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República de Angola

Ministério da Cultura
– Complexo das Escolas de Arte

TEXTOS DE APOIO DE PORTUGUÊS

DOCENTE:

Zola Mbenga

10ª Classe

Luanda, 2015
INDICE
Canto da fome

Boaventura Cardoso

Mutudi a dama do ventre de fogo


António Pompílio

Padre Inácio o mata anjos


Ondjacki

A vingança
Óscar Ribas

Coisas do coração
Óscar Ribas

Mbangu a Musungu
Óscar Ribas

O criador e a criatura
João Melo

O dia em que o pato Donald comeu pela primeira vez a Margarida


João Melo

Crime e castigo
João Melo
Canto da fome
Tinha chuva grande. Na corrida rápida do vento o capim alto dobrava-se todo, as
árvores estremeciam.
Os pássaros já tinham passado. Só uma andorinha voava, perdida. Antes da
chuva as cabras correram à toa, saltaram vedações, regressaram à sanzala Brincadeira
das crianças lá fora terminara. As mulheres preparavam o fogo da cozinha dentro das
cubatas. Às vezes uma faísca cortava o negro do céu.
Tinha chuva. Chovia. Chuva grande.
O canto crescia. Cada vez que as enxadas cavavam a terra, as vozes eram mais
fortes. Desbravando a terra, os contratados cantavam. O chicote marcava o ritmo do
canto nas costas negras.
Canto. Trabalho. Canto. Trabalho. Canto. Trabalho.
Canto. Força! Força! Trabalho! Trabalho forçado! Força!
Quando começaram a trabalhar era de manhã sol ainda nascente. Ainda que
chovesse, o tempo estava marcado. Os contratados tinham de trabalhar sem parar.
Cortar capim alto, terra preparar, café plantar, plantar, plantar. Trabalho de contratado.
Agora estavam na fila. Alinhados. Os contratados não podiam tossir, nem falar.
A frente deles, a uma certa distância, o patrão, barrigudo, encharutado, continuava a
fazer contas, a assinar papéis. Quase não olhava para os contratados. No fim de cada
mês era sempre assim.
– João Tomé! – Começou finalmente a chamada dos contratados.
– Presente! – Respondeu o contratado enquanto avançava em direcção à mesa
onde estava o patrão. Humildemente.
– Seis vales na cantina, mais a visita do médico, mais o imposto indígena...
descontando tudo, não tens nada a receber. Nada a receber! – aqui o patrão falava alto
para todos ouvirem.
Entretanto, a cena foi acontecendo cada vez. A maior parte dos contratados não
recebia nada. Alguns recebiam dez angolares para todo o mês! Avançavam
esperançados, para recuarem tristes, na fila. Ninguém percebia as contas que o patrão
fazia, os contratados não sabiam ler, nem escrever.
Terra flor, o café florescia. O patrão aumentava a sua riqueza, todos os anos
comprava, carros novos e ia passar as férias no estrangeiro. Os contratados não tinham
descanso.
David Kassule esperava a vez dele. Não estava quieto na fila, mexia-se muito,
fechava as mãos de nervos. Ferviam pensamentos na sua cabeça. Cada tempo que
passava, ele mais nervoso ainda.
– David Kassule! – O patrão lhe chamou.

Fez aldrabice nas contas, assinou os papéis e disse: – Não tens nada a receber!
Vá! Toca a andar! Outro! Vá! Toca a andar!
Vendo que o contratado não saía daquele lugar, começou a ficar furioso.
Levantou-se e lhe empurrou. David Kassule rapidamente deu murro na cara do patrão.
A confusão era grande. Os papéis estavam no chão. Não tinha mais fila de contratados.
Cada um estava admirado. De repente o patrão pegou na pistola e descarregou as balas
na cabeça do contratado. David Kassule começou a sangrar. Caiu no chão. Todos
estavam em volta dele. O medo não lhes deixava falar nada. O patrão quis disparar
mais. A pistola não tinha balas. Foi buscar a caçadeira da caça no mato. Disparou todas
as balas, toda a fúria, toda raiva; tudo no corpo do contratado.
Arrastando os pés descalços, Os contratados regressaram, Era noite. Cantavam o
mesmo canto. A fila do regresso ia ficando pequena. Uns iam caindo. O canto
enfraquecia. Os pés arrastavam-se. As vozes morriam. Não tinha mais canto. A fila dos
contratados desaparecera na escuridão da noite escura.

CARDOSO, Boaventura (1980), O fogo da fala, Lisboa: Edições 70, pp 23/28.


Mutudi a dama do ventre de fogo

Primeiro capítulo
"Dona Maria de Assunção Vaiquene? Essa aí, compadre, enterrou cinco! Cinco
alminhas foram para o ceuzinho! Esta senhora, compadre, tem ventre de fogo! O último,
ainda não fez três meses que ela o enterrou... E olha p'ra ela, compadre! Boa como uma
mabanga! Linda como um anjo! Corpo de kianda! Mas com um coração de demónio!" –
afirmou Zé das Toalhinhas para o amigo.
"Estou mesmo a ver, compadre! Ela não está de luto? Como ela ginga com a
altura dela de cegonha, corpo dela é mesmo de dizer: quero-te até à morte!" – admirou
Turtúlio Vidigal.
"Cuidado!... Cuidado, compadre!... Não vai você agora também querê-la. Provar
o doce do demónio! Olha, o último morreu então de trombose! Na cama dela, no quarto
dela, depois de uma festa de beijos à luz do dia! Hum! Cuidado então!" – proferiu Zé
das Toalhinhas apontando o indicador direito para o amigo.
"Olha p'ra ela, compadre!... Parece que nunca teve maridos, andar de Palanca
solta no mato! Por acaso, compadre! Grande mataco! Boa carne!" – disse Turtúlio
Vidigal a fazer vénia aos atributos de dona Vaiquene.
"É para veres, compadre, que esta aí, é a mulher do demónio. Eu conheci três
dos seus maridos! O Jaka, o António e o Pedro Carrascão. O António foi o terceiro
marido dela. Homem bom, de poucas falas. Deixou-lhe dois filhos e uma loja na
Maianga. Morreu de hérnia, compadre. Estás a ouvir bem, hérnia! Ah! Ainda me lembro
daquelas noites em que íamos à caça delas lá pelas bandas do Marçal! Bons tempos! O
quarto marido foi o Jaka, compadre! Moço , jovem, saúde de ferro. Morreu sem mais
nem menos! Numa noite dormiu e lá se foi para sempre! A gaja enterrou-lhe com uma
pinta do caraças! Ela chorava... chorava... berrava que nem uma cabra, até que acabou
desmaiada em frente ao caixão!".
Dona Vaiquene, conhecida também por Vaivai, olhou com um olhar superior
para os dois amigos que conversavam na esplanada do café Xaxai. Fez um aceno,
dobrou a esquina da rua e caminhou silenciosamente para a casa de sua prima Matilde
num passo empolgado.
"Mas... E o último, compadre?" – questionou Turtúlio Vidigal.
"Esta história é a mais longa, compadre! O compadre não conheceu o falecido
Zito Gomes? Aquele que trabalhava como despachante no porto de Luanda... o que a
mulher pregou com o azémola do Brito Nunes?"
“Sim... Sim... Lembro-me como se fosse hoje, compadre!" – relembrou Turtúlio.
"Ora compadre, esse mesmo! O último marido dela era filho do falecido, o rapaz
chamava-se Pedro Carrascão! Rapaz de bom senso. Não fumava e nem bebia. O rapaz
era realmente um burro de sorte! Com os seus vinte e sete aninhos, engatou a
quarentona e pronto!... E só a deixou porque, ele morreu como todos os outros que ela
teve: cada um da sua maneira, este teve a morte mais triste!" – afirmou Zé das
Toalhinhas.
"O filho do Zito Gomes!" – exclamou Turtúlio Vidigal. "Este mesmo, compadre!
O rapaz ia bem aos estudos. Queria ser médico. O rapaz começou a emagrecer... a
emagrecer, até apanhar uma trombose!"
"Talvez o rapaz tivesse makas, compadre?" – interrogou piedosamente Turtúlio
Vidigal.
"Ora, compadre! A carne do demónio é mesmo assim. De tanto se comer
emagrece-se e apanha-se uma trombose. Também o miúdo em vez de aproveitá-la,
não!... Era um ciumento que só Deus sabe!" – disse Zé das Toalhinhas.
A casa da prima Matilde ficava mesmo ao virar da esquina. Dali viam-se os dois
amigos numa saborosa conversa acompanhada com dois copos de cerveja, depois de há
mais de cinco anos que não se viam.
"Prima Matilde! Não te conto! Sabe quem eu acabei de ver agora mesmo? O
Turtúlio e o Zé!" – disse Dona Maria de Assunção Vaiquene, logo assim que entrou em
casa da prima Matilde.
''Aqueles dois mujimbeiros, fofoqueiros de merda! Aiué, prima Vaivai! N'gana
Zambi! Eu que estava a pensar que um deles já tivesse morrido! Aqueles gostam...
gostam de vasculhar a vida dos outros. Mas olha, prima, num sa trapalha! Olha os gajos,
prima! – disse a prima Matilde, quando espreitava os dois amigos através do muro do
quintal. Parecem dois namorados. Um dia ainda acabam por casar...
''Ah, ah... Ah... ah... Esta, prima Matilde, é um ponto!" – sorriu dona Maria
Vaiquene.
Entretanto, o empregado de mesa do café Xaxai aproximou-se e trouxe mais
duas cervejas.
"Ó José, há quanto tempo trabalhas aqui?" – perguntou Zé das Toalhinhas ao
empregado do bar.
"Desde noventa e sete, Senhor Zé das Toalhinhas, e cá estou até hoje... Nunca
tive makas com o patrão!" – respondeu o empregado, pensando que tivesse atendido
mal os fregueses. Porquê?
"Nada... nada... é que... Hum! Você não conhece a Dona Maria Vaiquene, aquela
que mora ali no segundo andar no prédio do Banco Comercial?"
"Ela dia sim, dia não, cá está a tomar o seu café das nove da manhã! É cá uma
peça de mulher, senhor Zé das Toalhinhas!"
"Aquilo ali não é para os seus dentes. Traga mazé dois cafés bem quentinhos e
mete-se no seu lugar!" – disse Zé das Toalhinhas fazendo um ar rude no rosto.
Depois de saboreado o café, os dois amigos caminharam e dirigiram-se para o
largo da Sagrada Família.
"Este sol estafante, compadre! Só sabe bem estar à beira-mar, e estar debaixo de
um coqueiro e dar uma boa soneca!"
"É verdade, compadre! Quando é que vai lá a casa, visitar a sua afilhada,
Joanita? Ela pergunta sempre por si. Já nem sei o que dizer-lhe, compadre!"
"Eu agora estou longe, compadre! Desde que construí a minha casa no Futungo,
é difícil descer até cá abaixo!" – desculpou-se Turtúlio Vidigal da sua prolongada
ausência.
"Vamos combinar um funge, sábado, compadre!" – sugeriu Zé das Toalhinhas já
entusiasmado, acariciando a barriguinha dilatada de cerveja.
A caçula de Zé das Toalhinhas já estava catorzinha, Moça linda e prendada.
Frequentadora assídua da casa de Dona Maria Vaiquene. Ela nunca mais vira o
padrinho. Desde que ele se mudara do Maculusso para o Futungo, deixou-lhe a saudade
dos beijos e das bonecas que o padrinho Turtúlio lhe oferecia.
"A filha num tem nada a ver com o pai dela. Encantadora criança, calma e
afável!" – disse Dona Maria Vaiquene.
"A menina é um anjo, realmente! Muito educada, nem parece ter o pai que tem!"
– arrematou a Prima Matilde.
"Oh, prima! O meu Pedrito gostava tanto dela! Que era só visto!" – disse dona
Maria Vaiquene, relembrando as carícias e os carinhos que o falecido dava à caçula de
Zé das Toalhinhas.
Foram apenas sete meses em que Dona Maria Vaiquene se deliciou dos afagos
de Pedro Carrascão. Naquele dia, foi um dos mais negros da sua vida. Ela que já tinha
enterrado quatro maridos, agora era mais um que lhe vinha adicionar às desgraças! Foi
demais!
Foi num sábado de sol abrasador. Eles tinham ido à praia dos caçadores. (Uma
praia linda e deserta, com uma brancura incrível e límpida de areia se misturando com
as vagas verde-azuis do mar). Alugaram uma barraca aos pescadores da zona e por lá
ficaram até ao entardecer. Enquanto o marido rebolava na água, a mulher preparava os
cacussos com salada de tomate. Vinho fresco e cerveja a estalar. O peixe já estava no
fogo a arder, sob o encanto do sol e da bela paisagem. Depois do almoço estenderam-se
na areia e deixaram as águas farfalharem os corpos já salgados. Quando chegaram em
casa, descansaram com toda a paz e alegria jamais vista. Já à noite, Pedrito queixou-se
de uma forte dor de cabeça.
Dona Maria Vaiquene foi buscar rapidamente uma aspirina e um copo de água.
Mas não foi o suficiente. As dores eram fortes demais, os comprimidos que a mulher lhe
tinha dado não surtiram o efeito esperado. As dores aumentavam e Pedrito gemia que
gemia. Só a aflição de dona Vaiquene! Pouco depois, o jovem esticou o corpo. Deu um
outro ai, prendeu-lhe a perna esquerda, o tronco, o braço e por fim os lábios. Dona
Maria Vaiquene, atrapalhada, colocou um vestido transparente que estava próximo de si
e chamou a vizinha Quitéria que morava no apartamento ao lado. Quando a vizinha
chegou, deparou-se com o corpo de Pedrito nu, gelado e imóvel por cima da cama como
viera ao mundo.
"Aiué! Santa Maria!" – gritou ela quando viu Pedro Carrascão morto e nu, com a
boca torcida do último suspiro.
"O que é que eu faço?" – perguntou Dona Maria Vaiquene à vizinha, preocupada
com o acontecimento.
Dona Quitéria, amiga e vizinha de Dona Vaiquene, apanhou um arrepio na
espinha ao ver Pedrito pelado e morto. Ela, que também era uma solteirona pouco
pretendida, tapou os olhos, deu ai misturado de prazer e de dor. Imaginou noites doces e
quentes. Anos atrás, o marido abandonou o lar e deixou-lhe sozinha com três
candengues: – Disse-lhe que só ia comprar cigarros e sumiu para sempre. – "Chama a
polícia... um médico... uma ambulância!" – berrou a Dona Quitéria aflita. Ela não soube
de momento amparar a vizinha. Era uma mulher mole e pouco expedita. Ganhava a vida
a vender gelados de múkua e quando tivesse algum dinheiro, virava kinguila debaixo do
prédio onde morava.
Dona Vaiquene, corajosa, foi à geleira buscar uma garrafa de água fria.
Despejou aos jorros sobre o rosto do marido. Mas ele nem um ai, nem um ui. "Se calhar
o meu Pedrito desmaiou." – Disse. Ela ainda o abanou. Sentiu o corpo dele gelado. Os
lábios torcidos do último suspiro. Depois, vieram a tristeza e as lágrimas. Pedrito já
estava morto, de olhos abertos de aflição. "O quê que se passou?" – interrogou-se à
vizinha Quitéria. Sem saber de nada, só abanava a cabeça, reflectindo às desgraças
anteriores com os outros maridos da vizinha, na qual ela fora muitas vezes testemunha.
Foram apenas alguns segundos de lembranças amargas de dona Vaiquene. Tudo
porque, a cadela Miatoca ladrou. A cadela normalmente não ladrava, ficava dentro da
sala, silenciosa, a escutar os sons e os passos de quem entrasse. Desta vez, a Miatoca
sentiu um cheiro que veio de fora e ladrou, despertando assim dona Maria Vaiquene de
más lembranças.
"Mas, quem está a bater à porta desse jeito?" – perguntou a prima Matilde.
"Sou eu, Quimquim!"
"Xê! É você! Estás a gozar ou quê?"
"Deixas-te disso, Matilde! Manda lá parar de ladrar a tua cadela!"
Fazia duas semanas que Quimquim não aparecia em casa da Matilde. Ela que
queria ir comer cacussos no Panguila, sábado último, desconseguiu. Agora estava com
neura. Furiosa pelo tempo de ausência do namorado, mas também contente em vê-lo,
mandou calar a cadela e pegou o animal ao colo.
Dona Vaiquene sabia o que se passava entre os dois; conhecia-o vagamente por
intermédio da prima. Foram apenas duas vezes que se avistaram. Tomou conhecimento
através de Matilde que o rapaz era bonito e alto; com bom porte físico e elegante. Com
emprego raro e bom salário. Trabalhador de uma plataforma petrolífera em Cabinda. O
namorado ficava três meses no mar de Cabinda e uma semana em Luanda. Quando ele
regressava de lá, trazia uns trocados para a namorada que, deskuanzada, servia sempre
para comprar qualquer coisa. Quanto mais não fosse o osso para a Miatoca encher as
tripas.
"Entra mazé, agora estás com vergonha!" – resmungou Matilde para o
namorado, já esboçando um sorriso nos lábios saudosos.
"Quem é aquela?" – perguntou Quimquim com voz baixa.
"Estás a fingir ou quê? Você não conhece a prima Vaivai?"
"Aham! A viúva boazuda!"
"Cala-te! Você é muito abelhudo!"
"Boa tarde, prima Vaivai!" – Dona Maria Vaiquene olhou sobriamente de cima a
baixo para o jovem e estendeu-lhe a mão.
"Estás bom, jovem!"
"Senta-te, Quimquim!"
O motivo que levou Dona Maria Vaiquene à casa da prima ainda não tinha sido
comentado. Eram quatro horas da matina, quando a alma de um dos falecidos maridos
invadiu-lhe o quarto. Ela sentiu um vulto que lhe passava as mãos pelo corpo; a ser
tocada nos lábios, a percorrerem os contornos do abdómen. As mãos a dedilharem-lhe
os seus cabelos encaracolados. E quando foi acariciada no jardim da sua púbis, ela
sentiu um arrepio e despertou. Abriu os olhos sobre a névoa do quarto. Ele estava ali,
hirto, silencioso, olhando-lhe e contemplando a sua formosura. Dona Vaiquene deu um
grito. Acendeu o candeeiro da banca de cabeceira. Ainda, sonolenta, esfregou os olhos
espantados e sentiu algo a esfumar-se.
A imagem tinha desaparecido e ficara-lhe a leve sensação de que qualquer coisa
acontecera entre o sonho e a realidade. A alma madrugadora pareceu-lhe à imagem de
Antoninho, pelo tocar dos dedos grossos que lhe exploravam saudades adormecidas.
Desde aquela hora da madrugada, a insónia tomou-lhe conta dos olhos. Ficou exausta e
preocupada com o acontecimento. Mas como a prima Matilde é uma "boca azul", uma
faladora por excelência, (até parece que tem um altifalante na garganta), dona Maria
Vaiquene ainda não tinha conseguido dizer nada à prima. Deixou que o casal se
desculpasse e apagasse primeiro as nostalgias.
"Você também só aparece quando me precisas, não é?" – afirmou Matilde para o
namorado.
"Não! Eu até vim só te deixar um kumbú!" – disse Quimquim.
"Ai é! Ainda bem! Estava mesmo para pedir à minha primota algum...”
Entretanto, quando Zé das Toalhinhas chegou a casa, a primeira novidade que
deu à família foi de ter encontrado o compadre Turtúlio Vidigal.
"Ó Joanita, o teu padrinho manda-te cumprimentos!" – disse o pai à filha.

"O papá não disse que eu preciso de dinheiro para pagar as minhas matrículas? É
que estes professores de agora, ham! Querem tudo! Pedem dinheiro e engravidam as
alunas.
“Quem... quem é o sacana? Eu vou já lá!” – refilou Zé das Toalhinhas, pensando
nas maldades que poderiam fazer à sua estimada caçula.
“Não... não... Pápa... não sou eu! É a minha colega Henriqueta!"
"Cuidado, minha filha! O Papá ainda está vivo! Esta gente não se pode dar um
dedo, querem o corpo todo!"
"E o dinheiro, Papá?" – perguntou ela.
"Pede à tua mãe!"
"Pudera! Sempre a beberes nos bares, como o dinheiro chega-te?" – disse a
esposa de Zé das Toalhinhas quando se aproximou do marido e sentiu o bafo a álcool.
Em casa da Prima Matilde, já havia na mesa cervejas, pinchos de porco com
molho de cebola picada e um frasco de jindungo kaombo. Quimquim ia já na terceira
cerveja. Dona Vaiquene calada. Apreciava uma xícara de café pensativamente,
Recordava a alma de outro mundo que lhe tinha vindo visitar de madrugada. A imagem
era parecida com o Antoninho. Mas, apesar da sua preocupação, ela saboreou
tranquilamente o café. Entrelaçou as pernas e meteu o polegar esquerdo entre os lábios.
Fez uma leitura rápida no aspecto de Quimquim: Desleixado. A barba por fazer e com
os cabelos despenteados. A camisa branca que trazia, estava manchada de óleo e
cheirava a um perfume barato.
Dona Maria Vaiquene deixou-lhe dar o último gole da terceira cerveja.
Levantou-se calmamente da mesa e, fingindo ir ao quarto de banho chamou a prima
discretamente e levou-lhe no hall da sala e disse:
"Matilde! Sabes de uma coisa? Não é que o Antoninho me apareceu ontem à
noite!"
"Num pôde, prima! Então, ele que já morreu volta mais? O quê é que ele quer?"
"Não sei, prima! Não foi sonho mesmo, eu lhe vi mesmo!
Olhou-me com àqueles olhos dele, parece camaleão!" – disse a prima
amedrontada.
"O Antoninho, quem diria! Filho de uma... Ele que era tão pacato e tão calmo foi
voltar? Ah prima! Estas coisas eu não gosto! Já não basta o azar que tu tiveste com o
Carrascão, agora mais esta?"
"É verdade! Já viste o meu azar?" – lamentou Dona Vaiquene.
"Calma... calma... prima! Eu conheço uma bessangana na ilha. Ela trata destas
coisas de almas de outro mundo!" – disse Matilde acalmando os ânimos da prima.

"Agora me aparecem cazumbis, já viram! Não bastam os pesadelos que tenho


tido!"
"Malembe... malembe... minha prima. Vamos ao kimbanda!"
Quando as primas regressaram ao quintal, Quimquim já se tinha levantado e
brincava com a Miatoca. Agora, a cadela estava mais calma e sorridente. Delirava com
as festas dele.
"Ah! Já vais embora?" – perguntou Matilde ao namorado.
“Tenho que ir ao Golfe comprar uma peça do carro!"
“Sucatas... só sucatas!... "
"A minha mulata é mesmo assim! Quando eu conto com ela, trai-me e tenho que
gastar mais dinheiro." – disse Quimquim, referindo-se ao seu carro velho.
Dona Maria Vaiquene passou o resto do dia em casa da prima Matilde com
medo que Antoninho nesta noite fosse novamente visitá-la.
''A prima já imaginou se todos os falecidos se juntarem e resolvam me pedir
contas?" – disse com ironia Dona Maria Vaiquene, agora já mais bem disposta.
"É uma porra, prima!" – disse a prima Matilde. – ''A prima já fez a missa do
terceiro mês do Carrascão? E mesmo do Antoninho! Se calhar, eles então querem que
lhes rezem uma missa!"
"Tenho que fazer dos cinco, prima! Antes que eles todos resolvam vir cá em
cima e me azucrinar a paciência! Mete mais uísque, prima! Assim durmo... durmo... e
não dou conta de nada!" – disse Dona Maria Vaiquene, já com uns copos de uísque a
mais.
Era já noite, quando Matilde abriu de propósito outra garrafa de uísque para
apagar a mágoa da prima. O caso não era para brincadeiras, com almas de outro mundo
não se brinca. Sobretudo nesta altura do campeonato em que a alma do Antoninho
parecia estar revoltada passados vinte anos: Ele que era um pacato homem e não se
metia em alhadas. Como foi possível o cazumbi dele regressar ao mundo dos vivos?
Dona Maria Vaiquene ficou incrédula. Era, impossível uma alma amena como a dele,
pai dos seus filhos, marido exemplar fosse agora, depois de morto, apoquentar a sua
vida. Mesmo assim, elas embebedaram-se, talvez para esquecerem os maus momentos
da vida. No fim, as duas já riam às gargalhadas de funda garganta e contavam diversas
facetas passadas.
" Matilde, não te lembras do poeta maluco? Que andava atrás de ti?"
''Ah!... ah… aaah!... ahhh!... "
"O gajo, quando bebia, queria todas as mulheres!".
"Lembras-te do poema dele? – dizia que era poesia experimental, e não se
entendia nada!"
"Eras cazumbi da insónia. O porteiro das almas penadas!..."
"Falando em almas penadas. Manda os gajos todos pró inferno, sacanas! Só me
trazem desgraça, esses desgraçados homens!" – disse Dona Vaiquene.
"Eles que se cuidem! Conheces aquela cena do candongueiro que também viu
alma do outro mundo, cazumbi da mulher dele?"
"Não!"
"Vou te contar: – Parecia era mesmo cazumbi. Era meio-dia de sábado de sol
farto. Gente na Praça da Estalagem parecia comício. Pessoas não se sabe estavam a vir
da donde é. Nga Muzua parou o candongueiro mesmo ao lado de uma lixeira, para fazer
entrar novos passageiros. Chamou ainda um candengue e comprou um saco de água
fresca antes de partir. Mas foi só ele dar um gole, quando baixou a cabeça, na frente
dele, dentro dos olhos dele, Mana Constância que já tinha falecido há anos estava a vir
ter com ele com a beleza dela, a remexer a bunda; conforme fazia antigamente, quando
ainda estava viva. Nga Muzua falou num pôde. Eu que fui ao funeral dela, komba e tudo
...Está embora a voltar mais? Nga Muzua sair do carro estava a desconseguir. Rabo dele
ficou preso no assento, a ver cazumbi de mana Constância vir em direcção dele sem
parar. Ela encostou-se mesmo junto ao vidro da janela do Hiace. Toda sorridente, com
aqueles olhos de morta a lhe perguntar: Não me conheces? Nga Muzua não podia dizer
não. Ela era mesmo, Constância daqueles tempos que tomavam cerveja na praça à noite
e iam namorar na ilha à noite com aquele vento, com aquela brisa bonita que vinha lá de
longe do fundo do horizonte. Tinha ele namorado com ela durante meses, ficaram até
noivos e tudo. Só faltava mesmo eles casarem-se. Nga Muzua a tremer, pernas dele
ficaram mutiladas, olhos dele dentro dos olhos da cazumbi. Mana Constância lhe gritou:
''Agora, não dizes nada, perdeste a língua ou quê?" Nga Muzua sem língua sem
fala, soletrou não... Não... Olha! Quando quiseres me ver, estou sempre ali, junto
daquele imbondeiro de ramos secos. Depois de Mana Constância dizer isso, partiu e
sumiu no meio da enchente. Os passageiros só falavam: Vamos embora daqui está a
cheirar a cadáver! Nga Muzua despertou. Suspirou fundo e instalou-se no carro um
silêncio profundo. Nga Muzua pôs o carro a trabalhar e partiu em direcção à Praça dos
Congolenses. Entre os soluços do automóvel e o tremer dos dentes, parou aonde tinha
conhecido pela primeira vez Mana Constância que agora lhe tinha vindo visitar por
saudades. Xê! Só a bunda e os peitos da Cazumbi! Nga Muzua falou não! Se amor é
assim, deixa estar! Nga Muzua bebeu uma cerveja a estalar para relaxar os nervos.
Depois disso, nunca mais Nga Muzua fez a mesma rota. Dizem que ele agora virou
roboteiro no mercado Roque Santeiro.

POMPÍLIO, António (2006), Mutudi a dama do ventre de fogo, Luanda: União dos
Escritores Angolanos, pp 17-27.
Padre Inácio o Mata Anjos

Alguns dizem:
– A alegria é maior que a tristeza.
Outros afirmam:
– Não, a tristeza é maior.
(…)
Vêm juntas
e quando uma se senta
a sós convosco à vossa mesa
lembrai-vos que a outra
dorme na vossa cama.

khalil gibran, o profeta

Aspirantes. Freiras. Moças do coro. Catequisandas. Enfim, varria tudo o que lhe
aparecia inevitavelmente pela frente. De facto, não foi por acaso que muito rapidamente
o padre Inácio ganhou (com mérito) a alcunha de Mata Anjos...
Abriu a porta que esteve fechada durante três anos. No mesmo instante em que
punha o seu pé gordo no interior da paróquia, dois quarteirões ao lado, a Avó Catarina
exclamava: «Guardem as vossas filhas, as vossas netas, as vossas sobrinhas e até
mesmo as vossas afilhadas. O Mata Anjos chegou»!
Sem ter um aspecto totalmente asqueroso, porque a batina impecavelmente
branca não o permitia, o Padre Inácio era no entanto quase nojento. Na sua boca
escorregadia, só faltavam lá bichos a habitar, pois tinha todas as condições criadas para
isso. Os dentes eram de uma coloracão indefinida – tingidos… nas gingivas, brotava um
pequeno musgo que precisava de ser podado todos os dias. Assemelhava-se, o musgo, a
um vulgar bolor, com a diferença de exalar um forte cheiro a mijo de javali. Era cruel o
que se ouvia dizer da sua aparência, mas depois de vê-lo, constatava-se que não havia
exagero nenhum. Todas as cores, os tons e até os cheiros, se confirmavam com a sua
presença. Daí que espantasse não habitarem bichos na sua boca.
Com a sua chegada, a paróquia de S. Francisco de Assis ganhou vida. E quanta
vida! O padre Inácio organizou sozinho, de forma brilhantemente matemática, horários
compatíveis e flexíveis, para que as raparigas da Praia do Bispo tivessem sempre uma
actividade para partilhar com ele. Fosse o canto, a Catequese, o curso de Ajudante de
Missas, ou até mesmo, imagine-se o basquetebol. À medida que o tempo e as aulas iam
decorrendo, nas mais diversas actividades, o padre foi desenvolvendo inovações. Nas
aulas de canto, por exemplo, quando carecia de um agudo, beliscava energicamente o
rabo das moças. Se fosse o caso de uma nota grave, em vez de beliscar, limitava-se a
apalpar de mansinho. Os códigos eram respeitados e, com esses códigos, o padre Inácio
passou a ensinar uma série de actividades até então desconhecidas para as raparigas.
Com o passar dos primeiros meses, o padre notou que duas pessoas na Praia do
Bispo não vinham às suas missas: a Avó Catarina e o Sr. Tuarles. Indagou sobre as
razões de tais ausências contínuas e nada conseguiu apurar. Da mesma maneira que
ninguém contava que gritinhos eram aqueles que se ouviam na sacristia em plenas
explicações extraordinárias, também ninguém contava ao padre as antigas questões…
Ao contrário do que ele pensava, era tudo muito simples. A Avó Catarina
recusava-se sempre que a convidavam para a missa, declamando um complicado
discurso inacessível à compreensão até daqueles que lhe eram mais chegados. Entre
palavras demasiadamente cuspidas e outras engolidas, percebia-se somente o termo
Mata Anjos. Como se ninguém percebesse, nem tão-pouco lhe ligasse, ela era
simplesmente abandonada ao silêncio do enorme casarão, onde tentava a todo custo
resistir aos violentos assédios da morte. Quanto ao Sr. Tuarles, a sua atracção pelo seu
próprio bar e pelo cheirinho da cerveja morna, era muito mais forte do que o vago
interesse, meramente social, de aparecer na missa.
Sete meses depois da chegada do padre Inácio, três das suas estudantes internas
apareceram grávidas. Duas freiras francesas tinham voltado para o seu país pela mesma
razão. Nunca passou pela cabeça de ninguém, excepto da Avó Catarina, pensar sequer
na ajuda do padre nestes casos. Só que começou a ser estranha a sua atitude: não
perguntava nada, não se preocupava em indagar sobre a paternidade das futuras crianças
e, pior ainda, brincava com as grávidas como se estivesse feliz pelo seu estado de graça.
À tardinha, quando passeava com o seu enorme «grupo de jovens», era visto a brincar
com as grávidas em alegres e espontâneos movimentos que, na brincadeira, dificultava,
como se fosse ele mesmo, uma das suas grávidas!
O Padre Inácio criou ainda um torneio de basquetebol na Kinanga City, bairro
que ficava no interior da Praia do Bispo. Ao contrário do que se esperava, os seus jogos
femininos tiveram enorme adesão. Inventou como em tantas outras modalidades
movimentos livres, ensinou-as a mexer o rabo e o peito antes de efectuarem o
lançamento. «É uma questão de concentração», explicava, se fosse caso disso. Mandou
também vir do estrangeiro equipamento justo, em licra, para «facilitar a movimentação
das atletas» em campo.
Com o passar do tempo, cerca de ano e meio depois de ter chegado, as grávidas
sucediam-se. Algumas, as que tentavam ou chegavam de alguma maneira a dizer
alguma coisa, eram mandadas de volta para o interior, ou para o estrangeiro, se fosse a
sua origem. Mais gordo do que nunca, de batina branca e sapatos ligeiramente sujos e
tortos, passou a fazer somente as missas do fim-de-semana. Apalpava atletas no pátio,
em pleno treino. Procurava ficar a sós com cada uma das raparigas do coro que não
eram escolhidas pela voz, mas pelas saliências do corpo, para que com a desculpa de as
tornar melhores cantoras as apalpasse ou beliscasse à sua vontade. Não tocava nas
moças da Praia do Bispo porque soubera entretanto que devido aos avisos da Avó
Catarina, os pais delas estavam alerta. No auge da sua liberdade, no auge também das
suas práticas imorais e constantes, cometeu o erro de não resistir à filha do Sr. Tuarles: a
Paurlete. Sim, a mesma Paurlete que tinha o nariz do tamanho do seu dedo grande do
pé!
A primeira reacção do Sr. Tuarles, foi pegar na AK47 e dirigir-se para a porta do
bar, onde sabia que amigos seus não o deixariam sair. Foi o que fez. E como previa, não
o deixaram sair. No fundo, ele próprio pensava que não seria capaz de dar um tiro ao
padre Inácio. Embora soubesse dos boatos, das histórias, e conhecesse até dois dos seus
filhos sem pai. Com a cara amarela, quase a passar para um vermelho vivo, dir-se-ia
portanto que a verdadeira tonalidade era o laranja, o Sr. Tuarles agitava a arma para
onde se estivesse a mover, o que provocou o pânico geral nos seus amigos. No
paroxismo da sua fúria, mais por não saber exactamente o que se tinha passado, do que
propriamente pela situação em si, apontou a arma para o cimo da igreja e deu dois tiros.
As cápsulas saltaram para dentro do seu copo de cerveja, o que ainda o irritou mais.
– Esta merda está encravada! – disse ainda, no fim dos tiros.
Os amigos apressaram-se a tirar-lhe a arma. Já estava mais calmo. Fez sinal à
mulher para ir guardar a arma. Enquanto tentavam acalmá-lo um pouco mais, o Sr.
Tuarles repetia insistentemente: «Onde é que se meteu essa miúda?»
Ouvindo os tiros ricochetear na cruz de metal, a Avó Catarina teve a certeza que
o caldo se entornara de uma vez por todas. Rindo-se baixinho, algures entre uma escada
e outra, sempre metida na pressa de fechar e abrir janelas, esfregou as mãos satisfeita
pela chegada do «dia» do padre... Madalena...», gritou com os pulmões antigos de
muitas músicas, «vai à igreja ver o que se passa e depois vem a correr contar-me...».
Mas a Madalena, pela primeira vez na história da Praia do Bispo, não ouviu a
Avó Catarina. O que se passou na igreja naquela tarde, as conversas que se deram entre
o Sr. Tuarles e a Paurlete, sua filha, e tudo o que à tardinha se passou em plena rua da
pequena marginal, foram acontecimentos inesquecíveis para quem assistiu e aos quais a
Avó Catarina nunca teve acesso visual. Contaram-lhe no dia seguinte, enquanto ela
amaldiçoava a evadida Madalena. «Nunca me perdoarei...», dizia para si própria, quase
chorando. «Podia ter visto com os próprios olhos a desgraça do Mata Anjos»!
Referia-se ao padre Inácio, evidentemente. Alias, a partir daquele dia, foi assim
que todo o mundo passou a chamá-lo. Como se nunca tivessem ouvido a expressão,
porque agora era mesmo uma simples e esquecida expressão: «padre Inácio».
Quando a Paurlete chegou finalmente a casa, entrou pela porta dos fundos da
casa da vizinha, saltou o muro de três metros aleijando-se no tornozelo esquerdo,
tropeçou nas galinhas preguiçosas que passeavam pela capoeira sem rede, e fez um
estrondo enorme quando deixou cair, ainda na sequência da queda, um montão de latas
velhas que o Sr. Tuarles coleccionava. Viu assim frustrada a sua missão de entrar em
casa sem ser notada. Pegando novamente na arma, lá veio o pai da Paurlete, o Sr.
Tuarles, buscá-la, como sendo ela a principal criminosa da história que ele ainda nem
conhecia bem. «Vamos conversar lá em cima», disse-lhe, apontando o quarto com o
cano da arma. «Tenho a impressão que o dia hoje ainda vai acabar mal…»
Num quarto sucumbido àquela escuridão relativa da penumbra da tarde, a
Paurlete sentou-se na cadeira velha que lhe pertencia há muitos anos. O pai sentou-se na
cama, acariciando nervosamente a arma como se fosse precisar dela a qualquer
momento, quanto mais não fosse para dar um tiro a si próprio.
– Paurlete – começou –, não mintas. Diz só bem o quê que se passou com o
padre ...
– Pai, num foi nada...
– Eu disse para não mentires! – continuou com a voz tão baixa que até metia
medo. – Conta bem a história e não duvides que hoje um de nós ainda vai apanhar um
tiro. Ou sou eu, que sou estúpido e te deixo ir à igreja daquele matador de anjos, ou és tu
porque fizeste o que não devias, ou é ele por te ter obrigado a fazer o que não devias.
Mas digo-te – continuou exactamente com a mesma voz –, tenho que dar um tiro a
alguém!
– Ai Pai... – começou a Paurlete num choro que não o comoveu. – Ele me
obrigou...
– Ele te obrigou?! Te obrigou como?
– O Pai sabe mesmo... me disse «vamos na sacristia para te ensinar uma coisa...»
– «Ensinar uma coisa…?» – imitou o Sr. Tuarles dirigindo-se para a janela e
olhando a igreja com raiva. – E o quê que ele te ensinou?
– Aquilo mesmo...
– Então e tu num sabias dar-lhe um bico? Uma chapada? Porquê que não
gritaste?
– Eu num sabia, Pai. Eu até pensei... – interrompeu, chorosa – que ele estava à
procura d'alguma coisa...
– Ah pois, e ele tava mesmo! – gesticulou com a arma, irrequieto. – E pelos
vistos, encontrou...
Do lado de fora, a mãe da Paurlete, mulher do Sr. Tuarles, ouviu o fim da
conversa sem perceber nada. Naquele tom irritado, o Sr. Tuarles baixou ainda mais o
tom de voz, e... entre pequenos sons desarticulados e nervosos, ouvia-se o eco de
chapadas discretas, brutas, intencionalmente fortes. Chorou do lado de fora a sorte da
filha, não entrando no quarto, pois arriscava-se também ela a levar um tiro.
Enquanto a Avó Catarina estranhava a demora da Madalena, simplesmente
porque esta nem sequer tinha ido onde ela pretendia, sendo assim bastante complicado
voltar de lá, o Sr. Tuarles certificou-se de que a arma não encravava mais. Atravessou a
rua sem que ninguém pudesse impedi-lo e, acompanhado por uma sombra de trinta e tal
pessoas, entrou na igreja com os seus passos barulhentos de botas repletas de poeira.
Era um espectáculo curioso de ser assistido. Um homem quarentão de corpo
largo, com uma AK47 no braço, rodeado de todo o esplendor daquela igreja; era, no
mínimo, um contraste fabuloso. À sua frente, Jesus Cristo repousava, passivo, na cruz.
E olhava-o como olhava todo o mundo que se punha à frente dele. O Sr. Tuarles,
consciente desse olhar, voltou-se para trás, apontando a arma para a multidão que o
seguia. Assustados, desataram a correr. Da poeira recentemente levantada, um pequeno
vulto subsistia. Débil, embora não muito magro, o corpo era da sua impotente esposa.
Impotente em dominá-lo em situações como esta. Mas vendo-o tão descontrolado, de
arma na mão em plena igreja, venceu os seus medos e deixou-se estar ali, a olhar para
ele.
– Tuarles... - disse com a voz seguramente trémula – pousa essa arma.
Como se a ouvisse pela primeira vez na sua vida, sentou-se no banco mais
próximo encarando novamente a cruz e o respectivo Jesus. Ao seu lado, repousava a
arma, brilhante, iminentemente pronta. Sem ser convidada, ela veio sentar-se ao seu
lado, pondo a arma no colo, sentindo pela primeira vez o peso que o seu marido
suportava tão bem. Era como se o tempo tivesse parado ali, naquele momento, para que
eles pudessem conversar um bocadinho.
– Tuarles, vamos para casa. Mais logo falas com o padre...
– Sabes, Isabel, não é a questão da virgindade dela. Hoje em dia já ninguém casa
virgem. Eu até suportava bem a situação se fosse com um rapaz qualquer. Mas um
padre? Ainda por cima, este padre?
– Então – tentou ela –, vai ter com ele, mas deixa-me levar a arma...
– Aguentas com ela? – perguntou ele, aceitando a ideia.
– Claro. – Respondeu, mãos quentes sobre a frieza da AK 47.
Quando ela se dirigia para o corredor formado pela ausência de cadeiras, sentiu a
dúvida cair sobre si. Se por um lado não era bom deixá-lo armado, por outro, a arma
representava a possível segurança do padre. No fundo, ele não seria capaz de lhe dar um
tiro. E sem a arma? O que faria ele ao padre sem a arma?
Uma valente carga de porrada.
No seu sorriso verde, enfeitado pelo musgo que àquela hora da tarde já tinha
crescido muito, lá estava o padre Inácio na sua pequena horta, apanhando tomates
verdes e alfaces tristes. Quando viu o Sr. Tuarles, e quando viu igualmente que ele não
vinha em missão de paz, nem tão pouco numa outra missão qualquer que não fosse
especificamente a de guerra, engoliu então o seu sorriso bolorento. Analisou
rapidamente as hipóteses de fuga e tentou ainda correr. Foi a sua barriga que o traiu.
Foram os seus tornozelos gordos e pouco flexíveis que, com a intencional ajuda da
barriga, o fizeram cair.
Esborrachou a cara num tomate podre. O tom verde da sua boca assumiu uma
cor tão indefinida quanto indescritível. O medo, ou quem sabe, o pânico, tomou conta
da sua boa disposição de todos os dias, e o seu instinto de sobrevivência obrigou-o a
rastejar para lado nenhum. Passivo, consciente da impossibilidade daquela fuga, o Sr.
Tuarles esperava que aquele espectáculo particular acabasse, para que ele começasse o
espectáculo seguinte que inevitavelmente se viria a consumar.
Sem pena do padre Inácio, até porque o momento não o permitiu, enfiou-lhe um
violento pontapé na bexiga. O padre gemeu e levantou-se. Agarrando com a mão
esquerda a orelha, também esquerda, do padre Inácio, o Sr. Tuarles começou então a
longa chuva de bofatadas que aplicou durante meia hora com a mão direita. Enquanto
repetia o mesmo movimento, para trás e para a frente, ia levando o padre para o exterior
da igreja, onde os esperavam, como era sabido, os curiosos, os avisados, os interessados
e até mesmo os surpreendidos. Ao fim de meia hora, cansado, o Sr. Tuarles viu a sua
raiva diminuída. O facto de ter passado meia hora a esbofeteá-lo, e de o ter trazido para
a rua, eram meros artifícios a que recorria para não ser mais violento. Era a maneira que
tinha arranjado, inconscientemente, de não matar o padre à porrada.
Devido a todos os factores que estão inerentes ao processo das bofatadas, a face
direita do padre Inácio, não só tinha mudado de cor, como de relevo. A multidão teve
então o prazer de ver que, por debaixo da primeira camada de pele da bochecha, residia
constantemente a pequena camada de musgo que se via no interior da sua boca. Era caso
para se dizer, embora ninguém tenha dito, que a barba do padre de todos os dias, não era
barba, mas sim relva. Sendo assim fácil de concluir que o Padre Inácio não fazia a
barba, mas a relva!
Dado o aspecto dorido daquela face, a raiva do Sr. Tuarles começou a ceder.
Mas quando lhe largou a orelha esquerda e viu aquela face ainda tão fresca, caiu na
tentação de lhe dar mais umas estaladas. No seguimento da carga de porrada, ouviram-
se gritinhos de raparigas recém acordadas que vinha do interior da paróquia. Ao senti-
las rodearem o padre, o Sr. Tuarles parou.
Elas levaram-no para dentro e o Sr. Tuarles regressou ao bar. Mal entrou, viu a
sua mulher agarrada à AK47, como se fosse a única coisa a fazer naquele momento para
impedir uma verdadeira desgraça. «Já passou», disse ele, enquanto lhe arrancava a arma
das mãos para finalmente ir guardá-la. «Acho que já passou», disse no meio das escadas
que davam para o quarto deles.
Foram estes os acontecimentos históricos da Praia do Bispo que a Avó Catarina
só soube no dia seguinte. Estranhou que naquela noite houvesse pouco movimento na
rua e até mesmo na casa da sua vizinha. Mas como era a tradição, ela não fazia
perguntas. Esperava que as pessoas lhe viessem contar as coisas, e normalmente isso
acontecia logo depois dos acontecimentos. Mas daquela vez, o acontecimento tinha sido
de uma tal ordem que, nos delírios dessa noite, enquanto se contava a história aos que
passavam em frente à igreja, todo o mundo, pela primeira vez, se esqueceu da Avó
Catarina. Na verdade, ela estranhou também naquela noite a demora da Madalena. Essa
moça que a servia há tantos anos e que, farta das porradas que levava sem saber bem
porquê, fugiu com o seu namorado daquela época.
A paróquia voltou a ser fechada. Sem uma razão concreta que a mantivesse na
verdadeira realidade, a Avó Catarina entregou-se nos últimos anos de vida à sua própria
realidade: o antigo mundo das janelas! Até porque, sem o padre Inácio, nada de
assustador ou interessante se passava na Praia do Bispo. Ela subia e descia as escadas de
encontro a janelas que estivessem abertas ou fechadas. Se lhe perguntassem alguma
coisa, dizia: «Acho que deixei a janela fechada.» Por vezes também dizia: «Acho que
deixei a janela aberta».
Na indiferença dos tempos, misturada com a poeira típica da Praia do Bispo, a
realidade despiu-se dos seus acontecimentos caricatos. Poucos anos mais tarde, a Avó
Catarina morreu. Sem ela e sem o padre Inácio, da verdadeira Praia do Bispo restou o
nome, a poeira e a igreja fechada. Essa mesma igreja que mais tarde viria a ser reaberta
com o famoso enterro do Sankara. Numa outra geração. Numa outra realidade.
Curiosamente, ainda hoje se fala do padre Inácio. Na Praia do Bispo, é
normalmente à hora da sopa que isso acontece. Na mesma hora em que a poeira
irrequieta começa o seu descanso e que as crianças, à semelhança da poeira, são
obrigadas a sentar-se à mesa, há sempre uma Avó Catarina que exclama no prazer do
seu próprio gozo:
– Comam tudo... Se não, vou chamar o padre Inácio!

ONJACKI (2002), Momentos de aqui, Luanda: Editorial Nzila, pp 67-79.


A vingança

Afinal o coração não lhe mentia. Suas suspeitas estavam agora confirmadas por
aquela carta. O rompimento, bem o sabia, não era o que ela alegava: que os pais se
opunham, que não queriam. Nada disso. Era outro, muito diferente. Era por ele ser
pobre e outro lhe ter aparecido. Nada mais. Que fosse, pois, feliz, com o novo preferido.
Embora lhe quisesse bastante, mesmo bastante, não apelaria para o seu coração.
Preferia sofrer, a implorar seu amor. Não. Jamais imploraria. Nada lhe pediria, nada lhe
diria. O amor não se implora: conquista-se pelo coração. Embora lhe custasse, no
cemitério do esquecimento abriria uma sepultura, mesmo que tal lhe levasse muito
tempo. Tudo passaria. O tempo de tudo se encarrega. Se gera paixões, também as
aniquila. Estava agora triste, abatido? Um dia estaria curado, e, quem sabe? Talvez se
risse do presente momento. Que tinha agora a fazer? Começar por esquecê-la.
Durante dias, sofreu excruciante angústia. A ideia de que fora trocado por ser
pobre, revoltava-se contra si, contra os homens e contra o Destino. Como se iludira em
suas ideações! Ah! Como é horrível a derrocada de um sonho de amor! A sonhada
ventura era afinal a sombra da desilusão!
Da ignição do desespero, tal como do vulcão sai a lava incandescente, surgiu-lhe
um pensamento de fogo: vingar-se da pérfida namorada. Vingarse-ia, não com armas
traiçoeiras, mas com armas leais. Para o desleal, a lealdade é um aguilhão. Tinha jeito
para o boxe. Dedicar-se-ia à nobre arte. O desporto eleva. Muitos ases emergiram da
obscuridade. Seu nome foi ignorado, o mundo desportivo não os conhecia. E hoje,
graças ao entusiasmo pela cultura física, têm dinheiro, têm a admiração pública, e mais:
têm o amor de muitas mulheres. Pelo desporto, obtiveram renome; pela consagração,
muitos são como que ídolos.
Para tal empreendimento, bastava-lhe força de vontade. E ele tinha-a. E se a não
tivesse em dose necessária, imporia a si próprio um domínio absoluto. Precisava de
vencer, precisava de levar a cabo essa iniciativa. Queria, destarte, vingar-se dela. Queria
despertar-lhe a inveja, queria despertar-lhe o arrependimento. Queria que ela também
sentisse o golpe por si vibrado.
Apesar do abalo moral, as reflexões do pobre namorado eram sensatas, pois que
as perturbações, na maioria dos casos, conduzem-nos a exageros, e, consequentemente,
à elaboração de erros. O mancebo, portanto, não errara, querendo lançar mão do boxe
para se evidenciar, porquanto, de todas as modalidades desportivas, a nobre arte é, sem
dúvida; a mais remuneradora. Nos grandes centros, mormente americanos,
consideráveis somas são disputadas num combate. De admirar não é, por conseguinte,
se um dia for alguém, alguém de dinheiro e de nomeada.
Alheando-nos do aspecto recreativo por que o desporto, na generalidade, é
praticado, divaguemos um pouco em seu redor.
Posto que tal aparente, o desporto não constitui apenas mera distracção.
Contribui para o levantamento da raça, pois, de um modo geral, a robustez transmite-se
aos filhos, tal como o raquitismo, sendo, por consequência, pelos seus benefícios, um
dos melhores valores que podemos doar aos descendentes. O corpo, sendo o
instrumento da alma, deve estar absolutamente apto a desempenhar todas as funções por
ela ordenadas. Por isso, o desporto, que a princípio só estava a cargo dos clubes,
presentemente tem merecido o patrocínio dos governos. E assim, os desportistas,
quando, em competição, se encontram fora do seu país, representam o valor físico da
Pátria.
Os Espartanos, para mais facilmente vencerem as guerras, tão frequentes nessas
remotas épocas, às quais exclusivamente se entregavam, dedicavam-se activamente à
ginástica. Quando um filho, por infelicidade sua, nascesse defeituoso ou enfezado,
desfaziam-se dele, arremessando-o das rochas do Taígedo.
Nos tempos da antiga Grécia, a ginástica fazia parte integrante da educação
nacional. Por isso, para a beleza física, faziam, exercícios; e, para a moral, cultivavam a
música. Destarte, uniformizavam a estética física e moral.
Como nos nossos dias, organizavam provas atléticas: saltos, corridas,
lançamentos, etc. Para estímulo dos atletas, conferiam aos vencedores palmas e coroas
de louro. Isto, porém, não é tudo. Como se se tratasse de alguma glória, também lhes
erigiam estátuas, também eram cantados.
As actuais olimpíadas não são mais que uma herança desse povo. Provieram dos
jogos olímpicos, os mais importantes, celebrados na cidade de Olímpia, donde nasceu o
nome, e os quais eram dedicados a Zeus, pai dos deuses e dos homens.
As glórias alcançadas pelo desporto não são, portanto, recentes. Datam de longe.
Em face do exposto, e muito principalmente pelo que a actualidade nos patenteia, o
desditoso namorado tivera uma resolução louvável. Nem só as letras, artes e ciências
nos guindam à glória. Também o desporto é veículo da celebridade.
E assim, para o triunfo do seu empreendimento, começou a treinar-se. De manhã
cedo, ainda a cidade dormia, corria pelas ruas, escalava montes, saltava obstáculos. Os
que o viam, chamavam-lhe chalado. Mas ele não se importava de seus motejos nem de
seus risos irónicos. O que queria, era o triunfo do seu desejo. E continuava; a correr
pelas ruas, a escalar montes, a saltar obstáculos. Precisava de criar fôlego. E todas as
vezes que pudesse, jogava o soco com amadores da nobre arte. Assim adquiriria os
conhecimentos necessários.
Um dia, dia ansiado, apresentou-se no ringue. Ia, pela primeira vez, exibir-se em
público. Como geralmente sucede aos neófitos, estava um pouco excitado. Casualmente,
ao reparar que ela se encontrava numa das cadeiras da frente, sentiu, mais do que nunca,
o desejo do triunfo. Se perdesse, que não diria ela? Oh! Não! Esforçar-se-ia por ganhar.
Não queria que ela, mais do que ninguém, se risse da sua derrota. Queria esmagá-la com
o peso do seu triunfo. E a perturbação, como que por encanto, converteu-se em
serenidade.
O árbitro faz a apresentação habitual. Os dois pugilistas cumprimentam-se com
um toque de luvas e depois cada qual senta-se num banco. Três minutos decorridos, soa
um silvo. Começa o combate.
Ao primeiro assalto, a vitória é do nosso protagonista. Ao segundo, a sorte é-lhe
contrária, e, ao terceiro, consegue um empate. Ambos estavam em igualdade de pontos.
A claque, no anseio da vitória do seu adepto, incita-os clamorosamente. Ainda
não se sabe quem vencerá. Os dois contendores, numa porfiada disputa, não só da bolsa
mas também do crédito, atacam e defendem-se. Falta o último assalto. E a vitória, ainda
não se decidira.
À lembrança de que ela estava ali, a vê-lo, ele experimentou algo que o
estimulou. E, digno e forte, empregou o máximo do seu esforço. Precisava de ganhar. E
ganhou. Escalou assim o primeiro degrau da glória.
Tempos volvidos, em terra longínqua, já senhor de fama e dinheiro, fruía os
encantos de seu lar conjugal. De vez em vez, relembrava-se da antiga namorada. E na
tecelagem do pensamento reconstruía os quadros de sua vida desportiva.
- Como um desgosto provocado por uma mulher pode influir na vida de um
homem! - filosofava um dia. - Se, muitas vezes, elas nos levam à ruína moral, outras
vezes nos conduzem à glória. Embora involuntariamente, são depois, para nós, bons ou
maus anjos. Se não fosse o rompimento daquele namoro, seria eu o que sou agora? Não.
Não o seria porque me faltava o impulso. E, se tivesse casado com ela, seria mais feliz?
Talvez não. Da sorte, nada tinha a queixar-me presentemente. Razão tinha para dizer
naqueles dias angustiosos que, mais tarde, me riria. E ela viveria feliz com o outro? Não
teria ainda sentido o alfinetar da inveja ou do arrependimento? Como gostaria de o
saber! E, parece inacreditável! é a ela a quem devo tudo isto. Deveria, pois, bendizer
essa hora trágica? Sim. Se ela me quisesse tanto como eu lhe queria a ela não me teria
mandado aquela carta. Bendita hora!
Como que em saudação a esse longínquo momento, seu pensamento imobilizou-
se por instantes. Depois, desviando-se um pouco, continuou:
E quantos desgostos não celebrizaram muitos homens? Se não fosse a suspirada
Natércia, Camões teria composto os Lusíadas? Se Milton não tivesse perdido a vista,
teria criado o Paraíso Perdido? Se a Homero não tivesse sucedido o mesmo, a Ilíada e a
Eneida teriam sido uma realidade? Oh! O desgosto também opera prodígios!
Uma ocasião, em resposta a uma carta sua, soube que ela se divorciara do
marido, que passava privações e que já manifestara o arrependimento. Penalizado,
preencheu um cheque e mandou-lho. Embora não jubilasse com a notícia, não deixou,
todavia, de sentir uma certa satisfação.
Como também pensara, vingava-se agora, dela, não com armas traiçoeiras, mas
com armas leais.
Foste tu quem primeiro se afastou, mas, apesar disso, sou eu o primeiro quem se
aproxima. Embora tardiamente, estás agora colhendo o fruto arrependimento. Nenhum
mal te quero. Mas estou vingado. Razão tinham os antigos em dizer "o último a rir é o
que ri melhor" monologava, lacrando a carta que lhe enviava.

RIBAS, Óscar (2009), Flores e espinhos, Luanda: INALD, pp 109-114.


Coisas do coração
Madalena bem sabia que devia a vida a Roberto. Se não fosse ele, teria sido
morta pela fúria oceânica. Por isso, estava-lhe grata. Mas não o podia amar. Dissera-lhe
que sim, que aceitava seu amor, devido a um impulso de gratidão. Mas hoje estava
arrependida. Gratidão não é amor. Seu coração palpitava por um outro, por um outro
que também a queria de igual modo. Por este motivo, queria desoprimi-lo, Mas como?
Rompendo o namoro, daria, um grande desgosto a Roberto; mantendo-o, sofreria ela
esse desgosto. Ele salvara-a da morte mas escravizara-lhe a vida. Como consequência,
tinha momentos em que o odiava, em que chegava mesmo a desejar-lhe a morte.
Quando se ama, o coração, para se libertar de obstáculos, gera monstruosidades.
E, na embriaguez do ódio, via-o morto. Livre dele, livre de seu importuno amor,
via-se venturosa com o outro. Seu antegozo, porém, transformava-se depois em tristeza.
Seu pensamento, num desvio involuntário, levava-a para onde estivera prestes a afogar-
se. E, que aflição! Via-se, louca de desespero, a lutar com as ondas, grandes, hiantes,
quase a tragá-la. Apesar de não estar longe de terra, a praia pareceu-lhe estar distante,
muito distante mesmo. Os forçados mergulhos já lhe tinham enrouquecido a voz.
Contudo não cessara de bradar, de pedir socorro. Não queria morrer. A vida prendia-a.
Já desfalecida, achou-se depois na praia. Roberto, a única pessoa que sabia nadar,
arrancara-a daquele medonho abismo, daquela inevitável sepultura. Ante este horrível
quadro, sentia-se pesarosa de seus torpes pensamentos. E então, durante dias, como que
em resgate, tratava-o com mais afabilidade. Mas, como esse trato não era produto do
amor, depressa se esquecia da dívida de gratidão, e, como se inimigo fora, tornava a
odiá-lo com todo o fel de seu desespero. E, sem nada lhe dizer, ia alternadamente
tocando os dois pólos.

RIBAS, Óscar (2009), Flores e espinhos, Luanda: INALD, pp 115-116.


O Criador e a criatura
Todos já sabem como esta história vai terminar. Permitam-me, no entanto, a
seguinte tentativa (certamente tosca) de tornar inusitadas as redundâncias com que, na
falta de maior engenho, sou forçado a compor a presente narrativa:

Noémia, no dia em que este relato começa, não quis mais fazer amor com o
marido, contrariando uma prática (uma tradição?) de mais de dez anos. Apoplética,
gritou:

Estou farta! Ouviste? Farta!

Do que estava ela farta?

- Ainda perguntas, seu cabrão?! Ainda tens o desplante de perguntar?!

Resumo da revolta de Noémia: ela estava cansada de ser usada, como um


simples e reles objecto, cansada de ele nunca ouvir a sua (dela) opinião, de apenas fazer
o que ele queria, de ter de lhe abrir as pernas sempre que o gajo quisesse fornicá-la,
cansada, cansada, cansada.

Explosão inesperada. Sabe-se que, depois dela, Carlos ficou a olhá-la (refiro-me
à mulher que tinha diante dele e que, de súbito, tinha deixado de conhecer) como um
autêntico idiota, os joelhos apoiados sobre a cama, a boca aberta de espanto, os braços
abandonados ao longo do corpo, o sexo abruptamente amolecido pendendo entre as
coxas. Uma escuridão repentina e viscosa toldou-lhe lentamente a visão.

1º flash back

Quando Carlos a conheceu, Noémia tinha medo de osgas. Costumava sonhar


com osgas cheias de pêlos. Os pais dela, extremamente zelosos, não a deixavam sair
com rapazes, "a não ser que seja um menino de boas-famílias". Carlos era uma dessas
excepções. Não, não vou enumerar as características que faziam dele, supostamente,
"um menino de boas-famílias". Se ao narrador não for de todo interdito (?) tomar
partido, direi simplesmente: tratava-se, na verdade, de um filho da puta.

Começou, o mesmo, por levar Noémia ao cinema. Depois, ensinou-lhe a dançar.


Finalmente, o Grande Sedutor teve o que perseguia, com a persistência de um mabeco
sarnento, desde o primeiro instante: descabaçou-a brutalmente, numa noite sem lua
e, ainda por cima, de pé, encostados à parede da casa, depois de terem regressado de um
baile no clube do bairro. Noémia chorou como uma condenada, quando viu a ignóbil
mancha escarlate do pecado gravada na calcinha. Carlos sacudiu-a: "Sua atrasada! Lava
mas é essa porcaria quando entrares!... Os teus pais não vão descobrir... ", berrou-lhe.
Ela engoliu os berros pelos olhos em sangue.
Noémia grita pela primeira vez na vida

Seu sacana! Por ti, eu deveria manter-me sempre atrasada, submissa... Há


quantos dias não me procuras? Passas o tempo todo fora, com tuas amantes, nos copos,
sei lá, quando chegas já vens podre de bêbado... Não é possível! Por que motivo tenho
eu de estar sempre pronta para ti?! Por que só podemos fazer amor quando tu queres?!
O atrasado és tu, machista de merda!... Atrasado e inútil, como esse pedaço de carne
mole que tens entre as pernas...

2º flash back

Ela nem beijar sabia. No primeiro dia em que a língua pegajosa de Carlos lhe
vasculhou a boca, sentiu uma espécie de nó no fundo de estômago. Teve vontade de
gastar um tubo inteiro de pasta dentífrica para tirar aquele gosto esquisito. E de beber
água, muita água. Cuspiu desesperadamente.

Carlos: "És mesmo atrasada! Não sabes o que é bom...". E as mãos dele, que
tinham a auto-suficiência e a arrogância da adolescência, despertavam no corpo eriçado
de Noémia temores sombrios, que ela não conseguia explicar.

Carlos olha para Noémia

Eu devo estar a sonhar. Esta não é a minha mulher, não pode ser. A Noémia
nunca me levantou a voz. Sempre tão cordata... Onde está a minha Noémia, que eu
libertei das garras paternas e a quem mostrei o mundo? A quem dei o mundo. Sim, eu
dei-lhe um casamento - não era isso que ela queria? -, dei-lhe um lar, filhos... Porra!
Onde foi que eu errei? Quando nos casámos, disse-lhe: eu tenho as minhas aventuras aí
fora, mas não te preocupes, tu és a minha mulher, nada te faltará... Não pode dizer que
foi falta de aviso. Quem será que lhe está a pôr estas ideias na cabeça?

Do diário da Noémia

Este homem sufoca-me, usurpa-me o ar, tolhe-me os movimentos. A primeira


vez que saí de casa foi com ele. Ensinou-me a dançar. Gostei, claro. Um dia disse-me:
vou-te ensinar a nadar. Estávamos na praia, mas eu só queria ficar sentada ali na areia,
vendo o meu sorvete vermelho e azul a derreter-se ao sol. Nunca gostei do mar, para
que aprender a nadar? Ele pegou o meu sorvete, lançou-o contra o solo e empurrou-me
para a água. Não gritei (acreditem que até hoje, já lá vão dez anos, nunca lhe levantei a
voz uma vez sequer ... ), mas tive vontade de vomitar o resto do sorvete naquela cara de
porco convencido. Pena que só tenha descoberto isso hoje.

Parece, mesmo, que a história só se repete como farsa. Digo isso porque, alguns
anos mais tarde, o Carlos me convenceu que eu deveria fabricar sorvetes em casa, para
vender às crianças das redondezas. É para reforçar o orçamento familiar, dizia ele. O
meu desejo era prosseguir os estudos, fazer um curso superior. Letras, psicologia, uma
coisa assim. Ele: "Não sejas sonhadora, minha querida!... Aliás, por falar em sonhos:
Como vão as tuas osgas?" Foi assim que me tornei sorveteira.
Isso foi há três anos, mais ou menos. Ontem, ele informou-me que vai entregar o
negócio à prima Gina (uma das amantes dele, segundo me disseram). Parece que ela tem
mais jeito para essas coisas...

Noémia levanta-se da cama

Estou árida, por dentro e por fora. O cacimbo cobre totalmente os meus olhos.
Os meus seios não vibram mais. O meu ventre é um deserto revestido de pêlos
obscuros.

Estou farta de ti, Carlos. Vai lá foder com as tuas amantes...

3º flash back

Todo o bairro pressentia: a Noémia só queria sair de casa dos pais, ninguém
poderia suportar aquela autêntica prisão. O primeiro vivaço que lhe prometesse
casamento levava-lhe. Quem poderia adivinhar que ela escrevia poemas secretamente,
quase em desespero, e que também costumava sonhar? Com nuvens, anjos, viagens e
canções. E osgas. Quando conheceu o Carlos, abriu-se absolutamente: entregou-
lhe, numa bandeja polida durante séculos, o ventre angustiado, a alma expectante, os
sonhos desesperados. Farei tudo o que quiseres, meu amor, disse ela, um dia depois que
Carlos a possuiu pela primeira vez.

Carlos segura Noémia

Lembras-te? tu eras virgem, minha querida ... Eu ensinei-te a fazer amor, eu fiz-
te mulher. O primeiro homem que conheceste fui eu! Primeiro e único... ou não sou o
único? diz. Será que me andas a pôr os cornos? E quem é o gajo? Anh. Vá, diz-me o
nome, quero saber o nome...

E:

É por isso que me mandas embora? Vá, responde-me. Estás muda? Olha, meu
amor, nada disso importa: jamais vais conhecer um homem como eu... sim, ninguém te
há de foder como eu... Eu ensinei-te a ter prazer, a falar quando temos relações, a soltar
palavrões quando gozas... Tu foste criada por mim, ouviste? Tu não passas de uma
criação minha... Liberdade, é isso o que queres? A tua liberdade está aqui, entre as
minhas pernas!...

E depois?

Todos já sabem. A criatura rebela-se contra o criador, etc., etc., etc.

Mas já que eu (re) inventei esta história, que me seja permitido relatar o
desenlace da mesma:
Noémia livrou-se das mãos perplexas de Carlos e correu para a cozinha. O
homem perseguiu-a, cego de espanto, apontando para o próprio pénis, que lhe emergia
da púbis não com um sintoma de paixão, mas apenas como o sombrio instrumento de
um crime premeditado, um flagelo pronto a abater-se sobre o mundo, enfim, uma coisa
vil. Gritava:

- Sem isso não és nada!... Sem isso não és nada!...

Noémia sabia. Por isso, tinha tomado uma decisão. Deixou Carlos aproximar-se,
enfrentou-o serenamente (os seus olhos duros provocavam na medula mais íntima do
homem um tenebroso arrepio de frio, que, contudo, ele não percebeu), movimentou
discretamente a mão que tinha atrás de si, para empunhar a arma que, finalmente, a
libertaria - uma afiada faca de cozinha -, e, com um golpe exacto, decepou
aquela protuberância - o chamado membro viril - que o marido, ainda há instantes,
brandia contra ela. O corpo de Carlos desmoronou-se pesadamente, com uma inútil
expressão de dor no olhar, produzindo, ao tocar o chão, um barulho surdo e opaco.

Quando a polícia chegou, Noémia berrava, aparentemente louca:

- Já não tenho medo! Já não tenho medo!

Do diário de Noémia

Hoje o Carlos vai saber: já não tenho mais medo das osgas.

MELO, João (2004), Imitação de Sartre e Simone de Beavoir, Luanda: Edições


Maianga pp 32/37.
O dia em que o pato Donald comeu pela primeira vez a
Margarida
Cinco, dez, vinte anos? Nem sei. Estou atrás desta garina há mais tempo do que
a minha própria memória suporta. O que eu tentei? O que eu me rebaixei?
O que eu sofri? Não cabe mais nos meus failes. O amor, para resistir, carece de olvido?

Quando tento lembrar, tenho vontade de chorar, de rebolar no chão, de quebrar a


cabeça contra as paredes. Um tumor na memória.

Uma palavra explode dentro de mim: buelo. De repente, sinto-me coberto de


pus.

Buelo é pior que burro. É pior que banana. Buelo é burro e banana ao mesmo
tempo. À falta de melhor, na lusitana língua, – aparvalhado – serve.

Viriato tinha de me conhecer primeiro. Benjamim, perto do meu sofrimento, é


miúdo. Mais de mil rumbas (e tantos outros ritmos) com ela dancei, sem escutar o
ansiado sim.

Quando é que lhe conheci? A filha da mãe desassossega o meu coração desde
sempre.

A minha estória é conhecida em todo o mundo. Mujimbo que atravessou épocas,


em cada uma delas amplificado com novos detalhes. Está traduzida em todas as línguas
existentes. Foi levada à cena em tablados incontáveis. Já deu filme, seriado de TV,
VHS, DVD, minidisco, cópia pirata, arquivo de computador, attachment enviado pela
Internet, SMS, em suma, mensagem partilhada desde os primórdios pelo planeta inteiro.

Vou contar mais uma vez, sem medo de ser ridículo.

Quando ela nasceu, incaracterística, minha mãe disse na mãe dela, amiga de
infância, mais do que irmã, comadre antecipada, combina feita antes do casamento de
ambas as duas, Ah, tão querida, tem mesmo de casar com o meu rapaz! A outra, exausta
do parto, ainda espantada com aquele milagre barulhento que saíra das suas entranhas,
sem forças para responder, silêncio é consentimento, toda a gente sabe.

Crescemos juntos. Brincámos de médico, professor, engenheiro. Brincámos de


casamento. Brincámos de papá e mamã. Nesse dia, lhe mostrei a minha pila. Ela disse:

- Ih, tão pequenina! Depois levantou as saias: as suas cuecas floridas deixaram-
me paralisado de admiração. Quando quis lhe dar um beijo, como aqueles que o meu pai
dava na empregada, quando a minha mãe não estava, ela fugiu. Durante uma semana,
não apareceu na minha casa.
Nossas progenitoras exultavam:

– Dão-se lindamente! Parece mesmo que vai sair casamento...

No dia em que fez nove anos, em plena festa, ela me chamou para o quarto dela.
Estranhos caroços lhe brotavam ultimamente no peito. O que seria aquilo?
Levantou a blusa, pegou minhas mãos, pediu que eu tocasse. Minha cabeça ficou
escura, a boca seca, as pernas sem forças, a barriga ardia como fogo. Abracei-lhe. Mas a
boca dela estava fechada quando, desajeitado, lhe procurei. No meu coração, raiva e
gozo.

Adolescência. A idade em que todos os pecados espreitam. Os pais dela


decretaram que a menina só poderia descobrir o mundo comigo. Praia, cinema,
matiné dançante aos domingos, das seis da tarde às dez da noite, nem mais um minuto.
Compenetrado, ia lhe buscar cinco minutos antes da hora, fazia questão de lhe passear
no bairro, como se fora o próprio titular. Na cabeça, uma dúvida, obsessiva e chata,
como chuva miudinha: – Avanço? Não avanço?

Os outros gozavam, safados, alarves, quase pantagruélicos: – Taxista!, taxista!


De facto, ipsis verbis: eu apenas transportava a filha da mãe, nunca que cheguei de
avançar. Era sempre para outros o seu melhor sorriso, era sempre na roda de outros que
ela ficava, era sempre o outro que lhe arrastava num canto qualquer, longe dos olhares
indiscretos da matilha. Quando se cansava, ela vinha no meu canto triste e solitário e
dizia apenas uma palavra: – Vamos! Eu, o cão cabíri em pessoa, levantava-me e levava-
lhe de volta para casa, sem olhar para ninguém.

Quando ela fez dezoito anos, abriu o salão comigo. Não tenho namorado! Disse-
me. Mais humilhação, menos humilhação, que diferença fazia? Aceitei mais essa. A
sacrista colou-se a mim como se fosse uma autêntica planta carnívora, passou-me os
braços pelo pescoço, encostou o seu rosto no meu, avançou uma das pernas no meio das
minhas, eu pensei: – É hoje! Tinha, pois, de estar à altura da situação, pelo que lhe
apertei devidamente, esmerando-me nas passadas, enquanto o meu kinjango se tornava
cada vez mais indócil e hiperbólico. Quando a música estava prestes a acabar, disse-lhe
assim no ouvido, felizmente todos temos um canalha escondido dentro de nós, em certas
situações são absolutamente imprescindíveis:

– Garina, hoje vou comer o teu cabaço!

Silêncio é consentimento?

Acorde final do melancólico bolero. Era melhor não tivesse respondido.

– Já não tenho cabaço, querido! Chegaste tarde!... Lentamente, foi juntar-se a


uma roda onde estava um tipo todo pimpão, músculos de atleta, T-shirt de
grife, brinco na orelha, calça apertada em baixo, sapato biqueira larga. Primo Lindolfo?

É de mais, porra. É de mais.


Deus me experimentava? O amor, corrida de obstáculos? Ou seria mesmo azar?

Me rebelei.

Me deixa, Cleópatra. Vou à procura de outros impérios.

Arranjei outra garina. Parecia escolhida por Deus, para me compensar de todo o
sofrimento até então experimentado. Não alegou que ainda precisava de pensar, não
perguntou se eu tinha outra, não me pediu para eu falar primeiro na mãe dela. Única
palavra na boca dela: sim.

Não é que fulana me sabotou?

– Quem é essa lambisgóia?

Meio-dia. Gente que gente na rua. De repente, ficámos tipo ilha: pedaço de terra
cercada de água por todos os lados. Cazumbis sarnentos. Mabecos esfaimados. Natureza
humana se alimenta da desgraça alheia?

Abandonei a minha tábua de salvação em plena rua à mercê de fulana.

Xingamentos, lamparinas na cara, cabelos arranhados.

Fugi no colo de minha mãe.

Em que fuso horário vive a mulher que o criador me reservou?

– Quem te mandou desprezar fulana? É ela a panela de funje, tu, o muxarico.


Ninguém foge do seu destino.

Minha própria mãe não sabe como, desde sempre, fulana humilha e manipula o
filho dela. Prefiro morrer.

– És burro ou quê? Se fulana fez escândalo na rua por causa daquela trinca-
espinhas, é porque quer de você, meu filho! Vai lhe procurar!...

Conselho de mãe ninguém esquindiva. Pode demorar, podemos fingir que não
ouvimos, podemos dar um monte de voltas, mas sempre lhe obedecemos. Cordão
umbilical é coisa séria.

Procurei fulana.

– Já deixei a lambisgóia! Aliás, nem começou...

– Ah, é?

– Acabou tua raiva?

– Humm...

– Queres me namorar?
Nenhum dicionário, de nenhuma língua, contém uma palavra para exprimir o
que eu senti, quando, languidamente, fulana me respondeu.

– Estás maluco? Então achas que eu vou namorar com um cobarde, que deixa
uma garina na rua, sem lhe defender, nem nada?! E, ainda por cima, um cobarde com
pila pequena... Pensas que eu não me lembro?

Carinha dela, tão doce, não condizia com as suas próprias palavras. Filha da
puta. Tive vontade de lhe matar.

Se algum dia encontrar o Walt Disney, também lhe trato da saúde.

Nesse dia, não dirigi mais nenhuma palavra na minha mãe. Forrei-me, mais uma
vez, na minha própria humilhação. Vinte e três anos, até quando continuaria virgem?

Não tinha outra alternativa: virei manudependente sexual.

Todas as noites, meu visgo desperdiçado na pia. Imagem dela, de calcinha


florida, na minha frente. Cheguei a masturbar-me três vezes seguidas.

Comecei a definhar. Só não virei monangamba porque, depois da independência,


fui promovido a escriturário. Tão-pouco me deram como perdido no morro da Samba,
pois este já acabou, para dar lugar a um projecto imobiliário reservado à nova burguesia
local. Quantos séculos passaram?

Um dia, minha mãe resolveu levar-me à Igreja de Calumbo, onde um padre,


também meio feiticeiro, costumava resolver makas como a minha e outras mais
complicadas ainda.

Resultou.

O homem tinha poderes. Qual lá Madame Min ou Harry Potter!

Quando cheguei, encontrei fulana na minha casa. Sorriso deslumbrante.


Sedutora como sempre, mas um ar mais despojado e leve. Na íris, uma suave convicção,
que, por um instante, tive receio de identificar. Outra pessoa.

– Vamos?

Como que num passe de mágica, livrei-me da humilhante membrana com que,
desde sempre, a sua simples presença me tolhia a vontade.

O cão cabíri de antigamente transformado, de súbito, em pastor alemão. Bulldog.


Pitbull.

Pela primeira vez, senti o instinto dos velhos predadores. Cheiro de carne fresca.
O meu kinjango ficou imediatamente em prontidão combativa.
É hoje! Casa dela.

– Sempre te amei. Até hoje não sei porque te humilhei tanto... Perdoas-me?

Vingança se serve fria.

Disse-lhe para me despir primeiro e que me fizesse tudo o que quisesse e


soubesse, mas sem tirar, por enquanto, nenhuma das suas peças de roupa. Como,
suponho, sois todos adultos e vacinados, não preciso de lhes descrever o que a safada
me fez.

Em seguida, comecei por lhe tirar a blusa, libertando-lhe os seios suaves e


frescos. Beijei-os. Desci a língua pela barriguinha dela, até ao umbigo, onde me detive.
Ela quis livrar-se apressadamente das calças, mas eu não deixei. Não tinha nenhuma
pressa. Saboreava antecipadamente o que iria acontecer dentro de breves instantes.

Tirei-lhe os sapatos e beijei-lhe os pés com máxima delicadeza. Ela estremecia


discretamente, gemendo em surdina. Estava totalmente entregue.

Beijei-lhe a boca. Gozo e raiva. Mordi-lhe.

– Tira as calças, garina. Hoje vou comer o teu segundo cabaço!

Não deveria contar o que se passou depois. Mas tenho de terminar este relato.

Ela usava uma cueca amarela, toda rendada.

Ah, garina, onde estão as calcinhas floridas da nossa infância?

O meu kinjango murchou. Repentina e irrevogavelmente.

MELO (João), 2006, O dia em que o pato Donald comeu pela primeira vez a
Margarida, Luanda: Editorial Nzila, pp 95/101.
Crime e Castigo

Freud disse: em todo o acto sexual, há sempre duas pessoas a mais (cito de
memória). Se Pedro Domingos João (o camarada Tiro Infalível) era ou não iniciado nos
esconsos meandros da psicanálise, não o sabemos. Sucede, entretanto, que com
excessiva frequência ele se lembrava da Rita, quando fizesse amor com a Lemba, e,
caso a "privilegiada" (já veremos que o nosso personagem se considerava um "eleito")
fosse a primeira, a imagem desta última interpunha-se sempre entre ambos, um pouco
antes dos derradeiros estertores com que, cedendo ao apelo irremediável do sangue,
festejavam a ligação física dos seus corpos (no exemplo aqui vertido, a alma
desempenhava um papel rigorosamente inócuo).
Antes de avançarmos, convém fazer alguns esclarecimentos: o pseudónimo de
Pedro Domingos João era um autêntico nome de guerra e nada tinha a ver com o sentido
pecaminoso que se atribui, no português angolano, à expressão "dar um tiro". Todos lhe
tratavam, portanto, por Tiro Infalível, não por causa da sua comentada vitalidade sexual,
mas porque, durante a luta pela independência, ele se fizera conhecido por conseguir
abater os helicópteros inimigos apenas com um único disparo. Alguns, até, ou porque
efectivamente tinham mais confiança com ele, ou porque não sabiam as medir
distâncias ao lidar com um quase herói, chamavam-lhe simplesmente: camarada
Infalível.
A sua pontaria era tão temível, que os tugas chegaram a inventar, em mais do
que uma ocasião, que ele havia morrido em combate ou que tinha sido feito prisioneiro,
apenas para desmoralizar os outros guerrilheiros. Nas suas patéticas transmissões
através da Voz de Angola, referiam-se a ele como "o terrorista Tiro Infalível" e outros
insultos histéricos já tão cantados e decantados, em poesia e prosa, na literatura
angolana. Mas ele escapulia-se sempre dos seus ferozes caçadores, saltitava de região
em região, abatendo helicópteros como quem abate coelhos desprevenidos. Virou lenda.
Bem, mas isso tudo foi antes da independência. Não há mujimbos e muito menos
registos que desabonem a conduta do camarada Tiro Infalível, nessa fase da nossa
história. Se a ela fiz menção, neste texto, isso é tão só um procedimento literário, para
realçar ainda mais a estranha metamorfose por que passará, nas linhas seguintes, o
nosso herói.
A entrada em Luanda, depois da vitória sobre os colonialistas, causou em Pedro
Domingos João um impacto psicológico terrível (outros adjectivos possíveis: dramático,
tremendo ou qualquer um que o leitor prefira), o que esteve na origem de uma série de
inusitadas mudanças de atitudes, que não vale a pena, aqui, enumerar. Direi apenas, para
resumir com uma expressão: o camarada Tiro Infalível aburguesou-se.
Isso, aliás, não chega a ser singular. A Revolução Angolana não foi a primeira
nem será a última que assistirá a esse processo de decomposição de alguns dos homens
que, bravamente, lhe deram corpo. Quando afirmou que na natureza tudo se transforma,
Engels teria chegado a pressentir como essa verdade, ao mesmo tempo singela e
insuportável, se haveria de voltar, mais tarde, contra as suas crenças essenciais?
A verdade é que, depois da independência, Tiro Infalível foi nomeado para
vários cargos; para falar com mais propriedade, circulou por praticamente todo o
aparelho administrativo: foi duas vezes ministro, vice-ministro, uma vez, e secretário de
Estado, outras duas vezes; curiosamente, ocupou sempre as pastas mais díspares umas
das outras, o que poderia ser considerado um sintoma da sua multifacética capacidade,
se a complacência estivesse entre as nossas virtudes... Dizem as más-línguas que,
enquanto se distraia nessa verdadeira roda-viva, o camarada Pedro Domingos teve
tempo para adquirir cinco automóveis e uma quinta perto de Viana, mas isso, por certo,
é politiquice, o que um narrador sensato deve evitar.
Outra notável transformação é que Tiro Infalível descobriu, de repente, como as
mulheres da capital eram tão diferentes da companheira que ele arranjara durante a
guerrilha, a Lemba. Isso, definitivamente, mexeu com ele. Pelo que, e depois de umas
experiências preliminares, para, como ele dizia, reconhecer o terreno, acabou por fixar-
se em Rita, uma mulata que usava cinco perucas e ia à praia de salto alto. Mas não
abandonou a Lemba, com quem tinha três filhos. Quer dizer: a Rita foi erigida apenas à
condição de 2ª região (para usar uma expressão militar-sentimental muito em voga),
com direito a apartamento e uns presentinhos que ele trazia das viagens; em troca, por
exemplo, ela recebia-o sempre com a peruca roxa, além de outras loucuras
impublicáveis.
Tiro Infalível tinha uma teoria bastante escorreita para auto-justificar a sua
alucinante mudança de vida. Perguntava, mas a pergunta já era uma resposta: para quê
que lutei? Não se sabe se alguma vez ele chegou a estabelecer uma correspondência
entre o número de helicópteros abatidos, no passado, e os benefícios que, segundo
achava, lhe eram agora devidos; entretanto, o certo é que espumava de raiva ao mínimo
rumor de que, finalmente, iria sair do governo. Quanto ao facto de ter duas mulheres, a
única coisa que o preocupava eram aquelas imagens trocadas, quando tinha relações
sexuais com elas. De resto, estava em paz com a sua consciência: dava-lhes tudo. Outra
pergunta-resposta do camarada Infalível: mas que culpa tenho eu, se elas gostam de
mim?
No dia em que, como se costuma dizer, os acontecimentos se precipitaram,
Pedro Domingos João estava em casa da Rita, a mulata-das-cinco-perucas. Já lhe tinha
tirado tudo, inclusive a peruca roxa, e preparava-se para abatê-la (verbo que ele gostava
especialmente de utilizar, talvez para recordar-se de seu tempo de guerrilheiro), quando
o telefone tocou. Era o Manuel, seu irmão.
A Lemba morreu. O quê?! Morreu, quer dizer, enforcou-se; lhe encontrámos
mesmo na casa de banho, com a corda no pescoço, já não respirava mais quando lhe
segurámos. Os miúdos? Estão na casa da avó Xima, Tiro Infalível, numa espécie de acto
falho, cobriu o corpo de Rita com o lençol e saiu. Apesar de tudo, estava contente.
Explica-se: a morte de Lemba resolvia o dilema que, nos últimos tempos, o
atormentava. Com efeito, depois de muita expectativa e de uma onda de mujimbos
desencontrados que quase levava a cidade ao pânico e ao tumulto, tinham conseguido
tirá-lo do governo; mas ele não se mostrou muito preocupado, pois logo a seguir foi
nomeado embaixador, o que, evidentemente encarou com muita naturalidade: se os
outros são, por que eu também não posso ser? Entretanto, essa nova nomeação trazia no
bojo uma maka muito complicada: qual das suas duas mulheres ele levaria? Qual delas,
afinal de contas, merecia ser a embaixatriz? Bendita hora, pensou, já sem escrúpulos. O
suicídio de Lemba veio mesmo a calhar, Agora já não teria mais problemas. Ele pensara
tanto no assunto, sem saber como resolvê-lo – e eis que de repente, a solução cai-lhe do
céu.
Enquanto seguia para casa, Pedro Domingos João pensava nas alterações que
pode sofrer a vida de um homem vulgar, que um dia resolveu apenas contribuir para a
libertação do seu país. Não sabemos, é verdade, se ele chegou a formular quaisquer
elucubrações teóricas acerca da importância do factor aleatório nos processos históricos.
Mas ouvimos, com espantosa nitidez, o suspiro de satisfação que ele soltou do fundo do
seu ser: eu sou mesmo infalível...

MELO, João (2004), Imitação de Sartre e Simone de Beauvoir, Luanda: Edições


Maianga, pág 25-30.
Por amar-te tanto

Que culpa terei eu de amar-te assim?


Que culpa terás tu de o não saberes?
Quem adivinha o que se passa em mim?
Como hei-de adivinhar o que tu queres?

Oh! Corações secretos de mulheres.


Oh! Minhas ilusões, mágoas sem fim!
Porque hei-de ter só mágoas, não prazeres,
Por tanto te querer, doce jasmim?

Tudo que sob a luz do sol existe,


Alegre é num momento e noutro triste
Só eu herdei apenas dor e pranto...
O mais humilde verme que rasteja,
Um outro tem que o ama, afaga e beija
– E eu nada tenho, por amar-te tanto...

Rui de Noronha

Amor

Amor é fogo que arde sem se ver;


É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente:
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer,


É um andar solitário por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder,

É querer estar preso por vontade;


É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade:

Mas como causar pode seu favor


Nos corações humanos amizade;
Se tão contrário a si é o amor?

Luís de Camões
Aqui tass

( ... )
Tipo as Lundas ancoraram
Camangas não estão a morar
Petróleo não estão a faltar
Mas sei que em Cabinda manda
Ineré baza bazando
Água mesmo só comprando
Muita fome a dar no osso
Gente desligado a grosso

Meu irmão se estás a sofrer não treme


É mesmo verdade você sabe que aqui vive-se pá ché

Com nossa guerra, com probulema


Tamos se entender mesmo assim
Com nossa fome falta de sumo
Tamos a engordar mesmo assim
Com bwé de sol, com bwé de lixo
Tamos bonitos mesmo assim
Com Teresinha nossa sobrinha
Tamos se quê mesmo assim
Bwé de Kazukuta nas veias
Tamos a subir mesmo assim
Vender terreno do vizinho wé
Tamos enriquecer mesmo assim
Com nossa roupa amarrotada
Tamos a viajar mesmo assim
( ... )

Aqui mbora estamos bem!!!

Dog Murras
Precocemente na vida

A minha idade
Conta-se pelos dedos das mãos
E mais dois

De bonecas
Ouvi falar um dia
Hoje
De pouco ou nada servirão.

Os grandes.
Apressaram-se em encurtar
A minha infância,

Agora,
Levo a vida Deambulando pejas ruas
Com outras meninas,
Da minha idade

De dia violento o meu corpo


Com a brisa do mar.
Contra as árvores
Escondida num canto
Onde ninguém me descubra.

À noite
Sou forçada a lembrar-me
Que o amanhã existe,
Tenho fome.
Que a minha família
Desapareceu ou morreu
Não sei bem.

E então...
Deixo-me violentar pelo apetite
Dos grandes
Aqueles que nos procuram
Na calada da noite
E preferem bonecas
Com a minha idade.
Ana M. de Oliveira
Monangamba

Naquela roça grande não tem chuva


é o suor do meu rosto que rega as plantações:

Naquela roca grande tem café maduro e aquele verrnelho-cereja


são gotas do meu sangue feitas seiva

o café vai ser torrado


pisado, torturado,
vai ficar negro, negro da cor do contratado.

Negro da cor do contratado!

Perguntem às aves que cantam,


aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:

Quem se levanta cedo? quem vai à tonga?


Quem traz pela estrada longa
A tipóia ou o cacho de dendém?
capina e em paga recebe desdém?
fuba podre, peixe podre, .
panos ruins, cinquenta angolares
“porrada se refilares”? .

Quem?

Quem faz o milho crescer


e os laranjais florescer
– Quem?

Quem dá dinheiro para o patrão comprar máquinas, carros, senhoras


e cabeças de pretos para os motores?

Quem faz o branco prosperar,


ter barriga grande - ter dinheiro?
– Quem?

E as aves que cantam,


os regatos de alegre serpentear
o forte do sertão responderão:

– “Monangambééé…”

Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras


Deixem-me beber maruvo, maruvo

E esquecer diluído nas minhas bebedeiras.

– “Monangambéé…”

António Jacinto

Carta dum contratado

Eu queria escrever-te uma carta


amor,
uma carta que dissesse
deste anseio
de te ver
deste receio
de te perder
deste mais que bem querer que sinto
deste mal indefinido que me persegue
desta saudade a que vivo todo entregue…

Eu queria escrever-te uma carta


amor,
uma carta de confidências íntimas,
uma carta de lembranças de ti,
de ti
dos teus lábios vermelhos como tacula
dos teus cabelos negros como dilôa
dos teus olhos doces como macongue
dos teus seios duros como maboque
do teu andar de onça
e dos teus carinhos
que maiores não encontrei por ai…

Eu queria escrever-te uma carta


amor,
que recordasse nossos dias na capôpa
nossas noites perdidas no capim
que recordasse a sombra que nos caía dos jambos
o luar que se coava das palmeiras sem fim
da nossa paixão
e a amargura da nossa separação…
Eu queria escrever-te uma carta
amor,
que a não lesses sem suspirar
que a escondesses de papai Bombo
que a sonegasses a mamãe Kiesa
que a relesses sem a frieza
do esquecimento
uma carta que em todo kilombo
outra a ela não teria merecimento…

Eu queria escrever-te uma carta


amor,
uma carta que ta levasse o vento que se passa
uma carta que os cajus e cafeeiros
que as hienas e palancas
que os jacarés e bagres
pudessem entender
para que se o vento a perdesse no caminho
os bichos e as plantas
compadecidos de nosso pungente sofrer
de canto em canto
de lamento em lamento
de farfalhar em farfalhar
te levassem puras e quentes
as palavras ardentes
as palavras magoadas da minha carta
que eu queria escrever-te, amor…

Eu queria escrever-te uma carta…

Mas, ah, meu amor, eu não sei compreender


por que é, por que é, por que é, meu bem
que tu não sabes ler
e eu – oh! Desespero – não sei escrever também!

António Jacinto
Dois anos de distância

Saudades – dizes na carta de ontem


quando nos veremos
breve ou tarde?
Diz amor!

Nos silêncios e
estão as conversas que não tivemos
os beijos não trocados
e as palavras que não dissemos
nas cartas censuradas

Contra o dilema de hoje


viver submisso ou perseguido
são os nossos dias de sacrifício
e audácia
pelo direito
de viver pensando viver agindo
livremente humanamente

Entre o sonho e o desejo


quando nos veremos
tarde ou cedo?
diz amor!
cresce com mais justiça ainda
a ânsia de sermos
com os nossos povos
hoje sempre e cada vez mais
livres livres livres
António Jacinto
Adeus à hora da largada

Minha Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
tu me ensinaste a esperar
como esperaste nas horas difíceis

Mas a vida
matou em mim essa mística esperança

Eu já não espero
sou aquele por quem se espera

Sou eu minha Mãe


a esperança somos nós
os teus filhos
partidos para uma fé que alimenta a vida

Hoje
somos as crianças nuas das sanzalas do mato
os garotos sem escola a jogar a bola de trapos
nos areais ao meio-dia
somos nós mesmos
os contratados a queimar vidas nos cafezais
os homens negros ignorantes
que devem respeitar o homem branco
e temer o rico
somos os teus filhos
dos bairros de pretos
além aonde não chega a luz eléctrica
os homens bêbedos a cair
abandonados ao ritmo dum batuque de morte
teus filhos
com fome
com sede
com vergonha de te chamarmos Mãe
com medo de atravessar as ruas
com medo dos homens
nós mesmos

Amanhã
entoaremos hinos à liberdade
quando comemorarmos
a data da abolição desta escravatura

Nós vamos em busca de luz


os teus filhos Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
vão em busca de vida

Agostinho Neto

Partida para o contrato

O rosto retrata a alma


amarfanhada pelo sofrimento

Nesta hora de pranto


vespertina e ensanguentada
Manuel
o seu amor
partiu para S. Tomé
para lá do mar

Até quando?

Além no horizonte repentinos


o sol e o barco
se afogam
no mar
escurecendo
o céu escurecendo a terra
e a alma da mulher

Não há luz
não há estrelas no céu escuro
Tudo na terra é sombra

Não há luz
não há norte na alma da mulher

Negrura
Só negrura ...
Agostinho Neto
Havemos de voltar

Às casas, às nossas lavras


às praias, aos nossos campos
havemos de voltar

Às nossas terras
vermelhas do café
brancas do algodão
verdes dos milharais
havemos de voltar

Às nossas minas de diamantes


ouro, cobre, de petróleo
havemos de voltar

Aos nossos rios, nossos lagos


às montanhas, às florestas
havemos de voltar

À frescura da mulemba
às nossas tradições
aos ritmos e às fogueiras
havemos de voltar

À marimba e ao quissangue
ao nosso carnaval
havemos de voltar

À bela pátria angolana


nossa terra, nossa mãe
havemos de voltar

Havemos de voltar
A Angola libertada
Angola independente
Agostinho Neto
O lobo e o leão
O leão tinha um bode. O lobo possuía uma cabra. O lobo vai à residência do leão e
pede:

– Majestade, empresta-me o teu bode para fazer criação com a minha cabra. Quando ela
tiver parido, eu virei trazer-te o bode com o respectivo pagamento.

O leão consentiu.

Depois de ter ficado coberta, a cabra pariu dois cabritinhos - uma fêmea e um macho.

Então o lobo agarrou no bode e na pequena fêmea e levou-os ao leão. Após ter
agradecido muito pelo serviço que lhe prestara o Rei leão, afirmou:

– Aqui está o teu bode e também o pagamento, que é esta pequena cabrinha.

Sem responder aos agradecimentos do lobo, pergunta o leão:

– Só nasceu este cabrito?

Diz o lobo:

– Nasceram dois, um macho e uma fêmea.

– Onde deixaste o outro cabritinho? – Corta o leão.

Um deles, o pequeno macho, ficou para mim, para reprodução. Assim não voltarei a
incomodar-te pedindo-te o bode.

O rei da floresta, quando ouviu tal, ficou zangado e ordenou imediatamente:

– Vai já, já, já procurar o outro cabrito, para mo entregares. Ora já viram? Com que
então querias roubar-me. Se o meu bode não tivesse fecundado a tua cabra teria ela
porventura cabritos? Os dois cabritos são meus, pois foi o meu bode que os gerou. Vai
imediatamente buscar o cabrito que falta.

O lobo ainda tentou protestar:

– Isso não pode ser Majestade. Tu queres roubar-me porque és rei e mais forte? Vamos
chamar todos os bichos da floresta para que se faça um julgamento. Assim veremos se
sou eu que quero roubar-te; ou se és tu que queres roubar a mim.

Responde furioso o rei da floresta:

– Se assim desejas, far-te-ei a vontade. Vou mandar chamar os animais todos, para
virem amanhã de manhã cedo. Far-se-á o julgamento. Mas fica bem ciente: se eu obtiver
razão, hei-de acabar com toda a tua espécie!

O lobo foi-se embora pensativo. No caminho lembrou-se do cágado e foi à procura dele
para lhe pedir ajuda e conselho.
– Amigo cágado, amanhã tenho um julgamento de uma questão com o senhor da
floresta. Vem defender-me, por favor.

– De que assunto se trata?

– Pedi-lhe um bode emprestado para cobrir a minha cabra. Agora que esta pariu dois
cabritinhos, diz o leão que ambos lhe pertencem porque foi o bode quem os teve.

– Está bem. Encontrar-nos-emos amanhã na residência do rei, mas não deixes começar
o julgamento sem eu estar presente.

Na manhã seguinte, todos os bichos compareceram no terreiro da residência real. O


leão, depois de passear o olhar por todos os presentes perguntou:

– Estão cá todos os animais?

– Sim, viemos todos, responderam-lhe em coro.

– Então vamos ao julgamento. É preciso chegar a uma conclusão.

O lobo levanta-se e pede timidamente a palavra:

– Não podemos iniciar ainda o julgamento. Falta chegar um bicho.

– Quem é que ainda falta? – Perguntaram de todos os lados.

– Falta o cágado.

Alguns animais resmungaram, mas resignaram-se. Esperaram até que o sol se erguesse a
prumo. O cágado não chegava. Começaram alguns a impacientar-se, as vozes tornaram-
se mais altas:

– Façamos o julgamento! Estamos aqui a perder tempo. Por que havemos de esperar por
um só? Será porventura, o que falta, o mais inteligente, ou o melhor juiz?

Não tinham completado aquelas frases, os que falaram, quando de trás de uma pedra se
apresenta o cágado.

Apenas o viu, disse a Hiena:

– Já viram? Foi este sujeito que fez de nós seus criados! É este pequenino, que pretende
ser mais esclarecido que todos nós a tal ponto que se não podia fazer o julgamento sem
ele. Que andaste a fazer este tempo todo, diz-nos lá? Tu és muito malcriado.

O cágado aproxima-se do centro do terreiro e responde:

– Não ralhes comigo hiena e escuta-me um pouco. Peço desculpa a todos pelo atraso.
Tive que fazer em casa, assistir o meu pai que deu à luz.

Os bichos ao ouvirem as palavras do cágado olharam-se uns aos outros muito


admirados. Alguns não puderam disfarçar uma gargalhada.
É a raposa que se levanta do seu canto e pergunta:

– Entre os que aqui estão presentes, já alguma vez alguém viu um macho a dar à luz?

O cágado a todos olhava com um ar inteligente e calmo. Os animais embaraçados


olharam uns para os outros e um aqui, outro ali respondeu:

– Nunca vimos macho algum que parisse. Só as fêmeas dão à luz. Deve ser –
acrescentou ironicamente – o teu pai, oh cágado, o único a dar à luz na terra!

– Ai sim? É só o meu pai? Então qual é a causa deste julgamento que nos fez aqui reunir
todos? Não sóis vós que dizeis que o bode teve dois cabritos?

Os bichos começam a levantar-se aos poucos resmungando dizem:

– Aqui não há causa justa. Nunca um bode teve filhos. Assim foi declarado o leão
vencido. A sentença decidiu dar os dois cabritinhos ao lobo.

A lebre, segundo contam, ao retirar-se, disse:

– A razão tem mais força do que toda a força.


Nzamba – O rei sou eu.
Num grande Universo, terra dos animais, existia de tudo um pouco...

Havia boa relva em lindos campos verdes, onde pastavam vacas e bois.

...Naquela terra, havia ainda bonitos jardins com flores de muitas


cores. As borboletas no seu estado perfeito, gostavam muito de passear nelas.

Se havia comida para todos? Lá isso havia! Então a fruta, oh... já nem se fala!
Até os macacos, imaginem... pulando de árvore para árvore cada um com sua banana na
mão, apenas cantando:

"somos macacos, macaquinhos, macacões

e pertencemos à família dos primatas

temos mamas e maminhas no peito

e o bicho, bicho, bicho homem

é o mais, mais nosso parente".

... E o pescoço das girafas, para que servem? Então não sabem?

Olha... elas esticavam-no ainda mais para chegarem bem alto, na mulemba
grande, e poderem então saborear as folhas desta árvore, que lhes serviam de uma boa
paparoca.

Para beberem a água, baixavam-se como ninguém!

Para matarem a sede, as zebras, com seus lindos riscados a preto e branco,
preferiam inclinar-se para as águas claras da ribeira, que também naquele sítio não
faltava.

…Mas o encanto daquele lugar, não ficava por aí...

As águas de um rio que passava ali bem pertinho, eram limpas, tão transparentes
que se podia muito bem observar os peixes, vivendo entre plantas e caracóis como se
fosse num aquário. Estes, de quando em vez, colocavam a cabeça de fora e saltitavam,
parecendo cumprimentarem o sol que dava mais vida àquela natureza.

Tudo naquele lugar estava destinado para se viver em felicidade e bem-estar...


até que um dia, uma confusão se espalhou por toda a selva!...

Uns, correndo atrás dos outros, sem decerto saberem o porquê!... Mais tarde,
todos olharam para o cimo de uma montanha, podendo ouvir de lá uma voz bastante
feroz que rugindo, dizia:

– Sou Hoji, o Rei-Leão! E todos vocês, devem-me obediência!


E dizendo isso voltou a descer da montanha, correndo atrás de todos quantos
fossem encontrar pelo caminho e ferindo alguns ...

Parte dos animais daquela terra, ele os tinha aprisionado numa grande gaiola,
sem poderem fugir... assim, à força, podiam trabalhar para o leão, sem receberem
salário nem outra coisa em troca.

Nisso, o descontentamento era enorme...

Uns querendo reagir contra o leão. Mas, nada podiam fazer, pois, ele era
demasiado forte.

Foi assim então, que um grupo de animais resolveu ir ter com o cágado, mais
velho e conselheiro da aldeia, para resolverem a forma de poderem pôr fim à triste
situação que se vivia.

Este animal, bastante pequeno mas muito inteligente, era tido pelos
outros bichos como uma biblioteca viva, devido á sua sabedoria que lhe
permitia contar muitas histórias por ele vividas.

O cágado escutou com muita atenção o que os outros animais lhe vieram dizer, e
depois de muito pensar disse:

– Dar-vos-ei um conselho, mas não trará resultados imediatos... pois, para se


conseguir algo de bom, é preciso muita paciência...

– Por isso – continuava o cágado – aconselho-vos a procurarem o


Grande Hipopótamo... ele saberá a maneira de vos tirar dessa situação.

Os animais não entenderam bem o que queria o cágado dizer com tudo aquilo.
Mas, como estavam cansados de sofrer dos males causados por Hoji, o Rei-Leão,
tomaram o caminho em direcção ao senhor Hipopótamo.

Estes, encontraram-no mergulhado na água, deixando a cabeça e partes do corpo


de fora. De seguida, apresentaram-lhe a seguinte queixa:

– Grande Hipopótamo apareceu na nossa aldeia um leão chamado Hoji e se


intitula nosso Rei! Tanto mal faz para todos, que até mesmo a calma que reinava entre
nós, há muito que deixou de existir! Queremos que o vá expulsar da nossa terra, e nós,
convidamo-lo a si, Grande Hipopótamo, para ser o nosso rei!

Ao ouvir o nome de Hoji, o hipopótamo cheio de medo, respondeu:

– Oh, meus amigos... muito gostaria de vos ajudar, mas... temo que este Hoji,
que é tão afamado pelo seu terror, me possa também matar! Aconselho-vos então a
procurarem o meu amigo rinoceronte... ele sim, poderá vos ajudar!

E os animais, desiludidos, saíram dali à procura do amigo rinoceronte ...


Depois de muito andarem, eis que o encontraram no seu habitat...

Ao verem aquele chifre tão grosso, e a brilhar como estrela bem por cima da
linha média do rinoceronte, disseram:

– Aí está, quem nos vai livrar daquele malfeitor! Amigo rinoceronte queremos
que vás até a nossa aldeia correr com o leão... pois, desde que ele lá se instalou, nunca
mais tivemos paz! Se assim for, nós, em gesto de gratidão, vamos nomear-te nosso Rei!

– É para já! Se eu for para lá, esmago-o e nunca mais se ouvirá falar dele!... mas,
sobretudo, expliquem-me... qual é o verdadeiro nome dele?

E os animais responderam:

– Hoji, o Rei-Leão!

– O quê?! Este Hoji é muito conhecido pelo que faz e desfaz! Por isso, não quero
ser eu, mais uma das suas vítimas!

Dizendo isso, correu a fugir pela mata dentro, mas ainda teve tempo para
recomendar o seguinte:

– Conhecem a águia-real, que mora lá no cimo da montanha? Pois, é ela quem,


de certeza, vos poderá ajudar!

Mais uma vez desesperado, o grupo pôs-se a caminho à procura da águia, para
ver se a mesma pudesse solucionar o problema que viviam...

É assim que depois de andarem por vales e valetas, rios e riachos, morros e
montes, foram encontrá-la na montanha, conforme dissera o rinoceronte.

Logo após a chegada dos animais, a águia, em sinal de boas-vindas, colocou-se


de pé com as asas abertas, escutando o que eles teriam para dizer...

– Pois bem, amiga águia uma razão muito importante nos trás aqui... é que a
nossa aldeia, foi invadida por um leão que se diz ser Rei e Senhor de todos nós! Desde
essa altura, só nos restam desgraças e tristezas. Queremos que vá lá devolver-nos a paz,
correndo com ele dali... com isso, teríamos razões de sobra para a nomearmos rainha e
chefe da nossa terra! Aceita?

Ao ouvir aquilo, a águia ficou tão contente que já se imaginava na pele de uma
verdadeira rainha, assim que rapidamente respondeu:

– Claro que aceito, quer dizer... não se preocupem que eu mesma irei para lá e
darei uma boa lição naquele animal. A propósito, quem ele pensa que é?!

E os animais, desta vez responderam em coro:

– É Hoji, o Rei-Leão!
– Aiéé?! Bem, eu, agora lembrei-me que tenho de ir procurar comida para levar
aos meus filhos que se encontram do outro lado da montanha, e por isso mesmo não vos
posso ajudar!... Mas, amiguinhos não se preocupem... vocês desçam por aquela colina
abaixo, entrem pela mata dentro e logo encontrarão quem vos poderá ajudar... É ele o
animal mais corpulento que anda em todo o nosso chão, e tem uma tromba muito
grande... Aqui, todos costumamos chamá-lo de Nzamba, o Elefante-Rei!

Dizendo isso, bateu asas e levantou voo, deslocando-se para fora daquele local.

A falta de esperança de um dia se poderem ver livres do leão, era cada vez mais
visível no rosto daqueles animais... Até que, seguindo o caminho indicado pela águia, já
cansados e impacientes, eles, finalmente encontraram o elefante. Assim, sem mais
demoras, disseram-lhe:

– Amigo elefante trouxemos uma proposta da nossa aldeia para nomear-te rei da
selva. Para tal, terás apenas de vencer um malfeitor. Ele, desde que se instalou na nossa
aldeia, tem cometido vários crimes, tais como mortes e sofrimentos!

O elefante depois de ouvir os animais, respondeu:

– É para já!... Mostrarei a ele que ninguém tem o direito de impedir na terra, que
os outros sejam felizes e vivam à vontade!

Os animais ao ouvirem aquelas palavras, bateram palmas de alegria. Logo a


seguir, o elefante perguntou:

– E qual é o nome dele?

Os animais, receosos e cheios de medo, não fosse acontecer o habitual em que


todos os bichos desistiam sempre que ouvissem o nome do leão, mesmo assim, a tremer
disseram:

– Hoji, o Rei-Leão!

– Isso menos me importa! Há muito que pretendo dar uma lição nele, pelos
males que tem causado a tudo e todos... Mostrar-lhe-ei que sou Nzamba, o Elefante-Rei!

Com isso, o grupo de animais, cada vez mais alegre, acompanhou o elefante até
a aldeia, onde encontrou grande parte dos animais já mortos. Outros continuavam
aprisionados, só saiam para trabalhar como escravos do leão, voltando logo que
terminasse o trabalho. Uns quantos haviam fugido e passaram a viver como refugiados
noutros lugares, pelo menos para não morrerem.

Assim que o leão observou o grupo de animais que estavam de regresso à aldeia,
preparou-se para atacá-los, como de costume, gritando:

– Sou Hoji, o Rei-Leão!

Mas, logo que deles se aproximou, deu de caras com o elefante.


Daí, numa grande luta, o elefante agarrou-lhe com a sua tromba e, de uma só
vez, jogou-o a uns bons metros de altura. Quando o leão caiu sobre terra, o barulho da
queda foi tão grande que rebentou as cadeias onde ele havia aprisionado alguns animais
que, agora libertos, saíram a correr para verem o que se passava. O ruído da queda do
leão foi tão forte que se ouviu também nas aldeias vizinhas, para onde haviam partido
outros animais que se escondiam, para não sofrerem as suas maldades. Agora,
regressavam todos para verificarem, afinal que estrondo foi aquele, capaz de estremecer
meio-mundo! E com aquela queda enorme, muitos e muitos bichos em volta, assistiam a
cena. O leão caído no chão, não conseguia sequer pôr-se de pé. Foi então que o elefante
levantou a sua grande pata direita para esmagá-lo de uma vez por todas.

Mas, o velho cágado, como sempre, no seu passo lento, já havia chegado
perto do elefante e gritou:

– Não! Não faças isso!

E os bichos ficaram admirados! Então, como poderia o mais velho cágado,


defender um animal que foi causador assim de tantas desgraças na nossa aldeia?!
Perguntavam os animais, uns para os outros.

Naquele mesmo local, enquanto o leão ainda deitado, o cágado tomou a palavra:

– Então? São vocês os mesmos a afirmarem que já houve tantas desgraças na


nossa aldeia?

E os animais, que muito respeito e admiração tinham pelo cágado, respondiam


seguidamente:

– Sim... Sim... Isso é verdade!.. Realmente...

– Então? porque querem aumentar mais uma desgraça com a morte do leão?! O
nosso amigo elefante, a quem muito agradecemos, já fez justiça ao bater no leão! Mas
não precisa fazer vingança, matando-o também... pois, os meus avós já diziam que
justiça, não é vingança e vingança, gera violência... E de violência meus irmãos, já
estamos cansados. O que devemos fazer, é reconstruir a nossa
aldeia que ficou muito estragada durante o tempo em que o leão esteve
aqui a mandar como rei. E olhem para ele... parece que já está arrependido!

O leão baixou os olhos, concordando com a cabeça, assim que o cágado


continuava:

– O próprio leão, poderá ser-nos importante e nos ajudar a construir uma nova
vida... Afinal, ele é bicho como nós! Se o matarmos, para além de não ganharmos nada
com isso, amanhã seus filhos saberão como morreu o pai... Daí, vão querer fazer
desforra e a paz que tanto procuramos, nunca mais voltará à nossa terra!

Dito isso, todos os animais bateram palmas e encheram-se de alegria. Até


mesmo o leão e o elefante, abraçaram-se amigavelmente.
Naquela mesma tarde, houve uma reunião em que participaram todos os animais
da aldeia. Assim, decidiram que o leão seria o rei dos animais. O elefante, com uma
tarefa mais importante... Seria ele o rei da selva e de tudo quanto estivesse nela.

No dia seguinte, tal como prometeram os animais, o elefante foi coroado. Assim,
teve mais razões para dizer em voz alta:

– Nzamba – o Rei sou eu!

Por isso é que ainda hoje, o leão é tido como rei dos animais e o elefante, o rei
da selva. Tudo saiu, daquela reunião.

BELLA, Jonh, 2010, Nzamba – O rei sou eu, Luanda: INIC.

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