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DAVID LEBRE
Desaparec
Uma tentação
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conte
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DAVID LE BRETON
Dados Inter?acionais d~ ~atalogação na Publicação (CIP)
(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Desaparecer de si
Le Breton, David
Desaparecer de si : uma tentação contemporânea / Uma tentação contemporânea
David Le Breton ; tradução Francisco Morás. -
Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.

Título original : Disparaitre de soi : une tentation


contemporaine.
Bibliografia Tradução de Francisco Morás

2ª reimpressão, 2019.

ISBN 978-85-326-5742-8

l. Antropologia filosófica 2. Antropologia social


3. Corpo humano (Filosofia) I. Título.

18- 13 150 CDD-301

- - ------ -- - - - "'EDITORA
índices para catálogo sistemático: y VOZES
1. Desaparecer de si: Antropologia e sociedade:
Sociologia 30 l Petrópolis
2 MANEIRAS DISCRETAS DE DESAPARECER

Talvez jamais cessemos de oscilar entre


o amor-próprio até a exclusão do resto
(narcisismo) e a vontade de supressão de si
em suas expressões mais variadas, entre o
absoluto do ser e o ser nada. Eis, em todo
caso, a dor lancinante, diária, que nenhum
objeto sacra/ nos permitirá esquecer: a
inexpiável contradição do desejo inerente ao
próprio desejo de ser sujeito.

Marcel Gauchet. Le Désenchantement du


monde [O desencantamento do mundo].

Desaparecer no sono

A compulsão pelo sono é uma maneira de fugir da dificuldade


de ser si mesmo. Se dormir é uma perda de consciência, eis um
motivo de sua atração aos que desejam livrar-se o máximo possível
de toda atenção à própria vida pessoal. Em contrapartida, tal esta-
do preocupa os que temem ser reduzidos assim ao nada, mesmo
que por algumas horas. Dormir é uma maneira de esquivar-se das
próprias responsabilidades ou do imperativo de mudar aos olhos
dos outros, produzindo finalmente uma espécie de desculpa capaz
de criar uma ilusão momentânea. Quando o sono não se resume
apenas a uma alegre recuperação das fadigas diárias, mas a uma
incrustação interminável, ele se torna uma renúncia à necessidade
de dar sempre de si quando o esforço se tornou desmedido. Freud
naterno "Em rela- reassumir o controle de sua vida e reatar com sua identidade social
, écie de retorno ao corpo I •
vê no sono uma t:Sp . . encontramo-nos em
d . o qu al viemos sem que1e1, 0 indivíduo precisa acordar.
ção a este mun ° ª . ·t da de forma ininterrup- No final da Segunda Guerra Mundial, com a idade de 17 anos,
. __ . .- 0 pode ser supor a
um a s1tua1,-ao ta 1que na 11 os no estado em que nos Erwin, o personagem de A. Appelfeld, cujos pais tinham sido mor-
ta, . r·
\ ssim uma vez ou outra, mergu mm .
, · - d nossa ex1s-
cncontrávamos antes de vir ao mundo, por ocas1ao e . tos nos campos de extermínio, se vê tomado por um irresistível de-
d' - rfe1tamente sejo de dormir. Por ocasião da longa jornada que leva os sobrevi-
tência intrauterina. Ao menos criamos con içoes pe ,
·d- ência de est1- ventes dos campos de extermínio a Nápoles, ele entra em um sono
análocras às daquela existência: calor, escun ao, aus ,
::, . . h d ao estado adulto, so sem fim. "Passei de trem em trem, de caminhão em caminhão, de
mulas [...]. Diríamos mclus1ve que, c ega os .
pertencemos ao mundo por dois terços de nossa individualidade, carroça em carroça, em sono profundo, destituído de sonhos (... ].
e que por um terço não nascemos ainda" (FREUD, 1978: 7=-7~)- Não tenho nenhuma lembrança dessa grande errância, e não há
O sono fecha o mundo à sua volta. Um muro de distraçao isola nada de impressionante nisso [... ]. Os refugiados me carregavam
dormente, que não se sente mais implicado pelos acontecimen- nos braços. Se me esqueciam em algum lugar, sempre havia alguém
0
tos suscetíveis de produzir-se ao seu redor, a menos que o invadam que vinha me apanhar" (APPELFELD, 2011: 7). Ele era conhecido
por sua intensidade. Segundo a profundidade de seu enterramen- por seus companheiros de destino como "o dorminhoco': Dormin-
to, 0 indivíduo permanece sensível aos leves ruídos à sua volta, ou do sem tréguas, ele se afasta da história, se confina em uma lon-
precisamos gritar e sacudi-lo para que enfim desperte. O fecha- ga ausência. Dorme para não pensar mais, para não decidir mais
mento pode ser mais ou menos sólido. Tomada pelo luto de seu nada, para não prestar contas dos acontecimentos. Pouco a pouco
marido, Joyce Carol Oates às vezes consegue dormir com psicotró- ele se livra da compulsão sonífera, mesmo que ainda continue dor-
picos, mas a existência lhe pesa, mesmo não deixando de exercer mindo exageradamente. Uma transformação se opera graças aos
normalmente as tarefas da vida cotidiana e respondendo aos seus esforços de algumas pessoas de seu entorno. Suas noites deixam de
imperati vos. "Meu fantasma, escreve ela, do qual não falei e não fa- ser assim uma ausência, um afundamento no esquecimento. Em
larei a ninguém, consiste em tomar um comprimido para dormir, seus sonhos ele restabelece um diálogo ininterrupto com a mãe e
depois, ao despertar, outro comprimido para dormir novamente, o pai, mortos nos campos de extermínio. Se aqui o sono continua
em seguida, ao acordar de novo, outro comprimido para dormir, sendo uma forma de desaparecimento, ele é igualmente um con-
e assim sucessivamente ... O tempo que isso pode durar não me tramundo no qual Erwin abole a morte e reencontra suas origens.
inspira senão uma medíocre curiosidade" (OATES, 2011: 208). O Sua mãe, sobretudo, o acompanha na reconquista que em sonho
son o às vezes se torn a um refúgio profundo, um caminho que leva ele realiza ao integrar-se a um pequeno grupo de militantes que se
a dar as costas aos imperativos do mundo. De fato, todo dormente uniram para reconstruir Israel. Urge essa retirada do mundo para
e5tá sozinho, radicalmente separado dos outros e de seu entorno, consertar no sono e nos sonhos resgatar o que irrecuperavelmente
ao mesmo tempo em qu e, por outro lado, vive à sua mercê. Para foi perdido para sempre.

52 53
, _. d sência, uma espécie de fuga por tamente, te entorpece, te aniquila" (PEREC
O sono e uma vanante a au . . . . . ' l998: 128). "Só desejo
_ - ra evocar uma noite maldorm1da, isso. .dormir. Se pudesse permaneceria eternamente dormindo", diz
um triz da duraçao. As vezes, pa , - , .
" . . " Alguns sonos tambem sao espec1es de Mane (17 anos), que foge assim da necessid ade de se situar
. .
1
fala-se em noite em caro. diante
. " c rmas de enterrar-se em um doloroso não da infelicidade. "Ficar deitado como uma arvore
' derru bada, sem
"noite em c1aro' ou i,0
lugar. O sono é uma espécie de refúgio para eximir-se da presença. ter de mexer um dedo sequer. Todos os dese1·os adormecem como
Ele protege do engajamento em um mundo visto como excessiva- crianças fartas de brincar': escreve Robert Walser, nos tempos em
mente austero. Ele não se resume apenas em descanso, mas tam- que vivia dormindo, antes de ser internado em um hOSplClO. , · "A
n

bém em trégua. "Quero dormir! Dormir ao invés de viver!': escreve gente se sente como em um mosteiro ou em uma antecâmara da
Baudelaire, no "Le Léthé''. Ausentar-se das turbulências exteriores morte", diz ainda (in: SEELIG, 1992: 48). O sono então é um poder,
é anestesiar-se sem recorrer a remédio algum. O dormente se co- ele mantém o mundo na mira para não ser mais atingido por ele.
loca "naturalmente" nos bastidores, sem sentir-se implicado e, em Ele é o exercício de um controle, como uma porta que alguém abre
princípio, costuma-se respeitar seu sono. Dormir, nesse sentido, ou fecha a seu bel-prazer para não ser submergido. "O homem que
é um a astúcia para fugir ao inexorável desafio de ter de assumir a dorme mantém circundado ao seu redor o passar das horas, a or-
própria existência. A busca obstinada pelo sono favorece o desapa - dem dos anos e dos mundos" (PROUST, 1988: 5).
recimento regular de si sem necessariamente ter de prestar contas Lugar de desinvestimento de si e de abandono aos poderes do
aos outros. É o caso, por exemplo, da adolescente que dorme e só sonho ou do esquecimento, o sono não é necessariamente um

se alimenta entre as di feren tes doses de heroína que consome. En- abandono, ele é também uma maneira de pensar, de recobrar forças

tre um a ausência e outra , ela conju ra o esforço de erguer-se e es - (PACHET, 1988). As atividades sensoriais e a ligação significante
com o mundo são provisoriamente suspensas. Na vida cotidiana,
torçar-se para continuar viva: "A vida não me interessa, é dolorosa.
o sono exerce um efeito reparador que desconecta o indivíduo de
ApL'sar disso, nâo quero morrer''. Out ra adolescente, ri sonha ago r:1,
suas responsabilidades para com seu entorno. É um desapegar-se
:,e lembra da tentação de imobilidade à qual, em um di fícil período
de todas as inquietações do mundo para retornar a ele com uma
Je sua vida. cedeu : "Dormia para dormir; à base de soníferos. Foi
força renovada após um descanso, um apelo à calma, uma mode-
honi, poí~, à (:poca, nada me interessava, embora isso me bastasse".
ração. Para continuar a misturar-se aos movimentos do mundo é
Dormir é um poro ~ •se m t-un do no qua l provisoriamente
. . se dc-
necessário cessar momentaneamente o engajamento nele.
\apan'ct>.
"
~cm • entretanto , 1n orrer. () sono e, uma " pequena mor-
Entretanto, as tensões inerentes à vida pessoal às vezes tornam
tt ·. um mimo Ja mort,
_ e, mas, do qua I retornamos para endossar
o sono difícil. Alguns fogem do sono por medo dos pesadelos que
por outro instante nossa idenl.idade . E
-:· uma 1eorma suave d a morte, penetram seu horizonte impedindo-lhes qualquer recuperação, já
mas da qu.il podem 01, no "-
d , '- reerguer, As vezes - d iz o homem que que tanto o sono quanto os pesadelos se furtam a qualquer contro-
ormr, de G. Pereç - sonha-; ,
-~ _. . que o sono e uma morte lenta que te le; e fogem particularmente dos sonhos que colocam em confronto
\ t nct. uma anes tesia ao mesmo tem - ,
se feliz · n f · . b po ~uave e ternvel, uma nccro- uma insuportável alterídade alojada justamente em seus próprios
.. . no so e pd as r ernc1 ~ 1
.,, ao ongo de teus braços. sobe Jen·
55
54
. • J~audelaire, co m o temos
. )llO d 1z 1a -
-
coraçoe~. en
"1" l10 medo ºº i
sl
.
' l
heio de vago horror, evando O pachinko ou as astúcias da dissipação de si
r·rnde buraco neg1o, c
medo de um g ' ff ") Abandonar o controle d e si, O Japão con hece um a forma lúdi ca e banal de d'1ss1paçao
. - d e s,.
- . para onde" (i n: "Le gou re . d
nao sei · d 1 ta os que fogem o sono. Eles
, lgmnas horas, ame ro1 , d e um 1azer co mum
mes mo ao lo ngo da vida cotidi ana • Trata-se
mesmo pnr ª - lúcidos diante das condições do denominado pachin ko, prática que se desenvolveu apos · a ren d.1çao
-
uerem estar permanentemente
q , a necessidade de se desfazerem de do país (PONS, 1988: 399) . Inicialm ente destinado às cria nças, no
mundo que os cerca. 1 emem
_ .d .t' ·as e a elas se agarram por medo de se pós -guerra, esse jogo logo se popularizou e passou a ser praticado
suas referências I ent1 an ' . . .
. 11 essas ci rcunstâncias, sen a cair em um abismo, por pessoas de todas as idades e condições sociais. As salas de jogos
perderem. Dormir,
se multiplicaram em todo o país. O jogo funciona mais ou menos
desaparecer, sem dúvida, mas no horror.
Pode dar-se também que o sono se esquive, não obstante a assim: o jogador compra uma provisão de bilhetes por uma soma
módica e, entrando na sala, se senta em um banquinho em frente
-
111tensa von t ade de busca de repo uso do indivíduo. "O mau dor-
a uma máquina. Com uma mão ele puxa uma alavanca que lança
minhoca se debate e se vira em busca desse lugar verdadeiro,
bolas sobre um quadro vertical. Elas descem segundo um percurso
ún ico, e sabe que somente nesse ponto o mundo renunciará à
caótico determinado por chicanas. Sua progressão, determinada
sua imensidão errante" (BLANCHOT, 1955: 363) . Impossível de-
pelo respectivo peso, libera outras bolas, que o jogador tenta re-
saparecer! A insônia está presa a ele, e de maneira até insistente, cuperar e recolocar em jogo novamente, em um movimento inter-
em uma imposição de identidade tão terrível que o leva ao desen- minável. Existe alguma analogia entre o pachinko e o flipper, mes-
terramento de si. Mas o sono busca outras vias, já que participa mo se, diferentemente do jlipper, onde o jogador pode manipular,
das obrigações biológicas da existência. Ele invade então a vida sacudir ou esmurrar, o adepto do pachinko se encontra diante de
cotidiana com o risco de um esgotamento que reduz a margem uma máquina que depende do movimento de uma alavanca para
de manobra do indivíduo, aprisionando-o em si mesmo, impon- alimentar o plano vertical com novas bolas. No pachinko, o joga-
do-lhe uma viseira suficie nte para que, na busca de livrar-se das dor se concentra na alavanca e tenta dar-lhe o exato impulso, com

preocupações, o mal-estar persista. Essa viseira o torna vulne- a correspondente força. Sentados lado a lado, indiferentes entre si,
imersos na contemplação do movimento das bolas, mergulhados
rável às circun stâncias, notadamente se ele está dirigindo ou se
em um autismo coletivo do qual só mais tarde emergirão, eis como
trabalha com uma máquina perigosa. A ausência de uma possi-
se encontram os jogadores do pachinko. Seus ganhos são irrisórios,
bilidade de de s1·st enc1a
' · d os mvestimentos
· no mundo por causa da
muito embora não constituam a finalidade do jogo. Estamos falan-
falta de sono é uma m' · · e l .
aquma m1erna que torna o indivíduo ain- do de lugares socialmente legítimos de dissolução provisória da
da mais vulnerável ao e ·t f
s eiei os ne astos de seu entorno ou de seus identidade que prescindem do abandono do vínculo social. Mis-
fantas mas. Para cada ind·1 1'd
. v uo, mesmo aos que se beneficiam de turado aos outros, não obstante sua solidão, o jogador se ausenta
uma vida bem vivida im õ
d. ' P e-se como uma necessidade, no fim do por um tempo mais ou menos longo em uma lancinante repetição
ia, uma certa dose de "b
ranco."
57
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dos mesmos gestos. eom. a vertigem e a hipnose do movimento
,
Através do engajamento em algum i
.
,
es orço duravel e/ou por
to regular da alavanca, das luzes da maquina ausência de repouso, a fadiga é um estad 0 IO
das bolas e d e seu ges • . , _ pe qual o ser desapa-
. d h li , - das bolas, ele não ve mais nada a sua vol- rece, uma supressao provisória pelo cansaço, d eixan
· d o-se deslizar
.
p1scando e o c oca rnr
ta. Suas preocupações são apagadas. Ele deixa de ser alguém, mas levemente em um mundo encolhido' mesmo se as sensaçoes - nao _
sob uma forma socialmente reconhecida. Algumas pessoas passam fossem mais gratificantes. Uma de suas vantagens e, a d e d1ºfi cultar

horas nesse jogo, e a ele retornam diariamente. a fixação do pensamento. Nada mais a detém , ela tra nsb ord a, e car-
Essa busca de vertigem e de esquecimento de si explica a razão regá-la é pesado demais. Ela diminui assim a margem habitual de
pela qual os toxicômanos adoram perder-se nesses lugares antes manobra na esfera cotidiana ou profissional, exime de uma parte
de encontrar a dose certa do produto que lhes falta. A sala é para de responsabilidade. Leva a flutuar sobre os acontecimentos com
muitos um lugar de retirada em plena cidade, um refúgio onde uma espécie de álibi para eximir-se deles. O investimento costu-
esquivar-se de toda obrigação social, diluir-se no anonimato e dei- meiro dos fatos diários carece das condições de ser posto em práti-

xar-se absorver inteiramente pelo movimento mecânico do jogo. ca, a atenção se dissipa. A fadiga é um desligamento, às vezes uma

Para estes adeptos, P. Pons avalia que em média duas horas por dia exacerbação que leva à aniquilação e a um afundamento ainda

sejam consagradas ao jogo diante da máquina. maior. O indivíduo se perde em sua atividade ou se dedica a testes

Para além do pachinko, que é uma espécie de arquétipo social, físicos ou esportivos de longo fôlego dos quais sai pouco disponí-

nossas sociedades se interessam por esses jogos de ausência em vel aos intercâmbios, obcecado pela sede de repouso. "A fadiga é o

que os indivíduos se perdem em uma atividade hipnótica diante do mais modesto dos males, a mais neutra das neutralidades, uma ex-
periência que, se fosse possível escolher, ninguém a escolheria por
computador ou do celular, em estado de fascinação por algum tipo
presunção. Ó neutralidade, liberta-me de minha fadiga, conduze-
de jogo de distração interessante ou por outros modelos de jogos
menos propícios à imaginação. -me ao que, ainda que me preocupando ao ponto de ocupar todo
o espaço, não me diz respeito. - Mas ela, a fadiga, é um estado que
não é possessivo, que absorve sem comprometer" (BLANCHOT,
A fadiga desejada
1969, XXI). Ela é uma desculpa para que o indivíduo se enrole
A fadiga pode ser um a opçao - para apagar-se levemente e para sobre si mesmo e diminua assim a intensidade de sua relação com
encontrar a alegria da P1em•t u d e d e ser s1. mesmo após o repouso. o mundo. Menos atento aos outros ou às tarefas a cumprir, o in-
Neste caso porém 1 d divíduo se encontra na superfície de si mesmo e dispõe de uma
' 'eª eve ser efetivamente escolhida. "Só encon-
desculpa sincera para desvincular-se dos imperativos do trabalho
tramos prazer na fadi ga ua d
. . ° -
q n a ela nao estamos condenados. So
existe fadiga jubilosa uand O . ,
,
ou do vínculo social.
q Jª eSt amos na alegria antes mesmo de
11
os cansarmos" (CHRÉTIEN 1996 . - Nas atividades físicas e esportivas "extremas': a busca da fadiga
em uma ativ'd d f' . , ' · 28 ). E o caso do engaj amento é deliberada. A pesada carga que ela implica desaparece. Já não se
l a e lSICa ardua m
nha, executar um t e ' as prazerosa: jardinar, cortar le- trata mais de uma fadiga de conotação negativa, isto é, impreg-
a areia qualquer .
para si ou para os outros.
59
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anha então uma provação pessoal
:i 3 d ·ofriinento. Ela acomp decide perder-se para não mais te r de pensar e
naL e :, .d _p roduz alegria, por exemplo, um . se suportar, e1a co-
em uma busca de senti .o que d . - meça então a depender do branco. Se ~
a fadi·ga man t em
, · .d
am a um
, .. _ e exi e longos esforços e etermmaçao de
engajamento fis1Co qu g . pouco a presença no mundo, o esgotamento a dissipa. Na fadiga
~ · . . , .· corpo no mundo par a nele restaurar
caráter. Proieta-se o propn o . . só o corpo é atingido, no esgotamento o ser inteiro é destrocado.
. . • t . novamente a sensação de existir. A fadiga,
um hm1te, expen men a1 Se na fadiga ainda existe a possibilidade de uma fruição, d~ um
ou a d01., e, et·et·1va111 ente uma teimosia identitária (LE BRETON, leve torpor que alivia um pouco a tentativa de ser si mesmo; uma
). Ela engaja uma metamorfose, para o melhor ou para o pior. volta iminente às atividades e à sociabilidade, no esgotamento, em
2010
• e1a se 1mp
Se · 0- e ao ·ndivíduo
1 à contragosto,
..., ela se transforma em contrapartida, é a erosão do sujeito que acontece. Sem fôlego e sem
poder de destruição. Se escolhida com conhecimento de causa, e sentido, ele esbarra na impossibilidade de continuar seu engaja-
em seguida aceita, ela produz uma transformação favorável. Deli- mento na mesma direção, não pode ir mais em frente, seu esta-
beradamente intencionada através de um desafio, ela produz a in- do físico "está extenuado" (DELEUZE, 1992: 57). Na fronteira do
tensidade de ser, e o indivíduo sabe que a qualquer momento pode afundamento total, ele já não dispõe mais de recursos para conti-
renunciá-la se as circunstâncias se tornam excessivamente duras nuar a existir. O retorno às atividades correntes é provisoriamente
para de. O grau de controle em fac e do que o indivíduo vive mede interditado. Os objetos que ele tenta apanhar se furtam repenti-
em princípio a soma de sofrimento experimentado. namente, há uma espécie de espessura a ultrapassar entre si e si,
~as atiYidades físi cas ou esportivas, a fadiga é um aferrar-se mesmo para entrar na atividade mais banal.
à existência, símbolo máximo da construção de si. A única preo- Muito além da fadiga, o esgotamento não tem mais a escapa-
cupação do indivíduo é alcançar seu objetivo. Uma parte maior tória do sono ou do repouso, a dissolução na ausência pela elimi-
de sua identidade está em suspenso, mas a qualquer momento ele nação de todo desejo, de toda energia. Com seu conhecimento ou
está propenso a retornar à plena consciência quando, por exemplo, não, o indivíduo busca se inebriar da fadiga para afastar-se de si
ele se depara com um problema a resolver pelo caminho ou se lhe mesmo e interromper assim o fluxo do pensamento. Sem a ativi-
telefon amos. Em algumas formas de "branco" a demanda é a de dade do espírito, o indivíduo se dissolve: "Estou morto': diz exata-
um brilho das sens açoes
- que antece d e o desaparecimento. Lam- mente o homem esgotado.
pejo último de ser s·1 -
mesmo antes de nao ser mais nada por um
tempo mais ou menos lon E . . ., - , Burnout
, . go... xistir Jª nao e mais suficiente, urge
necessano sentir s . . d
. - e exist m O mobilizando deliberadamente uma
a1tendade, colocando-se A parte da decisão individual no esgotam ento é inapreensível,
' portanto, em condição de viver regular-
mente momentos fortes e ex . ela depende da ambivalência como o atesta, por exemplo, 0 mundo
A . penmentar o choque do real. do trabalho, muitas vezes acompanhado de sofrimento físico. As
partir do momento ue . ,. . , -
cias, por exem q ª fadiga e imposta pelas c1rcunstan lógicas das empresas são hoje dominadas não mais pelo imperati-
P1o, em um labor t ·do . d ustnal,
· mas por uma economia · financeira que destrói as an-
a trabalhar alé d ex enuante, o indivíduo é coagi vo m
m e suas forças fi 1
e sem m, ou, se por si mesmo e e
60 61
. a as empresas com ações nas bolsas
. 1 Par
. " -- ,s do trabaho.
t1gas p10h::\oe · b õe-se a qualquer outra conside- informatização dos dados que prestam contas d d -
l . . rentabilidade so rep e sua prn uçao. A
de va or es, ª _ d quilibrar as contas a curto e médio coerção não pesa mais sobre os corpos mas sobre as t ., -
, . men es, Jª nao
. . -o e os aciomstas evem e . . há mais vigilância, mas um autocontrole permanen te, uma . d.is-
rª"ª '
)razos. As técnicas de comum
• cação acentuam a tirama do tempo
. ponibilidade sem descanso. Para o executivo, estar às voltas com
l , . d lerta permanente aos executivos. A
real e a necessidade e um ª . múltiplos projetos simultaneamente e ser localizável a todo ins-
. , d . . t uma fonte essencial para as empresas na
velocidade e 01 avan e , . tante, de dia ou de noite, onde quer que esteja, acentuam estres-
O
_ . . e entregam. Ganhar tempo e a espmha dorsal
concorrencia a que s . se, privando-o de zonas de afastamento, inclusive da vida privada.
da guerra concorrenci . ·al· é a exigência de estar aqm e alhures, em
Mobilizável a qualquer momento, como se suas responsabilidades
todas as frentes, para na- 0 perder uma oportunidade ou uma infor- pessoais se tornassem uma punição sem fim, ele é incessantemente
mação essencial. sobrecarregado por um trabalho de fluxo intenso que não poupa
o telefone celular é O instrumento-chave da mobilidade, da rea- ninguém em sua empresa (AUBERT, 2003). R. Castel (2009) fala
tividade, da adaptabilidade e da multiplicidade dos engajamentos. a este respeito de "indivíduos em excesso", vivendo no excesso, no
Ele torna O tempo de trabalho ilimitado. O computador portátil exagero, mesmo se às vezes sintam a necessidade de aliviar a pres-
permite trabalhar incessantemente, mesmo no trem ou no avião, são para retomar com uma energia redobrada as atividades. Toda a
de noite no hotel ou em domicílio. Desligar um ou outro é difí- existência oscila entre a urgência e a necessidade de jamais perder
cil, pois é de bom-tom que as empresas e os empreendedores res- tempo, de estar sempre alerta. Urge correr sempre mais depressa
pondam imediatamente a qualquer demanda. Abster-se ameaça o para não ser ultrapassado. Espectro das condições de concorrência
seguimento de um mercado, posterga a resolução de problemas das empresas, a sobrecarga de trabalho é aceita como o preço a
e, em última análise, acumula as tarefas futuras. O celular leva à pagar pelo emprego, e ela tem a vantagem de oferecer uma espécie
permanência no trabalho e à obsessão de atendê-lo tão logo ele de estímulo que contribui para a evitação da reflexão enquanto o
toque, à imagem desta situação, à beira de um colapso, da qual indivíduo consegue segurar as pontas.
fal a N. Aubert (2003: 66): "Hoje te pedem informações não impor- Hoje a concorrência se estende às filiais, aos departamentos, às
ta quando ... É um inferno, não posso mais partir em férias sem a equipes, aos colegas. A avaliação dos grandes grupos é acompanha-
angústia de alguém me telefonar para perguntar se deve fazer isso da daquela dos diferentes agentes de uma mesma equipe, colocan-
ou aquilo". Os tempos mortos desaparecem. E a vida cotidiana é do alguns em uma incômoda postura em relação ao desempenho
inteiramente colonizada por uma urgência sem fim, que se estende • • entre co1egas frei·a toda solidariedade
dos outros. A concorrenoa
para fora da empresa, não poupando mais nem a vida pessoal nem .
ou amizade. . _ d e metas frequentemente remanejada
A persegmçao ·
a familiar. - d'
pelas circunstâncias e as tensoes entre ir eção e empregados fa-
O trabalho obvi t • d formarem em agentes da
' amen e, tornou-se hvre. Ele está nas mãos 0 vorecem a tendência de alguns a se t rans , _
executivo, tornado seu , . . . . vulneráveis ao assed10 mo-
propno JlilZ em seu desempenho profiss10- violência às vezes tornando os outros
nal, mas ele não foge às r _ ' . d
ral. A valorização da adrenalina, o es
tresse como condição de um
ava iaçoes anônimas acompanhadas pela
62 63
. d d . umes "A urgência se inscreve ser um privilégio; é preciso calar sobre p , . f .
trabalho eficaz, é uma taca e ois g . , . O
ropno so nmento e
tos 'aditivos', uma espec1e de anfe- sobre o dos outros, considerando que se trat d , . '
como um desses comportamen . . . , , ,. ª e uma espec1e de
_ . ·te viver mais rápido, mais forte, mais m- fatalidade a qual e necessano se adaptar e conte t d
tamina da açao que per mi ' n an o- se por ter
,, (AUBERT 2003 . 11 4). Mas pouco a pouco ela exaure um emprego. Assim, a indiferença com a sorte dos t d
tensamente , · ouros ten e a
, .· ·norais Os psicotrópicos são reguladores uti- sobrepor-se às antigas solidariedades.
os recursos f1s1cos e 1 .
lizados para deixar o indivíduo sempre em condições plenas, para Às vezes o executivo coagido a demitir colegas deve se refugiar
acentuar O desempenho, para multiplicar a energia, às vezes fratu- em uma espécie de abstração de toda consciência para impor um
rando interiormente, mas eles também são uma armadura química sistema perverso de defesa no qual "o homem verdadeiramente vi-
para defender-se do medo do afundamento e, simultaneamente, ril é o que pode, sem falhar, infligir sofrimento ou dor a outrem,
um meio de apagar-se lentamente. em nome do exercício da demonstração ou do restabelecimento
As lógicas contemporâneas da empresa radicalizam as formas da dominação e do poder sobre o outro" (DEJOURS, 1998: 114).
de gerenciamento e promovem um indivíduo "guerreiro': capaz de Mas "fazer passar o cinismo por uma força de caráter" (DEJOURS,
responder imediatamente aos apelos das circunstâncias. O sistema 1998: 128) não evita em contrapartida o risco de um choque. Às
se absolve de qualquer acusação de violência à medida que é aceito vezes o executivo se sente em contradição dolorosa com sua ética
pelos atores que dele se aproveitam por algum período, mesmo ex- profissional, assim como em suas exigências pessoais em relação
pondo-se a ser, algum dia, vítimas do mesmo sistema. Mas, desde à qualidade de seu trabalho e em seu sentimento de responsabili-
então, a incerteza também se transforma em ameaça. O sistema dade para com os membros de sua equipe. Ele mesmo, por outro
de gestão que hoje domina as empresas, que faz dos empregados e lado, está exposto à mesma lógica de desdém. Diante de suas res-
dos gestores variáveis de ajustamento, impede igualmente estes úl- ponsabilidades, o executivo ou o empregado não é mais apoiado
timos de se projetarem no futuro pensando que mais tarde as con- por uma equipe solidária suscetível de respaldá-lo em caso de di-
dições de trabalho podem melhorar. Frequentemente eles inclusive ficuldade. Salvo raras exceções, hoje ele se encontra sozinho dian-
se sentem em uma situação falsa em relação aos seus valores, como te do assédio ou das pressões devidas à carga de trabalho ou às
o assinala C. Dejours: "Os trabalhadores fazem sempre mais fre- difíceis decisões que precisa tomar. A fragmentação das tarefas, a
quentemente a experiência de que seus esforços, seu engajamen- concorrência entre colegas e a pressão da hierarquia o impedem
to, sua boa vontade, seus 'sacrifícios' pela empresa culminam en- de beneficiar-se do reconhecimento de seu trabalho e de dar assim
fim em um agravamento da situação. Quanto mais se doam, mais uma significação prazerosa a seu engajamento na empresa.
· ma1va d os 1orem
'eficientes' são , e quanto mais e
para com seus co- Cada executivo ou empregado é coagido a se individualizar
legas de trabalho ma·s
1 os ameaçam, em razao_ para se proteger, contribuindo assim para a fragmentação das for-
, de seus esforços e
de seus sucessos" (1998· 16) A - mas possíveis de solidariedade e oposição. Os que se deixam levar
, , . . · • nao ser se convencendo de que
essa e a log1ca mexorável d 0 ·st -
se expoem .
a um sofrimento . acen tua do, J. á que doravante se
mais
si ema, que os outros agiriam da
mesma forma e que d' . d encontram isolados. No final de cada plano social as exigências
' ispor am ª de um emprego n ão deixa de
64 65
. ados são mais elevadas dado que
·,os que permanecem empieg do não resta mais ao indivíduo nenhum .
' , . d d desemprego, 0 que lhes parece uma
. . ª energiapor ter vivido
eles toram poupa os O ..
demasiadamente acima de seus limites 5 -
. . . . , ' · ao O preço a pagar por
carga de trabalho e sua frag1hdade
oportunidade, mesmo que ª esse mvesttmento. O md1v1duo deixa de estar , l d ..
a a tura e assumir o
ten ham aumentado. Próprio cotidiano. Ele pula de uma tarefa à out ra sem po d er adotar
. 'fi _
A s1gm caçao e 0
valor atribuídos ao trabalho desaparecem, um ritmo adequado ou sem poder parar para descansar. N. Aubert
te se transforma em um peso a carregar. Quando o
ao passo que es aponta essas patologias do trabalho cujo engajamento desmedido
indivíduo não se sente mais à altura de acompanhar o ritmo ou a culmina em uma espécie de "superaquecimento". Ela evoca teste-
aceleração requerida por seu posto de trabalho e por suas respon- munhas "se referindo a pessoas funcionando como 'baterias elé-
sabilidades, ele se vê espreitado pela fadiga crônica que lhe impede tricas que não podem ser desconectadas', outras 'que andam em
inclusive o descanso ou lhe gangrena os momentos de lazer. Para círculos desembreadas, rodando no vazio', ou outras ainda que
além do medo de perder seu emprego, embriagar-se de trabalho simplesmente 'endoideceram"' (AUBERT, 2006: 77).
multiplicando as tarefas através de uma mobilização física intensa, A derrocada leva, às vezes, ao desaparecimento radical. Ela cul-
intencionada ou imposta pela falta de efetivo ou pela necessidade mina em uma espécie de ruptura interior, denominada pelos japo-
de certo ritmo, é igualmente uma defesa contra o raciocínio ou neses de shussha kyohi (fobia da empresa) (JOLIVET, 2002: 74), que
uma espécie de desculpa para não espreitar o abismo. Nesse con- leva a ver o trabalho como um fantasma ou um pesadelo. Da noite
texto, emergem transtornos de memória, de raciocínio, momentos para o dia, o empregado ultrapassa um limiar invisível, sente-se in-
de desorientação ou confusão mental que apontam tentativas de vadido por uma imensa fadiga e incapaz de voltar à sua empresa e
fuga de um esmagamento sob a pressão física de sempre ter de dar tampouco de explicar a razão. O Japão também conhece, há vários
conta das próprias responsabilidades. Nem a vida íntima é poupa- anos, uma epidemia de karôshi, morte súbita, às vezes aos trinta
da, ela pode ser afetada por transtornos do sono, da sexualidade, anos, por parada cardíaca. Trata-se de trabalhadores apai..,xonados,
por irritabilidade com os próximos que suportam mal essa indis- muito zelosos, totalmente dedicados à função que exercem, mas em
ponibilidade etc. Pouco a pouco, de mansinho, o indivíduo vai se detrimento da família ou da saúde, que se desgastam até chegarem
sentindo cansado, desmotivado, consumindo-se lentamente em ao colapso. Eles se fecham em uma espécie de transe de trabalho
uma "derrota da subjetividade" (DEJOURS, 2004: 34). que os corrói lentamente. Eles se sacrificam pela empresa. Existem
A necessidade de permanentemente dar conta das coerções da várias dezenas de milhares dessas vítimas. V. Jolivet (2002: 109) fala

identidade e de oferecer aos outros sinais de boa vontade, notada- de uma pesquisa feita com 500 empregados, entre 20 e 50 anos, de
mente na esfera profissi I uma companhia de seguros. Dentre eles, 88% consideram ter "gran-
ona , acentuam a sobrecarga de trabalho
des possibilidades': 37% "algumas possibilidades" de um dia morrer
e o ~~go~amento daqueles cujas forças são cortadas dia após dia e
que Jª nao dispõem mais de h por karôshi. Para outros, o suicídio é uma maneira de traduzir a ne-
.. nen uma reserva para reconstruir-se.
A mob1hzação permanente l . d. , gação de continuar colaborando a esse preço, uma derradeira resis-
"bTd d eva o m iv1duo ao limite de suas pos-
1
s1 1 a es. O burnout a d - tência face à violência experimentada, um desaparecimento radical.
' epressao por esgotamento físico, quan-
66 67
Depressões Entretanto, não podemos fix ar as ·. d
. e• . El . - . raizes a depressão exclusiva-
mente n a 1111anc1a. -,, a, o bv1a e igualme t '
o luto e, uma. des1S
.· ·te'. 11 ~i·i provisória d o mundo, uma existência
1., e
,
de sermos nos mesm os em nossas sociedad
n e, procede da dificuldade
d
. . . b . · ·de da tristeza
a nmunza ~o .1 eg1 - ,
mas é passageiro. Ele participa do es, e O ec;gotamento
de incessantemente termos de nos manter . - . .
"• · .· J . ,x ·stc
' c ·-. - pós o desaparecim ento de um próximo ou , . .. . ao nive1 das ex1gencia.s
orulll cll lO u ,1 e 1, 11 1•1 '1
demandadas as nossas md1v1du alidades A t
por ocasião de uma provação pessoal: "É impressionante que não , . au onom 1.a coercitiva
que é a do indivíduo, é recheada de tensões in t · . '
nos venha jamais à cabeça a ideia de considerar o luto como um en ores, po1s. para se
tornar um homem ou um a mulher responsável pe1a propna • . nda, .
estado patológico e confi ar seu trata mento a um médico, embora
0 indivíduo precisa estrebuchar-se e' além disso
, , em caso de
• tra-

ele afaste seriamente a pessoa do comportamento normal. Nossa
espera nça é que ele seja superado após um breve lapso de tempo, casso, prestar contas aos outros e a si mesmo. Incessantemente ele

e consideramos que seri a inoportuno e até mesmo prejudicial per- deve dar provas de suas capacidades de agir por sua própria conta

turbá -lo" (FREUD, 1968: 148). O luto é uma desistência parcial de e risco. Nossas posições sociais não nascem por acaso, elas devem

si mes mo, um desaparecimento provisório e limitado, socialmente ser construídas a partir de referências possíveis. Se a colagem dos

aceitável. Cortado da presença de um próximo ou de uma ativida- sinais identitários pode ser fluida e regozijante para os que pos-

de à qual estava vinculado, o indivíduo é psíquicamente amputado suem alicerces narcisistas bem-definidos, para outros ela é um re -

dessa parte dele e tenta redefinir sua relação com o mundo lutando mendo no rasgo, destoante, que provoca medo e defraudação do

cont ra o sofrimento. ser. O indivíduo deve permanentemente construir sua experiên cia.

Para aJém do luto, a depressão é igualmente uma experiência coer- A depressão também lança raízes em um acontecimento atuaJ

citiva de desaparecimento. Hoje ela é um dos transtornos mais cor- insuperável para o indivíduo, em um luto, em uma demissão, em

riqueiramente diagnosticados no mundo (KLEINMAN & GOOD, uma separação ... embora ela nem sempre tenha uma razão clara.
1985). Para al ém de seu âmbito clínico, a noção de depressão torna-se Ela bate às portas de um homem ou de uma mulher cujas vidas
uma referência comum, traduzindo para muitos o sentimento de pareciam transcorrer dentro da normalidade. P. Fédida fal a dela
um esm agamento compl eto da própria existência. Um ferimento como uma "quase-noção" (2009: 203) que se traduz por uma in-
de infância, um trauma (um abuso sexual, p. ex., um abandono ... ) tensa culpabilidade, por um sentimento de insignificância, por
alimentam a depressão dando-lhe um ponto de ancoragem. A vida uma impossibilidade de mudar as coisas ou de entregar-se ao
presente está sempre na órbita daquele acontecimento, ela oscila prazer, por crises de angústia, dores de cabeça etc. É uma ex-
emu · propriação de si, o sentimento de estar preso a uma espécie de
m movimento pendular entre passado e presente, impedindo
uma projeção esperançosa na di reção do futuro ou em direção ao caricatura infeliz de si mesmo. Ela vai de par com a desaceleração
menosprezo do passado be física, com a desaceleração dos movimentos, dos atos, do pensa-
_ ' m como seu conhecimento e supera-
çao, a fim de dar enfim fluidez . mento, das decisões, mas também acompanha a palavra que passa
. ao presente. O mdivíduo é prisio-
nei ro de um marasmo de sua h.1st , . . a ser proferida com uma enunciação monótona, com uma voz en-
, .d ona cu3a consciência nem sempre
e ev1 ente.
fraquecida ou átona, pesada.
68 69
_ d ração é uma evidência. O
·d· . imersao na u ' orientação do exterior consegue guiar O suJ·e·t
1 o. "S e a melancolia
.
Na vida cot1 iana , 3 d d" t ' . , .
. t . a sensação e uma 1s ancia é a caractenstica do homem excepcional d• H R
. . . ,d f1 . nela sem experunen ar
111d1v1 uo m . ula ao precedente e nutre . . _ ' IZ · • osa, a depres-
ou de um obstáculo. Cada instante se vmc - são é O smal da democratizaçao da exceção · No' s vivemos
.
com essa
· a antecipação. Mas essa percepçao
uma projeção no tempo, em um , crença e essa verdade de que cada qual devia ter a possibilidade de
. •fi _ d das à existência naquele momento. As criar por si mesmo sua própria história ao invés de sofrê-la como
depende das s1gm caçoes a
câmera lenta ou aceleradamente, co- um destino" (2013: 303). O sentimento de si se torna um dilema
vezes o tempo transcorre em , .
. d. e t
nhece ntmos 11eren e , s ou congela em uma espec1e de estase do- eterno. "A impossibilidade de reduzir totalmente a distância de si
· da temporalidade ' a interrupção da duração
lorosa. Uma pat ologia para si é intrínseca a urna experiência antropológica na qual O ho-
suspende a existência e contribui para torná-la sem graça, sem bri- mem é proprietário de si mesmo e fonte individual de sua ação. A
lho. Expectativa sem objeto, é uma tonalidade amarga fundada na depressão é o parapeito do homem sem guia e a contrapartida do
impotência de agir ou relançar o tempo por projetos. O sentimento desabrochar de sua energià' (EHRENBERG, 1998: 250). O indiví-
da continuidade de si e a rememoração da história pessoal conti- duo se desfaz de sua antiga personalidade. Logo ele a encontrará,
nuam, mas sob uma forma depreciada. A expectativa é profunda- mas no momento atual não é mais afetado por ela. Para P. Fédida
mente alterada. Se estar presente (praesens) é estar na vanguarda (2009), a depressão é para o indivíduo a impossibilidade de sentir
le si, aqui a projeção é árdua e sofrida, se arrasta. A percepção do a "depressividade': isto é, esses movimentos ordinários inerentes
acontecimento é modificada, um obstáculo menor no caminho se à vida cotidiana de fadiga e tristeza se alternando com momentos
transforma em uma montanha, uma observação anódina se trans- felizes. A respiração afetiva é perdida, a existência é mergulhada
forma em crítica radical de si mesmo ... sem nuança em uma experiência de aniquilamento.
Para a pessoa deprimida, o tempo parece ter congelado e na Depressão vem do latim depressio: "afundamento': "passagem
verdade alimenta o sofrimento tornando os dias e as noites inter- de cima para baixo". Ela traduz o sentimento- de colapso, de des-
mináveis. O sonho se esquiva e se torna um problema. O apetite moronamento, de queda. É a convicção de tocar o fundo do poço
desaparece juntamente com a apetência de viver. O menor dos ges- e de não estar mais ancorado em terra firme e na existência, mas
tos demanda um esforço monumental. O indivíduo se sente "va- rodopiando sobre si mesmo, sem se encontrar, como se O desa-
zio", "acorrentado a si mesmo" (MOREIRA, 2003: 117). Nada mais .
parec1mento ' · d e 1e_dl1ta de solidariedade
ocorresse por uma espec1e
lhe apetece, rumina pensamentos dolorosos, vive um sentimento entre o corpo e o mundo em um estado de suspensão, sempre no
de incapacidade, de impotência, de indignidade. A autoestima é limiar do rompimento. O indivíduo não é mais carregado por sua
aniquilada, a ação bloqueada, freada, impossibilitada. A existência • , . e avança no temor de
ex1stencia, ele perdeu seus ap01os e sempr , .
é desvitalizada, ou melhor, a revogação de sua signific ação e de . . ~an~~a~
cair. Ele se imagina flutuando no espaço, me
seu valor a torna monótona, vazia. A depressão é uma "doença da . . do ponto de vista do
ra do precipício. "Ainda que, obJet1vamente, ,
responsabilidade" (EHRENBERG 1998· 10) . .d d de 0 b servador esses pacientes se manten
ham perfeitamente em pe,
. . _ , • , um a m capac1 a e
garantir a m1ssao de ser si _ ' e façam efetivamente, a
mesmo, um nao lugar em que nenhuma embora possam caminhar corretamente O
70 71
b ·ar ou de deslizar não pode ser afas-
. -- de planar, de soço I as significações e os valores que lhe eram m · d
1mpressao . , , fi n e para quem nele se agarra firme- ais caros esmoronam
tada. O chão, de fato, so e n , Rumina seus antigos traumas em busca de um t·d ·
briaado em si, e capaz de estabelecer, de uma sen i o atua1para a
mente, para quem, a " ,, sua vida, às vezes revivendo-os, ainda que nem se .
· limites com o mundo , escreve E. Straus mpre esteJam em
forma ou de outra, seus • sintonia com a situação presente. Seu corpo é atetado por mmtas .
. RT 2011 . 46). o indivíduo se ve sob o fio da navalha,
(111: GENNA , · alterações como enxaquecas, distúrbios digestivos, insônias etc. As
-
t pesadelo de desaparecer para sempre. Se segura
sempre em ace ao . . • . emoções são colonizadas pela ruminação da dor, a alegria perde
· Quando J. á não colabora mais com sua ex1stenc1a é
por um t nz. ' todo seu espaço, inclusive quando um acontecimento longamen -
natural que ele sinta suas pernas falharem em uma espécie de vaci- te desejado se realiza. "Eu não luto contra o mundo, luto contra
lo interior, por medo de submergir diante do peso excessivamente uma força maior, contra meu cansaço do mundo" (CIORAN, 1979:
arande
t,
das horas e dos dias. Quando o sentido não sustenta mais a 107). A depressão sob suas diferentes formas implica remoer a per-
pessoa, ela só pode incansavelmente cair; mas, enquanto cai, ainda da. O indivíduo se encontra diante da dolorosa estranheza de sua
está viva. existência, lançado para fora de si mesmo. Embora permanecendo
O espectro da depressão é amplo, sobrevindo principalmen- a mesma pessoa, sente-se esvaziado de sua substância.
te após uma decepção, uma traição, um acidente, uma perda de A depressão é uma depreciação, um relaxamento da tensão de
emprego, um luto, uma separação que subtrai o indivíduo de suas ser si mesmo por abandono da luta, é um deixar-se andar doloroso.
referências anteriores, que rompe sua confiança ontológica no O indivíduo tira férias de sua pessoa. Não se sente mais implicado
mundo e deteriora sua autoestima. Ela atinge igualmente pessoas por ela e não a vê mais senão sob a névoa de uma permanente de-
afetadas pela crise econômica e pelo refluxo da solidariedade: so- preciação. O indivíduo se encontra ao lado de si mesmo, a distân-
lidão, exclusão, penúria, precariedade, desemprego etc., situações cia, liberto das responsabilidades da vida cotidiana. Para D. Widlõ-
que esgotam as forças desses indivíduos, envolvendo-os na sen- cher, "o ensimesmar-se depressivo constitui uma atitude protetora
sação de algo irremediável. A depressão é uma reação diante da da retirada, uma forma de hibernação que permite a sobrevivência
adversidade, mas às vezes nasce do nada, de uma gota d'água que do sujeito quando ele não dispõe mais da faculdade de lutar[ ... ]; é
faz transbordar o copo e que nem mesmo a propna
, . pessoa conse- uma atitude que simula a morte e já realiza uma espécie de morte
gue identificar' uma especie ' · d e u, 1timo
· ' J,
empurrão, impercept1ve
psíquica; é ao mesmo tempo mensurar, com ou sem razão, que as
que faz desmoronar as e • , o condições da existência não são mais aceitáveis e não permitem
. . , searas que mantem a existência de pe.
md1v1duo é então ex ul d . . mais nenhuma forma de lutà' (WIDLÕCHER, 1983: 2l 7, 235 )- Pa-
P so e sua vida, não se reconhece mais e
. · d"víduo "se faz de mor-
se torna irreconhecível a gando o preço de um longo sofrimento, o 111 1 .
d os outros. Desaparece de forma trágica ,, .6 .11.d d de continuar usufrumdo
e o1orosa, mantendo uma .• . to para não morrer, na impossi 1 a e .
conscienc1a aguda de permanecer ele _ , . encontrado, à revelia, para
mesmo, mas completamente d . , do prazer de viver. A depressao e o mew .
que sua existê . . eStituido de qualquer poder, tanto . 111
. t0 leráveis do desaparec1-
ncia anterior à de - desacelerar. Ela é uma das formas mais
<lido, agora inac , pressao lhe parece um paraíso per- . . , de todo poder por um lon-
essive1. Ele não s mento de si sobre a qual o md1v1duo per
e encontra mais naquilo que faz,
72 73
, n1a an t eeª• mara para voltar um dia a' a a concepção própria às nossas sociedades par . d
J é tatnbei11 u con tr a as quais ca a
go tempo. Mas e a . distanciamen
. t tendo reencontrado o prazer
o, . d'vt'duo é constituído de uma única pessoa dotad d . _
existência com mais d -sumir O fato de ser si mesmo. 1n t ' a e uma v1sao
de viver, e sendo
então capaz e as e no me únicos, de um estado civil e uma histo' r,·a que so, a e a Ih e
1
cem. A ideia da unidade de consciência em nos . d
perten . , sas soc,e a-
des se distingue daquela de mumeras sociedades tradicionais nas
Personalidades múltiplas
quais a pluralidade do eu é suscetível de se desenvolver segundo as
através da aridez, do apagamento de si,
Pode-se desaparecer . circunstâncias. A cosmologia destas sociedades não separa a esfera
t ção como no caso das personalidades
mas também pela fragmen a , , dos deuses e a dos humanos. Às vezes os primeiros visitam os se-
_ 'd , ltimas décadas do seculo passado nos Es-
múltiplas' surgi as nas u . gundos, ou enviam emissários por ocasião dos ritos de possessão
. plo Homens ou mulheres assumem mad-
tados Umdos, por exem . ou de transe. Exatamente como outrora, nas culturas gregas ou ro-
.
vert1damente , · 1·<lentidades que coexistem sem se conhecer e
vanas manas, nas quais os deuses não cessavam de intervir para, de uma
.
com b10grafi as distintas · Nenhuma memória comum as interliga. forma ou de outra, influenciar no destino dos homens.
0 indivíduo ignora ser o palco no qual atuam e se desenvolvem Essa patologia era praticamente inexistente antes dos anos de
esses diferentes personagens. Está dissociado deles. Ele abriga duas 1970, período em que a síndrome se difundiu socialmente em lar-
ou mais personalidades distintas que se apoderam alternadamente ga escala. Modelos de desregramento, como eram denominados
de sua personalidade e a dominam. por Georges Devereux, esses comportamentos mais ou menos re-
"Talvez não sejamos feitos para um único eu. Erramos se pen- provados pela sociedade se impõem a contragosto a um número
samos assim. Juízo prévio da unidade (... ]. Não há um eu. Não significativo de indivíduos para expressar seu desconforto. Mui-
há dez eus. Eu é apenas uma posição de equilíbrio" (MICHAUX, . tos psiquiatras se dedicaram no aprofundamento da síndrome da
2000: 63). Ordinariamente, a unidade de si é um esforço do indiví- personalidade múltipla e em seu tratamento, contribuindo assim,
duo, uma resistência contra a dissociação que ameaça. Em deter- sem intencioná-lo, para um aumento de sua incidência. As mí-
minadas circunstâncias, notadamente traumáticas, essa unidade dias norte-americanas também contribuíram para essa banaliza-
é em parte rompida, e a personalidade se racha, se estilhaça em ção articulando-se com uma parte das autoridades médicas, não
incontáveis fragmentos. A divisão é uma forma de defesa. Ela vai obstante as polêmicas suscitadas em torno de sua plausibilidade
(HACKING, 1998). D. Lynch fez da temática o suporte de filmes
5. No final do século XVIII, em menor escala social , uma série de personalidades , .
c1assicos .mtempora1s
. como Los t H'zghway (1997) ou Mulholland
múltiplas foram estudadas pela psiquiatria. Elas são associadas então a fugas Drive (2001). O transtorno de dissociação da identidade é uma
~ais ..ou men_os ~uráveis (automatismo ambulatório), ao longo das quais os fu-
Joes esqueciam totalmente seu estado civil antes de se "acordar" alguns dias
e
1orma .
de reconhecimento soe1al e
que 01erece u ma possibilidade de.
ou alguns meses mais tarde (BEAUNE, 1983; HACKING, 1998). À época, P. . b a de sentido mais
expressão às dificuldades pessoais e a uma use , . . .
Janet (l 889 )_avançou a noção de dissociação e de "automatismo psicológico" t de sua histona, o mdi-
para caracterizar esses sinto
LENBERGER
.• ·
mas em que a conscIencia de si é dissolvida (EL-
ou menos fundamentada. Nesse momen °
9
, l 74: 30ls.; HACKIN, 1998).
, - d infelicidade e, sem o seu
v1duo precisa compreender a razao e sua

74 75
.. e subterfúgios pouco comuns para atenuar
conhecimento, fa z uso d •ustiça americana descartou esse tipo de d ~
aJ . . e esa, e a prescricão ou
dificuldade de atestar os abusos sexuais ta t ·
sua confusão. l'dade geralmente é analisada colll. a . . °
- n tempo depois não
A dissociação da persona I o permitiu a contmmdade dos processos.
f mo uma forma de defesa notadament
uma reação a um trauma is , • . e
. ofridos na infanc1a, e frequentemente es-
contra abusos sexuais s .• Imersão em uma atividade
. faz eco com a tomada de consciencia da
quecidos. Essa ongem . s
. e. , lheres e às crianças nos idos de 1970 (MO. Algumas atividades de alta concentração são para seus adep-
violências 1e1.tas as mu
LHERN, l00l). Estilhaçando sua pessoa em diferentes fragmentos, tos uma fonte de dissolução de si, uma clivagem que lhes permi-
cada fragmento conservando sua autonomia e natureza, o indivíduo te abandonar qualquer outro engajamento. A paixão por um jogo
busca, mesmo sem O seu conhecimento, proteger-se e embaralhar está sempre no limite entre o júbilo e a perda. De maneira praze-
as pistas. Não se trata de esquizofrenia, já que o indivíduo participa rosa o indivíduo desliza em uma espécie de transe no qual se sente
da vida social normalmente, mesmo mudando de personalidade. apaixonadamente existindo, embora desvinculado de sua identi-
Alguns psiquiatras consideram que esse transtorno não tem ne- dade ordinária e sob a constante ameaça de perder o controle ou
nhuma consistência clínica, não obstante inúmeras testemunhas e de deixar-se imergir totalmente na ação. Na obra La Défense Louji-
forte mobilização social negarem essa posição. A primeira descri- ne, de Nabokov, o personagem central é um adolescente inseguro,
ção desse transtorno aparece no DSM-III, em 1980: ''A caracterís- mal-amado, sonhando fugas, embora indeciso. Na escola é perse-
tica essencial é a existência junto a um mesmo indivíduo de duas guido por sua lerdeza e obesidade. A descoberta de seus fracassos
ou várias personalidades distintas, cada uma se apresentando, em perturba sua existência. "Para Loujine, soa a hora inevitável em
dado momento, como predominante. Cada personalidade repre- que o universo bruscamente se apaga, como se tivessem desliga-
senta uma unidade complexa perfeitamente integrada, caracteri- do o interruptor, como se, em meio às trevas, nada mais brilhasse
zando-se por tipos de condutas, de relações sociais e lembranças senão algo totalmente inédito, uma ilhota luminosa, sobre a qual
que lhe são próprias: essas características determinam os compor- doravante toda a sua existência devesse se concentrar" (NABO-
tamentos do indivíduo quando esta ou aquela personalidade assu- KOV, 1991: 31).
me a predommancia
· • · [....] Normalmente a personalidade original O jogo lhe oferece enfim asas para se mover e encontrar seu
não tem nenhuma co nscienc1a
· • · da existencia
· • • de qualquer outra lugar em um mundo caótico cujas regras ele não compreendia. Lá,
personalidade" (in: MULHERN, Z00l). debruçado sobre o tabuleiro, ele opta por combinações possíveis de
A irrupção desses tra t d . , um mundo em miniatura e, na impossibilidade de situar-se em sua
ns ornos a dissociação suscitou inume-
ras dificuldades nos t •b . , . . • . t 'armando em um mestre
n unais americanos, tanto nos processos Propna existencia, aos poucos vai se rans11 . .

contra os molestadores . · b , • • D artida em partida vai


im ativel. Ele não vive sua adolescencia. e P
t presumidos (geralmente familiares) quan- . b t' 1contra adversários
o nos autores de viola õ a1argando sua reputação de jogador im a ive
ocasião do d 1· ç es ou mortes que alegavam ter estado, por . d pessoa um pouco obe-
e lto, sob a influên . d
cia e uma das personalidades. Mas
°
sempre mais exigentes, negligencian SUa - '

76 77
. •onamentos, a não ser o ritua1 1·
arredia aos relaCI srn.o . go costumeiros, Loujine se esgota. A luta t .
sa, um tanto ' . d seus enfrentamentos com os ad Jº .. en re os dois homens
.. · , mente minuooso e , . Ver. , feroz, e LouJine entrega os pontos. "O que . h .
excessiva . , , d 2 Aos poucos vai se construindo u e mais avia no mundo
sários no tabuleiro de xa re . . ma Iérn dos fracassos? A neblina, o desconhecid _
· . . al embora continue vivendo em uma esp, a o, o nao ser.. :' (NA-
reputação 111ternac10n ' . . e- BOKOV, 1991: 124). Na pausa, Loujine desmoron a, e entra em um
, ·1umina O tabuleiro de xadrez. O Jogo é mundo "sombrio e nebuloso" (NABOKOV, 199l: 125 ).
óe de penumbra que sol . seu
., . . . lugar em que realmente se sente existir Fo Após uma longa convalescença ele retorna à su a ex1stenc1a,
. . .
único retumo, umco · ra
. " t a·o é a de uma pessoa distraída, tímida, preguiç afastando o universo dos fracassos sob os conselhos de seu médico.
disso, sua repu aç o-
sa, eternam ente a bsorvida pela necessidade de encontrar combi· - Mas ele já perdeu sua proteção contra a adversidade do mundo. Ele
nações inéditas, frequentemente malvestido, nem sempre asseado, se casa com a mulher que o ama e se esforça para exercer O papel
comendo sempre as mesmas comidas quando não se esquece de que lhe pedem, mesmo que muito superficialmente. Restaura um
alimentar-se, incapaz, enfim, de ocupar-se de si. "Só em alguns ra- equilíbrio precário com uma esposa vigilante e amável que vela
ros momentos ele se dava conta de sua existência [... ]. De maneira por ele. Por ocasião de um baile, ele encontra Pétrichtchev, um an-
geral, porém, só mantinha relações nebulosas com a vida, que não tigo colega, que lhe recorda as vexações de sua infância. Apesar de
lhe exigiam grandes esforços" (NABOKOV, 1991: 83). seus esforços repetidos para livrar-se do importuno, este continua
Por ocasião de um torneio, eis que ele se depara com uma jo- a assediá-lo e a evocar-lhe suas sofridas lembranças ao ponto de
vem mulher muito maternal, encontrando nela a afeição e a aten- Loujine deixá-lo falando sozinho. "Ele se dá conta de que a combi-
ção que jamais teve em sua infância. A mulher é toda amorosa e nação era ainda mais complicada do que inicialmente a imaginava,
compassiva para com esse homem corpulento, taciturno, lento, in- que o encontro de Pétrichtchev representava a sequência de algu-
capaz de tomar conta de si, e descobre a significação de seu existir ma outra coisa e que precisava aprofundá-la melhor, voltar atrás,
entregando-se à função de protegê-lo. Por ocasião de um torneio reencenar todos os golpes de sua vida, desde a doença até o mo-
pre st igioso, ele enfrenta um mestre italiano, adversário temível, e mento daquele baile" (NABOKOV, 1991: 181). Ele parece abando-
se vê literalmente consumido pelo raciocínio do jogo. Após cada nar pouco a pouco a existência ordinária não obstante os esforços

1 1vrar-se d o mun d o d os fra-


sessão, "era-lhe cada vez ma1·s d1'f1'c·11· de sua mulher, e agora é contra o próprio mundo que trava uma
c~sso~' (NABOKOV, 1991 : 111), e, por vezes, o mundo das com· partida de fracassos como se se encontrasse sobre um imenso ta-
bmaçoes parecia invadir-Ih . • . " . buleiro de xadrez no qual sua própria mulher e seus próximos se
e a existencia. Os fracassos cobnam
para ele o campo do real 0 st - ,
tornam os adversarios, e a parti.da, o decurso da vida cotidiana.
Essa VI.da real [ ] L .. ' re o nao passava de um sonho [... ]. "Ele so, conseguia pensar em termos de fracassos" (NABOKOV,
d . ... ' OU)lne con st atou com orgulho tê-la domina- . · l mas preparando
o sem dificuldade, dizend0 1991: 218). Ele ainda se adequa ao Jogo socia' .
se confo que tudo obedecia à sua vontade e . . . ncia de uma viagem,
rmava com suas id . ,, sua defesa até o momento em que a imme
engajamento exc . e1as (NABOKOV, 1991: 119). Mas o ' 1 •o suporta a ideia, o leva
ess1vamente rá .d0 preparada por sua esposa e da qual e e na
seu adversário in· . . pi na luta o engoliu, e quando , . - " . " KOV, 1991: 228). Nomes-
ic1a a Jogada dec· . d a dec1sao de retirar-se do Jogo (NABO
isiva atacando seus padrões e
79
78
. . , . de sua mulher e sobe no parape·t
d ·· ele dribla a v1g11a.nc1a lo
mo ia, E 'e .oga no vazio pensando estar enfi
da janela de seu quarto. s J ., - . . l1l
- 991 . 231 ) Agora Jª nao precisa mais sustent
salvo (NABOKO\~ 1 . . , ar
. d existir. o relato de Nabokov e exempI
f
sua pessoa no es orço e
eterminadas atividades que
.
exigem um
ar
excessivo
3 FORMAS DE DESAPARECIMENTO
e Iem bra qu e d _ NA ADOLESCÊNCIA S DE SI
. - •meiramente escudos que se opoem ao munct
investimento sao pn o
exterior, tentativas de fugir de si mesmo encarnando apenas essa
parte pnv1 . .1egia
. da que se desincumbe do resto. Mast -
u nao tens mais necessidade de
0 engajamento apaixonado em uma atividade opõe à incerte- escusas, de remorsos de nost 1 . -
. . ' a gzas. Nao
za das relações sociais uma relação regular que orienta totalmente re;e1tas nada, nada recusas. Deixaste de
avançar' mas O que nao -
sua existência, mas que o indivíduo tem o sentimento de dominar avançaste, não
~o~partilhas; chegaste, mas não vês o que
à vontade e eternamente. A atividade pode girar em torno de um
iras fazer mais adiante.
objeto como a droga, a internet ou os jogos eletrônicos etc., graças
aos quais o indivíduo decide a seu bel-prazer, mas com o risco de Georges Perec. Un homme qui dort.
transformar seu entorno em pura utilidade e não investir em mais
nada. Essas relações de dependência são uma forma de controle
exercido sobre a vida cotidiana diante das turbulências do mundo. Apagar as coerções da identidade

Se, para o essencial, os adolescentes levam a vida "numa boa~


15% deles se sentem em contradição com o mundo e passam por
períodos de angústia ao longo dos quais se sentem em perigo, atra-
vessando o que o vocabulário da saúde pública denomina hoje
comportamentos de risco. O sofrimento próprio da adolescência
nasce da diferenciação e do advento de si. Ele não é habitual, a não
ser que proceda de um fato traumático que divida a vida em um
antes e um depois (incesto, violação, acidente, separação conflituo-
sa dos pais ... ), ou de um contexto afetivo doloroso (maus-tratos,
ausência de amor, conflitos familiares etc.). Geralmente O jovem
se debate em um mal-estar difuso, difícil de discernir. Ele não sabe
.
o que b usca e isso , vezes tao
lhe parece as - próximo e tão inacessí-
. - que limita sua margem
ve1• A meaçado, ele enfrenta uma situaça0
d e manobra sobre o mundo e altera pro fun damente seu prazer de

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