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UNIDADE V – NARRATIVA: O ROMANCE DE EÇA DE QUEIRÓS

– O primo Basílio (Eça de Queirós)

O NARRADOR APRESENTA JULIANA

“Nascera em Lisboa. O seu nome era Juliana Couceiro Tavira. Sua mãe fora
engomadeira; e desde pequena tinha conhecido em casa um sujeito, a quem
chamavam na vizinhança — o"Fidalgo", a quem sua mãe chamava — o senhor D.
Augusto. Vinha todos os dias, de tarde no verão, no inverno de manhã, para a saleta
onde sua mãe engomava, e ali estava horas sentado no poial da janela que dava
para um quintalejo, fumando cachimbo, cofiando em silêncio um enorme bigode
preto. Como o poial era de pedra, punha-lhe em cima, com muito método, uma
almofada de vento, que ele mesmo soprava. Era calvo, e trazia ordinariamente uma
quinzena de veludo castanho e chapéu alto branco. Às seis horas levantava-se,
esvaziava a almofada, estava um bocado a esticar as calças para cima, e saía, com
a sua grossa bengala de cana-da-índia debaixo do braço, gingando da cinta. Ela e
sua mãe iam então jantar na mesinha de pinho da cozinha debaixo de um postigo,
diante do qual se balouçavam, de verão e de inverno, galhos magros de uma árvore
triste.
À noite o senhor D. Augusto voltava; trazia sempre um jornal; sua mãe fazia-
lhe chá e torradas, servia-o, toda enlevada nele. Muitas vezes Juliana a vira chorar
de ciúmes.
Um dia uma vizinha má, a quem ela não quisera ajudar a lavar a roupa,
enfureceu-se, e atirando-lhe injúrias dos degraus da porta — gritou-lhe que sua mãe
era uma desavergonhada, e que seu pai estava na África por ter morto o Rei de
Copas!
Pouco tempo depois foi servir. Sua mãe morreu daí a meses, com uma
doença de útero. Juliana só uma vez tornou a ver o senhor D. Augusto — uma tarde,
com uma opa roxa, lúgubre, na procissão de Passos!
Servia, havia vinte anos. Como ela dizia, mudava de amos, mas não mudava
de sorte. Vinte anos a dormir em cacifos, a levantar-se de madrugada, a comer os
restos, a vestir trapos velhos, a sofrer os repelões das crianças e as más palavras
das senhoras, a fazer despejos, a ir para o hospital quando vinha a doença, a
esfalfar-se quando voltava a saúde!... Era demais! Tinha agora dias em que só de
ver o balde das águas sujas e o ferro de engomar se lhe embrulhava o estômago.
Nunca se acostumara a servir. Desde rapariga a sua ambição fora ter um
negociozito, uma tabacaria, uma loja de capelista ou de quinquilharias, dispor,
governar, ser patroa; mas, apesar de economias mesquinhas e de cálculos sôfregos,
o mais que conseguira juntar foram sete moedas ao fim de anos; tinha então
adoecido; com o horror do hospital fora tratar-se para casa de uma parenta; e o
dinheiro, ai! derretera-se! No dia em que se trocou a última libra, chorou horas com a
cabeça debaixo da roupa.
Ficou sempre adoentada desde então; perdeu toda a esperança de se
estabelecer. Teria de servir até ser velha, sempre, de amo em amo! Essa certeza
dava-lhe uma desconsolação constante. Começou a azedar-se.
E depois não tinha "jeito", não sabia tirar partido das casas; via companheiras
divertir-se, vizinhar, janelar, bisbilhotar, sair aos domingos às hortas e aos retiros;
levar o dia cantando, e quando as patroas iam ao teatro, abrir a porta aos derriços —
e patuscar pelos quartos! Ela não. Sempre fora embezerrada. Fazia a sua
obrigação, comia, ia estirar-se sobre a cama; e aos domingos, quando não
passeava, encostava-se a uma janela, com o lenço sobre o peitoril para não roçar as
mangas, e ali estava imóvel, a olhar, com o seu broche de filigrana e a cuia dos dias
santos! Outras companheiras eram muito das amas, faziam-se muito humildes,
sabujavam, traziam de fora as histórias da rua, e cartinhas levadas e recadinhos
para dentro e para fora, muito confidentes — muito presenteadas também! Ela não
podia. Era minha senhora isto! minha senhora aquilo! E cada uma no seu lugar! Era
gênio!
Desde que servia, apenas entrava numa casa sentia logo, num relance, a
hostilidade, a malquerença; a senhora falava-lhe com secura, de longe; as crianças
tomavam-lhe birra; as outras criadas, se estavam chalrando, calavam-se, mal a sua
figura esguia aparecia; punham-lhe alcunhas — a "Isca Seca", a "Fava Torrada", o
"Saca-Rolhas"; imitavam-lhe os trejeitos nervosos; havia risinhos, cochichos pelos
cantos; e só tinha encontrado alguma simpatia nos galegos taciturnos, cheios de
uma saudade morrinhenta, que vêm de manhã quando ainda os quartos estão
escuros, com as suas grossas passadas, encher os barris, engraxar o calçado.
Lentamente, começou a tornar-se desconfiada, cortante como um nordeste;
tinha respostadas, questões com as companheiras; não se havia de deixar pôr o pé
no pescoço!
As antipatias que a cercavam faziam-na assanhada, como um círculo de
espingardas enraivece um lobo. Fez-se má; beliscava crianças até lhes enodoar a
pele; e se lhe ralhavam, a sua cólera rompia em rajadas. Começou a ser despedida.
Num só ano esteve em três casas. Saía com escândalo, aos gritos, atirando as
portas, deixando as amas todas pálidas, todas nervosas...
A inculcadeira, a sua velha amiga, a tia Vitória, disse-lhe:
— Tu acabas por não ter onde te arrumar, e falta-te o bocado do pão!
O pão! Aquela palavra que é o terror, o sonho, a dificuldade do pobre
assustou-a. Era fina, e dominou-se. Começou a fazer-se "uma pobre mulher", com
afetações de zelo, um ar de sofrer tudo, os olhos no chão. Mas roía-se por dentro;
veio-lhe a inquietação nervosa dos músculos da face, o tique de franzir o nariz; a
pele esverdeou-se-lhe de bílis.
A necessidade de se constranger trouxe-lhe o hábito de odiar; odiou
sobretudo as patroas, com um ódio irracional e pueril. Tivera-as ricas, com
palacetes, e pobres, mulheres de empregados, velhas e raparigas, coléricas e
pacientes; — odiava-a todas, sem diferença. É patroa e basta! Pela mais simples
palavra, pelo ato mais trivial! Se as via sentadas: "Anda, refestela-te, que a moura
trabalha!" Se as via sair: "Vai-te, a negra cá fica no buraco!" Cada riso delas era uma
ofensa à sua tristeza doentia; cada vestido novo uma afronta ao seu velho vestido
de merino tingido. Detestava-as na alegria dos filhos e nas prosperidades da casa.
Rogava-lhes pragas. Se os amos tinham um dia de contrariedade, ou via as caras
tristes, cantarolava todo o dia em voz de falsete a Carta Adorada! Com que gosto
trazia a conta retardada de um credor impaciente, quando pressentia embaraços na
casa! "Este papel!" — gritava com uma voz estridente — "diz que não se vai embora
sem uma resposta!" Todos os lutos a deleitavam — e sob o xale preto, que lhe
tinham comprado, tinha palpitações de regozijo. Tinha visto morrer criancinhas, e
nem a aflição das mães a comovera; encolhia os ombros: "Vai dali, vai fazer outro.
Cabras!".
As boas palavras mesmo, as condescendências eram perdidas com ela,
como gotas de água lançadas no fogo. Resumia as patroas na mesma palavra —
uma récua! E detestava as boas pelos vexames que sofrera das más. A ama era
para ela o inimigo, o tirano. Tinha visto morrer duas — e de cada vez sentira, sem
saber por quê, um vago alívio, como se uma porção do vasto peso, que a sufocava
na vida, se tivesse desprendido e evaporado!
Sempre fora invejosa; com a idade aquele sentimento exagerou e de um
modo áspero. Invejava tudo na casa: as sobremesas que os amos comiam, a roupa
branca que vestiam. As noites de soirée, de teatro, exasperavam-na. Quando havia
passeios projetados, se chovia de repente, que felicidade! O aspecto das senhoras
vestidas e de chapéu, olhando por dentro da vidraça com um tédio infeliz, deliciava-
a, fazia-a loquaz:
— Ai, minha senhora! É um temporal desfeito! É a cântaros; está para todo o
dia! Olha o ferro!
E muito curiosa; era fácil encontrá-la, de repente, cosida por detrás de uma
porta com a vassoura a prumo, o olhar aguçado. Qualquer carta que vinha era
revirada, cheirada... Remexia sutilmente em todas as gavetas abertas; vasculhava
em todos os papéis atirados. Tinha um modo de andar ligeiro e surpreendedor.
Examinava as visitas. Andava à busca de um segredo, de um bom segredo! Se lhe
caía um nas mãos!
Era muito gulosa. Nutria o desejo insatisfeito de comer bem, de petiscos, de
sobremesas. Nas casas em que servia ao jantar, o seu olho avermelhado seguia
avidamente as porções cortadas à mesa; e qualquer bom apetite que repetia
exasperava-a, como uma diminuição da sua parte. De comer sempre os restos
ganhara o ar agudo — o seu cabelo tomara tons secos, cor de rato. Era lambareira:
gostava de vinho; em certos dias comprava uma garrafa de oitenta réis, e bebia-a
só, fechada, repimpada, com estalos da língua, a orla do vestido um pouco erguida,
revendo-se no pé.
E nunca tivera um homem; era virgem. Fora sempre feia, ninguém a tentara;
e, por orgulho, por birra, com receio de uma desfeita, não se oferecera, como vira
muitas,
claramente. O único homem que a olhara com desejo tinha sido um criado de
cavalariça, atarracado e imundo, de aspecto facínora; a sua magreza, a sua cuia, o
seu ar domingueiro tinham excitado o bruto. Fitava-a com um ar de bitídogue.
Causara-lhe horror — mas vaidade. E o primeiro homem por quem ela sentira, um
criado bonito e alourado, rira-se dela, pusera-lhe o nome de Isca Seca. Não contou
mais com os homens, por despeito, por desconfiança de si mesma. As rebeliões da
natureza, sufocava-as; eram fogachos, flatos. Passavam. Mas faziam-na mais seca;
e a falta daquela grande consolação agravava a miséria da sua vida.”
UNIDADE V – NARRATIVA: O ROMANCE DE EÇA DE QUEIRÓS
– Dom Casmurro (Machado de Assis)

O NARRADOR APRESENTA JOSÉ DIAS

“CAPÍTULO IV- UM DEVER AMARÍSSIMO!


José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental às ideias;
não as havendo, servia a prolongar as frases. Levantou-se para ir buscar o gamão,
que estava no interior da casa. Cosi-me muito à parede, e vi-o passar com as suas
calças brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos últimos
que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças
curtas para que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, com um arco
de aço por dentro, imobilizava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque de chita,
veste caseira e leve, parecia nele uma casaca de cerimônia. Era magro, chupado,
com um princípio de calva; teria os seus cinquenta e cinco anos. Levantou-se com o
passo vagaroso do costume, não aquele vagar arrastado se era dos preguiçosos,
mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a premissa antes da
consequência, a consequência antes da conclusão. Um dever amaríssimo!

CAPÍTULO V - O AGREGADO
Nem sempre ia naquele passo vagaroso e rígido. Também se descompunha em
acionados, era muita vez rápido e lépido nos movimentos, tão natural nesta como
naquela maneira. Outrossim, ria largo, se era preciso, de um grande riso sem
vontade, mas comunicativo, a tal ponto ás bochechas, os dentes, os olhos, toda a
cara, toda a pessoa, todo o mundo pareciam rir nele. Nos lances graves, gravíssimo.
Era nosso agregado desde muitos anos; meu pai ainda estava na antiga
fazenda de Itaguaí, e eu acabava de nascer. Um dia apareceu ali vendendo-se por
médico homeopata; levava um Manual e uma botica. Havia então um andaço de
febres; José Dias curou o feitor e uma escrava, e não quis receber nenhuma
remuneração. Então meu pai propôs-lhe ficar ali vivendo, com pequeno ordenado.
José Dias recusou, dizendo que era justo levar a saúde à casa de sapé do pobre.
—Quem lhe impede que vá a outras partes? Vá aonde quiser, mas fique
morando conosco.
—Voltarei daqui a três meses.
Voltou dali a duas semanas, aceitou casa e comida sem outro estipêndio,
salvo o que quisessem dar por festas. Quando meu pai foi eleito deputado e veio
para o Rio de Janeiro com a família, ele veio também, e teve o seu quarto ao fundo
da chácara. Um dia, reinando outra vez febres em Itaguaí, disse-lhe meu pai que
fosse ver a nossa escravatura. José Dias deixou-se estar calado, suspirou e acabou
confessando que não era médico. Tomara este título para ajudar a propaganda da
nova escola, e não o fez sem estudar muito e muito; mas a consciência não lhe
permitia aceitar mais doentes.
—Mas, você curou das outras vezes.
—Creio que sim; o mais acertado, porém, é dizer que foram os remédios
indicados nos livros. Eles, sim, eles, abaixo de Deus. Eu era um charlatão... Não
negue; os motivos do meu procedimento podiam ser e eram dignos; a homeopatia é
a verdade, e, para servir à verdade, menti; mas é tempo de restabelecer tudo.
Não foi despedido, como pedia então; meu pai já não podia dispensá-lo.
Tinha o dom de se fazer aceito e necessário; dava-se por falta dele, como de pessoa
da família. Quando meu pai morreu, a dor que o pungiu foi enorme, disseram-me;
não me lembra. Minha mãe ficou-lhe muito grata, e não consentiu que ele deixasse o
quarto da chácara; ao sétimo dia. Depois da missa, ele foi despedir-se dela.
—Fique, José Dias.
—Obedeço, minha senhora.
Teve um pequeno legado no testamento, uma apólice e quatro palavras de
louvor. Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-as no quarto, por cima da
cama. "Esta é a melhor apólice", dizia ele muita vez. Com o tempo, adquiriu certa
autoridade na família, certa audiência, ao menos; não abusava, e sabia opinar
obedecendo. Ao cabo, era amigo, não direi ótimo, mas nem tudo é ótimo neste
mundo. E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham antes
do cálculo que da índole. A roupa durava-lhe muito; ao contrário das pessoas que
enxovalham depressa o vestido novo, ele trazia o velho escovado e liso, cerzido,
abotoado, de uma elegância pobre e modesta. Era lido, posto que de atropelo, o
bastante para divertir ao serão e à sobremesa, ou explicar algum fenômeno, falar
dos efeitos do calor e do frio, dos pólos e de Robespierre. Contava muita vez uma
viagem que fizera à Europa, e confessava que a não sermos nós, já teria voltado
para lá; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa família, dizia ele, abaixo de Deus, era
tudo.
—Abaixo ou acima? perguntou-lhe tio Cosme um dia.
—Abaixo, repetiu José Dias cheio de veneração.
E minha mãe, que era religiosa, gostou de ver que ele punha Deus no devido
lugar, e sorriu aprovando. José Dias agradeceu de cabeça. Minha mãe dava-lhe de
quando em quando alguns cobres. Tio Cosme, que era advogado, confiava-lhe a
cópia de papéis de autos.”

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