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Análise das obras literárias da UFPR

© Hexag Sistema de Ensino, 2018


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Raphael de Souza Motta
Raphael Campos Silva

Projeto gráfico e capa


Raphael Campos Silva

Foto da capa
pixabay (http://pixabay.com)

Impressão e acabamento
PSP Digital Gráfica e Editora LTDA

ISBN: 978-85-9542-114-1

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PREFÁCIO

Lista da UFPR surge com obras inusitadas


Oito obras, do Nativismo épico ao contemporâneo na prova de Literatura

A prova de Literatura da Universidade Federal do Paraná definiu oito obras literárias para a sua lista de leituras
obrigatórias. As escolhas caminham desde o Nativismo épico – final do Arcadismo –, passam pelos românticos até
chegarem na literatura que se produz atualmente. A prova cobrará alguns aspectos pouco tradicionais nos vestibu-
lares, como é o caso do poema épico neoclássico e, até mesmo, alguns livros da contemporaneidade, que não têm
a mesma tradição de antigos autores. Apesar de ter aspectos inusitados, a figura de Machado de Assis está nesta
lista. Aliás, difícil é encontrar uma lista sequer de vestibulares na qual o “bruxo do Cosme Velho” não estará lá,
resplandecendo sua genialidade.
A obra de Machado de Assis escolhida para esta lista é Várias histórias, um conjunto de contos da melhor
qualidade, inclusive compondo as mais conhecidas e tradicionais histórias de sua literatura realista e irônica. As
narrativas curtas colocam o “dedo na ferida“ dos costumes e das moralidades da burguesia no final do século XIX,
que podem ser observadas até hoje.
Voltando no tempo, o candidato deverá dominar os fatores estéticos da obra O Uraguai, do poeta Basílio
da Gama. Uma aventura nativista ambientada no Sul do Brasil, no contexto do Tratado de Madri, que opunha
jesuítas e índios a portugueses e espanhóis. Destaque para a idealização feminina na figura da índia, presente na
personagem Lindoia.
Na sequência, temos o representante do Romantismo, o brasileiro Gonçalves Dias, e sua obra Últimos can-
tos, com poemas de idealização da pátria, dos índios e dos amores. Destaque para “I-Juca-Pirama”, o poema épico
que narra a saga do último índio tupi.
Clara do Anjos é a próxima obra aqui analisada, na qual Lima Barreto expõe o papel feminino e os precon-
ceitos que a mulher sofria na passagem do século XIX para o XX, como a submissão, o abandono, a violência e o
constrangimento público.
João Cabral de Melo Neto surge na lista com uma de suas obras mais conhecidas, Morte e vida severina,
uma poesia rígida e forte na dicção existencial do sertão, na trajetória de Severino (“Severinos”) do interior ao
litoral.
O gênero dramático, ou seja, o texto escrito para o teatro continua na sequência, com a obra “Eles não
usam black-tie“, de Gianfrancesco Guarnieri. Um espetáculo engajado que marcou seu tempo e faz sentido até
hoje, retratando traços de utopia e realidade, de alienação e revolução, na relação de um pai e um filho em pleno
movimento operário e luta por direitos de greve. Foi encenado no histórico “Teatro de Arena” e foi adaptado para
o cinema.
A literatura contemporânea está representada na lista com a obra Relato de um certo Oriente, de Milton
Hatoum. O autor amazonense tece uma narrativa de cunho memorialista que sobrepõe as reminiscências do lem-
brar em várias vozes apresentadas.
Encerrando o conjunto de obras, surge Nove noites, de Bernardo Carvalho, uma obra complexa que mescla
duas instâncias narrativas em caráter de desconstrução, misturando realidade e ficção.
Seguindo as orientações e análises propostas neste volume especial do “Entre Aspas”, tenho certeza de que
os candidatos darão conta de entender o processo constitutivo desta lista composta de grandes obras da literatura
brasileira.

Boas leitura e análise!


Lucas Limberti
SUMÁRIO
ENTRE ASPAS
UFPR
Obra 1: O Uraguai 5
Obra 2: Últimos cantos 19
Obra 3: Casa de pensão 31
Obra 4: Clara dos Anjos 39
Obra 5: Sagarana 49
Obra 6: Morte e vida Severina 67
Obra 7: Nove noites 81
Obra 8: Relatos de um certo Oriente 91
L C
O Uraguai

Obras

Basílio da Gama

L C
ENTRE ASPAS
BASÍLIO DA GAMA

Basílio da Gama (1741-1795) nasceu na atual cidade de Tiradentes, em Minas Gerais. Estudou em colégio jesuíta,
no Rio de Janeiro, pois tinha a intenção de ingressar na carreira eclesiástica. Completou seus estudos em Portugal e
na Itália, no período em que os jesuítas foram expulsos dos domínios portugueses. Na Itália, Basílio construiu uma
carreira literária, tendo conseguido uma façanha única entre os brasileiros da época: ingressar na Arcádia Romana,
na qual assumiu o pseudônimo de Termindo Sipílio.
Em 1767, voltou ao Rio de Janeiro, onde foi preso no ano seguinte acusado de ter ligação com os jesuítas.
De acordo com um decreto então em vigor, qualquer pessoa que mantivesse comunicação com os jesuítas, oral ou
escrita, deveria ficar exilada por oito anos em Angola.
Publicou, em 1769, o poema épico “O Uraguai”, uma obra-prima na qual se encontram alguns dos mais
apreciáveis versos da língua portuguesa. Tem como tema a luta de portugueses e espanhóis contra os índios de
Sete Povos das Missões do Uruguai, instalados nas missões jesuítas no atual Rio Grande do Sul, que não queriam
aceitar as decisões de delimitação das fronteiras do sul do Brasil impostas pelo Tratado de Madri.
Basílio da Gama soube como poucos transformar política em poesia. Em 1776, publicou “Os Campos
Elíseos”, um poema em que se exaltam supostas virtudes cívicas de membros da família de Sebastião José. Com
a morte do rei em 1777, Pombal não se manteve no cargo, foi duramente atacado e vários de seus atos foram
anulados. Basílio permaneceu-lhe fiel e chegou a escrever em sua defesa. Em 1788, lastimou a morte de Dom José,
em “Lenitivo da saudade”.
Preso, Basílio foi levado a Lisboa. Lá, livrou-se da prisão por fazer um poema em homenagem à filha do
conde de Oeiras, futuro marquês de Pombal. Essa amizade lhe possibilitou ter novos contatos com os árcades
portugueses.
Basílio da Gama foi admitido na Academia das Ciências de Lisboa, e sua última publicação foi “Quitúbia”
(1791), um poema épico celebrando um chefe africano que auxiliou a colônia na guerra contra os holandeses. O
autor faleceu em Portugal, no ano de 1795.

Contexto: Minas Gerais e o ciclo do ouro

O Arcadismo brasileiro originou-se e teve expressão principalmente em Vila Rica (atual Ouro Preto), Minas Gerais,
e seu aparecimento teve relação direta com o grande crescimento urbano verificado no século XVIII nas cidades
mineiras, cuja vida econômica girava em torno da extração de ouro.
O crescimento dessas cidades favorecia tanto a divulgação de ideias políticas quanto o florescimento da
literatura. Os jovens brasileiros das camadas privilegiadas da sociedade costumavam ser mandados a Coimbra

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para estudar, uma vez que, na colônia, não havia cur- “homem natural” culminou, entre nós, na figura do
sos superiores. Ao retornarem de Portugal, traziam índio, presente nas obras de Basílio da Gama e Santa
consigo as ideias que faziam fermentar a vida cultural Rita Durão; a expressão dos sentimentos, em Tomás
portuguesa à época das inovações políticas e culturais Antônio Gonzaga e Silva Alvarenga, é mais espontânea
do ministro marquês de Pombal, adepto de algumas e menos convencional. Esses aspectos característicos
ideias do iluminismo. da poesia árcade nacional foram mais tarde recupe-
Em Vila Rica, essas ideias levaram vários inte- rados e aprofundados pelo Romantismo, movimento
lectuais e escritores a sonhar com a independência que buscou definir uma identidade nacional em nossa
do Brasil, principalmente após a repercussão do mo- literatura.
vimento de independência dos Estados Unidos da Além dessa espécie de adaptação do modelo
América (1776). Tais sonhos culminaram na frustrada europeu a peculiaridades locais, não se pode esque-
Inconfidência Mineira (1789). cer a forte influência barroca exercida no Brasil, ainda
durante o século XVIII. Muitas das igrejas de Ouro Pre-
to, por exemplo, só tiveram sua construção concluída
Arcadismo na colônia: quando o Arcadismo já vigorava na literatura.
entre o local e o universal
O Arcadismo brasileiro
e suas peculiaridades
ƒ Apego aos valores da terra
Um dos elementos que tornam peculiar o mo-
vimento árcade brasileiro é o apego aos valores da
terra oferecido pela localização geográfica do “grupo
mineiro”, fazendo brotar um nativismo que incorporou
o ideário da estética bucólica, em voga no Arcadismo.
Emerge na natureza brasileira como pano de fundo
para a poesia dos “pastores”.
ƒ Incorporação do indígena

Os escritores brasileiros do século XVIII comportavam-


-se em relação ao Arcadismo importado de Portugal
de modo peculiar. Por um lado, procuravam obedecer Outro aspecto diferenciador do Arcadismo bra-
aos princípios estabelecidos pelas academias literárias sileiro é a incorporação do indígena, em dois poemas
portuguesas ou se inspiravam em certos escritores épicos: ”O Uraguai”, em que Basílio da Gama narra
clássicos consagrados, como Camões, Petrarca e Ho- a luta contra indígenas e jesuítas, protagonizada por
rácio, ao mesmo tempo que, visando elevar a literatura portugueses e espanhóis. Basílio da Gama foi lei-
da colônia ao nível das literaturas europeias e conferir tor assíduo de Voltaire, de quem traduziu a tragédia
a ela maior universidade, tentavam eliminar vestígios ”Mahomet”.
pessoais ou locais. Publicado em 1769, ”O Uraguai” é considerado
Por outro lado, acabaram por apresentar em a melhor realização no gênero épico no Arcadismo bra-
suas obras aspectos diferentes dos prescritos pelo mo- sileiro. Seu tema é a luta de portugueses e espanhóis
delo importado. A natureza, por exemplo, aparece na contra índios e jesuítas que, instalados nas missões je-
poesia de Cláudio Manuel da Costa como mais bru- suíticas do atual Rio Grande do Sul, não queriam acei-
ta e selvagem do que na poesia europeia; o mito do tar as decisões do Tratado de Madri.

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A questão com Pombal ƒ Canto I: as tropas aliadas se reúnem para com-
bater os índios e os jesuítas.
O poema, além de contar a expedição do governador Fumam ainda nas desertas praias
do Rio de Janeiro às missões jesuíticas do sul da Amé- Lagos de sangue tépidos e impuros
rica latina (os Sete Povos do Uruguai), é também um Em que ondeiam cadáveres despidos,
canto de louvor à política de perseguição do marquês Pasto de corvos. Dura inda nos vales
de Pombal aos missionários. Tem dedicatória ao minis- O rouco som da irada artilheria.
tro da Marinha, Mendonça Furtado, irmão de Pombal, MUSA, honremos o Herói que o povo rude
que trabalhou na demarcação dos limites setentrionais Subjugou do Uraguai, e no seu sangue
entre o Brasil e a América espanhola, cumprindo o Tra- Dos decretos reais lavou a afronta.
tado de Madri (1750), que corrigia a demarcação entre Ai tanto custas, ambição de império!
as Américas espanhola e portuguesa, firmada pelo Tra- E Vós, por quem o Maranhão pendura
tado de Tordesilhas.
ƒ Canto II: o exército avança e há uma tentativa
São exatamente esses litígios de fronteiras, so-
de negociação com os chefes indígenas Cepé
mados ao heroísmo dos índios, e a crítica à Companhia
e Cacambo. Sem acordo, trava-se a luta, que
de Jesus que dão o tom de ”O Uraguai”. Basílio não
termina com a derrota e a retirada dos índios.
mediu esforços para demonstrar sua gratidão ao mar-
quês de Pombal. Rios de areias de ouro. Essa riqueza
Que cobre os templos dos benditos padres,

O URAGUAI Fruto da sua indústria e do comércio


Da folha e peles, é riqueza sua.
Com o arbítrio dos corpos e das almas
“Serás lido, Uraguai. Cubra os meus olhos
Embora um dia a escura noite eterna. O céu lha deu em sorte. A nós somente
Tu vive, e goza a luz serena e pura.” Nos toca arar e cultivar a terra,
Sem outra paga mais que o repartido
Por mãos escassas mísero sustento.
Personagens Podres choupanas, e algodões tecidos,
ƒ General Gomes Freire de Andrade: chefe E o arco, e as setas, e as vistosas penas
das tropas portuguesas São as nossas fantásticas riquezas.
ƒ Catâneo: chefe das tropas espanholas Muito suor, e pouco ou nenhum fasto.
ƒ Cacambo: chefe indígena Volta, senhor, não passes adiante.
ƒ Cepé: guerreiro índio Que mais queres de nós? Não nos obrigues
ƒ Padre Balda: jesuíta administrador de Sete Po-
A resistir-te em campo aberto. Pode
vos das Missões
Custar-te muito sangue o dar um passo.
Não queiras ver se cortam nossas frechas.
ƒ Baldeta: filho do padre Balda
Vê que o nome dos reis não nos assusta.
ƒ Caitutu: guerreiro indígena, irmão de Lindoia
O teu está muito longe; e nós os índios
ƒ Lindoia: esposa de Cacambo
Não temos outro rei mais do que os padres.
ƒ Tanajura: indígena feiticeira
Acabou de falar; e assim responde
O ilustre General: Ó alma grande,
A quebra do modelo clássico Digna de combater por melhor causa,
Vê que te enganam: risca da memória
A luta travada por portugueses e espanhóis contra ín- Vãs, funestas imagens, que alimentam
dios e jesuítas é narrada por Basílio da Gama desde os Envelhecidos mal fundados ódios.
preparativos até sua conclusão. Os cantos apresentam
a seguinte sequência de fatos:

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ƒ Canto III: Cacambo ateia fogo à vegetação De costumes suavíssimos e honestos,
em volta do acampamento aliado e foge para Em verdes anos: com ditosos laços
sua aldeia. O padre Balde, vilão da história, faz Amor os tinha unido; mas apenas
prender e matar Cacambo para que seu filho Os tinha unido, quando ao som primeiro
sacrílego Baldeta possa casar-se com Lindoia, Das trombetas lho arrebatou dos braços
esposa de Cacambo, e tomar a posição do che- A glória enganadora. Ou foi que Balda,
fe indígena morto. Lindoia, em uma visão, prevê Engenhoso e sutil, quis desfazer-se
o terremoto de Lisboa e a expulsão dos jesuítas Da presença importuna e perigosa
por Pombal. Do índio generoso; e desde aquela
Saudosa manhã, que a despedida
Não de outra sorte o cauteloso Ulisses,
Presenciou dos dous amantes, nunca
Vaidoso da ruína, que causara,
Consentiu que outra vez tornasse aos braços
Viu abrasar de Troia os altos muros,
Da formosa Lindoia e descobria
E a perjura cidade envolta em fumo
Sempre novos pretextos da demora.
Encostar-se no chão e pouco a pouco
Tornar não esperado e vitorioso
Desmaiar sobre as cinzas. Cresce entanto
Foi todo o seu delito. Não consente
O incêndio furioso, e o irado vento
O cauteloso Balda que Lindoia
Arrebata às mãos cheias vivas chamas,
Chegue a falar ao seu esposo; e manda
Que aqui e ali pela campina espalha.
Que uma escura prisão o esconda e aparte
Comunica-se a um tempo ao largo campo
Da luz do sol. Nem os reais parentes,
A chama abrasadora e em breve espaço Nem dos amigos a piedade, e o pranto
Cerca as barracas da confusa gente. Da enternecida esposa abranda o peito
Armado o General, como se achava, Do obstinado juiz: até que à força
Saiu do pavilhão e pronto atalha, De desgostos, de mágoa e de saudade,
Que não prossiga o voador incêndio. Por meio de um licor desconhecido,
Poucas tendas entrega ao fogo e manda, Que lhe deu compassivo o santo padre,
Sem mais demora, abrir largo caminho Jaz o ilustre Cacambo – entre os gentios
Que os separe das chamas. Uns já cortam Único que na paz e em dura guerra
As combustíveis palhas, outros trazem De virtude e valor deu claro exemplo.
Nos prontos vasos as vizinhas ondas. Chorado ocultamente e sem as honras
Mas não espera o bárbaro atrevido. De régio funeral, desconhecida
A todos se adianta; e desejoso Pouca terra os honrados ossos cobre.
De levar a notícia ao grande Balda Se é que os seus ossos cobre alguma terra.
Naquela mesma noite o passo estende. Cruéis ministros, encobri ao menos
Tanto se apressa que na quarta aurora A funesta notícia. Ai que já sabe
Por veredas ocultas viu de longe A assustada amantíssima Lindoia
A doce pátria, e os conhecidos montes, O sucesso infeliz. Quem a socorre!
E o templo, que tocava o céu co’as grimpas. Que aborrecida de viver procura
Mas não sabia que a fortuna entanto Todos os meios de encontrar a morte.
Lhe preparava a última ruína. Nem quer que o esposo longamente a espere
Quanto seria mais ditoso! Quanto No reino escuro, aonde se não ama.
Melhor lhe fora o acabar a vida Mas a enrugada Tanajura, que era
Na frente do inimigo, em campo aberto, Prudente e exprimentada (e que a seus peitos
Ou sobre os restos de abrasadas tendas, Tinha criado em mais ditosa idade
Obra do seu valor! Tinha Cacambo A mãe da mãe da mísera Lindoia),
Real esposa, a senhoril Lindoia, E lia pela história do futuro,

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Visionária, supersticiosa, ƒ Canto IV: o mais bonito dos cinco cantos, nele
Que de abertos sepulcros recolhia são retratados os preparativos do casamento
Nuas caveiras e esburgados ossos, de Baldeta com Lindoia. Esta, chorando a morte
A uma medonha gruta, onde ardem sempre do marido e não desejando casar-se, entre num
Verdes candeias, conduziu chorando bosque e deixa-se picar por uma cobra veneno-
Lindoia, a quem amava como filha; sa. Chegam os brancos, que cercam a aldeia.
E em ferrugento vaso licor puro Todos fogem; antes, porém, os padres mandam
De viva fonte recolheu. Três vezes queimar as casas e a igreja.
Girou em roda, e murmurou três vezes
Co’a carcomida boca ímpias palavras, A Morte de Lindoya
E as águas assoprou: depois com o dedo Não faltava,
Lhe impõe silêncio e faz que as águas note. Para se dar princípio à estranha festa,
Como no mar azul, quando recolhe Mais que Lindoia. Há muito lhe preparam
A lisonjeira viração as asas, Todas de brancas penas revestidas
Adormecem as ondas e retratam Festões de flores as gentis donzelas.
Ao natural as debruçadas penhas, Cansados de esperar, ao seu retiro
O copado arvoredo e as nuvens altas: Vão muitos impacientes a buscá-la.
Não de outra sorte à tímida Lindoia Estes de crespa Tanajura aprendem
Aquelas águas fielmente pintam Que entrara no jardim triste, e chorosa,
O rio, a praia o vale e os montes onde Sem consentir que alguém a acompanhasse.
Tinha sido Lisboa; e viu Lisboa Um frio susto corre pelas veias
Entre despedaçados edifícios, De Caitutú, que deixa os seus no campo;
Com o solto cabelo descomposto, E a irmã por entre as sombras do arvoredo
Tropeçando em ruínas encostar-se. Busca co'a vista, e teme de encontrá-la.
Desamparada dos habitadores Entram enfim na mais remota, e interna
A Rainha do Tejo, e solitária, Parte de antigo bosque, escuro, e negro,
No meio de sepulcros procurava Onde ao pé de uma lapa cavernosa
Com seus olhos socorro; e com seus olhos Cobre uma rouca fonte, que murmura,
Só descobria de um e de outro lado Curva latada de jasmins, e rosas.
Pendentes muros e inclinadas torres. Este lugar delicioso, e triste,
Vê mais o Luso Atlante, que forceja Cansada de viver, tinha escolhido
Por sustentar o peso desmedido Para morrer a mísera Lindoia.
Nos roxos ombros. Mas do céu sereno Lá reclinada, como que dormia,
Em branca nuvem Próvida Donzela Na branda relva, e nas mimosas flores,
Rapidamente desce e lhe apresenta, Tinha a face na mão, e a mão no tronco
De sua mão, Espírito Constante, De um fúnebre cipreste, que espalhava
Gênio de Alcides, que de negros monstros Melancólica sombra. Mais de perto
Despeja o mundo e enxuga o pranto à pátria. Descobrem que se enrola no seu corpo
Tem por despojos cabeludas peles Verde serpente, e lhe passeia, e cinge
De ensanguentados e famintos lobos Pescoço, e braços, e lhe lambe o seio.
E fingidas raposas. Manda, e logo Fogem de a ver assim sobressaltados,
O incêndio lhe obedece; e de repente E param cheios de temor ao longe;
Por onde quer que ele encaminha os passos E nem se atrevem a chamá-la, e temem
Dão lugar as ruínas. Viu Lindoia Que desperte assustada, e irrite o monstro,
Do meio delas, só a um seu aceno, E fuja, e apresse no fugir a morte.
Sair da terra feitos e acabados Porém o destro Caitutú, que treme

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Do perigo da irmã, sem mais demora Embora um dia a escura noite eterna.
Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes Tu vive e goza a luz serena e pura.
Soltar o tiro, e vacilou três vezes Vai aos bosques de Arcádia: e não receies
Entre a ira, e o temor. Enfim sacode Chegar desconhecido àquela areia.
O arco, e faz voar a aguda seta, Ali de fresco entre as sombrias murtas
Que toca o peito de Lindoia, e fere Urna triste a Mireo não todo encerra.
A serpente na testa, e a boca, e os dentes Leva de estranho céu, sobre ela espalha
Deixou cravados no vizinho tronco. Co’a peregrina mão bárbaras flores.
Açouta o campo co'a ligeira cauda E busca o sucessor, que te encaminhe
O irado monstro, e em tortuosos giros Ao teu lugar, que há muito que te espera.
Se enrosca no cipreste, e verte envolto
Em negro sangue o lívido veneno.
Leva nos braços a infeliz Lindoia
Estrutura
O desgraçado irmão, que ao despertá-la
Conhece, com que dor! no frio rosto Escrito em apenas cinco cantos, com a utilização de
Os sinais do veneno, e vê ferido versos brancos (sem rima) e sem estrofação, ”O Ura-
guai” não segue a estrutura camoniana de Os lusíadas.
Pelo dente sutil o brando peito.
Além disso, embora apresente as cinco partes tradicio-
Os olhos, em que Amor reinava, um dia,
nais das epopeias – proposição, invocação, dedicató-
Cheios de morte; e muda aquela língua,
ria, narração e epílogo –, o poema já se inicia com a
Que ao surdo vento, aos ecos tantas vezes
ação em pleno desenvolvimento:
Cotou a larga história de seus males.
Nos olhos Caitutú não sofre o pranto, Fumam ainda nas desertas praias
E rompe em profundíssimos suspiros, Lagos de sangue tépidos e impuros
Lendo na testa da fronteira gruta Em que ondeiam cadáveres despidos.
De sua mão já trêmula gravado Pasto de corvos. Dura inda nos vales
O alheio crime, e a voluntária morte. O rouco som da irada artilheria.
E por todas as partes repetido O fato de o autor tratar de um episódio histó-
O suspirado nome de Cacambo. rico recente (na época, ocorrido havia pouco mais de
Inda conserva o pálido semblante dez anos) é outro aspecto que diferencia ”O Uraguai
Um não sei quê de magoado, e triste, dos” dos poemas épicos tradicionais.
Que os corações mais duros enternece.
Tanto era bela no seu rosto a morte!
Quem é o verdadeiro
ƒ Canto V: o líder português Gomes Freire de An- herói da história?
drada prende os inimigos na aldeia próxima, e
há referências ao domínio universal da Compa-
Pelo fato de ”O Uraguai” ser uma obra de intenções
nhia de Jesus e a seus crimes. épicas, seria de esperar que em nada tivessem desta-
Sossegado o tumulto e conhecidas que os movimentos de guerra e os atos de heroísmo.
As vis astúcias de Tedeu e Balda, Contudo, não é o que se verifica. Ao contrário, a própria
Cai a infame República por terra. guerra chega a ser questionada como meio de atuação
Aos pés do General as toscas armas política, o que revela uma postura tipicamente ilumi-
Já tem deposto o rude Americano, nista da parte do autor, cujas ideias coincidem com as
Que reconhece as ordens e se humilha, de seu amigo marquês de Pombal. Observe:
E a imagem do seu rei prostrado adora.
Serás lido, Uraguai. Cubra os meus olhos

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Vinha logo de guardas rodeado, ”O Uraguai”. Essas lutas ocasionaram a morte de al-
Fonte de crimes, militar tesouro, guns milhares de índios e constituem um dos principais
Por quem deixa no rego o curto arado genocídios verificados no país.
O lavrador, que não conhece a glória: Apesar da postura de crítica à guerra manifesta
E vencendo a vil preço o sangue e a vida pelo autor, o fato histórico narrado não é alterado, e
Move, e nem sabe por que move a guerra. espanhóis e portugueses saem vencedores da batalha.
Do lado inimigo, apenas os jesuítas são verda-
O herói português Gomes Freire de Andrade, o
deiros tratados no poema como vilões – outro traço da
líder das tropas luso-espanholas, também não mostra
obra que satisfaz os interesses do marquês de Pombal.
o entusiasmo dos heróis épicos tradicionais:
Os índios derrotados são vistos com simpatia.
... Descontente e triste Talvez até se possa dizer que o autor enfoca os índios
Marchava o General: não sofre o peito como vítimas da ação jesuítica na região e dos confli-
Compadecido e generosa a vista tos que dela resultaram.
Daqueles frios e sangrados corpos, Destacadas a força e a coragem do indígena,
Vitimas da ambição de injusto império fica claro que a derrota se dá apenas em virtude da
desigualdade de armas. O índio seria uma espécie de
herói moral da luta, dadas suas qualidades de caráter,
Análise conforme mostram os versos a seguir.
Fez proezas Sepé naquele dia.
Conhecido de todos, no perigo
Mostrava descoberto o rosto e o peito
Forçando os seus co exemplos e coas palavras.

Lindoia (1882), por José Maria de Medeiros


O genocídio de Sete Povos das Missões
Observe o trecho do poema em que Lindoia
O Tratado de Madri (1750) determinava uma troca de morre:
territórios: os portugueses que se encontravam na co- Este lugar delicioso, e triste,
lônia de Sacramento (hoje parte do Uruguai) deveriam Cansada de viver, tinha escolhido
desocupar a região e instalar-se nos sete povoados, Para morrer a mísera Lindoia.
chamados “Sete Povos”, pertencentes a Portugal e Lá reclinada, como que dormia,
ocupados por índios. Em troca, a Espanha teria sobera- Na branda relva, e nas mimosas flores,
nia sobre as Tordesilhas. Ocorre que os indígenas que Tinha a face na mão, e a mão no tronco
ocupam esses povoados, provavelmente influenciados De um fúnebre cipreste, que espalhava
pelos jesuítas, não queriam passar ao domínio portu- Melancólica sombra. Mais de perto
guês. Diante do impasse, os governos português e es- Descobrem que se enrola no seu corpo
panhol uniram-se para intervir militarmente na região. Verde serpente, e lhe passeia, e cinge
Foram necessárias duas investidas para que conseguis- Pescoço e braços, e lhe lambe o seio.
sem seu objetivo – a segunda das quais narrada em Fogem de a ver assim sobressaltados,

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E param cheios de temor ao longe; Que alegre cena para os olhos! Podem
E nem se atrevem a chamá-la, e temem Daquela altura, por espaço imenso,
Que desperte assustada, e irrite o monstro, Ver as longas campinas retalhadas
E fuja, e apresse no fugir a morte. De trêmulos ribeiros, claras fontes,
Porém o destro Caitutu, que treme E lagos cristalinos, onde molha
Do perigo da irmã, sem mais demora As leves asas o lascivo vento.
Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes Engraçados outeiros, fundos vales,
Soltar o tiro, e vacilou três vezes Verde teatro, onde se admira quanto
Entre a ira e o temor. Enfim sacode Produziu a supérflua Natureza.
O arco, e faz voar a aguda seta,
Que toca o peito de Lindoia, e fere
A serpente na testa, e a boca, e os dentes
Deixou cravados no vizinho tronco.
Açouta o campo co'a ligeira cauda
O irado monstro, e em tortuosos giros
Se enrosca no cipreste, e verte envolto
Em negro sangue o lívido veneno.
Leva nos braços a infeliz Lindoia
O desgraçado irmão, que ao despertá-la Ruínas da igreja de São Miguel das Missões, RS,
Conhece, com que dor! no frio rosto palco das lutas narradas em O Uraguai
Os sinais do veneno, e vê ferido A valorização do índio e da natureza selvagem
Pelo dente sutil o brando peito. do Brasil corresponde ao ideal de vida primitiva e natu-
Os olhos, em que Amor reinava, um dia, ral cultivado pelos iluministas e pelos árcades. Por ou-
Cheios de morte; e muda aquela língua, tro lado, porém, esses aspectos, que podemos chamar
Que ao surdo vento, e aos ecos tantas vezes de nativistas, prenunciam as tendências da literatura
Contou a larga história de seus males. do século XIX: o Romantismo.
Nos olhos Caitutu não sofre o pranto,
E rompe em profundíssimos suspiros,
Lendo na testa da fronteira gruta
De sua mão já trêmula gravado
O alheio crime, e a voluntária morte.
E por todas as partes repetido
O suspirado nome de Cacambo.
Inda conserva o pálido semblante
Um não sei quê de magoado, e triste,
Que os corações mais duros enternece.
Tanto era bela no seu rosto a morte!
O poema não enfatiza a guerra em si, nem as
ações dos vencedores, nem os vilões jesuítas – trata-
dos caricaturalmente. Ganham destaque, de fato, a
descrição física e moral do índio, o choque de culturas
e a paisagem nacional. Além disso, o autor cria passa-
gens de forte lirismo, como a do episódio da morte de
Lindoia. Observe a valorização da paisagem brasileira
nestes versos:

14
APROFUNDE SEUS CONHECIMENTOS
1. (UFSM) O momento da refeição sempre foi 2. (UEG) Observe a pintura e leia o fragmento
uma ocasião para conversar. Em “O Ura- a seguir para responder à questão.
guai“, de Basílio da Gama, o narrador apro-
veita o banquete dos oficiais, que se segue ao
desfile das tropas portuguesas, no Canto I,
para apresentar as causas da guerra, confor-
me mostra o excerto a seguir.
[...]
Convida o General depois da mostra,
Pago da militar guerreira imagem,
Os seus e os espanhóis; e já recebe
No pavilhão purpúreo, em largo giro,
Os capitães a alegre e rica mesa.
Desterram-se os cuidados, derramando Vinha logo de guardas rodeado
Os vinhos europeus nas taças de ouro. Fonte de crimes, militar tesouro,
Ao som da 1ebúrnea cítara sonora Por quem deixa no rego o curto arado
Arrebatado de furor divino O lavrador, que não conhece a glória;
Do seu herói, Matúsio celebrava E vendendo a vil preço o sangue e a vida
Altas empresas dignas de memória. Move, e nem sabe por que move a guerra.
[…] (GAMA, Basílio da. O Uraguai. In: BOSI, Alfredo.
Levantadas as mesas, entretinham História concisa da literatura brasileira.
O congresso de heróis discursos vários. 43. ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 67.)
Ali Catâneo ao General pedia Embora “O Uraguai“ seja considerado a me-
Que do principio lhe dissesse as causas lhor realização épica do Arcadismo brasilei-
Da nova guerra e do fatal tumulto. ro, nota-se, na obra, uma quebra do modelo
(GAMA, Basílio da. O Uraguai. 8. ed.
da epopeia clássica. Em termos de conteúdo,
Rio de Janeiro: Record, 2008.)
1
ebúrnea: relativa ao marfim tanto no trecho quanto na pintura apresen-
tados, essa quebra se evidencia:
A partir da leitura do fragmento, bem como a) pela representação de situações tragicômicas.
da obra a que pertence, assinale verdadeira b) pelo retrato de episódios de bravura e hero-
(V) ou falsa (F) em cada afirmativa a seguir. ísmo.
( ) Ao introduzir, no Canto I, as causas da c) pela alusão a heróis mitológicos da Grécia
guerra, percebe-se a preocupação do nar- antiga.
rador em contar a história respeitando a d) pelo questionamento da guerra como algo
ordem cronológica dos eventos, o que se positivo.
dá desde o início do poema.
( ) A guerra, cujas causas são inquiridas por
3. (UCS) Sabendo que o gênero lírico se caracte-
Catâneo, ocupara grande parte do relato,
riza pela expressão subjetiva, representando
o que confere a obra seu tom épico, ain-
a interioridade do sujeito poético, enquanto
da que certas passagens de “O Uraguai“
o gênero épico é objetivo, expressando predo-
também apresentem traços de puro liris-
minantemente, sob forma narrativa, um epi-
mo.
sódio heroico, pode-se dizer que são épicas as
( ) O poema e todo composto em versos de-
seguintes obras do Arcadismo no Brasil:
cassílabos brancos, predominantemente
a) Vila Rica, de Claudio Manuel da Costa; Cartas
de ritmo heroico, como se pode ver clara-
chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga; e Glau-
mente no excerto.
ra, de Silva Alvarenga.
( ) A glorificação do general Gomes Freire de
b) Marília de Dirceu e Cartas chilenas, de Tomás
Andrade no excerto evidencia que ele e
Antônio Gonzaga; e Caramuru, de Santa Rita
o herói do poema, símbolo da civilização
Durão.
europeia que chega aos Sete Povos e que
c) O Uraguai, de Basílio da Gama; Prosopopeia,
se contrapõe aos indígenas, apresentados
de Bento Teixeira; e Caramuru, de Santa Rita
no poema como selvagens, sem quaisquer
Durão.
qualidades heroicas.
d) Obras poéticas e Vila Rica, de Cláudio Manuel
A sequência correta é: da Costa; e Cartas chilenas, de Tomás Antô-
a) F V V F nio Gonzaga.
b) V V F F e) O Uraguai, de Basílio da Gama; Caramuru,
c) V F F V de Santa Rita Durão; e Vila Rica, de Cláudio
d) F F V F Manuel da Costa.
e) V F V V
15
4. (UFSM) Em “O Uraguai“, Basílio da Gama si- ( ) A análise formal dos versos confirma que
tua a ação em um cenário até então pouco Basílio da Gama imita fielmente a epo-
retratado na literatura brasileira: o sul do peia clássica, representada pelo modelo
Brasil. Ali, portugueses, espanhóis e gua- vernáculo da época: Os lusíadas, de Ca-
ranis serão personagens de uma batalha de mões.
final trágico para os últimos. Assim, sobre as ( ) A valorização do índio e da natureza bra-
personagens de “O Uraguai“, é correto afir- sileira corresponde aos ideais iluministas
mar que: e árcades da vida primitiva e natural e
a) o padre Balda é retratado como um vilão, prenuncia uma tendência da literatura
como se pode perceber na sua maquinação romântica: o nativismo.
para a morte de Sepé, cujo objetivo era alçar A sequência correta é:
Baldetta ao posto de líder indígena. a) F V F V V
b) o irmão Patusca é representado satiricamen- b) F F V V V
te na obra como guloso e covarde, o que apa- c) V V V F V
rece claramente ao final da história, quando d) V F V F F
é surpreendido pelos soldados enquanto fu- e) V F F F V
gia da aldeia destruída.
c) Tanajura é uma velha feiticeira que revela o 6. (Ufrgs) Considere as seguintes afirmações
futuro para Lindoia, momento em que a jovem sobre “O Uraguai“, de Basílio da Gama.
indígena descobre que morreria em breve.
d) o general Gomes Freire de Andrade é o herói I. Sepé, de modo desafiador, Cacambo, mais
do poema, impondo a vontade do rei de Por- diplomático, encontram-se, antes da bata-
tugal a todo custo, sem procurar uma saída lha, com o general Andrade que os acon-
que evitasse a chacina dos indígenas. selha a respeitar a autoridade da Coroa.
e) Cacambo tem um sonho em que o espírito de II. Eufórico, o general Andrade, líder das
Sepé ordena-lhe que incendeie a aldeia para tropas luso-espanholas, extravasa sua
que se afaste o inimigo, dando tempo para a emoção celebrando, depois da batalha, a
fuga dos indígenas. morte de Sepé.
III.Cacambo, tendo tido uma visão na qual
Sepé aparecia transtornado ao lado de
5. (UFSM) A luta é um dos assuntos preferidos
Lindoia desfalecida, incendeia o acam-
da literatura épica. Leia o seguinte trecho
pamento das tropas inimigas durante a
do poema épico “O Uraguai“, de Basílio da
batalha.
Gama, que trata desse assunto:
Quais estão corretas?
Tatu-Guaçu mais forte na desgraça
a) Apenas I.
Já banhado em seu sangue pretendia
b) Apenas II.
Por seu braço ele só pôr termo à guerra.
c) Apenas III.
Caitutu de outra parte altivo e forte
d) Apenas II e III.
Opunha o peito à fúria do inimigo,
e) I, II e III.
E servia de muro à sua gente.
Fez proezas Sepé naquele dia.
Conhecido de todos, no perigo 7. (Ufrgs) Assinale a afirmativa incorreta em
Mostrava descoberto o rosto e o peito relação à obra “O Uraguai“, de Basílio da
Forçando os seus co'exemplo e co'as palavras. Gama.
a) O poema narra a expedição de Gomes Freire
Assinale verdadeira (V) ou falsa (F) em cada
de Andrada, governador do Rio de Janeiro,
uma das afirmações relacionadas com “O
às missões jesuíticas espanholas da banda
Uraguai“.
oriental do rio Uruguai.
( ) O assunto de “O Uraguai“ é a expedição
b) “O Uraguai“ segue os padrões estéticos dos
mista de portugueses e espanhóis contra
poemas épicos da tradição ocidental, como a
as missões jesuíticas do Rio Grande do
“Odisseia“, a “Eneida“ e “Os lusíadas“.
Sul, para executar as cláusulas do tratado
c) Basílio da Gama expressa uma visão euro-
de Madrid, em 1756.
peia em relação aos indígenas, acentuando
( ) Mesmo se posicionando favoravelmente
seu caráter bárbaro, incapaz de sentimentos
aos vencedores europeus, o narrador de
nobres e humanitários.
“O Uraguai“ deixa perceber, em passa-
d) Nas figuras de Cacambo e Sepé Tiaraju está
gens como a citada, sua simpatia e admi-
representando o povo autóctone que defen-
ração pelo povo indígena.
de o solo natal.
( ) No fragmento referido, Tatu-Guaçu, Sepé
e) Lindoia, única figura feminina do poema,
e Caitutu têm exaltadas suas forças físi-
morre de amor após o desaparecimento de
cas e morais, lembrando os heróis épicos
seu amado Cacambo.
da antiguidade.

16
TEXTO PARA AS PRÓXIMAS DUAS QUESTÕES Lá reclinada, como que dormia,
CANTO II Na branda relva, e nas mimosas flores,
(...) Tinha a face na mão, e a mão no tronco
Prosseguia talvez; mas o interrompe De um fúnebre cipreste, que espalhava
Sepé, que entra no meio, e diz: — “Cacambo Melancólica sombra. Mais de perto
Fez mais do que devia; e todos sabem Descobrem que se enrola no seu corpo
Que estas terras, que pisas, o céu livres Verde serpente, e lhe passeia, e cinge
Deu aos nossos avós; nós também livres Pescoço, e braços, e lhe lambe o seio.
As recebemos dos antepassados. Fogem de a ver assim sobressaltados,
Livres as hão de herdar os nossos filhos. E param cheios de temor ao longe;
Desconhecemos, detestamos jugo E nem se atrevem a chamá-la, e temem
Que não seja o do céu, por mão dos padres. Que desperte assustada, e irrite o monstro,
As frechas partirão nossas contendas E fuja, e apresse no fugir a morte.
Dentro de pouco tempo; e o vosso Mundo, (BASÍLIO DA GAMA, José. O Uraguai. Rio de Janeiro:
Public. da Academia Brasileira, 1941, p. 78-79.)
Se nele um resto houver de humanidade,
Julgará entre nós: se defendemos CARAMURU (Canto VI, Estrofe XLII)
– Tu a injustiça, e nós o Deus e a Pátria. – Perde o lume dos olhos, pasma e treme,
Enfim quereis a guerra, e tereis guerra.“ Pálida a cor, o aspecto moribundo,
Lhe torna o General. – “Podeis partir-vos, Com mão já sem vigor, soltando o leme,
Que tendes livre o passo.“ (...) Entre as salsas escumas desce ao fundo.
(O Uraguai, Basílio da Gama) Mas na onda do mar, que irado freme,
Tornando a aparecer desde o profundo:
“Ah Diogo cruel!“ disse com mágoa,
8. (Ufrgs adaptada) Segundo Sepé, em “O Ura- E, sem mais vista ser, sorveu-se n'água.
guai“: (SANTA RITA DURÃO, Fr. José de. Caramuru.
a) os índios receberam a liberdade do céu e de São Paulo: Edições Cultura, 1945, p. 149.)
seus antepassados para que se associassem
ao empreendimento colonial de Portugal e Os textos apresentados correspondem, res-
Espanha. pectivamente, a fragmentos marcantes dos
b) os índios recusam-se a lutar pelos padres poemas épicos “O Uraguai“ (1769), de Basí-
cujo domínio causou as hostilidades com as lio da Gama, e “Caramuru“ (1781), de Santa
coroas portuguesa e espanhola. Rita Durão, poetas neoclássicos brasileiros.
c) os índios pretendem legar aos filhos as ter- No primeiro, a índia Lindoia, infeliz com a
ras livres que receberam de seus avós, os morte do marido Cacambo, deixa-se picar
quais as receberam do céu. por uma serpente, e falece. No segundo, en-
d) os índios protestam contra o jugo do céu foca-se a índia Moema que, ao ver partir seu
cujos representantes na terra são os padres amado Diogo Álvares, segue a embarcação a
responsáveis pela conversão e catequese. nado e se deixa morrer afogada. Releia os
e) pretendem lutar aguerridamente contra a textos e, a seguir:
injustiça representada pelo Deus e pela pá- a) aponte o componente nacionalista de ambos
tria dos adversários. os poemas que prenuncia uma das linhas te-
máticas mais características do Romantismo
brasileiro; e
9. (Ufrgs adaptada) Sobre o discurso de Sepé, é
b) cite dois escritores românticos brasileiros
correto afirmar que nele se percebe:
que se utilizaram dessa linha temática.
a) o espírito conciliatório de quem busca esta-
belecer a paz.
b) a hostilidade de quem considera inevitável a
guerra. GABARITO
c) a arrogância de quem afirma estar mais bem
armado do que o inimigo.
d) a indulgência com que serão tratados os pri- 1. A 2. D 3. E 4. B 5. C
sioneiros de guerra. 6. A 7. C 8. C 9. B
e) a simpatia votada à causa do inimigo que
defende Deus e pátria. 10.
a) A figura do índio.
10. (Unesp) b) José de Alencar e Gonçalves Dias.
O URAGUAI (fragmento do Canto IV)
Este lugar delicioso, e triste,
Cansada de viver, linha escolhido
Para morrer a mísera Lindoia.

17
L C
Últimos cantos

Obras

Gonçalves Dias

L C
ENTRE ASPAS
GONÇALVES DIAS

Gonçalves Dias (1823-1864) foi poeta e teatrólogo brasileiro. É lembrado como o grande poeta indianista da ge-
ração romântica. Deu romantismo ao tema do índio e uma feição nacional à sua literatura. É lembrado como um
dos melhores poetas líricos da literatura brasileira. É patrono da cadeira nº 15 da Academia Brasileira de Letras.
Nasceu nos arredores de Caxias, no Maranhão. Filho de um comerciante português e de uma mestiça,
iniciou seus estudos no Maranhão e, ainda jovem, viajou para Portugal. Em 1838, ingressou no Colégio das Artes,
em Coimbra, onde concluiu o curso secundário. Em 1840, ingressou na Universidade de Direito de Coimbra, onde
teve contato com escritores do Romantismo português, entre eles, Almeida Garret, Alexandre Herculano e Felicia-
no de Castilho. Ainda em Coimbra, em 1843, escreve seu famoso poema “Canção do exílio“, no qual expressa o
sentimento da solidão e do exílio.
Voltou ao Maranhão em 1845, depois de formado em Direito. Ocupou vários cargos no governo imperial e
realizou diversas viagens à Europa. Foi para o Rio de Janeiro em 1846 e, em 1847, publicou o livro Primeiros cantos,
que recebeu elogios de Alexandre Herculano, poeta romântico português. Ao apresentar o livro, Gonçalves Dias
confessou: “Dei o nome Primeiros cantos às poesias que agora publico, porque espero que não sejam as últimas“.
Em 1848, publicou o livro Segundos cantos.

Em 1849, foi nomeado professor de Latim e História do Brasil no Colégio Pedro II. Durante esse período,
escreveu para várias publicações, entre elas, o Jornal do Comércio, a Gazeta Mercantil e para o Correio da Tarde.
Fundou a Revista Literária Guanabara. Publicou, em 1851, o livro Últimos cantos. Regressou ao Maranhão e co-
nheceu Ana Amélia Ferreira do Vale, por quem se apaixonou. Por ser mestiço, a família de Ana Amélia proibiu o
casamento. Mais tarde, casou-se com Olímpia da Costa.

21
Gonçalves Dias exerceu o cargo de oficial da serem exploradas, entre as quais o indianismo, o re-
Secretaria de Negócios Estrangeiros, foi várias vezes gionalismo, a pesquisa histórica, folclórica e linguística,
à Europa e, em 1854, em Portugal, encontrou-se com além da crítica aos problemas nacionais – todas pos-
Ana Amélia, já casada. Esse encontro inspirou o poeta turas comprometidas com o projeto de construção de
a escrever o poema “Ainda uma vez – Adeus!“. uma identidade nacional.
Em 1862, viajou à Europa para tratamento de A publicação da obra Suspiros poéticos e sau-
saúde. Sem resultados, embarcou de volta no dia 10 dades (1836), de Gonçalves de Magalhães, tem sido
de setembro de 1864. No dia 3 de novembro, o navio considerada o marco inicial do Romantismo no Brasil.
francês Ville de Boulogne, no qual estava, naufragou A importância dessa obra, porém, reside muito mais
perto do farol de Itacolomi, na costa do Maranhão, nas novidades teóricas de seu prólogo, em que Maga-
onde o poeta faleceu. lhães anuncia a revolução literária romântica, do que
propriamente na execução dessas teorias.

Contexto
Indianismo: primeira
A história do Romantismo no Brasil se confunde com geração poética
a própria história política brasileira da primeira metade
do século XIX. Com a invasão de Portugal por Napo-
leão, a coroa portuguesa se mudou para o Brasil, em
1808, e elevou a colônia à categoria de Reino Unido,
ao lado de Portugal e Algarves. Como decorrência des-
se fato, a colônia passou por uma série de mudanças,
entre as quais a criação de escolas de nível superior,
a fundação de museus e bibliotecas públicas, a insta-
lação de tipografias e o surgimento de uma imprensa
regular.
Compreendida entre os anos de 1836 e 1852, na pri-
A dinamização da vida cultural da colônia e
meira geração destacam-se os poetas Gonçalves de
a formação de um público leitor (mesmo que inicial-
Magalhães e Gonçalves Dias.
mente só de jornais) criaram algumas das condições
O nacionalismo e o patriotismo são predomi-
necessárias para o surgimento de uma produção literá-
nantes nessa geração, que exalta aspectos caracterís-
ria mais consistente do que as manifestações literárias
ticos da paisagem tropical. Há uma tendência para o
dos séculos XVII e XVIII.
realce das coisas típicas do exotismo e da beleza natu-
Com a independência política, ocorrida em
ral, exuberante, em oposição à paisagem e à natureza
1822, os intelectuais e artistas da época passaram a
europeias.
dedicar-se ao projeto de criar uma cultura brasileira
Nas obras de Gonçalves Dias e Gonçalves de
identificada com as raízes históricas, linguísticas e cul-
Magalhães, o indígena é encarado como elemento for-
turais do país.
mador do povo brasileiro.
O Romantismo, além de seu significado primei-
A poesia dessa geração romântica é identifica-
ro – o de ser uma reação à tradição clássica – assumiu
da por uma forte religiosidade, com predominância do
em nossa literatura a conotação de movimento antico-
catolicismo, em oposição ao “paganismo” da poesia
lonialista e antilusitano, ou seja, de rejeição à literatura
neoclássica ligada à tradição greco-latina, e também
produzida na época colonial, em virtude do apego des-
pelo caráter amoroso, fortemente sentimental, fruto de
sa produção aos modelos culturais portugueses.
relativa influência da lírica portuguesa, a medieval, a
Portanto, um dos traços essenciais de nosso
camoniana e a dos românticos de Garrett, principal-
Romantismo é o nacionalismo, que, orientando o mo-
mente.
vimento, abriu-lhe um rico leque de possibilidades a

22
ÚLTIMOS CANTOS ƒ Poesias americanas
ƒ Poesias diversas
ƒ Hinos

Poesia indianista

Auguste François Biard, Dois índios numa canoa (1798-1882)


Sobre este livro em especial, seu próprio nome, Paris, Museu do Quai Branly
Últimos cantos, parece aludir a uma fase de transição.
Nele, estão colocados alguns poemas indianistas já Durante o Romantismo, os indígenas foram conside-
conhecidos do livro Poesias americanas, como “I-Juca- rados, nas artes, o símbolo da jovem nação brasileira,
-Pirama” e os poemas soltos organizados como Poe- passando a figurar como heróis em diversas obras.
sias diversas. Nessas, encontramos um Gonçalves Dias O indianismo romântico é uma busca de raízes
diferente abordando temas dos mais variados, como nacionais, uma procura no passado histórico brasileiro,
poemas laudatórios. Mas há algumas constantes nes- do mesmo modo como os europeus foram às fontes
ses poemas, como se aludissem às temáticas comuns medievais de sua formação histórica.
das canções trovadorescas, ora lembram as cantigas Na obra de Gonçalves Dias, o indígena aparece
de amigo e de amor, ora apontam para uma percepção como tema renovador já nos Primeiros cantos, esten-
do tempo, uma angústia, uma desilusão com a vida, dendo-se aos Últimos cantos e também ao inacabado
resumindo-a em “nascer, lutar, sofrer”, e no meio disso Os timbiras.
tudo, a ilusão amorosa. O poeta busca o elemento indígena nas flores-
Também já parece refletir algo parecido com tas longínquas, ou, ainda, em memórias de florestas
que viria a ser a profusão do egotismo da geração se- que imagina intocadas, bem antes da aproximação
guinte dos poetas românticos, como Álvares de Azeve- do não indígena; é idealizado, forjado nos moldes do
do, mas diferentemente desses não há o exagero, pois “bom selvagem”, criado por Jean-Jacques Rousseau:
os poemas de Gonçalves Dias são leves, extremamente “O homem nasce bom. A sociedade o corrompe”.
musicais, mesmo quando fala sobre a morte ou a so-
lidão, mas nem por isso deixam de serem profundos e
filosóficos.

Estrutura

Nesta terceira coletânea de poemas, o autor repete a


distribuição dos poemas em grupos adotada nos Pri-
meiros cantos:

23
I-Juca-Pirama Já vi cruas brigas,
De tribos imigas,
Um dos mais conhecidos poemas indianistas é “I-Juca-
E as duras fadigas
-Pirama“, cujo título significa, na língua tupi, “o que é
Da guerra provei;
digno de ser morto”.
Nas ondas mendaces
O narrador do poema é o chefe da tribo timbira,
Senti pelas faces
que conta aos jovens timbiras o drama do último des-
Os silvos fugaces
cendente da tribo tupi, feito prisioneiro dos timbiras.
Dos ventos que amei.
O guerreiro tupi seria sacrificado e devorado
numa festa canibal, mas pelo amor ao pai, já velho e Andei longes terras,
cego, o prisioneiro implora ao chefe dos timbiras que Lidei cruas guerras,
o liberte para cuidar do pai. Julgando-o um covarde, o Vaguei pelas serras
chefe timbira desiste do sacrifício e solta o prisioneiro. Dos vis Aimorés;
O jovem tupi reencontra-se com o pai. Este des- Vi lutas de bravos,
cobre, por meio dos odores da tinta específica do ritual Vi fortes – escravos!
canibalesco timbira, que o filho estivera preso. Indigna- De estranhos ignavos
do com o filho, amaldiçoa-o violentamente. Calçados aos pés.
Ferido em seu orgulho, o jovem tupi põe-se so- [...]
zinho a lutar contra os timbiras até a morte, conven-
Aos golpes do inimigo
cendo a todos de sua coragem e bravura, preservando,
Meu último amigo,
dessa forma, a honra e a dignidade dos tupis.
Sem lar, sem abrigo
Leia o Canto IV do poema “I-Juca-Pirama“, em
Caiu junto a mi!
que o narrador cede a voz ao índio tupi, que declama o
Com plácido rosto,
seu canto de morte, pedindo aos timbiras que o liber-
Sereno e composto,
tem para cuidar do pai velho e cego.
O acerbo desgosto
Comigo sofri.
Meu pai a meu lado
Já cego e quebrado,
De penas ralado,
Firmava-se em mi:
Nós ambos, mesquinhos,
Meu canto de morte, Por ínvios caminhos,
Guerreiro, ouvi; Cobertos d’espinhos
Sou filho das selvas, Chegamos aqui
Nas selvas cresci; O velho no entanto
Guerreiros, descendo Sofrendo já tanto
Da tribo Tupi. De fome e quebranto,
Da tribo pujante, Só qu’ria morrer!
Que agora anda errante Não mais me contenho,
Por fado inconstante, Nas matas me embrenho,
Guerreiros, nasci; Das frechas que tenho
Sou bravo, sou forte, Me quero valer.
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiro, ouvi.

24
Do pranto que choro;
Se a vida deploro
Também sei morrer.

Então, forasteiro,
Cai prisioneiro Apesar de ter uma fama narrativa que configu-
De um troço guerreiro ra o gênero épico e um conteúdo dramatizável, pre-
Com que me encontrei: domina no poema o gênero lírico – um lirismo fácil e
O cru dessossego espontâneo, perpassado das emoções e subjetividade
Do pai fraco e cego, do poeta. Como é próprio do Romantismo, estilo a que
Enquanto não chego, está ligado Gonçalves Dias, é um lirismo que brota do
Qual seja – dizei! coração e da “imaginação criadora” do poeta e que
Eu era o seu guia expressa bem o sentimentalismo romântico. A obra é
Na noite sombria, indianista e vale ressaltar a musicalidade dos versos
A só alegria que é uma característica típica de Gonçalves Dias.
Que Deus lhe deixou: O poema “I-Juca-Pirama“ nos dá uma visão
Em mim se apoiava, mais próxima do índio, ligado aos seus costumes, ide-
Em mim se firmava, alizado e moldado ao gosto romântico. O índio inte-
Em mim descansava, grado ao ambiente natural e, principalmente, adequa-
Que filho lhe sou. do a um sentimento de honra, reflete o pensamento
ocidental de honra tão típico das novelas de cavalaria
Ao velho coitado medievais – é o caso do texto “Rei Arthur e a távola
De penas ralado, redonda“. Se os europeus podiam encontrar na ida-
Já cego e quebrado, de média as origens da nacionalidade, o mesmo não
Que resta? – Morrer. aconteceu com os brasileiros. Provavelmente por essa
Enquanto descreve razão, a volta ao passado, mesclada ao culto do bom
O giro tão breve selvagem, encontra na figura do indígena o símbolo
Da vida que teve, exato e adequado para a realização da pesquisa lírica
Deixa-me viver! e heroica do passado.
Não vil, não ignavo, O índio é então redescoberto, embora sua re-
Mas forte, mas bravo, criação poética dê ideia da redescoberta de uma raça
Serei vosso escravo: que estava adormecida pela tradição e que foi revivida
Aqui virei ter. pelo poeta. O idealismo, a etnografia fantasiada, as si-
Guerreiros, não coro tuações desenvolvidas como episódios da grande ges-

25
ta heroica e trágica da civilização indígena brasileira, Alma, sentidos, coração – abertos
a qual sofre a degradação do branco conquistador e Ao grande, ao belo; é ser capaz d’extremos
colonizador, têm na sua forma e na sua composição re- D’altas virtudes, te capaz de crimes!
flexos da epopeia, da tragédia clássica e dos romances Compreender o infinito, a imensidade,
de gesta da idade média. Assim, o índio que conhece- E a natureza e Deus; gostar dos campos,
mos nos versos bem elaborados de Gonçalves Dias é D’aves, flores, murmúrios solitários;
uma figura poética, um símbolo. Buscar tristeza, a soledade, e ermo,
Gonçalves Dias centra “I-Juca-Pirama“ num E ter o coração em riso e festa;
estado de coisas que ganham uma enorme importân- E à branda festa, ao riso da nossa alma
cia pela inevitável transgressão cometida pelo herói, Fontes de pranto intercalar sem custo;
transgressão de cunho romanesco (o choro diante da Conhecer o prazer e a desventura
morte) que quando transposta a literatura gera uma No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
incrível idealização dos estados de alma. Como exem- O ditoso, o misérrimo dos entes:
plo, podemos citar as reações causadas pelo “suposto Isso é amor, e desse amor se morre!
(“Se se morre de amor”. DIAS, Gonçalves.
medo da morte“. Com isso, o autor transforma a alma Poesia e prosa completa. Op. cit.)
indígena em correlativos dos seus próprios movimen-
tos, sublinhando a afetividade e o choque entre os
afetos: há uma interpenetração de afetos (amor, ódio,
vingança etc.) que estabelece uma harmonia românti-
ca entre o ser que está sendo julgado e a sua natureza
– a natureza indígena, com a consequente preferência
pelas cenas e momentos que correspondem ao teor
das emoções. Daí as avalanches de bravura e de louvor
à honra e ao caráter.

Poesia lírica MARABÁ


Eu vivo sozinha, ninguém me procura!
Acaso feitura
O lirismo amoroso aparece na obra de Gonçalves Dias
Não sou de Tupã!
na forma de baladas, canções, poemas longos, tudo
Se algum dentre os homens de mim não se es-
numa linguagem personalizada e bastante comedida,
conde:
distante da lamúria chorosa que haveria de caracteri-
— “Tu és”, me responde, “Tu és Marabá!”
zar outras gerações românticas.
— Meus olhos são garços, são cor das safiras,
Os temas de sua poesia lírica são abrangentes: — Têm luz das estrelas, têm meigo brilhar;
desde a pátria, a natureza e a grandiosidade divina, — Imitam as nuvens de um céu anilado,
até a solidão, o preconceito e o desacerto amoroso. — As cores imitam das vagas do mar!
O poema a seguir é uma espécie de profissão
Se algum dos guerreiros não foge a meus passos:
de fé a respeito dos limites entre a paixão e o amor,
“Teus olhos são garços”,
apontando diferenças, estabelecendo parâmetros e,
Responde anojado, “mas és Marabá:
enfim, trazendo à tona a emoção com raciocínio.
“Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes,
SE SE MORRE DE AMOR “Uns olhos fulgentes,
Se se morre de amor! – Não, não se morre, “Bem pretos, retintos, não cor d’anajá!”
Quando é fascinação que nos surpreende
— É alvo meu rosto da alvura dos lírios,
[...]
— Da cor das areias batidas do mar;
Amor é vida; é ter constantemente

26
— As aves mais brancas, as conchas mais puras Leia outro poema da obra Últimos cantos:
— Não têm mais alvura, não têm mais brilhar.
LEITO DE FOLHAS VERDES
Se ainda me escuta meus agros delírios: Por que tardas, Jatir, que tanto a custo
— “És alva de lírios”, À voz do meu amor moves teus passos?
Sorrindo responde, “mas és Marabá: Da noite a viração, movendo as folhas,
“Quero antes um rosto de jambo corado, Já nos cimos do bosque rumoreja.
“Um rosto crestado
Eu sob a copa da mangueira altiva
“Do sol do deserto, não flor de cajá.”
Nosso leito gentil cobri zelosa
— Meu colo de leve se encurva engraçado, Com mimoso tapiz de folhas brandas,
— Como hástea pendente do cáctus em flor; Onde o frouxo luar brinca entre flores.
— Mimosa, indolente, resvalo no prado,
Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,
— Como um soluçado suspiro de amor!
Já solta o bogari mais doce aroma!
“Eu amo a estatura flexível! ligera, Como prece de amor, como estas preces,
Qual duma palmeira”, No silêncio da noite o bosque exala.
Então me respondem: “tu és Marabá:
Brilha a lua no céu, brilham estrelas,
“Quero antes o colo da ema orgulhosa,
Correm perfumes no correr da brisa,
Que pisa vaidosa,
A cujo influxo mágico respira-se
“Que as flóreas campinas governa, onde está.”
Um quebranto de amor, melhor que a vida!
— Meus loiros cabelos em ondas se anelam,
A flor que desabrocha ao romper d'alva
— O oiro mais puro não tem seu fulgor;
Um só giro do sol, não mais, vegeta:
— As brisas nos bosques de os ver se enamoram, Eu sou aquela flor que espero ainda
— De os ver tão formosos como um beija-flor! Doce raio do sol que me dê vida.
Mas eles respondem: “Teus longos cabelos,
“São loiros, são belos, Sejam vales ou montes, lago ou terra,
“Mas são anelados, tu és Marabá: Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,
“Quero antes cabelos, bem lisos, corridos, Vai seguindo após ti meu pensamento;
“Cabelos compridos, Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!
“Não cor d’oiro fino, nem cor d’anajá.” Meus olhos outros olhos nunca viram,
E as doces palavras Não sentiram meus lábios outros lábios,
que eu tinha cá dentro Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas
A quem nas direi? A arazoia na cinta me apertaram.
O ramo d’acácia Do tamarindo a flor jaz entreaberta,
na fronte de um homem Já solta o bogari mais doce aroma
Jamais cingirei: Também meu coração, como estas flores,
Jamais um guerreiro da minha arazoia Melhor perfume ao pé da noite exala!
Me desprenderá: Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes
Eu vivo sozinha, chorando mesquinha, À voz do meu amor, que em vão te chama!
Que sou Marabá! Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil
(“Marabá”. In: DIAS, Gonçalves. Poesia e prosa completa) A brisa da manhã sacuda as folhas!
No poema, o poeta filia-se à tradição medieval
das canções de amigo imprimindo-lhe a cor local. No
que diz respeito à estruturação da sonoridade do poe-
ma “Leito de folhas verdes”, a sua métrica se compõe

27
em versos decassílabos com acentos tônicos regulares
nas segunda/terceira, sextas e décimas sílabas, carac-
terizando, assim, o verso heroico.
Na primeira estrofe, o eu lírico feminino anseia
pela volta de seu amado, Jatir, (1º e 2º versos) e ques-
tiona o porquê de sua demora. Note-se que aqui, os
elementos da natureza corroboram a sensação de an-
gústia da mulher (3º e 4º versos).
Na segunda e terceira estrofes, temos o leito
de amor, feito sob a copa da mangueira e feito de fo-
lhas brandas. Aqui, a natureza traduz toda a doçura do
esperado encontro amoroso: mimoso tapiz de folhas
brandas; o frouxo luar brinca entre flores; solta o boga-
ri mais doce aroma.
A espera se prolonga e a angústia cresce, como
evidencia a metáfora contida nos versos 4º e 5º da 5ª
estrofe: Eu sou aquela flor que espero ainda/ Doce raio
do sol que me dê vida. Ela é a flor que depende dos
raios de sol (a presença do amado) para viver.
A 6ª estrofe evidencia a idealização do amor,
que vence todos os obstáculos (versos 1 e 2). Da mes-
ma forma, é idealizada a figura feminina que devota
total fidelidade ao seu homem, conforme observamos
na 7ª estrofe.
Na última estrofe, temos a desilusão do eu líri-
co. Com a chegada da manhã, a esperança e a expec-
tativa dão lugar à decepção e à tristeza, pois Jatir não
responde ao seu chamado. Pede então que a brisa da
manhã leve consigo as folhas do leito inútil.
Os versos presentes nessa estrofe representam
uma metáfora dos sentimentos e das emoções do “eu
poético”, tendo em vista que, ao amanhecer, as flores
que durante a noite exalavam um forte perfume, neste
momento, seu perfume já não tem a mesma intensi-
dade, ou seja, podemos comparar a intensidade do
aroma noturno com os sentimentos da amada. Isto é,
as esperanças que, durante a noite, fortaleciam seu co-
ração estão se desfazendo, contrastando com as espe-
ranças que ela nutria ainda durante a noite, momento
em que seu coração se sentia mais esperançoso e forte,
tal qual o perfume das flores.
Em “Leito de folhas verdes”, temos, portanto,
uma síntese dos elementos mais caros à tradição ro-
mântica: o sentimentalismo, a idealização amorosa, a
idealização da figura feminina, a natureza expressiva,
o medievalismo e o nacionalismo (de matiz indianista).

28
APROFUNDE SEUS CONHECIMENTOS
TEXTO PARA AS QUESTÕES 01 A 09 2. Sugere que a natureza se prepara para a che-
LEITO DE FOLHAS VERDES gada de Jatir o verso:
Por que tardas, Jatir, que tanto a custo a) “Eu sob a copa da mangueira altiva”.
À voz do meu amor moves teus passos? b) “A arazoia na cinta me apertaram”.
Da noite a viração, movendo as folhas, c) “Já solta o bogari mais doce aroma!”.
Já nos cimos do bosque rumoreja. d) “Um quebranto de amor, melhor que a vida!”.

Eu sob a copa da mangueira altiva


3. O eu lírico do texto tem por interlocutor:
Nosso leito gentil cobri zelosa
a) o leitor.
Com mimoso tapiz de folhas brandas,
b) Jatir.
Onde o frouxo luar brinca entre flores.
c) Tupã.
Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco, d) a natureza.
Já solta o bogari mais doce aroma!
Como prece de amor, como estas preces, 4. Revela o elemento tempo no poema o verso:
No silêncio da noite o bosque exala. a) “Onde o frouxo luar brinca entre flores”.
Brilha a lua no céu, brilham estrelas, b) “Sejam vales ou montes, lago ou terra”.
Correm perfumes no correr da brisa, c) “A cujo influxo mágico respira-se”.
A cujo influxo mágico respira-se d) “Correm perfumes no correr da brisa”.
Um quebranto de amor, melhor que a vida!
5. Nos versos “Eu sou aquela flor que espero
A flor que desabrocha ao romper d’alva ainda/ doce raio do sol que me dê vida”, te-
Um só giro do sol, não mais, vegeta:
mos:
Eu sou aquela flor que espero ainda
a) um eufemismo.
Doce raio do sol que me dê vida.
b) uma hipérbole.
Sejam vales ou montes, lago ou terra, c) uma metáfora.
Onde quer que tu vás, ou dia ou noite, d) um pleonasmo.
Vai seguindo após ti meu pensamento;
Outro amor nunca tive; és meu, sou tua! 6. Uma das passagens do poema na qual fica cla-
Meus olhos outros olhos nunca viram, ro que o eu lírico trata-se de uma mulher é:
Não sentiram meus lábios outros lábios, a) “Nosso leito gentil cobri zelosa”.
Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas b) “À voz do meu amor moves teus passos?”.
A arazoia na cinta me apertaram. c) “Onde quer que tu vás, ou dia ou noite”.
d) “À voz do meu amor, que em vão te chama!”.
Do tamarindo a flor jaz entreaberta,
Já solta o bogari mais doce aroma 7. Que referências no poema nos fazem con-
Também meu coração, como estas flores, cluir que o eu lírico trata-se de uma moça
Melhor perfume ao pé da noite exala! indígena?
Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes a) viração, bosque
À voz do meu amor, que em vão te chama! b) leito, tamarindo
Tupã! lá rompe o sol! Do leito inútil c) quebranto, brisa
A brisa da manhã sacuda as folhas! d) arazoia, Tupã
(Gonçalves Dias)
8. No decorrer do poema, o eu lírico expressa
um sentimento de:
1. A informação principal do texto é: a) impaciência.
a) a certeza do eu lírico a cerca do amor de b) decepção.
Jatir e da brevidade de seu retorno. c) expectativa.
b) a confirmação de que o amor do eu lírico por d) irritação.
Jatir vence distância e obstáculos.
c) o eu lírico está a espera de seu amado sem 9. “Por que tardas, Jatir, que tanto a custo? À
qualquer esperança de sua chegada. voz do meu amor moves teus passos?”, a ex-
d) o retorno do amado é aguardado não só pela pressão destacada da ideia de:
amada como também pela natureza. a) causa.
b) consequência.
c) modo.
d) tempo.

29
10. (UFPR 2017) Sobre o livro de poesia Últimos Ação tão nobre vos honra,
cantos, de Gonçalves Dias, considere as se- Nem tão alta cortesia
guintes afirmativas: Vi eu jamais praticada
I. A métrica em “I-Juca-Pirama” é variável Entre os Tupis – e mas foram
e tem conexão com a progressão dos fatos Senhores em gentileza.
narrados, o que permite dizer que o ritmo (I-Juca-Pirama)
se ajusta às reviravoltas da narrativa.
II. “Leito de folhas verdes” e “Marabá” te- Os excertos dos poemas anteriormente indi-
matizam a miscigenação brasileira ao cados, dos Últimos cantos, exemplificam esta
apresentarem dois casais inter-raciais. afirmação sobre a poesia de Gonçalves Dias:
III.A “Canção do tamoio” apresenta o relato a) A contemplação da natureza leva à expres-
de feitos heroicos específicos desse povo são de convicções religiosas, assim como os
para exaltar a coragem humana. valores cristãos sobrepõem-se sutilmente à
IV. O poema “Hagaar no deserto” recria um rudeza da vida selvagem.
b) Não se distingue a donzela branca da aman-
episódio bíblico e apresenta uma escrava
te indígena, tanto quanto não se opõe a
escolhida por Deus para ser mãe de Isma-
bravura do índio à bravura de um cavaleiro
el, o patriarca do povo árabe.
medieval.
Assinale a alternativa correta. c) O amor da índia espelha a força da própria
a) Somente as afirmativas I e III são verdadei- natureza, mas código de conduta dos guer-
ras. reiros indígenas reflete os valores dos fidal-
b) Somente as afirmativas II e III são verdadei- gos medievais.
ras. d) A sublimação do amor implica a idealização
c) Somente as afirmativas I e IV são verdadei- da morte, assim como o código de conduta
ras. dos guerreiros indígenas idealiza os valores
d) Somente as afirmativas I, II e IV são verda- dos fidalgos medievais.
deiras. e) O amor da índia espelha a força da própria
e) Somente as afirmativas II, III e IV são verda- Natureza, tanto quanto se apresentam com
deiras. naturais e próprios os valores de conduta do
guerreiro indígena.
11. (Ufrrj) I-Juca-Pirama

GABARITO
Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és! 1. D 2. C 3. B 4. A 5. C
DIAS, Gonçalves. Últimos cantos. In: REBELO,
M. (Org.). Antologia escolar brasileira. Rio de 6. A 7. D 8. C 9. D 10. C
Janeiro: MEC/Fename, 1967, p. 276.
11. A 12. C
Nos versos do poema acima, vê-se a indigna-
ção do velho índio tupi, ao saber que o filho
pedira aos inimigos aimorés que lhe poupas-
sem a vida.
Neles, Gonçalves Dias apresenta um dos tra-
ços mais caros ao Romantismo, que é o:
a) culto a valores heroicos, como herança da
era medieval.
b) subjetivismo que se revela através da poesia
em primeira pessoa.
c) gosto pelas metáforas.
d) escapismo, que faz o romântico criar um
mundo próprio e idealizado.
e) gosto pelo mistério, que se traduz num ma-
soquismo.

12. (PUC-Camp)
Do tamarindo a flor jaz entreaberta,
Já solta o bogari mais doce aroma;
Também meu coração, como estas flores,
Melhor perfume ao pé da noite exala!
(Leito de folhas verdes)

30
L C
Casa de Pensão

Obras

Aluísio de Azevedo

L C
OBRAS
ALUÍSIO DE AZEVEDO

O cortiço é sem dúvida a obra que fundamenta uma tendência literária chamada de Naturalismo no Brasil.
Essa tendência tem início no Brasil com a publicação de O mulato, de Aluísio Azevedo, no ano de 1881, no entan-
to, é O cortiço que engloba todas as características necessárias para compor o chamado “romance de tese” e os
pressupostos cientificistas característicos do final da segunda metade do século XIX.

Em O Cortiço, a história gira em torno de dois portugueses, Miranda e João Romão, a princípio um contra-
ponto entre a riqueza luxuosa do primeiro e a miséria e avareza do segundo. Os caminhos de João Romão para
atingir o mesmo plano econômico serão aterradores. Além disso, ele vai buscar também uma ascensão social.
Romão não vai medir esforços e escrúpulos para tal. Este é o viés naturalista em questão, ou seja, um mundo de
atitudes que pensam no fim sem se preocupar com os meios em uma conduta justificável, que trata a visão realista
das obras naturalistas. João Romão é fruto do meio em que luta severamente para sobreviver e prosperar, e atro-
pela todos que atravessassem seu caminho.

Aluísio Azevedo segue o molde de Eça de Queirós ou de Zola por trazer como técnica as minúcias da descri-
ção, a precisão analítica e a crítica social. Além disso, o autor trabalha com versatilidade no emprego dos diálogos,
fisiologismo, traduzindo como eram os ambientes dos cortiços cariocas do final do século XIX. Espaços estes, onde
a degradação de maneira tensa culmina em desfechos mortais, por ciúmes ou atração sexual.

A classe baixa e humilde da sociedade e a classe em ascensão são reunidas em agrupamentos humanos. O
próprio cortiço é colocado com um personagem central. O espaço se caracteriza como algo de suma importância
para o desenrolar da narrativa, pois vai determinar o comportamento dos personagens. O Cortiço se estrutura em
três espaços distintos, que em consequência determinam o elenco social: o sobrado do Miranda, a venda de João
Romão e o próprio cortiço.

33
Tendência naturalista CASA DE PENSÃO
Naturalismo Baseada em um famoso episódio do Rio de Ja-
neiro, ocorrido na segunda metade da década de 70,
substantivo masculino Casa de Pensão aponta para uma releitura da man-
ƒ condição, estado do que é produzido pela na- chete jornalística que ficou conhecida como Questão
tureza. Cipriano. Na história original, um estudante, em defesa
ƒ . fil doutrina que, negando a existência de es- da honra de sua irmã, assassinou um outro colegial.
feras transcendentes ou metafísicas, integra as Não só na história de Cipriano, mas, também, no ro-
realidades anímicas, espirituais ou forças cria- mance francês Le père Goriot (O pai Goriot), de Balzac,
doras no interior da natureza, concebendo-as podemos encontrar correspondências com a história de
redutíveis ou explicáveis nos termos das leis e Aluísio, já que, em ambas as obras, o principal espaço é
fenômenos do mundo. uma pensão, ambiente determinante de seus persona-
gens. Além disso, é a figura de um estudante em busca
de prestígio social que o foco narrativo acompanha.
Estilo de época e ƒ Foco
estilo individual
Narrado em terceira pessoa, por um narrador
onisciente e onipresente, Casa de Pensão é um ro-
O Naturalismo marca uma oposição ao mundo
mance naturalista que trabalha entre o jornalismo e
idealizado do Romantismo, dando prosseguimento en-
a ficção, entre o romance do sujeito e o romance do
quanto tendência ao Realismo. O trabalho se incumbe espaço. Durante os vinte e dois capítulos de Aluísio de
do materialismo e do cientificismo que analisa as mi- Azevedo, acompanhamos a trajetória de Amâncio, es-
núcias da natureza humana e da sociedade, o determi- tudante que do interior do Maranhão chega ao Rio de
nismo do meio social, da raça e do momento histórico. Janeiro.
Um dos princípios norteadores do trabalho de H. Taine.
Personagens
Contexto
Os personagens, sob nomes fictícios, escondem
pessoas reais:
Casa de Pensão é uma obra do ano de 1884,
publicada em meio ao desenvolvimento das corren- Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos -
tes realistas e naturalistas, debruçando-se mais sobre (João Capistrano da Silva)
a última. Pensar o contexto de publicação da obra é
pensar em um Brasil ainda escravocrata, haja vista que Estudante, acusado de seduzir Amélia. Educa-
a assinatura da Lei Áurea, que oficializou a abolição do severamente pelo pai e pelo professor, mimado pela
da escravidão só aconteceria quatro anos depois. Fica mãe, tem nos acontecimentos da infância a justificativa
naturalista pela personalidade tímida e hipócrita.
evidente, na obra, que o país iniciava os seus processos
de modernização, os centros econômicos e políticos
Amélia ou Amelita - (Júlia Pereira)
deixavam de ser os latifúndios, e passavam a ser então
os sobrados e às áreas urbanas. Em meio ao cenário A moça seduzida, pivô da tragédia. É descrita
de expansão do Rio de Janeiro, Aloísio de Azevedo como uma menina esperta, pouco ingênua, na trama,
compõe a sua obra, tecendo crítica-analítica sobre a é ela quem alega ter sido seduzida para evitar que
sociedade burguesa da qual faz parte. Amâncio voltasse ao Maranhão.

34
Mme. Brizard - (D. Júlia Clara Pereira, "semelhantes". Além disso, carrega o estigma da Sí-
mãe da moça e do rapaz que assasina filis, transmitida a ele pela ama de leite, uma escrava
Amâncio) negra.

É uma viúva, dona da casa de pensão, tem bas- É nesse meandro de descrições bastante espe-
tante interesse no casamento da filha com Amâncio. cíficas, articuladas pelo narrador que tudo vê e tudo
sabe, que se justifica a personalidade da personagem.
João Coqueiro - Janjão - (Antônio Ale- Assim, na fuga da rígida vida, aceita o convite de
xandre Pereira, irmão da moça Júlia João Coqueiro e muda-se para uma pensão (a Casa
Pereira e assassino de João Capistrano)
de Pensão) – vale destacar que um certo envolvimento
amoroso entre Amâncio e a esposa do Sr. Campos co-
É o rapaz irmão de Amélia. De início, devido
meçava a se anunciar no momento dessa decisão. Na
a um jogo de interesses, ajuda Amâncio oferecendo-
pensão, outra vez, o determinismo é posto em jogo,
-lhe um lugar na pensão, tentando casá-lo com a irmã.
uma vez que a pensão é vista como um ambiente
Depois da confusão, torna-se o assassino de Amâncio.
popular, um antro de promiscuidade, responsável por
Alega ter cometido o crime em defesa da honra da fa-
abrigar pessoas marginalizadas e marginalizar aqueles
mília e, no final, é absolvido.
que lá vivem.

Enredo A pensão é administrada por Mme. Brizard,


mãe de João Coqueiro e de Amélia. Esses personagens
Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos é um passam a orbitar Amâncio, pois sabem de sua origem
rapaz de uma família rica do Maranhão que parte para rica, pretendendo, assim, o casamento entre o estu-
o Rio de Janeiro em busca do título de Doutor e de dante maranhense e Amélia. Em meio a esse jogo de
uma liberdade maior em relação ao seio de sua famí- interesses que revela a institucionalização do casa-
lia. Amâncio chega ao Rio de Janeiro com uma série mento, bem como sua instrumentalização em relação
de cartas de recomendações, escritas pelo seu pai e à ascensão social, episódios como a expulsão de jo-
alguns professores, em função disso, de início, acaba se vens mulheres da pensão, já que, na visão de Brizard,
hospedando na casa do Sr. Campos, homem que tem elas poderiam se apresentar como melhores pretendes
gratidão e deve favores ao pai de Amâncio. a Amâncio do que sua filha, desnudam a crítica à ins-
tituição burguesa e exibem o determinismo que ronda
Contudo, a vida proposta pelo tutor Campos a as personagens da pensão maltrapilha.
Amâncio é bastante regrada, já que esse é um homem
sério e respeitado por todos, descrito como um sujeito Nesse tempo, Amélia e Amâncio enamoram-se.
ao mesmo tempo batalhador e sortudo. Amâncio, por Cabe destacar que a moça é descrita no livro de for-
sua vez, carrega em si o estereótipo do estudante, que ma não idealizada, isto é, sem ingenuidade. O enlace
se delicia com os prazeres da vida boêmia agora que entre os dois vai bem, o que agrada a família de Amé-
vive longe dos pais e do ambiente onde desenvolveu lia, que se anima com a ideia do casamento, o qual,
os principais traços de sua personalidade: a hipocri- consequentemente, traria melhores condições de vida
sia. Essa hipocrisia, porém, é vista como um aspecto a a todos, dada a origem nobre do estudante. Contudo, o
exaltar as características Naturalistas do romance, uma casamento não está nos planos de Amâncio, que goza
vez que a personagem entende-se de tal modo devido da liberdade e da vida boêmia, embora dê sinais – lem-
às circunstâncias em que viveu. Assim, como numa in- bremos que lhe foi determinado ser sempre aquilo que
vestigação, parte dos primeiros capítulos é destinada à esperam dele – de que a moça o agrada para tal.
descrição da vida do estudante, do nascimento à mu-
O embate ocorre quando, no Maranhão, seu pai
dança. Muito maltratado pelo pai e pelos professores,
falece. O procedimento então é que ele retorne, para
aprendeu a desconfiar, nas palavras do autor de seus

35
ajudar a mãe e cuidar dos negócios da família. Entre-
tanto, Amélia não o pretende deixar partir, nem João
Coqueiro, que o intima ao casamento antes da ida ao
Maranhão. Amâncio posterga e planeja uma fuga, mas
é descoberto. Para evitar, então, que o estudante parte,
Amélia o acusa de sedução e, antes que pudesse partir,
o jovem é preso.

O caso ganha comoção popular e Amâncio vai


parar no tribunal, do qual é absolvido. O jovem se tor-
na muito popular, inclusive entre as mulheres, e passa
a gozar ainda mais dos prazeres da vida boêmia que
tanto almejou. Todavia, a família de Brizard não está
feliz com a decisão, de modo que, tomado por um im-
pulso de defender a honra da família, João Coqueiro,
munido de um revólver, assassina Amâncio. O jovem
morto tem um enterro, então, espetacularizado e co-
berto pela mídia.

O livro termina com a também absolvição do


assassino, que matou para defender a honra da fa-
mília. Nos últimos capítulos, o autor narra a ida da
mãe de Amâncio ao Rio de Janeiro, em busca do filho,
encontrando-o, porém, apenas em uma foto de jornal,
morto e ensanguentado.

36
APROFUNDE SEUS CONHECIMENTOS
1. A obra "Casa de Pensão" apresenta um viés 7. (Mackenzie) É uma característica da obra de
Naturalista, explique, dando exemplos, de Camilo Castelo Branco:
que maneira o pensamento determinista a) a influência rica em sua poesia de símbolos,
molda a personalidade de Amâncio na tra- imagens alegóricas e construções.
ma. b) a oscilação entre o lirismo e o sarcasmo, dei-
xando páginas de autêntica dramaticidade,
2. Logo de início, Amâncio é hospedado por Sr.
vibrando com personagens que comumente
Campos, devido a um sentimento de gratidão
intervêm no enredo, tecendo comentários
para com o pai do estudante. Essa relação ex-
piedosos, indignados ou sarcásticos.
plicita que patologia da política brasileira?
c) a busca de uma forma adequada para conter
o sentimentalismo do passado e das formas
3. Amâncio é um jovem estudante que parte do românticas.
Maranhão que vai ao Rio de Janeiro em bus- d) o fato de deixar ao mundo um alerta sobre o
ca de um título de Doutor. O que esse movi- mal-estar trazido pela civilização moderna e
mento diz sobre: industrializada.
a) A importância do título de Doutor na socie- e) o apego ao conto como principal realização
dade brasileira? literária, através do qual se tornou um dos
b) A organização social do Brasil no dado mo- autores mais respeitados na literatura por-
mento histórico de publicação do livro? tuguesa.
4. "Casa de Pensão" é um romance naturalista,
outra obra do autor com o mesmo teor é: 8. Amor de perdição é um romance de Camilo
a) Sagarana. Castelo Branco em que a instituição ”famí-
b) Pobre Amor. lia” desempenha um papel decisivo.
c) O cortiço. a) Estabeleça um paralelo entre os papéis exer-
d) Noite na taverna. cidos pela família Albuquerque sobre Teresa
e aqueles exercidos pela família Botelho so-
5. Em relação ao romance "Casa de Pensão" de bre Simão.
Aluísio de Azevedo, é correto afirmar que: b) Nesse romance, um dos tópicos importantes
a) nele, as personagens estabelecem relações é o da relação entre pais e filhos: contraste
campestres e lúdicas, não havendo jogo de as relações que se dão na família de João da
interesses, já que impera a lógica teocêntri- Cruz, por um lado, com as que se dão nas
ca. famílias Botelho e Albuquerque, por outro.
b) na obra, são criticados valores religiosos com
base em teorias psicanalíticas, expressas no 9. Leia com atenção o trecho a seguir, extraído
fluxo de consciência do narrador-persona- do último capítulo de Amor de perdição, de
gem. Camilo Castelo Branco:
c) no texto, mesclam-se ficção e jornalismo, de
”Viram-na, um momento, bracejar, não para
modo que Aluísio de Azevedo nos apresenta
resistir à morte, mas para abraçar-se ao ca-
uma espécie de releitura Naturalista de um
dáver de Simão, que uma onda lhe atirou
fato bastante conhecido no período.
aos braços. O comandante olhou para o sí-
d) no livro, o caráter romântico dá vazão ao
tio donde Mariana se atirara, e viu, enleado
sentimentalismo expresso por Amélia, que,
no cordame, o avental, e à flor da água, um
perdidamente apaixonada, busca somente o
rolo de papéis, que os marujos recolheram
seu grande amor dentro da história.
na lancha.”
6. (Fuvest) Na novela Amor de perdição, de Ca- a) Que relação há, em Amor de perdição, entre
milo Castelo Branco: as personagens Simão e Mariana?
a) Simão ficou indeciso entre o amor de Maria- b) No trecho citado, o narrador menciona um
na e o de Teresa. ”rolo de papéis”. Que papéis são esses?
b) Simão rejeitou a oportunidade que lhe foi c) Considerando as respostas dadas aos itens
oferecida para livrar-se do desterro. [a] e [b], analise a função desempenhada
c) a apresentação do pai e de suas origens jus- pela personagem Mariana na estrutura do
tifica o orgulho que a família de Simão os- romance.
tenta.
d) o autor revela grande respeito pelas institui-
ções religiosas de seu tempo.
e) Ritinha, irmã mais nova de Simão, abando-
nou a família para apoiá-lo em suas dificul-
dades.

37
GABARITO
1. B 2. A 3. C 4 D 5. E
6. B 7. E
8.
a) Os Albuquerque e os Botelho representam
as intrigas familiares marcados pelo ódio
e falta de compreensão. Nesse contexto,
surge o drama amoroso vivido por Teresa
e Simão.
b) As famílias Albuquerque e Botelho são
tradicionalistas e sujeitam as transfor-
mações. A família de João da Cruz, mais
humilde, tem uma relação mais amorosa
com a filha.
9.
a) Mariana ama Simão em segredo mas não
é correspondida.
b) As cartas trocadas entre Simão e Teresa.
c) Ela funciona como elo entre Simão e Te-
resa e simboliza o amor puro e desinte-
ressado.

38
L C
Clara dos Anjos

Obras

Lima Barreto

L C
OBRAS
LIMA BARRETO

Afonso Henrique de Lima Barreto (1881-1922) nasceu no Rio de Janeiro, no dia 13 de maio de 1881, foi escritor
e jornalista. Filho de Joaquim Henriques e Amália Augusta, ambos pobres e mestiços, sofreu esse preconceito em
toda sua vida. Seu pai era tipógrafo e sua mãe, professora primária. Logo cedo, ficou órfão de mãe.
Lima Barreto estudou no Liceu Popular Niteroiense, concluiu o curso secundário no Colégio Pedro II e fez
faculdade de Engenharia na Escola Politécnica. Seu pai enlouqueceu e foi internado, por isso, em 1904, foi obrigado
a abandonar o curso de Engenharia. Para sustentar a família, empregou-se na Secretaria de Guerra e, concomitan-
temente, escrevia para alguns jornais do Rio de Janeiro.
Ainda estudante, já colaborava para a Revista da Época e para a Quinzena Alegre. Em 1905, passou a es-
crever para o Correio da Manhã, que era um jornal de grande prestígio na época.
Lima Barreto publicou o romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, em 1909. O texto acompanha a
trajetória de um jovem mulato que, vindo do interior, sofre sérios preconceitos raciais. Em 1915, escreveu Triste fim
de Policarpo Quaresma e, em 1919, escreveu Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá. Esses três romances apresentam
nítidos traços autobiográficos.
A obra-prima de Lima Barreto, não perturbada pela caricatura, foi Triste fim de Policarpo Quaresma, na qual
o autor conta o drama de um velho aposentado, Policarpo, em sua luta pela salvação do Brasil.

41
Com seu espírito inquieto e rebelde, seu incon- de sua mãe e vai à casa de Cassi esperando “repa-
formismo com a mediocridade reinante, Lima Barreto ração”, mas é maltratada pela mãe do rapaz, que a
se entrega ao álcool. Suas constantes depressões o le- humilha por ser mulata e pobre. Portanto, tudo isso
vam duas vezes para o hospício. Em 1 de novembro de faz com que Clara se dê conta de sua posição na so-
1922, morreu de um ataque cardíaco. ciedade, do lugar da mulher, que é pobre e negra do
subúrbio carioca.

CLARA DOS ANJOS


Estética

O Realismo-Naturalismo, que tanto influenciou Lima


Barreto na composição de Clara dos Anjos, é cientificis-
ta e determinista, considerando que as ações humanas
são produtos de leis naturais: do meio, das caracterís-
ticas hereditárias e do momento histórico. Portanto, os
romances naturalistas procuravam, através da repre-
sentação literária, demonstrar teses extraídas de teo-
Concluído em 1922, ano da morte de Lima Barreto, o rias científicas. Para isso, o Naturalismo buscou compor
romance Clara dos Anjos é uma denúncia áspera do um registro implacável da realidade, incluindo seus as-
preconceito racial e social, vivenciado por Clara, uma pectos repugnantes e grotescos. São exatamente esses
jovem mulata de 17 anos. Ela é filha de Joaquim dos os aspectos que mais chamam a atenção na narrativa
Anjos, carteiro, flautista e casado com Engrácia, dona exagerada de Clara dos Anjos.
de casa. Eles moram em um casebre simples e humilde
que possui dois quartos, sala de jantar e de visitas, co-
zinha, despensa e quintal, situada no subúrbio do Rio Temática
de Janeiro.
A família não frequenta a casa dos outros, ape-
nas a de Antônio da Silva Marramaque, padrinho de
Clara. Possui poucos vizinhos, inclusive alguns deles
eram estrangeiros.
Em seu aniversário, Clara conhece o violeiro
que fora convidado para tocar na festa... Seu nome é
Cassi Jones de Azevedo.
Cassi Jones é branco (a questão racial é pre-
ponderante para o enredo, sobretudo no conjunto da
obra de Lima Barreto), tem vinte e poucos anos e pos- Em Clara dos Anjos, relata-se a estória de uma pobre
sui fama de sedutor. De classe mais abastada, sempre mulata, filha de um carteiro de subúrbio, que apesar
envia cartas de amor a Clara para que ela se apaixone. das cautelas excessivas da família, é iludida, seduzida
Clara acredita na pureza do amor, é ingênua e e, como tantas outras, desprezada, enfim, por um rapaz
frágil e não possui grandes ambições. O plano do rapaz de condição social menos humilde que a sua. É uma
dá certo e ela resolve se entregar a ele. O padrinho de estória na qual se tenta pintar em cores ásperas o dra-
Clara intercede pela afilhada, mas é assassinado por ma de tantas outras moças da mesma cor e do mesmo
Cassi e uns capangas. ambiente. O romancista procurou fazer de sua perso-
Passa o tempo, descobre-se que a moça está nagem uma figura apagada, de natureza “amorfa e
grávida e, logo, Cassi desaparece em fuga. Clara pensa pastosa“, como se nela quisesse resumir a fatalidade
em interromper a gravidez, todavia segue o conselho que persegue tantas criaturas de sua casta.

42
Linguagem Joaquim dos Anjos ainda conhecera a “chácara“
habitada pelos proprietários respectivos; mas, ulti-
Com uma linguagem descuidada, suas obras são im- mamente, eles se tinham retirado para fora e alu-
gado aos “bíblias“... O povo não os via com hos-
pregnadas da justa preocupação com os fatos históri-
tilidade, mesmo alguns humildes homens e pobres
cos e com os costumes sociais. Lima Barreto torna-se
raparigas dos arredores frequentavam-nos, já por
uma espécie de cronista e um caricaturista, vingando- encontrar nisso um sinal de superioridade intelectu-
-se da hostilidade dos escritores e do público burguês. al sobre os seus iguais, já por procurarem, em outra
Poucos aceitam aqueles contos e romances que revela- casa religiosa que não a tradicional, lenitivo para
vam a vida cotidiana das classes populares, sem qual- suas pobres almas alanceadas, além das dores que
seguem toda e qualquer existência humana.
quer idealização.
Produz um tipo de literatura que se distancia E reflete sobre a nova seita:
dos padrões e, por isso, foi muito criticado pelos bele-
tristas tradicionais. As injustiças sociais e as dificulda- Era Shays Quick ou Quick Shays daquela raça curio-
des das primeiras décadas da república são as temáti- sa de yankees fundadores de novas seitas cristãs.
De quando em quando, um cidadão protestante
cas primordiais de suas obras.
dessa raça que deseja a felicidade de nós outros,
na terra e no céu, à luz de uma sua interpretação de
um ou mais versículos da Bíblia, funda uma novíssi-
Espaço ma seita, põe-se a propagá-la e logo encontra dedi-
cados adeptos, os quais não sabem muito bem por
que foram para tal novíssima religiãozinha e qual a
diferença que há entre esta e a de que vieram.

Personagens
ƒ Marrameque
Poeta modesto, semiparalisado, que frequen-
tara uma pequena roda de boêmios e literatos, dizia
ter conhecido Paula Nei e ser amigo pessoal de Luís
Murat.

ƒ Clara, a “natureza elementar”


Tinha 17 anos, era ingênua e fora criada “com
muito desvelo, recato e carinho; e, a não ser com a
mãe ou pai, só saía com dona Margarida, uma viúva
muito séria, que morava nas vizinhanças e ensinava à
Clara bordados e costuras”. Clara era a segunda filha
O romance se passa no subúrbio carioca e Lima Bar-
do casal, “o único filho sobrevivente… Os demais…
reto descreve o ambiente suburbano com riqueza de
Haviam morrido”.
detalhes, como os vários tipos de “casas, casinhas, ca-
sebres, barracões, choças”, e a vida das pessoas que ƒ Cassi, o corruptor
ali vivem. Por intermédio de Lafões, o carteiro Joaquim
Ao descrever o subúrbio, aborda o advento dos passa a receber em casa o pretendente de Clara, Cassi
“bíblias”, os protestantes que alugam uma antiga chá- Jones de Azevedo, que pertencia a uma posição social
cara e passam a conquistar novos fiéis para seu culto: melhor.

43
ƒ Joaquim dos Anjos ƒ Dona Laurentina Jácone
Joaquim é um carteiro que achava ser músico. Figura que gostava de rezar e ficar cuidando
Escreveu algumas valsas, tangos e polcas. das questões da paróquia e da igreja.

ƒ Dona Engrácia ƒ Dona Vicêntina


Era católica romana e trazia seus filhos para a O seu procedimento era inatacável e exercia a
mesma religião. Caracterizava-se por ser caseira, com sua profissão de cartomante com toda a seriedade e
uma boa dose de insegurança e rudeza. convicção.

ƒ Calado ƒ Praxedes Maria dos Santos


Músico e compositor brasileiro. Foi um dos convidados de Joaquim. Era um ho-
mem bom. Ele gostava de ser tratado por doutor Pra-
ƒ Patápio Silva
xedes.
Uma polca sua – “Siri sem unha“ – e uma val-
sa – “Mágoas do coração“ – tiveram algum sucesso, ƒ Etelvina
Etelvina é colega de Clara. Um crioula que no-
a ponto de vender a propriedade de cada uma, por 50
tou a impaciência de Clara, quando Cassi ainda não
mil-réis, a uma casa de música e piano da Rua Ouvidor.
chegou à festa.
ƒ João Pintor
ƒ Leonardo Flores
Era um cidadão que visitava “os bíblias“, aque-
O grande poeta.
les que pregavam o evangelho. Um preto retinto, gros-
sos lábios, malares proeminentes, testa curta, dentes ƒ Velho Valentim
muito bons e muitos claros, longos braços, manoplas Um dos portugueses da história.
enormes, longas pernas e uns tais pés que não havia ƒ Barcelos
calçado. Figura na história de um português fichado na
ƒ Mr. Shays detenção.
É um homem cheio de eloquência bíblica, che- ƒ Arnaldo
fiava uma seita e fazia seus adeptos ouvirem a palavra. Arnaldo é um colega do grupo dos Valdevino
Quando os adeptos sentem-se preparados, põem-se a (grupo de desocupados da turma de Cassi).
propagá-la. ƒ Menezes
ƒ Eduardo Lafões É o dentista da família, que atua como um inter-
Era um homem simplório, que vivia em círculos mediário entre as cartas e bilhetes de Cassi para Clara.
limitados, habituado a ver o valor dos homens nas rou- ƒ Senhor Monção
pas e no parentesco, gostava de assuntos de comércio. Um caixeiro vendedor; Belmiro Bernedes & Cia.
Frequentava, aos domingos, a casa de Joaquim para – “tocava realejo“, era um moço português simpático,
jogar o solo. educado e de bom porte.
ƒ Manuel Borges de Azevedo e ƒ Dona Castolina
Salustiana Baeta de Azevedo É a esposa de Menezes.
São os pais de Cassi. O pai não gostava dos
ƒ Helena
procedimentos do filho, enquanto a mãe cobria-lhe as
Tia de Marramaque, econômica, prendada, cos-
desfeitas com as proteções.
turava para o arsenal do governo.
ƒ Dona Margarida Weber Pestana
ƒ Leopoldo
Dona de uma pensão, Margarida é uma senho- Era marinheiro. Cedo, saiu do seio da família
ra viúva e corajosa. Ela é mãe de Ezequiel. No Brasil, para melhorar de vida. Há 30 anos, não via a família.
casou-se com um tipógrafo, que morreu dois anos após
o casamento.

44
A crítica “reparação do dano”. A mãe do rapaz humilha Clara,
mostrando-se profundamente ofendida porque uma
negra quer se casar com seu filho. Clara “agora é que
tinha a noção exata da sua situação na sociedade.
Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus
melindres de solteira, ouvir os desaforos da mãe do
seu algoz, para se convencer de que ela não era uma
moça como as outras; era muito menos no conceito de
todos”.
O autor representa, na figura de Clara e no seu
drama, a condição social da mulher, pobre e negra, ge-
ração após geração. No final do romance, consciente e
lúcida, Clara reflete sobre a sua situação:

O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais,


era educar o caráter, revestir-se de vontade, como
possuía essa varonil dona Margarida, para se de-
Lima Barreto claramente não gostava da influência dos fender de Cassi e semelhantes, e bater-se contra to-
EUA no Brasil, especialmente critica as “novas seitas dos os que se opusessem, por este ou aquele modo,
cristãs”. contra a elevação dela, social e moralmente. Nada
Como colocou Antônio Arnoni Prado sobre o a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a
tom profético: covardia com que elas o admitiam...

O autor de Clara dos Anjos interessou-se pelos Es-


No final do livro, especialmente na cena final,
tados Unidos, em virtude do tratamento desuma-
no que este país dispensava aos seus cidadãos de
ao relatar o que se passara na casa da família de Cassi
cor. (...) Censurou duramente a discriminação racial Jones para a sua mãe, conclui, em desespero, como se
estadunidense, assim como o expansionismo impe- falasse em nome dela, da mãe e de todas as mulheres
rialista dos yankees, que, através da diplomacia do em iguais condições: “— Nós não somos nada nesta
dólar, ia, a seu ver, convertendo o Brasil num autên- vida”.
tico protetorado.

Clara é uma mulata pobre, que vive no subúrbio


carioca com seus pais, Joaquim e Engrácia, mulher “se-
dentária e caseira”. Joaquim era carteiro, “gostava de
violão e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta, instru-
mento que já foi muito estimado em outras épocas, não
o sendo atualmente como outrora”. Também “compu-
nha valsas, tangos e acompanhamentos de modinhas”.
Além da música, a outra diversão do pai de Clara era
passar as tardes de domingo jogando solo com seus
dois amigos: o compadre Marramaque e o português
Eduardo Lafões, um guarda de obras públicas.
Clara engravida e Cassi Jones desaparece. Con-
vencida pela vizinha, dona Margarida, que procurara
na tentativa de conseguir um empréstimo e fazer um
aborto, ela confessa o que está acontecendo à sua
mãe. É levada a procurar a família de Cassi e pedir

45
APROFUNDE SEUS CONHECIMENTOS
1. (UFU) Texto I 3. (UFU)
O único personagem feminino que escapa — Mamãe, Mamãe!
ao estereótipo de “coisa amorfa e pastosa” — Que é minha filha?
nesse romance (Clara dos Anjos) é dona Mar- — Nós não somos nada nesta vida.
garida, uma forte e voluntariosa senhora Todos os Santos – Rio de Janeiro – Dezembro
alemã, de olhos azuis e “traços enérgicos”. de 1921-janeiro de 1922.
MICHELETTI, Guaraciaba. Contra o racismo e a BARRETO, Lima. Clara dos Anjos.
injustiça. In: BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Tecnoprint/Ediouro, s/d, p. 77.
Rio de Janeiro: Ática, 2011, p. 10.
De acordo com o trecho acima, assinale a al-
Texto II ternativa correta.
A mórbida ternura da mãe por ele, a que não a) O diálogo entre dona Engrácia e sua filha
eram estranhas as suas vaidades pessoais, Clara simboliza de forma alegórica a desu-
junto à indiferença desdenhosa do pai, com o manização da mulher negra e pobre, numa
tempo, fizeram de Cassi o tipo mais completo sociedade regida por D. Pedro I, mas mani-
de vagabundo doméstico que se pode imagi- pulada por uma elite branca preconceituosa.
nar. É um tipo bem brasileiro. Se já era egoís- b) Este pequeno diálogo pode ser considerado
ta, triplicou de egoísmo. Na vida, ele só via o uma metáfora de uma classe social típica da
seu prazer, se esse prazer era o mais imediato primeira república: indivíduos escravos, sem
possível. Nenhuma consideração de amizade, perspectiva de ascensão econômica, os quais
de respeito pela dor dos outros, pela desgraça lutavam pela assinatura da lei Áurea.
dos semelhantes, de ditame moral o detinha, c) O diálogo entre Clara e sua mãe, Engrácia,
quando procurava uma satisfação qualquer. que aparece ao final do romance Clara dos
Só se detinha diante da força, da decisão de Anjos, publicado em plena monarquia, sim-
boliza a falta de perspectiva da mulher ne-
um revólver empunhado com decisão.
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos.
gra, analfabeta e pobre.
São Paulo: Ática, 2011, p. 35. d) Este pequeno diálogo, que fecha o final do
romance Clara dos Anjos, pode ser conside-
Com base nos textos, faça o que se pede. rado uma metáfora do sofrimento de uma
a) Dona Engrácia, esposa de Joaquim dos Anjos classe social que, mesmo com a assinatura
e mãe de Clara, encaixa-se na definição do da lei Áurea, continuava estigmatizada etni-
texto I. Apresente, em um parágrafo, as ca- camente.
racterísticas de dona Engrácia que revelam,
no contexto da obra, que ela é “coisa amorfa 4. (UEPB) Considere as afirmações:
e pastosa”. I. Os pensamentos de Clara revelam as difi-
b) Para além da condição de progenitora, dona culdades da mulher em geral, negra em
Salustiana, mãe de Cassi Jones, protegia-o particular, nas últimas décadas do século
de forma desmesurada, com grande intensi- XIX e primeiras décadas do século XX, em
dade. A partir da leitura do texto II, expli- ter seus direitos assegurados num país que
que, em um parágrafo, os planos e objetivos se transforma mas ainda mantém velhas
de dona Salustiana para defender o filho dos estruturas oligárquicas de exclusão: “Ela
crimes que este cometia. devia ter aprendido da boca dos seus pais
que a sua honestidade de moça e de mu-
2. (UFU) Uma dúvida lhe veio, ele era branco; lher tinha todos por inimigos”.
ela mulata. Mas, que tinha isto? Havia tantos II. As trajetórias de Cassi e Clara demonstram
casos... Lembra-se de alguns... E ela estava ao longo do romance como, a despeito de
tão convencida de haver uma paixão sincera serem ambos da pequena burguesia sem
no valdevinos, que, ao fazer esse inquéri- posses, as relações sociais não deixaram de
to, já recolhida, ofegava, chorava, e os seus ser ainda fortemente racializadas: “Ora,
seios duros quase estouravam de virgindade uma mulatinha, filha de um carteiro!”.
e ansiedade de amar. III. Em Clara dos Anjos, em meio a seus muitos
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. São Paulo: tipos humanos, aparecem na narrativa per-
Tecnoprint/Ediouro, s/d, p. 100. sonagens nos quais sobressai uma espécie
de força moral incorruptível, humana e so-
a) Elabore um texto explicando quais as conse- lidária, como dona Margarida: “O que era
quências advindas do rápido romance entre preciso, tanto a ela como as suas iguais, era
a ingênua Clara dos Anjos e o conquistador
educar o caráter, revestir-se de vontade,
Cassi Jones, em pleno Rio de Janeiro do sé-
como possuía essa varonil dona Margarida,
culo XIX.
b) Elabore um texto explicando os motivos da para se defender de Cassi e semelhantes, e
reação negativa de dona Salustiana, mãe de bater-se contra todos os que se opusessem,
Cassi Jones, quando Clara dos Anjos a visi- por este ou aquele modo, contra a elevação
tou acompanhada de dona Margarida. dela, social e moralmente”.

46
a) Nenhuma está correta. 6. (Enem) Texto I
b) Apenas II e III estão corretas. Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza
c) Apenas I e II estão corretas. toda íntima não vos seria revelado por mim
d) Apenas I está correta. se não julgasse, e razões não tivesse para jul-
e) Todas estão corretas. gar, que este amor assim absoluto e assim
exagerado e partilhado por todos vos. Nós
5. (UEPB) Considere o fragmento de Clara dos somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e
Anjos para responder à questão. iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povo-
A educação que recebera, de mimos e vigi- ados, não porque soframos, com a dor e os
lâncias, era errônea. Ela devia ter aprendido desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos
da boca dos seus pais que a sua honestidade une, nivela e agremia o amor da rua. E este
de moça e de mulher tinha todos por inimi- mesmo o sentimento imperturbável e indis-
go, mas isto ao vivo, com exemplos, clara- solúvel, o único que, como a própria vida,
mente... O bonde vinha cheio. Olhou todos resiste as idades e as épocas.
aqueles homens e mulheres... Não haveria RIO. J. A rua. In: A alma encantadora das ruas. São
um talvez, entre toda aquela gente de am- Paulo: Companhia das Letras, 2008 (fragmento).
bos os sexos, que não fosse indiferente à sua Texto II
desgraça... Ora, uma mulatinha, filha de um A rua dava-lhe uma forca de fisionomia,
carteiro! O que era preciso, tanto a ela como mais consciência dela. Como se sentia estar
as suas iguais, era educar o caráter, revestir- no seu reino, na região em que era rainha e
-se de vontade, como possuía essa varonil D. imperatriz. O olhar cobiçoso dos homens e
Margarida, para se defender de Cassis e se- o de inveja das mulheres acabavam o sen-
melhantes, e bater-se contra todos os que se timento de sua personalidade, exaltavam-no
opusessem, por este ou aquele modo, contra ate. Dirigiu-se para a rua do Catete com o
a elevação dela, social e moralmente. Nada seu passo miúdo e solido. [...] No caminho
a fazia inferior às outras, senão o conceito trocou cumprimento com as raparigas pobres
geral e a covardia com que elas o admitiam... de uma casa de cômodos da vizinhança.
Chegaram em casa; Joaquim ainda não tinha [...] E debaixo dos olhares maravilhados das
vindo. D. Margarida relatou a entrevista, por pobres raparigas, ela continuou o seu ca-
entre o choro e os soluços da filha e da mãe. minho, arrepanhando a saia, satisfeita que
Num dado momento, Clara ergueu-se da nem uma duquesa atravessando os seus do-
cadeira em que se sentara e abraçou muito mínios.
fortemente a mãe, dizendo, com um grande BARRETO, L. Um e outro. In: Clara dos Anjos.
acento de desespero: Rio de Janeiro: Mérito (fragmento).
— Mamãe! Mamãe!
— Que é minha filha? A experiência urbana e um tema recorrente
— Nós não somos nada nesta vida. em crônicas, contos e romances do final do
Assinale a alternativa correia. século XIX e início do XX, muitos dos quais
a) Clara dos Anjos é ambientado em uma cida- elegem a rua para explorar essa experiência.
de imaginária, na qual a estrutura agrária Nos fragmentos I e II, a rua é vista, respecti-
do Brasil colonial e de suas relações sociais vamente, como lugar que:
tradicionais não permitia casamentos entre a) desperta sensações contraditórias e desejo
brancos e negros. de reconhecimento.
b) Em Clara dos Anjos e em suas principais b) favorece o cultivo da intimidade e a exposi-
obras, a linguagem de Lima Barreto é o por- ção dos dotes físicos.
tuguês parnasiano, no qual o trabalho retó- c) possibilita vínculos pessoais duradouros e
rico com a linguagem tinha prioridade sobre
encontros casuais.
sua comunicabilidade.
c) O romance Clara dos Anjos é narrado em ter- d) propicia o sentido de comunidade e a exibi-
ceira pessoa por um narrador que emite opi- ção pessoal.
niões e juízos de valor sobre as personagens e) promove o anonimato e a segregação social.
e as cenas que narra.
d) Os personagens de Clara dos Anjos são po-
bres que, à força de viverem em uma socie-
dade de privilégios, sucumbem, sem exce-
ção, à corrupção e à miséria.
e) Clara dos Anjos é um romance de resignação,
que nos ensina a nos conformarmos com o
lugar que nos é previamente reservado em
nossa sociedade, sem lutar por condições
humanas mais dignas nem por cidadania
plena.

47
GABARITO
1.
a) Dona Engrácia é uma “coisa amorfa e pas-
tosa”, pois representa o estereótipo da
tradicional mulher brasileira do início do
século XX: sua submissão às vontades do
marido, sua religiosidade e seu descaso
com os reais sentimentos da filha ilus-
tram um panorama do Brasil patriarcal.
b) Dona Salustiana temia aparentar ser uma
mulher que era, de classe média; por esse
motivo, temia que seu filho se envolves-
se com mulheres mais pobres ou mesmo
trabalhasse. Para tanto, usa de sua influ-
ência e contrata advogados para que seu
filho saia impune, mesmo que tal com-
portamento fosse antiético ou prejudicial
para a formação do caráter do próprio fi-
lho.
2.
a) Do breve romance entre Clara dos Anjos e
Cassi Jones, ocorreram a gravidez dela, a
qual se tornaria mãe solteira em um con-
texto social que não aceitava esse fato,
colocando-a em situação desonrosa; o as-
sassinato do padrinho dela, Marramaque,
personagem que tentava alertá-la a res-
peito de Cassi Jones; processo de amadu-
recimento de Clara, percebendo que sua
condição depende da visão da sociedade
em que vive – nitidamente vítima do de-
terminismo de meio.
b) Dona Salustiana não aceita Clara dos
Anjos, pois a protagonista representa o
oposto de Cassi Jones: ela é afrodescen-
dente, pertence à classe baixa da socieda-
de, reside em áreas marginais. Por esses
motivos, dona Salustiana não aceita que
Clara sinta-se em condições de ser repa-
rada pela situação de desonra ocasionada
por Cassi Jones.
3. D 4. E 5. C 6. D

48
L C
Sagarana

Obras

João Guimarães Rosa

L C
ENTRE ASPAS
SAGARANA

Autor

Guimarães Rosa

Sobre o Autor (Guimarães Rosa)

Nascido no ano de 1908 na cidade mineira de Cordisburgo, é sem dúvida um dos maiores escritores da literatura
brasileira. Médico e diplomata, Guimarães Rosa começou a publicar seus textos apenas após os 38 anos.

51
Os seus escritos ambientam-se no sertão brasi- ƒ Grande sertão: veredas (1956)
leiro, ao mesmo tempo que são universais sob a lógica ƒ Primeiras estórias (1962)
da máxima “O sertão é o mundo”. Sua obra destaca- ƒ Tutaméia – Terceiras estórias: causou furor no
-se pelas inovações de linguagem, sendo marcada pela meio literário e dividiu a crítica, porém, fez
influência de falares populares e regionais. Os neolo- grande sucesso com o público. Foi o último livro
gismos – ou seja, a criação de inúmeros vocábulos a que Guimarães Rosa publicou em vida. (1967)
partir de arcaísmos e de palavras populares – as inven- ƒ Estas Estórias (1969 – contos)*
ções e as intervenções semânticas e sintáticas fizeram ƒ Ave, palavra (1970 – diversos)*
de sua literatura um fenômeno único. *obras póstumas
Morreu no Rio de Janeiro, em novembro de
1967 logo após ocupar a cadeira nº 2 na Academia
Brasileira de Letras por apenas três dias, já que havia
Contexto
atrasado a cerimônia de posse por quatro anos. Gui-
marães foi indicado ao prêmio Nobel de Literatura por O contexto de sua produção é a terceira fase do mo-
três vezes. dernismo que se inicia a partir do ano de 1945. Uma
fase madura desta escola literária que contou com o
processo de universalização do regionalismo, bem
como com o mergulho intimista nos personagens.
Guimarães Rosa foi um dos principais repre-
sentantes do regionalismo brasileiro, característica
da terceira fase do modernismo. Com uma linguagem
popular e erudita, o escritor conseguiu inovar a litera-
tura. Destaca-se como inovação do período seus neo-
logismos que eram reflexo de sua intensa pesquisa na
fala popular. Ele partia pelo sertão do norte de Minas
Gerais, montado em seu cavalo, observando aquilo que
mais lhe agradava, o homem e sua linguagem.

Obras Guimarães Rosa em uma de suas viagens pelo sertão.

ƒ Magma (poesias – 1936): publicado postuma-


mente.
APRESENTAÇÃO
ƒ Sagarana (1946 – contos e novelas regionalistas)
Guimarães Rosa fez de Sagarana a semente de uma
ƒ Com o vaqueiro Mariano (1947)
obra, cujo sentido e alcance ainda estão longe de ser
ƒ Corpo de baile (1956 – novelas): essa obra é
inteiramente decifrados.
atualmente publicada em 3 partes:
ƒ Manuelzão e Minguilim
ƒ No Urubuquaquá, no Pinhém
ƒ Noites do sertão

52
Além disso, Sagarana é seu livro de estreia. Se
d) Inserção de momentos de
procurarmos seu sentido no dicionário, não encontra- “epifania”
remos. O autor adianta, já no título, o neologismo tão
presente em suas obras. São histórias, historietas, eventos que “revelam” da
personagem aspectos antes não percebidos.
ƒ SAGA (radical germânico): usado para designar
narrativas em prosa. e) Temática universalizante
ƒ RANA (sufixo tupi-guarani): significa “à seme-
lhança de”. Ao transformar o sertão no mundo, Guimarães Rosa
torna-o universal, fazendo caber dentro dele todos os
Características da obra temas. Ao mesmo tempo, “o sertão é dentro da gen-

ficcional de Guimarães Rosa te”, ou seja, é a interpretação que cada um de nós tem
do mundo.

a) Manejo da palavra e
deslocamento da sintaxe A moralidade dos contos
1. Contos em que ocorre o crescimento dos perso-
Apresenta uma alteração profunda no manejo da pala-
nagens: "O Burrinho Pedrês", "Duelo", "Corpo
vra, que consiste, sobretudo, de um incomum desloca-
Fechado" e "A Hora e Vez de Augusto Matraga".
mento da sintaxe; no emprego de um vocabulário ora
2. Contos nos quais ocorre a humanização dos
arcaico, ora neológico: na ousadia mórfica, que recria
animais: "O Burrinho Pedrês" e"Conversa de
a linguagem.
Bois".
b) Reinvenção do sertão 3. Contos de feitiçaria: "Minha Gente", "São
Marcos" e "Corpo Fechado".
Questionando a linguagem da ficção e reunindo ele- 4. Contos nos quais um instante parece valer por
mentos linguísticos da própria realidade sertaneja, toda uma vida: "O Burrinho Pedrês" e "A Hora
reinventa o sertão, chamando a atenção – em todas as
e Vez de Augusto Matraga".
obras, mas principalmente em Grande sertão: veredas
5. Contos em que os costumes dos capiaus ser-
– para o fato de que “o sertão é o mundo”. Trans-
vem de temática: "A Volta do Marido Pródigo"
forma, assim, esse território num espaço-metáfora, em
que tudo pode acontecer. e "Minha Gente".
6. Contos nos quais está presente a ideia de tra-
c) Transcendência do regionalismo vessia: "O Burrinho Pedrês", "Duelo" e "A hora
e vez de Augusto Matraga".
Os elementos folclóricos pitorescos e meramente docu-
7. Contos nos quais a natureza parece algo vivo
mentais, lugares-comuns da maioria das obras regio-
(panteísmo): "Sarapalha" e "São Marcos".
nalistas, ganhariam novos significados com Guimarães
Cabe ainda ressaltar que o primeiro conto, "O
Rosa: o escritor lida com eles de uma forma inusitada,
Burrinho Pedrês", e o último, "A Hora e Vez de
situando-se entre a realidade e a fantasia, localizando
Augusto Matraga", fecham-se num círculo te-
lugares e personagens em um plano mítico.
mático.

53
OS NOVE CONTOS Silvino

DE SAGARANA Silvino é um vaqueiro que perdeu a namorada para


Badu. Seu plano era matar o rival na volta, depois de
depositarem a boiada no arraial.
I. O burrinho pedrês
Enredo
Personagens

Sete-de-Ouros – animal miúdo e resignado, idoso, mui-


to idoso, beiço inferior caído. Tivera outros nomes ao
longo de anos e amos: Brinquinho, Rolete, Chico-Chato
e Capricho.

Major Saulo

É o dono da fazenda da Tampa. Sempre rindo, possuía


olhos verdes e era gordo. Homem bravo, domava boi bravo
só com o olhar. Mesmo sem saber ler e escrever, cada ano Sete-de-Ouros era o nome de um burrinho cansado e já
ia ganhando mais dinheiro e comprando terras e gado. velho que fora escolhido para montaria num transporte
de gado. Corre a “boca pequena”, entre os vaqueiros,
João Manico que Silvino planeja se vingar de Badu, por conta dele
andar de gracejos com sua namorada.
João Manico era um vaqueiro pequeno (nanico) que Num dado momento, Silvino atiça um touro para
montou o burrinho Sete-de-Ouros na ida. Na volta, tro- que ele investisse contra Badu. No entanto, este con-
cou de montaria. No momento em que era para entrar segue se salvar dominando o boi. A caminho de volta,
na água, negou-se dizendo estar resfriado. Fato este, Silvino conta para seu irmão o plano de morte.
fez com que escapasse da morte. Na travessia do Córrego da Fome, vaqueiros e
cavalos se afogam, já que, com a cheia das águas, o rio
Raymundão se tornou um perigo. Desta travessia salvam-se apenas
Badu e Francolim: um em cima e outro pendurado no
Raymundão era o vaqueiro de confiança do Major Sau-
rabo do burrinho.
lo. Caracteriza-se pelas histórias que contava enquanto
“Sete-de-Ouros”, burro velho e desacreditado,
ia tocando a boiada. Suas histórias giram em torno do
personifica a cautela, a prudência. Segundo as crenças
zebu Calundu.
locais “nada vale lutar contra a correnteza”.

Francolim
II. A volta do marido pródigo
Francolim era um encarregado do Major Saulo e res-
ponsável de pôr ordem nos vaqueiros. Durante a noite
da enchente foi salvo pelo burrinho Sete-de-Ouros. Personagens

Zé Grande Lalino Salãthiel

Sujeito que vai na dianteira da boiada e caracteriza-se É um mulato contador de histórias, muito malandro e
por tocar o berrante (Instrumento típico do sertão). conhecido por todos como Laio. Bradava a todos que

54
conhecia o Rio de Janeiro (capital), apesar de nunca ter Enredo
estado lá. Mas, certa vez, conseguiu realmente conhe-
cê-la.

Maria Rita

Maria Rita é a mulher de Lalino. Despendia um trato


especial e carinhoso para com o marido.

Marra

Marra é o encarregado dos serviços. Muda-se do arraial


depois que a obra acabou.

Ramiro A descrição tem início com um sujeito que vende a mu-


lher para dedicar-se a aventuras na cidade grande, mas
Ramiro é um espanhol que ficou com Ritinha. (mulher depois se arrepende, volta para sua região e reconquis-
de Lalino). ta sua posição e sua mulher.
A história gira em torno de Lalino, – trabalhador
Waldemar
de uma obra de escavação – que resolve ir para o Rio
de Janeiro. Depois de se esbaldar na capital, ele retorna
Chefe da Companhia.
e encontra sua mulher, Maria Rita amasiada com Rami-
ro um espanhol que lhe emprestou dinheiro para sua
Major Anacleto
viagem.
O Major é um homem de princípios rígidos, é intolerante Lalino pede ajuda a Oscar, filho do Major Ana-
cleto, que lhe arranja um emprego de cabo eleitoral na
e difícil de se enganar. É o chefe político do local.
campanha do Major. Lalino usa toda a sua malandra-
Tio Laudônio gem para convencer os eleitores e obtém sucesso em
seu intento. O Major, contentíssimo, mandou trazer Ma-
Tio Laudônio é o irmão e conselheiro do Major Anacleto, ria Rita para as pazes com Laio. Convocou a jagunçada
poucas vezes vinha ao povoado. Esteve no seminário, vi- e ordenou: “mandem os espanhóis tomarem rumo”! Se
via isolado na beira do rio. Carrega em sua caracteriza- miar, mete a lenha! Se resistir, berrem fogo!
ção o típico mistério dos personagens roseanos: chorou
na barriga da mãe, enxerga no escuro, sabe de que lado
vem a chuva e escuta o capim crescer. III. Sarapalha
Benigno Personagens
Benigno é o inimigo político do Major Anacleto.
Primo Argemiro
Estevão
Sobrevivente de malária, possui sua descrição às voltas
da febre e do frio de todos os dias. Seu baço está sem-
Estevão, que nunca ria, é um capanga respeitado do
pre inchado. No início da doença, foi abandonado pela
Major Anacleto. Tinha grande pontaria e costumava mi-
esposa, Luísa. Ela fugiu com um boiadeiro.
rar no umbigo para que a bala varasse cinco vezes o
intestino e chegasse até a medula.

55
Primo Ribeiro IV. Duelo
Como Primo Argemiro, vai sobrevivendo à malária. Os
Personagens
dois moram isolados numa região em que a febre já
expulsou toda a gente. Apesar de ter terras em outra
Turíbio Todo
região, prefere ficar ao lado de Primo Ribeiro, tal a ami-
zade que os une. Sujeito papudo, vagabundo, vingativo e mau, Turíbio é
um seleiro de profissão. Possuía pêlos compridos nas
Prima Luísa
narinas e chorava sem fazer caretas.

Muito bonita, morena, olhos pretos, cabelos pretos é a Dona Silivana


mulher de Ribeiro. Caracterizada com riso alegrinho e
olhar duro. Fugiu com um boiadeiro. Mulher de olhos bonitos e grandes. É a esposa de Turí-
bio Todo.
Ceição
Cassiano Gomes
Preta velha.
Cassiano é solteiro e tinha um caso com Dona Silivana.
Jiló É um ex-militar com fama de exímio atirador. Andava
sempre armado, com um rifle ao alcance da mão.
Cachorro.
Timpim Vinte-e-um
Enredo
Caipira franzino, é morador do povoado Mosquito. Cas-
siano, antes de morrer, salvou-lhe o filho e deu-lhe di-
“– Mas, meu Deus, como isto é bonito! Que lugar boni-
nheiro. Vinte-e-Um é aquele que matou Turíbio Todo.
to p’ra gente deitar no chão e se acabar.”
A malária (sazão) assola o povoado às margens
do rio Pará fazendo com que as pessoas abandonem o
Enredo
local, deixando tudo para trás. Aqueles que não partem
acabam morrendo e o mato toma conta do povoado
Primo Argemiro e Primo Ribeiro observam a do-
ença avançar em si mesmos e Ribeiro faz Argemiro pro-
meter enterrá-lo no cemitério do povoado.
Diante da desgraça, Ribeiro começa a lembrar da
esposa (que era sua prima Luísa) e contar que ela fugiu
com um boiadeiro. Argemiro, que amava a mulher do
primo e desejava ter sido ele a fugir com ela, confessa
ao primo que foi morar com eles por causa dela.
Ribeiro expulsa o primo enquanto a malária o
atinge. O cenário é o Arraial de Vista-Alegre, no interior de Mi-
Sem o perdão do primo, Argemiro reúne as for- nas Gerais. Turíbio é traído pela mulher com o Cassiano
ças para ir embora. Caminha com dificuldade assustan- Gomes e resolve se vingar. Porém mata por engano o
do os pássaros pretos que o confundem com um es-
irmão de Cassiano.
pantalho. E sua lembrança vai até Luisinha (antes de
se casar com Ribeiro). Ela estava de azul, a paisagem Cassiano persegue Turíbio durante meses, e este,
também se enfeitava de flores azuis. “Bom lugar para vai para São Paulo. Durante toda a caçada, eles não se
se deitar e morrer”. cruzam uma só vez.

56
Cassiano morre do coração, por ter exigido de- Tio Emílio
mais de si mesmo durante a perseguição, mas antes de
morrer contrata os serviços de um caboclo que lhe devia Emílio é o tio do narrador da história, um fazendeiro,
chefe político local. Ele sofreu mudança radical depois
favores, o Timpim Vinte-e-um.
que se meteu na política. Sente prazer e satisfação de
Quando Turíbio volta de São Paulo, acompanha-
tripudiar seus adversários.
do por um sujeito franzino, ansioso para rever a mulher,
é assassinado por Timpim que o acompanhava para ter Maria Irma
certeza da identidade da vítima. Turíbio levou um susto:
o capiauzinho falou com voz firme e diferente, seguran- Tem olhos grandes, pretíssimos e cintura fina. Passou
alguns anos no internato.
do uma garrucha velha de dois canos: '“Seu Turíbio!
Prima do protagonista e primeiro objeto de seu
Se apeie e reza, que agora eu vou lhe matar!” Turíbio
amor. Usa sua inteligência para elaborar um plano de
fez voz grossa, mas o caipira explicou: não ia adiantar
ação e não se afasta dele até atingir seus objetivos. Não
nada porque ele prometeu ao Compadre Cassiano, na
abre seu coração para ninguém, mas sabe e faz o que
horinha mesmo de ele morrer'. quer. Maria Irma é uma das filhas de Tio Emílio e, no
passado, foi namorada “de brincadeira” do narrador.

V. Minha gente Armanda

Personagens Filha de fazendeiros; estudou no Rio de Janeiro. No final


da história termina casada com o narrador.
Narrador
Bento Porfírio
É o protagonista do conto.
“Se o senhor doutor está achando alguma boni- Bento Porfírio é um vaqueiro (empregado da fazenda
teza...”. Esta fala é essencial para entender de quem se de Tio Emílio) que gostava de pescar (companheiro de
trata o narrado da história. Homem da cidade que esta- pescaria do protagonista). Num dado momento se en-
va a passeio pelas fazendas dos tios (interior de Minas volveu com uma prima casada (de-Loudes) e terminou
Gerais). Ele gostava da prima Maria Irma, mas casou-se assassinado a foice pelo marido enciumado (Alexandre).
com Armanda, filha de uma fazendeira.
Enredo
Santana
Na viagem para a fazenda de seu tio (envolvido em uma
Santana é bonachão e culto, sujeito detentor de memó-
campanha política) em Minas Gerais, o protagonista-
ria prodigiosa, é um tipo de servidor público facilmente
-narrador é acompanhada por Santana, inspetor escolar,
encontrável. Companheiro nas andanças do narrador,
e José Malvino. O narrador-personagem está empenha-
tem mania de jogar xadrez, mesmo quando estão an-
do em ganhar as eleições locais.
dando a cavalo. É inspetor escolar.
O narrador testemunha o assassinato de Ben-
José Malvino to Porfírio e tenta conquistar o amor da prima (Maria
Irma). Um dia, ela recebe a visita de Ramiro, noivo de
Atencioso, desconfiado, prestativo e supersticioso, José outra moça, segundo ela diz, e o moço fica com ciúmes.
Malvino é o roceiro que acompanha o protagonista na Para atrair o amor de Maria Irma, ele finge namorar
viagem para a fazenda do Tio Emílio. Conhece os cami- uma moça da fazenda vizinha. Porém, o plano falha –
nhos e sabe interpretar os sinais que se apresentam ao tendo como efeito secundário, não calculado, a vitória
seu redor. do tio nas eleições – e o moço deixa a fazenda. Na visita

57
seguinte, Maria Irma apresenta-lhe Armanda. É amor à rísio Manquitola, ambos comentam sobre a “Oração de
primeira vista; ele se casa com a moça, e Maria Irma, São Marcos” que é capaz de atrair coisas ruins. Aurísio
por sua vez, se casa com Ramiro Gouveia, “dos Gou- Para provar esta teoria, Aurísio conta alguns causos. São
veias de Brejaúba, no Todo-Fim-É-Bom”. eles:

As histórias entrecruzam-se na narrativa: ƒ Gestal da Gaita: Silvério teve de pernoitar com


I. a do vaqueiro que buscava uma rês desgarrada e Gestal. Gestal reza a Oração e parte para cima
que provocara os marimbondos contra dois aju- de Silvério com uma peixeira, Silvério desvia e
dantes; Gestral começa a subir pelas paredes até bater
II. o moleque Nicanor que pegava cavalos usando a cabeça no teto e cair no chão sem lembrar de
apenas artimanhas; nada.
III. Bento Porfírio assassinado por Alexandre Cabaça;
ƒ Tião Tranjão: amigado de mulherzinha; espe-
IV. o plano de Maria Irma para casar-se com Ramiro. zinhado por Cypriano que era amante de sua
amásia. Gestal da Gaita com dó ensina a oração
a Tião. Tião é acusado de ofender Filipe Turco
VI. São Marcos
e na cadeia apanha dos policiais. A meia-noite
Tião reza a oração e consegue escapar, ir para
Personagens casa e bater na amante, no amante da amante e
quebrar a casa toda.
José
José, depois deste encontro com Aurísio, conti-
José é o narrador do conto. Gostava de observar árvo- nua andando e se lembra da história dos bambus e tro-
res, pássaros, rios, lagos. É um admirador da natureza. ca poesias com um “Quem-Será?”, usando os nós dos
bambus para deixar as mensagens para seu interlocutor
João Mangolô anônimo, chamado por ele de “Quem-será?”.
Ele segue caminhando pela floresta e ao descan-
Mangolô era um preto velho que morava no Calango-
sar debaixo de uma árvore, repentinamente fica cego.
-Frito e tinha fama de feiticeiro.
Desesperado pela mata, resolve rezar a oração de São
Aurísio Manquitola Marcos. Feito isso, segue seu caminho e deixa a flores-
ta chegando a cabana de Mangolô, lá descobre que o
Aurísio Manquitola é um sujeito experiente, contador mesmo fizera um feitiço para deixa-lo cego a fim de
de histórias. Ele conhecia bem todas as pessoas de lhe ensinar respeito. José ameaça matar o velho , mas
Calango-Frito. volta a enxergar e resolve ter mais respeito pelo velho
feiticeiro.
Tião Tranjão

Vendedor de peixe-de-rio no arraial. Tornou-se indomá- VII. Corpo fechado


vel depois de aprender a oração de São Marcos. Sujeito
meio “leso”.
Personagens

Enredo
Médico
A história se passa no povoado de Calango-Frito. Por O doutor é o narrador da história. Morador de um ar-
ali, surge a figura de José que tem apreço por adentrar raial do interior de Minas, fez amizade com Manuel
à mata para caçar, observar a natureza. Sempre que ele Fulô. “Dava corda” e gostava de ouvis suas histórias.
passa pela casa de João Mangolô provoca-o.
Certo dia, caminhando pela mata, encontra Au-

58
Manuel Fulô Mané Fulô possui uma mula chamada de Beija-
-Fulô, e Antonico possuia uma bela sela mexicana. Cada
Manuel Fulô era um sujeito cheio de histórias, mirrado e um dos dois gostaria muito de adquirir o que era do
com cara de bobo. Possui cabelo preto, não trabalhava outro.
e adorava um “rabo de saia”. Aparece Targino, o valentão do lugar, e anuncia
que vai passar a noite antes do casamento com das Dor,
Beija-flor noiva de Mané. Ele se desespera, pois ninguém pode
ajudá-lo, uma vez que o valentão do Targino domina o
Mulinha de Manuel Fulô, possui cruz preta no dorso, lugarejo.
lisa, lustrosa, sábia e mansa. Aparece então, Antonico e propõe um pacto com
Mané Fulô: vai fechar-lhe o corpo, mas exige como pa-
Das Dor gamento o cavalo.
Mané, que gostava muito de seu cavalo, não
Moça pobre de uma beleza simples. É noiva de Manuel teve outra opção, pois ficou dividido entre o animal e
Fulô. sua noiva.
Em seguida, diante de todos, enfrenta Targino e
Targino o mata apenas com uma faquinha.
Mané Fulô assume o posto de valentão do locas,
Era magro, feio, de cara amarrada e esverdeada. Dificil- especialmente por ter matado Targino e o seu casamen-
mente ria. O valentão mais temido do lugar to realiza-se sem nenhum problema.

Antônio das Pedras-águas


VIII. Conversa de bois
Era pedreiro, feiticeiro e curandeiro.

Personagens
Enredo
Tiãozinho

Menino-guia. Odiava o Agenor carreiro, pois o malva-


do vivia fazendo carinho na mãe de Tiãozinho, mesmo
quando o pai do menino ainda estava vivo, entrevado
em cima de um jirau.

Agenor Soronho

Carreiro. Mandava em Tiãozinho como se fosse pai dele.

O narrador é convidado por Mané Fulô, para ser seu Januário


padrinho de casamento e vai contando suas histórias
Pai de Tiãozinho.
para o doutor. Mané detesta trabalhar e adora contar
histórias, especialmente sobre os causos que ocorreram
Outros personagens
com ele próprio.
ƒ Sobre de valentões; Buscapé, Namorado, Capitão, Brabagato, Dansador, Bri-
ƒ Sobre ciganos que ele teria ludibriado na venda lhante, Realejo e Canindé – protagonistas bovinos da
de cavalos; história, que vão na sua marcha lenta, carregando “o
ƒ Sobre sua rivalidade com Antonico das Pedras, peso pesado” do carro-de-bois, carregado de rapaduras
o feiticeiro. e um defunto.

59
Enredo

O narrador se apresenta dizendo que vai contar a tragédia que ouviu de Manuel Timborna, que a ouviu da irara
Risoleta, testemunha do acontecido.
Pelo sertão anda um carro de bois: na frente, Tiãozinho, o menino guia, logo atrás as quatro juntas, com oito
bois, que conversam enquanto puxam a carroça, cujos nomes, em dupla, são:
ƒ Buscapé e Namorado;
ƒ Capitão e Brabagato;
ƒ Dançador e Brilhante;
ƒ Realejo e Canindé.
Em cima do carro vai Agenor Soronho. Neste tradicional transporte do sertão, o carro de boi, eles carregam
uma carga de rapadura e um caixão com um defunto, o pai de Tiãozinho, ex-guia dos bois do Agenor Soronho.
Tiãozinho vai chorando: sofre com a morte do pai e com a de Didico. Sofre também com o calor, com o
cansaço e com os maus-tratos que recebe do carreiro Agenor.
Tiãozinho ficou totalmente dependente de Agenor Soronho por conta da doença e morte do pai. Agenor
sustenta a família do menino, pois é interessado em se tornar amante da viúva.
O boi Brilhante vai contando aos demais a estória do boi Rodapião, que morreu por assimilar os processos
mentais dos homens. Os bois vão conversando entre si sobre a opressão dos bois pelos homens e a possibilidade
de vencerem sua superioridade. Curiosamente, os bois sentem-se solidários com o menino.
Ao chegar a ladeira do Morro-do-Sabão, no entardecer, Agenor encontra, caído e quebrado, o carro da
Estiva, carreado por João Bala.
Agenor consola o carreiro e, em seguida, para provar a Tiãozinho que era um carreiro de verdade, escala a
subida em que João Bala fracassara. Sai vitorioso e coloca-se na dianteira do carro, junto aos bois, e cochila. Os bois
percebem que o “homem-do-pau-comprido-com-marimbondo-na-ponta” está dormindo. Jogam-se bruscamente
para a frente, atropelando-se para derrubar Agenor Soronho, que cai. A roda do carro passa sobre o seu pescoço,
sem que se possa saber se morreu dormindo ou se acordou para saber que morria.
Em "Conversa de bois", o boi torna-se personagem ativo, para além de um mero ser da fauna circundante.
E passa, nesse momento, a formar com o menino Tiãozinho um só personagem, metade humano metade animal.
A parte homem do ser antropomórfico e híbrido, o menino “humano”, não possui o dom da palavra. A consciência
dos bois faz com que surja a palavra. Ao menino, cabe apenas o desejo de vingança e a vergonha.

60
IX. A hora e a vez de Mimita

Augusto Matraga É filha de Nhô Augusto que se torna prostituta, muito


por conta de sua percepção de que o pai não gosta dela.
Personagens
Major Consilva

Augusto Esteves Matraga Sujeito hereditariamente inimigo de Nhô Augusto, logo


também foi inimigo do avô do protagonista. Homem de
É o personagem principal do conto e possui uma pe- posses e maldoso, tem todo o poder depois da suposta
culiaridade de projeção mítica que é de mudar o seu morte de Nhô Augusto.
nome de acordo com as passagens significativas de sua
Tião da Thereza
vida. Depois de ter sido mau em sua vida, mulherengo e
violento, ele se transforma num homem bom, religioso e Personagem é conterrâneo de Nhô Augusto. Encontra-o
trabalhador. Perde fortuna, a esposa e a filha por conta no povoado do Tombador e lhe informa dos aconteci-
de seu comportamento. Inclusive, em alguma ocasião, mentos sucedidos após sua suposta morte.
quase perde a vida. Depois de uma surra aplicada pelos
Outros personagens
capangas do Major Consilva, Matraga sentiu-se renas-
cer como outro homem. Foi obrigado a esconder-se dos Angélica, Sariema, preto velho, mãe Quitéria, Jurumi-
inimigos num sítio com um casal de pretos velhos que nho, Teófilo Sussuarana.
o salvou. O final de sua trajetória ocorre com ele ma-
tando o famoso chefe de jagunços Joãozinho Bem-Bem Enredo
para salvar uma família inocente, e por consequência,
morrendo.

Joãozinho Bem-Bem

É o chefe de jagunços. Por suas ações e fama, é temi-


do no sertão. É um justiceiro que defende os amigos e
persegue os inimigos. Tem um pressentimento de uma
força oculta que o aproxima de Nhô Augusto.

Quim Recadeiro

Empregado de Nhô Augusto, levava e trazia recados,


O protagonista do conto é conhecido como Augus-
como o nome dá a entender. Quando vai fazer justiça to Matraga, seu nome verdadeiro é Augusto Esteves,
pela morte de seu patrão, acaba sendo morto pelos ja- filho do Coronel Afonsão Esteves, das Pindaíbas e do
gunços do Major Consilva. Saco-da-Embira, também chamado de Nhô Augusto.
Caracterizado com o maior valentão do lugar, por per-
Dona Dionóra versidade, briga e debocha de todos. Bolina a mulher
dos outros e não se preocupa com sua mulher, Dona
Era mulher de Nhô Augusto. Muito maltratada por seu Dionóra, nem com sua filha, Mimita, bem como com sua
marido, acaba se cansando e fugindo com Ovídio. fazenda, que entra em ruína.

61
Dionóra, em função disso, foge com Ovídio Moura levando a filha e os bate-paus de Augusto, nome dado
aos seus capangas, que por serem mal remunerados, vão trabalhar justamente para seu maior inimigo; o Major
Consilva.
Ele fica sabendo do fato por Quim Recadeiro e resolve matar Dionóra e Ovídio, mas no caminho é atacado
numa emboscada, por seus inimigos, que depois de baterem nele, o marcam com ferro de gado em brasa. Quase
inconsciente, no momento em que vai ser assassinado, junta suas últimas forças e se joga no despenhadeiro do
rancho do Barranco. Obviamente, dado os ataques e tamanho da queda, todos acharam que ele tinha morrido.
Porém, é salvo por um casal de negros velhos: a mãe Quitéria e o pai Serapião, que tratam de Nhô Augusto, que se
recupera, porém fica com várias sequelas.
Inicia, então, no povoado do Tombador uma vida nova, para onde levou os pretos, seus protetores. Tudo isso
serve para que ele se regenere e leve uma vida de trabalho, penitência e oração. Sonha com um Deus valentão e
começa a fazer o bem.
Depois de seis anos, recebe notícias de sua ex-família por intermédio de Tião da Thereza: Dionóra, vive feliz e
pretende se casar com Ovídio, a sua filha, Mimita, foi ludibriada por um caixeiro viajante e se entregou na perdição.
Com essas notícias, Matraga sofre e sente saudades.
Num certo dia, surge a figura de Joãozinho Bem-Bem, um famoso jagunço, com seus capangas: Flosino Ca-
peta, Zeferino, Tim Tatu-tá-te-vendo, Juruminho e Epifânio. Matraga hospeda-os com grande dedicação, mas nega
o convite de Bem-Bem de seguir junto com bando, ele quer ir para o céu.
Matraga despede-se do casal de velhinhos que o salvaram e parte montado num jumento, sem saber para
onde ir, se deixando levar pelo destino.
Recuperado e resignado, chega ao Arraial do Rala-Coco, reencontrando Joãozinho Bem-Bem e seu bando
em ação, eles estavam por cometer uma cruel execução de vingança contra a família de um assassino.
Momento chave na narrativa, Augusto Matraga desperta para a sua hora e vez: tentando fazer justiça, se
coloca contra o chefe do bando, tomado de uma força nova, inclusive matando vários capangas. Acaba num duelo
particular com Joãozinho Bem-Bem e ambos morrem.
Nessa hora, Augusto Matraga é reconhecido por seu antigos conhecidos.

62
APROFUNDE SEUS CONHECIMENTOS
1. (UFES) Leia os trechos retirados de "O burri- b) se vale sobretudo dos diálogos, em que bus-
nho pedrês", de Guimarães Rosa, e considere ca registrar com exatidão o modo de falar do
as afirmativas feitas. A seguir, assinale a op- sertanejo.
ção CORRETA. c) se socorre de lendas e mitos populares, o que
dá à sua prosa o caráter de uma válida docu-
mentação folclórica.
"ERA UM BURRINHO PEDRÊS, miúdo e resig-
d) se vale da paisagem como cenário de histó-
nado, vindo de Passa-Tempo, Conceição do rias que, na verdade, poucas marcas trazem
Serro, ou não sei onde no sertão. Chamava- da cultura regional.
-se Sete-de-Ouros, e já fora tão bom, como e) se filia à tradição do regionalismo natura-
outro não existiu e nem pode haver igual. lista, buscando demonstrar teses de caráter
(...) Mas nada disso vale fala, porque a estó- científico e determinista.
ria de um burrinho, como a história de um
homem grande, é bem dada no resumo de 3. (PUC-CAMP) Reflita sobre as seguintes afir-
um só dia de sua vida. (...) Mas, nem bem mações:
Sinoca terminava, e já, morro abaixo, chão
a dentro, trambulhavam, emendados, três I. Tal como ocorre nos demais contos de SA-
trons de trovões. (...) GARANA, João Guimarães Rosa centrali-
– É para vigiar o Silvino, todo o tempo, que za neste a prática popular da fé cristã,
ele quer mesmo matar o Badu e tomar rumo. encarnada aqui num Augusto Matraga re-
Agora, eu sei, tenho a certeza. Não perde os nascido, que viverá o resto de sua vida no
dois de olho, Francolim Ferreira! (...) Badu trabalho humilde e penitente, para além
agora dormia de verdade, sempre agarrado do heroísmo e da violência.
à crina. Mas Sete-de-Ouros não descansou. II. Neste conto, como em todos de SAGARA-
Retomou a estrada, e, já noite alta, quando NA, a linguagem do autor promove uma
chegaram à Fazenda, ele se encostou, bem autêntica fusão entre o que é abstrato e
na escada da varanda, esperando que o va- o que é concreto, tal como aqui ocorre na
queiro se resolvesse a descer. Ao fim de um fala do padre, em que os valores religio-
tempo, o cavaleiro acordou. (...)" sos se enraízam no cotidiano sertanejo.
III.A "hora e vez" de que fala o padre vai-se
I. A aliteração em "dentro", "trambulha- concretizar, neste conto, num ato de fé
vam", "três trons de trovões" alude ao e de bravura do protagonista contra um
barulho da trovoada, que prenuncia a inimigo poderoso, o que lembra o clímax
tempestade e o perigo iminente. de dois outros contos do livro: "São Mar-
II. Na fábula, são introduzidas algumas di- cos" e "Corpo fechado".
gressões que vão sendo narradas por
vaqueiros ao longo de sua jornada. Es- É correto afirmar que
sas digressões são causos que pontuam a) apenas II é verdadeira.
a narrativa, criando uma atmosfera de b) apenas III é verdadeira.
suspense para o desfecho da história do c) apenas I e III são verdadeiras.
d) apenas II e III são verdadeiras.
burrinho pedrês e de Silvino e Badu.
e) I, II e III são verdadeiras.
III.O narrador da fábula faz uso de discurso
direto e indireto, articulando-os de for-
4. (CEFET-PR) Sobre os contos de Sagarana é
ma que o tempo da narrativa seja per-
INCORRETO afirmar:
cebido tanto num passado (acontecido)
a) A volta do marido pródigo demonstra, no
como num presente (acontecendo). comportamento do protagonista, o poder
criador da palavra, dimensão da linguagem
a) Apenas as afirmativas I e II estão corretas. tão apreciada por Guimarães Rosa.
b) Apenas as afirmativas I e III estão corretas. b) Tanto em Corpo fechado quanto em Minha
c) Apenas as afirmativas II e III estão corretas. gente o espaço é variado, deslocando-se a
d) Todas as afirmativas estão corretas. ação de um lugar para outro.
e) Todas as afirmativas estão incorretas. c) Em Duelo e Sarapalha figuram personagens
femininas cujos traços não aparecem nas mu-
lheres de outros contos.
2. (UEL) Em relação ao modo como Guimarães
d) O burrinho pedrês, Conversa de bois e São
Rosa retrata o sertão mineiro, é correto afir- Marcos trabalham com a mudança de narra-
mar que o autor: dores.
a) se apóia em tipos humanos e paisagens re- e) A hora e a vez de Augusto Matraga não apre-
ais, valendo-se, no entanto, de uma lingua- senta a inserção de casos ou narrativas se-
gem absolutamente inventiva e pessoal. cundárias.

63
5. (UPF) Nos contos de Sagarana, Guimarães 7. (UEL) O trabalho com a linguagem por meio
Rosa resgata, principalmente, o imaginário da recriação de palavras e a descrição minu-
e a cultura: ciosa da natureza, em especial da fauna e da
a) da elite nacional flora, são uma constante na obra de João Gui-
b) dos proletários urbanos marães Rosa. Esses elementos são recursos
c) dos povos indígenas estéticos importantes que contribuem para
d) dos malandros de subúrbio integrar as personagens aos ambientes onde
e) da gente rústica do interior vivem, estabelecendo relações entre nature-
za e cultura. Em Sarapalha, conto inserido
6. (Fuvest) Ele se aproximou e com voz cantante
no livro Sagarana, de 1946, referências do
de nordestino que a emocionou, perguntou-
mundo natural são usadas para representar
-lhe:
o estado febril de Primo Argemiro.
— E se me desculpe, senhorinha, posso convi-
dar a passear? Com base nessa afirmação, assinale a alter-
— Sim, respondeu atabalhoadamente com nativa em que a descrição da natureza mos-
pressa antes que ele mudasse de idéia. tra o efeito da maleita sobre a personagem
— E, se me permite, qual é mesmo a sua graça? Argemiro:
— Macabéa. a) “É aqui, perto do vau da Sarapalha: tem uma
— Maca — o quê? fazenda, denegrida e desmantelada; uma cer-
— Bea, foi ela obrigada a completar. ca de pedra seca, do tempo de escravos; um
— Me desculpe mas até parece doença, doença rego murcho, um moinho parado; um cedro
alto, na frente da casa; e, lá dentro uma ne-
de pele.
gra, já velha, que capina e cozinha o feijão.”
Eu também acho esquisito mas minha mãe bo-
b) “Olha o rio, vendo a cerração se desmanchar.
tou ele por promessa a Nossa Senhora da Boa
Do colmado dos juncos, se estira o vôo de
Morte se eu vingasse, até um ano de idade eu uma garça, em direção à mata. Também, não
não era chamada porque não tinha nome, eu pode olhar muito: ficam-lhe muitas garças
preferia continuar a nunca ser chamada em pulando, diante dos olhos, que doem e cho-
vez de ter um nome ue nin uém tem mas arece ram, por si sós, longo tempo.”
ue deu certo — arou um instante retomando c) “É de-tardinha, quando as mutucas convidam
o fôlego perdido e acrescentou desanimada e as muriçocas de volta para casa, e quando o
com pudor — pois como o senhor vê eu vin- carapana mais o mossorongo cinzento se re-
guei... pois é... colhem, que ele aparece, o pernilongo pam-
— Também no sertão da Paraíba promessa é pa, de pés de prata e asas de xadrez.”
questão de grande divida de honra. d) “Estava olhando assim esquecido, para os
Eles não sabiam como se passeia. Andaram sob olhos... olhos grandes escuros e meio de-
a chuva grossa e pararam diante da vitrine de -quina, como os de uma suaçuapara... para a
uma loja de ferragem onde estavam expostos boquinha vermelha, como flor de suinã....”
atrás do vidro canos, latas, parafusos grandes e e) “O cachorro está desatinado. Pára. Vai, volta,
pregos. E Macabéa, com medo de que o silêncio olha, desolha... Não entende. Mas sabe que
já significasse uma ruptura, disse ao recém- está acontecendo alguma coisa. Latindo, cho-
-namorado: ramingando, chorando, quase uivando.”
— Eu gosto tanto de parafuso e prego, e o se-
nhor? 8. (PUC-SP) O conto Conversa de bois integra a
Da segunda vez em que se encontraram caia obra Sagarana, de João Guimarães Rosa. De seu
uma chuva fininha que ensopava os ossos. Sem enredo como um todo, pode afirmar-se que:
nem ao menos se darem as mãos caminhavam a) os animais justiceiros, puxando um carro,
na chuva que na cara de Macabéa parecia lágri- fazem uma viagem que começa com o trans-
mas escorrendo. porte de uma carga de rapadura e um defun-
(Clarice Lispector, A hora da estrela) to e termina com dois.
b) a viagem é tranqüila e nenhum incidente
Ao dizer: "(..) promessa é questão de grande ocorre ao longo da jornada, nem com os bois
dívida de honra", Olímpico junta, em urna só nem com os carreiros.
afirmação, a obrigação religiosa e o dever de c) os bois conversam entre si e são compreen-
honra. A personagem de Sagarana que, em didos apenas por Tiãozinho, guia mirim dos
suas ações finais, opera uma junção semelhan- animais e que se torna cúmplice do episódio
te é: final da narrativa.
d) a presença do mítico-lendário se dá na figu-
a) Major Saulo, de O burrinho pedrês. ra da irara, “tão séria e moça e graciosa, que
b) Lalino, de Traços biográficos de Lalino Sa- se fosse mulher só se chamaria Risoleta” e
lãthiel ou A volta do marido pródigo. que acompanha a viagem, escondida, até à
c) Primo Ribeiro, de Sarapalha. cidade.
d) João Mangolô, de São Marcos. e) a linguagem narrativa é objetiva e direta e,
e) Augusto Matraga, de A hora e vez de Augus- no limite, desprovida de poesia e de sensa-
to Matraga. ções sonoras e coloridas.

64
9. O conto serve de pretexto para a documenta-
ção dos costumes e dos infortúnios da vida
da roça. Estrutura-se como uma espécie de
paródia, meio sentimental e meio irônica,
das estórias de amor com final feliz.
Trata-se de:
a) O Burrinho Pedrês
b) Minha Gente
c) Sarapalha
d) São Marcos
e) O Duelo

10. Os temas dos nove contos que compõem a


obra Sagarana apresentam:
a) um caráter estritamente regional não só de-
vido à linguagem como também ao espaço;
b) visão, acima de tudo, subjetiva sobre os pro-
blemas humanos;
c) reflexões de caráter universal o que corro-
bora a visão rosiana de que o "sertão é o
mundo";
d) um retorno ao antropocentrismo clássico, à
erudição realista e ao moralismo humanista
de Gil Vicente;
e) a destruição da concepção de que o homem,
apesar de tudo, é um ser bom e um retorno
ao determinismo naturalista.

11. "—Estou no quase, mano velho... Morro, mas


morro na faca do homem mais maneiro de
junta e de mais coragem que eu já conheci!...
Eu sempre lhe disse quem era bom mesmo,
mano velho... É só assim que gente como eu
tem licença de morrer... Quero acabar sendo
amigos..." Os dois duelantes revelam uma
grandeza humana: a "homência", a valentia
e, mesmo desafetos, admiram-se por isso.
O conto em questão é:
a) O Duelo
b) Corpo Fechado
c) Volta do Marido Pródigo
d) Conversa de Bois
e) A Hora e Vez de Augusto Matraga

GABARITO
1. D 2. A 3. D 4. C 5. E
6. E 7. B 8. A 9. B 10. C
11. E

65
L C
Morte e vida Severina

Obras

João Cabral de Melo Neto

L C
ENTRE ASPAS
JOÃO CABRAL DE MELO NETO

João Cabral de Melo Neto nasceu em 1920 e, desde os 17 anos, compunha poemas apenas informalmente. No ano
de 1942, sem querer cursar a universidade, prestou concurso para o funcionalismo público. Em 1945, ingressou no
Itamaraty e publicou O engenheiro. A carreira diplomática levou-o pelo mundo afora: Barcelona, Londres, Sevilha,
Marselha, Genebra, Berna, Assunção, Dacar.
Em 1956, escreveu o poema dramático “Morte e vida severina“, que foi encenado, em 1966, no Teatro da
Universidade Católica de São Paulo (Tuca). Musicada por Chico Buarque de Holanda e vista por mais de 100 mil
pessoas, a peça consagrou definitivamente o poeta João Cabral. Foi lembrado pela Academia Brasileira de Letras,
que elegeu o imortal, em 1969, para a cadeira nº 37.
Mais de uma vez mencionado como um “poeta de simetrias”, caracteriza-se pela “palavra justa”, exata,
extremamente racionalizada.
Foi casado com Stella Maria Barbosa de Oliveira, com quem teve cinco filhos. Casou-se pela segunda vez
com a poetisa Marly de Oliveira. Em 1992, começou a sofrer de cegueira progressiva, doença que o levou à depres-
são. Faleceu em 1999, vítima de ataque cardíaco, no Rio de Janeiro.

69
Terceira fase modernista:
poesia da geração de 1945

João Cabral de Melo Neto é exemplar da linha constru-


tiva que se marca pela simetria dos versos e do poema.
No contexto do pós-guerra, surge uma geração de escri-
tores chamada de “geração de 1945”, que procurou re-
cuperar procedimentos poéticos tradicionais, dando ên-
fase à experimentação literária e o “rigor” da expressão.
Em outros poetas, o rigor formal foi tão grande Poesia de 1945
que se chegou a falar em neoparnasianismo – uma
obsessão tão rigorosa pela perfeição verbal chegou a Veja alguns pontos importantes desta estética:
ser até mesmo antimodernista. ƒ Volta ao rigor do verso
Alguns poetas dessas linhas, como Geir Cam- Uma das primeiras conquistas dos modernistas
pos, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Mário Quinta- de 1922, o verso livre foi abolido do ideário dos poetas
na, Paulo Mendes Campos, Darcy Damasceno, Dantas de 1945.
Mota e Thiago de Melo, mais tarde trilharam caminhos Os poetas desse período revigoraram a metrifi-
diversos ao neoparnasianismo. cação com o emprego do verso decassílabo e de ou-
tras medidas poéticas consideradas obsoletas. Assim,
O rigor da forma foi perseguido não só pelos
renasceu o soneto como forma fixa predileta. O des-
de 1945, mas também pelos artistas plásticos, como
leixo do ritmo foi repudiado e, em lugar, observou-se o
se vê na geometria das obras do pintor Alfredo Volpi equilíbrio rítmico.
(1896-1988). No poema que segue, uma amostra de como se
aproxima o trabalho do poeta com o do engenheiro:
um rigor construtivo medido, sem excessos:
A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
Superfícies, tênis, um copo de água.
O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.
Alfredo Volpi e a mencionada simetria de sua geração (O engenheiro. In: MELO NETO, João Cabral de. O cão sem plu-
mas. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2007.)

Terceiro tempo modernista ƒ Intenção estética


Assim como os parnasianos dos últimos anos
Os poetas de 1945 abandonaram as conquistas dos pri-
do século XIX, os poetas de 1945 cultivaram uma lin-
meiros modernistas de 1922. Partiram, portanto, para a
guagem lírica, com imagens intencionalmente estéti-
reabilitação de regras mais rígidas para a composição cas, às vezes retomando o conceito de “arte pela arte”,
do verso sem deixar de ser críticos e pensar a ideia de ou seja, o cultivo do lirismo em torno de temas pouco
Brasil sob um viés crítico e uma estética própria. poéticos.

70
Sirvam de exemplo do esteticismo convencional ƒ Ruptura com a poesia de inspiração
as estrofes do poema ”Urubu”, de Geir Campos, cons- A organização do texto, no rigor de sua cons-
truídas em decassílabos, embora sem rima: trução, configura o trabalho poético. Deixa de lado o
Sobreviventes da pureza antiga, mito, pois prega que a poesia não está no sentimento
As pernas brancas, no debrum das asas, do poeta ou mesmo na beleza dos fatos.
Pesam como remorsos a encurvá-las; ƒ Busca de simetria
Vírgulas negras duma negra história. Em ”O engenheiro”, de 1945, o ideal de um
Como que o sentimento do pecado projeto geométrico de construção emerge. A ideia de
Neutraliza a intenção e trunca gestos, simetria só pode ser atingida por meio de um trabalho
E o voo – lento cair espirado, rigoroso da linguagem poética.
Misto de hesitação e de abandono – ƒ Poesia de ênfase sociológica
Penetra fundo e carne azul da tarde:
Longa verruma de carvão e sono.
(Urubu. In: CAMPOS, Geir. Canto claro e poemas anteriores.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1957.)

A partir de O cão sem plumas, de 1950, inicia-


-se um ciclo de poemas de ênfase sociológica. Prosse-
gue com ”O rio” e ”Morte e vida severina”, em que a
denúncia da miséria nordestina segue os dois movi-
mentos que aparecem no título: morte e vida.

ƒ Poesia de participação social MORTE E VIDA SEVERINA


Alguns poetas da geração de 1945 voltaram-se
”Morte e vida severina”, publicado pela primeira vez
para os temas sociais, com grande ênfase, chamando
em 1956, é a obra mais popular e social do poeta, em
a atenção para o homem diminuído na sua condição
que retrata a fuga de retirantes da seca que seguem o
oprimida. Esse é o caso, por exemplo, de João Cabral
de Melo Neto, que desenvolve uma poesia socializan- curso do rio Capibaribe. A obra ganhou diversos prê-
te, simétrica e formal. O mesmo ocorre com Ferreira mios, inclusive internacionais, como o prestigiado Fes-
Gullar, cuja participação social é marcante, praticando tival de Nancy, na França.
uma poesia de enfoque político, em torno das questões A obra retrata a trajetória de Severino, num
imediatas que abalavam o país. percurso de abandono do sertão nordestino em bus-
ca de melhores condições de vida no litoral. Severino
ƒ Objetividade da palavra escrita encontra no caminho outros tantos nordestinos que
Com ”Psicologia da composição”, ”Fábula de passam pelas privações impostas ao sertão. A palavra
Anfion” e ”Antiode”, trilogia de 1947, rompe de vez “severina” que é um substantivo, nessa obra ganha
com a fantasia e constrói poemas por meio da objetivi- status de adjetivo, ou seja, a “morte” e a “vida” são
dade da palavra escrita e não pelos “estados de alma” “severinas”, uma menção à desgraça que é a vida des-
da tradição romântica.
tes sujeitos imersos numa mesma realidade de miséria
humana, física, moral e existencial.

71
como médico, farmacêutico, coveiro, rezadeira, etc. Vê-
-se como um inútil, já que nada daquilo sabia fazer, e
para o que sabia fazer não encontrava nenhum trabalho.
Em seu vagar pela Zona da Mata, onde há mui-
to verde, que a morte a ninguém poupa. Registra em
seu peregrinar que a persistência da vida é a única a
maneira de vencer a morte.

João Cabral apresenta o percurso de morte e


vida do retirante Severino. A alegoria Severino percorre
o sertão em busca de uma expectativa de vida maior
As cenas que avista pelo caminho, as ambienta-
no litoral. O poema pode ser divido em duas partes. A
ções tais como cemitérios, coveiros, assassinatos, tudo
primeira, com o seu caminho até o Recife, e a segunda
leva Severino ao desespero e à expectativa de seu pró-
é sua chegada e estadia na capital pernambucana.
prio fim, já que ele mesmo não conseguia encontrar
A aridez da terra e as injustiças contra o povo
trabalho. Chega à conclusão de que a realidade que
são percebidas em versos duros e diretos sobre a con-
encontra não é diferente da que já conhecia no sertão.
dição do homem. Neste sentido, o mergulho poético
Severino chega a pensar no suicídio, jogando-se do rio
na descrição do enterro de um homem assassinado
Capibaribe, mas é contido pelo carpinteiro José, que
a mando de latifundiários é um dos pontos altos do
menciona o nascimento do filho. O subtítulo do po-
texto.
ema, “Auto de Natal“, e o nome do pai, “José“, são
Severino presencia muitas mortes e, em seu in-
claras referências ao nascimento de Jesus.
cessante vagar, conclui e descobre que é justamente a A vida renovada é uma espécie de simbologia
morte a maior empregadora do sertão, em que tudo ao nascimento de Jesus, uma vez que ele é também
gira em torno da morte, os empregos do médico, do filho de um carpinteiro e alvo das expectativas para
coveiro, da rezadeira, do farmacêutico, entre outros. remissão dos pecados, numa obra que é uma ode ao
As situações confrontadas em sua peregrinação pessimismo, aos dramas humanos e à indiscutível ca-
rumo ao litoral revelam o próprio sertão em sua essên- pacidade de adaptação e sobrevivência dos retirantes
cia, como a dos dois homens que carregam um defunto nordestinos.
até sua última morada, pois este havia sido assassi-
nado por expandir um pouco suas terras, e assim vai
tendo seus encontros com a vida e com a morte. Em Personagens
outro momento ouve uma cantoria e, ao aproximar-se,
ƒ Severino: é um retirante nordestino que foge
percebe que se tratava da encomendação de um corpo.
para o litoral em busca de melhores condições
Pensa, algumas vezes, em interromper a via-
de vida. Vale dizer que ele é também o narrador
gem e voltar, pensa que poderá não conseguir chegar
e personagem principal. Severino é um, entre
ao destino pretendido, ou pensa ainda em interromper
muitos outros, que tem o mesmo nome, a mes-
a viagem e procurar algum tipo de trabalho pelo meio
ma cabeça grande e o mesmo destino trágico
do caminho. Ao pensar nesta possibilidade de trabalho,
do sertão: morrer de emboscada, antes dos vin-
descobre que os únicos que poderiam lhe dar algum di-
te anos, de velhice, antes dos trinta, ou de fome,
nheiro seriam aqueles de pessoas que ajudam na morte,
um pouco a cada dia.
72
ƒ Seu José, mestre carpina: personagem que Linguagem
salva a vida de Severino, impedindo este de to-
mar sua própria vida.
“Morte e vida severina“ possui uma estrutura dramáti-
ca: é uma peça teatral escrita em forma de poesia. Para
Espaço isso, o autor usa, em sua maioria, versos muito sonoros
com sete sílabas poéticas (o heptassilábico, a chamada
“medida velha” ou “redondilha maior”), com muita
A obra se desenvolve no percurso entre dois espaços
rima e com repetições de palavras e até mesmo de ver-
fundamentais, o interior e o litoral de Pernambuco. A
sos inteiros. Os versos do poema são curtos, as rimas
primeira parte é marcada pela presença constante da
aparecem, mas não seguem uma sequência rígida. É
morte, no meio da paisagem agreste e do chão duro
como se todos eles estivessem muito bem amarrados
de pedra. A dureza do confronto dos vivos com a morte
pela história contada e pelo estilo adotado.
sempre tem relação com a pobreza e com o trabalho.
Uma das chaves interpretativas para “Morte e
Ou é morte matada em emboscada, por conta da dura
vida severina“ seria a psicológica, no que diz respeito
terra trabalhada, ou é morte miserável, na qual não
aos conflitos de Severino, e também a social, já que o
sobra nenhum pertence. meio nordestino, seu modo de vida, sua força e sua
luta têm presença marcada em cada verso do poema.
João Cabral de Melo Neto é conhecido como
“engenheiro da palavra“ por sua poesia precisa, subs-
tantiva, elíptica, mais plástica que musical. Sempre
surpreendeu por conseguir conjugar tais característi-
cas que estão vivas na linguagem concisa, mas fluida
e permeada de expressões e musicalidade popular. A
obra “Morte e vida severina“ apresenta fortes traços
orais, pelas rimas e repetições que intensificam a ten-
De acordo com que Severino vai se aproximan- são dramática que denuncia a seca e os responsáveis
do do espaço do litoral, a terra começa a ficar mais por ela.
mole, porém a morte não abranda, em que o solo se
configura mais fértil e o canavial é grande, no entanto,
mesmo com a abundância, a paisagem é esvaziada de
Trechos
pessoas. O retirante crê que o motivo para o lugar estar ƒ O retirante explica ao leitor quem é e a que vai.
tão vazio é que a terra é tão rica que não é preciso tra- — O meu nome é Severino,
balhar todo dia. Severino acredita ter chegado em um como não tenho outro de pia.
lugar onde a morte abranda e a vida não é severina. [...]
Somos muitos Severinos
Estrutura iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
A obra se apresenta dividida em 18 partes, todas
no mesmo ventre crescido
acompanhadas de títulos que indicam uma espécie
sobre as mesmas pernas finas
de resumo do seu conteúdo. A crítica, em geral, divide
e iguais também porque o sangue,
as cenas em dois grandes grupos: “cenas da morte“ e
que usamos tem pouca tinta.
“presépio“.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,

73
morremos de morte igual, ela, a vida, a respondeu
mesma morte severina: com sua presença viva.
que é a morte de que se morre E não há melhor resposta
de velhice antes dos trinta, que o espetáculo da vida:
de emboscada antes dos vinte vê-la desfiar seu fio,
de fome um pouco por dia que também se chama vida,
[...] ver a fábrica que ela mesma,
ƒ Aproxima-se do rio do retirante um dos mucam- teimosamente, se fabrica,
bos que existem o cais e a água do rio. vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida
Seu José, mestre carpina,
mesmo quando é assim pequena
e que interesse, me diga,
a explosão, como a ocorrida
há nessa vida a retalho
como a de há pouco, franzina
que é cada dia adquirida?
mesmo quando é a explosão
espera poder um dia
de uma vida severina.
comprá-la em grandes partidas?
— Severino, retirante,
não sei bem o que lhe diga: Intertextualidade
não é que espere comprar
em grosso tais partidas, O cantor e compositor Chico Buarque de Holanda com-
mas o que compro a retalho pôs uma música inspirada na obra “Morte e vida seve-
é, de qualquer forma, vida. rina“, de João Cabral de Melo Neto, que se estrutura
— Seu José, mestre carpina, como uma interessante intertextualidade, sobretudo
que diferença faria por conta do fato de que essa música serviu de trilha
se em vez de continuar tomasse a melhor saída: para a encenação do espetáculo, em 1965.
a de saltar,
numa noite,
fora da ponte e da vida?
[...]
ƒ O carpina fala com o retirante que esteve de
fora, sem tomar parte em nada.
Severino, retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida MORTE E VIDA SEVERINA
nem conheço essa resposta, (Chico Buarque)
se quer mesmo que lhe diga Esta cova em que estás, com palmos medida
é difícil defender, É a conta menor que tiraste em vida
só com palavras, a vida,
É de bom tamanho, nem largo, nem fundo
ainda mais quando ela é
É a parte que te cabe deste latifúndio
esta que vê, severina
mas se responder não pude Não é cova grande, é cova medida
à pergunta que fazia, É a terra que querias ver dividida

74
É uma cova grande pra teu pouco defunto no caminho não encontre mais a fome, a miséria e a
Mas estarás mais ancho que estavas no mundo opressão com as quais foi forçado a se habituar. No
entanto, sua jornada provará que encontrar um novo
É uma cova grande pra teu defunto parco
começo é muito mais difícil do que parece.
Porém mais que no mundo, te sentirás largo
É uma cova grande pra tua carne pouca
Mas a terra dada não se abre a boca
É a conta menor que tiraste em vida
É a parte que te cabe deste latifúndio
(É a terra que querias ver dividida)
Estarás mais ancho que estavas no mundo
Mas a terra dada não se abre a boca

No teatro

1977 (1h28min)
Direção: Zelito Viana
Elenco: Tânia Alves, José Dumont, Stenio Garcia
Gênero: drama

Em 1965, Roberto Freire, diretor do teatro Tuca da PUC


de São Paulo, pediu ao então muito jovem Chico Bu-
arque que musicasse a obra, encenada no palco com
trinta estudantes e centenas de outros na retaguarda.
Desde então, sua presença no teatro brasileiro tem
sido constante, tendo a referida peça se tornado um
sucesso, inclusive, recebendo premiação num festival
universitário de Nancy, na França, onde foi encenada
em 25 de abril de 1966, tendo ali sido bem recebida
pela crítica, com destaque em publicações no Le Figaro
e no Le Monde.

No cinema

Baseado nos célebres poemas de João Cabral de Melo


Neto, “O rio“ e “Morte e vida severina“. Um nordes-
tino resolve tentar mudar de vida e vai em direção
ao litoral e ao Sudeste do Brasil, esperançoso de que

75
APROFUNDE SEUS CONHECIMENTOS
TEXTO PARA AS PRÓXIMAS DUAS QUESTÕES nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
O NADA QUE É
na hora mesma de semear.
Um canavial tem a extensão (João Cabral de Melo Neto, Morte e vida severina)
ante a qual todo metro é vão.
Nos versos acima, a personagem da “rezado-
Tem o escancarado do mar ra” fala das vantagens de sua profissão e de
que existe para desafiar outras semelhantes. A sequência de imagens
que números e seus afins neles presente tem como pressuposto ime-
possam prendê-lo nos seus sins. diato a ideia de:
a) sepultamento dos mortos.
Ante um canavial a medida b) dificuldade de plantio na seca.
métrica é de todo esquecida, c) escassez de mão de obra no sertão.
porque embora todo povoado d) necessidade de melhores contratos de traba-
povoa-o o pleno anonimato lho.
e) técnicas agrícolas adequadas ao sertão.
que dá esse efeito singular:
de um nada prenhe como o mar.
4. (Fuvest)
(João Cabral de Melo Neto. Museu de tudo e depois. 1988.)
Decerto a gente daqui
jamais envelhece aos trinta
1. (Unifesp) Ao comparar o canavial ao mar, a nem sabe da morte em vida,
imagem construída pelo eu lírico formaliza- vida em morte, severina;
-se em: (João Cabral de Melo Neto, Morte e vida severina)
a) uma assimetria entre a ideia de nada e a de
anonimato. Neste excerto, a personagem do “retirante”
b) uma descontinuidade entre a ideia de mar e exprime uma concepção da “morte e vida se-
a de canavial. verina”, ideia central da obra, que aparece
c) uma contradição entre a ideia de extensão e em seu próprio título. Tal como foi expressa
a de canavial. no excerto, essa concepção só não encontra
d) um paradoxo entre a ideia de nada e a de correspondência em:
imensidão. a) “morre gente que nem vivia”.
e) um eufemismo entre a ideia de metro e a de b) “meu próprio enterro eu seguia”.
medida. c) “o enterro espera na porta:/ o morto ainda
está com vida”.
d) “vêm é seguindo seu próprio enterro”.
2. (Unifesp) Nos versos iniciais do poema – Um
e) “essa foi morte morrida/ ou foi matada?”.
canavial tem a extensão/ ante a qual todo
metro é vão. –, metro é concebido como:
a) forma ineficaz de se medir a extensão de um 5. (FEI) Leia o texto com atenção e responda à
canavial. questão.
b) forma de se medir corretamente um cana- — O meu nome é Severino
vial. não tenho outro de pia.
c) meio de se dizer mais de um canavial do que Como há muitos Severinos,
só sua extensão. que é santo de romaria,
d) tradução subjetiva da extensão de um cana- deram então de me chamar
vial. Severino de Maria;
e) meio de se medir a extensão de um canavial como há muitos Severinos
com precisão. com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
3. (Fuvest) do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
Só os roçados da morte
há muito na freguesia,
compensam aqui cultivar,
por causa de um coronel
e cultivá-los é fácil:
que se chamou Zacarias
simples questão de plantar;
e que foi o mais antigo
não se precisa de limpa,
senhor desta sesmaria.
de adubar nem de regar;
Como então dizer quem fala
as estiagens e as pragas
ora a Vossas Senhorias?
fazem-nos mais prosperar;
Vejamos: é o Severino
e dão lucro imediato;

76
da Maria do Zacarias, d) A indicação auto de natal não se refere so-
lá da Serra da Costela, mente ao sentido de religiosidade, mas tam-
limites da Paraíba. bém à aceitação do poder de renovação que
Mas isso ainda diz pouco: existe na própria natureza.
se ao menos mais cinco havia e) Como em muitas outras obras de tendência
com nome de Severino regionalista, o tema central do poema é a
filhos de tantas Marias seca nordestina e a miséria por ela criada.
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias, 7. (Cefet) Leia as seguintes afirmações sobre
vivendo na mesma serra “Morte e vida severina“:
magra e ossuda em que eu vivia. I. O nascimento do filho do compadre José
Somos muitos Severinos é antagônico em relação aos outros fatos
iguais em tudo na vida: apresentados na obra, já que esses são
na mesma cabeça grande marcados pela morte.
que a custo é que se equilibra, II. Podemos dizer que o conteúdo é com-
no mesmo ventre crescido pletamente pessimista, considerando-se
sobre as mesmas pernas finas, que a jornada é marcada pela tragédia da
e iguais também porque o sangue seca, o que leva Severino à tentativa de
que usamos tem pouca tinta. suicídio.
E se somos Severinos III.Mais do que a seca, as desigualdades so-
iguais em tudo na vida, ciais do Nordeste são o tema da obra.
morremos de morte igual,
Assinale a alternativa correta sobre as afir-
mesma morte severina:
mações.
que é a morte de que se morre
a) Somente I e II estão corretas.
de velhice antes dos trinta,
b) Somente I e III estão corretas.
de emboscada antes dos vinte,
c) Somente II e III estão corretas.
de fome um pouco por dia
d) As três estão corretas.
(de fraqueza e de doença
e) As três estão incorretas.
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida). 8. (Ufrgs 2017) Leia abaixo o diálogo entre Se-
verino e Mestre Carpina, retirado de “Mor-
(João Cabral de Melo Neto, Morte e vida severina)
te e vida severina“, de João Cabral de Melo
É possível identificar nesse excerto caracte- Neto.
rísticas: — Seu José, mestre carpina,
a) regionalistas, uma vez que há elementos do que lhe pergunte permita:
sertão brasileiro. há muito no lamaçal
b) vanguardistas, pois o tratamento dispensado apodrece a sua vida?
à linguagem é absolutamente original. e a vida que tem vivido
c) existencialistas, pois há a preocupação em foi sempre comprada à vista?
revelar a sensação de vazio do homem do — Severino, retirante,
sertão. sou de Nazaré da Mata,
d) naturalistas, porque identifica-se em Seve- mas tanto lá como aqui
rino as características típicas do herói do jamais me fiaram nada:
século XIX. a vida de cada dia
e) surrealistas, já que existe uma apelação ao cada dia hei de comprá-la.
onírico e ao fantástico. — Seu José, mestre carpina,
e que interesse, me diga,
6. (Cefet) Assinale a alternativa incorreta so- há nessa vida a retalho
bre “Morte e vida severina”. que é cada dia adquirida?
a) Apesar das dificuldades que se anunciam espera poder um dia
para o filho do Seu José, a perspectiva do comprá-la em grandes partidas?
final do poema é positiva em relação à vida. — Severino, retirante,
b) Existe no poema um grande contraste causa- não sei bem o que lhe diga:
do pelo nascimento do filho do Seu José em não é que espere comprar
relação à figura da morte, presente em toda em grosso tais partidas,
a obra. mas o que compro a retalho
c) O adjetivo severina, do título, tanto se refe- é, de qualquer forma, vida.
re ao nome do personagem central como às — Seu José, mestre carpina,
condições severas em que ele, como tantos que diferença faria
outros, vive. se em vez de continuar

77
tomasse a melhor saída: — É uma cova grande
a de saltar, numa noite, para teu defunto parco,
fora da ponte e da vida? porém mais que no mundo
Assinale com V (verdadeiro) ou F (falso) as te sentirás largo.
seguintes afirmações. — É uma cova grande
( ) Severino, retirante chegado ao Recife, para tua carne pouca,
questiona a vida miserável de Mestre Carpina. mas a terra dada
( ) Mestre Carpina defende a necessidade de não se abre a boca.
viver mesmo que em condição precária. (João Cabral de Melo Neto)
( ) Mestre Carpina nega-se a ouvir os infun-
Analise as afirmativas a seguir e coloque V
dados questionamentos de Severino.
nas verdadeiras e F nas falsas.
( ) Severino, em sua última interrogação,
( ) O poema não tem nenhuma relação com a
aponta uma hesitação entre viver e morrer.
charge, pois não se pode relacionar dois
A sequência correta de preenchimento dos tipos de linguagem completamente di-
parênteses, de cima para baixo, é: ferentes: verbal e visual. Além disso, na
a) V – V – F – V. charge, a mensagem imagética e linguís-
b) V – F – F – F. tica apresenta uma crítica ferrenha à de-
c) V – F – V – V. sigualdade social, enquanto o poema nega
d) F – V – F – V. o valor da reforma agrária, uma vez que
e) F – V – V – F. defende o monopólio da terra.
( ) O poema de João Cabral de Melo Neto de-
9. (UPE-SSA 3) João Cabral de Melo Neto, autor senvolve a temática da desigualdade so-
pernambucano, celebrizou-se com um auto cial à semelhança da charge, que também
de Natal, que trata de uma das questões mais aborda a mesma questão. Ambos tomam
sérias da sociedade brasileira, a qual está como ponto de partida a posse da terra.
bem representada na charge abaixo. Relacio- Há, entre as duas mensagens, uma única
ne a imagem com o fragmento do texto de preocupação que é a aquisição de bens ma-
“Morte e vida severina“. teriais.
( ) A charge apresenta, tanto quanto o frag-
mento do texto de João Cabral, uma crítica
à condição do lavrador, que, durante toda
vida, trabalha a terra, mas só tem direito a
ela quando morre. Na imagem, o lavrador
vivo traz a placa SEM TERRA, enquanto no
poema, tal qual na charge, só adquire o di-
reito à terra após a morte, que representa
“a terra que queria ver dividida.”
( ) Diferentemente do texto escrito, a ima-
gem revela um novo tipo de transmissão
de mensagem em que se encontra elimi-
nada a linguagem verbal, ocorrendo exclu-
sivamente um discurso imagético. Nele o
homem e a terra se confundem por oca-
— Essa cova em que estás, sião da morte, que iguala todos os seres
com palmos medida, humanos, e isso fica explícito na antítese
é a cota menor sem terra/com terra.
que tiraste em vida. ( ) As duas mensagens tematizam a questão
da posse da terra, apresentando um dis-
— É de bom tamanho, curso crítico, que enfatiza o fato de o la-
nem largo nem fundo, vrador não ter direito à terra, razão pela
é a parte que te cabe qual é designado como “sem terra”. Essa
neste latifúndio. expressão atualmente identifica os parti-
— Não é cova grande. cipantes do movimento social, que lutam
é cova medida, pelo reconhecimento do camponês que
é a terra que querias continua sem obter o tão desejado torrão.
ver dividida. Assinale a alternativa que contém a sequên-
cia correta.
— É uma cova grande a) F F V F V
para teu pouco defunto, b) F F F F V
mas estarás mais ancho c) V V V V V
que estavas no mundo. d) F F F V V
e) V V V F F

78
10. (UPE) Em relação à “Morte e vida severina“,
de João Cabral de Melo Neto, coloque V para
as afirmativas verdadeiras e F para as falsas.
( ) Trata-se do relato da história de um re-
tirante que, tomando como modelo Vidas
secas, deixa seu torrão natal e vai para a
metrópole em busca de melhor qualidade
de vida. Assim, Severino, protagonista do
“Auto de Natal“ pernambucano, chega ao
Recife e consegue ascender socialmente,
pois é contratado para trabalhar em uma
fábrica atingindo seus objetivos.
( ) Integra o texto cabralino uma cena in-
titulada “Funeral do lavrador“, composta
por redondilhas, a qual foi musicada por
Chico Buarque de Holanda, na década de
1970, momento de plena ditadura. Con-
tudo, o texto não sofreu nenhuma censu-
ra do sistema constituído, por não apre-
sentar ideologia, na época, considerada
subversiva.
( ) “Morte e vida severina“ segue a estru-
tura de um auto. Como romance que é,
em treze capítulos, a personagem central
desloca-se da serra da Costela, situada no
interior de Alagoas, vem margeando o rio
Capibaribe, chega ao Recife, onde se en-
contra com Mestre Carpina.
( ) O texto de João Cabral é composto por
versos metrificados, redondilhas, numa
perfeita harmonia entre a personagem e
a linguagem, peculiar à literatura popu-
lar desde os autos do teatrólogo portu-
guês Gil Vicente até a atualidade.
( ) Nos versos: “E se somos Severinos/ iguais
em tudo na vida,/ morremos de morte
igual,/ mesma morte severina:/ que é a
morte de que se morre/ de velhice antes
dos trinta”, encontramos o uso de alite-
rações que trazem musicalidade ao texto.
Além disso, a palavra “severina“ exer-
ce uma função adjetiva, pois qualifica
o substantivo morte de modo criativo e
inusitado.
Assinale a alternativa que apresenta a sequên-
cia correta.
a) F F F V V
b) V V V F V
c) V V F F V
d) V F V F V
e) V V V F F

GABARITO
1. D 2. A 3. A 4. E 5. A
6. E 7. B 8. A 9. A 10. A

79
L C
Nove noites

Obras

Bernardo Carvalho

L C
ENTRE ASPAS
BERNARDO CARVALHO

Bernardo Carvalho nasceu em 1960, no Rio de Janeiro. É escritor, jornalista e colunista. No ano de 1983, formou-se
em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Ainda na década de 1980, radicou-
-se na cidade de São Paulo e, desde 1986, trabalha na Folha de S.Paulo, jornal no qual exerce a função de diretor
do suplemento de ensaios Folhetim, é correspondente internacional em Paris e, posteriormente, em Nova York e,
entre 1998 e 2008, foi colunista fixo do caderno de cultura Ilustrada.
Seu último romance é Reprodução, lançado em setembro de 2013. Tem livros editados na França, em Por-
tugal, na Itália e na Suécia.
Com dissertação a respeito da obra de Wim Wenders, obteve grau de mestre em Cinema pela Escola de Co-
municações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), no ano de 1993, quando também lançou a coletânea
de contos Aberração, que marcou sua estreia na literatura. Nos contos de Aberração, já estão presentes alguns
dos temas e dos expedientes formais que marcam seus livros seguintes, tais como o tema do desaparecimento e
a utilização da narrativa epistolar (em música) e a preferência dada a personagens desajustados, como no conto
“O olho no vento“.
Apesar de sua estreia na literatura ter sido como contista, destacou-se e alcançou mais reconhecimento
como romancista. A passagem de um gênero para outro, no entanto, não denota uma ruptura radical entre suas
publicações iniciais e posteriores. Seu primeiro romance saiu em 1995 e, desde então, tem publicado traduções e
exercido a função de crítico literário. Seu mais recente romance, O filho da mãe, é de 2009.
Bernardo Carvalho tem produzido uma literatura, cuja característica marcante é a mistura entre ficção e
realidade, sem deixar muito claro as diferenças entre ambas. Sua narrativa é composta de fatos reais e históricos
misturados com ficção, que sustentam e dão veracidade aos enredos. O desaparecimento, como tema e marca es-
tilística, é fundamental na obra do escritor. A maioria de seus romances, além de parte considerável de seus contos
e crônicas, aludem direta ou indiretamente a este assunto.

83
Contexto histórico e Em um primeiro momento, o enredo desenvolve-se por
meio de um autor-narrador (talvez um jornalista), que
escola literária levanta dados documentais acerca de um personagem
verídico, o antropólogo estadunidense Buell Quain, in-
As obras de Bernardo Carvalho configuram o que se teressado em etnologia, que provavelmente se suicida
chama de literatura contemporânea. Sua primeira obra aos 27 anos de idade, no ano de 1939, em meio a uma
é de 1993, um período pelo qual o conceito de escola expedição no Tocantins entre os índios krahô, poucos
literária se dissipou num contexto plural e que ainda dias após deixar a aldeia indígena.
procura se encontrar enquanto limite estético coleti- Essa pesquisa é feita 62 anos depois, em ou-
vo para que qualquer fator norteador possa aparecer tras palavras, no ínterim do presente histórico da pu-
como denominação. Segundo José Castelo é o “mais blicação do livro, de forma metódica e apurada, por
radical dos ficcionistas surgidos nos anos de 1990, o meio de cartas, de documentos, de fotos, de testemu-
mais corajoso deles, mas quase não tem leitores”. Ele nhos e de relatos, na tentativa de revelar as circuns-
mesmo se conforma com a dificuldade de se vir a ser tâncias e as motivações verdadeiras da morte do an-
tropólogo.
um best-seller. Suas tramas apresentam aspectos inte-
O personagem histórico ”biografado” – Bell
ressantes ao leitor contemporâneo: um deles é a disso-
Quain – e o narrador ”biógrafo” não se relacionam
lução, seja de sentidos, de discurso, de personagens, de
alegoricamente, mas sim metonimicamente. A obses-
cenários ou do tempo narrativo.
são pelo suicídio do antropólogo no Xingu revela um
“Acho difícil. Espero que o editor não saiba,
trauma do próprio narrador, que teria convivido na in-
mas acho difícil. Se eu chegar, acho que vai ser por
fância com os índios.
acaso”, diz Bernardo.
Na busca de dados sobre Quain, o narrador vol-
Veja um comentário crítico acerca de sua pro- ta ao Xingu para ouvir o que os índios lembram do
dução contemporânea: antropólogo. Mas não consegue nenhuma informação,
“Os romances de Carvalho constituem-se como e em troca é ele quem lembra da infância, quando
obras bem-sucedidas em operar com as referências fal- acompanhava o pai nas viagens pelas suas fazendas
seadas, tão características da ficção pós-moderna. Em de Mato Grosso e Goiás.
sua macroestrutura, eles apresentam aspectos que os Já em um segundo momento, paralelamente,
aproximam da estrutura da reportagem e da biogra- há um narrador ficcional, Manoel Perna, que convive
fia: há uma narratividade próxima também de gêneros com Quain nove noites durante sua estada no Brasil
como as reportagens mais extensas, que se materiali- (daí o título do livro), narrado em itálico no corpo do
zam em forma de livro.” (LAGE, 2005, p. 145-146) romance. Tal estratégia compõe um gênero híbrido que
aponta para a autoficção e a metaficção, criando-se

NOVE NOITES dados inverídicos a partir de pistas verdadeiras da vida


do antropólogo, em um texto a meio do caminho entre
o romance-reportagem e o romance policial.
O romance foge da tradição de romances que
mostraram o índio como vítima – Quarup, Maíra, entre
outros –, e vai por um caminho contrário em que a
figura do nativo exerce certa ”violência” – psicológica
–, sobre os brancos, constituindo no romance um trau-
ma que se configura como uma máquina do tempo no
que diz respeito à história nacional. O suicídio de Bell
Quain incide sobre o trauma do próprio narrador.
Quando ele está no hospital acompanhando o
pai no seu leito de morte, testemunha a última hora de

84
um velho desconhecido, que ocupa a cama ao lado, e como caminho para a verdade do que como constitui-
que está morrendo em solidão. O velho, no seu delírio, ção do trauma ( é a relação traumática da infância que
chama o narrador de ”Bill Cohen”, confundindo-o com aproxima o narrador com Quain).
um amigo da época em que era jovem. Muitos anos É infernal o momento que reencontra os índios
depois, o nome de ”Buell Quain” é mencionado num por conta da pesquisa, e fica evidente que cada do-
jornal, fato que leva o narrador a lembrar daquele ou- cumento que o narrador encontra revela e encobrem
tro nome que ouvira da boca do velho. Porém, não é o as cartas que documentam aspectos da história que
mesmo nome, o narrador o deixa bem claro. teriam sido duvidosamente traduzidas; sobre elas se
Ver o nome do antropólogo no jornal é um ga- constrói o testamento, que sabemos ser falso. O nar-
tilho no enredo para o despertar da experiência trau- rador vai em busca do filho do velho que morrera no
mática, entendendo por ela a resposta a um evento ou hospital, pois pensava que o velho poderia ter sido o
eventos violentos inesperados ou arrebatadores, que fotógrafo amigo de Quain. Porém, quando o encontra,
não são inteiramente compreendidos quando aconte- acha que ele se parece mais com Quain.
cem, todavia, futuramente retornam sob a técnica do Neste ponto, a confiabilidade da narrativa é
flashback, dos fenômenos repetitivos e, claro, pesadelos. colocada à prova e a ficção se desmancha nas arma-
Sobre a morte do pai, a sintaxe escolhida é seca dilhas do texto, que viaja entre diversas possibilidades
e mínima, diminuindo, em algum aspecto, a importân- de gêneros, como pode-se perceber na relação entre o
cia do fato da morte do pai. Porém, se o narrador che- documentário e a ficção e também entre a constituição
ga – na imaginação do velho (substituto de Quain), em de subjetividade e o plano material e histórico.
troca, o velho oferece a possibilidade de testemunhar Em Nove noites, a instância do passado sem-
sua morte, em substituto da morte do pai, que ocorrera pre retoma seu espaço, uma espécie de estrutura em
quando ele já tinha partido. Essa troca de papéis (a abismo na qual o tempo contém a junção cronológica
morte do velho substituindo a do pai, a chegada do do passado e o futuro, por intermédio de aspectos ou
narrador substituindo a do velho amigo Quain) funcio- materiais ou subjetivos, como a configuração de rostos,
na como um deslocamento, que pode explicar por que experiências vividas e lembranças do passado.
o mistério da morte de Quain provoca uma obsessão,
uma vez que ele remete à cena misteriosa da primeira
vez que o narrador vira um homem morrer e, é claro, Tema
ao mistério da morte silenciosa do pai. O narrador e
sua irmã têm disputado a herança do pai com a última
mulher dele, que é quem acaba ficando com tudo: o
pai só deixa aos filhos seu silêncio como herança.
Esse mistério da morte de Quain e, que também
poderia representar a morte do próprio pai, gera uma
obsessão no narrador, mas não pode senão ficar como
mistério na narrativa. Logo, o testamento de Manoel
Perna é um documento-chave da pesquisa, no entanto,
é escrito – inventado – pelo próprio narrador (segundo
ele próprio confessa quase no final do romance, deses-
tabilizando completamente o estatuto de verdade dos
fatos narrados). A comprovação da história de Quain é
declarada falsa para o leitor, mas que, apesar da decep-
ção, o interesse se mantém, pois o que interessa é mais O romance perpassa temas bastante explorados atu-
a pesquisa do que a suposta verdade sobre Quain. almente, como identidade, alteridade e sexualidade. A
A trama “quase” policial vai sendo tecida pela estética própria do escritor Bernardo Carvalho leva o
pesquisa sobre a morte de Quain e aparece menos leitor a vivenciar o que podemos chamar de “temática

85
do desaparecimento”, em que as narrativas se cons- ƒ Mistério e ambiguidade
tituem da não constituição. É uma espécie de fruição Já no primeiro instante, o leitor entra numa tra-
do enredo, que depende da perspicácia de entender ma de suspense com relação a esse “você”. O prono-
expressar a dificuldade de narrar acontecimentos e, as- me de tratamento refere-se ao destinatário secreto, ao
sim, estabelecer experiências comunicáveis. Os roman- mesmo tempo em que se dirige a qualquer um que
ces de Bernardo optam por narradores circunscritos em poderia ter acesso à carta ou à narrativa e, nesse caso,
investigações que envolvem uma viagem, enfrentam a o “você” passa a ser o leitor, grande personagem que
dificuldade de estabelecer os fatos, de confirmar sus- tenta desvendar os enigmas do texto.
peitas, de averiguar veracidade em suas demandas. Através do olhar ou da imaginação do narrador-
Os vários gêneros discursivos sustentam esta caracte- -epistolar, tem-se explicitada a intimidade do antropó-
rística; por exemplo, é como perceber em suas obras logo, bem como um efeito de cumplicidade entre esse
a conjunção de diários, cartas, fotografias e notas de narrador e o destinatário ausente.
viagem. Além disso, outro aspecto que corrobora para
este pensamento inicialmente proposto é a questão Segundo narrador
estética relativa à pluralidade de narradores que apa-
recem enquanto instâncias de características próprias O segundo narrador é o jornalista que investiga todas
e influência direta no enredo. as circunstâncias e fatos que giram em torno do suicí-
dio no tempo presente. Depois de sua visita ao Xingu,
Foco narrativo ele viaja aos Estados Unidos.
A outra narrativa é conduzida pelo trabalho de
A obra possui duas instâncias narrativas; neste sentido, pesquisa e investigação empreendido por um narrador-
deve-se estar atento à passagem de uma para outra. A -repórter disposto a descobrir a verdade sobre o suicí-
obra apresenta alternância de duas narrativas, diferen- dio de Buell Quain. É interessante perceber que o mes-
ciadas, inclusive por traços gráficos. mo não deixa de recorrer aos mais variados recursos
– cartas perdidas, jornais, fotos e depoimentos de con-
Primeiro narrador temporâneos –, que possam conduzi-lo a um desfecho.
Esse narrador, que é também jornalista, visita o Xingu,
O primeiro narrador é o “engenheiro sertanejo“ Manoel misturando-se com os índios em busca de informações
Perna, que manda uma carta ao interlocutor, mostrando sobre o convívio do antropólogo com os índios krahô,
como foram as nove noites com o amigo antropólogo. e, ainda, viaja para os Estados Unidos tentando encon-
Uma carta-testamento direcionada ao seu amigo Buell. trar algum parente e mais verdades sobre o suicida.
É impossível detectar um desfecho para o suicídio de
ƒ Narrador-personagem
Quain e, em função de tantas informações, o narrador
A primeira narrativa começa escrita em itáli-
toma a decisão de transformar todo material pesquisa-
co, um traço gráfico importante, que é conduzida por
do em ficção, mesmo que receoso.
um narrador-personagem, um engenheiro sertanejo,
morador de Carolina, contemporâneo e amigo do an-
tropólogo estadunidense Buell Quain. A escrita desse Tempo
narrador pode ser caracterizada como uma espécie de
carta-testamento, endereçada a um antigo “amante- O tempo da narrativa leva em consideração as duas
-amigo” de Quain, cuja chegada é esperada. instâncias narrativas apresentadas. Estas perspectivas
ƒ Narrativa epistolar paralelas e a pesquisa sistemática acerca do etnólogo
Essa narrativa epistolar é, na maioria das vezes, criam relações com a história e a antropologia do sé-
introduzida pela frase “isto é para quando você vier”, culo XX. Aliás, é possível observar o cotidiano e as di-
enunciado este que gera suspense em torno da perso- ficuldades na etnologia durante o Estado Novo (1937)
nalidade de um destinatário particular e ausente. no Brasil.

86
As nove noites

Foram nove noites que compreendem um intervalo de


cinco meses, desde o dia em que os dois se conhece-
ram até à última viagem à aldeia krahô. Trata-se de
uma carta alusiva e sinuosa, remetendo a fatos não
conhecidos ou simplesmente imaginados: “O que ago-
ra lhe conto é a combinação do que ele me contou e da
minha imaginação ao longo de nove noites”.

87
APROFUNDE SEUS CONHECIMENTOS
1. A partir da leitura da obra Nove noites, é in- d) Buell Quain conviveu com os mais ilustres
correto afirmar que: antropólogos que lhe foram contemporâ-
a) o relato do narrador-jornalista desdobra-se neos, como o professor Castro Faria e Lévi-
em três tempos diferentes articulados pelo -Strauss.
enigma da morte de Buell Quain.
b) o narrador-epistolar apresenta uma escrita 5. Sobre a narrativa de Nove noites, é incorreto
fidedigna com relação aos depoimentos do afirmar que:
antropólogo estadunidense. a) os três tempos do relato do narrador-jorna-
c) o engenheiro sertanejo escreve em meados lista não absorvem aspectos que marcam a
dos anos 1940, quando pressente a iminên- vida do antropólogo estadunidense.
cia da própria morte e relembra as nove noi- b) em seu primeiro parágrafo uma advertência
tes em que estivera com o etnólogo. ao leitor ou ao pesquisador que decidiu in-
d) o jornalista que escreve em 2002 não é o vestigar as razões do suicídio do antropólo-
único a ocupar a posição de narrador. go: trata-se de um território do indiferencia-
do, em que falso e verdadeiro combinam.
2. Todas as alternativas apresentam caracterís- c) o narrador-repórter, em busca de respostas
ticas de Nove noites, de Bernardo Carvalho, sobre a morte de Quain, entrevistou paren-
exceto: tes e antropólogo, pesquisou documentos e
a) Virtualmente, o “você” a quem a carta se concluiu que imigrar do jornalismo para a
dirige inclui não apenas o esperado amante ficção era uma saída honrosa.
de Quain, como também qualquer um que d) ao procurar traços da identidade de Quain, o
esteja em posição de lê-la. narrador-jornalista expõe a própria intimi-
b) Nessa narrativa tudo é ou se torna suspeito; dade e os mecanismos da criação literária.
todas as personagens aparentam saber mais
do que dizem e toda a investigação parece 6. Todas as alternativas retratam questões
estar fadada a não descobrir e sim e encobrir. abordadas pela obra Nove noites, de Bernar-
c) O narrador-jornalista é o único personagem do Carvalho, exceto:
que apresenta um discurso verossímil, isen- a) Choque cultural
to de suspeitas e de motivos secretos. b) Memorialismo
d) Esse romance retrata a morte violenta e c) Nacionalismo xenófobo
inexplicável que se impôs o jovem antropó- d) Verdade e mentira
logo Buell Quain.
7. Todas as alternativas apresentam uma rela-
3. Com base na leitura de Nove noites, de Ber- ção corretamente estabelecida entre as per-
nardo Carvalho, é incorreto afirmar que, sonagens de Nove noites e suas característi-
nessa obra, a linguagem: cas principais, exceto:
a) reflete uma alternância de fragmentos jor- a) Manoel Perna – o silêncio do sertanejo era a
nalísticos e tons memorialísticos. prova de sua amizade que ia conquistando
b) manifesta-se através de tempos que coexis- Quain.
tem, num ritmo quebrado e não linear. b) Ruth Landes – jovem geógrafa que estava no
c) apresenta-se em diversas passagens como Brasil com o objetivo de estudar os rios e
descritiva e objetiva. florestas da região norte.
d) afirma-se na teatralidade que veicula o com- c) Professor Pessoa – traduziu uma das cartas,
portamento das personagens. em inglês, deixada por Buell e acalmou os
índios, garantindo que eles não tinham ne-
4. A partir da leitura da obra Nove noites, de nhuma responsabilidade na tragédia.
Bernardo Carvalho, é incorreto afirmar que: d) Buell Quain – achava que estava sendo per-
a) o suicídio de Buell Quain trata-se do ponto seguido ou vigiado onde quer que estivesse
de partida dessa narrativa: um caso trágico, e era marcado por uma inquietação existen-
perdido nos anos e na memória. cial.
b) o autor insere fotos e personagens da década
de 1930 na história, como pessoas reais e de 8. Sobre o enredo de Nove noites, todas as al-
um fato real e registrado. ternativas estão corretas, exceto:
c) Buell Quain é personagem do mundo real, a) O antropólogo se cortou e se enforcou, sem
etnólogo reconhecido que deixou estudos explicações aparentes. Diante do horror e do
antropológicos e documentação importante sangue, os dois índios que o acompanhavam
sobre a língua krahô, falada por indígenas na sua última jornada de volta da aldeia
brasileiros. para Carolina fugiram apavorados.

88
b) Na bagagem pessoal de Quain, o narrador
encontrou roupas, sapatos, livros de música
e uma Bíblia. Havia, também, um envelope
com fotografias, com retratos dos negros do
Pacífico sul e dos trumais do alto Xingu.
c) Quain, antes do suicídio, alegou ter recebido
más notícias de casa e comunicou aos índios
a sua decisão de não mais ficar na aldeia.
d) Quain, em momentos de maior distração e
melancolia, falava muito sobre a sua mulher
e seus filhos.

9. Todas as alternativas contêm afirmações cor-


retas sobre a história de Buell Quain, exceto:
a) O antropólogo se matou na noite de 2 de
agosto de 1939, no ano de abertura da Se-
gunda Guerra.
b) Quain, nas últimas horas que precederam o
seu suicídio, escreveu aos prantos pelo me-
nos sete cartas.
c) Buell Quain chegou ao Brasil em fevereiro de
1938 e cinco meses depois estava morto.
d) Buell chegou ao Brasil às vésperas do Car-
naval, no Rio de Janeiro, e foi morar numa
pensão da Lapa, reduto de vícios, malandra-
gem e prostituição.

10. Todas as passagens, do romance Nove noites,


evidenciam uma combinação entre memória
e imaginação, exceto:
a) “O que agora lhe conto é a combinação do
que ele me contou e da minha imaginação
ao longo de nove noites.”
b) “Mas a ideia de uma relação ambígua com
a irmã, embora imaginária, nunca mais me
saiu da cabeça, como uma assombração cuja
verdade nunca poderei saber.”
c) “Assim como o que tento lhe reproduzir ago-
ra, e você terá que perdoar a precariedade
das imagens de um humilde sertanejo que
não conhece o mundo e nunca viu a neve e
já não pode dissociar a sua própria imagina-
ção do eu ouviu.”
d) “Meu pai morreu há mais de onze anos, às
vésperas da guerra que antecedeu a atual
e que de certa forma a anunciou. Hoje, as
guerras são permanentes.”

GABARITO
1. B 2. C 3. D 4. B 5. A
2. C 3. B 4. D 5. C 10. D

89
L C
Relatos de um certo Oriente

Obras

Milton Hatoum

L C
ENTRE ASPAS
MILTON HATOUM

No “Relato de um certo Oriente“, há um tom de confissão, é um texto de memória sem ser memorialístico,
sem ser autobiográfico; há, como é natural, elementos de minha vida e da vida familiar. Porque minha inten-
ção, do ponto de vista da escritura, é ligar a história pessoal à história familiar: este é o meu projeto. Num
certo momento de nossa vida, nossa história é também a história de nossa família e a de nosso país (com
todas as limitações e delimitações que essa história suscite). (Milton Hatoum)

Milton Hatoum nasceu em 1952, em Manaus (Amazonas),  onde passou a infância e uma parte da juventude.
Mudou-se para Brasília, em 1967, e estudou no Colégio de Aplicação da UnB – Universidade de Brasília. Morou
durante a década de 1970 em São Paulo, diplomando-se em Arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da USP. Trabalhou como jornalista cultural e foi professor universitário de História da Arquitetura.
Em 1980, viajou como bolsista para a Espanha. Morou em Madrid e Barcelona. Em seguida, passou três
anos em Paris, onde estudou Literatura Comparada na Sorbonne (Paris III).
É autor de quatro romances premiados. Sua obra foi traduzida em doze línguas e publicada em catorze pa-
íses. Foi professor de Literatura Francesa da Universidade Federal do Amazonas (1984-1999) e professor visitante
da Universidade da California (Berkeley, 1996). Foi também escritor residente na Yale University (New Haven, EUA),
Stanford University e na Universidade da California (Berkeley), bolsista da Fundação Vitae, da Maison des Ecrivains
Etrangers (Saint Nazaire, França) e do International Writing Program (Iowa, EUA).
Em 1989, seu primeiro romance Relato de um certo Oriente, foi publicado pela editora Companhia das
Letras, ganhando o prêmio Jabuti de melhor romance.
Publicou, em 2000, o romance Dois irmãos (prêmio Jabuti – 3º lugar na categoria romance e indicado para
o prêmio Impac-Dublin), eleito o melhor romance brasileiro no período 1990-2005, em pesquisa feita pelos jornais
Correio Braziliense e O Estado de Minas.
Foi um dos finalistas do prêmio Multicultural do Estadão, em 2001, por conta da publicação de Dois irmãos.
Seu terceiro romance, Cinzas do Norte, obteve, em 2005, o prêmio Portugal Telecom, grande prêmio da crítica/
APCA-2005, prêmio Jabuti/2006 de melhor romance, prêmio Livro do Ano da CBL e prêmio Bravo! de Literatura.

93
Recebeu, em 2008, do Ministério da Cultura a
Ordem do Mérito Cultural. Em 2010, a tradução ingle-
sa de Cinzas do Norte (Ashes of the Amazon, Blooms-
bury, 2008) foi indicada para o prêmio Impac-Dublin.
No mesmo ano, publicou seu quarto romance, Órfãos
do Eldorado, prêmio Jabuti – 2º lugar na categoria ro-
mance. Órfãos do Eldorado faz parte da coleção Myths,
da editora escocesa Canongate.
Em 2009, publicou o livro de contos A cidade Escola literária
ilhada. Em 2013, publicou o livro Um solitário à esprei-
ta, uma seleção de crônicas publicadas em jornais e Como a obra Dois irmãos foi publicada em 2000, per-
tence então ao Modernismo brasileiro.
revistas. Todos os seus livros foram publicados no Brasil
Seguindo a linha da literatura que valoriza a lin-
pela editora Companhia das Letras, cujas vendas ultra-
guagem simples, mas com elevado grau de arte e de
passaram 300 mil exemplares. correção gramatical, é obra da literatura contemporâ-
Hatoum publicou também ensaios e artigos so- nea, do Pós-modernismo como querem alguns.
bre literatura brasileira e latino-americana em revistas
e jornais do Brasil, da Espanha, da França e da Itália. Características do autor
Alguns de seus contos foram publicados nas revistas
Europe, Nouvelle Revue Française (França), Grand Mesclar experiências e lembranças pessoais com o
Stree (Nova York) e Quimera (México). Participou de contexto sociocultural da Amazônia e do Oriente é a
marca de Hatoum. Ele explica sobre seu primeiro livro:
várias antologias de contos brasileiros publicados na
“No Relato de um certo Oriente, há um tom de con-
Alemanha e no México, e da Oxford Anthology of the fissão, é um texto de memória sem ser memorialístico,
Brazilian Short Story. sem ser autobiográfico; há, como é natural, elementos
de minha vida e da vida familiar. Porque minha inten-
ção, do ponto de vista da escritura, é ligar a história
pessoal à história familiar – este é o meu projeto. Num
certo momento de nossa vida, nossa história é tam-
bém a história de nossa família e a de nosso país (com
todas as limitações e delimitações que essa história
suscite)”.
O escritor tece seus enredos sempre em torno
de sua cidade natal, Manaus, mergulhada no espaço
da floresta Amazônica. Há também nos seus livros
um certo tom autobiográfico e o resgate do universo
familiar que testemunhou o desembarque dos
primeiros imigrantes, na Manaus do início do século
XX. Ao abordar terríveis conflitos familiares, enfoca a
decadência dos princípios convencionais, sufocados
pelo espaço cada vez mais dominado pela voracidade
da globalização.

94
A partir do romance Relato de um certo Oriente, No intuito de enviar uma carta ao irmão que se
Milton Hatoum tem experimentado de um reconheci- encontra em Barcelona, a fim de lhe revelar a morte de
mento muito grande por parte dos críticos e também Emilie, acaba escrevendo um relato com depoimento
dos leitores do Brasil e do exterior. O primeiro livro, de membros da família e de amigos, conforme o irmão
assim como seu recente Orfãos do Eldorado, é conside- lhe pedira na última correspondência que lhe enviara.
rado por diversos críticos como obra-prima. Esses testemunhos proporcionam uma verdadeira via-
Milton Hatoum aborda as consequências deste gem à memória, com regresso à infância e aos fatos
aniquilamento das convenções, o seu reflexo na de- marcantes da vida familiar.
sorganização das relações familiares, adotando igual- Logo no primeiro capítulo, a narradora nos des-
mente um certo tom crítico na esfera política, princi- creve uma parte da casa na qual acabara de acordar,
palmente no que se refere à ditadura militar vigente em Manaus. A descrição das duas salas contíguas é re-
nos anos 1960 e 1970 no Brasil. O autor remonta os
pleta de marcas identificatórias do Oriente, indicando
fantasmas do passado para reconstruir no presente as
uma representação estilizada desse território: tapete
experiências já vividas.
de Isfahan, elefante indiano e reproduções de ideogra-
mas chineses são alguns dos objetos de consumo dos
RELATO DE UM CERTO ORIENTE ocidentais, tomados como símbolos, que estão presen-
tes nos cômodos.
Relato de um certo Oriente é o primeiro romance de Em Relato de um certo Oriente, as histórias fa-
Milton Hatoum, publicado em 1989. A obra trata da
lam das possibilidades e das dificuldades do trabalho
instituição da família e seus dramas, procurando mos-
com a memória, das tensões e da convivência de cul-
trar as dificuldades presentes na convivência diária de
turas, religiões, línguas, lugares, sentimentos e sentidos
familiares e amigos entre si, com seus diferentes segre-
diferentes das personagens em relação ao mundo.
dos e comportamentos.
Após longos anos de ausência, uma mulher re- O que mantém a tensão no romance é a nar-
torna à cidade de sua infância, Manaus, e estabelece rativa centrada em incidentes – o atropelamento de
um diálogo com o irmão distante. História de um re- Soraya Ângela e o afogamento de Emir.
gresso à vida em família e ao mais íntimo, no fundo é O romance reconstrói, no lugar das lembranças
uma complexa viagem da memória a si mesmo. e arestas daquilo que não se recorda, a casa que se foi,
Ao retornar a Manaus, após ter permanecido que é também um mundo único, exótico e enigmático
internada em uma clínica de repouso em São Paulo, capaz de se impor convicto e poético ao leitor.
a narradora chega justamente na noite que precede o Pela voz da narradora, o passado se remonta
dia da morte de Emilie, sua mãe adotiva. em retrospectiva, em que vão se encaixando outras
Inicia-se, então, um outro trabalho, o de recupe- vozes – espécie de coral –, tipicamente tonalizado,
rar Emelie através da memória, não apenas a sua, mas como se fazia na tradição oral dos narradores orientais.
também a de outros personagens que entrelaçaram
Mistérios, hesitações e limites de memória que vão se
seu percurso de forma significativa ao daquela família:
revelando em suas múltiplas faces das personagens,
o filho mais velho, o único a aprender o árabe e que
na contradição de sombra e silêncio em face da força
também irá se distanciar de todos, ao mudar-se para
iluminada do Amazonas.
o sul; o alemão Dorner, amigo da família e fotógrafo;
História de uma busca impossível, o romance é
o marido de Emilie, recuperado, mesmo depois de mor-
to, através da memória de Dorner; e Hindié Conceição, ainda uma vez aqui a aventura do conhecimento que
amiga sempre presente, a partilhar com a conterrânea empreende o espírito quando se acabam os caminhos.
a solidão da velhice. Muitas vozes a compor um mosai- É aí que começam as viagens da memória, da interio-
co, nem sempre ordenado, nem sempre claro naquilo ridade do indivíduo, reduzido e isolado na sua própria
que revela, mas, sobretudo, rico em pequenos detalhes história, quase que incomunicável com outro mundo
de extrema significação. que não seja o dele.

95
Tema possível inferir que a filha adotiva de Emilie arquitetou
meticulosamente a ordenação dos planos narrativos.
A estrutura de composição transita entre narra-
A memória, a identidade e a reconstituição de lem-
ção – em que a figura do narrador é extremamente im-
branças são os temas deste romance. A personagem
portante e o relato é feito principalmente com base nas
protagonista de Relato de um certo Oriente consegue,
tradições orais, como uma tentativa de rememoração
por meio da rememoração de seu passado e com a
das experiências coletivas do passado – e o romance,
ajuda das lembranças de outros, enriquecer sua vida,
que apareceria como um gênero literário decorrente
dar sentido e valor à sua origem.
das transformações da sociedade capitalista, que des-
O passado é retomado por intermédio de di-
trói cada vez mais a possibilidade que a experiência
ferentes recursos para reanimá-lo, como aspectos dos
comum viva e se revele no relato dos narradores.
sentidos, um odor, uma voz, um lugar, em nome de
Entre o primeiro e o quarto capítulos, verifica-se
recuperar a memória perdida.
um processo gradativo que evidencia um sistema que
se guia pela memória do passado, desde o dia em que
Linguagem e estrutura a narradora anônima fala sobre o dia em que voltou
a Manaus até o contexto em que o marido de Emilie
A linguagem desta obra é um ponto importante, pois mudou-se do Líbano para o Brasil.
o autor se vale de recursos discursivos apurados, como Já entre o quarto e o sexto capítulos, verifica-se
o procedimento contrário, ou seja, uma gradual apro-
uma ambientação visual com senso plástico e lírico; esta
ximação temporal em direção ao dia em que a filha
lírica (aspectos poéticos) se vale da viagem encantató-
adotiva de Emilie retornou à cidade em que nascera.
ria por meandros de frases longas e límpidas. O ritmo
Percebe-se, portanto, que as vozes dos seis primeiros
também deve receber uma atenção especial, em recor-
capítulos foram montadas de uma forma simétrica.
rências e remansos, de regresso à cidade ilhada pelo rio
e a floresta Amazônica, onde uma família de imigrantes
libaneses, há muito ali radicada, vive seu drama de pai- Vozes narrativas
xões contraditórias, de culpas de luto ao redor de mortes ƒ Capítulo 1: narradora-protagonista
trágicas. Além disso, outro aspecto de atenção vincula- ƒ Capítulo 2: Hakim
-se à chamada tradição oral, em especial às formas de ƒ Capítulo 3: Dorner
se contar histórias da tradição oriental. ƒ Capítulo 4: Dorner
A obra é um relato composto de outros relatos – ƒ Capítulo 5: Dorner e, depois, Hakim
podendo ser chamados de “metarrelatos” (relatos sobre ƒ Capítulo 6: narradora-protagonista
o próprio relato) –, distribuídos em oito capítulos. Estes ƒ Capítulo 7: Hindié Conceição
se parecem com a forma oral do narrar, em que uma ƒ Capítulo 8: narradora-protagonista
história é evocada para completar outras, à medida que
é um ou outro narrador quem detém a posse de cer-
ta informação que vai esclarecer uma outra apontada Personagens
anteriormente, como é o caso do uso da anáfora e da
catáfora. É possível perceber na estrutura narrativa o
A obra apresenta uma gama interessante curiosa de
princípio do encaixe, em que vão se reunindo pequenos
personagens: temos Soraya Ângela, filha de Samara
relatos que formam uma colcha de retalhos do todo. Délia, maltratada pelos tios por ser surda-muda e sem
pai conhecido. Outro personagem é o fotógrafo ale-
Foco narrativo mão Dorner, que passa os dias com uma Hasselblad,
fotografando “Deus e o mundo nesta cidade corroída
A narrativa de Relato de um certo Oriente, tem perso- pela solidão e decadência”.
nagens que se alternam na enunciação e com acon- Surge também Hindié Conceição, uma grande
tecimentos apresentados em uma ordem não crono- amiga de Emilie, que a acompanha até o fim e que
lógica. O que aparentemente parece algo caótico, vai desprendia “um cheiro, uma aura de fétidos perfumes
se revelando enquanto um “todo”. Neste sentido, é que flutuava ao seu redor”.

96
ƒ Emilie ƒ Hakim
Muito enérgica na relação familiar. Apesar de É o primogênito de Emilie, chamado de ”tio”
a imagem da mulher oriental ser ligada à submissão, porque, já nas primeiras páginas, a narradora diz que
consegue impor suas vontades mediante ao marido, ele e Samara se tornaram seus ”tios” (mas, na verdade,
aos filhos e à criadagem em geral. Emilie revela um
é seu irmão adotivo). Hakim também contribui com a
segredo a Anastácia, a empregada: “(...) o rancor de
narradora-protagonista, apresentando suas histórias ex-
um homem apaixonado se amaina com carinhos e qui-
traídas a partir de conversas com Gustav Dorner, Hindié
tutes. São duas armas poderosas para acalmar o gênio
Conceição e de sua própria experiência de vida. Ele é
de cão do meu marido (...)“.
Adorada pelos filhos, ela e é também a respon- responsável pela narração do segundo capítulo e de par-
sável por perpetuar a cultura libanesa aos seus descen- te do quinto, em que fala de sua relação com o fotógrafo
dentes – como dito anteriormente, ela escolhe Hakim, e do grande enigma que circunda a morte do tio Emir.
o filho mais velho para ensinar o “alifebata“, repetindo Muito curioso, Hakim conta que frequentava
a tradição cultural –, pois havia sido alfabetizada pela escondido o quarto de Emilie em busca de respostas
avó, antes de frequentar a escola. aos mistérios da mãe, como sua adoração pelo relógio
ƒ Narradora-protagonista de parede, as correspondências enviadas por alguém
A narradora principal não é nomeada pelo au- que assinava V.B. (esse nome só é anunciado mais tar-
tor. É ela quem tem a ideia de escrever uma carta ao ir- de: Virginie Boulad, irmã vice-superiora), as orações em
mão, o qual se encontra em Barcelona, para revelar-lhe francês e a inscrição em francês no túmulo de Emir.
detalhes do tempo em que eram crianças e da história Depois de sair de casa, Hakim troca correspon-
da família e dos amigos. Para isso, colhe informações dências com Emilie, mas nada por meio da escrita;
com outros personagens por meio de gravações de fi- o contato era feito somente por fotografias (e assim
tas e de anotações em cadernos.
ele soube da morte do pai). Foram quase 25 anos de
No primeiro capítulo, ela conta seu retorno à
correspondências. É importante, também, lembrar que
casa da infância, vinte anos depois, e descreve uma
esse era o filho com quem Emilie tinha mais afinidade.
parte da casa na qual acabou de acordar – dormiu no
pátio. Ao conversar com a empregada, obtém a infor- ƒ Samara Délia
mação de que a mãe havia viajado. Tratava-se da mãe É a filha de Emilie que teve uma menina quan-
biológica da narradora. Mas sua intenção verdadeira do ainda era adolescente e, por isso, foi rejeitada por
era se reencontrar com Emilie, sua mãe adotiva, en- toda a família. Depois da morte do pai, ela foge sem
contro esse que ela adiou por muito tempo. Nesse dia,
retornar à família.
Emilie já está à beira da morte, mas a narradora ainda
não sabe, e essa informação também não nos é dada ƒ Dorner
no primeiro capítulo. Dorner é um alemão amigo da família libane-
Ela também narra o sexto capítulo, o qual faz sa. Ele também contribui com sua narrativa para com-
referência ao primeiro, narrando as horas que antece- por o documento idealizado pela narradora principal.
deram a morte de Emilie. Não tendo encontrado a mãe É responsável pelo terceiro, quarto e parte do quinto
adotiva, ela sai a passear pela cidade, encontra Dorner capítulos.
e depois relata a morte de Emilie.
Conseguiu apagar um pouco do silêncio do ma-
O último capítulo (oitavo) é narrado por ela.
rido de Emilie e fazê-lo falar sobre sua vinda ao Brasil,
Aqui, são mostradas lembranças de quando estava
acompanhou de perto a dor da morte de Emir, seu ami-
internada na clínica, a visita de sua mãe biológica (e
seus desencontros) nesse local e referências ao primei- go, presenciou o momento em que Emilie e o marido se
ro capítulo. conheceram e acompanhou o nascimento e crescimen-
Essa personagem é a protagonista porque é ela to dos filhos do casal, bem como a adoção dos dois
a responsável por idealizar um documento maior for- filhos. Dorner acompanhou a história de Manaus e de
mado pela reunião dos demais. muitas famílias do local por meio de suas fotografias.

97
ƒ Emir ƒ Anastácia, a empregada
Um dos irmãos de Emilie, não contribui com a Anastácia Socorro é a lavadeira da casa e em-
narrativa, pois morreu muito antes da chegada da nar- pregada de confiança de Emilie, com quem a matriarca
radora à casa de Emilie. Por isso, o que se sabe dele divide seus segredos e sua cumplicidade.
sempre vem do relato de outras pessoas e sempre é mar- Mesmo sendo assim, tão próximas, Emilie faz
cado por um clima de angústia por causa de sua morte questão de deixar clara a relação entre patroa e em-
trágica, envolvida em segredos nunca descobertos. pregada. Anastácia, por exemplo, é proibida de comer
frutas e guloseimas da casa. Aliás, os empregados eram
Veio do Líbano com a irmã Emilie e com o ir-
muito maltratados pelos patrões (diversas empregadas
mão Emin. Abandonada pelos pais, Emilie, inconforma-
sofreram abusos dos dois irmãos de Hakim, mas eles
da, foge para o convento, local em que descobre sua
eram protegidos por Emilie, que sempre as culpava).
vocação religiosa. Após dias de procura, Emir desco-
Quem protegia Anastácia, sempre que ela era flagrada
bre o paradeiro da irmã e vai até o convento. Ao vê-
comendo alguma coisa, era Hakim, que dizia ter sido
-la vestida com o hábito, desespera-se e a chantageia,
ele quem dera a guloseima ou a fruta à empregada.
dizendo que iria se matar, caso ela não voltasse com Pelo fato de não concordar com essas e outras
ele. Para poupar a vida do irmão (que tinha um revól- atitudes, dos pais e dos dois irmãos, tio Hakim saiu de
ver apontado para sua própria cabeça), Emilie decide casa – não suportava esse preconceito (também não
acompanhá-lo. entendia por que pessoas de sua casa, estrangeiras,
Dorner encontra-se com Emir minutos antes de discriminavam os nativos, quando o normal deveria ser
sua morte, mas o que chama a atenção do fotógrafo, bi- o contrário).
ólogo que era, é a flor que Emir carregava na mão (uma
ƒ Soraya Ângela
orquídea rara). Assim, ele não percebe o momento de-
É a neta de Emilie e filha de Samara Délia. A
pressivo por qual passava o amigo em direção ao porto.
personagem é enigmática e silenciosa, não só por ser
O motivo do suicídio de Emir nunca foi conheci-
surda-muda, mas, assim como a mãe, vivia solitária e
do pelos familiares ou amigos. Suspeita-se de um des-
longe de todos. Soraya teve vida curta e polêmica. Filha
gosto amoroso (possivelmente, com a francesa) que o
de pai desconhecido e de mãe solteira, a menina foi
teria marcado profundamente. Mas também poderia rejeitada por todos, mesmo ainda na barriga da mãe.
ser pela inadaptação ao ambiente. Isso são somente A princípio, Samara Délia tentou esconder a
suposições, e nada é revelado pelo autor. gravidez, mas Emilie descobriu. Negou durante três ou
quatro meses, sem acreditar no outro corpo expandin-
ƒ Marido de Emilie
do-se no seu corpo, até o dia em que não pôde mais
Sabe-se que a história do pai da família libane-
sair de casa, até a manhã em que acordou sem poder
sa em questão é dito pelo alemão Dorner. No capítu-
sair do quarto.
lo em que é narrada sua história, ele relata sua vinda Samara Délia viveu cinco meses confinada, soli-
para o Brasil, para o qual viera em busca de seu “tio tária, próxima demais àquele alguém invisível, a outra
Hanna“. vida ainda flácida, duplamente escondida. Só Emilie
O pai de família era solitário e muito silencio- entrava no quarto para visitá-la, como se aquele espa-
so. Amava os filhos, mas foi muito rude com Samara ço vedado fosse um lugar perigoso, o antro do contágio
Délia, a ponto de ignorá-la quando esta engravidou e da proliferação da peste. E, na noite em que nasceu
muito nova e solteira. No entanto, depois de um tem- Soraya, a casa toda permaneceu alheia aos gemidos.
po, quando começou a conviver com Soraya, a neta, fez Durante sua curta vida, Soraya, que sequer ha-
questão de que filha e a neta (que viviam enclausura- via dito uma palavra, escreveu o nome da avó, com giz,
das no quarto) sentassem com a família à mesa. Infe- no casco da tartaruga. Esse momento foi de estupe-
lizmente, nunca conseguiu passar essa lição de perdão fação para toda a família, afinal, ela não sabia falar e
aos dois filhos, por isso desistiu deles. muito menos escrever.

98
Mesmo depois disso, a menina continuou sendo transformações do espaço, se dá conta de que este-
rejeitada pela família e pelas crianças (“e ela mesma ve ausente por longo período. Neste caso, houve uma
percebia isso“). Dos tios, apenas Hakim passeava com intensidade das mudanças dos espaços coletivos e as
a menina, os outros dois a desprezavam. do espaço familiar, o adormecer do sobrado – “a casa
toda parecia dormir” – impõem à personagem um
ƒ Hindié Conceição amadurecimento com relação à distância dela com a
Era amiga, vizinha e confidente de Emilie. Ela é cidade, com os grupos com os quais convivia antiga-
importante relatora para o documento final da narra- mente. A casa de Emilie, matriarca da família na narra-
dora protagonista, pois traz revelações sobre Emilie no tiva, é um microcosmo onde estas tensões aparecem e
sétimo capítulo. É a ela a quem Emilie revela o segredo são vividas cotidianamente.
do cofre e, consequentemente, de sua fortuna, “ao per- O aspecto popular remete ao exterior, como na
ceber que o marido já estava nas últimas“. descrição do bairro proibido ou o símbolo usado, para
Em seus relatos, Hindié recorda da vida da ami- mostrar a transposição entre esses dois ambientes, que
ga e também o quanto os dois filhos (que não possuem são a ponte através da qual a narradora passou para o
nome) a fizeram sofrer; ela narra os acontecimentos outro lado (“exorcizar essas quimeras”).
de seus últimos dias até a sua morte. Revela, também, Em outro trecho, Hakim, ao se referir ao fotógra-
que Samara era “uma flor rara para o pai“, que ele a fo, diz: “Lembro também de suas exaustivas incursões
amava muito, mesmo à maneira dele. à floresta, onde ele permanecia semanas e meses, e ao
Foi Hindié Conceição quem acompanhou a ami- retornar afirmava ser Manaus uma perversão urbana.
ga até seus últimos dias, uma vez que Emilie morava A cidade e a floresta são dois cenários, duas mentiras
sozinha e já não tinha nenhum filho por perto. separadas pelo rio”.

Espaço

Milton Hatoum traz sua personagem de Paris para Ma-


naus, no Amazonas, para contar a história da plurali-
dade cultural da cidade através de uma família de liba-
neses, onde a necessidade de convívio com a diferença
se estabelece na própria família de avó católica e avô
muçulmano. A trama se passa numa cidade marcada
pelo hibridismo cultural e atravessada pelas ideias de
fronteira e trânsito: Manaus, uma capital que se separa
da floresta pelas águas fluviais e se situa num Esta-
do que faz divisa com três outros países. Ela também
é a cidade natal do escritor. No livro, também estão
presentes a diversidade de costumes, línguas e a con-
vivência entre indivíduos de diferentes nacionalidades.
O espaço possui fundamental importância para
a busca do passado. Na Parisiense, no sobrado, nos pá-
tios e nos ambientes externos, esses relatos tornam-se
mais precisos, mais enriquecidos, acionam lembranças,
desafiam a busca de novas informações, indicam as
ações dos personagens, seus feitos, posturas, diálogos.
Eles são importantes tanto para Dorner, quanto para
Hakim e para a própria narradora, que, por meio das

99
APROFUNDE SEUS CONHECIMENTOS
1. Milton Hatoum nasceu em Manaus, em 1952. Assinale a alternativa incorreta em relação
Formou-se em arquitetura na década de 70 à obra Relato de um certo Oriente, de Milton
pela Universidade de São Paulo, mas é como Hatoum.
escritor que vem descobrindo os prazeres do a) Em relação ao tempo, tem-se a predominân-
reconhecimento profissional. Em agosto pas- cia do tempo psicológico, pois a obra é nar-
sado, recebeu pelo romance Cinzas do Norte rada por meio das lembranças de uma narra-
(Cia. das Letras), lançado em 2005, o Jabuti dora que busca se encontrar.
de melhor romance, o mais importante prê- b) Na narrativa, um dos momentos de tensão e
mio literário do Brasil. Não foi a primeira uma das lembranças mais dolorosas é o re-
vez. Seu romance de estreia, Relato de um lato da morte prematura de Soraya Ângela,
certo Oriente, publicado em 1989, foi agra- filha de Samara Délia.
ciado com a estatueta em 1990. Já seu livro c) Em “dispersasse o ambiente festivo, arrefe-
seguinte, Dois irmãos, de 2000, obteve o ter- cendo os gestos dos mais exaltados, chaman-
ceiro lugar na premiação de 2001. do-os ao ofício que se inicia com a aurora”,
Da infância no Norte, ele guarda muitas me- os vocábulos destacados são, respectivamen-
mórias e histórias da família, de origem ára- te: artigo definido, artigo definido, pronome
be. “Um bom livro é uma forma de conheci- oblíquo e artigo definido.
mento, de nós mesmos e dos outros“, diz o d) O romance é uma narrativa que traz à tona
autor, que trabalha em uma novela sobre o as lembranças familiares da época em que
mito da Amazônia para uma editora escocesa. Emilie e seus filhos viveram em Trípoli, no
Simone Goldberg. Revista TAM, ano 3, n. Oriente.
33, nov./2006, p. 24 (adaptado). e) Em “como uma intrusa que silencia as vozes
calorosas da noite”, as palavras destacadas
Em relação às informações do texto, assinale
podem ser substituídas por “assim como“ e
a opção incorreta.
“a qual“, respectivamente, sem alteração de
a) Milton Hatoum formou-se em arquitetura,
sentido do texto.
mas tornou-se escritor.
b) O escritor recebeu três vezes o primeiro lu-
gar do prêmio literário Jabuti.
c) A família do escritor tem origem árabe. GABARITO
d) Atualmente, Milton Hatoum trabalha em
uma novela sobre o mito da Amazônia. 1. B 2. D

2. O nome de Emir quase nunca era menciona-


do nas horas das refeições ou nas conversas
animadas por baforadas de narguilé, goles de
áraque e lances de gamão. Os filhos de Emilie
éramos proibidos de participar dessas reu-
niões que varavam a noite e terminavam no
pátio da fonte, aclarado por uma luz azulada.
Era um momento em que os assuntos, já pe-
neirados, esgotados e fartos de serem repeti-
dos, davam lugar a confidências e lamúrias,
abafadas às vezes pela linguagem dos pássa-
ros, e entremeadas por exclamações e vozes
que pronunciavam o nome de Deus. Era como
se a manhã – como uma intrusa que silencia
as vozes calorosas da noite – dispersasse o
ambiente festivo, arrefecendo os gestos dos
mais exaltados, chamando-os ao ofício que se
inicia com a aurora. Mas, em algumas reuni-
ões de sextas-feiras, o prenúncio da manhã
não os dispersava. Eu acordava com berros di-
lacerantes, gemidos terríveis, ruídos de trote
e uma algazarra de alimárias que assistiam à
agonia dos carneiros que possuíam nomes e
eram alimentados pelas mãos de Emilie.
HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 50-51.

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