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DINAMARA GARCIA RODRIGUES

TUDO
O QUE SEI
SOBRE O
AMOR
Dinamara Garcia Rodrigues

TUDO O QUE SEI


SOBRE O AMOR
Ilustrações
Reider Pereira
Editoração
Wagner Orniz

1° Edição
Copyright © 2014 - Todos os direitos reservados

Texto: Dinamara Garcia Rodrigues


Ilustrações: Reider Pereira
Diagramação e Capa: Wagner Orniz

Rodrigues, Dinamara Garcia


Tudo o que sei sobre o amor [livro eletrônico]/Dinamara Garcia Rodrigues
São José do Rio Preto – SP: Plasticine Editora, 2014.
2.344 Kb; ePUB

BIBLIOGRAFIA
ISBN: 978-85-918306-0-2

1. Literatura. 2. Literatura Brasileira. 3. Ficção. 4. Miscelânea

Editora Plasticine

Rua Bernadino de Campos, 3180, Centro


Ed. João Bassit, 6° Andar, Sala 807
15015-300 São José do Rio Preto - SP

www.plasticine.co
T
udo o que sei sobre amor é que quase tudo
que sabemos sobre ele está errado. Amor
é sutileza e não a temos. Tudo que sei
sobre amor é que a maioria é dependente de seu
torturador. Tudo que sei sobre amor é que entrei
numa escola especial para vítimas da dependência
e agora começa meu processo de cura.

1
respire

2
Este é um livro de autoajuda. Primeiro
porque ele me ajuda a me aventurar
na busca por mim mesmo. Segundo
porque tenho quase certeza de que
ele pode te ajudar também, leitor, nas
alegrias e nas tristezas, na saúde e na
doença maravilhosa de descobrir
quem ou o quê exatamente você é.

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S ou escritor, tenho um único livro publicado:
Cosplay: um dandy em Rio Preto, e outros dois
prontinhos para serem editados e impressos,
mais outras 40 mil páginas – juro pelos deOses! – para
organizar, filtrar, selecionar em 4 mil e publicar outros
tantos 20 livros.
Acontece que todos esses livros envolvem meus
amores, e parte deles, os livros, foi escrita em parceria com
eles, os amores. O último deles, amores, Ys, ainda me dá
muito trabalho. Os dois livros prontinhos têm a ver com
ele: A historinha da mulher-menino e Flores mortas e papoulas
vivas para a mulher-menino.
Nas próximas semanas iria me reunir com meu
produtor e meu ilustrador, porém, meu terapeuta me
recomendou adiar esse processo de produção, ilustração e
edição do e-book por um ano. Faz dois dias que saí da
sessão de terapia resolvido a engavetar as narrativas de
minha parceria e meu amor por Ys.
Assim resolvido, comecei a criar este livro e me
mantive firme na decisão, até criei o roteiro de capítulos
que você verá à frente: o roteiro apenas, não os capítulos.
Acontece que o capítulo 1 seria extraído da Historinha.
Então, fui reler e pesquisar para saber se o mudaria ou
manteria tal qual é no outro livro.
Estamos em tempos de redes sociais e similares, e
todos nós amamos pouco, amamos mal, se é que amamos,
embora fiquemos o dia todo conectados. Não sou
diferente de muitos de vocês que vivem submersos nas
redes feitos peixinhos coloridos enfeitando aquários.
Sendo assim, enquanto escrevo e organizo este livro,
converso com meu ilustrador no facebook, e ele me conta
seu grande mal de amor: a independência quase absoluta.
Somos amigos, somos nam-môs (um tipo de

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amigo quase namorado e namorado quase amigo que não
faz sexo nem beija na boca, mas tem tesão inconfesso que
agora acabei de deixar claro, hahahahahaha!), e contamos
nossas coisinhas de amor um ao outro.
Conversa vai, conversa vem, falamos dos nossos
amores e dos meus livros, incluindo este. E eu ali, aqui,
escolhendo o que pegaria do outro livro, o que deixaria de
lado. Nesse escolhe, desescolhe, inescolhe, me encolhi e
fui ficando muito sem graça e tristinho, odiando este novo
livro mais que tudo. A tristeza eu confessei ao nam-mô, ele
me ouviu, e, neste caso, quer dizer, “leu”. E, ao me ler, me
ajudou a enxergar meu verdadeiro amor, e então, vivenciei
o que os místicos chamam “epifania”, e os psicólogos
chamam “insight” e ainda outros místicos denominam
“iluminação”: percebi que saber muito a respeito do amor
às vezes nos confunde, e precisamos de outras pessoas
para nos ajudarem a ver se enxergamos direito. Você
precisa acabar de ler se quiser saber como meu nam-mô
me ajudou a descobrir o que descobri, e este é um dos
livros mais curtinhos do mundo, tenha paciência que vai
valer a pena.
Aposto que, assim como eu, você começa a
desconfiar de que não tem a menor ideia sobre como ser
de verdade aquilo bem secreto em algum lugar fresquinho
e difícil de achar, nomeado, talvez, “alma”. Isso de alma é
você.
Ela existe, está dentro e fora, dói e se alegra, se
esconde e se revela, conforme a gente sabe amar mais... ou
menos. É para sua alma e seu corpo este livro, é para
minha alma e meu corpo, para aquele silêncio desesperado
aí bem dentrinho de você, igualzinho ao aqui bem
dentrinho de mim, querido e inestimável leitor com quem
sonho dia e noite. Sim! Sim! sinto muito a sua falta, leitor

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amigo. Sei que você existe e escrevo para você este hino ao
amor inesperado e inexplorado dentro e fora de você.
Esta é a historinha da mulher-menino. A mulher-
menino sou eu, e o que mais sei nesta existência é amar.
Se quiser saber se é verdade, leia a minha
historinha. Não há nada demais nela, e há muita coisa
surpreendente, por outro lado, que você nunca ouviu
ninguém contar. O amor que há, entretanto, fará você rir,
chorar, duvidar, me amar, me odiar, me desejar. Eu sei
muito sobre amar, mas, não sei tudo e pronto. Entre nada,
muito e tudo é que acontecem as histórias mais bonitas do
universo.
O livro funcionou para mim, me ajudou a ficar
muito feliz porque eu achava que perdia todos os meus
amores, mas, o que descobri foi que deixo de enxergar o
meu verdadeiro amor, aquele que é imutável e sem o qual
eu nem respiro.
Se você quiser se conhecer melhor por meio da
minha narrativa, me acompanhe nas páginas que faltam. A
historinha é um pouco fortinha e doce ao mesmo tempo,
eu acho, mas, você pode achar o que quiser.

Dinamara Garcia Rodrigues

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Roteiro de capítulos
que não serão construídos neste livro
porque o livro funcionou demais
Cada capítulo corresponde a um amor da minha vida, na
ordem em que foram aparecendo ao longo dos anos:

Ÿ Luís Roberto: A calça vermelha e a Menina dos dentes


de agulha
Ÿ Dayse e Maria Tereza: a rosa rosa e a rosa vermelha
Ÿ Márcio Wanderley e o lápis-borracha
Ÿ Marcos Moreno Gayzinho da 6ª. série
Ÿ Carlinhos: o bilhetinho de amor e o vestido branco com
risca de giz vermelho
Ÿ Theodósio e Ney Matogrosso no colégio
Ÿ Outro Márcio e a bicicleta
Ÿ Luís Antônio: o flautista que não sabia que era gay
Ÿ Maurício Jagger: fã dos Beatles e Rolling Stones
Ÿ Ismael: um professor, um soneto e um buquê de rosas
vermelhas
Ÿ Júlio César: meu Dorian Gray da Sexta-Feira Santa
Ÿ José Luís: quase um cowboy
Ÿ Nilton César: meu pequeno talismã
Ÿ Edson: criador de galos de briga
Ÿ Mark: um pianista em Paraty
Ÿ Gustavo e o Livro dos Prazeres
Ÿ Carlos: o vampiro de Curitiba
Ÿ Vinnie e The Last Kiss
Ÿ Diego e o gato do Cats
Ÿ Babau
Ÿ O Outro Daniel
Ÿ Ys

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Trailer – A Calça Vermelha
As íris cor de semente de tamarindo se enchem de
luz, atraídas pelo vermelho vivo daquele negócio
envolvedor de perninhas, coxas, bundinha e pipilica. O
sangue pulsa rápido, espalhando o som percussivo do
coração. É agora. Agora. As pernas envoltas em vermelho
são percorridas por tremores. É agora. Agora que o tecido
espesso do brim vermelho vai construir a carne faltante.
Agora o relevo morno, cilíndrico, ereto vai começar. O
bumbum se retrai e contrai, ansioso. É agora. Agora.
Nada aconteceu. Era maio de 1967. Era
aniversário, o terceiro. A calça vermelha era um presente
vindo do fundo de uma certeza, dada por mamãe. Aquela
roupa de menino faria o milagre e a pipilica se tornaria um
pipizinho. Enfim, sendo agora um machinho, ela poderia
namorar o priminho três anos mais velho, poderia entrar
na festa dos molecotes que se pegavam e aos mais
novinhos, sob as copas de jabuticabeiras, caramboleiras e
o impecável, augusto Senhor Pé de Tamarindo. Três
aninhos tinha a menina de olhos cor de tamarindo, e já
sabia que algo muito errado havia lhe acontecido.

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a rapidez da memória diminuía, cada futura célula se
Luís Roberto comprimia até não haver mais nada macroscópico, e a
A calça vermelha e a menina dos dentes de agulha pequena luzinha, reduzida a menos que partículas
[este capítulo faz parte originalmente de outro livro subatômicas, esquecia um pouco as lições. Já estava
prontinho que ainda não publiquei e se chama A acabando, era preciso ligar-se aos ovos do Pai, depois o pai
historinha da mulher-menino] saberia como fazê-la chegar aos da Mãe, mesmo a luzinha
sendo completamente invisível para eles.
Pequena luz flutuando no espaço, lilás, rosa e azul, No mundo de onde ela vinha não era como no
contentinha em si, ela tomou, no meio do Universo, a Planetinha Azul em que as pessoas têm vergonha da
direção de um pequeno planetinha ainda muito novo. coisinha da mãe e do coisinho do pai. Nem quando fosse
Azul era o planeta. Cheio de mares, não tão cheio de velhinha ela teria vergonha. No Planeta Lilás-Rosa-Azul,
florestas como havia sido há poucas décadas. Ela se deu de onde ela vinha, todas as crianças sabiam que na forma
conta de que já estava pensando como os habitantes do de carne, os ovos do papai eram externos, dava para ver
planetinha, como havia aprendido com seu Mestre. sem equipamentos de médicos, e os da mamãe eram
Ela queria nascer na região mais fria, só que não internos, só podiam ser vistos com auxiliares de olhos,
tinha autorização para isso, deveria nascer em uma das umas máquinas engraçadas que tem parecidas no
mais quentes, até o nome do país lembrava essa quentura. P l a n e t i n h a A z u l e s e ch a m a m A p a r e l h o s d e
Ela torceu o futuro narizinho, mas, foi, fazer o quê? Ultrassonografia.
Se demorasse menos um tanto, nasceria na roça, No planetinha ainda não tinha, e, se tivesse, os pais
seria caipirinha de uma vez. Só que era um pouco rebelde e da Luzinha não teriam dinheiro para poder enxergá-la, na
se atrasou, coisas de segundos, na medida da vastidão, hora certa, com esses auxiliares de olhos que podem ver os
mais de dez anos contados no tempo do planetinha. ovos da mamãe e ver se lá dentro está se dezenvolvendo
Então, aportou no que seria, décadas – de novo! – mais um menininho ou menininha. Acho que ainda hoje esses
tarde, uma grande cidade rica e bonita, com nome de aparelhinhos não podem ver os bebês que não sabem se
Santo e tudo. são menininhos ou menininhas.
Daí a luzinha viu o casal de camponeses recém- Quando eles crescem e se tornam gente grande,
chegados à roça menos roça, esperou que se amassem. Era bem visíveis a olho nu, ainda se sentem invisíveis. Luzinha
uma aluna quase boa, fora muito bem instruída pelo nasceu e foi enxergada como menininha. Deram-lhe um
Mestre Sheridan, na escola suspensa e cintilante em nome. Foi uma luta acharem o nome certo. Eles pensam
violeta, azul e verde intensos, feita de flores e sons que encontraram.
musicais. Sabia os nomes de cada parte dos corpos. Claro Os camponeses tinham outros quatro filhos: dois
que conforme foi se aproximando da matéria pesada, a meninos e duas meninas que, na contagem do tempo do
mente e o coração iam ficando menos leves, entorpecidos, Planetinha Azul tinham 12, 11, 10 e 09 anos. Os pais dos

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pais de Luzinha e todos os ancestrais do casal até perder
de vista para trás eram espanhóis. Os avós da menina
vieram para o País das Brasas no início do século XX.
Luzinha tem dificuldades até hoje para contar o
tempo em suas diversas medidas e situar-se no espaço de
fronteiras visíveis e invisíveis. Não a podemos culpar, a
família dela sempre foi meio doida. Querem ver se não?
Eu já disse que eram descendentes de espanhóis, né? Mas,
o pai resolveu que Luzinha teria um nome de país.
Curiosamente, não seria “Espanha”, de onde vieram os
avós maternos e paternos e até os irmãos desses avós.
Sabem os deOses porque, mas, não contam!, o pai queria
que ela se chamasse “Dinamarca”. Foi o irmão número
dois em ordem de nascimento quem não deixou. Não
tenho muita certeza, porém, ele deve ter falado dos
problemas que isso geraria na escola, nos namoros da
irmãzinha, embora ninguém falasse em bullying em 1964,
e menos ainda pensasse na irmã namorando. “Pai, tadinha
dela, tira uma letrinha só, o ‘c’, e fica melhor, fica nome de
mulher, de duas: ‘Dina’ e ‘Mara’, se quer parecer diferente,
escreve tudo junto, pronto!”. Esse irmão é muito
inteligente! Não é que convenceu o velho Afonso
teimoso? Deve ser porque esse irmão também tem um
nome muito esquisito: Cairbar, homenagem a um
kardecista famoso da cidade de Matão-SP: Cairbar
Schutel. O nome é alemão, putaqueopariu! Que espanhol
mais germano e nórdico!
Com tanto nome de país frio, não me espanta que,
A primeira fashionice do vermelho foi uma calça: A Calça
em 1968, em maio, quando fez quatro aninhos e ganhou
Vermelha.
um lindo casaco vermelho, Dinamara decidiu que o
tempo frio era seu favorito. Foi assim para sempre até
hoje, 2014. O inverno e o outono continuam sendo nossas
estações favoritas.

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Até os cinco anos, a cor favorita dela era o outros, rindo, folheando o dia como as verdes folhinhas
vermelho. Era a cor favorita em dois aniversários muito rendadas do Senhor Pé de Tamarindo que se lançavam da
importantes: o de quatro aninhos, quando o casaco copa para brincarem entre os meninos naquele
vermelho a fez preferir outono e inverno porque agarramento feliz, feliz! Encantada, a menininha queria
coincidiam com o aniversário dela, eram acolhedores e ser como eles, ser um deles. Não havia, entre os meninos,
quentinhos. Eram muito pobres, nunca havia bolo e festa outros como ela. A senha para o clube do quintal era
de aniversário. Em alguns, havia bolinho industrializado, aquele negocinho minhoquentinho pendurado abaixo do
que vem em saco plástico, e guaraná, acompanhados ou umbigo, engraçado, engraçado e bobo! Entretanto,
não de presentinhos como o casaco vermelho. Mas, o fundamental para a brincadeira que menininha mal
vermelho mais importante aconteceu aos três aninhos. E compreendia. Ela sabia que em algum lugar ela também
também teve a ver com roupa. Não é à toa que hoje a tinha aquele negocinho bobo e gostosinho. Só não
menina ama o mundo fashion, dá aulas e escreve sobre lembrava onde. Era certeza, ela era dona dum negocinho
Moda. A primeira fashionice do vermelho foi uma calça: daqueles que as mães chamavam de “pipi”. Estranho ela o
A Calça Vermelha. sentir dentro da alma, a alma é dentro do corpo, e nunca o
A família morava em uma casa pequenina, mal sentir fora, o apalpar e brincar de torneirinha. Muito
cabiam todos em um quarto e cozinha. Banheiro não estranho aquilo.
havia, havia fossa, no quintal. Mas, o quintal era tão Um dia, ela notou que os meninos usavam calças
grande, verde e fresco, cheio de árvores frutíferas, compridas ou shorts, nunca sainhas e vestidinhos. Então,
separado por uma cerca de madeira e trepadeiras, das três era isso! Para brincar naquele clube era preciso usar a
casas em um só terreno, dos primos do pai da menininha. roupa certa! Uma calça comprida. Essa peça de roupa
E s s e q u i n t a l e r a m u i t o m o v i m e n t a d o. criava aquele treco minhoquentinho adorável. Só podia
Principalmente por meninos, molecotes e rapazolas, de ser isso.
idades variando entre 06 e 17 anos. A menininha só tinha Menininha não sabia, como as crianças de hoje
olhos para Luís Roberto, quase priminho, filho do Luís, sabem mais que deviam, pedir nada além de colo,
primo do Afonso. Na época, ela sequer sabia nomes e comidinha e água e para ir ao banheiro. Os adultos davam-
graus de parentescos. Sabia que Luís Roberto corria pelo lhe as outras coisas quando podiam, sem que ela soubesse
quintal, esperto e grande em sua tanta idade absurdamente que precisava dessas coisas. Não se passaram muitos dias
maior que a da menininha, o dobro. Matemática ela não da descoberta do segredo do Clube do Quintal, ela andava
sabia também. Luís Roberto, aquele danado, era diferente sonhando com uma calça comprida para entrar nas
dela, era diferente da maioria de seres e coisas que ela brincadeiras e reaver seu negocinho perdido sabe-se lá
conhecia. Ele era menino e amava meninos, se deitava onde. Não sabia pedir, nem precisou. A mãe chegou, certa
com eles. A menininha só sabia que isso era tão bonito. manhã douradinha e mansa de maio, no quarto dia, e lhe
Muitos meninos brincando de entrar nos corpos uns dos deu parabéns de aniversário e o presente mais importante

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de sua vida: uma calça vermelha de brim, elástico na essa metamorfose, nunca mais! Ou será que aconteceu e
cintura, bordado de laço de cowboy no bolso. Já havia Menininha não viu, ou finge que nem viu? Talvez, um dia,
outra irmãzinha, nascida quando a Menininha estava com o Senhor Pé de Tamarindo nos conte.
um ano e oito meses. Essa outra menininha se chamou Menininha não pôde entrar no Clube do Quintal,
Dinorá (outro nome esquisito, mas, pelo menos, não é de nem nos corpos dos outros meninos e eles no dela como
país) e também ganhou uma calça no aniversário da outra. faziam entre si. E mesmo se pudessem, a graça era terem
Uma calça verde. O bacana de ter uma irmãzinha quase da seus Senhores Pipis, mesmo os meninos em quem os
mesma idade era que as duas ganhavam presentes nos outros entravam. Senhora Dona Calça Vermelha era uma
aniversários das duas. A primeira menininha será chamada traidora incompetente, isso sim! A incompetência dela
aqui de Menininha; a segunda será Dinorá. Dinorá nunca cravou garras metálicas no coração de Menininha. Só que
comentou os efeitos da calça verde em sua vida, sequer a Menininha era mais teimosa que o velho Afonso amante
manteve na memória. Mas, Menininha agarrou-se àquela de nomes de países frios. Nem sabia que era teimosa, não
calça feito a vida à vida, feito o azul ao céu, as ondas ao tinha ideia. Mas, o mundo era tão bonito por causa das
mar. folhinhas verdes do Senhor Pé de Tamarindo que ela
A mãe a vestiu na Menininha que ficou muito feliz. desejou muito ficar feliz, haveria de encontrar um modo.
Felicidade cintilava em cada porinho do corpo infantil, No aniversário de cinco aninhos só esperava bolo
riscava de prata a cor tamarindo das íris naqueles olhos e guaraná. Nenhum presente ver melho. Esteve
espertos, observadores e pequeninos. Menininha teve a conversando com o Senhor Pé de Tamarindo. Ele lhe
impressão de se tornar gigantesca, mais alta que o Senhor lançava rendinhas e mais rendinhas de pequeninas
Pé de Tamarindo. Sentiu as pernas tremerem de tanta folhinhas bem verdinhas. Lá embaixo, olhando para a
alegria e esperou. Esperou, esperou, esperou. Esperou majestosa copa, Menininha e as folhas se compreendiam.
sentir em sua pipilica algum tremor semelhante ao das No ar, Menininha desenhava símbolos gráficos.
perninhas e do coração. Esperou sentir cosquinhas Aquilo se chamava escrever, como via nos
quando o algo começasse, finalmente, a acontecer. cadernos dos irmãos mais velhos, quando passava o lápis
Aconteceu que nada aconteceu. O vermelho da por cima de cada símbolo, e os irmãos lhe davam parabéns
calça ficou pálido como o rosto triste da menininha. Ela por estar escrevendo. Ela achava que o fazia, pois não
nem chorou, nem nada. Soube, com toda sua esperteza de sabia que não tinha sido, ainda, alfabetizada. Podia falar, e
três aninhos que era irremediavelmente prisioneira do falava, mas, como o Senhor Pé de Tamarindo lhe enviava
corpo errado. A Senhora Pipilica não se tornou o Senhor folhinhas, Menininha julgou aquilo a escrita dele, e
Pipi, nem naquele dia, nem no outro, nem no aniversário precisou escrever também. Um contava historinhas ao
de quatro anos, aquele, em que aconteceu a paixão pelo outro. Menininha era muito compulsiva e ainda é, estilo
outono e pelo inverno, nem no de cinco, nem no de vinte e Marcel Proust em quantidade, Senhor Pé de Tamarindo
cinco, nem no de quarenta e oito. Nunca mais aconteceu era mais sintético, como Roland Barthes. Os dois se

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compreendiam bem, escrevendo com folhinhas e palavras
invisíveis suas histórias. Ele, a saga de sua família ancestral,
alienígena, vinda das estrelas. Ela contava muitas, muitas.
Todas eram de seres diferentes. Mesmo se ainda não
soubesse o que isso queria dizer. Ela gostava de seres
diferentes.
Quando chovia, Menininha não podia ir escrever
com Senhor Pé de Tamarindo. Só que precisava muito
contar, escrever historinhas. Sentia-se frustrada por não
poder ir. Então, logo depois do aniversário de cinco anos,
em uma manhã fria e chuvosa, ela e Dinorá brincavam no
quarto. Um ser todo diferente foi pedindo para ser
contado: A menina dos dentes de agulha.
Do nada, Menininha se aproximou da outra e,
desajeitada, porque precisaria somente falar, já que a
irmãzinha não sabia ler e escrever, começou: “Era uma
vez, eram muitas vezes, eu acho, uma menininha bem
pequena que nem a gente, só que ela nem tinha dentes,
quer dizer, tinha, só que não eram brancos que nem
xicrinha de café sem café, e nem eram assim nesta forma
como os da gente, nem como os do pai, da mãe e dos
manos, não, não! Nola, Nola, eles eram brilhantes e muito
fininhos desse negócio que faz tesoura, colher, garfo,
sabe? Eram dentes de AGULHAS! E ela não podia comer!
Bem que a mãe dela tentava!... Eram dentes de AGULHAS! E ela não podia comer! Bem
A carinha da Menininha virou esses três pontinhos que a mãe dela tentava!...
e ela ficou esperando que Nola (já notaram, né?, o apelido
da Dinorá) respondesse com folhinhas verdes ou com a
voz verdinha imitando as folhinhas do Senhor Pé de
Tamarindo. Dinorá ficou quietinha, só ouvindo, ouvindo,
fazendo carinha de que não entendia o que se passava.
“Nãããão, Nola, tem de responder, de continuar a
historinha!”

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De nada adiantava, Dinorá não entendia. Então, chamavam aquilo, entre si, de brincar e, quando chegava
Menininha teve uma ideia brilhante, desinventou a escrita um adulto, diziam estar contando filmes que tinham visto
que ainda nem conhecia. “Já sei, Nola, já sei! E se a gente na televisão. Grandes mentirosas proféticas! Nem havia
não escrever nem nada, mas, fizer na gente, mão, perna, TV a cabo fechada, nem canais de zilhões de filmes, nem
braço, boca, nariz, olho, cabelo e tudo, como chama? vídeo cassete ou vídeo locadora, nem tantos filmes quanto
Acho que viver, assim, eu sou a Menina dos Dentes de elas inventavam. Na verdade, só Menininha inventava, e,
Agulha e você é a mamãe dela, que tal? Nola era mais agora, escrevia realmente, uma espécie de minirroteiro
novinha, porém, também era inteligente. Sacou qual era a que apresentava à exigente irmã. Se ela aceitasse,
da irmãzinha e se interessou pela brincadeira de serem brincariam, seriam as pessoinhas inventadas. A maioria
outras pessoinhas. Assim foi, cada uma entrou no papel e era recusada, por mais que Menininha, campeã em
viveu, por alguns minutinhos, a historinha da Menina de concursos municipais e nacionais de redação, se
Dentes de Agulha, que sentia muita dor, pois, cada vez em esforçasse. Alguns poucos eram aceitos. Felicidade e
que ia comer, furava a língua, os lábios, as gengivas e arrebatamento tomavam o espírito de Menininha que,
sangrava muito, muito. Quanto mais sangrava, melhor finalmente, ia brincar, ia ser aquelas personagens
Menininha interpretava e narrava. complicadas, os “diferentes”.
Ela e Nola eram personagens e narradores ao Felicidade dura pouco, dizem mil ditos populares e
mesmo tempo. Porque tinham de explicar antes das falas o canções. Fato. De repente, Nola anunciava, desanimada:
que acontecia a cada personagem, e cada uma esperava “Num quero mais brincar”. Menininha ficava
pela narração e fala da outra e de sua personagem. A desesperada! Argumentava, questionava, queria ver os
Narração dava muito prazer a Menininha, porque era essa defeitos de seu roteiro, de sua atuação, de sua direção, de
voz que justificava a ação da personagem. E as duas coisas tudo isso junto. Para seu desgosto, Dinorá sempre
juntinhas teciam algo, teciam algo morno e vivo no corpo respondia do mesmo jeito: “Só num quero mais! Porque
e na alminha da Menininha. sim, ué!”. Não havia argumentos que a demovessem e
Mesmo quando as chuvas pararam, ela nunca mais fizessem voltar a brincar daquela historinha. A única saída
escreveu e narrou somente com Senhor Pé de Tamarindo. para Menininha era abandonar aquela e começar tudo
Tinha encontrado uma parceira de historinha viva, uma novamente, da ideia ao papel, e, deste, às infindáveis
parceira gente que anda, pois, o Senhor Pé de Tamarindo explicações psicológicas, filosóficas, históricas, com
era gente fixa. E assim foi por muitos e muitos anos, até marcações de cenários, figurinos, distâncias e
Menininha fazer quinze anos; e, Nola, treze. Menininha já aproximações entre personagens e narradores etc.
trabalhava para ajudar a sustentar a família. Era séria, Evidentemente, esses termos técnicos mal
estudiosa e responsável. Porém, no intervalo disso tudo, começavam a ser conhecidos pelas duas. Menininha no
brincava. Brincava ao vivo e em pensamentos. primeiro colegial (termo da época para a primeira série do
De dia, quando narrava e interpretava com Nola, ensino médio de hoje) e Nola na sétima série ginasial

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(ensino fundamental de hoje). Podemos, entretanto, Dava um trabalho descomunal convencê-los ao
garantir que elas os viviam com a mesma entrega de aprendizado, e muito maior conseguir extrair deles as
grandes atores, diretores, roteiristas e produtores.Talvez qualidades tão fluidas e fluentes em Senhor Pé de
com entrega maior, certamente com muito maiores Tamarindo. Maior ainda e mais doloroso era mantê-los no
liberdade, graça, alegria e leveza, mesmo quando as processo de criação-vida-vida-criação. Pois os burrinhos
narrativas eram complexas e cheias de dor. Basta lembrar tinham o péssimo hábito de separar as coisas que
que começaram com “A Menina dos Dentes de Agulha”. Menininha sabia unidas desde o Planeta Lilás-Rosa-Azul.
Trágica, desde o princípio. Saber, ela sabia, só não lembrava. No entanto, saber e
Quando brincavam até à hora de dormir, lembrar nem sempre estão completamente unidos.
Menininha não queria parar, então, combinava com Nola Por muitos anos, Menininha não tentou brincar
de “brincar em pensamento”. Isso queria dizer: antes que em parceria. A vida foi correndo em direções a trabalho,
o sono chegasse, continuar a viver a historinha em estudo, lazer, paquerinhas (quase sempre frustradas).
pensamento, até o sono tragar a historinha. Menininha Menininha parou de brincar também em pensamento
cumpria. Cumpre até hoje e para sempre. Nola, quase quando fez 17 anos, por interpretações religiosas muito
nunca, e ainda confessava com ar blasé que tinha dormido equivocadas. Voltou a brincar em pensamentos aos 20
logo de cara. Menininha ficava tão frustrada! Será que anos, quando abandonou a religião e escolheu a
Nola não percebia que aquele mundo das historinhas era o espiritualidade. Mas, até os 36, nunca mais brincou em
mais legal, o mais verdadeiro, o mais pedaçudo? Não, ela parceria. Entre os 23 e os 35 se tornou Doutora em Teoria
jamais percebeu. da Literatura. Desde o aniversário em que ganhou A Calça
Foi quando Menininha tinha quinze anos que teve Vermelha, ela nem percebeu, mas, decidiu só para si, em si,
certeza de que Nola não compreendia, nunca havia era menina-menino, daqueles que amam outros meninos,
compreendido. Do nada, numa tarde de sábado, cansada e pronto, porque sim. Segredo escuro e obscuro guardado
de trabalhar, Menininha contou uma historinha linda, num cantinho do pensamento, do coração e do corpo.
cheia de amor de um diferente por um igual, com muitos Facilmente percebido pelos raros parentes do Senhor Pé
iguais e poucos diferentes de ambos os lados. Contou nem de Tamarindo. De tudo isso, fiquem em relevo A Calça
sei se por escrito ou voz. Sei que foi recusada e avisada: Vermelha e A Menina dos Dentes de Agulha. Emily, eu
“Num quero mais brincar, nem hoje, nem nunca mais!” E poderia dizer “porque sim” e não explicar nada. A
Nola cumpriu. Era 1979. Senhora tome tento, explico.
A dor de não ter mais um parceiro de historinha Basta de historinhas fofas! Nenhuma delas jamais
era a segunda maior da vida de Menininha. Senhor Pé de foi fofa. A primeira delas: “O milagre da calça vermelha”
Tamarindo ficou para trás, na primeira casa da infância, encerrou a possibilidade da pura fofice. Artistas e estetas
em 1969. E, muito cedo, Menininha descobriu que esses nos ensinam há séculos que não pode haver apenas
parceiros eram raríssimos, precisavam, exceto Senhor Pé bondade, gentileza, alegria, serenidade e bons
de Tamarindo, ser ensinados, adestrados, construídos. sentimentos nas obras de arte. Se arte imita a vida,
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portanto, não pode haver só esses sentimentos e atitudes sensações porque eram inteiras e calmas. Talvez porque só
na vida do Planetinha Azul, esta encantadora e maldita se entregasse às que se podem ter em repouso. Uma que o
Terra Devastada. O episódio da Calça Vermelha me doido mais adorava acontecia ao pôr o pipi na carne
ensinou isso tão cedo, seus filhos da puta! Eu era só uma úmida, morna e quentinha da boquinha do filho. Não sei
criancinha, tá ligado? Eu era gracioso, eu era doidinho, de onde tirei essa historinha aos 13 anos. Para mim, ela
desde que o espaço sideral me tragou na direção da Terra valia tanto quanto outra, inspirada por uma canção de
que amo perdidamente de amor ardente e devoção. Roberto Carlos: “A menina e o poeta”. O homem louco e
Quando as palavras se juntavam, iam compondo a menina do poeta eram seres unidos pela ausência, pela
objetos, paisagens, seres, existências, mundos, a falta, pela perda. Explorar os matizes da ausência, senti-
criancinha contadora de historinhas sentia conforto, los em meu corpo, vindos do meu espírito, eram os efeitos
amava o mundo real e sentia piedade dele porque era tão de contar historinhas e interpretar papeis.
esboço se comparado ao das palavras. O amor se fazia nos A consciência do kitsch em Roberto Carlos era-me
nós das redes entre o possível e o impossível, entre a familiar. A elegância de Caetano Veloso, Gilberto Gil e
plenitude e o sofrimento, entre a eternidade e a morte. Chico Buarque haviam sido ensinadas a mim por meus
Interessavam-me a beleza da perda, o desejo do encontro. irmãos homens. A quarta irmã, Dalva, era fã do Roberto.
Meus protagonistas estavam sempre em queda e eram tão Cresci entre o brega e o chic. Ainda havia o primeiro
inocentes. No sofrimento, erguiam-se, vencendo ou irmão, Sérgio, que me fez sentir paixão por Beatles e
perdendo lutas, batalhas, guerras de toda sorte. Na Rolling Stones, pela estética do rock’n’roll. Todas essas
verdade, quase nenhuma feita filme de ação. Desde cedo influências entravam nos “filmes” que eu produzia em
amei os heróis contemplativos, os anti-heróis. Fui escritor parceria com Nola.
antes de ser alfabetizado, fui modernista desde que a calça Se aos 13 anos, narrando a história do homem
vermelha me forçou. Não! O modernismo não dava conta doido, experimentava a dor dele ao ouvir “A menina e o
do que nem tinha nome em 1967: transexualidade! Pós- poeta”, por outro lado, ao ver na TV, em um anúncio da
pós-modernista avant la lettre... gravadora Som Livre, uma coletânea com sucessos dos
Quanto mais narrava, mais amava os dois mundos. Stones, destacando “Lady Jane”, queria ser Mick Jagger
Houve, então, a Historinha do Homem Louco. Ele não se em sua dandesca androginia, desejava ser aquele carinha
julgava louco, os outros o julgavam louco porque ele só com carinha de mulher e sexo de menino, desejava
queria dormir. Ele só ficava dormindo, melancólico. construir a beleza ambígua dele em histórias de homens
Havia se casado com uma mulher que não amava, tiveram frágeis e sedutores. A beleza feminina dele era o sono do
um bebê menino, e o homem queria ficar quieto, na homem doido. Não sonhava ainda o flaneur
concha, sem ação e sem pensamentos. Ele não sabia que baudelairiano, o dandy wildeano, o poeta múltiplo de
era doido, que seus pensamentos eram riscos num céu Pessoa, o homem-noite do Igtur mallarmeano, o garoto
rubro, não tinham forças para serem completados, se perverso amante de Verlaine: Arthur Rimbaud. Meu
perdiam antes de acontecerem. O homem adorava as encontro com eles seria dez anos depois, em 1987, no
16
primeiro ano da faculdade de Letras. nada: movimentos do ar no aparelho fonador
O raro, o grotesco, o anormal contrapostos ao transformados em símbolos gráficos no papel ou na tela
singelo, sublime e delicado eram a minha forma de ser azul do computador.
menino. A voz que narra, dentro da minha cabeça, me No dia 21 de abril de 2000 conheci o RPG em chat.
validava como menino em corpo de menina. De certo A segunda metade do meu estilo literário se confirmava,
modo, o Narrador é minha personagem principal, a reafirmava. Dezenas de Senhores Pés de Tamarindo e
divindade que me constrói do jeito certo. Nunca fui Nolas visitavam minhas noites, trazidos pelas dialupas,
bonita/o. Sei ser charmoso/a e me espanto muitas vezes monstros que me puxavam pelos pés, cavando um buraco
por conseguir seduzir homens e mulheres usando a no chão do escritório, abaixo da mesa de meu
inteligência, a palavra, o som da voz e um jeito de corpo e computador, e foram sonhados por um amigo querido:
gestos que transparece o gayzinho interior. Sempre Shester Cunha. Shester ainda não tinha internet e não
tendendo à obesidade, passei a vida lutando contra ela que conhecia uma expressão que aparecia nas telas de
nunca me impediu de chegar ao outro. Minha computadores, no começo dos anos 2000, quando os
transexualidade inconfessa durante a maior parte da vida usuários tentavam usar a conexão discada: “dial up as”. O
se encarregava de frustrar relacionamentos e tentativas de sonho dele profetizava a imensa transformação
aproximação. No entanto, tive alguns namorados e fui produzida em minha vida pelo RPG na internet. Vinte e
casado por sete anos com uma mulher, como foi dito no um anos após o imutável rompimento de parceria com a
início: Angie (mais tarde denominada Babau), player da Nola, finalmente, eu voltava ao gênero que nasci amando,
Bettina von Schaeffer e do Erasmus Zottarelli inventando: literatura interativa, a quatro ou mais mãos.
(maravilhosos vampiros: uma nazista alemã e um general
do Imperador romano, Júlio César), em jogos nos chats de
RPG.
RPG ou jogo de interpretação de papéis, no nosso
caso, era uma modalidade em que cada jogador,
responsável por uma personagem principal, podendo ou
não interpretar mais de uma, escreve partes ou cenas de
uma narrativa para que o outro, com foco em sua (s)
personagem (ns) responda, dando continuidade, ao que o
primeiro responderá novamente e assim por diante.
A formação em Letras confirmou o amor pela arte
em geral, pela literatura em particular, e pela narrativa
especialmente. Enfim, depois de 13 anos lidando com a
literatura de modo científico, aprendi tudo que podia
sobre a arte de narrar e compor universos feitos de quase As dialupas
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Outra vez haveria o prazer de ouvir a voz da outra
personagem, do outro narrador. Ser narrado, viver no
espelho narcísico, era o fim do silêncio repetindo a
sentença da Senhora Calça Vermelha. As vozes fluidas
e fluentes de muitos parceiros diriam, naturalmente,
sem esforço, sem mentira, com verossimilhança:
“Menino, você é menino e faz coisas de menino, de
menino gay. Está tudo bem, garotinho, está tudo bem,
venha para o Senhor Quintal, entre, agora, no Clube”.
Então, entrei! Decidi interpretar Lestat de Lioncourt
e me nomeei Daniel Rodrigues. Entrei em 21 de abril
de 2000 e me considero oficialmente despaixonado
pela escrita errepegística desde 07 de agosto de 2012,
quando mandei minha última cena no chat do UOL,
para Ys, meu amor do último capítulo.
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Porque não posso escrever Dinamara: Como assim "o
este livro rompimento da leveza com a
trilha"? que trilha? sonora?
e tenho de voltar para a historinha, a
partir de conversas com Reider Pereira,
no facebook Reider: sim, a música que
anexou. Ela tem uma leveza, mas
em alguns momentos da música a
Enquanto relia o capítulo sobre a calça vermelha e a leveza coloca o pé no chão, dá
menina dos dentes de agulha, quando ainda acreditava que uma nitidez pras coisas.
este livro seria longo e levaria meses para ser terminado,
enviei ao Reider os primeiros trechinhos e lhe pedi que os
comparasse ao que conhece da Historinha: No facebook, dias antes desta conversa, postei um
pequeno texto com link para o álbum Loveless, do My
Blood Valentine. No texto, eu avisava que estava
Dinamara: Hahahaha! Reider, lê escrevendo este livro. Mas, ao falar com Reider, havia até
aí as duas páginas e me diz se me esquecido da trilha.
notou a mudança de linguagem ou
algo assim. é curtinho.
Dinamara:aaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaiiii
iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiique
Reider: eu acabei de ler hahah
liiiiiiiiiiiiiiiiiindooooooooooo!
Reider: olha, li o que mandou, e
Dinamara: Essa música ia ser só
eu gostei. Está mais leve do que a
para a postagem no face. Já mudei
historinha, tem até um jeitinho de
o arquivo de postagens, o fiz à
roupa branca e lavanda.
parte, mas, agora, acho que
deixarei essa música como
Reider: e tem o rompimento da
abertura do livro, ao menos no
leveza com a trilha
começo, por culpa sua, hahahah!

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Reider: sabe, se vc é quem dá vida
Reider: hhahahahahhaa que a coisas tão belas e inflamáveis,
guniiiito eu já estar participando! como o quando escreve RPG.
Mal começamos e a parceria já dá Imagina o efeito do foco em
resultados, hahahahahah! apenas VC, antes de tudo.

Reider: que foooi??

Dinamara: Muitos trechos, que


dizem respeito só a mim, como o Dinamara: esse é o problema,
da calça vermelha, eu vou copiar estou, neste exato momento,
da historinha e colar. entrando numa grave crise...
cara, estou tendo um terrível
Dinamara: ah sim, são partes insight: NÃO CONSIGO
importantes pra compreensão do IGNORAR O RPG.
leitor e agora eu vou me contar
sem o foco tão grande nos jogos Dinamara: é como você me dizer
de RPG, mas, em mim mesmo, na pra me concentrar em meus
minha transexualidade, nos meus corpo, mas, não nos músculos e
amores em mim. ossos.

Enquanto conversava com meu parceiro, eu continuava a


ler o capítulo da Calça Vermelha, e fui sendo tomado por Reider: hahahahahah calma,
Dani!
um incômodo quase desespero. Precisei falar com Reider:

Dinamara: Reider, socorrinho! Dinamara: O que eu faço?


socorrinho!

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Reider: Se vc estiver preparado e
Reider: lembra que isso que forte o suficiente, eu concordo
vivemos é só ilusão, é matrix!
Então basicamente estamos Reider: mas tem que estar
atuando, fazendo RPG TODO O preparado pra não ficar doente
TEMPO!

Dinamara: mas, que interessante


Dinamara: nhaaaaaaaaaiiiiiii! isso que disse sobre ser o RPG e
acho que vou ter de ignorar não os amores.
recomendações do Oswaldo, num
se trata do Ys ou do Daniel ou da Dinamara: Juro pelos meus pais
Babau. mortos, Reider, eu simplesmente
posso abrir mão de todos os meus
amores, mas não do que vivi no
RPG.
Reider: é como se o RPG fosse
seu músculo machucado, vc não
Dinamara: simplesmente não sei
pode correr, ou pular (escrevendo
falar sobre mim fora dessa ficção a
A Historinha) mas vai fazer
dois.
fisioterapia escrevendo sobre
amor
Reider: É porque vc recriou a
realidade com o RPG. Eu sinto
Dinamara: nhai, eu queria que esse poder nele.
fosse, mas, num é!
Reider: tô entendendo
Dinamara: não sou eu
escrevendo tudo que sei sobre
amor, entende?
Dinamara: Agora é minha vez de
Dinamara: eu estou sentindo que
dizer que vc é que me entende,
tenho de ter coragem e enfrentar a
amigo.
historinha.

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vivenciado essa iluminação que me leva a ser breve neste
Reider: hahaha siim libretinho para voltar à série da mulher-menino. Todos os
eus em mim se sentiram muito contentes pela ajuda e
Reider: e vc tá sentindo o Micael comentários do ilustrador mais amoroso que poderíamos
chacoalhando os pezinhos com ter encontrado, olha só:
essas iluminações? haha
Dinamara: hahahahahahahahha!
Micael é o protagonista da minha obra de RPG em seu danado, como é que vc sabe
disso? Mic fica mortinho e triste
parceria com Ys e dos dois livros que escrevi a respeito: A
quando estamos fora do nosso
historinha da mulher-menino e Flores mortas e papoulas vivas para elemento, e ele é que me ajuda a
a mulher-menino. Em 2010, quando comecei a escrever com sentir que o foco é o RPG e não os
Ys, Lestat de Lioncourt, a personagem que eu interpretava amores.
nos jogos em chats, desde 2000, já estava transformado
em Micael Al-Hareck, um rapazinho humano e mortal, de Dinamara: Eu simplesmente não
15 aninhos. Como aconteceu isso vocês só saberão posso ignorar uma produção de
quando lerem esses outros dois livros. 14 anos e fazer outra de outro jeito
É uma história muito bonitinha. Ys criou mais de completamente diferente, é como
trinta personagens para interagir com Mic, porque Mic é se pedissem a um pintor para ser
um mocinho muito especial. Ele nem sabe, mas, jamais caricaturista.
fará 16 anos. Fará 14, 13, 12... até desaparecer feto.
O mais bonito é que Ys e suas mais de trinta
Reider: hahahah eu tô vendo ele
pessoinhas amaram muito Micael, até ao ponto de, certa assim. E ele é criança, não quer
noite, Ys, conversando comigo no mundo real, conversa nem saber se a outra criança
boba e divertida de sofá, ver Micael em mim, viu que brigou com ele quando o pega-
Micael era, sou eu. Ys não precisou dizer que me amou e pega acabou, ele só quer brincar
amou Micael ainda mais a partir dessa visão. Amou tanto de novo.
que foi incapaz de continuar a escrever e amar comigo,
porque amores estranhos e intensos são muito Reider: não é que vc não pode, vc
complicados. não quer! e isso te coloca no
Só que não é neste livro o momento de vocês p o d e r. E p o d e r t r a z m a i s
saberem dessa historinha. Fiz esta digressão apenas benefício do que submissão, né?
porque Reider mencionou Micael todo feliz por eu ter rs

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Dinamara: KKKKKKKKKK! Dinamara: Hahahahahahahaha!
Vc num presta nadinha! Mas, a culpa não é sua, ora, vc
apenas me ouviu enquanto eu tive
Dinamara:Olha o título do o insight! Estou resolvendo que
último capítulo do TUDO QUE vou enfrentar, porque se trata de
SEI SOBRE O AMOR: meu amor pela literatura
«PORQUE NÃO POSSO interativa, e não pelo Ys. O
ESCREVER ESTE LIVRO E Oswald pareceu a Babau que
TENHO DE VOLTAR PARA A queria que eu parasse de jogar
HISTORINHA, A PARTIR DE RPG com todo mundo, e não só
CONVERSAS COM REIDER com o outro Daniel. Eu aceitei
PEREIRA, NO FACEBOOK:" nunca mais jogar com ele, mas,
jamais parar com outros todos.

Reider: HHAHHAHAHAHAH
Reider: vc está relembrando o
Reider: sou cúmplice, assumo seu verdadeiro amor, então?

Reider: mas eu de vc escreveria


NÃO QUERO

Dinamara: Uuaaaaaaaaauuuuuu!
Você é genial, carinha, é isso
Dinamara: HAHAHAHA! tem mesmo, nhai, nhai, adorei, adorei,
razão, hahahahahaha! adorei! hahahhhahaha

Reider: sabe Dani, agora me senti


Reider: hahahahahahahahahh como Ariel, o espirito do ar. E vc é
tempestade, em forma de menino
Reider: o Oswaldo vai me odiar

Reider: hahhahaa

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Dinamara: Num é que livros de Dinamara: Impressionantes as
autoajuda funcionam? está pronto metáforas que se re petem,
o TUDO O QUE SEI SOBRE O impressionante este processo
AMOR, logo você vai ver, um dos terapêutico-criativo que envolveu
livros mais curtinhos do mundo, a nós dois a partir de seus
uau! discursos sobre sua
independência amorosa crônica.

Reider: hahahhaha Reider: e eu fico todo muito feliz,


que é como se o universo estivesse
sorrindo e dizendo que isso é
magia, isso é divino

Dinamara: deOses, que mais


gunito ainda, putz! e vc nem tem
ideia de que no passado, Micael, Dinamara: Sim, sim, e não sei
sendo Awen, o filho do rei gaulês quanto a você, mas, eu estou me
Vercingétorix, namorava o sentindo bem melhor, pois você
correspondente celta de Ariel, era me ajudou a redescobrir meu
um espírito do ar chamado Éolos verdadeiro amor: a literatura em
(interpretado por uma garota do formato RPG. Muito agradecido,
Rio). E esse Éolos matou Awen, querido Reider Maria Rilke.
porque achava que o menino (de
13 aninhos) estava traindo os
celtas com os egípcios.
Reider: eu tbm estou muito
melhor, porque estou assumindo
que o problema é comigo, não
com os outros e isso me dá a
Reider: hahahahahahahahahha chance me concertar.

Reider: QUE DEMAIS! Re i d e r : e mu i t o f e l i z p o r


participar disso com vc

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Dinamara: Ainda bem que você Dinamara: EEeeebaaaaaaaaaaaa!
pode reordenar suas experiências Pode, deve e eu amo, agradeço de
e é tão bom nisso que, mesmo sem coração!
querer, só por ser um amigo bom
ouvinte, me ajudou a enxergar
melhor a minha.
Reider: hahahaha ook, depois
então falo com vc sobre como
fazer.
Reider: hihihihihi
Reider: bjinhos
Reider: Dani, eu preciso sair
agora, qualquer outra descoberta
vc me chama, ok?

Dinamara: E estou completando


Se o livro passou tão rápido e
este livro, com nossos trechos de
conversa e tudo. Transformarei
deixou um gostinho de quero
em PDF e disponibilizaremos
como conteúdo bem baratinho
mais...
sobre o amor, no site Plasticine,
ou na Amazon, em breve. Muito É porque ele funcionou um pouco para você e
grato por tudo, amadinho! você está começando a saber mais sobre o amor aí bem
dentro desse lugar que a gente nomeia coração, mas, a
ciência diz que é só um músculo se movendo por
eletricidade e bombeando aquele líquido vermelho que se
Reider: eu posso fazer uma chama “sangue”.
ilustração pra ele? Posso continuar compartilhando com você tudo o
que sei sobre o amor. Entretanto, graças à eficiência das
redes sociais, da terapia e da técnica de autoajuda, este
livrinho acabou e, se você quer realmente continuar,
precisa ler A historinha da mulher-menino.

25
Posfácio em movimento
O e-book estava quase prontinho, em fase de teste,
sendo mostrado a amigos da Editora Plasticine, antes de
se pedir o ISBN dele, quando a Gato Lunar do Edgar
Allan Poe o leu e deixou um comentário lindo sobre ele,
no inbox do meu facebook.
Daí conversei com o editor, disse a ele que queria
fazer alguma coisa com o depoimento da Gato. Ele me
veio com esta ideia, a do “Posfácio em movimento”. Sabe
o que é isso? Um posfácio que nunca terminará,
construído por depoimentos acrescentados conforme o
e-book for se espalhando pelo mundo.
Então, se você tá lendo este livro pela primeira vez
e quiser me contar sua opinião, manda uma mensagem pra
mim, no meu face ou no grupo de discussão sobre este
livrinho, no site do Plasticine: plasticine.co.
Ah, eu ia me esquecendo de dizer que a Gato
Lunar nasceu Gabriela Andrade de Oliveira. Ganhou esse
apelido de “Gato” por um desses acasos muito
engraçados.
Foi em 2011, se não me engano, em 09 de junho,
dia do aniversário do nosso editor, Wagner Orniz, que
hoje é namorado da Gato, mas, não era ainda, naquele
tempo. Boa parte da turma do Plasticine estava numa casa
noturna onde era a festa de aniversário.
Todo bonito no corpo da Dina, eu carregava uma
bolsinha preta de mão, felpuda, daquele material que são
os ramos de pinheirinho todos fluflus das árvores de
Natal, coloridos e brilhantes, espetadinhos, que se
enroscam nos galhos, só que o da minha bolsa é todo
pretinho e brilhante, tramado como se fosse um crochê.

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Batizei essa bolsa como “Gato Lunar do Edgar
Allan Poe”, porque ela é preta e brilha como um céu
estrelado, e parece peluda como um angorá flutuando,
cheio de negrice e brilho, no alto do céu. Poe gostava
muito de gatos e de observar as estrelas e a escuridão em
que são bordadas, então, o nome da bolsa ornou muito,
não ornou?
Eu tava contando o nome da bolsa para uma amiga
do Wagner, e a moça não entendeu, eu repeti: “Gato
Lunar do Edgar Allan Poe”. A Gabi e o João Gabriel,
nosso assistente de conteúdo, estavam por perto. E o
tonto lindo do João jura, até hoje, que era o nome da Gabi
que a moça queria saber, e eu juro de outro jeito: que era o
nome da bolsa. A gente nunca vai concordar, eu acho.
Só que adorei que o João pense que era o nome da
Gabi que a moça queria saber. Gostei tanto que dei esse
nome pra Gabi. Agora todo mundo sabe que ela é a Gato
Lunar do Edgar Allan Poe... e do Orniz, hihihihihihih!
É da Gato o depoimento abaixo, e a gente escolheu
não corrigir nenhum errinho, só para manter a delicinha
com cara de facebook, mas, a Gato é très chic e faz mestrado
em linguística:

« Dani, li seu livro magrinho, mas muito forte (nutrido e


lindo), de uma vez, sem parar... mesmo que quisesse
p a r a r p r a n ã o a c a b a r l o g o.
Eu amei, eu entendi a autoajudice dele, e isso faz dele
uma obra muito rica, na minha opinião. É como ajudar
a partir da apresentação da construção da sua própria
autoajuda, que por sua vez, também é co-construída,
isso é amor! E mostrar isso com toda sinceridade que
você desenha desde o começo, quando apresenta o
sumário que seria, mas não foi, provida de beleza e

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dessa destreza artística das narrativas que você tem, fez
ela ser algo bem maior do que propõe a pequeneza da
obra. E eu amei a beleza e a dor da história.
O que eu mais gostei é que não só a menina de dentes de
agulha se parece comigo quando era criança, mas
também o fato de que eu brincava igualzinho a você.
Brinquei por muito tempo, mesmo quando não era mais
tão criança e isso era muito legal, daí eu pude imaginar
você brincando também, bem como devia ser.
Ai, e como você é da coisa fashion desde sempre, na sua
calça vermelha impostora e no seu vestido xadrez de
rosa e verde (que não conta no livro, mas eu vi no
cachorro doido 1 ). Você é todo da narrativa das roupas
enquanto substância da narrativa das letras... Eu amei
"Tudo o que sei sobre o amor". »

1 Cachorro Doido é um grupo secreto e fechado que os membros do Plasticine criaram e usam
para se comunicar no facebook, a respeito dos afazeres do Coletivo.

28
ISSO É TUDO
PESSOAL !

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