; havia neles um natural favorável que assimilou na passagem os
princípios salutares. Os deuses imortais também não aprenderam nenhuma
espécie de virtude por serem naturalmente dotados de todas, por o “ser bom”
fazer parte da sua natureza; igualmente entre os homens, alguns há que
possuem naturalmente um excelente carácter e que assimilam sem
necessidade de longa instrução os princípios tradicionais, que abraçam a via
da moralidade desde o primeiro momento em que dela ouvem falar; do meio
destes é que surgem aqueles génios que concitam em si toda a gama de
182
[NOTA 19] Vergílio, Aen., VIII, 442, com ligeira variante: exige-se corresponde a opus est,
introduzido por Séneca no texto em vez de omni, que, aliás, traduzimos – “todos os recursos” -
por fidelidade ao texto vergiliano.
183
[NOTA 20] Séneca nunca se cansa de censurar violentamente os sangrentos, mas populares,
espectáculos do Circo.
virtudes, que produzem eles mesmos virtudes. Mas aos outros, àqueles que
têm o espírito embotado, obtuso ou dominado por tradições erróneas, a esses
37 há que raspar a ferrugem que têm na alma. Mais ainda: se transmitirmos os
preceitos básicos da filosofia aos primeiros, rapidamente eles atingirão o mais
alto nível, pois estão naturalmente inclinados ao bem; se o fizermos aos outros,
os de natureza mais fraca, ajudá-los-emos a libertarem-se das suas convicções
erradas. Por aqui podes ver como são necessários os princípios básicos.
Temos instintos em nós que nos fazem indolentes ante certas coisas, e
atrevidos perante outras; ora, nem este atrevimento nem aquela indolência
podem ser eliminados se primeiro não removermos as respectivas causas, ou
seja, a admiração infundada ou o receio infundado. Enquanto tivermos em nós
esses instintos, bem poderás dizer: “estes são os teus deveres para com teu
pai, ou para com os filhos, ou para com os amigos, ou para com os teus
hóspedes” — o espírito de lucro será sempre uma causa de hesitações. Um
homem bem pode saber que se deve lutar pela pátria, mas o medo convencê-
lo-á do contrário; pode saber que se deve suar em benefício dos amigos até á
última gota de suor, mas o comodismo impedi-lo-á de o fazer; pode saber que
a maior ofensa para uma mulher casada é o marido ter uma amante, mas a
38 sensualidade impeli-lo-á a arranjar uma. Por conseguinte, de nada servirá dar
conselhos práticos se primeiro se não removem os obstáculos a que esses
conselhos sejam seguidos, do mesmo modo que de nada serve pormos à vista
e ao alcance de alguém armas que não poderá usar porque lhe não
desamarramos primeiro as mãos! Para que a alma possa pôr em prática os
39 conselhos que lhe damos, devemos primeiro desamarrá-la! Imaginemos
alguém que procede como deve ser: pode não proceder assim com frequência,
pode não proceder assim com constância, porque não sabe por que motivo
procede como deve ser. Às vezes, por mero acaso ou em virtude da prática,
podemos desenhar linhas rectas, mas não temos à mão uma régua que
permita verificar se são realmente rectas as linhas que julgamos tais. Um
homem que seja bom por acaso não dá garantias de que será sempre bom!
184
[NOTA 21] Peri kathêkontos, “Sobre o(s) dever(es)”.
47 Um tema habitual da parenética é o culto a prestar aos deuses. Podemos
aconselhar as pessoas a não acenderem lucernas ao sábado185, porque nem
os deuses têm falta de luzes nem os homens têm grande prazer na fuligem.
Podemos impedir as pessoas de fazerem as visitas de saudação matinais ou
de estacionarem à porta dos templos: estes deveres podem agradar às
ambições humanas, mas para prestar culto à divindade basta conhecê-la.
Podemos impedi-las de ofertarem a Júpiter toalhas e raspadores de banho, ou
de oferecerem um espelho a Juno: a divindade não carece de instrumentos
auxiliares, pela boa razão de que ela própria é auxiliar do género humano,
48 sempre à disposição de todos os homens, onde quer que seja. Alguém que
porventura oiça dizer qual o modo de proceder nos sacrifícios, ou seja
aconselhado a manter-se afastado de superstições doentias, nunca progredirá
efectivamente se não conceber no seu espírito a real natureza da divindade, a
qual nada possui mas tudo concede, como ser desinteressadamente benéfico.
A razão porque os deuses são benfazejos reside na sua própria natureza.
49 Enganamo-nos se pensarmos que os deuses não querem fazer o mal: eles não
o podem! Eles estão ao abrigo das injúrias, tal como são incapazes de as fazer,
na medida em que fazer mal ou sofrer mal são duas coisas que mutuamente se
implicam. A sua natureza, a mais excelsa e perfeita que existe, tal como os pôs
ao abrigo de todos os perigos igualmente os tornou incapazes de constituírem
50 um perigo. O primeiro acto de culto a prestar aos deuses é acreditar neles;
seguidamente, reconhecer neles a majestade, e reconhecer também neles a
bondade, sem a qual não há majestade possível; saber que são eles que
presidem ao universo, que tudo governam graças ao seu poder, e que velam
pela segurança da espécie humana mesmo quando não se preocupam com
cada homem individualmente. Os deuses nem ocasionam o mal nem o sofrem;
podem, todavia, castigar alguns indivíduos, reprimi-los, atribuir-lhes punições,
ou mesmo, por vezes, puni-los, dando a aparência de fazerem bem. Se queres
ser agradável aos deuses sê tu próprio bom! Prestar-lhes-ás culto em
abundância se te limitares a imitá-los!
185
[NOTA 22] Alusão ao culto judaico, que, apesar do anti-semitismo mitigado das autoridades
romanas, se difundiu um tanto em Roma e chegou mesmo a gozar de uma certa protecção de
Popeia, mulher de Nero.
52 outros? Tudo quanto vês, este espaço em que se contém o divino e o humano,
é uno, e nós não somos senão os membros de um vasto corpo. A natureza
gerou-nos como uma só família, pois nos criou da mesma matéria e nos dará o
mesmo destino; a natureza faz-nos sentir amor uns pelos outros, e aponta-nos
a vida em sociedade. A natureza determinou tudo quanto é lícito e justo; pela
própria lei da natureza, é mais terrível fazer o mal do que sofrê-lo; em
obediência à natureza, as nossas mãos devem estar prontas a auxiliar quem
53 delas necessite. Devemos ter gravado na alma, e sempre na ponta da língua, o
verso famoso:
186
[NOTA 23] Terêncio, Heautontimorumenos, 77.
nem investigar qual o juízo correcto a fazer sobre cada coisa, em suma, se não
aferir todas as coisas pela verdade. A serenidade não é apanágio senão de
quem alcançou um conhecimento imutável e infalível sobre o mundo: os
demais tomam agora uma decisão, depois arrependem-se e permanecem
58 indecisos sem saber se hão-de levar ou não até ao fim os seus propósitos. A
causa que os faz andar assim à deriva é eles guiarem-se pelo mais falível dos
critérios: a opinião comum! Se queres que a tua vontade permaneça a mesma,
terás de só desejar a verdade. Ora, à verdade não podemos chegar sem
conhecermos os princípios básicos da filosofia, os quais incidem sobre a
totalidade da vida. O bem e o mal, a moralidade e a imoralidade, a justiça e a
injustiça, a piedade e a impiedade, as virtudes e o emprego das virtudes, a
posse de bens úteis, a reputação e a dignidade, a saúde, a prestança física, a
beleza, a acuidade dos sentidos — tudo isto exige da nossa parte uma correcta
capacidade de avaliação. Há que saber quanta e qual a importância a conceder
59 aos meios de fortuna. Tu, efectivamente, laboras em erro ao atribuir a certas
coisas maior valor do que o devido, e laboras tanto mais em erro quanto é certo
que coisas consideradas entre nós como especialmente valiosas (riqueza,
influência, poder) não valem, na realidade, sequer um sestércio. Ora, a isto não
poderás chegar se ignorares a proposição de base através da qual acedemos à
determinação do valor respectivo de cada coisa Assim como as folhas,
isoladamente, não podem estar viçosas e precisam de ramos em que se
sustentem e de que recebam a seiva, assim também todos esses preceitos,
desamparados, murcham; as podas só medram se plantadas!
188
[Nota 11] Cf. livros X1—XlII, nota 19.
com coragem a sua dor, chamam-lhe desumano e sem coração; quando vêem
alguém cair por terra e abraçar-se ao cadáver, dizem-no efeminado e fraco. Na
realidade, tudo deve ser aferido pelo critério da razão. Nada há mais estúpido
do que querer ganhar a reputação de sofredor e fazer ostentação de lágrimas;
lágrimas que, num homem sábio, eu entendo que podem ser consentidas ou
espontâneas. Já te explico a diferença. Quando nos chega a notícia dolorosa
de um falecimento, quando seguramos nos braços o cadáver que nos
aprestamos a entregar às chamas, as lágrimas tombam por uma necessidade
natural, o espírito, atingido pela força da dor, abala-nos todo o corpo e,
portanto, também os olhos, dos quais espreme, por assim dizer, a humidade
19 neles habitual. Estas lágrimas caem sob pressão mesmo contra a nossa
vontade. De tipo diferente são aquelas lágrimas que nós deixamos correr
quando recordamos os entes queridos já falecidos: sentimos algo de doce na
tristeza com que relembramos as suas palavras alegres, a sua conversação
risonha, a sua prestimosa familiaridade; os olhos então afrouxam, numa como
que satisfação. As lágrimas deste tipo, consentimo-las; as outras, somos
20 forçados a elas. Não há, por conseguinte, motivo algum para que tu retenhas
ou soltes as lágrimas em função de quem te rodeia ou se senta ao pé de ti:
nunca as lágrimas são tão indignas (quer tombem quer não) como quando são
representadas! Deixa-as correr espontaneamente. Pode-se chorar sem perder
a tranquilidade e a compostura; muitos sábios houve que choraram sem perda
da sua autoridade, antes com tal comedimento que, mesmo chorando, deram
21 mostra tanto de humanidade como de dignidade. É possível, repito, obedecer à
natureza sem perder o decoro. Tenho visto pessoas que assistem ao funeral de
parentes impondo respeito, mostrando no rosto todo o amor que tinham pelo
falecido mas sem armarem minimamente ao sofrimento: em suma, com o
comportamento exigido por uma emoção autêntica. Mesmo na dor há que
manter a decência; o sábio deve conservá-la e observar nas lágrimas o mesmo
justo limite que em tudo o mais. Os insensatos, esses tão exagerados são na
alegria como na dor.
189
[NOTA 12] Metrodoro, fr. 34 Koerre.
30 afectado quem não está morto. Nenhuma coisa, repito, pode lesar quem já
nada é; se alguém é lesado, é porque está vivo, O que imaginas tu poder
causar mal a alguém: já não ser alguém, ou ser ainda alguém? Uma pessoa
não pode ser atormentada nem pelo facto de não ser (pois quem nada é nada
sente) nem pelo facto de ser, pois desconhece o principal óbice da morte, que
31 é precisamente o não ser. Digamos, portanto a um homem que chora com
saudades de um filho arrebatado na primeira infância: no que concerne à
brevidade da existência, todos nós, jovens ou velhos, em comparação com o
universo, estamos em pé de igualdade. O que nos cabe de toda a sucessão
dos tempos é menos que uma ínfima parte, porque uma parte, mesmo ínfima, é
uma parte, enquanto o tempo da nossa vida é praticamente nulo. Mas, ó
loucura humana!, que planos grandiosos nós fazemos para esta nulidade que é
a existência!
11 Se hoje levei mais tempo antes de responder à tua carta não foi porque
as minhas ocupações mo impedissem. Não temas vir a ouvir-me dar uma
desculpa destas! Eu tenho todo o vagar que quero, e, aliás, só não tem vagar
quem não quer. Os afazeres não andam atrás de alguém: os homens é que se
agarram aos afazeres, entendendo as suas ocupações como sinónimo de
felicidade. Porque foi então que eu não te respondi imediatamente? Porque a
2 2 questão que me colocaste se inseria no plano da obra que estou compondo: tu
sabes bem que eu pretendo escrever um livro abarcando todo o âmbito da
filosofia moral, no qual é minha intenção desenvolver todos os problemas com
ela relacionados190. Por isso hesitei entre adiar a resposta até chegar o
momento de tratar no livro essa questão, ou conceder-te audiência desde já,
embora não fosse a tua vez. Acabei por achar que seria mais simpático receber
quanto antes um consulente vindo de tão Ionge.191
Que questões são estas, afinal? Bom, são daquelas cuja resolução é
mais aliciante do que propriamente útil, a exemplo daquela que me puseste na
tua carta: “se o bem é um corpo?” Ora o bem actua, uma vez que nos é útil, e
4 tudo quanto actua é um corpo. O bem move-nos a alma, de certa maneira dá à
alma forma e limites, acções que são específicas dos corpos. Os bens do corpo
são corpos; logo também os bens da alma o são uma vez que a alma é um
5 corpo192. O bem próprio do homem é necessariamente um corpo, uma vez que
o próprio homem é um ser corpóreo. Mentir-te-ia se dissesse que não são
corpos os alimentos que o homem ingere, ou as mezinhas que toma para
190
[NOTA 19] Contemporaneamente com as cartas a Lucílio, Séneca redigiu um volumoso
tratado, em sete livros, dedicado ao estudo de diversos temas científicos, com o título de
Naturales Quaestiones. Das três grandes áreas em que o estoicismo repartia a filosofia —
lógica, física e ética — as N.Q. inserem-se obviamente na área da física. Dado o objectivo de
Séneca na obra a que aqui se refere (e que se perdeu) — tratamento de diversos problemas
(quaestiones) de ordem ética — poderemos supor que o título do tratado seria,
eventualmente, Morales Quaestiones.
191
[NOTA 20] A “metáfora jurídica” aqui usada por Séneca — o consulente vindo de longe a
Solicitar audiência — justifica-se por Lucílio ainda se encontrar na Sicília, o que aumentaria a
sua curiosidade pela resolução do problema posto.
192
[NOTA 21] Que a alma é corpórea é um ponto em que os mestres do estoicismo antigo
estão todos de acordo, cf. por ex. S.V.F., I, 137 (= II, 790): “A morte consiste na separação da
alma e do corpo; ora, nenhuma coisa incorpórea se pode separar de um corpo, pois também
nenhuma coisa incorpórea pode entrar em contacto com um corpo. A alma tanto contacta
como se separa do corpo, logo a alma é um corpo.”
proteger ou recuperar a saúde; logo, o bem próprio do homem é um corpo.
Acho que tu não hesitarás em reconhecer como corpos as paixões (e assim
meto já aqui uma coisa que tu não me perguntaste) — tais como a cólera, o
amor, a tristeza, a menos que tu duvides que elas nos alteram o rosto, nos
enrugam a testa, nos alongam a face, nos tornam a cara encarniçada ou nos
6 fazem ficar sem pinga de sangue. Pois bem: pensas que estes evidentes sinais
do nosso corpo podem ser ocasionados sem ser por um corpo? E se as
paixões são corpos, igualmente o são as doenças da alma, tais como a
avareza, a crueldade, os vícios empedernidos e já absolutamente insanáveis;
7 portanto, são corpos a maldade, em todas as suas variedades — malevolência,
inveja, soberba; portanto, são corpos os bens, primeiro porque são os opostos
dos vícios que assinalei, segundo porque se manifestam por sinais do mesmo
tipo. Nunca reparaste como a coragem dá novo vigor ao olhar? Como a
prudência reforça a atenção? Como o respeito acentua a modéstia e a calma?
Como a alegria aumenta a serenidade? Como a severidade acentua a rigidez?
Como a ternura aumenta a sensação de bem-estar? Consequentemente, tudo
quanto altera a cor e a forma dos corpos é igualmente um corpo, o qual exerce
naqueles a sua acção. De facto, todas as virtudes que eu enumerei são bens,
8 assim como aquilo que delas resulta. E será possível duvidar que seja corpo
tudo aquilo por que um corpo pode ser tocado?
como diz Lucrécio193. Ora, tudo quanto eu referi não poderia alterar o nosso
9 corpo se lhe não tocasse; por conseguinte, todos são corpos. Mais ainda: tudo
quanto tenha em si força suficiente para nos impelir, forçar, deter ou impedir de
nos movermos — tem de ser um corpo. Pois bem: o medo não nos detém? A
audácia não nos impele? A coragem não nos incita e dá ânimo? A temperança
10 não nos refreia e faz recuar? A satisfação não nos exalta? A tristeza não nos
abate? Em suma, tudo quanto nós fazemos, fazemo-lo sob ordens ou da
maldade ou da virtude, e tudo quanto exerce poder sobre um corpo, tudo — é
um corpo, tudo quanto dá força a um corpo — é um corpo! O bem de um corpo
é corpóreo; o bem do homem é o bem de um corpo, logo, é corpóreo.
193
[NOTA 22] De rerum natura, I, 304.
194
[NOTA 23] Literalmente, “estamos jogando aos latranculi”; os latranculi (diminutivo de latro
“ladrão”) eram peões que se movimentavam num tabuleiro de 64 casas de cor alternada, no
género do actual jogo das damas.
formado; nós é que estamos habituados a desperdiçar tudo, e a filosofia não
foge à regra. Sofremos de intemperança em tudo, até no uso das letras.
Estudamos para a escola, não para a vida!195
195
[NOTA 24] Máxima famosa, e de dramática actualidade; cf. Max Pohlenz, Die Stoa, I, p. 290
ss.
Carta 107
1 Que é feito da tua capacidade de prever? Onde está a tua sagacidade na
apreciação das coisas? Onde está a tua grandeza de alma? Deixares-te afligir
por uma questão tão mesquinha! ... Os teus escravos entenderam que as tuas
múltiplas ocupações lhes davam azo para se pôrem em fuga! Se os teus
amigos te enganassem (continuemos, apesar de tudo, a dar-lhes o nome que a
nossa ingenuidade lhes atribuiu, para lhes não chamarmos coisa pior)196 ......
ausentaram-se dos serviços que te prestavam esses homens que não só não
apreciavam a tua generosidade como ainda te imaginavam capaz de fazer mal
2 a alguém. Nada disto se pode considerar um acontecimento insólito e
inesperado. Sentir-se lesado por um caso destes é tão ridículo como lamentar-
se por ser salpicado no balneário, empurrado no meio da multidão ou sujo por
um bocado de lama. A condição da vida humana assemelha-se à passagem
por um balneário, uma multidão ou uma estrada: certos contratempos serão
provocados, outros casuais. Não é coisa fácil, a existência. Iniciaste uma longa
jornada: hás-de escorregar, de tropeçar, de cair, de te fatigar, de chamar (sem
sinceridade!) pela morte! Aqui terás de abandonar o teu companheiro, além de
levá-lo à sepultura, acolá de te precaveres contra ele. É através destas
contrariedades que avaliaremos até que ponto é pedregoso este caminho da
3 vida. Quem quiser morrer deve ter a alma preparada contra tudo; deve ter
consciência de ter chegado ao local onde ressoa o raio, deve estar ciente de
ter chegado lá onde
Temos de viver com estes seres por companhia. Tu não podes escapar a
estes males, mas podes aprender a desprezá-los — e para tanto bastar-te-á
meditar neles sem cessar e conjecturar que todos eles podem ocorrer.
4 Qualquer pessoa enfrenta valorosamente uma situação para a qual se
preparou com antecedência, e resiste mesmo às circunstâncias difíceis se
nelas tiver previamente pensado. Um indivíduo mal preparado, pelo contrário,
fica em pânico à mínima contrariedade. Temos, portanto, de fazer com que
nada nos caia em cima inopinadamente; e como as coisas nos parecem mais
196
[NOTA 24] Texto corrupto e lacunar. Séneca deveria estabelecer uma oposição entre
amigos e escravos: se fossem amigos a enganar Lucílio, o caso seria relativamente grave
(porquanto os pretensos amigos se revelariam, afinal, falsos), mas tratando-se de escravos
fugitivos o caso carecia de gravidade, e era mesmo previsível.
197
[NOTA 26] Vergílio, Aen., VI, 274-5; Séneca volta a citar o v. 275 na carta 108, 29.
graves quando não são previstas, uma meditação contínua conseguirá que não
te vejas em caso algum com a inexperiência de um recruta!198
198
[NOTA 27] Tiro, o “recruta”, o soldado acabado de ingressar nas fileiras, ainda inexperiente.
É relevante a insistência com que Séneca usa metáforas extraídas da linguagem militar para
aludir à contínua luta do filósofo por se aproximar da perfeição.
199
[NOTA 28] Lacuna, postulada por Summers e aceite por Reynolds.
200
[NOTA 29] Cf. supra nota 27.
versos, e que eu, seguindo o exemplo desse grande escritor que foi Cícero, me
permito traduzir para a nossa língua. Se eles te agradarem, acolhe-os
favoravelmente; se não te agradarem, fica pelo menos sabendo que eu
procurei imitar o exemplo de Cícero.
11 “Guia-me, ó pai que reges o excelso céu,
201
[NOTA 30] S.V.F., I, 527. — O original grego dos quatro primeiros versos (de que Séneca dá
uma tradução livre) é conhecido, v. o fr. citado dos S. VF.: o quinto verso, porém, não se
encontra nas fontes gregas; se já figurava no texto de Cleantes ou se, pelo contrário, é da
autoria de Séneca, adhuc sub iudice lis est. Cf. do mesmo Cleantes o belo hino a Zeus em S.V.F.,
I, 537 (trad. portuguesa em M. H. da Rocha Pereira, Hélade, Coimbra,4 1982, pp. 444-5).
Carta 108
202
[NOTA 31] Cf. supra, carta 106, 2 e nota 19. [NOTA 19] Contemporaneamente comas cartas
a Lucílio, Séneca redigiu um volumoso tratado, em sete livros, dedicado ao estudo de diversos
temas científicos, com o título de Naturales Quaestiones. Das três grandes áreas em que o
estoicismo repartia a filosofia – lógica, física e ética – as N.Q. inserem-se obviamente na área
da física. Dado o objectivo de Séneca na obra a que aqui se refere (e que se perdeu) –
tratamento de diversos problemas (quaestiones) de ordem ética – poderemos supor que o
título do tratado seria, eventualmente, Morales Quaestiones.
mínima influência!” Claro que conhecemos, frequentadores obstinados e
assíduos, até; mas a esses chamo eu “hóspedes” dos filósofos, não
6 “discípulos”. Há quem vá à escola apenas para ouvir, mas não para aprender,
tal como se vai ao teatro pelo prazer de escutar um belo discurso, uma bela
voz ou uma bonita peça! Urna grande parte dos frequentadores das escolas
filosóficas vai lá apenas para passar o tempo. Não o faz para aprender a
defender-se de algum vício, para interiorizar alguma lei moral que conduza ao
aperfeiçoamento do carácter; vai lá apenas pelo prazer de ouvir. Várias
pessoas levam consigo o bloco de apontamentos, para anotar, não
pensamentos, mas frases que depois repetem sem proveito para ninguém, do
7 mesmo modo que as ouviram sem proveito próprio. Algumas contudo,
entusiasmam-se com as máximas sublimes, ficam mesmo inflamadas, de rosto
e de espírito, de paixão pelos oradores, numa excitação semelhante ao efeito
das flautas sobre os eunucos frígios, que ficam fora de si como se por ordem
divina. A tais pessoas, o que as arrebata e excita é a beleza dos pensamentos,
e não a harmonia de palavras ocas. Ao ouvir uma enérgica dissertação contra
o medo da morte ou uma corajosa diatribe contra a fortuna sentem de imediato
o desejo de pôr em prática o que ouviram. As palavras penetraram até ao
âmago, as pessoas comportar-se-ão de acordo com essas máximas - na
condição de o respectivo efeito lhes perdurar no espírito, na condição de essa
nobre disposição se não chocar de imediato contra a influência, sempre
deletéria, do vulgo. Poucos são, de facto, os que conseguem chegar a casa
8 com a mesma disposição de espírito com que estavam na escola. Não é difícil
levar um auditor ao desejo do bem; a todos nós a natureza deu, em potência, a
semente da virtude. Todos nascemos com aptidão para toda a espécie de bem;
a influência desse bom instigador de consciências desperta as capacidades
latentes do espírito para a virtude. Não vês tu como o teatro em peso aplaude
sempre que se ouve alguma daquelas máximas que todos unanimemente
reconhecemos e aprovamos como verdadeiras?
9 “Raras são as posses dos pobres, nulas as dos avaros.”203
Até o mais sórdido dos espectadores aplaude ao ouvir estes versos, contente
de ver os seus vícios assim condenados. Quanto maior não seria o aplauso se
tais máximas fossem proferidas por um filósofo, sobretudo se tão nobres
pensamentos fossem moldados em verso de modo a mais eficazmente a ideia
10 ficar gravada no espírito dos não iniciados! Costumava dizer Cleantes que, “tal
como o ar que expiramos produz um som mais forte se for expelido pelo longo
e estreito tubo de uma trompa e sair por fim pela larga abertura da campânula,
também as nossas ideias se tornam mais nítidas quando condensadas na
203
[NOTA 32] Publílio Siro, I, 7, Meyer.
204
[NOTA 33] Publílio Siro, I, 5, Meyer.
forma rígida do verso”205 E menor a atenção que prestamos e o efeito que em
nós produz a mesma coisa dita em prosa; quando uma ideia elevada é
expressa numa forma métrica rígida, a mesma máxima parece, por assim dizer,
11 lançada por músculos bem mais robustos. Fazem-se muitas dissertações sobre
o desprezo pelas riquezas, compõem-se enormes discursos para ensinar aos
homens que a verdadeira riqueza está na alma e não nos bens materiais, que é
abastado o homem que sabe adaptar-se à sua pobreza e se sente rico com
pouco, mas toca-nos mais o espírito ouvirmos o mesmo dito em verso:
205
[NOTA 34] S.V.F. I, 487 (cf. ibid. 486).
206
[NOTA 35] Publílio Siro, I, 56 Meyer.
207
[NOTA 36] Publílio Siro, Q, 74 Meyer.
208
[NOTA 37] Cf. S.V.F., III, 332; Séneca, Thyestes, 344-68.
inserindo-me na vida da sociedade, apenas guardei uns poucos desses bons
costumes iniciais. Entre eles a abstenção, ao longo de toda a minha vida, de
ostras e de cogumelos, pois, mais do que alimentos, são simples excitantes do
paladar que assim como entram assim saem, e só servem para obrigar as
pessoas, já cheias, a comer ainda mais (coisa excelente para os glutões que se
16 atafulham para lá da sua capacidade)! Entre eles a rejeição, ao longo de toda a
minha vida, do uso de perfumes, pois entendo que o melhor perfume do nosso
corpo é a ausência de cheiro. Entre eles a recusa de ingerir uma gota de vinho.
Entre eles o meu afastamento, ao longo de toda a vida, dos balneários,
porquanto me parece um hábito inútil e sofisticado pôr o corpo a destilar e
enlanguescer. Outros hábitos que a princípio rejeitara acabaram por voltar, mas
de modo a que, mesmo não cortando com eles, os pratico com uma
moderação próxima da quase total abstinência, o que é talvez mais difícil
ainda: há certos costumes que é mais difícil moderar do que erradicar por
completo.
209
[NOTA 38] V. Ovídio, Met., XV, 75 ss.
corpos celestes que se movem por um circuito determinado, mas que também
os seres vivos atravessam várias fases e as almas têm igualmente a sua
21 órbita? Grandes homens têm acreditado nesta doutrina. Suspende, se
quiseres, o teu juízo sobre ela, mas aceita na íntegra as suas consequências.
Se a teoria é verdadeira, a abstenção de carne dar-te-á uma vida inocente; se
é falsa, uma vida frugal. Em que é que te prejudica a aceitação destes
princípios? Apenas te faço renunciar aos hábitos alimentares dos leões e dos
22 abutres!” Estimulado por estas palavras comecei a deixar de comer carne, e ao
fim de um ano esta dieta já se tornara não só fácil como até agradável de
praticar. Cheguei mesmo a pensar que o espírito se me tornara mais ágil,
embora hoje te não possa garantir se de facto o estava. E sabes porque me
deixei disto? O meu tempo de juventude coincidiu com o acesso de Tibério
César ao principado210. Por essa época, praticavam-se em Roma vários cultos
exóticos e considerava-se indício de adesão a tais superstições a abstenção da
carne de certos animais211. A pedido insistente do meu pai, — não porque
temesse alguma acusação, mas porque embirrava com a filosofia! —, voltei
aos hábitos antigos, sem que, aliás, ele tivesse tido grande dificuldade em
23 convencer-me a jantar melhor. Átalo costumava recomendar o uso de um
colchão que resistisse ao peso do corpo, e, eu, mesmo depois de velho,
continuo a deitar-me numa cama em que o meu corpo não deixa marcas.
não o faz com a intenção de meditar: “Temos de estar atentos; se não nos
apressamos, ficamos para trás; o dia escoa-se veloz e faz-nos escoar com ele;
somos arrebatados sem dar por isso; planeamos tudo com vista ao futuro, e
ficamos inertes enquanto à nossa volta tudo se precipita!” Pelo contrário, limita-
210
[NOTA 39] Tibério alcançou o poder, após a morte de Augusto, no ano 14 da nossa era.
Conforme a data que se admita para o nascimento de Séneca (as datas propostas variam entre
4 e 1 a.C.: v. P. Grimal, Sénèque ou la conscience de l’Empire, Paris, 1978, pp. 56 ss.), o filósofo
teria por essa altura entre 15 e 18 anos.
211
[NOTA 40] Nomeadamente o culto de Ísis e o culto judaico, aliás objecto de interdição por
parte do imperador, v. Tácito, Ann., II, 85, 5.
212
[NOTA 41] Vergílio, Georg., III, 284.
se a observar que Vergílio, sempre que alude à velocidade do tempo, emprega
o verbo fugir!...
a crueldade.”213
25 Quem tiver na mira a filosofia usará estes versos no sentido justo. Observará
então: “Vergílio nunca diz que os dias marcham, mas sim que fogem, o que
significa a forma mais veloz de corrida; e também que os nossos melhores dias
são os primeiros que nos escapam. Porquê então hesitarmos em apressar o
passo, e ver se conseguimos acompanhar a rapidíssima velocidade do tempo?
26 O melhor passa voando, cedendo o lugar ao pior.” Numa ânfora o líquido mais
puro é o primeiro a extravasar, deixando para o fim as impurezas, mais densas;
também na nossa vida os primeiros anos são os melhores. Iremos nós deixar
que eles se dissipem em interesse alheio, guardando para nós próprios apenas
as borras? Guardemos no espírito esta frase, aceitemo-la como se proferida
por um oráculo:
29 Além disso notará também que o poeta atribui à velhice o epíteto de “amarga”:
213
[NOTA 42] Vergílio, Georg., III, 66-8.
“surge logo a doença, a amarga velhice.”
Não é para admirar, aliás, que da mesma matéria cada um procure extrair o
que interessa à sua especialidade: no mesmo prado em que o boi procura a
erva, o cão persegue a lebre e a cegonha o lagarto!
Deste passo conclui ele que entre os antigos a palavra ops não significava
apenas “auxilio” (auxiliam) mas também “esforços” (opera). Énio pretende dizer
214
[NOTA 43] Vergílio, Aen., VI, 275: cf. supra a carta 107, 3 e nota 26.
215
[NOTA 44] Cícero, Rep., II, fr. 18.33, 21.37 (pp. 316, 318) Mueller.
216
[NOTA 45] Fenestela, Ann., fr. 6* Perer.
217
[NOTA 46] Cícero, Rep., fr. 7,p. 379 Mueller.
218
[NOTA 47] Énio, fr. var. 19-20 Vahlen2 (=epigr., 5-6 Warmington ).
que ninguém, cidadão ou inimigo, foi capaz de dar a Cipião uma “compensação
34 condigna pelos seus esforços.” A seguir ficará todo ufano ao descobrir onde
Vergílio se inspirou para escrever
Énio, afirma, foi buscar esta imagem a Homero, e Vergílio a Énio, como se
comprova com a presença na “República” de Cícero deste epigrama eniano:
“Se alguém é dado ascender às moradas dos deuses, para mim só abre-
se a vasta porta do céu!”220
35 Mas com esta conversa arrisco-me a assumir o papel de filólogo ou de
gramático! Prefiro aconselhar-te a que escutes os filósofos ou leias as suas
obras com o único propósito de atingires a felicidade, em vez de andares à cata
de arcaísmos, de expressões figuradas, de metáforas atrevidas ou de figuras
de estilo. Procura recolher, isso sim, preceitos que te sejam úteis, frases e
lições cheias de sentido que possas desde logo pôr em prática. Façamos com
36 que o nosso estudo transforme as palavras em acto. Ninguém, em meu
entender, é mais prejudicial à humanidade do que aqueles que estudam a
filosofia como um mister venal, e que vivem em total discordância com aquilo
que apregoam. A sua própria pessoa é a mais completa prova da inutilidade do
seu ministério, como homens sujeitos a todos os vícios que pretensamente
37 combatem. Um mestre deste tipo é tão inútil como, em plena tempestade, um
timoneiro enjoado! Entre a violência das ondas há que segurar com firmeza o
leme, fazer frente à fúria do mar, subtrair as velas à ventania: para que servirá
um piloto a vomitar, de cabeça à roda? As tempestades que nos afligem nesta
vida não são bem maiores do que as que assaltam qualquer navio? Para quê
38 palavreado, quando o importante é segurar o leme? Todas as tiradas que
esses falsos mestres declamam ante multidões de ouvintes não lhes
pertencem: são frases de Platão, de Zenão, de Crisipo, de Posidónio e de
inúmeros outros notáveis pensadores. A única maneira de comprovar que
essas teorias também lhes pertencem seria esta: viverem de acordo com o que
apregoam!
39 Por agora, cheguei ao fim do que tinha para te dizer. Quanto ao assunto
que me tinhas pedido para tratar vou guardá-lo na íntegra para a próxima carta.
Satisfarei então o teu desejo, pois agora corria o risco de abordar, já cansado,
uma matéria difícil e que exige total atenção e capacidade de concentração.
219
[NOTA 48] VergíIio, Georg., III, 260-1
220
[NOTA 49] Cícero, Rep., fr. 6, p 379, Énio, fr. var, 23-24 Vahlen2 ( =epigr. 3-4 Warrnington).
Carta 109
1 Estás interessado em saber se um sábio pode ser útil a outro sábio. Nós
definimos o sábio como um homem dotado de todos os bens no mais alto grau
possível. A questão está pois em saber como é possível alguém ser útil a quem
já atingiu o supremo bem. Ora, os homens de bem são úteis uns aos outros. A
sua função é praticar a virtude e manter a sabedoria num estado de perfeito
equilíbrio. Mas cada um necessita de outro homem de bem com quem troque
2 impressões e discuta os problemas. A perícia na luta só se adquire com a
prática; dois músicos aproveitam melhor se estudarem em conjunto. O sábio
necessita igualmente de manter as suas virtudes em actividade e, por isso
mesmo, não só se estimula a si próprio como se sente estimulado por outro
3 sábio. Em que pode um sábio ser útil a outro sábio? Pode servir-lhe de
incitamento, pode sugerir-lhe oportunidades para a prática de acções virtuosas.
Além disso, pode comunicar-lhe as suas meditações e dar-lhe conta das suas
descobertas. Nunca faltará mesmo ao sábio algo de novo a descobrir, algo que
4 dê ao seu espírito novos campos a explorar. Os indivíduos pérversos fazem
mal uns aos outros, tornam-se mutuamente piores, na medida em que
despertam a ira, favorecem o mau carácter, enaltecem os prazeres; tais
indivíduos são mesmo tanto mais nocivos quanto mais partilham os seus vícios
e juntam as suas forças maléficas com um objectivo comum. O contrário é
igualmente válido: um homem de bem só pode ser útil a outro homem de bem.
5 “De que modo?”, perguntarás tu. Transmitir-lhe-á o seu contentamento,
reforçará a sua autoconfiança; a contemplação mútua da respectiva
tranquilidade fará aumentar em ambos a alegria. Além disso pode ainda
proporcionar-lhe o conhecimento de certas matérias, já que mesmo um sábio
não pode saber tudo. E mesmo que soubesse tudo, outro sábio pode muito
bem descobrir um método mais rápido para atingir o conhecimento da natureza
e facilitar-lhe o acesso a um meio de melhor formular uma visão global das
6 coisas. Um sábio pode ser útil a outro sábio, e não somente graças às suas
próprias forças, mas graças também às daquele a quem está auxiliando. Claro
que o primeiro, mesmo entregue apenas a si próprio, é capaz de desempenhar
perfeitamente o seu papel. Todavia, embora corra com a velocidade que lhe é
própria, nem por isso deixará de lhe aproveitar uma voz de incitamento.
Objecção possível: “Um sábio só pode ser útil a si mesmo, e não a outro
sábio. A prova é que se este não tiver energia própria, a actuação do outro
7 nada conseguirá.” Pela mesma ordem de ideias, poderia dizer-se que não
existe doçura no mel porquanto, se a pessoa que o vai comer não tem os
órgãos gustativos aptos a detectar o sabor a doce, a sensação será
desagradável. De facto, há pessoas que, por efeito de doença, acham o mel
amargo. O importante é que ambos os sábios gozem de boa saúde, de modo a
que um deles possa ser útil ao outro, e este, por sua vez, seja receptivo à
utilidade que o primeiro lhe proporciona.
8 Outra objecção: “É inútil tentar aquecer um corpo que já está aquecido no
mais alto grau; é igualmente inútil tentar ajudar quem já atingiu o supremo bem.
Acaso um agricultor que dispõe de todas as alfaias necessárias vai pedir
alfaias ao vizinho? Um soldado equipado com todas as armas com que vai
partir para a luta porventura necessita de mais armamento? O mesmo se passa
com o sábio: está suficientemente equipado, dispõe de armas suficientes para
9 enfrentar a vida!” A isto respondo eu que mesmo um corpo aquecido à mais
alta temperatura necessita da proximidade de uma fonte de calor para manter
essa alta temperatura. “Mas o calor” — continua a objectar-se — “mantém-se
por si mesmo.” Vejamos: para começar, há uma grande diferença entre os
termos da tua comparação. O calor constitui uma unidade, o ser útil pode
revestir diversas formas. Em segundo lugar, o calor não precisa da proximidade
de fontes de calor para ser isso mesmo, calor, ao passo que o sábio não
conseguirá manter o seu estatuto espiritual se não aceitar a companhia de
alguns amigos que se lhe assemelhem e com os quais pratique em comum as
10 suas virtudes. Acrescenta a isto que todas as virtudes são unidas entre si por
uma espécie de amizade; por conseguinte, o sábio que estima as virtudes do
seu semelhante e lhe comunica as suas para aquele as estimar está
obviamente a ser-lhe útil. As qualidades similares são, para os seus
possuidores, uma fonte de alegria, sempre que se trate de qualidades elevadas
11 que saibam merecer o respeito recíproco. Mais ainda: ninguém pode estimular
convenientemente o espírito de um sábio senão outro sábio, tal como só um
homem pode estimular racionalmente outro homem. Do mesmo modo,
portanto, que só pela razão se pode estimular o uso da razão, também só uma
12 razão perfeita pode constituir estímulo para outra razão perfeita. Costuma
dizer-se que nos são úteis as pessoas que nos facultam certos bens
moralmente indiferentes como dinheiro, favores, protecção e outras coisas
apreciáveis ou necessárias à vida; neste sentido poderia dizer-se que mesmo
um insensato seria capaz de ser útil ao sábio. Na realidade, ser útil consiste em
estimular o espírito segundo a natureza por acção da própria virtude. E isto não
pode ocorrer sem algum proveito quer para o espírito do estimulado quer para
o daquele que lhe serve de estímulo, porquanto necessariamente quem põe
13 em acção a virtude dos outros põe em acção também a sua própria. Ainda que
não tomemos em consideração nem os bens supremos nem as causas que os
geram, nem por isso os sábios deixam de ser mutuamente úteis uns aos
outros. Encontrar outro sábio é, por si mesmo, um objectivo digno de um sábio,
uma vez que, por natureza, todo o homem de bem estima toda a espécie de
bem; assim, cada sábio dá a todo o homem de bem o mesmo valor que dá a si
próprio.
17 Como vês, satisfiz o teu pedido, muito embora esta matéria tivesse o seu
lugar próprio no livro de “Filosofia Moral” em que estou a trabalhar. Mas pensa
bem naquilo que eu não me canso de te dizer: estas questões só servem para
aguçarmos o engenho! Acabo por voltar sempre ao mesmo: para que serve
tudo isto? Eu quero é que me tornem mais forte, mais justo e mais moderado.
18 Não tenho vagar para ginástica, ainda careço de cuidados do médico! Para que
pretendes tu que eu te forneça uma ciência inútil? Fizeste grandes promessas;
pois bem, mantém-te fiel ao que prometeste. Diziam que eu permaneceria
intrépido ainda que à minha volta reluzissem as espadas, ainda que a sua
ponta afiada me tocasse já a garganta; diziam que eu continuaria a sentir-me
em segurança ainda que à minha volta tudo estivesse a arder, ainda que um
súbito furacão arrastasse o meu navio pelo mar fora: ajudem-me, então, a ser
capaz de desprezar os prazeres e a glória. Mais tarde me ensinarão a
desmontar sofismas, a resolver ambiguidades, a solucionar questiúnculas
obscuras; por agora, ensinem-me apenas o indispensável.
Carta 113
2 É ponto assente que a alma é um ser animado222, pois é ela que faz de
nós seres animados, e é do nome da alma que vem até a designação de
“animais”; ora, a virtude não é outra coisa senão a alma dotada de uma
determinada conformação; logo, a virtude é um ser animado. Por outro lado, a
virtude realiza uma acção; ora, nada pode agir se não tiver movimento próprio;
se a virtude tem movimento próprio — faculdade exclusiva dos seres animados
3 — é porque é um ser animado. “Se a virtude é um ser animado” — objecta-se
— “ela própria possui em si mesma virtude.” Porque não há-de possuí-la?
Assim como o sábio realiza tudo através da virtude, também esta o faz através
de si própria. “Nessa ordem de ideias” — prossegue a objecção — “todas as
artes, todos os nossos pensamentos, todos os nossos conhecimentos serão
seres animados. Consequentemente, no espaço limitado do nosso espírito
habitarão muitos milhares de seres animados; cada um de nós ou será ao
mesmo tempo muitos seres animados ou conterá dentro de si muitos seres
animados.” Queres saber como se pode responder a esta objecção? Dizendo
que cada uma das coisas mencionadas será um ser animado, mas sem que
formem um conjunto de seres animados. Como é isso? Eu explico, mas tens de
4 aplicar toda a atenção e subtileza de que fores capaz. Cada ser animado deve
possuir uma substância individual, mas todos eles possuem apenas uma alma;
por isso podem ser vistos cada um deles como um ser, mas não podem formar
uma multiplicidade de seres. Eu, por exemplo, sou um ser animado e sou um
homem sem que, no entanto, possas dizer que eu sou dois seres, porque, para
eu ser dois, teria cada um deles de estar separado do outro. Por outras
palavras, dois seres só podem ser tomados como de facto dois seres se forem
221
[NOTA 6] Que as virtudes são seres animados (virtutes esse animalia) era, de facto, teoria
defendida pelos antigos estóicos. O texto mais completo sobre o assunto é, no entanto, a
presente carta de Séneca, que figura na colectânea dos S.V.F., III como o fr. 307. Cf. no mesmo
volume os frs. 305 e 306, em que a mesma tese é exposta de forma muito mais sucinta.
222
[NOTA 7] “A alma que existe em nós é um ser animado”, th_u e_u h_mi~u fuxh_u zw~~?ou ez?uai
(S.V.F., III, 306).
completamente independentes um do outro. Tudo quanto é múltiplo dentro da
5 unidade participa da natureza do uno, e portanto é uno. A minha alma é um ser
animado, eu sou um ser animado — no entanto não somos dois seres!
Porquê? Porque a minha alma é uma parte de mim. Um ser só será contado
como um indivíduo se subsistir individualmente; enquanto for uma parte de
outro ser não poderá ser considerado como um ser à parte, pela simples razão
de que, para ser um ser à parte, teria de possuir uma individualidade própria,
completa, fechada sobre si mesma.
Parece-me bem que não estou fazendo outra coisa senão perder tempo
com uma coisa evidente, com um problema mais digno de repúdio do que
merecedor de discussão. Não existem dois animais exactamente iguais. Se os
observarmos a todos um por um verificaremos que cada um tem uma cor, uma
16 configuração e um tamanho peculiares. Entre os vários aspectos que nos
fazem admirar o engenho do divino artífice parece-me ser de incluir também
este: na imensa multiplicidade da natureza nunca ele repetiu o mesmo
esquema; mesmo seres que parecem idênticos revelam-se, distintos se os
compararmos bem. Criou inúmeros tipos de folhas: não há nenhuma que não
tenha a sua forma individual; criou inúmeras espécies de animais: não há dois
que tenham as mesmas proporções, há sempre alguma diferença entre eles.
Teve a preocupação de que todos os seres individuais tivessem diferenças que
17 os distinguissem claramente. Ora todas as virtudes, dizeis vós, são idênticas;
logo, não são seres animados. Todo o ser animado age por si próprio; a
virtude, contudo, não faz nada por si própria, mas sim concomitantemente com
o homem. Todos os seres animados ou são racionais como os homens ou os
deuses, ou são irracionais como os animais, selvagens ou domésticos; as
virtudes são inteiramente racionais, mas não são nem homens nem deuses;
18 logo, não são seres animados. Todo o ser animado racional precisa, para agir,
de ser previamente estimulado pela observação de algum objecto; em seguida,
põe-se em movimento e por fim surge o assentimento que confirma o
movimento adquirido. Vou explicar-te o que se entende por assentimento. Por
exemplo, eu necessito de caminhar: apenas me ponho em marcha quando
disse isso a mim mesmo e aprovei a minha decisão; se necessito de me sentar,
é através de um processo semelhante que eu me sento. Este assentimento não
19 se inclui no âmbito da virtude. Considera, por exemplo, a prudência: como pode
ela dar o seu assentimento à proposição “necessito de caminhar”? Não lhe é
possível, por natureza, fazer semelhante coisa. A prudência, de facto, prevê em
função do homem que a possui; não em função de si mesma; ela não pode, por
si, nem andar nem sentar-se! Logo, não pode dar o seu assentimento, e quem
20 não pode dar o seu assentimento não é um ser animado racional. Se a virtude
é um ser animado tem de ser racional; mas como não é um ser racional não
pode ser um ser animado. Se a virtude é um ser animado e se, por outro lado,
todo o bem é virtude, então todo o bem é um ser animado223! Os nossos
mestres admitem esta proposição. Mas, por exemplo, salvar o pai é um bem,
emitir um parecer sensato no senado é um bem, julgar com justiça é um bem,
logo salvar o pai ou emitir uma opinião abalizada seriam seres animados. E os
exemplos multiplicam-se de modo tal que se torna impossível suster o riso:
manter um prudente silêncio é um bem, jantar é um bem, logo o silêncio e o
jantar seriam seres animados!
21 E já agora, pelos deuses!, não vou parar com a brincadeira e o gozo que
me dão estas ineptas subtilezas. A justiça e a coragem, se são seres
animados, devem necessariamente ser animais terrestres; ora, todo o animal
terrestre está sujeito ao frio, à fome e à sede; logo, a justiça está com frio, a
22 coragem está com fome, a demência está com sede! Que me resta fazer? Não
hei-de perguntar a esses pensadores que aspecto têm todos estes seres
animados? Parecem-se com um homem, com um cavalo, com uma fera? Se
atribuírem a tais seres a mesma forma redonda que atribuem à divindade224 dá-
me mesmo vontade de lhes perguntar se a avareza, a mania do luxo ou a
loucura também serão redondas, já que todas elas são seres animados! E se
disserem que sim senhor, que tudo isto é redondo, então eu pergunto-lhes se
um passeio cauteloso também é um ser animado. Serão forçados a aceitar que
sim, ou seja, hão-de declarar que um passeio é um animal, e redondo ainda
por cima !...
23 Não imagines que de entre os estóicos sou eu o primeiro a falar sem ser
pelo manual, e a ter a minha opinião própria: Cleantes e o seu discípulo Crisipo
não chegaram a acordo sobre o que se entende por “caminhada”. Para
Cleantes é como que uma corrente de ar que vem do princípio dominador da
alma e desce até aos pés, para Crisipo é o próprio princípio dominador da
alma225. Que nos impede, portanto, de seguir o exemplo de Crisipo, reivindicar
223
[NOTA 8] Cf as observações de Séneca na carta 106.
224
[NOTA 9] Na Apocolocintose, 8, 1 Séneca cita ironicamente, remetendo para Varrão, a ideia
de que, para os estóicos, “Deus é redondo”. Tal ideia pode justificar-se pela circunstância de a
divindade se identificar com o universo, cuja forma seria esférica, cf. S.V.F., II, 1077 e 1060.
225
[NOTA 10] Cf. S.V.F. II, 836. — Sobre o que se entende por princípio dominador da alma v.
adiante a carta 121 e nota 8.
o direito a ter opinião própria e troçar de todos estes seres animados que nem
o universo seria capaz de conter?
24 “As virtudes” — dizem — “não formam uma multiplicidade de seres
animados, são, no entanto, seres animados. Assim como um homem pode ser
poeta e orador sem deixar de ser uno, também as virtudes são seres animados
sem serem uma multiplicidade. São uma e a mesma coisa a alma, e a alma
justa, a alma prudente e a alma corajosa, isto é, a alma posta em consonância
25 com determinadas virtudes.” Nestes termos, acaba-se a desavença e estamos
todos de acordo. Também eu admito por agora que a alma seja um ser
animado, embora reserve para mais tarde a análise do que pretendo dizer com
isto. Mas nego que as acções da alma sejam seres animados. Se assim não
for, teremos de considerar qualquer palavra ou qualquer verso como um ser
animado. Se uma proposição correcta é um bem, e se todo o bem é um ser
animado, segue-se que uma proposição é um ser animado. Um verso prenhe
de sentido é um bem, e todo o bem é um ser animado, logo um verso é um ser
animado. Por conseguinte
é um ser animado; só não podem dizer que é redondo porque tem seis pés de
26 extensão! “Hércules me valha!” — dirás tu. — “Todo esse arrazoado não passa
de uma teia completamente enredada!”.227 Parto-me a rir ao pensar que um
solecismo, um barbarismo ou um silogismo também são seres animados e ao
imaginar com que aspecto os representaria se fosse pintor! E é isto o que nós
discutimos com o ar mais grave deste mundo?! Nem sequer posso exclamar
como Célio228 “Oh, tristes bagatelas!”, tão ridículas elas são.
226
[NOTA 11] Vergílio, Aen., I, 1. Séneca faz um jogo de palavtas, entre os seis pés do
hexâmetro dactílico (unidades métricas) e pés como medida de comprimento, pelo que o “ser
animado” que é o hexâmetro (!). nunca poderia ser redondo!
227
[NOTA 12] Já o estóico Aríston de Quios comparava as subtilezas da dialéctica a inúteis teias
de aranha, v. S.V.F., 1, 351.
228
[NOTA 13] Caelianum = “o dito de Célio”, talvez o orador Célio Rufo, como pretende Justo
Lípsio. Alguns mss., porém, registam a lição Caecilianum = “o dito de Cecílio”, o que levaria a
identificar a personagem com o poeta cómico Cecílio Estácio, como faz, por ex., Warmington,
em Remains of Old Latin, I, p. 561, embora com hesitação.
inexpugnável a defender a fraqueza humana; quem dela se rodeia pode resistir
em segurança a este violento cerco que é a vida, usando as suas próprias
28 forças, as suas próprias armas. A este propósito gostaria de citar-te uma
máxima do nosso Posidónio: “Não imagines nunca que poderás proteger-te
com armas dadas pela fortuna; luta, isso sim, com as tuas. A fortuna não
fornece a ninguém meios de defesa contra ela própria. Por isso é que os
homens estão bem defendidos contra os inimigos, mas se vêem inermes
29 perante a fortuna.” Alexandre derrotou e pôs em fuga Persas, Hircanos,
Indianos e todos os demais povos que desde o oriente se espalham até ao mar
oceano; quando, porém, de uma vez ordenou a morte de um amigo, de outra
perdeu um segundo amigo, Alexandre deitava-se às escuras, lamentando-se
num caso do seu crime, no outro roendo-se de saudades. O vencedor de
tantos reis e tantas nações deixava-se vencer pela ira ou pela amargura! E
como não seria assim, se ele próprio julgava preferível conquistar o universo a
30 dominar as suas paixões? Em que enorme teia de enganos se deixam enredar
os homens que põem a sua ambição no desejo de estender a conquista para lá
dos mares, que se julgam no cúmulo da felicidade quando ocupam militarmente
imensas províncias, juntando novas terras às que já possuíam
— e se não dão conta da forma de poder mais alta e divina que existe: o poder
31 de nos dominarmos a nós mesmos! Quero que me ensinem também o valor
sagrado da justiça — da justiça que apenas tem em vista o bem dos outros, e
para si mesma nada reclama senão o direito de ser posta em prática. A justiça
nada tem a ver com a ambição ou a cobiça da fama, apenas pretende merecer
aos seus próprios olhos. Acima de tudo, cada um de nós deve convencer-se de
que temos de ser justos sem buscar recompensa. Mais ainda: cada um de nós
deve convencer-se de que por esta inestimável virtude devemos estar prontos
a arriscar a vida, abstendo-nos o mais possível de quaisquer considerações de
comodidade pessoal. Não há que pensar qual virá a ser o prémio de um acto
32 justo; o maior prémio está no facto de ele ser praticado. Mete também na tua
ideia aquilo que há pouco te dizia: não interessa para nada saber quantas
pessoas estão a par do teu espírito de justiça. Fazer publicidade da nossa
virtude significa que nos preocupamos com a fama, e não com a virtude em si.
Não queres ser justo sem gozares da fama de o ser? Pois fica sabendo: muitas
vezes não poderás ser justo sem que façam mau juízo de ti! Em tal
circunstância, se te comportares como sábio, até sentirás prazer em ser mal
julgado por uma causa nobre!
Carta 119
5 Imagino que estás ansioso por saber qual a ideia que neste momento faz
as minhas delícias. É esta máxima, que, do meu ponto de vista, é excelente: “O
sábio é o mais enérgico pesquisador das riquezas naturais”. “Vens banquetear-
me com uma travessa vazia!“ — dirás. — “Queres ludibriar-me? Eu já estava
com os cofres abertos, já me punha a pensar em que mares me aventuraria a
negociar, de que impostos do Estado me faria arrendatário, que mercadorias
me dedicaria a importar! Prometes-me riquezas, e ensinas-me a aceitar a
pobreza: isso é querer intrujar-me!“ Queres tu dizer que chamas pobre a um
homem a quem nada falta? “Ora! A quem nada falta devido à sua extrema
capacidade de renúncia, e não graças aos benefícios da fortuna!” Por outras
palavras: tu não consideras rico um tal homem apenas porque as suas
riquezas são, por natureza, ilimitadas? O que achas tu preferível: ter muito, ou
6 ter o suficiente? Quem muito tem, mais deseja, o que só prova que ainda não
tem o suficiente; quem tem o suficiente consegue qualquer coisa que um rico
nunca atinge: o termo dos seus desejos. Não consideras isto uma riqueza só
porque, por sua causa, nunca ninguém foi proscrito? Porque, por sua causa,
nunca um filho envenenou o pai nem uma mulher o marido? Porque em tempo
de guerra permanece em segurança mas em tempo de paz não dá juros?
Porque não é arriscado possuí-la nem trabalhoso administrá-la?
7 “Acho que é ter poucas posses limitar-se a não sentir frio, nem fome, nem
sede!” Júpiter não possui mais do que isso! O que é suficiente nunca é pouco,
tal como nunca é muito o que é insuficiente. Depois de vencer Dario e
conquistar a Índia, Alexandre continua pobre. Estou a mentir? Ele continuou à
procura de mais terra a conquistar; aventurou-se por mares desconhecidos,
lançou novas armadas pelos oceanos fora e, por assim dizer, despedaçou as
8 barreiras do mundo. O que basta à natureza foi insuficiente para este homem!
Descobriu-se alguém que, depois de ter tudo, ainda ambicionasse mais: tal é a
cegueira da mente humana, tanto os homens, à medida que vão avançando, se
esquecem dos seus primeiros passos! Este homem, ainda há pouco senhor
contestado de um insignificante território, atinge os confins da terra e
entristece-se por ter de regressar pelo mesmo caminho!
9 O dinheiro nunca fez a riqueza de ninguém, pelo contrário, só faz com
que cada um deseje ainda mais do que já tem. E sabes tu qual a causa deste
fenómeno? E que quanto mais dinheiro se tem mais fácil se torna multiplicar
esses capitais. Em conclusão: vai buscar, à tua escolha, qualquer desses
homens cujo nome se cita a par dos de Crasso ou de Lícino; ele que traga os
seus livros de contas, e faça o cálculo do capital que já possui e também do
que espera vir a obter. Se confias na minha opinião, tal homem é pobre; se
10 preferes seguir a tua, poderá vir a ser pobre um dia. Em contrapartida, um
homem que se adapte às estritas exigências da natureza não só se não sente
pobre como nem sequer receia a pobreza. E, para que saibas até que ponto é
difícil limitarmos os nossos bens ao estritamente natural, digo-te que até o
sábio — que acabámos de reduzir ao mínimo indispensável e que, por isso, tu
11 achas ser pobre! — possui algo de supérfluo. A generalidade das pessoas,
porém, deixa-se cegar e fascinar pela riqueza material sempre que vê alguma
casa despender enorme quantidade de numerário, recobrir-se de ouro até ao
tecto ou dispor de um grupo de escravos seleccionados pela presteza física ou
notáveis pela apresentação. A felicidade de toda esta gente está totalmente
virada para o exterior, ao passo que a beatitude do sábio — eximido por nós
12 aos olhares do público e aos acasos da fortuna é exclusivamente interior. Pelo
que respeita àqueles que, sob o falso nome de riqueza, se dedicam às
ocupações sem fim de uma real miséria, esses são possuidores de riquezas no
mesmo sentido em que nós dizemos ter febre quando, na realidade, a febre é
que nos tem a nós! Também costumamos usar a expressão inversa, dizendo:
“A febre apoderou-se dele”; pois bem, deveríamos dizer igualmente: “As
riquezas apoderaram-se dele”!
Nenhum conselho me parece mais útil para te dar do que este (e que
nunca é demais repetir!): limita sempre tudo aos desejos naturais que tu podes
satisfazer com pouca ou nenhuma despesa, evitando, contudo, confundir vícios
13 com desejos. Porventura te interessa saber em que tipo de mesa, em que
baixela de prata te é servida a refeição, ou se os escravos te servem com bom
ritmo e solicitude? A natureza só necessita de uma coisa: a comida.
“Acaso, quando a sede te queima a boca, vais buscar copos de ouro? Se
tens fome recusas tudo que não seja pavão ou rodovalho?”229
229
[NOTA 3] Horácio, Sat., I, 2, 114-6.
Carta 121
230
[NOTA 7] V. os frs. conservados de Arquidemo (como escreve Séneca) ou Arquedemo
(segundo outras fontes) em S.V.F. III, pp. 262-4.
hesita no modo de utilizá-los. Assim que nascem já sabem como movê-los;
vêm ao mundo dotados desse conhecimento, nascem por assim dizer já
treinados.
7 Há quem contraponha: “Os animais movem convenientemente os
membros porque, se os movessem de modo diferente, sentiriam dor. Ou seja,
para utilizar a vossa expressão, eles são forçados: é o medo e não a vontade
que os obriga ao movimento certo.” Este raciocínio é falso: os animais apenas
se movem desajeitadamente quando são constrangidos, se se movem
espontaneamente fazem-no com toda a destreza. E tanto não é verdade que é
o medo da dor que os determina que, mesmo sob a acção da dor, eles se
8 esforçam por realizar os seus movimentos naturais. O mesmo sucede com a
criança que decide pôr-se em pé, e se habitua a equilibrar-se; logo começa a
experimentar as suas forças, cai e levanta-se, chorando tantas vezes até que,
apesar da dor, adquire a prática da sua posição natural. Certos animais
dotados de carapaça, se os deitarmos de costas torcem-se todos, agitam e
esticam as patas até conseguirem voltar à posição normal. Uma tartaruga
deitada de costas não sofre dor alguma, no entanto está ansiosa por voltar à
sua posição natural e não pára de se agitar até de novo se apoiar nas quatro
9 patas. Por conseguinte, todos os animais têm a noção das suas faculdades
naturais e, por isso mesmo, utilizam expeditamente os membros; e a melhor
prova de que eles fazem a sua entrada na vida já com essa noção está em que
todo o animal se mostra imediatamente perito no uso das suas aptidões.
231
[NOTA 8] A alma, que para os estóicos era um corpo (S.V.F., I, 137), era dividida por Zenão
em oito partes, v. S.V.F., I, 143: “Zenão, o estóico, afirma que a alma comporta oito partes,
distinguindo nela o princípio dominador (to_h/gemouiko_u, ou principale, como diziam os latinos),
os cinco sentidos, a faculdade de linguagem e a capacidade reprodutora”. O princípio
dominador, por sua vez, era entendido como a sede do raciocínio (S,V.F., II, 839), do
pensamento (S.V.F., II, 828), da linguagem (S.V.F., II, 837), do movimento (S,V,F., II, 896). Dada
a sua natureza corpórea não admira que os estóicos localizassem o princípio dominador
(kuriw/tatou) no coração (S.V.F., II, 837, 879, 885, etc.). - A carta 113, 23 mostra que os
próprios estóicos, porém, nem sempre estavam de acordo quanto ao modus operandi do
princípio dominador.
temos de possuir uma alma, embora dela ignoremos a natureza e a
localização, é a intuição que têm os animais da sua constituição natural. É
necessário que eles sintam a existência de algo que lhes permite sentir tudo o
mais; é necessário que eles tenham o sentimento de algo a que obedecem, de
13 algo que os condiciona. Todo e qualquer de nós se apercebe da existência de
qualquer coisa que origina os nossos movimentos, embora sem saber que
coisa é essa. Percebe em si mesmo a existência de determinadas tendências,
embora ignore o que elas são e donde elas provêm. Semelhantemente, as
crianças e os animais têm da parte principal do seu ser uma certa noção,
embora insuficientemente nítida e clara.
232
[NOTA 9] Por ex., nas cartas 82, 15 ou 116, 3 Séneca alude ao instinto natural que leva o
homem ao cuidado consigo próprio. Não se conserva, todavia, nenhuma carta em que o
assunto seja sistematicamente desenvolvido.
causar a morte; basta ver passar a sombra das aves de rapina para que as
suas presas habituais procurem pôr-se a salvo. Nenhum animal entra nesta
vida sem conhecer desde logo o medo da morte!