Você está na página 1de 57

Unidade III

Unidade III
7 LINGUAGEM CRIADORA

A poesia, segundo Bosi (1991), foi a expressão mais pronta para mudanças radicais com o advento
do Modernismo. A tríade Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Oswald de Andrade rompeu com os
modelos acadêmicos e incorporou à poesia brasileira as formas livres com criações tão vigorosas e felizes
que “aos poetas dos anos de 30 seria mister inventar ex nihilo uma nova linguagem” (BOSI, 1991, p. 491).

Lembrete

A expressão ex nihilo tem origem na língua latina e significa criação


a partir do nada.

Esses poetas que se firmaram depois da fase heroica do Modernismo, contudo, conquistaram
novos temas: a política em Drummond e em Murilo Mendes; e a religião, em Murilo Mendes, Jorge de
Lima, Augusto Frederico Schmidt e Cecília Meireles. Eles também buscaram uma linguagem essencial,
metafísica e hermética, como na primeira fase de Vinicius de Moraes, Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa
e Emílio Moura. Além do cerne da preocupação com a linguagem, com a produção do maior poeta
brasileiro – João Cabral de Melo Neto.

A luta dos românticos, depois dos modernistas, pela autonomia da língua portuguesa no Brasil,
pois a literatura ou encontrava um caminho autônomo ou permaneceria mera cópia do estrangeiro,
encontrou respaldo com os primeiros poetas do Modernismo. Assim, os poetas posteriores praticaram
um português mais próximo da realidade da vida brasileira e em alto nível estético.

7.1 Drummond, afirmação da poesia brasileira

Carlos Drummond de Andrade foi o primeiro grande poeta a se afirmar depois das estreias do
Modernismo. Ressalta-se que foram poucos os escritores que conseguiram atualizar suas obras,
para que elas se tornassem veículo de invenção. No caso de Drummond, não restam dúvidas da
originalidade e permanência estéticas de suas obras, que advêm da língua. O poeta ativa forças
latentes da língua e acrescenta-lhe novas possibilidades expressivas, inventadas ou dinamizadas,
em sentido de equilíbrio.

Os principais historiadores do Modernismo brasileiro costumam incluir a poesia de Drummond na


segunda fase do movimento, iniciada por volta de 1930. De fato, ele lançou seus primeiros livros nessa
década, mas o conjunto de sua obra não está limitado às características dessa fase poética. Cada livro
instaurou quase sempre novo processo poético, novas técnicas e novo processo de linguagem. Como
162
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

ressalva Teles (1989), o leitor pode notar o amadurecimento e a ampliação de tendências poéticas,
profundamente criadoras.

De 1930 a 1945, ocorre o primeiro estágio em sua produção poética, marcado pela objetividade e
pela preocupação social. A objetividade é concernente à maior proximidade das coisas e à linguagem
metonímica. Por isso está mais perto dos homens e dos acontecimentos com temas sociais e populares.
Exemplificam-se dois poemas que mostram a objetividade e a linguagem popular, retirados do livro
Alguma poesia:

Cidadezinha qualquer
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.


Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus (ANDRADE, 2003, p. 23).

Vemos o processo metonímico na última estrofe do poema a seguir, quando a palavra mão (a parte)
aparece em lugar do poeta (o todo):

Poema que aconteceu

Nenhum desejo neste domingo


nenhum problema nesta vida
o mundo parou de repente
os homens ficaram calados
domingo sem fim nem começo.

A mão que escreve este poema


não sabe o que está escrevendo
mas é possível que se soubesse
nem ligasse (ANDRADE, 2003, p. 17).

Na obra A rosa do povo, os grandes temas sociais e populares atingem o auge literário desde
Castro Alves. A preocupação com a palavra e com o poema, aliada ao pleno domínio da linguagem,
faz do livro plataforma de seu novo estágio estilístico. A partir desse livro e de outros lançados
posteriormente, percebemos uma linguagem poética cheia de inquietações e lançada na construção
de um universalismo estético conseguido. Agora, a subjetividade apresenta-se mais, e a contiguidade é
substituída fundamentalmente pela metáfora; por conseguinte, as imagens ganharam maior densidade.

163
Unidade III

É, sobretudo, em Lição de coisas que o poeta realiza a plenitude da linguagem, com um mundo
maravilhoso de relações e sugestões sutis, como na parte V de A palavra e a terra (TELES, 1989, p. 223):

Tudo é teu, que enuncias. Toda forma


Nasce uma segunda vez e torna
Infinitamente o nascer. O pó das coisas
Ainda é um nascer em que bailam mésons.
E a palavra, um ser
Esquecido de quem o criou: flutua,
Reparte-se em signos – Pedro, Minas Gerais, beneditino –
Para incluir-se no semblante do mundo,
O nome é bem mais do que nome: o além-da-coisa,
Coisa livre de coisa, circulando.
E a terra, palavra espacial, tatuada de sonhos,
Cálculos.

A partir de Claro enigma, de 1948-1951, com o desencanto da experiência da poesia política, o autor
apresenta dois modos principais de compor seus poemas. Segundo Bosi (1991), um deles é aprofundar
a realidade mediante processo de interrogações e negações que revelam o vazio do homem na matéria
e na História.

Conclusão

Os impactos de amor não são poesia


(tentaram ser: aspiração noturna).
A memória infantil e o outono pobre
vazam no verso de nossa urna diurna.

Que é poesia, o belo? Não é poesia,


e o que não é poesia não tem fala.
Nem o mistério em si nem velhos nomes
poesia são: coxa, fúria, cabala.

Então, desanimamos. Adeus, tudo!


A mala pronta, o corpo desprendido,
resta a alegria de estar só, e mudo.

De que se formam nossos poemas? Onde?


Que sonho envenenado lhes responde,
se o poeta é um ressentido, e o mais são nuvens? (ANDRADE, 2003, p. 402).

Nas páginas finais da obra, o momento da negatividade é traduzido pela dor do desgaste cósmico,
como se a sina da queda não tivesse poupado nenhum ser vivo, condenando todo ser existente a
regredir ao silêncio do reino animal:
164
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Destaque

A máquina do mundo

As mais soberbas pontes e edifícios,


o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,


os recursos da terra dominados.
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre


ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,


dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,


suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade;

E a memória dos deuses, e o solene


sentimento da morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance


e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder


a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo


de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas


presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
165
Unidade III

que vou pelos caminhos demonstrando,


e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade


que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.
Fonte: Andrade (2003, p. 301).

O segundo modo é fazer as coisas e as palavras caírem no vácuo a que a interrogação reduziu os
reinos do ser. De forma coerente, o poeta passou a uma opção concreto-formalista e radicalizou a
estrutura que sempre marcou seu modo de escrever. Segundo o próprio poeta:

À medida que envelheço, vou me desfazendo dos adjetivos. Chego a ver


que tudo pode se dizer sem eles, melhor que com eles. Por que “noite
gélida”, “noite solitária”, “profunda noite”? Basta “a noite”. O frio, a solidão,
a profundidade da noite estão latentes no leitor, prestes a envolvê-lo, à
simples provocação dessa palavra “noite” (apud BOSI: 1991, p. 498).

O rigor da fala madura aliado à contensão é trabalhado nos seus poemas. Agora é um homem
reificado pela dificuldade de transcender a crise do sentido e de valor. O nome (nominalismo) torna-se
extremo no poema Isso é aquilo (BOSI, 1991, p. 498):
I
O fácil o fóssil
o míssil o físsil
a arte o infarte
o ocre o canopo
a urna o farniente

166
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

a foice o fascículo
a lex o judex
o maiô o avô
a ave o mocotó
o só o sambaqui

Segundo Bosi (1991), talvez a antilira seja a única forma de comunicação que o poeta pode oferecer
a seu tempo. Ela corta os vínculos com expressões transparentes de afeto, não para negá-los, mas para
pôr em evidência a condição absurda do mundo, que deu ao poeta A bomba:

A bomba

A bomba
é uma flor de pânico apavorando os floricultores
A bomba
é o produto quintessente de um laboratório falido
A bomba
É miséria confederando milhões de misérias
A bomba
é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles
A bomba
é grotesca de tão metuenda e coça a perna
[...] A bomba
amanhã promete ser melhorzinha mas esquece
A bomba
não está no fundo do cofre, está principalmente onde não está
A bomba
mente e sorri sem dente
[...] A bomba
envenena as crianças antes que comece a nascer
A bomba
continua a envenená-las no curso da vida
[...] A bomba
não admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncer
A bomba
é câncer
[...] A bomba
com ser uma besta confusa dá tempo ao homem para que se salve
A bomba
não destruirá a vida
O homem
(tenho esperança) liquidará a bomba (ANDRADE, 2003, p. 495).

167
Unidade III

7.2 João Cabral, o idioma pedra e as palavras-pedra

João Cabral de Melo Neto (1920-1999) considerava escrever uma coisa infernal. Sua poesia é
reconhecida como obra de um crítico, ou seja, é fruto de um poeta crítico, que escreve e pensa a própria
escrita. Sua obra escreve-se em um processo de construção, falando ao leitor e comentando questões
sobre o escrever, em forma incessante de atividade (auto)crítica.

Nos esclarecimentos de Maurice Blanchot (apud REBUZZI, 2010), alguns escritores confirmam que
escrever tem para aquele que escreve um valor de experiência fundamental, pois, desde o momento
em que um escritor se lança na página em branco e escreve, tem a intenção de aí experimentar algo
além de seus pensamentos. Nesse sentido, a escrita é um processo que se desdobra, desdobrando-se,
em movimento, em deslocamento perpétuo, indagando-se sobre sua razão de ser e sua possibilidade.

A escrita de João Cabral constrói o idioma pedra, na expressão de Rebuzzi (2010), e o poeta defende
uma escrita densa e seca, buscando escapar do lirismo intimista. Segundo o próprio poeta, ele tinha
horror à poesia, porque, em época de colégio, estudava as antologias até a época do Parnasianismo. Ele
lia poetas brasileiros e portugueses românticos, parnasianos, e essa leitura lhe dava nojo.

Esse poeta só compreendeu que na poesia podia haver lógica depois de ler Carlos Drummond de
Andrade, decidindo-se, a partir daí, ser um poeta. Em síntese, a base da poesia cabralina é a lucidez e
a racionalidade. O poeta chegou a declarar-se antilírico, pois para ele a poesia se dirige à inteligência.
Passou a ser – e continua a ser – considerado um dos maiores poetas da nossa língua. Sua consagração
deve-se à lírica cortante que nega a inspiração e a escrita com rigor.

Foi diplomata e viajou pelo mundo, aberto ao novo de outras línguas e outras culturas. Assim,
a poesia de Cabral, declaradamente marcada pelo modernismo de Drummond, dialogou com muitas
outras leituras e estudos. Apenas para exemplificar, João Cabral era um leitor fervoroso de Paul Valéry,
cujos ensaios confirmavam a importância da formação ou fabricação das obras em si. O ritmo
áspero da velha literatura espanhola também causava interesse em Cabral, em especial a de Berceo,
o primeiro poeta conhecido de língua castelhana. Para encerrar nos exemplos, João Cabral repetiu
em seu primeiro livro o verso “É preciso despoetizar o poema”, de Mallarmé.

Observação

João Cabral de Melo Neto tem rica publicação poética e a obra


Psicologia da composição é apenas uma delas e uma das primeiras.
Segue a lista de seus títulos: Pedra do sono (1942), O engenheiro (1945),
Psicologia da composição (1947), O cão sem plumas (1950), O rio (1959),
Dois parlamentos (1960), Quaderna (1960), A educação pela pedra (1966),
Morte e vida severina (1966), Museu de tudo (1975), A escola das facas
(1980), Auto do frade (1984), Agrestes (1985), Primeiros poemas (1990),
Tecendo a manhã (1999).

168
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Na obra Psicologia da composição, publicação de 1947, os poemas são todos sobre poesia, com
momentos de meditação sobre o fazer poético e seus limites racionais no ato da composição. O título
carrega, porém, o termo psicologia, que talvez possa referir-se à depuração da linguagem desse poeta
até neutralizar nela o eu.

Esse livro exigiu muito de João Cabral, que ficou sem escrever durante três anos. Em entrevista, muitos
anos depois, disse que escrevia seu último livro, porque não desejava escrever mais (REBUZZI, 2010).

O livro inclui o poema Fábula de Anfion, transcrito a seguir. Na mitologia grega, aparece Anfion,
que é filho de Júpiter e Antípoda, rainha de Tebas. Ele era dotado para a música, criado entre
pastores e recebeu uma lira de Apolo. Ao som dessa lira, construiu a muralha de Tebas, onde as
pedras iam‑se colocando umas sobre as outras sem qualquer esforço físico. Sensíveis à melodia de
sua lira, elas acomodavam-se.

Destaque

Fábula de Anfion

1. O deserto.
Anfion chega ao deserto
No deserto, entre a
paisagem de seu
vocabulário, Anfion,

ao ar mineral isento
mesmo da alada
vegetação, no deserto

que fogem as nuvens


trazendo no bojo
as gordas estações

Anfion, entre pedras


como frutos esquecidos
que não quiseram

amadurecer, Anfion,
como se preciso círculo
estivesse riscando

na areia, gesto puro


de resíduos, respira
o deserto, Anfion.
169
Unidade III

* O deserto

(Ali, é um tempo claro


como a fonte
e na fábula.

Ali, nada sobrou da noite


como ervas
entre pedras.

Ali, é uma terra branca


e ávida
como a cal.

Ali, não há como pôr vossa tristeza


como a um livro
na estante).

*
Sua flauta seca

Ao sol do deserto e
no silêncio atingido
como a uma amêndoa,
sua flauta seca:

sem a terra doce


de água e de sono;
sem os grãos do amor
trazidos na brisa,

sua flauta seca:


como alguma pedra
ainda branda, ou lábios
ao vento marinho.
*
O sol do deserto

(O sol do deserto
não intumesce a vida
como a um pão.

O sol do deserto
não choca os velhos
ovos do mistério.
170
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Mesmo os esguios,
discretos trigais
não resistem a

o sol do deserto,
lúcido, que preside
a essa fome vazia)

*
Anfion pensa ter encontrado a esterilidade que procurava.
Sua mudez está assegurada
se a flauta seca:
será de mudo cimento,
não será um búzio

a concha que é o resto


de dia de seu dia:
exato, passará pelo relógio,
como de uma faca o fio

2. O acaso

O encontro com o acaso

No deserto, entre os
esqueletos do antigo
vocabulário, Anfion,

no deserto, cinza
e areia como um
lençol, há dez dias

da última erva
que ainda o tentou
acompanhar, Anfion,

no deserto, mais, no
castiço linho do
meio-dia, Anfion,

agora que lavado


de todo canto,
em silêncio, silêncio
171
Unidade III

desperto e ativo como


uma lâmina, depara
o acaso, Anfion.

*
o acaso ataca e faz soar a flauta.

Ò acaso, raro
animal, força
de cavalo, cabeça
que ninguém viu;
ó acaso, vespa
oculta nas vagas
dobras da alva
distração; inseto
vencendo o silêncio
como um camelo
sobrevive à sede
ó acaso! O acaso
súbito condensou;
em esfinge, na
cachorra de esfinge
que lhe mordia
a mão escassa;
que lhe roía
o osso antigo
logo florescido
da flauta extinta:
áridas do exercício
puro do nada.

*
Tebas se faz

Diz a mitologia
(arejadas salas, de
nítidos enigmas
povoadas, mariscos
ou simples nozes
cuja noite guardada
à luz e ao ar livre
persiste, sem se dissolver
diz, do aéreo
parto daquele milagre:
172
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Quando a flauta soou


um tempo se desdobrou
do tempo, como uma caixa
de dentro de outra caixa.

Anfion em Tebas
Anfion busca em Tebas o deserto perdido
Entre tebas, entre
a injusta sintaxe
que fundou, Anfion,

entre Tebas, entre


mãos frutíferas, entre
a copada folhagem

de gestos, no verão
que, único, lhe resta
e cujas rodas

quisera fixar
nas, ainda possíveis,
secas planícies

da alma, Anfion,
ante Tebas, como
a um tecido que

buscasse adivinhar
pelo avesso, procura
o deserto, Anfion.
*
Lamento diante de sua obra.

“Esta cidade, Tebas,


não a quisera assim
de tijolos plantada,

que a terra e a flora


procuram reaver
a sua origem menor:

com já distinguir
onde começa a hera, a argila,
ou a terra acaba?

173
Unidade III

Desejei longamente
liso muro, e branco,
puro sol em si

como qualquer laranja;


leve laje sonhei
largada no espaço.

Onde a cidade
volante, a nuvem
civil sonhada?”
*
Anfion e a flauta.

“Uma flauta: como


dominá-la, cavalo
solto, que é louco?

Como antecipar
a árvore de som
de tal semente?

Daquele grão de vento


recebido no açude
a flauta cana ainda?

Uma flauta: como prever


suas modulações,
cavalo solto e louco?

Como traçar suas ondas


antecipadamente, como faz,
no tempo, o mar?

A flauta, eu a joguei
aos peixes surdo-
mudos do mar.
Fonte: Melo Neto (1997, p. 53-56).

Esse poema pode ser lido como uma paródia do Amphion de Valéry. João Cabral desconstrói um
ideal de poesia pura e associa a palavra à pedra. No primeiro momento, Anfion está “entre pedras” com
a “flauta seca”, ou seja, a sonoridade desaparece e dá lugar ao silêncio. Parece-nos que o poeta constrói,
devagar, uma passagem que atravessa “a paisagem do seu vocabulário” até encontrar a mudez; o “mudo
cimento” é o próprio objeto de construção dessa poética, sendo algo duro e sólido em sua materialidade.
174
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

No segundo momento do poema, o encontro é com o acaso, e o deserto se mostra entre os “esqueletos
do antigo / vocabulário, Anfion,” apertado “de todo canto, / em silêncio, silêncio” e “lavado de todo
canto”. É justo aí que o acaso surpreende.

É o acaso que faz soar a flauta. Esse acaso é nomeado como animal, cavalo, vespa ou inseto, e é
aquele que, na verdade, “ataca” a mão que escreve. A mesma mão que causa incômodo e se move a
escrever faz soar a flauta do verso nas dobras da distração.

Na trajetória dessa fábula, a personagem encontra o avesso da cidade construída: o deserto. Há um


deslocamento da escrita do poeta, na forma de espiral. No poema, há um vaivém que atravessa o texto,
fazendo valer o vocabulário (esqueleto) com as palavras-pedras (deserto, pedra, cimento, osso, tijolo,
muro, laje), que fixam pontos de silêncio, opostos aos vocabulários musicais e líricos (flauta, som, vento,
ondas, conchas). De acordo com Rebuzzi (2010), a busca é secar a linguagem, tensionando a linguagem
poético-musical.

O poeta considera silenciar a música das palavras nos versos e construir, assim, segundo princípios
antilíricos e antimusicais. Ao final, como não encontra saída, atira a flauta aos peixes “surdos-mudos do
mar”. Enfim, escapar da escrita e ficar em silêncio não se mostra uma solução; o poeta propõe, então, o
abandono do lirismo para afirmar a poética árida.

No Amphion de Valéry, a trajetória o leva a ficar com a lira até a morte, e, no de João Cabral, o poeta
lança a flauta ao mar, despedindo-se, dessa forma, do modelo poético sacralizado.

7.3 Henriqueta Lisboa, um caso de transcodificação

Um tópico sobre a poesia brasileira para o qual não poder faltar referência é a tradução de poesia.
Muitos textos poéticos foram traduzidos para a língua portuguesa para o leitor brasileiro e muitos
poemas nossos também foram traduzidos para outras línguas. As versões transcendem limites nacionais
e ensinam “o homem a melhor conhecer o mundo e a si mesmo, construindo sobre o que é propriamente
humano: a linguagem” (BOSI, 1991, p. 545).

No Brasil, o exercício regular da tradução poética foi iniciado no Romantismo. Segundo Bueno (2007),
boa parte dos poetas românticos praticaram a tradução, mas raramente com a plena manutenção da
forma original. Gonçalves Dias também traduziu vários poemas, sendo a mais notável tradução A camisa
encantada, de autoria de Uhland.

No século XX, uma grande escola de tradução poética se firmou no país, em especial na segunda
metade. Destaca-se a atuação dos concretistas Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, além
de José Lino Grünewald e de José Paulo Paes. Traduziram poemas da língua inglesa, francesa,
grega e italiana.

O mais notável das traduções é o respeito à forma original, fonte de todo o desafio de análise
combinatória, de substituição de recursos, que implica a tradução poética.

175
Unidade III

O diálogo entre línguas maternas diferentes é complexo, principalmente no caso da tradução poética,
na qual não se trata apenas de conservar a mensagem, mas também preservar a poeticidade dela.
Segundo José Paulo Paes (apud LEÃO, 2004), poeta e tradutor, a poeticidade é função organizadora
da língua.

Saiba mais
São vários os estudos sobre tradução de textos diversos (técnicos,
científicos etc.) e de textos literários. Os autores apontam dificuldades na
tradução advindas das diferenças, por exemplo, culturais das línguas (de
partida e de chegada), estratégias para tradução eficiente, entre outros aspectos.
Entre as obras sobre tradução, o leitor tem a sua disposição:
ALVES, F.; MAGALHÃES, C.; PAGANO, A. Traduzir com autonomia:
estratégias para o tradutor em formação. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2011.

A organização linguística do texto depende, de um lado, das potencialidades da língua e, de outro,


da capacidade do autor de jogar com essas potencialidades, explorando-as de forma criativa.

Quem cria o texto poético sofre as coerções da sua língua, do gênero escolhido, da tradição literária,
das exigências próprias discursivas e poéticas. Quem traduz igualmente é submetido a essas mesmas
restrições, sofre outras, como as do estilo particular do autor. Na poesia a ser traduzida, somam-se,
também, a semântica do significado e a do significante, ambas objeto de tradução. Essa dificuldade
torna-se maior se a linguagem poética de partida tiver mais condensação.

É o caso da poesia de Henriqueta Lisboa, cuja concisão é deliberada e retrata o recolhimento da


autora. Sua obra é feita quase só de implícito, de palavras contidas, levando o leitor a adivinhar. Podemos
exemplificar com o poema Na morte:

Na morte

Na morte nos encontraremos.


Sim, na morte.
Tempo de consórcio e de vínculo.

Depois de caminhos extremos.


Quer pelo sul ou pelo norte.

Ao término de circunstâncias:
Passos certeiros ou perdidos.

Sem palavras nem sentimentos,


com simplicidade suprema.

Na morte nos encontraremos (LISBOA, 1958, p. 48).


176
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Nos dez versos, aparece apenas um verbo – encontraremos –, sendo os substantivos os núcleos dos
sintagmas tanto dos advérbios ou apostos e são modificados por poucos adjetivos. Essa linguagem
econômica, densa e contida causa dificuldades para o tradutor; mas, apesar disso, o livro do qual o poema
faz parte foi traduzido em línguas como húngaro e búlgaro, além das românicas (francês, espanhol) e
germânicas (inglês, alemão).

Segundo Leão (2004), existe uma tradução magnífica para o latim; na verdade, única tradução de
um livro completo, Montanha viva: Caraça. Em latim, o título ficou Mons vivus seu Mons Caracensis.
A tradução foi iniciada pelo padre Pedro Sarneel, que traduziu os 40 poemas, mas desistiu de sua
empreitada, continuada pelo professor José Lourenço de Oliveira. Este complementa o trabalho do
padre, fazendo cuidadosa revisão. Por isso, o título da primeira tradução dado por Sarneel, Mons Vitae,
foi mudado, porque o padre empregou um substantivo no genitivo para substituir o adjetivo, alterando,
assim, o sentido metafórico.

Observação
Caraça é nome tanto da serra mineira quanto do santuário, localizado
no local, da ordem religiosa São Vicente.

A dificuldade para o padre aumentou porque a língua de chegada é o latim, que ninguém fala, poucos
a estudam e muitos a ignoram completamente. A intenção dele era traduzir para o latim clássicos de
Horácio, Ovídio, Virgílio (grandes poetas da Roma Antiga), mas o poema não se encaixava nessa língua
vernácula. Assim, passou a traduzir para a língua latina da Idade Média, dos poetas cristãos da época.

O professor Lourenço reforça essa dificuldade em traduzir um poema moderno, com ritmos recentes,
ora mais denso, ora mais leve, para uma língua antiga, tão distante de uso no tempo. Ele também deixou
de lado os metros clássicos e adotou o ritmo pós-românico.

Como dão a entender os tradutores, segundo Leão (2004, p. 71), “tratava-se de encontrar
correspondência para uma sensibilidade moderna em outra língua, que, fazendo parte de uma cultura
antiga, também era (numa contradição aparente) a sua síntese”.

Vemos, então, parte do resultado da tradução, recortando dele apenas as duas primeiras estrofes (um
dístico e uma quadra):

A flor de São Vicente

Do caule esguio em pendor,


três pétalas – uma flor.

Humildade. Simplicidade.
Caridade. Ó penhor!
De que maneira se há de
aproximar dessa flor? (LISBOA, 1959, p. 108).
177
Unidade III

A flor do poema sintetiza as virtudes vicentinas, simbolizadas pelas pétalas, humildade, simplicidade
e caridade. Tais virtudes são estendidas, de forma metonímica, ao fundador do Caraça e ao próprio
Colégio. Este é evocado pelo substantivo “flor”, que em latim – flos – faz parte do gênero masculino,
assim como o substantivo “colégio” em português.

A tradução reestrutura as estrofes: os dois primeiros versos da quadra formam um dístico final,
resultando estrofe diversa da do original:

Flos Vicentius

Tenui de caule
flos unus pendet, trifolium.
Humilitas Simplicitas et Caritas.
Ó pignus!

Ad florem
Quomodo accedere? (LISBOA, 1959, p. 109).

As ideias apresentam-se coesas com o original. O indefinido “uma”, em “uma flor”, no sentido de flor
qualquer, torna-se numeral em latim flos unus, uma vez que a língua latina não possuía artigo. Assim,
o tradutor inverte a ordem dos elementos do sintagma original, dando à expressão o sentido de “flor
única”. A expressão ganha, então, maior densidade graças à condensação do oposto “três pétalas”, que
foi traduzido em uma só palavra, trifolium.

As pétalas simbolizam as virtudes principais vicentinas e o conjunto das pétalas – a flor – simboliza
o Colégio e seu fundador. Na tradução, as três virtudes – Humilitas Simplicitas et Caritas – passam a
completar o dístico, agora sem o ponto final, que as integrava, logo em seguida da descrição da flor,
dando coesão e coerência ao poema.

Os dois últimos versos originais passam a ser, na tradução, um dístico separado: Ad florem / quomodo
accedere? Essa interrogação é retórica, reflexiva, do tipo “Como alcançar essa flor?”, sobre a qual o poeta
dirige a si próprio, sem esperar resposta do interlocutor. A tradução desses versos é exemplar caso de
sintetismo latino em oposição ao analitismo românico. Com apenas quatro palavras da língua latina, o
pensamento contido em nove palavras do original português foi traduzido. Nesse caso, como ficaria a
tradução para o português desses versos?

Original português: De que maneira se há de


Aproximar dessa flor?
Tradução latina: Ad florem
quomodo accedere?
Retroversão portuguesa: A essa flor
como chegar?

178
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Temos a confirmação do sintetismo latino. Independentemente disso, o que fica evidente é a


necessidade de trabalhar para a manutenção dos sentidos na tradução, não os recursos utilizados para
produzi-los.

Exemplos de aplicação

I. A poética de Carlos Drummond de Andrade é vasta e muitos de seus poemas são consagrados,
conhecidos e recitados pelos brasileiros. O que você acha dos poemas a seguir?

• Poema de sete faces

• Confidência do itabirano

• A flor e a náusea

• José

Eles podem ser encontrados na indicação bibliográfica no final deste livro-texto e na internet.

II. Além dos títulos poéticos na atividade I, indique outros conhecidos e/ou prediletos de Drummond
no seu acervo de leitura.

III. Relacione o poema de Drummond com a construção poética de João Cabral de Melo Neto.

No meio do caminho tinha uma pedra


tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Fonte: Andrade (2003, p. 16).

IV. Canção do exílio, de Gonçalves Dias (1997), é o texto poético mais parodiado na nossa história
literária. Faça a tradução do poema para língua inglesa ou espanhola. Compartilhe com colegas de
turma, por meio de fórum, solicite opinião sobre a melhor forma de seleção de palavras ou expressão
de uma ideia. Divulgue.

179
Unidade III

8 SUPORTE E RECEPÇÃO DA POESIA E SUAS TENDÊNCIAS

O mundo da poesia atual conta com autores poéticos, que lançam seus textos por meio de editora,
em feiras do livro, pela internet (blog, por exemplo). Hoje contamos com grande número, ou melhor,
inumeráveis poetas contemporâneos, bem como diversidade na forma, na temática, no suporte etc.

Lembrete
Suporte é um meio físico ou virtual que dá sustentação ao gênero
textual e auxilia na sua divulgação. O suporte pode, também, determinar
o gênero do texto. Entre os suportes, há jornal, revista, livro, computador,
celular, televisão, outdoor, parede.

Torna-se, no mínimo, extremamente difícil fazer um panorama dos poetas e de suas obras (impressas,
virtuais). Muitos críticos literários limitam seus estudos até a década de 1960, 70. Bosi (1997), por
exemplo, estrutura seu livro dividindo-o em períodos estilísticos da nossa literatura e, no final, em uma
lista apenas, enumera poetas contemporâneos que publicaram nas décadas de 1950 e 1960. Candido
(2000), por sua vez, encerra seu livro no Romantismo. Não se podem desconsiderar vários artigos, teses,
capítulos de livros atuais que exploram a obra de um poeta atual; porém, trata-se do estudo de uma
obra/um poeta, sem dar um panorama da poesia atual.

Assim, como tratar do número crescente de novos poetas? Onde encaixá-los na historiografia
literária? Formam um estilo único? A dificuldade é imensa e você, caro aluno, poderá contribuir
(e muito) nessa pesquisa sobre os poetas e as poesias surgidos depois dos anos 2000 e traçar as
tendências atuais.

Saiba mais
Bueno (2007), em um dos capítulos finais de seu livro, intitulado “No
agora e aqui pouco sabido”, dá um panorama de poetas/obras atuais.
Leia-o em sua integralidade na obra a seguir:

BUENO, A. Uma história da poesia brasileira. Rio de Janeiro:


G. Ermakoff, 2007.

Além disso, esse mundo poético, hoje, é marcado pela diversidade de suportes e de linguagens,
possibilitando a interação entre a poesia e os recursos virtuais, bem como o hibridismo na forma e
nos suportes.

Sempre associada à sociedade, a poesia acompanha as mudanças ocorridas naquela ao aceitar ou


discordar dela. No caso atual, a sociedade estabeleceu velocidade diferente para o ritmo de vida dos
indivíduos, para a informação e os meios de comunicação, inclusive para a poesia.
180
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Nesse novo contexto, como fica a poesia em relação aos suportes, à recepção dos leitores?

Destacam-se, então, apenas três aspectos da poesia pós-modernista:

O hibridismo da poesia: exemplo de aproximação entre literatura e música, com os textos de


Caetano Veloso; e de hibridismo na relação literatura – internet – música, com texto de Luiz Tatit.

A brevidade na poesia: a brevidade sempre existiu na poesia e é indicada como tendência menos
poética e mais do leitor atual. No caso, há apresentação da obra de Olga Savary, considerada a grande
cultora do poema curto.

O diálogo da poesia com a história: a visão atual do passado também é recorrente nas produções.
Exemplifica-se a obra do poeta Milton Torres.

8.1 O hibridismo na poética pós-moderna

A cultura moderna, ou cultura de massa, iniciou-se como o processo de mercantilização no século XVI
e, agora, é de caráter global. O termo massa passou a ter concepção pejorativa, mas tal expressão significa
abrangência e acessibilidade pelas indústrias da mídia. Sem tomar o termo apenas quantitativamente,
ele serve para disponibilizar as mensagens para uma pluralidade de receptores (CYNTRÃO, 2004). Esses
receptores não podem ser tomados como amontoado indiferenciado; ao contrário, são indivíduos em
contextos particulares que interagem na recepção e dão às mensagens um sentido subjetivo.

Várias características positivas pesam sobre a comunicação mediada por meios e suportes diversos,
mas há o fato de que governos autoritários valeram-se, em muitos momentos da história recente, do
caráter intrinsecamente público da mídia para exercer o controle sobre as instituições da comunicação
de massa, pela via da censura e da coerção econômica. Basta lembrar o regime militar que se instaurou
no Brasil após o golpe de 1964. A política de submissão cultural propunha a integração nacional, a
segurança nacional e o desenvolvimento nacional, controlando, sobretudo, a arte que mais mobilizava
a sociedade: a canção popular.

Embora a cultura brasileira tenha tomado novos rumos com o fim do governo ditatorial, ainda é um
setor social que sofre muitas exigências do mercado econômico, das novas tecnologias e da avaliação
dos padrões culturais.

Em consonância aos desejos da sociedade de consumo, os produtos culturais têm valor de troca,
aproximando-se do mercado, e este, da cultura. No entanto, a obra pode continuar a ter uma dimensão
universal ou valor estético, literário.

Assim, não podemos ler, na era contemporânea, poesia sem considerar novos paradigmas. A base
do novo paradigma é o relativismo cultural, cuja premissa é de que a realidade é sempre culturalmente
constituída. O que era considerado imutável passa a ser encarado como uma construção cultural sujeita
a variações no tempo e no espaço.

181
Unidade III

Outra base é a mentalidade coletiva e a chamada minoria, não mais somente o discurso dominante ou
dos documentos oficiais. Dessa forma, a história da cultura popular vem alargando nossa compreensão
sobre nossa própria época, bem como busca a interação, por exemplo, na literatura.

Marca-se, então, outra característica do pós-modernismo, que é o ecletismo advindo da


desreferencialização e da dessubstancialização do sujeito. Esse ecletismo propicia abertura para o
universo textual e cultural dos textos poéticos canônicos e não canônicos. Na contemporaneidade,
temos, então, aproximações instigantes, tal como a canção popular e o cânone literário.

Em termos históricos, o discurso poético liga-se à música, ocorrendo cisão no Renascimento, em que
a literatura configurou-se de forma autônoma. Para Otávio Paz, “nossa poesia é consciência da separação
e tentativa de reunir o que foi separado [...]. Poesia, momentânea reconciliação: ontem, hoje, amanhã;
aqui, ali; tu, eu, ele, nós” (apud CYNTRÃO, 2004, p. 56). Se nós, do terceiro milênio, buscamos resgatar
a fragmentação e os caminhos para a integração e a integridade, é compreensível que o fenômeno
plurivocal da música popular seja focalizado sob o prisma de uma significação cultural.

A expressão música popular provoca controvérsia, pois engloba a música folclórica e a música
urbana. A primeira manifesta-se nas classes populares, e a segunda contempla a produção da classe
média. No Brasil, foi criada até mesmo uma sigla – MPB.

A música popular urbana, “provavelmente, mais do que qualquer outra manifestação cultural, por
sua penetração indubitável na camada média urbana da população, tem tido papel fundamental na
formação de uma identidade nacional” (SILVA, apud CYNTRÃO, 2004, p. 57). Ela torna-se porta-voz de
anseios e memórias que circulam na sociedade. Seu marco histórico foi na década de 1960, quando
confrontou com violentas ações impostas pelo regime militar pós-1964.

A música popular, na década de 1970, foi o bem cultural mais consumido pela população
urbana, por meio do rádio e da televisão. Os compositores, para burlar a censura, utilizaram argúcia
poético‑linguística, resultando em valor artístico-literário.

No Festival da MPB, em 1967, surgiu uma canção diferente da linearidade da canção e da poesia
sociopoliticamente orientada: Alegria, alegria, de Caetano Veloso:

Alegria, alegria

Caminhando contra o vento


Sem lenço sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou.
O sol se reparte em crimes
Espaçonaves guerrilhas
Em cardinales bonitas
Eu vou.
Em caras de presidentes
182
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Em grandes beijos de amor


Em dentes pernas bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot.
O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia?
Eu vou.
Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
Eu vou.
Por que não, por que não...
Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço sem documento,
Eu vou...
Eu tomo uma coca-cola
Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou.
Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome, sem telefone
No coração do Brasil.
Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou.
Sem lenço sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo amor
Eu vou.
Por que não? Por que não? (VELOSO, 1968).

Essa canção apresenta uma montagem diversificada de imagens, em associações inusitadas,


tal como “Bomba e Brigitte Bardot”. O vocábulo “bomba” remete à bomba atômica, às bombas de
moralização (jogadas contra estudantes e outros manifestantes), como símbolo da realidade da época.
Em contrapartida à realidade, temos a cultura importada e alienante, representada pelo termo Brigitte
Bardot. Essa alienação aparece também nos versos “Em cardinales bonitas”, em referência ao cinema
americano simbolizado pela atriz ítalo-americana Claudia Cardinale e “coca-cola”, maior símbolo do
império norte-americano, que financiava os exércitos em toda a América Latina.

Na década anterior, aliás, no movimento concretista da poesia, encontram-se duas poesias concretas,
que já faziam remissão tanto à bomba quanto à coca-cola:

183
Unidade III

Poema-bomba

Fonte: Campos (2002, p. 9).

Os significantes /b/, /o/, /m/, /b/ e /a/, juntamente com /p/, /o/, /e/, /m/ e /a/, formam uma explosão
com as letras se expandindo a partir de um centro. A disposição das letras, então, produz a impressão
de bomba explodindo em estilhaços. Passa a existir a relação entre os significantes e o significado da
palavra “bomba” e “poema”.

Essa fragmentação e inter-relação significado/significante fazem parte das canções da década 1960
e, em especial, de Alegria, alegria. O texto traz o ambiente urbano, múltiplo e fragmentário, captado por
uma linguagem nova, também fragmentária, com predominância nos substantivos estilhaços, crimes,
espaçonaves, guerrilhas, cardinales, caras de presidentes, beijos, dentes, bombas... É o mundo das bancas
de revistas, com tantas notícias, isto é, o mundo da comunicação rápida, do mosaico informativo.

A outra poesia concreta é coca-cola:

beba coca cola


babe cola
beba coca
babe cola caco
caco
cola
c l o a c a
Fonte: Pignatari (apud BOSI, 1991, p. 534).

184
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Na poesia de Décio Pignatari, o verbo babar interfere no texto publicitário “Beba Coca-Cola” e critica
negativamente um produto pop da época da produção poética. Além da antítese beber x babar, temos
cloaca e aça, que caracterizam o refrigerante como mau cheiro.

Uma das críticas negativas contra o Concretismo é o desvínculo com a sociedade, sendo considerado
alienado/alienante. No entanto, nessa poesia, vemos o contrário: é um texto não só inserido no mundo
(mundo da cultura pop), mas principalmente um texto satírico ao criticar um produto tão popular.

Esse posicionamento crítico constitui igualmente Alegria, alegria. Essa canção faz parte do disco
Tropicália, lançado em 1968. Outra canção do mesmo disco é Tropicália:

Destaque

Tropicália
Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões
Meu nariz
Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento
No planalto central do país
Viva a Bossa, sa, sa
Viva a Palhoça, ça, ça, ça, ça
Viva a Bossa, sa, sa
Viva a Palhoça, ça, ça, ça, ça
O monumento
É de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde
Atrás da verde mata
O luar do sertão
O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga
Estreita e torta
E no joelho uma criança
Sorridente, feia e morta
Estende a mão
Viva a mata, ta, ta
Viva a mulata, ta, ta, ta, ta
Viva a mata, ta, ta
Viva a mulata, ta, ta, ta, ta
185
Unidade III

No pátio interno há uma piscina


Com água azul de Amaralina
Coqueiro, brisa e fala nordestina
E faróis
Na mão direita tem uma roseira
Autenticando eterna primavera
E no jardim os urubus passeiam
A tarde inteira entre os girassóis
Viva Maria, ia, ia
Viva a Bahia, ia, ia, ia, ia
Viva Maria, ia, ia
Viva a Bahia, ia, ia, ia, ia
No pulso esquerdo o bang-bang
Em suas veias corre
Muito pouco sangue
Mas seu coração
Balança um samba de tamborim
Emite acordes dissonantes
Pelos cinco mil alto-falantes
Senhoras e senhores
Ele põe os olhos grandes
Sobre mim
Viva Iracema, ma, ma
Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma
Viva Iracema, ma, ma
Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma
Domingo é o fino-da-bossa
Segunda-feira está na fossa
Terça-feira vai à roça
Porém...
O monumento é bem moderno
Não disse nada do modelo
Do meu terno
Que tudo mais vá pro inferno
Meu bem
Viva a banda, da, da
Carmem Miranda, da, da, da, da
Viva a banda, da, da
Carmem Miranda, da, da, da, da

Fonte: Veloso (1968).

186
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

O texto compõe um mosaico nacional do momento histórico, bem datado, ao fazer referência ao
atual, por contraposição ao passado: “viva Iracema / viva Ipanema”; “eu oriento o carnaval / eu inauguro
o monumento / no planalto central / do país” etc. O termo Iracema, que é anagrama de América, é
personagem de José de Alencar, escritor do século XIX, o qual ajudou a criar o indianismo, ou seja, a
idealização da figura indígena; no caso, da figura feminina. Ipanema é uma palavra tupi (com significado
de água ruim) e, no caso, remete à garota da canção de Vinícius de Moraes e Tom Jobim, século XX.

Enquanto Alegria, alegria se constrói sobre o fragmentário e a dispersão da realidade urbana, em


Tropicália os termos combinados são contraditórios entre si: “papel crepom”, que é objeto de consumo
ordinário, e “prata, mata e sertão”. Na entrada, há “uma criança / sorridente feia e morta” e no “pátio
interno há uma piscina”.

Segundo Augusto de Campos (apud CYNTRÃO, 2004, p. 80):

Tropicália, a primeira faixa do LP, é também a nossa primeira música


Pau‑Brasil, homenagem inconsciente a Oswald de Andrade, de quem
Caetano ainda não tinha conhecimento, quando a escreveu. Pau-brasil:
contra a argúcia naturalista, a síntese contra a cópia, a invenção e a
surpresa [...]. Em Tropicália, há uma presentificação da realidade brasileira
– não a sua cópia – através da colagem criativa de eventos, citações, rótulos
e insígnias do contexto. É uma operação típica daquilo que Lévy-Strauss
denomina de bricolage intelectual.

As grandes obras falam do mundo e dos homens de forma inusitada e têm a qualidade de dialogar com
outras criações, reaparecendo de diversas formas, em diferentes momentos, como diz Beth Brait (2010).
Esse é o caso da personagem Capitu do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Considerando a
primeira edição da obra, Capitu está entre nós desde 1889, não nos deixando e não deixando de causar
polêmica e provocar admiração.

Graças às dúvidas que pairam sobre um possível adultério e a sua maneira intrigante de ser, muitas
reaparições já foram e continuam ocorrendo. Entre releituras, recriações, diálogos, há a coletânea de
contos de Dalton Trevisan Capitu sou eu; a adaptação literária de Fernando Sabino Amor de Capitu;
o roteiro cinematográfico feito por Ligia Fagundes Telles Capitu, sem contar sites e blogs que são
intitulados Capitu ou existem para discutir essa personagem.

A música popular brasileira também foi seduzida por essa personagem, como comprovamos na
canção Capitu, de Luiz Tatit:

187
Unidade III

Destaque

Capitu

De um lado
vem você
com seu jeitinho
Hábil, hábil, hábil
E pronto!
Me conquista
com seu dom

De outro
esse seu site
petulante
www
Ponto
Poderosa
ponto com

É esse o seu
modo de ser ambíguo
Sábio, sábio
E todo encanto

Canto, canto
Raposa e sereia
da terra e do mar
Na tela e no ar

Você é virtualmente
amada amante
Você real é ainda
mais tocante
Não há quem não se encante
Um método de agir
que é tão astuto
Com jeitinho
alcança tudo,
tudo, tudo
É só se entregar,
e não resistir,
é capitular
188
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Capitu
A ressaca dos mares
A sereia do sul
Captando os olhares
Nosso totem tabu
A mulher em milhares
Capitu

No site o seu poder


provoca o ócio, o ócio
Um passo para o vício,
vício, vício
É só navegar,
é só te seguir,
e então naufragar
Capitu
Feminino com arte
A traição atraente
Um capítulo à parte
Quase vírus ardente
Imperando no site
Capitu

Fonte: Tatit (2000).

O autor constrói a dimensão de um feminino forte, imaginário, sobre a mulher, que, vindo do século
XIX literário, chega ao século XXI via internet. Entre as qualidades do texto para reviver Capitu, está o
trabalho com a linguagem, com as riquezas da língua portuguesa, criando forte e vivo diálogo entre
ficção literária, canção e internet.

Na primeira estrofe, a expressão “De um lado” inicia a face Capitu machadiana com alguns traços
marcantes da personagem, como o verbo “vir” no presente, que funciona como uma ponte entre o
mundo do romance e o da canção; o diminutivo “jeitinho”, que torna familiar e juvenil a relação entre
o poeta e sua musa; a repetição do termo “hábil“, que reitera uma maneira de ser e dialoga com o
capítulo 18 da obra Dom Casmurro, no qual lemos: “Capitu, aos quatorze anos já tinha ideias atrevidas
[...] mas não eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis” (ASSIS, 1991, p. 16).

A ideia da conquista associa-se ao dom, que é uma qualidade inata, a um poder, e também à forma
de tratamento que aparece no título do romance Dom Casmurro, entabulando forte intertextualidade
canção/romance.

Com a expressão “De outro”, verso inicial da segunda estrofe, tem início a Capitu internauta. Se
a anterior é caracterizada como hábil, sutilmente astuta, essa é mais agressiva, ágil, identificada com a

189
Unidade III

linguagem da internet e com o petulante endereço: <www.poderosa.ponto.com>. A sequência “modo


de ser ambíguo”, que admite diversas e até contrárias interpretações, estabelece a síntese entre as
faces da personagem, assinalando a mais marcante das características de Capitu e do romance que
lhe dá vida.

Observamos a exploração do termo encanto, qualificando o “modo de ser ambíguo”, em que canto
é rima, é repetição, é eco, criando ambiguidade entre quem canta e quem é cantado. Em magnífico
jogo entre a personagem, sua existência na e pela canção e sua dimensão mítica, explicitado no verso
seguinte, por meio do termo “sereia”: a que encanta cantando. Esse jogo reaparece em outros versos, por
meio dos termos “tocante” e “se encante”.

O autor traz para dentro da canção símbolos, mitos, lendas, personificações que nos levam à
compreensão da ambiguidade da personagem. É o caso da “raposa e sereia”, que recupera a personagem
imortalizada na fábula de La Fontaine; a raposa designa pessoa matreira, astuta. É o caso do mito da
sereia que vem da Antiguidade clássica, presente na Odisseia, de Homero, e cuja característica é atrair
para a morte todos os que deixam levar por seu canto e pelos encantos.

Além das referências literárias que presentificam Capitu, temos, da canção de Roberto Carlos
e Erasmo Carlos, a “amada amante”, e de Freud o “totem tabu”. Todas as referências agregam-se a
elementos que redimensionam e expandem a personagem. “Você é virtualmente / Amada amante”
é diferente de “E você, amada amante / Faz da vida um instante / Ser demais para nós dois”. O pronome
possessivo e as minúsculas em “Nosso totem tabu” trazem a discussão psicanalítica para um cotidiano
em que Capitu se torna um símbolo sagrado, uma divindade, um emblema, algo proibido, tudo ao
mesmo tempo.

O verbo “capitular” significa render-se, entregar-se, como anunciam dois versos na quarta estrofe,
e traz em si o nome Capitu, englobando ação e designação. A partir desse verso, pela primeira vez, o
poeta, seduzido, evoca Capitu e se deixa capturar. A quinta estrofe inicia e termina com o nome Capitu;
os versos parecem literalmente capturados, sem saída.

O segundo verso, “a ressaca dos mares”, reinventa a famosa designação dada para Capitu por
Bentinho, no capítulo 32: “traziam não sei que fluxo misterioso e energético, uma força que arrastava
para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca” (ASSIS, 1991, p. 98).

O verbo “naufragar” faz parte da penúltima estrofe, refere-se à Capitu internauta, mas sintetiza as
palavras e as ações que, no romance, se referem aos “olhos de ressaca”. Não podemos deixar de perceber
que ele está muito próximo de “navegar”, que antecede e metaforiza a ação dos que são capturados pelo
poderoso olhar (tela do computador?), pergunta-nos Brait (2010).

A canção reitera a articulação entre a criatura machadiana, definida como “um capítulo à parte”, e o
termo vírus, aquilo que contagia e pertence tanto à linguagem da internet como à da patologia. Sendo
um vírus ardente, sintoniza invasão, paixão, dominância. Como no capítulo 115 “Dúvidas sobre dúvidas”,
diz o narrador de Dom Casmurro: “Pois aqui mesmo valeu a arte fina de Capitu” (ASSIS, 1991, p. 111).

190
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

8.2 No ritmo da atualidade

Na narrativa, hoje, foi criado o microconto, constituído não por palavras ou ideias ou enredo, mas
por um termo bem contemporâneo, caracteres, remetendo ao mundo da internet, do computador. Em
torno de 170 caracteres, incluindo nessa conta, os espaços entre as palavras, a pessoa cria uma história.

As pessoas não têm tempo ou disposição para leituras mais prolongadas e densas. Ao abarcar com
apenas um olhar, o leitor já consegue fazer a leitura do microconto. Leitura veloz, vida veloz, bem típicas
da sociedade do início do século XXI.

Correspondente à extensão extremamente curta do microconto, a poesia possui dísticos, quadras,


haicai, entre outras formas poéticas que, na verdade, existem há séculos.

Entre os poetas brasileiros que dedicaram, ao menos, uma obra para o haicai, encontra-se Olga
Savary (1933-), cuja preocupação em criar haicai não era a exigência com o ritmo veloz da sociedade,
mas para atender ao seu amor à sobriedade e à concisão dessa forma poética. Segundo Marcondes e
Toledo (2009), é a poesia da essência, a simplicidade, o equilíbrio, a harmonia e a sobriedade.

Observação

Olga Savary tem rica e variada produção poética. Ela é conhecida pelos
poemas eróticos e de diversas temáticas, em que emprega a língua tupi,
e por um título que causou admiração entre os poetas, Berço esplêndido.
Pode-se considerá-la a síntese da discussão sobre a literatura nacional:
não somente valoriza nossa nação, incutida de literatura nacional, como é
descendente da mistura de povos (português e indígena).

Na disposição oriental, o haicai é colocado verticalmente em uma única linha, tornando arbitrária
a apresentação ocidental em terceto. Outro ponto é a contagem de sílaba poética, tão arbitrária quanto a
disposição. No Ocidente, o haicai é engessado ao esquema 5/7/5. Essa arbitrariedade legitima, então,
na forma ocidental, qualquer estrutura que o poeta considere mais adequada.

Na obra de Savary, o haicai tem conotação específica, sem limitar-se a esquemas fixados pelo
Ocidente, inovando ao acrescentar a alguns haicais um quarto verso:

Percepção

A vida tem olhos terríveis.


Nada termina tudo se renova
E o sol é um grande pássaro de fogo
Alerta entre as árvores (SAVARY, 1986, p. 18).

191
Unidade III

Apesar de fugir de esquema 5/7/5, em alguns haicais, a poeta concede-se à rigidez ocidental:

Amor

Deve é ser comido


Qual fruto – verde ou maduro –
Mesmo sem vontade? (SAVARY, 1986, p. 18).

Nessa poesia, o título condensa a (in)evitabilidade do amor.

Em outro haicai, Vinheta, encaixa-se à temática tradicional (oriental) ao falar da fragilidade dos
sonhos, comparada à evanescência das asas da libélula:

Vinheta

Minha pequena libélula,


Leva no sonho de tuas asas frágeis.
A fragilidade das asas dos meus sonhos (SAVARY, 1986, p. 33).

A escrita está bem comportada, mas a poesia causa estranheza no ritmo, que se esperaria fluido
e fugidio, e não é. No primeiro verso, heptassílabo, a acentuação é ainda tênue e a fluidez dos sons
acompanha o intangível do conteúdo, a pequena libélula. Porém, os dois últimos versos, apesar do
conteúdo etéreo – sonhos, asas, fragilidade –, têm ritmo marcado para a recitação, porque o primeiro tem
decassílabo sáfico e o terceiro, um alexandrino. Há clara, proposital e inesperada incursão parnasiana.

De forma geral, os haicais de Olga Savary atingem o leitor pelo tom filosófico e, em razão disso,
têm significação especial à maneira de viver. O zen está presente tanto na forma equilibrada do haicai
quanto na ideia trabalhada nele.

Entre as obras poéticas de Savary, o leitor depara-se com o poema Morte de Moema, que não é
haicai, mas continua na esfera de poemas com versos curtos. Em nota de rodapé da obra, a poeta diz:

Morte de Moema narra a história da paixão da índia pelo branco português


Diogo Álvares, alcunhado “Caramuru”. Em 1510, naufragando nas costas
da Bahia, Diogo caiu prisioneiro dos tupinambás. Alvejando pássaros
com um mosquete, espécie de espingarda pesada, foi denominado pelos
índios, que desconheciam armas de fogo de “Caramuru”, cujo significado é
“homem de fogo” ou “filho do trovão”. Vivendo anos entre os gentios, após
preterir a heroína deste poema por Paraguaçu (filha do cacique, portanto
mais poderosa), leva-a para Paris, onde lá ela toma o nome de Catarina.
Desesperada, Moema nada atrás do navio que leva o amado até perder as
forças nas águas do mar. As ondas trazem-na morta às areias da praia. A elegia
é um pretexto para declaração de amor da poeta ao Brasil, que procurou dar
uma pincelada de humor à elegia, em proposital animismo para dramatizar
e, ao mesmo tempo, amenizar ainda mais a morte (SAVARY, 1998, p. 24).

192
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

O poema Morte de Moema é semelhante à história épica Caramuru, de Frei José de Santa Rita
Durão; mas a autora, quando escreveu seu texto, desconhecia o poema de Durão, segundo declarou em
entrevista posterior.

Destaque

Morte de Moema

A tempestade serenara
mas um cruel manitó
sobre o cortejo do vento
cravara a sombra da Morte.
Nem bem o raio da aurora
rasgara o luto do céu
um anhangá ou anhanguera
de luto os ares empanam
dando ao litoral o corpo
da índia que o amor
a vida entrega a Tupã.
Ainda paira a lembrança
dos olhos molhados,
dos seios emersos
e os lábios da jovem
– pelo branco apaixonada,
que enfastiado se vai –
soluçante a implorar
ao indiferente amado:

“Preciso de ti.
Chamei da manhã à noite,
o Sol ouviu-me chamar-te,
a Lua ouviu o teu nome
mas nem assim entendeste,
não atendeste ao chamado,
não pudeste me escutar.”

O barco a afastar-se,
pior que curare,
levou o ingrato
que breve a esqueceu.
Atrás dele nada a índia
até já não ter mais fôlego
e desalentar.
193
Unidade III

E ouvia-se ainda
num vago murmúrio:
“Eu não te esqueci.”
Sua fala em voz baixa
o mar bravo devora.

Digo-lhe eu, a Autora:


Este amor te mata.
Tudo bem, o amor
é mais forte que o fogo
mais forte que a água,
o homem não destrói
nem pode apagar,
mas este amor te mata.
Repetiam ondas
às conchas de seus ouvidos:
“Te mata, te mata.”

Nadar assim que nem louca


desafia-lhe o limite
e eis os cabelos grossos.
igual crina de cavalo,
nem branca nem negra,
não sorri mais encantada
pra nossos guizos, miçangas,
facas, espelhinhos,
a pele toda pintada
de tinta preta e vermelha
(urucum e jenipapo).

Lentamente e rápido
o Brasil pra trás,
sua pátria agora é o mar.
Carrasca consigo,
mouca, não ouve a ressaca
das grandes massas de água:
está vestida de sonho.

Uma onda mais brava


pode lhe ser colar
ou forca.
De primazia terrestre,
desmancha-se na água
do Mar-Oceano,
194
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Os olhos mortiços
da bela aimoré
(ou tupinambá)
abandonam o sonho
no sonho das águas,
fechando-se ao enleio
de um sono fatal.

Aquela que era moça


no mar vira peixe
mas peixe sem mexer,
peixe que não nada. Nada.

Do mar alto, altas ondas


a tomaram das águas,
espumas a arrebatam
do remoinho das vagas,
dedos ávidos erguiam
este âmbar encharcado
dos cabelos enluarados,
dedos se erguiam de espumas,
espumas cheias de dedos
tal gravura oriental.

Rolando nas ondas


da viva procela
por fim chega à praia
o corpo trigueiro
da índia já morta.

Maré negra veio dar


à praia, fera com ela.
E a praia a recebeu
com toda a fina pompa
das garras brancas.
Agarra-se à índia
a salsugem da praia,
cravando-a na areia.
E ali ela ficou
parada como a sonhar.

A vaga que a trouxe,


sem querer deixá-la,
a nudez lhe afaga
gemendo espumas.
195
Unidade III

As aves da mata,
crescidas com ela,
emudecem o canto,
chorando-lhe a sorte.

O orvalho da madrugada
alerta vira lágrima
de esperança na face
da jovem afogada.
Do flanco delgado
descera o enduape,
da fronte resvala
o acangatara
e desfazem-se as penas
num rito de dor.

Os cabelos de âmbar
colados à rocha
o rosto da índia
inda tornam mais pálido.
Os braços inertes,
fatal abandono,
suplicam ainda:
“Preciso de ti.”
E eu a Autora,
crítica, lhe digo:
Este amor te mata.

No ar consternado
da praia deserta
agora é só sombra
a natureza
antes em festa
e adeja a gaivota
na orgia da morte.
– Tupã, tu que a amaste,
revive-lhe o riso
que já te prendeu
E vós, ó irmãos,
cessai o festim!
Refreai os golpes
da ivirapema
e o canitar rompei
num rasgo de dor.
196
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Tomai da cauaba
e ao chão atirai
o ardente cauím.
É finda a alegria
e aos pés de Tupã
jaz a taça partida:
sem mais vista, olfato,
audição ou tato,
esplendor da paixão,
Moema está morta

Fonte: Savary (1986, p. 25-26).

Com a leitura realizada, caro aluno, podemos dizer que o poema nos surpreende tal a força e a
paisagem apresentadas no texto. O texto passa de Abraxas a Tupã, do selvagem ao místico, da margem
ao centro, da tribo ao texto.
Morte de Moema é a cena final de uma história de amor entre um branco e uma índia e, logo no
início do poema, há o anúncio da morte trazido pelos ventos:

dando ao litoral o corpo


da índia que o amor
a vida entrega a Tupã.

As manchas do luto “rasgam o céu” e “tingem as águas”. De acordo com Marcondes e Toledo (2009),
água é um signo essencial dos poemas de Olga Savary, bem como os contrastes. No poema, a água é
o local onde morre Moema (afogada) e a oposição é encontrada entre Sol x Lua, estes como forma de
expressão da contagem do tempo em sua forma mais primitiva.

O mar, que tudo consome, engole também o último sussurro de amor:

E ouvia-se ainda
num vago murmúrio:
“Eu não te esqueci.”
Sua fala em voz baixa
o mar bravo devora.

A voz da autora intervém, em meio à melancólica cena, como se sua voz fossem as ondas
aconselhando a índia:

Este amor te mata.


Tudo bem, o amor
é mais forte que o fogo
mais forte que a água,

197
Unidade III

o homem não destrói


nem pode apagar,
mas este amor te mata.

Surge, nesse momento, o elemento fogo. O amor, ao ultrapassar a força das chamas, é queimado e
reduzido a cinzas. “Vestida de sonho”, Moema sai da vida com um “sono fatal”. A bela aimoré troca de
pátria; sua alma deixa as terras do Brasil e passa a habitar o mar. Quando seu corpo chega à praia, a
natureza silencia:

As aves da mata,
crescidas com ela,
emudecem o canto,
chorando-lhe a sorte.

Até as penas de enduape – rodela de penas que os tupinambás usavam nas nádegas – desfazem-
se num rito de dor. A morte de Moema faz a natureza chorar. A gaivota, antes em festa, percorre as
sombras, na orgia da morte. É chegada a hora de os irmãos índios refrearem os “golpes da ivirapema”
– arma ofensiva, espécie de maça –, tomarem da “cauaba” – vaso em que os indígenas preparam o
cauim – e ao chão atirarem o ardente “cauim” – bebida preparada com a mandioca cozida e fermentada,
com caju ou outras frutas. É o fim da alegria, Moema perdera os cinco sentidos. Foi levada a Tupã pelos
braços do mar.

8.3 Diálogo com a história: a poesia de Milton Torres

Uma das obras respeitadas da geração 2000 é No fim das terras, de Milton Torres, publicada em 2004.
A obra, que alguns críticos chamam de luso-brasileira, é constituída por duas partes: Portugueses e
Novo Mundo, sendo cada parte subdividida em outras. Por exemplo: Portugueses: Hispania, da memória,
do império, do pensar e do fazer. Em Hispania, há expansão para os poemas:

• O tempo e a Lusitânia
• Mediterráneo, aguas de paradoja
• Ao fim das terras depus teus ossos
• De los altos de Finisterra
• O sino de Compostela
• ¡adelante adelante!
• Sevilla
• Setóbriga, o teu esqueleto aquático

Apenas pela apresentação dos títulos dos poemas, o leitor já verifica que: a) o livro de Torres resgata
a história da América, mas não se inicia por ela. O autor volta à Europa, vem à América, uma América

198
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

tanto hispânica quanto portuguesa; b) o poeta resgata a própria história da língua. Os primeiros poemas
foram escritos em língua espanhola e portuguesa em sua fase arcaica, da época medieval e da época dos
descobrimentos das terras do Novo Mundo.

Na fusão literatura e língua, a história de ambas é retomada em poemas como Achei achém
(achegas) ou os benefícios marginais. Tal poema é precedido por um intitulado Encoberto descoberto,
em referência à descoberta da América.

Achei achém (achegas)


ou
os benefícios marginais
Senhor,
dinheyro amoedado han tanto,
polla Prouidencia a Uos guardado,
pera os heresiarcas destruyr, e seus secazes:
refazer, & os reynos reformar
patrimoniaes,
sostentar os ganhados;
desbaratar,
exterminar,
e desterrar o Turco,
a Sancta Hierusalem tomar,
& Affrica, & Asia, & America
pera exalçar-se
o Sancto nome de Christo
pollo auenturoso braço Uosso (TORRES, 2004, p. 63).

Embora a língua portuguesa tenha sido oficializada no século XI, até o momento da descoberta
da América, a ortografia da língua não era sistematizada. A primeira gramática só surgiu em 1536, e o
primeiro livro de ortografia, em 1576. Mesmo depois da sistematização ortográfica, os textos (cartas,
crônicas etc.) foram redigidos sem seguir uma rigidez ortográfica, apresentando, muitas vezes, duas
grafias diferentes da mesma palavra no mesmo texto.

No poema, o poeta (brasileiro, contemporâneo) criou seu texto com língua portuguesa e a ortografia
vigente de então. O fonema /i/ era escrito tanto pela letra i quanto pela letra y (dinheyro, destruyr);
o fonema /v/ era registrado como /u/ (Prouidencia, Uos, Uosso). São exemplos de registro arcaico
empregados pelo poeta, que torna esse arcaísmo em estética.

O poema, por sua vez, é híbrido em sua estrutura, pois, ao remeter-se ao rei de Portugal (“Senhor”),
converte-se em carta, talvez aquela, primeira, de Pero Vaz de Caminha. O conteúdo do texto corrobora
o contexto histórico. Em tom irônico e de gradação, o eu que escreve a carta esclarece que há riqueza
para destruir os hereges e, assim, reformar os reinos. A ação para a destruição é: desbaratar, exterminar
e desterrar. E, em nome do “Sancto nome de Christo”, tomar Jerusalém, África, Ásia e América.

199
Unidade III

Como todo poema épico, há uma viagem No fim das terras e no centro (do livro, da viagem) aporta‑se
na apropriação contemporânea do passado distante. No centro do livro, aporta-se às brasílicas
terras da América, onde sobrevém a vida com os idiomas francês e inglês.

Na segunda parte, Novo Mundo, na subdivisão poemas brasileiros, não por acaso, o primeiro poema
da série funda-se na reiteração cumulativa de fórmulas do escolástico dos jesuítas, empenhados na
ocupação do solo e das almas:

Clivagem

Solutio argumentorum:
- Ad primum argumentum
- Ad secundum argumentum
- Ad tertium argumentum
- Ad quartum argumentum
- Ad quintum argumentum
- Ad sextum argumentum
- Ad septimum argumentum
Obiectio verbosistarum
Responsio
- Ad octavum argumentum
- Ad nonum argumentum
- Ad decimum argumentum
- Ad undecimum argumentum
- Ad duodecimum argumentum
- Ad decimum tercium argumentum
- Ad decimum quartum argumentum
- Ad decimum quintum argumentum
- Ad decimum sextum argumentum
- Ad decimum septimum argumentum
- Ad vultima <tria argument> verbositatis strepitum continentia
Epilogus
Conclusion

aqui del-Rei!
aqui del-Rei!

só compro o negro da canela fina! (TORRES, 2004, p. 135).

Na língua latina, oficial dos padres católicos, o poema é construído, cuja voz é dos jesuítas, padres
que aqui vieram no início da colonização portuguesa, e eles visavam à catequização indígena. O poema
encerra-se com duas surpresas para o leitor. Primeiro, a língua latina não é mantida, sendo substituída
pela língua portuguesa, não da época, mas a atual, com tom informal. Segundo, o povo a ser conquistado
é o negro. Há deslocamento da figura indígena para o povo africano, que se tornou escravo no Novo
200
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Mundo. O final do texto leva a entender o motivo da existência de argumentos: a escravidão (nesse
ponto, tanto dos ameríndios quanto dos africanos).

Nessa restauração da vida econômica da Colônia, em que a voz poética atinge tom de humor perverso
e amargo, o sopro épico do poema é revigorado pelas transformações literárias ocorridas depois do
Renascimento.

Sete povos

partiram os padres partiram todos a ferros


alastra o fogo na jeira na resteva assoleada
na língua do faxinal – que tudo é sopapo barro socado
no vão da madeira seca

arde Miguel arde do fogo aceso arde da ardência do arcanjo.


da linda os padrões apaga tisna de fumo as quinas
distrata a tratada raia (TORRES, 2004, p. 139).

O título remete à luta entre o governo português e espanhol nas Sete Missões, contra os jesuítas
e os indígenas, que se tornou tema da epopeia O Uraguai, de Basílio da Gama, como já apresentado e
discutido neste livro-texto. A estratégia mais impressionante dos indígenas foi provocar o incêndio dos
acampamentos dos exércitos europeus como forma de impedir o ataque destes.

O poema de Basílio da Gama mostra-se, em vários momentos, no conteúdo e na estrutura, um


texto que rompeu com o modelo tradicional da epopeia. Milton Torres, assim como Basílio, mostra‑se
sensível à mutação das formas e à alteração dos gêneros. Assim, o poema Sete povos mantém o
espírito dos grandes poemas, mas sem preservar a inteira configuração tradicional destes.

Poemas depois, ainda na série poemas brasileiros e já em um Brasil moderno, encontra-se o:

a bota geometriza o chão a cada passo


tatuando-lhe a estrela do projeto
imprime o ethos
a natureza de quem a calça, trata
da práxis, não fala
range apenas, marcando inequivocamente
a sua presença, legitima-se no próprio estar

o pé descalço é flexível
democrático, recoberto da pele
protege-se das asperezas da terra
e guarda um resíduo moral num tanto de umidade.
um pé com o outro faz par, bípede o usuário. bípede,
enfrenta sem descanso sutis questões de equilíbrio (TORRES, 2004, p. 192).

201
Unidade III

O poema poderia estar falando do encontro entre os nativos ameríndios e os portugueses (europeus,
de forma geral), em que a bota seria símbolo de dominação portuguesa e o pé descalço, símbolo dos
povos nativos, isto é, pela obviedade, os portugueses usavam roupas e calçados, ao contrário dos indígenas,
que se apresentaram nus aos olhos portugueses.

No entanto, o primeiro verso “a bota geometriza o chão a cada passo” ultrapassa os limites de sua
breve geografia. Sobreleva o processo metonímico, em que bota e pé descalço contribuem com nuanças
de outros contrastes. Eles simbolizam a condição social e existencial do homem no presente. Tanto
pode ser a significação de riqueza e pobreza, de opressão e submissão, quanto a de vilania e
heroísmo, de aprisionamento à própria condição (cultura do domínio) e de invenção da liberdade
(natureza sem domínio).

De cena em cena, a parte poemas brasileiros, seguida das duas últimas partes do livro, quadras do
sul e poemas do Rio, chega à Independência do Brasil, à industrialização e aos tempos republicanos.
Nessa lenta operação de escolha, escavação e de arqueologia verbal, ocorrem verdadeiros momentos
de significação artística e cultural, bem como da própria língua.

No mundo pós-moderno, o poeta será, antes de tudo, um artista do idioma, devendo saber incorporar
vocábulos nacionais, vocábulos internacionais, vocábulos correntes, vocábulos arcaicos, vocábulos
sublimes, vocábulos baixos, gíria, ciência, sexo, arte e esculhambação.

O tipo de poesia apresentada na obra de Milton Torres não assume voz denunciatória; ao contrário,
os poemas tornam-se cada vez mais metafóricos, quanto mais intensificam a crítica social.

Exemplo de aplicação

Configurado no signo poético, emergindo do imaginário coletivo, Renato Russo compôs e fez uma
geração inteira de jovens gritar com ele: Que país é este? Essa antológica pergunta – uma das mais
célebres – retoma o poema de Affonso Romano de Sant’Anna de mesmo nome. Ambos os textos fazem
parte da geração de 1980, década de anos nebulosos.

Leia os textos a seguir, verifique a proximidade poesia e música (e como ela ocorre nesses textos)
e discuta o que esses textos contextualizam, o país de fim de 1970 e início de 1980. Para ajudar na
discussão, indico o texto Que país é este? (memória, política e cultura), de Leticia Malard, disponível no
site: www.letras.ufmg.br/poslit/08.

Que país é este?

1
Uma coisa é um país,
outra um ajuntamento.
Uma coisa é um país,
outra um regimento.

202
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Uma coisa é um país,


outra o confinamento.
Mas já soube datas, guerras, estátuas
usei caderno “Avante”
— e desfilei de tênis para o ditador.
Vinha de um “berço esplêndido” para um “futuro radioso”
e éramos maiores em tudo
— discursando rios e pretensão.
Uma coisa é um país,
outra um fingimento.

Uma coisa é um país,


outra um monumento.
Uma coisa é um país,
outra o aviltamento.
[...]

2
Há 500 anos caçamos índios e operários,
há 500 anos queimamos árvores e hereges,
há 500 anos estupramos livros e mulheres,
há 500 anos sugamos negras e aluguéis.
Há 500 anos dizemos:
que o futuro a Deus pertence,
que Deus nasceu na Bahia,
que São Jorge é que é guerreiro,
que do amanhã ninguém sabe,
que conosco ninguém pode,
que quem não pode sacode.
Há 500 anos somos pretos de alma branca,
não somos nada violentos,
quem espera sempre alcança
e quem não chora não mama
ou quem tem padrinho vivo
não morre nunca pagão.
Há 500 anos propalamos:
este é o país do futuro,
antes tarde do que nunca,
mais vale quem Deus ajuda
e a Europa ainda se curva.
Há 500 anos
somos raposas verdes
colhendo uvas com os olhos,
semeamos promessa e vento

203
Unidade III

com tempestades na boca,


sonhamos a paz da Suécia
com suíças militares,
vendemos siris na estrada
e papagaios em Haia,
senzalamos casas-grandes
e sobradamos mocambos,
bebemos cachaça e brahma
joaquim silvério e derrama,
a polícia nos dispersa
e o futebol nos conclama,
cantamos salve-rainhas
e salve-se quem puder,
pois Jesus Cristo nos mata
num carnaval de mulatas.
[...]

Fonte: Sant’anna (1980, p. 5).

Que país é este?

Nas favelas e no senado


Sujeira pra todo lado
Ninguém respeita
A constituição
Mas todos acreditam
No futuro da nação...
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?
Na Amazônia
E no Araguaia ia, ia
Na baixada fluminense
No Mato Grosso
E nas Gerais
E no Nordeste tudo em paz
Na morte eu descanso
Mas o sangue anda solto
Manchando os papeis
Documentos fiéis
Ao descanso do patrão...
Que país é esse?
Que país é esse?
204
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Que país é esse?


Que país é esse?
Terceiro mundo se for
Piada no exterior
Mas o Brasil vai ficar rico
Vamos faturar um milhão
Quando vendemos todas as almas
Dos nossos índios um leilão...
Que país é esse?
Que país é esse?
Que país é esse?

Fonte: Russo (apud CYNTRÃO, 2004, p. 131).

205
Unidade III

Resumo

Ao falarmos da tendência atual da poesia brasileira, contamos com


inúmeros poetas e poesias, com temáticas e formas bem díspares entre si.
Assim, foi selecionado apenas um aspecto dessa poesia: sua relação com
a sociedade. Se falarmos em literatura nacional, hoje, temos o reflexo da
nossa sociedade e como ela se constitui, e, como resultado, duas estéticas:
a brevidade e o hibridismo dos textos poéticos.

A brevidade é representada pela poesia de Olga Savary, “grande cultora


do poema curto” (BUENO, 2007). A brevidade em poema é tradicional,
principalmente o haicai, de origem antiga, japonesa. No entanto, os leitores
atuais estão cada vez mais conectados à velocidade trazida pelos meios
de comunicação e à diminuição de limites entre fronteiras (espaciais e
virtuais). Além disso, Olga Savary é fruto de um processo dessacralizador
da literatura, em que esta não sustenta o sistema canônico e tradicional;
ao contrário, rompe com paradigmas. Olga Savary é o povo brasileiro:
descendente de português e índio, escreve poemas empregando a língua
tupi e integra-se à literatura atual ao cultuar poemas breves.

O hibridismo é representado pela canção-poema de Luiz Tatit, professor


universitário em nossa área, com ligação à literatura e à música. O texto
escolhido desse autor é síntese do hibridismo literário hoje, formando outra
característica de uma tendência atual. Tem como referência uma das mais
caras personagens da nossa literatura (Capitu), cujo criador é um marco
na literatura verdadeiramente nacional, relaciona essa personagem ao
mundo atual – a era da informática, com seu www – e é cantado por vozes
brasileiras. É um poema-canção. Temos a intersecção literatura – mundo
virtual (internet) – música, em uma exploração criativa de linguagens.

206
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Exercícios
Questão 1. Considere os versos de Carlos Drummond de Andrade e as afirmações seguintes:

E agora, José?

A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,

207
Unidade III

não existe porta;


quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dominasse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
Você marcha, José!
José, para onde?”

I – O poema revela certo humor desencantado diante da irremediável condição humana.


II – O uso das orações condicionais indica possibilidades reais de reação de José diante dos
problemas do mundo.
III – Trata-se de um poema regionalista, cujo sentido está necessariamente atrelado às condições de
pobreza do interior mineiro.

Está correto o que se afirma somente em:

A) I.
B) II.
C) III.
D) I e II.
E) II e III.

Resposta correta: alternativa A.

208
LITERATURA BRASILEIRA: POESIA

Análise das afirmativas

I – Afirmativa correta.

Justificativa: não há saída para José, que sofre a pressão do mundo.

II – Afirmativa incorreta.

Justificativa: as possibilidades de José não são reais: elas são apresentadas ironicamente.

III – Afirmativa incorreta.

Justificativa: o sentido do poema não está restrito a uma situação específica.

Questão 2. Considere o poema de Augusto de Campos e as afirmativas a seguir:

céu

o vasto

só sob

luz

em milhões

um

o homem

do cosmos

Figura 3

I – A disposição das palavras é aleatória, pois a força está no significado das palavras.

II – O texto faz parte do Concretismo, movimento de vanguarda do século XX.

III – Por se referir ao céu de forma subjetiva, o texto enquadra-se no Romantismo.

209
Unidade III

Está correto o que se afirma somente em:

A) I.

B) II.

C) III.

D) I e II.

E) II e III.

Resposta correta: alternativa B.

Análise das afirmativas

I – Afirmativa incorreta.

Justificativa: a disposição das palavras confere significação ao poema.

II – Afirmativa correta.

Justificativa: trata-se da poesia concreta.

III − Afirmativa incorreta.

Justificativa: o poema faz parte do Concretismo.

210
REFERÊNCIAS

Audiovisuais

RODA VIVA: Adélia Prado. 1994. 1 vídeo (90min). Publicado pelo canal Fundação Padre Anchieta.
Disponível em: https://cutt.ly/U1rbHhw. Acesso em: 24 nov. 2022.

TATIT, L. O Meio. São Paulo: Dabliú, 2000. CD.

VELOSO, C. Tropicália. São Paulo: Philips, 1968. LP.

Textuais

ABREU, C. de. Primaveras. Porto Alegre: L&PM, 1999.

ALVES, C. In: CANDIDO, A.; CASTELLO, J. A. Do Romantismo ao Simbolismo: presença da literatura


brasileira II. 3. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968, p. 89-90.

ALVES, C. Melhores poemas. 5. ed. São Paulo: Global, 2000.

ALVES, F.; MAGALHÃES, C.; PAGANO, A. Traduzir com autonomia: estratégias para o tradutor em
formação. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2011.

ANCHIETA, J. de. De Gestis Mendi de Saa. Tradução P. Armando Cardoso. São Paulo: Loyola, 1970.

ANCHIETA, J. de. Cartas: informações, fragmentos históricos e sermões. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: USP, 1988.

ANCHIETA, J. de. Poesias. Transcrições, traduções e notas de M. de L. de Paula Martins. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: USP, 1989.

ANDRADE, C. D. de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.

ANDRADE, O. de. In: GALVÃO, W. N. Modernismo. São Paulo: Global, 2008.

ANDRADE, O. de. Revista de Antropofagia, ano 1, n. 1, maio 1928.

ANJOS, A. dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

ASSIS, M. de. Machado de Assis: crítica, notícia da atual literatura brasileira. São Paulo: Agir, 1959.

ASSIS, M. de. Dom Casmurro. São Paulo: Ática, 1991.

211
AZEVEDO, Á. de. In: CANDIDO, A.; CASTELLO, J. A. Do Romantismo ao Simbolismo: presença da
literatura brasileira II. 3. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968, p. 18-19.

AZEVEDO, Á. de. Poesia completa. Campinas: Unicamp, 2002.

BANDEIRA, M. Bandeira a vida inteira. Rio de Janeiro: Alumbramento, 1986.

BANDEIRA, M. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996.

BANDINI, M. S. L. S. A internet sob a ótica da história vista de baixo: uma teia de significações em
pequenos-grandes discursos. 2010. Tese de Doutorado – Universidade de Salamanca, Espanha, 2010.

BASTOS, A. O índio antes do indianismo. Rio de Janeiro: 7Letras: FAPERJ, 2011.

BERND, Z. Literatura e identidade nacional. 3. ed. Porto Alegre: UFRGS, 2011.

BOPP, R. Cobra Norato. 28. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1991.

BRAIT, B. Literatura e outras linguagens. São Paulo: Contexto, 2010.

BUENO, A. Uma história da poesia brasileira. Rio de Janeiro: G. Ermakoff, 2007.

BUENO, A. (org.). Gonçalves Dias: poesia e prosa completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998.

CAMINHA, P. V. de. Carta. In: CASTRO, S. O descobrimento do Brasil: a carta de Pero Vaz de Caminha.
Porto Alegre: L&PM, 1985.

CAMPOS, A. Anthologie: despoesia. Romainville: Al Dante, 2002.

CAMPOS, A. Revisão de Kilkerry. São Paulo: Brasiliense, 1985.

CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000.

CANDIDO, A. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

CANDIDO, A.; CASTELLO, J. A. Do Romantismo ao Simbolismo: presença da literatura brasileira II. 3. ed.
São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968.

CHAVES, V. P. O despertar do gênio brasileiro: uma leitura de O Uraguai de José Basílio da Gama.
Campinas: Unicamp, 2000.

COSTA, C. M. da; GONZAGA, T. A.; PEIXOTO, A. A poesia dos inconfidentes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996.
212
COUTINHO, A.; BRAYNER, S. Augusto dos Anjos: textos críticos. Brasília: MEC/INL, 1973.

CRUZ, E. R. A natureza e o homem na literatura brasileira. Curitiba: Appris, 2011.

CYNTRÃO, S. H. Como ler o texto poético. Caminhos contemporâneos. Brasília: Plano, 2004.

DE MORI, G.; SANTOS, L.; CALDAS, C. (org.). Aragem do sagrado: Deus na literatura brasileira
contemporânea. São Paulo: Loyola, 2011.

DEBRET, J. B. Caderno de viagem. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.

DIAS, G. Poemas. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1997.

DURÃO, S. R. Caramuru: poema épico do descobrimento da Bahia. São Paulo: Martin Claret, 2003.

GALVÃO, W. N. Modernismo. São Paulo: Global, 2008.

GAMA, B. da. O Uraguai. Porto Alegre: L&PM, 2009.

GANDAVO, P. M. Tratado da terra do Brasil e a história da província de Santa Cruz. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: USP, 1980.

GELADO, V. Poéticas da transgressão: vanguarda e cultura popular nos anos 20 na América Latina. Rio
de Janeiro: 7Letras; São Carlos: EDUFSCAR, 2006.

GONZAGA, T. A. Cartas chilenas. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

HOLANDA, S. B. de. Antologia dos poetas brasileiros da Fase Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1979.

KILKERRY, P. In: CAMPOS, A. Revisão de Kilkerry. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 94.

LEÃO, A. V. Henriqueta Lisboa: o mistério da criação poética. Belo Horizonte: PUC Minas, 2004.

LÉRY, J. de. Viagem à terra do Brasil. Tradução Sérgio Milliet. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: USP, 1980.

LIMA, J. de. Obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1958.

LISBOA, H. Lírica. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958.

LISBOA, H. Montanha viva: Caraça. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1959.

MAGALHÃES, G. de. Suspiros poéticos e saudades. 5. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília;
Instituto Nacional do Livro, 1986.
213
MARCONDES, M. P.; TOLEDO, F. Olga Savary: erotismo e paixão. São Paulo: Ateliê, 2009.

MATOS, G. de. Obra poética. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1990.

MAZZARI, M. V. Os espantalhos desamparados de Manuel Bandeira. Estudos Avançados, v. 16, n. 44, 2002.

MELO NETO, J. C. Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

MELLO E SOUZA, G. de. O tupi e o alaúde: uma leitura de Macunaíma. São Paulo: Duas Cidades, 1979.

OLIVEIRA, A. Poesias. Rio de Janeiro: Garnier, 1912.

ORLANDI, E. P. (org.). Discurso fundador: a formação do país e a construção da identidade nacional. 3. ed.
Campinas: Pontes, 2003.

PRADO, A. Poesia reunida. 8. ed. São Paulo: Siciliano, 1999.

REBUZZI, S. O idioma pedra de João Cabral. São Paulo: Perspectiva, 2010.

RODRIGUES, G. P. Poetas por poeta. São Paulo: Marideni, 1988.

SANT’ANNA, A. R. de. Que país é este? Rio de Janeiro: Rocco, 1980.

SANTOS, J. R. Quem ama literatura não estuda literatura: ensaios indisciplinados. Rio de
Janeiro: Rocco, 2008.

SAVARY, O. Hai-kais. São Paulo: Roswitha Kempf, 1986.

SCHOLLHMMER, K. E. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

SOUSA, C. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1961.

SOUSA, G. S. de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. 5. ed. São Paulo: Nacional; Brasília: INL, 1987.

SOUZA, R. A. Introdução à historiografia da literatura brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, 2007.

STADEN, H. Duas viagens ao Brasil. Tradução Guiomar de Carvalho Franco. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: USP, 1988.

TATIT, L. O meio. São Paulo: Selo Dabliú, 2000.

TEIXEIRA, B. Prosopopeia. Recife: Universidade de Pernambuco, 1969.

214
TELES, G. M. Retórica do silêncio I: teoria e prática do texto literário. 2. ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1989.

TELES, G. M. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro: apresentação dos principais poemas,


manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 a 1972. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

THEVET, A. As singularidades da França Antártica. Tradução Eugênio Amado. Belo Horizonte: Itatiaia;
São Paulo: USP, 1978.

TORRES, M. No fim das terras. São Paulo: Ateliê, 2004.

TREECE, D. Exilados, aliados, rebeldes: o movimento indianista, a política indigenista e o Estado-nação


Imperial. São Paulo: EDUSP, 2008.

YUNES, E. Para gostar de Adélia (e de Jonathan). In: Revista Magis: Cadernos de Fé e Cultura. Rio
de Janeiro: PUC/RIO, Centro Loyola de Fé e Cultura, n. 46, set. 2004.

215
216
Informações:
www.sepi.unip.br ou 0800 010 9000

Você também pode gostar