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lisboa

tinta­‑da­‑ china
MMXVII
Obra publicada com o apoio do
Ministério da Cultura do Brasil /
Fundação Biblioteca Nacional

© 2017, Espólio de Nelson Falcão Rodrigues


e Edições tinta­‑da­‑china, Lda.
Rua Francisco Ferrer, 6A
1500­‑461 Lisboa
Tels.: 21 726 90 28/9
E­‑mail: info@tintadachina.pt
www.tintadachina.pt

Publicado pela primeira vez em 1966,


na Editora Eldorado, Brasil

Título: O Casamento
Autor: Nelson Rodrigues
Revisão: Tinta­‑da­‑china
Composição: Tinta­‑da­‑china
Capa: Tinta­‑da­‑china (V. Tavares)

1.ª edição: Julho de 2017

isbn 978­‑ 989­‑ 671­‑385-0


Depósito Legal n.º 427669/17
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Saltou do automóvel, uma Mercedes, e avisou ao chofer:


— Me apanha daqui a meia hora.
O carro partiu. Bom na Mercedes era a velocidade macia,
quase imperceptível. Sabino vai comprar cigarros. Enquanto es‑
perava o troco, viu um sujeito bater nas costas do outro e berrar:
— Todo canalha é magro!
Por mais estranho que pareça, aquilo doeu­‑lhe como uma
desfeita pessoal. Apanhou o troco — dera uma nota de cinco mil
— e veio caminhando. O sujeito ainda repetiu, com a mesma fe‑
rocidade jucunda:
— O canalha é magro.
Com surda cólera, Sabino pensa, como alguém que se justifi‑
ca ou se absolve: «Eu não sou canalha.» Não ia se esquecer nunca
mais da cara do sujeito e do seu riso encharcado de saliva.
Entrou no hall do edifício. No décimo andar, em todo um
conjunto de salas, funcionava a Imobiliária Santa Teresinha (nome
proposto ou imposto pela mulher). Era o diretor­‑presidente. Sa‑
bino ou, por extenso, Sabino Uchoa Maranhão, tinha um vago,
não, não, um obsessivo pudor de ser magro. No quarto, quando se
despia (e nunca na presença da mulher), punha­‑se diante do espe‑
lho. Seu rosto tomava a expressão de um descontentamento cruel.
Lá estavam as canelas finas, diáfanas, o peito cavado, as costelas
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de Cristo. Sim, tinha uma nudez de Cristo magro, com um leve, imaginar no caixão. Achava que mais tristes do que os pés do
muito leve revestimento de pele. No Colégio Batista, onde fizera defunto são os sapatos. A morte descalça seria cordial, quase
o ginasial, era chamado de «bunda seca, bunda seca». doce.
Ia casar a filha menor, no dia seguinte. Muitas vezes, no escri‑ Mas sobrevivera. Aos 20 anos, casou­‑se com Maria Eudóxia,
tório, parava de trabalhar e ficava pensando, pensando. E, quieto, dois anos mais moça. Tempo depois, numa briga com a mulher,
meio alado, o olhar morto, imaginava que certos magros não po‑ esta fez, chorando, a pergunta:
dem amar nus ou, por outra, não podem amar no claro. Mas era — Casou­‑se comigo por quê?
um homem que, aos cinquenta anos, ainda impressionava várias Não teve coragem de dizer a verdade. Desviou o olhar:
mulheres. Parecia um desses pais nobres de Hollywood. Tinha um — Ora, por quê? Gostei de você, claro!
rosto atormentado e, sobretudo, um olhar intenso, acariciador e Mas eis a verdade inconfessa: casara­‑se porque era impotente
triste. Num momento de ternura, seu olhar vazava luz. com a prostituta. Ainda solteiro, voltara à casa de mulheres. A ca‑
Quando era moço e solteiro (no tempo ainda do Colégio Ba‑ fetina era a mesma e lia, num canto, um romance de carruagens e
tista) fora com outros a uma casa de mulheres. E, lá, um dos com‑ adúlteras (não gostava de história moderna). Aquela gorda tinha
panheiros, ex­‑seminarista, vira­‑se para Sabino: uma graça defunta de retrato antigo.
— Me passa isso aí, «bunda seca». Sabino veio caminhando por entre as mulheres. Uma delas,
Riram. Sabino fingiu que não tinha escutado. Baixa a cabeça. de busto forte, ventas de tarada, pediu­‑lhe um «amorzinho». Qua‑
O outro insiste. Sabino olha na mesa e, rápido, apanha uma garrafa: se fugiu. Com a sua timidez de magro, vagou algum tempo por
— Se disser outra vez, se me chamar de «bunda seca», eu mato, entre as mesas e as cadeiras. E, de repente, lembrou­‑se da morte
ouviu?, eu mato! do pai. Meia hora antes de morrer, já com a dispnéia pré­‑agônica,
Nunca se sentiu tão perto de matar. A dona da casa veio cor‑ o velho agarrara a sua mão. Disse e repetiu:
rendo. Impressionada com Sabino, a sua palidez de santo, o seu — Homem de bem. Homem de bem.
olhar lindo como um martírio, disse, baixo, sem desfitá­‑lo: A mãe catucara o filho:
— Vem comigo, vem. — É contigo, é contigo.
Deixou­‑se levar. Sabino veio a saber depois que Madame lia Era sim, com Sabino. O pai queria que ele fosse um homem
muito. De vez em quando, largava o romance para dar na cara das de bem. E, desde então, a vontade do defunto o acompanhava
meninas. Sabia de cor O grande industrial. Apanhou entre as suas as por toda a parte. Sabino andou de um lado para outro e, por fim,
mãos de Sabino e predisse como uma cigana: dirigiu­‑se à Madame que estava, no seu lugarzinho, com o livro no
— Menino, menino. Tu vai sofrer muito! regaço.
Naquele tempo, com sua obsessão de magro, acreditava que Disse, vermelho, com ardente humildade:
ia morrer cedo, talvez não chegasse nem aos 21. Gostava de se — Madame, eu queria ir com a senhora.

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A coisa saiu de um jato. E já se arrependia. Madame o reco‑ Mandou fechar a porta. Com certeza, a primeira prostituta tinha
nheceu. Teve um olhar úmido de mãe geral. No seu espanto deli‑ o perfume de um sabonete anterior a qualquer sabonete. Tudo, no
ciado, perguntava: quarto, era de um tempo defunto, inclusive a cama de Maria An‑
— Comigo? — e repetia, com uma afetação de garota. — Co‑ tonieta. Sabino começou a achar que aquela velha loura e safada
migo? Tem tanto brotinho! era tão morta quanto a mobília, tão morta quanto a escarradeira,
A morte do pai não lhe saía da cabeça. Teimou, com uma boca com um caule fino que se abria em lírio.
de choro: Madame puxava o sotaque:
— Quero a senhora. — Não vou tirrar a roupa.
Então, a cafetina gorda e nostálgica ergueu­‑se, num movi‑ Deitou­‑se, depois de levantar a saia. Sabino imagina que ela
mento ágil de menina. Toda ela ria, riam os seios, as ancas, a barri‑ devia ter debaixo dos seios um suor grosso e elástico como o dos
ga, e riam as pulseiras. E ele já não pensava mais na morte do pai. cavalos.
Lembrava­‑se agora da sua ira contra o seminarista, sim, do semi‑ Arqueja:
narista que o chamara de «bunda seca». Com uma brusca nostalgia — Madame, a senhora me desculpe. Mas acho que comi uma
da própria violência, ouvia aquela voz antiga: «Eu mato! Eu mato!» coisa que me fez mal.
Madame deu­‑lhe a mão: Passou a mão na barriga. A mulher senta­‑se:
— Oui, oui! — Vem cá, vem, ó filhote. Isso é nervoso. Mas passa. Deita
Era brasileira, filha de lituanos, mas brasileira. De vez em aqui.
quando, puxava um sotaque. Pintadíssima, sardenta, manchada Tomou coragem:
como uma tordilha. Sempre que fazia um gesto, era um alarido de — Madame, acho que, hoje, não vou conseguir nada. Mas
pulseiras, pingentes, colares, o diabo. Muito olhado, ele ia passan‑ pode deixar que eu pago. Eu pago.
do. E, de repente, na escada, começou a ter nojo, simplesmente Meteu a mão no bolso, deu­‑lhe as costas para contar o dinhei‑
nojo, da mulher. Em seguida, começou a ter nojo do cheiro do pai ro. Ela virou de bruços, mostrando as nádegas que se derretiam.
quando estava para morrer. Vinha descendo uma das mulheres. Sabino fugiu dali. Em casa, passou a noite em claro. O pai tinha
Madame deu risada: a fronte alta e fanática do justo. Revirava na cama. Só quase ao
— Vou namorrar. amanhecer ousou o prazer solitário.
A outra, muito morena, quase índia, esganiçou o riso. Sabino Mas tudo isso passou, graças a Deus. A imobiliária ia bem,
chega lá em cima e pensa: «Se ela me beijar na boca, eu vomito!» muito bem mesmo. Ainda na véspera, fechara um grande negócio:
O pior foi quando entrou no quarto. O pai, o lençol, o pijama, uma incorporação na rua Bolivar. Hoje, com cinquenta anos fei‑
a cama do pai e a própria morte tinham um cheiro. E, ali, o cheiro tos, está casado (bem casado). Tem quatro filhas, e nem um único
era de sabonete, de um sabonete que absolutamente não existia. e escasso filho. Por que só meninas? Eis a pergunta que Sabino

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fazia, sem lhe achar resposta. No último aniversário de Glorinha, — É um mistério que eu não entendo. Você entende?
justamente a filha que ia casar, dera uma festa em casa. E um dos Nas velhas culturas cabe a inversão sexual. Cabe. Mas o Brasil
convidados era o ginecologista da esposa e das filhas. O médico é um povo jovem, um povo sem múmias. Fez um gesto que envol‑
tinha bebido e continuava bebendo. via a sala e os convidados.
Sabino puxou o assunto: Ria, obsceno:
— Dr. Camarinha, me diz uma coisa. É uma pergunta que eu — Estás vendo aí alguma múmia?
estou pra lhe fazer. O seguinte: eu só tive filhas. Quatro. Isso quer E perguntava a Sabino: por que então essa masculinidade es‑
dizer alguma coisa? cassa, rala, deteriorada que só tem sentido nos povos inteligentes
O outro catava os fósforos (perdia todos os isqueiros). Res‑ demais? A nossa pederastia incivilizada, semi­‑analfabeta, o humi‑
pondeu: lhava como brasileiro. Sabino sempre tivera horror do bêbado.
— Isso quer dizer que você teve uma sorte danada. Tirou a Quis objetar:
sorte grande. — Não é tanto assim, que diabo.
— Mas como sorte grande? Eu acho até que filha é uma res‑ Dr. Camarinha ia dar­‑lhe uma réplica fulminante. Mas vinha
ponsabilidade tremenda. passando o garçom. Pergunta:
O outro não achava os fósforos: — Não tem uísque? Quero uísque. Isso aqui o que é?
— Escuta aqui, Sabino. Já imaginou se você tem um filho e o Era Coca­‑ Cola. Apanhou o copo e bebeu de uma vez só, com
filho dá para pederasta? Eu tenho um e dou graças a Deus de meu uma sede brutal. Devolve o copo e enxota o garçom:
filho ser macho pra burro! Macho, macho! Por meu filho, ponho — Vai buscar uísque, anda!
a mão no fogo! Porque o negócio é o seguinte: a pederastia está Volta­‑se para Sabino:
comendo solta por aí. E te digo mais. — São os fatos! Não vamos ter pudor dos fatos! Até nas fa‑
Joga fora o cigarro inteiro: velas. Sim, senhor, nas favelas! Na classe baixa, média e alta. Está
— É mil vezes melhor uma filha puta do que um filho puto! tudo infiltrado, não escapa rato. Tem mais, tem mais: na maioria
Sabino recua como um agredido: dos casos é uma pederastia sem prazer, sem vocação. Concorda?
— Mas que é isso, doutor? Nem tanto ao mar, nem tanto à terra! Controlava a própria irritação:
Com o seu olho rútilo de bêbado, um cinismo triunfal, o ou‑ — Não penso assim.
tro não parou mais. Balançava. E, no seu fluxo e refluxo, acabava E o outro:
caindo e se esparramando pelo chão. Dr. Camarinha falou de Co‑ — Ninguém enxerga o óbvio — e repetia: — Só os profetas
pacabana. Senhoras passavam, mocinhas, e o ginecologista falava enxergam o óbvio.
alto. Segundo ele, em Copacabana a pederastia pingava do teto, E olha em torno, como se o profeta, inédito, pudesse estar,
escorria das paredes: ali, comendo salgadinho. Em vez do profeta, passou o garçom.

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O médico quase agrediu a bandeja. Reclamou o uísque e acabou logista. Compreendeu? Um clínico, vá lá, um clínico, admitamos.
bebendo outra Coca­‑ Cola. Tirou um lenço e enxugou o lábio. Bai‑ E você quer saber o que eu penso, quer?
xa a voz, ofegante: Tirava os sapatos:
— É isso que está liquidando o Brasil. Falam do Nordeste. — Quem devia ser casto é o ginecologista. O ginecologista é
Literatura! A fome mata e não destrói. Mas a pederastia é a nossa que devia andar de batina, sandalinhas e coroinha, aqui, na cabeça.
autodestruição. Ainda bem que eu tenho um filho macho. Olha lá. A mulher suspira:
Está dançando com tua filha, a gentil aniversariante. — Cada louco com sua mania.
Sabino puxava o outro:
— Bem, Camarinha. Vamos lá pro meu gabinete.
O médico pára. Some a sua exaltação. Cria­‑se uma distância
súbita entre ele e Sabino, entre ele e o Brasil. O Nordeste é a Chi‑
na, Velha China, de Pearl Buck. Por um momento, desejou com
todas as forças a presença do garçom. E teve uma sede atroz, não
de Coca­‑ Cola ou uísque, mas de um refresco que não havia ali:
caldo de cana.
Disse, com um tédio cruel:
— Vamos, Sabino, vamos pro teu gabinete. Onde é teu gabi‑
nete?
Sabino teria mil coisas que dizer, que refutar. Mas como ar‑
gumentar contra um pileque? No fim da noite, no quarto, abriu
a alma:
— Te confesso que, hoje, fiquei besta. Besta com o Dr. Ca‑
marinha.
Maria Eudóxia passava o creme de espinhas:
— O Dr. Camarinha é um santo.
— Ora, santo! Santo e quase fez a apologia da lésbica? Diz que
não tem a menor importância a filha lésbica!
A mulher repassa o creme:
— Mas não estava bêbado?
— Eudóxia, qualquer um pode ser obsceno, menos o gineco‑

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