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ENSAIO

AS ENTRETELAS
DA PALAVRA SEDA

Gloria Kirinus*

A palavra seda nada tem da superfície


luxuosa, falsa, acadêmica,
A atmosfera que te envolve de uma superfície quando
atinge tais atmosferas se diz que ela é “como seda”.
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam. Mas em ti, em algum ponto,
talvez fora de ti mesma,
E como as coisas, palavras talvez mesmo no ambiente
impossíveis de poema: que retesas quando chegas,
exemplo, a palavra ouro,
e até este poema, seda. há algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
É certo que tua pessoa de felino, da substância
não faz dormir, mas desperta; felina, ou sua maneira,
nem é sedante, palavra
derivada da de seda. de animal, de animalmente,
de cru, de cruel, de crueza,
E é certo que a superfície que sob a palavra gasta
de tua pessoa externa, persiste na coisa seda.
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia, João Cabral de Melo Neto
(Quaderna 1956-1959)
Fonte: www.academia.org.br.

DOI: http://dx.doi.org/10.18224/gua.v10i1.8792
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N
a leitura inicial do poema, um escuro, um casulo, um envoltório indecifrável e sedutor.
No percurso da leitura, a cada volta do verso, a cada reverso, um susto. Susto, de prender,
de imobilizar, de fazer pensar - mais do que de sonhar - diante das palavras Impossíveis de
poema/ exemplo, a palavra "ouro" ou até este poema seda.
Susto que leva, sempre de volta, a retomar a meada do verso, que ora se faz epiderme recep-
tora da carícia visual; ora se faz endoderme, interior, substancial, no corpo da palavra, no corpo do
poema, no corpo da seda/ bicho/mulher.
De susto em susto, A palavra seda de João Cabral de Melo Neto, provoca a descoberta das
finas entretelas que formam o casulo deste poema. E por falar em telas, esta seda, a sua vez, evoca
outras telas fora do poema. Trata-se da tela do pintor Mondrian e, com ela, a possibilidade de obser-
var de outra distância, de nova superfície, a própria palavra seda.
João Cabral de Melo Neto escreve um poema de sedução feminina valendo-se da palavra seda
e/ou da coisa seda. A mulher se faz invisível, envolta numa atmosfera especial, capaz de transformar
tudo o que a rodeia. A própria palavra atmosfera, etérea, externa e fluída também se transforma. E
nessa metamorfose se desenrolam uma série de novas transformações:

A atmosfera que te envolve


atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.

Tudo se transforma. Uma coisa vira outra coisa. Mas a transformação que surpreende, aquela
que leva a palavra/mulher/seda até a coisa seda é tecida desde o início do poema, seja de maneira
aliteracional, operacional ou até significativamente transformacional. A palavra atmosfera que abre
o poema no primeiro verso, somada à palavra atmosfera do segundo verso, estabelece relações, num
jogo de aliterações que parecem desenvolver-se, desmanchar-se e reacomodar-se na palavra trans-
forma.
Esse movimento provoca a leitura da própria transformação visualizada na palavra fera, que
repetitiva se destaca da evanescente palavra atmosfera. Sim, nessa atmosfera que envolve a mulher
é possível perceber a substância muscular, carnal, felina, animal, pantera, já abrigada no interior do
corpo-casulo desde o início do poema.
Nem casto e nem vegetal, o elemento carne, carnal, animal é mais ligado à sexualidade. De
onde temos, na metáfora dos felinos, a essência da libido sexual. Não é de felinos a comparação do
animalmente, da mulher, no final do poema?
Nos dois últimos quartetos confirma-se o animalmente do bicho/seda/mulher: há algo de mus-
cular/ de animal, carnal, pantera/ de felino, da substância / felina, ou sua maneira/ de animal, de
animalmente/de cru, de cruel, de crueza/ que sob a palavra gasta/ persiste na coisa seda.
Além desta confirmação, que numa direção crescente visualiza a própria transformação: ani-
mal, animalmente; cru, cruel, crueza se faz necessário prestar atenção ao último verso do quarteto
onde se destaca a transformação da palavra seda pela coisa seda: (...) que sob a palavra gasta/ per-
siste na coisa seda.
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Para o poeta, a palavra gasta sobrevive na coisa seda. Esta é outra entretela, outra volta do
novelo em que o poeta transforma uma coisa em outra coisa.
A coisa seda ganha, no final do poema, vida, substância anímica, motora, dinâmica, fechando
um novelo de imagens enoveladas: de animal, de animalmente/ de cru, de cruel, de crueza,/ que
conotam de substância cruamente animal a palavra seda. Agora, a palavra seda, recuperada de sua
espessa substância, é possível de poema, ela é a própria coisa seda: Palavra/coisa que o poeta conse-
gue desvestir de toda conotação banalizada pelo uso. O poeta procura na palavra, no seu núcleo, na
sua essência, por dentro do seu casulo, o que existe de substância anímica, de substância animal nela.
Esta colocação já se anuncia desde o segundo quarteto do poema. O poeta desconfia da pos-
sibilidade de poema de algumas coisas/palavras: / luxuosa, falsa, acadêmica,/ de uma superfície
quando/ se diz que ela é "como seda"// - que, banalizadas pelo uso, perdem a garantia de serem
aproveitadas no poema: E como as coisas, palavras/ impossíveis de poema:/ exemplo a palavra
"ouro",/ e até este poema, seda//.
É muito oportuna a colocação da palavra "ouro" ao lado da palavra seda. A palavra "ouro"
também sofre uma conotação popular mais relacionada ao valor ou ao brilho luxuoso.
João Cabral de Melo Neto desveste a palavra "ouro" de seu significado denotativo comum e
de uma maneira analógica com a palavra seda é possível também deduzir que tal palavra nada tem
de luxuosa, falsa, acadêmica, mas que também possui uma substância concentrada através de todo
um processo de digestão alquímica, muito próximo à crueza genética da coisa seda. Ela também é
objeto transformado
É conhecida a capacidade do poeta de saber conotar a palavra devolvendo-a primeiro à crueza
da suade-notação. Ele sabe descobrir o bicho cru, recluso que sob a palavra gasta sobrevive no casu-
lo, ou melhor, na coisa seda.

A Outra tela

Neste exercício de descobertas outra tela se revela. Trata-se da tela de Mondrian, pintor neo-
plasticista a quem João Cabral de Melo Neto cita em mais de um poema.
Em Escritos com o corpo, de Serial, Mondriam e sua tela invadem o poema seda, dialogam,
trocam e acrescentam outras tintas. Aceito a invasão -impossível rejeitá-la- para registrar a outra tela,
plena de seda, entre as entretelas que comportam esta palavra seda.
Os primeiros versos de a palavra seda: A atmosfera que te envolve/ atinge tais atmosferas/ que
transforma muitas coisas/ que te concernem, ou cercam,// parecem completar-se com os versos: se
descobre que existe nela/ certa insuspeitada energia/ que aparece nos Mondrians/ se vistos na pintura
viva. (Escritos com o corpo)
Ela nada tem de estático ou sedante apesar de estar na tela, apesar de deixar-se contemplar
como superfície externa, na tela ou no poema seda. Uma dinâmica gerada muito no interior, no es-
paço nuclear, anima o movimento impalpável, a aura, a sensação, a energia invisível. A tentativa de
pontuar o interior, o invisível em algum ponto exterior, de superfície, nestes versos, num e noutro
poema, mostra, além da visualidade, a leitura da dimensão não- dita, da dimensão interna e substan-
cial que se adivinha, mas que só se percebe a partir do não-dito: convite mudo ao leitor de poesia.
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O poeta sabe de o seu próprio fazer poético, sabe da sua construção exata, limpa, de pré-medi-
tada energia. Cabem para ele os mesmos versos que ele dedica ao pintor no Centenário de Mondriam:
Só tua pintura clara/ de clara construção/ desse construir claro/ feito a partir do não//. Não parecem
ser estes versos uma auto-definição de sua própria criação?
Mas não é apenas neste ponto que os poemas dedicados ao pintor entretecem A Palavra seda.
Outro ponto em comum é o anseio que se percebe no poeta de encontrar a essência, o núcleo, a subs-
tância, o que resta e persiste na coisa seda. Este anseio parece encontrar aval teórico nos versos que
ele mesmo dedica ao pintor no seu centenário em que poeta e pintor parecem se reconhecer no anseio
de chegar à coisa e ao miolo/ dessa coisa, onde fica/ seu esqueleto ou caroço.// (....).
Certamente neste anseio comum reside o motor alquímico que provoca no receptor de arte o
susto, a surpresa, a sedução. Como ficar impassível quando diante do olho humano uma coisa vira
outra coisa ou quando se adivinha um redemoinho por trás da tela estável?
Descobre-se também, nos versos dedicados ao pintor, mais do que uma homenagem à sua
arte, um aprendizado, uma assimilação prático-teórica da arte visual por parte do poeta. Geometria
plana na pintura de Mondrian? Geometria plena na poesia do poeta? Tela-pele? Pele-quadro? Corpo
da tela? Corpo do poema? O redemoinho de transformações e combinações possíveis é infinito e ao
mesmo tempo, impossível de minuciosa análise nesta rápida captura da tela de Mondriam.
O traço calculadamente antilírico de um e de outro, no comum anseio de formas limpas,
despojadas, confirma-se em outros versos de Escritos com o corpo: De longe como Mon-
drians/ em reproduções de revista/ ela só mostra a indiferente/ perfeição da geometria//. No
poema A palavra seda temos a palavra superfície, tanto como a palavra externa utilizadas nos
versos. E é certo que a superfície/ de tua pessoa externa,/ de tua pele e de tudo/ isso que em
ti se tateia,// Estas palavras não são propriamente pertinentes ao campo visual humano. Estas
palavras parecem pertencer a algum plano sujeito a medidas mensuráveis. Mas o verso se
completa com a palavra pessoa como para não deixar dúvidas ao respeito do destino de tais
palavras. O poeta aplica procedimentos mensuráveis e extremamente visuais no corpo humano
e no corpo do poema que se faz fazendo-se.
Existe todo um trato de medidas, um tateio ocular que se manifesta tanto no poema A palavra
seda como em Escritos com o corpo. E seda e pele bem que se correspondem, podem ser uma ou
outra, como bem ilustram os versos de Escritos com o corpo: É que o corpo quando se veste/ de ela
roupa, da seda ela, / nunca sente mais definido/ como com as roupas de regra//.
Através da tela de Mondrian, no poema Escritos com o corpo o poema A Palavra Seda se
amplifica. A amplificação não deixa de ser uma transformação. Em qualquer caso, sempre estará
presente a procura do original da fonte, da substância. Num caso, a pintura viva, no outro, as palavras
possíveis de poema; isto é, despojadas de conotações outras que não sejam sua própria essência.

A Palavra Seda Seduz

Não, nem é sedante, palavra/ derivada da de seda.// O susto inicial, na leitura de A palavra
seda, agora é pura sedução. A palavra seda estimula, acorda, agita, seduz: seda-palavra, seda-pele,
seda-tela, seda-mulher, seda- poema.
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A sensação de escuro, casulo, envoltório, na primeira recepção do poema, não aconteceu em


vão. Ela estimulou o “desenvoltório”, a fim de procurar o núcleo do casulo que, de recluso, prometia
libertar a matéria viva permitindo-me que entrasse no seu adentro, para revelar-me as voltas do vela-
do em sugestivas e muitas telas, ou melhor, entretelas.
A palavra seda solicita a descoberta das entretelas do poema, o que envolve, o que encobre, o
que deriva – num envolve-desenvolve de conceitos, de imagens, de palavras que exigem do leitor esse
mesmo olhar inquisidor que permite que a leitura/escritura seja atingida como a ponta do novelo que
a atenção lenta desenrola". Isto é, o mesmo exercício artesanal que João Cabral de Melo Neto se exige
da sua própria escritura. Esta palavra seda, suave e macia e, até à primeira vista, tida como luxuosa,
falsa, acadêmica, se faz bicho e músculo, surpreendendo de susto o leitor. Susto-surpresa-sedução,
muito semelhante àquela que o leitor da natureza experimenta quando descobre a crueza da substância
bicho no meio da seda, no núcleo do casulo, ou como quando descobre que da crisálida nasce uma
borboleta.
A dinâmica de todo um movimento de sustos, surpresas e seduções nada tem de sedativa.
A atenção é desafiada a fazer-se viva a fim de desenrolar por entre as telas do poema algumas
dentre as muitas telas que este poema enroupado aprisiona.
Ao igualar a palavra seda à palavra mulher verifica-se no poema, por um jogo analógico, a
sedução na sua crueza primordial. Vale lembrar que no mito bíblico a mulher e o animal conspiram o
momento da sedução diante da árvore do bem e do mal. Logo após o pecado original a consciência da
nudez percorre o caminho da primeira roupa. E homem e mulher enrouparam-se da folha de parreira,
da pele das feras e, finalmente da seda que se iguala à textura da pele.
Nesta sedução de João Cabral de Melo Neto, o poeta procura a nudez da palavra seda. Ele re-
gistra a sedução da mulher na pele da própria palavra. Não temos árvore do bem e do mal que mostre
o fruto proibido e incite à tentação. Mas temos no habitat da amora, também o habitat do bicho da
seda onde íntimos convivem bicho e seda.
Cada tela desvestida neste poema enroupado de acerba seda-crua, cruel, crueza constatou, pri-
meiro o susto, a surpresa depois e a plena sedução, finalmente. A energia sedutora que dele provém
justifica-se no corpo casulo do próprio poema. No envoltório particular do corpo feminino que, ora
pele, ora tela, permite desenvoltas leituras.

* Escritora. Conferencista. Pós-doutora Sorbonne/Paris. www.gloriakirinus.com.br

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