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Hospital com uma mão

U D E G O L D M A N E N T R A N O PA R K WAY
J
sobre o peito, sentindo o coração acelerado, as batidas
violentas do órgão contra sua caixa torácica. Tenta respirar, mas
não consegue. Os pulmões não parecem capazes de funcionar
neste momento; o cérebro, muito menos. Caminha pelo lugar de
forma mecânica, passando pelas paredes perturbadoramente
brancas com uma sensação intensa de náusea. Engole o vômito,
começa a correr.

As entranhas se retorcem, sua frio. Gotículas de suor


ensopam as costas de sua camisa de cetim — a primeira peça
que apareceu em sua frente quando recebeu a notícia e teve que
correr de seu apartamento. Atrás dele, os seguranças também
correm, afoitos para mantê-lo seguro.

Quando finalmente alcança o balcão da recepção, o


coração parece prestes a pular pela boca. A mulher na recepção,
preta, em seus trinta e poucos anos e com os fios crespos
presos atrás da cabeça por uma touca, olha para ele com certa
desconfiança.

Jude apoia as mãos trêmulas no balcão.

— Kim Henney — balbucia, as palavras queimam ao


deixar sua garganta. — Onde está Kim Henney? Preciso vê-lo.

Os seguranças o alcançam em seguida. Os três homens


altos, corpulentos e vestidos em ternos ameaçadores deixam a
recepcionista ainda mais desconfiada.

— Quem é você? — questiona com as sobrancelhas


erguidas. Um olho no loiro pálido, ensopado e levemente fora de
si que acabou de entrar no hospital, outro na tela do computador
em seu balcão.

— Jude. Jude Goldman. — Retira os fios molhados e


grudados na testa e os penteia para trás.

— Qual sua relação com Kim Henney? — pergunta


enquanto digita. Os cliques irritantes das teclas fazem Jude
ranger os dentes.

Ele fica sem resposta. Entreabre os lábios uma, duas


vezes, mas os fecha logo em seguida. Como poderia definir sua
relação com Kim Henney? Ele é meu namorado, pensa em dizer,
mas desiste imediatamente. É meu... parceiro, soa mais perto da
verdade, mas mesmo assim parece estranho, uma mentira
deslavada. Ele é... Eu sou...

— Ele é meu amigo — é o que responde por fim, e engole


em seco.

A recepcionista estreita os olhos, analisa-o de cima a


baixo, mas não opõe muita resistência. Com a expiração longa
de alguém que está fazendo a mesma tarefa repetitiva há quase
doze horas seguidas, dá de ombros e imprime uma etiqueta.

— O Sr. Henney está na UTI neste momento, aguardando


uma cirurgia de emergência. Você pode vê-lo por alguns
minutos, enquanto a sala é preparada. — Entrega-lhe a etiqueta.
— Cole isso na sua roupa e retire apenas quando sair do
hospital. Venha comigo.

Ela deixa o balcão e caminha até o elevador. Jude a


segue prontamente; os seguranças, também. Sobem até o
terceiro andar num silêncio tenso e desconfortável. Jude morde o
interior da bochecha para tentar controlar a ansiedade, mas não
consegue. Na verdade, a cada segundo que passa, a angústia
piora, e piora, e piora.

As portas do elevador se abrem. No corredor à frente,


estão uma dúzia de portas e janelas de vidro de cada lado. A
recepcionista é a primeira a sair e caminha com pressa até a
última janela de vidro do local. Jude a segue de perto; respira
pesadamente, como se tivesse chumbo ao invés de ar nos
pulmões. Quando alcança a janela e fita o corpo inconsciente na
cama, seu coração para.

— Não entre no quarto. A equipe de cirurgia virá buscá-lo


em alguns minutos. Se você pretende permanecer por mais
tempo, volte à recepção e providenciarei um registro de visitante
definitivo para vocês. O que preparei é temporário e vai expirar
em algumas horas.

Ela dá alguns passos para longe, mas se interrompe.

— Ah, e como você é próximo do paciente, há algo que


talvez devesse saber.
— O quê? — Jude questiona sem afastar os olhos de
Kim.

A recepcionista respira fundo, uma careta de desconforto


deforma seu rosto.

— Os paramédicos o encontraram banhado em sangue,


Sr. Goldman. Isso não é característico do tipo de acidente em
que ele se envolveu. Suspeitamos que o sangue não seja
realmente dele.

Os lábios de Jude tremem, pensamentos desconexos


cruzam sua mente desenfreadamente.

— Quer dizer que... — tenta balbuciar, mas a mulher,


impaciente, o interrompe.

— Tivemos que limpá-lo para a cirurgia, mas as roupas


foram guardadas e enviadas à perícia criminal para investigação.
Os arredores do acidente também serão investigados pela
polícia. Se seu amigo esteve envolvido em algum tipo de
atividade ilegal antes do acidente, terá que responder por seus
crimes uma vez que se recuperar. — Vira-se novamente,
caminha de volta ao elevador sem interrupções desta vez.

Crimes?, Jude quase diz, mas não consegue abrir a boca.


A imagem é muito chocante. O que aconteceu com você depois
que deixou a minha casa, Kim?, pensa, encarando o homem
enfaixado e com um tubo grosso preso à boca, ligado a um
respirador. Uma tela ao lado da cama mostra seus sinais vitais e
o eletrocardiograma. O que aconteceu?

Uma lágrima, fria e solitária, escorre por sua bochecha.

— Vocês três ficarão aqui, guardarão este quarto e a sala


de cirurgia com suas vidas.
— Sim, senhor — os seguranças dizem em uníssono.

— Se alguém perder Kim de vista, estará demitido. —


Jude enxuga a lágrima e toca o vidro da janela. — Agora, me
deixem.

Os homens obedecem.

Sozinho, Jude treme e cerra um punho tão forte que as


unhas machucam as palmas de suas mãos. Em seu interior, a
angústia e ansiedade começam a ser substituídas por fúria,
violência. Quem foi o filho da puta que fez isso com você, Kim?
Foram os Snakes? Os Scorpions? Dom? Foi Brianna?, as
possibilidades cruzam sua mente.

— Você o matou — uma voz familiar, baixa e chorosa, soa


às suas costas. — Você matou o meu irmão.
DANGEROUS: ATO I
Copyright © 2023 Mister M.

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de


19/02/1998. Proibida a reprodução deste livro, no todo ou em parte,
através de quaisquer meios, sem a permissão escrita do autor,
exceto em casos de pequenas citações usadas em resenhas ou
artigos críticos.
Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares,
organizações, eventos e incidentes são, ou parte da imaginação do
autor, ou usados de maneira ficcional. Quaisquer semelhanças com
indivíduos reais, vivos ou mortos, eventos ou lugares são
inteiramente coincidentes.

Os direitos morais do autor foram assegurados.

Leitura Crítica: B r e n d o n I d z i D u h r i n g
Revisão: B r e n d o n I d z i D u h r i n g
Diagramação: S e n a r a S o u s a
Capa e Emblemas: S e n a r a S o u s a
Ilustrações de Personagens © A r d a A r t w o r k s ,
Cosmikla, Letícia Vasconcelos

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa.
Primeira edição, 2023.

Para aqueles que carregam feridas de lares disfuncionais ou


violentos dentro de si. E, especialmente, para aqueles que
conseguem identificar essas feridas e cicatrizá-las, quebrando o
ciclo de violência.
C A PA

FOLHA DE ROSTO

D A N G E R O U S : AT O I N O F O R M AT O F Í S I C O

DIREITOS AUTORAIS

D E D I C AT Ó R I A

P L AY L I S T

N O TA D O A U T O R

AV I S O D E C O N T E Ú D O

SOBRE OS SNAKES

SOBRE OS SCORPIONS

S O B R E A G O L D M A N E N T E R TA I N M E N T

PRÓLOGO

PA R T E I

INTERLÚDIO

PERIGOSO

MUNDO CRUEL E CHEIO DE MONSTROS

H AT E F U C K

TORTURA

RELAXE O QUEIXO
S E LVA G E N S

IMPLORE

NOAH

FÁ C I L

FRIO

SR. HENNEY

22

PROMÍSCUO

BONITO QUANDO MENTE

QUE TIPO DE DONO VOCÊ É?

24 / 7

UM HOMEM PODEROSO

ESCORPIÕES

PA R T E I I

INTERLÚDIO

HORA EXTRA

ME BEIJE COM ÓDIO

QUER ME ENFORCAR

PET

AUDREY

O DEMÔNIO EM MIM

CHAME MEU NOME, PT. I

CHAME MEU NOME, PT. II

PA R T E I I I

INTERLÚDIO

O JOGO DO SILÊNCIO

LILITH

PA P E L D E PA R E D E

AGRESSIVO
POR VOCÊ

NEVE NA PRAIA

FIQUE

ARMA CARREGADA

NÃO TENHO MAIS MEDO

SERPENTES, PT. I

SERPENTES, PT. II

FLOR DO INVERNO

C O N T I N U A E M D A N G E R O U S : AT O I I

AGRADECIMENTOS

SOBRE O AUTOR

cuidadosamente organizada
E S S E L I V R O P O S S U I U M A P L AY L I S T
para complementar a experiência de leitura. Acesse-a através do
código abaixo (abra a barra de busca do spotify, clique sobre o
ícone da câmera e o escaneie), ou busque pelas palavras-chave
“DANGEROUS (Atos I e II) – Playlist Oficial” no serviço de
streaming.

NOTA DO AUTOR
EU JURO QUE JÁ ESCREVI e reescrevi essa nota tantas vezes, e
mesmo assim ainda não parece real que meu décimo livro
(primeiro sob o pseudônimo Mister M e primeiro romance erótico)
está finalmente vendo a luz do dia. Depois de inúmeros atrasos,
inúmeros imprevistos com minha vida pessoal e uma divisão em
dois atos, o dia que certa vez pareceu nunca chegar, finalmente
chegou. Então vamos a algumas explicações:

DANGEROUS é o primeiro livro da duologia PAYBACK, e


é uma obra segmentada em dois atos. O primeiro ato está em
suas mãos. O segundo ato será lançado daqui a alguns meses,
ainda no primeiro semestre de 2023. O livro 2 (cujo título vocês
conhecerão no final do ato II de DANGEROUS), tem lançamento
programado para 2024.

O que a divisão de um livro (DANGEROUS) em dois


atos quer dizer? Quer dizer que haverá pontas soltas e plots em
aberto, que serão desenvolvidos tanto no ato II, quanto no livro 2
da duologia. Compreendes?
Esta é uma obra ADULTA, ERÓTICA, dentro do gênero
DARK ROMANCE e com protagonismo GAY. Todas estas
palavras-chave são essenciais para a apreciação da leitura a
seguir. A trama se passa em uma Nova York reimaginada (onde
políticos são meros fantoches de gangues, máfias e milícias
organizadas), centrada na busca por liberdade e vingança de
dois homens presos no meio da guerra entre duas gangues
poderosas pelo controle da cidade.

O aviso na sinopse não está lá à toa. A relação principal


aqui apresentada é extremamente disfuncional; personagens
tomam decisões e se comportam de maneiras que devem ser
interpretadas como problemáticas e NÃO DEVEM SER
ROMANTIZADAS ou REPRODUZIDAS pelos leitores. Nenhuma
das atitudes aqui tomadas são corroboradas pelo autor (exceto
uma ou outra opinião sobre filmes de terror), e ele espera o
mesmo de seu público.

Os gatilhos presentes na obra são: abuso psicológico,


físico e verbal; bullying; sequestro e aprisionamento; pedofilia
(menção); tráfico de menores (menção); tortura de vulnerável;
homofobia; crimes de ódio e agressão física conjugal. Os
gatilhos mais graves estão sinalizados antes de cada capítulo.

Além disso, cabe um claro alerta de conteúdo para


linguagem imprópria (e agressiva em muitos momentos),
conteúdo sexual gráfico e gore (violência descritiva).

Se você leu tudo isso, está salivando pra partir logo para a
leitura, então não ocuparei muito mais do seu tempo. Se
possível, leia o livro com a playlist de fundo, a experiência será
ainda mais imersiva.

Espero que você se apaixone e enlouqueça com Kim e


Jude, que se fruste, que ame, que odeie, que deseje, se
surpreenda, que grite contra seu próprio travesseiro e cruze as
pernas em público, que ranja os dentes e aperte os lábios junto
com eles, que suspire e deixe lufadas de ar escaparem de sua
boca; mas que, principalmente, não consiga tirá-los da cabeça.
Porque eu não consigo há mais de um ano.

Um enorme abraço,
MM.
AVISO DE CONTEÚDO
Este livro é recomendado para maiores de 18 anos por conter:

Abuso de drogas
Conteúdo sexual gráfico
Linguagem imprópria
Violência explícita (gore)

Prossiga com cuidado e lembre sempre de priorizar sua saúde


mental.
SNAKES
É a organização criminosa dominante em Nova York,
Pensilvânia, Ohio, Vermont, Connecticut, Nova Jersey e cerca de
outros treze estados no norte dos Estados Unidos. Através de
suas subdivisões e fragmentação em gangues menores,
controlam as ruas das cidades e estão por trás dos governos,
simultaneamente. Apesar disso, os Snakes possuem um
comando centralizado, passado adiante somente quando seu
líder anterior morre, para a pessoa que o matou. Em 2021, a
liderança foi passada a um garoto de apenas 19 anos, Dominic
Cloud, que se tornou a pessoa mais jovem a assumir o controle
da máfia.

Ao contrário da crença popular em Nova York, os Snakes


nasceram na Pensilvânia, quase um século atrás. Suas primeiras
ações tomaram forma durante a Grande Depressão, quando a
máfia cresceu e se expandiu às custas das dívidas de
trabalhadores, capitalistas e governantes desesperados. A crise
do país permitiu à organização rapidamente tomar o controle de
boa parte do país, e esse controle só se fortaleceu a cada nova
crise (financeira ou política) subsequente ao longo das décadas.

Seu lema é “born to rule”, ressoando a implacabilidade e


imponência com que os mafiosos agem. Buscam o lucro acima
de tudo. Possuem uma política de completa intolerância ao não
pagamento de dívidas e de conseguir recuperar seus
investimentos sob quaisquer custos. Frequentemente, são
contratados por indivíduos ou corporações inteiras para
realizarem seus trabalhos sujos (assassinatos, estelionatos,
sequestros, etc.).

No submundo, são reconhecidos por suas Arenas,


grandes construções subterrâneas que guardam seus clubes de
luta. Os clubes de luta (ou ringues, como são popularmente
conhecidos) são locais de difícil localização, acesso restrito e
extremamente violentos. Estão espalhados ao longo dos estados
onde os Snakes são a máfia dominante, e apresentam dois
propósitos: eliminar devedores, e retirar dinheiro de apostadores
(tornando-os novos devedores) num ciclo vicioso. São tão
reconhecidos que, em 2022, foram incluídos no emblema oficial
da organização.

Seus membros são identificados por uma tatuagem de


serpente no lado esquerdo do pescoço, que se estende da base
da nuca até a traqueia. A remoção da tatuagem de identificação
é considerada traição e punida com o fuzilamento. Outras
tatuagens são adquiridas conforme o membro sobe na hierarquia
da máfia e se envolve em ações hediondas, podendo envolver a
porção superior das costas, os braços, o peito e o rosto.
Somente o líder atual da organização pode ter a costa inteira
fechada com tatuagens, no entanto.
Atualmente, seu líder reside em Nova York e, por isso, o
clube de luta da cidade é o que mais recebe atenção em todo o
país.
SCORPIONS
É a principal máfia rival dos Snakes, sendo a única entre
as duas que tem origem em Nova York. Diferente de seus rivais,
os Scorpions não possuem ações extensas em outros estados.

Estão em guerra com os Snakes pelo controle de NY há


décadas, saindo em larga desvantagem por seu tamanho menor
e falta de apoio do governo local. Apesar disso, possuem uma
notória rede de gangsters de rua, que por vezes conseguem se
sobressair aos gangsters da máfia rival em confrontos físicos
diretos.

Assim como a máfia originária na Pensilvânia, os


Scorpions possuem controle centralizado nas mãos da família
Donovan. Em 2017, após a morte de Liev Donovan, a liderança
da organização criminosa foi passada para seus dois filhos
gêmeos, Maddox e Wolfgang Donovan.
Apesar dos crimes, há um senso de patriotismo ecoado
nas ações dos Scorpions. Possuem uma política flexível quanto
ao pagamento de dívidas, o que reflete em sua conhecida regra
“damos uma segunda chance, mas nunca uma terceira”. Não
vendem seus serviços a indivíduos ou corporações, e não
subjugam seus devedores (são adeptos a execuções rápidas e
limpas).
GOLDMAN ENTERTAINMENT
Goldman Entertainment (GE) é um conglomerado
midiático norte-americano multinacional com interesses primários
na produção e distribuição de programas de TV (através de seu
canal premium GOLDMAN ou de canais de estúdios parceiros).
Foi fundado em 1952 pelo casal de descendência alemã Peter e
Mirella Goldman, e se manteve até hoje como uma empresa de
capital fechado e com controle centralizado nas mãos da família
Goldman.

Em 2008, após o trágico acidente de trânsito que matou


Henry e Amelia Goldman, o controle da empresa foi
unanimemente transferido ao parente mais próximo em idade
legal para liderar, Brianna Goldman, irmã mais nova de Henry, e
única parente viva de Jude Goldman, filho de Henry e Amelia,
que tinha 8 anos quando o evento trágico ocorreu.
Atualmente (2022), apesar de Jude estar em sua
maioridade, Brianna continua ocupando o cargo de CEO da
empresa.
com os dentes enquanto me
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F
encaro no espelho grande, quebrado e mofado do vestiário. A
iluminação porca sempre deixou este ambiente com um ar
fantasmagórico, mas hoje parece particularmente macabro.
Ignoro-o — assim como ignoro os murmúrios abafados que
chegam até aqui da plateia. O público está mais excitado do que o
normal, sabe que essa é a luta mais importante para mim.

Depois de hoje, estarei livre. A adrenalina do pré-embate


corre em minhas veias. Depois de um ano neste canil de merda,
só preciso passar por mais uma noite desgraçada aqui. Entro em
posição de ataque contra meu reflexo. Meus punhos anseiam
por quebrar a mandíbula do filho da puta que eles colocarem
contra mim na fossa esta noite — estou sedento por sangue.
Depois de hoje, sem mais ossos quebrados, sem mais
madrugadas acordado gritando de dor. Soco o reflexo do meu
rosto no espelho, terminando de arrebentar a superfície
desgraçada. Quando o gongo da vitória soar, poderei proteger
minha família como um homem de verdade. Inspiro fundo.

Depois que a luta acabar, deixarei de ser um cão.

A porta do vestiário é aberta. A luz artificial violentamente


amarela do ringue se derrama sobre mim.

— Está na hora. — É Olivia. Atrás dela, os sons da


multidão ficam mais claros.

A doutora não sai da porta, não se aproxima. Parece


tensa. Caminho até ela.

— Pronta pra me ver ganhar mais uma vez? — digo num


tom arrogante e tento tocar seu rosto. Ela se esquiva, entra no
vestiário e me dando as costas.

— Não.

— Por quê?

— Porque isso significa que você vai me abandonar.

Apanho seu braço e viro-a para me encarar. Sua blusa


branca e perfeitamente limpa toca meu peito suado.

— Abandonar? Você acha que eu teria coragem? Vamos


finalmente ser um casal de verdade, porra, longe dessa gangue
de putos.

— Eu sou parte dessa gangue de putos, Kim.

Seguro-a com mais força; a pele macia, delgada e


marrom-escura de seus braços finos afunda sob meus dedos.
— Não precisa ser. Pode ter uma vida normal, comigo.

Ela me encara por um bom tempo, calada e fria, embora


eu sinta nos dedos seu pulso acelerado. Por fim, vira o rosto
teimoso para o lado e tenta se desvencilhar do meu toque. Não
permito, colo-a ainda mais contra mim.

— Me solte — rosna baixinho.

— Por que insiste em escolhê-los ao invés de mim?

— Por que você me desobedece?

— O quê?

— Eu te disse há muito tempo: não se apaixone por mim.


Não suporto homens que acham que têm algum controle sobre
mim, e detesto ainda mais os que me dizem o que fazer.

— Não tô tentando—

— Me solte — repete, o tom mais severo. — Não me


desobedeça novamente.

Trinco a mandíbula, mas solto Olivia. Ela caminha de volta


à porta sem me olhar. Encaro suas costas.

— Nunca houve uma escolha, não consegue entender? —


Ela me fita sobre os ombros, os olhos semicerrados. — Agora se
concentre na luta. Temos convidados especiais na plateia hoje.
Eles vieram especialmente por você.

A adrenalina se mistura ao medo e à desconfiança nas


minhas tripas, e hesito em deixar este vestiário pela primeira vez
desde que fui arrastado para cá contra minha vontade — desde
que minha vida foi destruída.
Seu viadinho de merda. Soco minha própria mandíbula e
cuspo no chão. Não é hora de recuar.

Sem pensar demais e perder outro segundo sequer,


passo por Olivia e corro em direção ao ringue.

Estou pronto.

— PA R E C E QUE TEMOS UM NOVO CAMPEÃO, senhoras e


senhores!

Engasgo com meu próprio sangue ao ouvir essas


palavras. Viro a cabeça para o lado: é tudo o que consigo fazer
com a dor lancinante em meu rosto. Observo meu oponente, seu
braço erguido, alto e vitorioso, pelo juiz da luta.

— E é Matt Whitlock! — o juiz completa. Seu sorriso


viperino parece excitado por entregar um resultado pelo qual
ninguém esperava nesta noite.

Perdi minha última luta, perdi minha liberdade. A vitória


me livraria do contrato, livraria minha família da dívida fodida
deixada pelo meu pai. Eu só precisava ter fodido com esse cara,
destruído cada osso de seu rosto como costumo fazer com todos
os outros.

Um doloroso riso de escárnio atravessa minha garganta.

Kim, seu azarado do caralho, era o que meu pai dizia


quando estava tão bêbado que mal conseguia ficar em pé. Você
é tão azarado quanto a puta da sua mãe.
E é verdade, sou tão azarado quanto a minha mãe.
Percebi isso quando recebi a minha herança após a morte dele:
alguns milhões de dólares em dívidas com os Snakes e uma
casa caindo aos pedaços no Bronx.

Olho para além de Matt e do juiz, para a plateia na seção


esquerda da arena. Nos fundos, estão as portas que levam aos
vestiários e à parte do local inacessível ao público. Parada diante
de uma daquelas portas, Olivia costuma assistir minhas lutas
todas as noites. Não importa o horário, sempre está ali.

Assim como hoje.

Vejo então a doutora dos cães do ringue descruzar os


braços e me dar as costas. Não consigo ver seu rosto por muito
tempo, mas, pelo pouco que vejo... preferia não ter visto coisa
alguma. Sua expressão é um misto de decepção e nojo. Ela abre
a porta mais próxima e deixa a arena.

Uma dor agonizante começa a martelar o meu peito.

Então essa é a dor de um coração partido?

Tenha cuidado com mulheres gananciosas, meu pai


resmungou uma vez, logo depois que o ergui de uma poça de
seu próprio vômito. Elas não vão piscar antes de partirem seu
coração, de te quebrarem inteirinho. Então me empurrou para
longe. Sua mãe era uma delas. Olhe só como ela me deixou.

Expiro fundo. Desvio o olhar de Olivia. Sinto toda a


firmeza do ringue frio sob mim.

Essa foi a última luta — e eu a perdi. Talvez Olivia esteja


certa em me abandonar. Meu corpo será despejado em pedaços
no esgoto mais próximo assim que o sol raiar. Para ela, sou
carne morta. Carne morta como o meu irmão.
Observo as luzes amarelas intensas no topo da arena
subterrânea. Os donos do meu contrato devem estar lá em cima
planejando meu esquartejamento, além de maneiras perversas e
hediondas de torturarem minha família — antes de matá-la
também.

Uma dor intensa irradia pelo meu rosto quando reteso a


mandíbula. Está quebrada, tenho certeza. Estou completamente
quebrado. Minhas pálpebras então começam a pesar. Um
formigamento estranho irradia das pontas dos meus dedos para
os braços, para o peito ensanguentado, para o rosto destruído.

Cruzo um dos joelhos para cima. Descanso uma das


mãos sobre o coração — me certificando de que ainda está
batendo, de que o que se aproxima é somente inconsciência.

Quando minhas pálpebras estão prestes a se fechar, a


voz do juiz soa no microfone da arena:

— E o nosso cão de briga, Kim Henney, acaba de ser


comprado por alguém que se identificou apenas como Sr. J pela
bagatela de 900 mil dólares. Um recorde para os Snakes!

Um rosto embaçado entra no meu campo de visão, curva-


se sobre mim antes de tudo se tornar trevas e escuridão.

— Cão de briga? Você é bonito demais para um cão.


INTERLÚDIO
1 ANO ANTES

— AL Ô ?

— Alô, com quem falo?

— Como assim? Quem é você?

— Meu nome é John, sou um paramédico.

— Paramédico?

— Com quem falo?

— Kim... Kim Henney. O que aconteceu?

— Kim Henney, você tem algum parentesco com... Do-


Yun Henney?

— S-Sim. É o meu pai. Por quê?


— Senhor, houve um acidente na Grand Street há cerca
de vinte minutos.

— Um acidente?

— Sim. Sr. Henney, estou ligando para informá-lo que,


infelizmente, seu pai não resistiu, e para pedir que você se dirija
ao local do—

— O que você quer dizer? O que aconteceu com o meu


pai?

— Ele faleceu. Sinto muito.

— Como?

— Ele foi atropelado. Infelizmente o motorista fugiu, mas a


polícia já foi informada. Senhor, preciso que se dirija ao local do
acidente o mais rápido possível.

— Meu pai ainda está no local onde foi atropelado? Não


deveria ter sido levado pro hospital?

— Senhor, precisamos que venha até aqui.

— Por quê?

— Para confirmar a identidade de seu pai.

— O quê?

— Tudo o que temos são seu Número de Segurança


Social. Seu número de telefone estava salvo como contato de
emergência no celular dele. Não há nenhum documento com foto
junto ao corpo e...

— E...?

— E não conseguimos identificá-lo pelo rosto.


— O que quer dizer? O que aconteceu com meu pai?

— Sinto muito, Sr. Kim. Você deve se dirigir à Grand Street o


mais rápido que conseguir.
corro e me escondo
vai ser violento esta noite
porque seu lado obscuro está vindo
pra me arruinar
é quase como assistir
um suicídio em slow-motion
assistir seu lado obscuro
ficar entre nós dois
devil side — foxes
PERIGOSO
não preciso de permissão
tomei a decisão de testar meus limites
porque quem decide sou eu, Deus como minha testemunha
vou terminar o que comecei
não preciso de ajuda para tomar o controle dessa situação
já estou preparado, completamente focado, minha mente está aberta
[...]
não tenho nada a provar, sou à prova de balas e sei o que estou fazendo
a forma como nos movemos, como se nos apresentássemos a algo novo
que eu quero salvar para depois, o sabor, porque gosto de receber
gosto de me entregar, vivo pelo perigo
dangerous woman — ariana grande

— VO C Ê É B O N I T O D E M A I S PA R A um cão.

Acordo abruptamente enquanto a frase ainda ecoa em minha mente.


Inspiro fundo, meus pulmões parecem cheios d’água. Levo algum tempo até
conseguir respirar normalmente. O ar machuca. A luz intensa do ambiente ao
meu redor machuca mais ainda. Não consigo enxergar nada além de alguns
borrões e manchas brancas. Meu coração bate acelerado demais, violento
demais.

A confusão, o ambiente estranho e as dores me deixam apreensivo.


Há apenas uma coisa da qual estou seguro: ainda estou vivo. Mas por quanto
tempo?

Além disso, quanto tempo faz desde a luta? Quanto tempo tenho até
que eles cheguem ao meu irmão?

Mesmo sem enxergar bem, noto algumas coisas: estou deitado em


uma superfície macia — uma cama, talvez — e meu corpo parece
anestesiado.

Há quanto tempo estou aqui?


Continuo respirando firme até as imagens ganharem nitidez.

A primeira visão clara que tenho é a do meu próprio corpo: não há


sangue em meu peito ou abdome. Estou deitado sobre lençóis brancos,
grossos, limpos. Caros. Me cobrem até a cintura. Quando sinto a fricção do
tecido contra meu pau, percebo que estou nu.

O que está acontecendo?

Puxo as mãos para me desvencilhar das cobertas, mas estão presas


na cabeceira da cama, erguidas sobre minha cabeça. Meu sangue corre mais
rápido. Alongo o pescoço, olho para cima e para trás. Meus pulsos vermelhos
estão atados fortemente ao metal da cabeceira por duas cordas: uma mais
fina, em contato direto com a pele, e uma mais grossa, fixando a primeira ao
metal. Mas que merda?

Dou um puxão na corda maior, mas os nós sequer se movem. A


cabeceira, muito menos. Penso em romper as cordas com os dentes.
Conseguiria fazê-lo, mas parecem resistentes e levaria alguns minutos.
Minutos que não sei se tenho.

Ouço passos se aproximando. Minha respiração cessa bruscamente.


Entro em estado de alerta.

Fito à minha frente uma vidraça ampla que dá vista ao andar inferior do
apartamento. A escada está logo ao seu lado, parece conectar o quarto, no
segundo andar, ao restante do lugar. Presto atenção no espaço ao redor: há
pouca mobília, mas tudo parece sóbrio, minimalista e caro. O teto é alto, tão
alto que quase não consigo discernir a lâmpada que ilumina o cômodo.

Viro o pescoço para a esquerda. Há uma porta dupla que leva a algum
tipo de extensão do ambiente, uma varanda ou uma sacada. As outras
vidraças — as que, imagino, dão para o exterior da propriedade — estão
cobertas por cortinas pretas; não consigo enxergar a paisagem. Sequer sei
se ainda estou em Nova York.

Ouço passos na escada, cada vez mais altos, cada vez mais próximos.
Paro de me distrair. Meu objetivo é deixar este lugar o mais rápido possível.

Estreito os olhos em direção à abertura da escada, mas os passos


começam a se lentificar, como se a pessoa quisesse brincar com minhas
expectativas, controlar o momento em que a verei ou não.
Agarro a corda mais grossa que me prende à cabeceira e espero.
Espero. Espero. Espero até os primeiros fios de cabelo amarelos surgirem em
meu campo de visão, seguidos do resto da cabeça, do primeiro relance de
pele pálida, do rosto terrivelmente inexpressivo, dos olhos azuis gélidos, da
camisa social branca, dos ombros largos, da calça escura de lã.

Quando acordei, tive a impressão angustiante de estar na casa de um


dos chefes dos Snakes, de ter sido sequestrado por um dos credores do meu
pai. Mas olhando para este homem...

Ele não parece o chefe de gangue alguma. Pelo contrário, parece um


burguês que acaba de chegar em casa depois de um dia de trabalho fodendo
a vida de outras pessoas.

Analiso-o de cima a baixo: o Rolex no pulso é a primeira coisa que


chama minha atenção; em seguida, seu pescoço. Todos os Snakes possuem
uma tatuagem de serpente no lado esquerdo da nuca. O pescoço dele é tão
limpo quanto o meu.

Sento na cama da melhor maneira que consigo. Arrasto-me para cima,


e preciso arrastar as cobertas também para não ficar com o pau à mostra de
maneira tão... invasiva.

Ele entra totalmente no quarto, com passos pretensiosos e lentos. Seu


olhar paira sobre o meu por um mero segundo, há uma serenidade sombria
nas suas íris azuis. É como encarar as profundezas inexploradas de um
oceano. Para o meu alívio, desviam-se de mim tão rápido quanto se
depositaram.

O homem me dá as costas e caminha até uma porta espelhada na


extremidade direita do quarto, longe da cama.

— Quem é você? Que porra tá acontecendo? — cuspo com alguma


ferocidade, algum desespero.

Ele não me dá bola. Abre a porta espelhada e caminha para dentro de


um cômodo que não consigo observar deste ângulo.

— Ei! Tá me ouvindo, caralho? Por que tô amarrado? Por que tô nesse


quarto?

Dou outro puxão na corda, e outro, e outro. Olho para os lados,


buscando alguma coisa, qualquer coisa, que seja familiar. Mas não há nada.
Se tivesse acordado amarrado na cama de um Snake — como aconteceu
tantas vezes com Olivia —, ao menos saberia que merda esperar.

— Quando comprei você, não me avisaram que tinha um problema de


memória — ele responde do interior do cômodo oculto.

A frase me deixa tenso. Tenso e preocupado. Tenso pela parte de mim


que diz Ah, então é por isso que ainda estou vivo. Preocupado pela parte que
diz Porra, então é por isso que ainda estou vivo. Puxo as cordas. É inútil
outra vez.

O homem volta ao quarto sem o Rolex no pulso ou os sapatos sociais


calçados, além dos botões mais altos da camisa abertos — posso ver a
insinuação de seu peito alvo. O colarinho e os fios dourados do cabelo estão
bagunçados.

Ele caminha em direção à cama, mas para a alguns metros distância.


O olhar frio se derrama sobre mim, analisando-me da mesma forma que o
analisei antes. As mãos deslizam até os bolsos frontais da calça. Os ombros
estão relaxados, e há uma insinuação peculiar em seu rosto.

— Durão e calado, hm? — diz. — Isso vai ser divertido.

E termina o trajeto até a cama. Senta na extremidade oposta a mim,


dando-me uma visão privilegiada dos músculos de suas costas.

— 900 mil dólares: esse foi o preço que paguei pela sua cabeça antes
que eles te arrastassem para fora do ringue. Não sei que merda acontece por
trás desses clubes de luta ilegais, mas sei que os perdedores não ficam vivos
por muito tempo.

Seus dedos desfazem os botões restantes da camisa.

— Foi dinheiro demais por um homem qualquer. Um cão, como eles


dizem. — Me encara sobre os ombros, desenhando um sorriso provocador
nos lábios. Está tentando me desequilibrar. — A maioria das pessoas diria
que sou a porra de um idiota por fazer isso — completa baixinho, quase como
se não quisesse que eu o ouvisse.

Depois disso, volta a se concentrar nos botões da camisa.

Observo sua postura. Os fios amarelos são um pouco longos,


recobrem parte das orelhas, descem até a nuca. Os músculos das costas e
ombros são largos, mas não tão largos quanto os meus. Ele é mais baixo
também: cinco, talvez sete centímetros. Em uma briga, posso facilmente sair
por cima. Ele não se parece mesmo com um gangster dos Snakes. Se eu o
visse na rua, provavelmente acharia que é um riquinho mimado qualquer, que
não tem olhos para caras como eu — a não ser quando precisa de alguém
para um serviço sujo.

A coisa mais ameaçadora nele é o olhar. O tom insolente é a segunda.

— E você é um idiota? — pergunto com desdém.

— E você é um cão? — ele responde com desdém ainda maior.

Nossos olhares se encontram.

— Me desamarre — digo em algo que soa mais como uma ordem do


que como um pedido.

— Por que eu deveria? — rebate sem mover um músculo, sua face


sem expressão. Na verdade, há sim algo ali: indiferença.

Como imaginei, ele não tem olhos para mim. Seus olhos estão
centrados em outra coisa, em outro momento. Talvez um que não esteja
neste quarto ou neste apartamento.

As cordas fazem meus pulsos doerem, mas já senti tantas dores que
essa parece só uma coceira.

Não respondo sua pergunta. Quero, no entanto. Quero insistir que me


desamarre. Quero testar os limites de seja lá que porra esteja acontecendo
aqui, mas não o faço. Não sou de pedir duas vezes pela mesma coisa. Então
fico quieto, espero.

Ele se vira totalmente em minha direção, sobe de joelhos na cama. A


camisa branca e fina está aberta até a cintura — apenas dois botões
permanecem fechados. Se arrasta de joelhos até mim.

Quando está a apenas alguns centímetros, sussurra:

— Vai tentar algo estúpido?

Seus olhos estão fixos nos meus, seu hálito quente faz arrepios
atravessarem minha nuca. Fico asfixiado e enebriado. Seu cheiro é quase
bom demais para um homem. Aperto as cordas em meus punhos. Minhas
palmas estão geladas, sem circulação.

Balanço a cabeça de um lado para o outro.

Ele ergue seu queixo, me observa com cautela. Talvez esteja se


questionando se vale a pena ou não me libertar. Pela hesitação com que se
move, sei que também tem a noção de que é menor e mais fraco do que eu,
que eu o derrotaria facilmente em um combate corpo a corpo. É inteligente o
suficiente para perceber isso.

E escolhe me soltar, de qualquer forma.

O homem se inclina para trás. A postura permanece reta; o olhar, fixo


em mim. Retira um canivete do bolso traseiro da calça. É uma bela peça. Tem
cabo vermelho e lâmina de prata. Meus olhos são atraídos a ela, mesmo que
os dele permaneçam sobre mim. Com o clique de um botão, a lâmina se
liberta, longa e afiada. O som metálico me deixa sobressaltado. Um sorriso se
abre no rosto dele em resposta. Estreito os olhos. Ele ainda está brincando
comigo.

Aproxima-se um pouco mais, a atenção voltada às cordas que me


prendem na cama. Tento acompanhar seus movimentos com o olhar, mas ele
é rápido demais. Em alguns segundos, a corda mais grossa se rompe. Abaixo
os braços. Parte da tensão sobre meus ombros se dissolve. Os músculos
reclamam, mas logo agradecem. Não tenho ideia de quanto tempo passei
nessa posição desconfortável, mas, pela dor, não deve ter sido pouco.

Ele também é inteligente o suficiente para não me libertar


completamente de uma vez. A corda mais fina ainda aperta meus pulsos
entre si, deixando-me parcialmente imobilizado.

O homem recolhe a lâmina do canivete e o guarda no bolso. Observo


ele se virar de costas outra vez; pelos movimentos de seus cotovelos, sei que
está abrindo os últimos botões da camisa. Por que está se despindo?

— Obrigado — digo. — Agora, pode me falar que caralhos estou


fazendo—

— Você já fodeu com um homem? — me interrompe enquanto retira a


camisa branca delicadamente. O tecido passa sobre seus ombros como uma
segunda pele. É largado no chão em seguida.
— O quê?

Uma risadinha cínica deixa seus lábios.

— Tem problema de audição também? — Me encara sobre os ombros.

— Que porra você quer dizer com isso? — rebato, mais agressivo.

Ainda de costas, ele afasta o olhar, curvando a nuca para baixo.

— Sei que você tem uma dívida com os Snakes deixada pelo seu pai e
por isso estava naquele lugar de merda — explica, o tom mais firme. — Ou
melhor, tinha. A dívida está paga. Paguei por ela, além do valor da sua
cabeça. Não foi barato. — Volta a me encarar sobre os ombros. — Que
merda ele fazia pra dever tanto praquela gente?

A mancha escura de roupas, sangue e carne que se tornou o corpo do


meu pai depois do atropelamento me esmurra.

— Não te interessa.

Ele morde o lábio inferior, então concorda sutilmente com a cabeça.


Volta a encarar o chão à sua frente. Depois que meu acesso de fúria passa,
penso um pouco mais no que ele acabou de dizer.

— Você tem tanto dinheiro assim... pra gastar em uma pessoa


qualquer?

Suspira fundo.

— Algo assim.

— Por quê?

— Porque você ainda tem uma dívida, mas agora... — seus dedos se
fecham firmes nos lençóis brancos — comigo. E vai precisar pagá-la de outra
forma — diz com uma calma melancólica, quase triste.

Fito seus punhos cerrados nos lençóis, a serenidade que seus


músculos tensos exalam dolorosamente. Qual será essa “outra forma”? É
uma pena que não ficarei aqui por tempo o suficiente para descobrir.

Você é inteligente, penso. Mas não o suficiente.

Forço um pouco a corda fina ao redor dos meus pulsos e arrebento-a


sem muito esforço. Ela se desfaz em dois pedaços inúteis, que caem
silenciosamente no colchão.

Inclino-me até ele e agarro seu cabelo por trás. Puxo-o bruscamente
para baixo e prendo-o numa posição desconfortável. Os fios longos facilitam
a pegada. Suas costas curvam-se sobre meu joelho. Encaro as profundezas
de suas íris de cima, e posso enxergar nelas o arrependimento de ter acatado
meu pedido.

— E se eu recusar? — rosno, meus caninos bem à mostra. Quero que


ele sinta a ameaça em minha voz, que saiba que posso quebrar seu pescoço
com um simples movimento da mão livre.

— Bem... — Engole em seco, mas não desvia os olhos de mim nem


mesmo quando lágrimas de dor os marejam. — Como todas as dívidas, essa
também passará para seus parentes de sangue mais próximos. Sei que você
tem um irmão mais novo, Kim Henney. Acha que ele conseguirá pagar sua
dívida no seu lugar?

A última lembrança que tenho de Noah invade minha mente da mesma


forma que a do cadáver do meu pai. Meu coração acelera ainda mais quando
as duas imagens se sobrepõem.

— Ele é só um garoto. Teria coragem de machucá-lo?

Uma risada seca escapa de sua garganta, tão macabra quanto seus
olhos.

— Você não tem ideia de quem eu sou, não é?

Puxo os fios dourados para trás com mais força. Um grunhido abafado,
surpreso, escapa de seus lábios. Ele precisa apertá-los para não deixar
outros sons escaparem.

— Me dê um bom motivo para eu não matar você, aqui e agora, sair


por aquela porta — aponto a abertura da escada com o queixo — e
desaparecer.

Ele não hesita.

— Meu nome é Jude Goldman. Minha família é dona de uma pequena


empresa bilionária chamada Goldman Entertainment. Até um animal
selvagem como você já deve ter ouvido falar. E sabe o que é mais
engraçado, cão?
Enrijeço. Meu rosto empalidece. Goldman? Puta que pariu! É a
empresa em que—

— Seu irmão trabalha pra mim — diz com um sorriso sádico.


MUNDO CRUEL E CHEIO DE MONSTROS
então você quer falar de poder?
deixa eu te mostrar o que é poder:
eu como garotos como você no café da manhã
penduro um por um no meu colar
e trago-os sempre comigo
breakfast — dove cameron

CHOQUE TOMA O MELHOR de mim por um tempo. As palavras não se


O
conectam em minha mente, não posso acreditar que sejam, de fato, a
verdade. Quando percebo a merda inigualável na qual estou metido, afrouxo a
pegada em seu cabelo. Ele continua:

— Pequeno Noah Henney, estagiário há três meses. Sempre pontual;


sempre com o terno bem alinhado, um sorriso no rosto perfeito, os olhos
brilhando enquanto lambe o chão onde piso. Me pergunto se ele ainda
manteria esse sorriso caso eu comesse seu cu na mesa do meu escritório.
Ele é virgem? Eu gostaria de descobrir. Sempre achei que parecia mais
viadinho do que a maioria dos estagiários na empresa. Mas quer saber? Ele
tem um futuro próspero no meio empresarial, na Goldman, caso seu irmão
mais velho não foda com isso espetacularmente.

Apesar de pasmo e arrepiado pela quantidade de informações sendo


enfiadas em minha cabeça de uma vez só, meus dedos continuam firmes em
seu cabelo.

— Sou o dono deste prédio. Cem andares. Se você me matar e tentar


atravessar aquela porta — aponta a abertura da escada com os cantos dos
olhos —, não conseguirá dar sequer dois passos antes de ser fuzilado pelos
meus seguranças. Consegue imaginar o que farei com seu irmão pela
manhã? Consegue ver as lágrimas nos olhos dele? Farei exatamente o que
está pensando, e muito mais. Isso, claro, depois de jogar os pedaços do seu
corpo, Kim, na fossa de esgoto mais próxima. Ninguém nunca vai te achar, e
muito menos a ele. — Semicerra os olhos em minha direção. Lágrimas de dor
escorrem pelas bochechas. — Acha que é durão o suficiente pra tentar a
sorte? Por favor, fique à vontade. Aposto que cães como você acham que
podem resolver tudo na força.

Ele puxa meu braço para trás violentamente, libertando-se.

O homem — Jude Goldman — não se afasta de mim ou da cama, no


entanto. Permanece próximo o bastante para que eu possa agarrá-lo outra
vez caso queira, mas sabe que não o farei. E esse é um tipo bem específico
de dominação: arrogante, total.

Ou talvez ele simplesmente goste de ter seu cabelo puxado dessa


forma. Olivia também gostava.

Ele fica sentado na beirada da cama, de lado para mim, as pernas


tocando o chão.

— Por que está fazendo essa merda? — pergunto. — Por sexo? Mas
você...

— Vamos lá, diga o que quer dizer.

— Você parece o tipo que pode foder com quem quiser.

Lentamente, Jude se vira em minha direção. O rosto está fechado, o


olhar, vermelho e ameaçador.
— Você não sabe porra nenhuma sobre mim — diz suavemente, em
contraste ao seu rosto.

Não sei mesmo porra nenhuma além de seu nome, seu poder sobre a
vida do meu irmão e de que gosta de frequentar os clubes de luta
subterrâneos nas madrugadas. E de que pagou minha dívida — para me
foder.

Desvio o olhar para os lençóis brancos que me cobrem da cintura para


baixo. Ele imediatamente os retira, largando-os no chão junto à sua camisa.
Meu pau fica exposto na cama. Estreito os olhos em sua direção, buscando
algum pudor; tudo o que encontro é um vazio indiferente.

Ele se aproxima mecanicamente, como os ponteiros de um relógio. O


olhar me penetra, as mãos tocam meus ombros e me obrigam a deitar na
cama. Quando o faço, ele passa um dos joelhos sobre minha cintura e monta
em mim. Sem hesitar, senta sobre o meu pau — esmagado entre sua bunda
e minha barriga.

Apesar da tensão de ter um homem desconhecido sobre mim —


alguém que acabou de me ameaçar, de ameaçar estuprar meu irmão, uma
pessoa com quem tenho uma dívida quase milionária —, o atrito delicado faz
minha ereção despertar.

Devo ter enlouquecido completamente. Nunca, nunca antes sequer


considerei a possibilidade de ficar duro por um homem. Ele sente isso, e
abaixa os olhos em direção ao meu pescoço, então ao peitoral, aos gomos do
abdome e, por fim, ao membro.

Apesar de ter provocado tudo, de ter voluntariamente sentado sobre


mim, a ereção parece surpreendê-lo. Seu corpo parece paralisado, os olhos
fixos na glande.

Que merda tem de errado com ele agora?

Saindo do transe, Jude inclina-se para o lado, em direção à mesa de


cabeceira. Abre uma das gavetas e apanha dois objetos: um frasco cilíndrico
de lubrificante e o envelope de uma camisinha.

— Que merda é essa? — as palavras me escapam.

Ele fecha a gaveta e se endireita sobre mim, as duas embalagens


permanecem em suas mãos.
— Você precisa ser muito idiota pra não perceber o que está
acontecendo aqui. Precisa que eu soletre?

Meu coração acelera.

— Eu não vou foder com você.

Tento afastá-lo de cima de mim, mas não consigo. Subitamente, é tão


pesado quanto uma estátua.

Empina o queixo:

— Então você sabe o que acontecerá com seu irmão. Quer deixá-lo
sozinho nesse mundo perigoso e cheio de monstros?

Contraio os lábios, assustado e nervoso. A última vez que fiquei assim


foi há pouco mais de um ano, quando os Snakes invadiram minha casa.

— Meu irmão não tem nada a ver com isso, seu filho da puta —
vocifero.

Ele cruza os braços sobre o peito e estica o canto da boca.

— Não é assim que o mundo funciona, Kim. — Suspira. — Agora,


podemos continuar fazendo isso do jeito fácil ou deixar que nosso pequeno
Noah pague o preço pela covardia do irmão mais velho. A escolha é sua. Não
vou te estuprar. Essa nunca foi minha intenção, se é com isso que está
preocupado.

— Não vai me estuprar, mas teria coragem de violentar um garoto?

— Oh — ri —, nunca disse que faria isso com Noah. Até onde sei, ele
ficaria de quatro pra mim voluntariamente. Você também não acha? Seja
sincero.

Cerro os punhos, completamente irado. Meu primeiro reflexo é o de


quebrar o queixo desse desgraçado até tornar impossível reconstruírem-no.
Preciso de todo meu autocontrole para suprimir esse impulso. Desvio a
cabeça para o lado.

Parabéns, Kim. Passou dos dentes de uma gangue de serpentes para


os dentes de um sociopata sádico. Talvez até minha mãe tenha sido mais
sortuda do que eu.
— Você planejou essa merda toda? — as palavras enojadas me
escapam. Meus dentes rangem.

Ele revira os olhos, impaciente.

— Você dormiu por três dias, tive tempo suficiente pra pensar. —
Agarra meu queixo e me obriga a encará-lo. — Você não respondeu à minha
pergunta.

Seguro seu punho com força, esmagando-o. Retiro sua mão do meu
rosto e puxo seu braço para baixo com violência. Ele se curva sobre mim, a
camisinha e o lubrificante escapam de sua outra mão. Ficamos face a face,
nossos narizes praticamente se tocam.

— Que pergunta? — provoco.

De perto, vejo suas íris azuis, a surpresa e a fúria que tenta


desesperadamente controlar.

— Já fodeu com homens antes? — diz.

Aproximo mais nossos rostos.

— Pareço um viadinho pra você?

— Sim.

Meu sangue ferve. O impulso de machucá-lo — de agarrar seu


pescoço e apertar as jugulares até estourarem sob meus dedos — me
preenche outra vez.

— Não. Nunca fiz sexo com homens — respondo com uma calma
ardente. — E não pretendo começar agora.

— Então sua decisão já foi tomada?

Entreabro os lábios, mas me calo. Ele é insensível. Insensível e cruel.


Além de bom em encurralar as pessoas: meu corpo nu preso — mesmo que
metaforicamente — nesta cama é um indicativo disso.

Se eu fosse o único em risco, o pescoço de Jude Goldman estaria


quebrado, assim como o de todos os seus guardas lá fora. Mas não posso
arriscar a vida de Noah. Não posso me tornar aquilo que mais detestei
durante a vida inteira — meu pai.
Já suportei um ano no inferno por Noah. Talvez consiga suportar um
pouco mais. Desta vez, pelo menos, com menos ossos quebrados.

— Que tal... mil dólares a cada foda? — ele comenta casualmente


enquanto se afasta.

— O quê?

— Descontarei mil dólares de seu saldo devedor a cada vez que


fodermos.

O que há de tão irresistível em mim para justificar o comportamento


desse desgraçado? Ou será que há algo muito fodido em sua cabecinha
dourada?

A proposta gira em círculos na minha mente. Calculo quantas fodas


teríamos até o final, quanto tempo levaria até a dívida ser completamente
paga. Não sou uma máquina de foder. Mesmo nos meus melhores dias, só
consigo gozar quatro, no máximo cinco vezes por noite. Passo a ponta da
língua pelos dentes superiores, abismado.

— Quer mesmo me manter preso por tanto tempo?

— Isso é um acordo, você não ficará pres—

— Sim, sim, porque tenho muitas opções, né? Ainda bem que você
não quer me estuprar, graças a Deus. — Arregalo os olhos, cínico.

Não costumo agir desse jeito, mas há algo nele que me deixa
assustado. Algo em sua forma de falar, de se mover, de reprimir
profundamente as mais básicas reações.

— Acho que você deveria ser um pouco mais grato.

— Grato?

— Acabei de salvar a porra da sua vida, e a do seu irmão também. —


A paciência dele parece próxima de se esgotar. Engulo em seco, o cinismo
me abandona completamente. — Então sim, acho que você deveria ser um
pouco mais grato.

— Por quê? Por que salvou minha vida? O que você quer de mim?

Me inclino para cima na cama e me apoio nos cotovelos.


Ele não esboça qualquer reação.

— Não importa pra você.

Estreito os olhos.

— Não seja ridículo, seu cuzão estúpido. Por que eu? Por que não
escolheu qualquer outro cara?

— A carne que vai pro lixo é sempre a mais barata.

Filho da puta. É como levar um murro nas entranhas. Tento me


controlar, olhar além da fúria que ele me causa. Penso em Noah, na única
parte da minha família que ainda está viva. Preciso pensar nele.

Fecho os olhos. Respiro algumas vezes.

A imagem de seus olhos fixos no meu pau logo que afastou os lençóis
do meu corpo retorna à minha mente.

— Me responda uma coisa — começo —: essa também vai ser a sua


primeira vez?

Abro os olhos. Jude tem o pescoço inclinado para o lado, o olhar


confuso, levemente irritado.

— É claro que não vai ser minha—

— Com um homem? — complemento.

Sua boca fica aberta por alguns segundos, mas nenhum som escapa
dela. É toda a confirmação de que preciso.

— Isso não é só sobre o sexo, é? — continuo. — Por que um herdeiro


compraria a dívida de um cão de briga qualquer? Pra fodê-lo? Os prostitutos
estão tão inacessíveis no Upper East Side ultimamente? — Um sorriso
malicioso arrasta-se em meus lábios. — Posso apresentá-lo a alguns caras
que fazem o trabalho que você quer em Long Island. Eles são baratos.
Aposto que se divertirá enfiando o pau neles.

Lanço-lhe uma piscadela, mas imediatamente me arrependo da nojeira


que acabei de dizer. E o pior de tudo: sequer consigo atingi-lo.

Jude sorri, semicerrando os olhos.

— O que te faz achar que quero enfiar o pau em alguém?


Fecho o rosto.

— Você não é...? — Vincos profundos se formam na minha testa. Olho


para os lados, e então para seu rosto divertido outra vez. — Quer que eu te
coma?

Olho bem para o homem sem camisa montado sobre o meu pau. Que
estúpido.

O sorriso dele se alarga. Jude desvia o olhar para as cortinas escuras


diante da porta da varanda.

— Você está certo. Eu poderia contratar um prostituto qualquer pra


foder. Não precisaria ter tido o trabalho ou o gasto que você me trouxe. —
Lentamente, a expressão e a voz dele se tornam apáticas. — Mas precisei
escolher com muito cuidado... — me fita — o homem que vai me foder.

Retribuo o olhar e permaneço sem saber o que responder por um


tempo. Há confiança exalando por todos os seus poros, e incerteza pelos
meus. Passeio o olhar pelos detalhes dele: os delicados fios amarelos que
caem sobre o rosto, o pescoço vulnerável, o peito exposto, o ‘h’ e ‘a’ que o
maculam, tatuados logo acima do coração. Minha curiosidade aguça. São as
iniciais de quê? De quem? Me prologo mais nos mamilos rosados, nas pernas
ao redor da minha cintura. Presto atenção nele realmente pela primeira vez.

Há beleza no seu corpo, certamente há. Não posso mentir para mim
mesmo e dizer que não o acho bonito, mas isso é diferente de achá-lo
atraente. Nunca me atraí por homem algum durante minha vida inteira — o
simples pensamento de ficar nu e encostar em outro cara me causa arrepios.
Sempre fui mulherengo; antes dos Snakes me arrastarem para o ringue,
comia duas, três na mesma noite. Meu pai me levou para conhecer o gosto
de uma mulher muito cedo, sempre me ensinou a olhar homens como irmãos,
como amigos, e a rejeitar qualquer outro tipo de pensamento. Noah aprendeu
as mesmas coisas, e mesmo assim cresceu do jeito que cresceu. Isso quer
dizer que ele nasceu gay, e eu nasci hétero. Certo?

Então por que meu pau está duro?

Há algo estranho acontecendo com meu corpo, não vou negar. Mas
isso não importa. A desigualdade de poder aqui é muito grande. Estou
encurralado contra a parede, com um punho fechado ao redor do meu
pescoço. Não há saída. Não há opção. Não se eu quiser livrar o bem mais
precioso que tenho de toda essa merda.

— E meu irmão ficará seguro se eu fizer isso? — pergunto, o olhar


perdido na parede de vidro atrás de Jude.

Ele responde prontamente:

— É claro. Como você mesmo disse: ele não tem nada a ver com isso.
O emprego dele estará seguro. Seu futuro, certamente garantido. Na
verdade, ele sequer precisa saber dos detalhes do nosso contrato. Sequer
precisa saber que temos um contrato. Conte a ele o que quiser, não me
importo. — Nossos olhares voltam a se encontrar. — Então, qual é a sua
decisão, Kim Henney?
— FA Ç A 2 M I L D Ó L A R E S por cada foda.
HATEFUCK
eu te odeio
toda vez que eu te fodo
hatefuck — cruel youth

ELA ENÉSIMA VEZ DESDE QUE começamos, tomo cuidado para não deslizar
P
inteiro para dentro de Jude. Seu corpo é desconfortável, apertado. Estamos
há tempos tentando engatar essa foda, encontrar um ritmo que seja agradável
e indolor para os dois, sem muito sucesso. Fecho os olhos, tento imaginar que
estou com Olivia. A suavidade dos movimentos dela em nada se comparam à
aspereza, à brutalidade de Jude — de um homem. Há algo elétrico e quente
em seu toque que o torna único. Quando fecho os olhos, tudo o que consigo
ver é exatamente o que está em minha frente: o desgraçado loiro de quatro na
cama, bem aberto para mim, seu buraco me envolvendo, as costas curvadas
de maneira irregular — como as de alguém que realmente nunca fez isso.

E, estranhamente, não preciso de Olivia para me excitar. Jude é


suficiente. Meu pau pulsa em seu interior. Estou mesmo perdendo alguns
parafusos.

Movimento-me lentamente. Faço todo o necessário para não machucá-


lo, mas chega um momento em que não tenho mais controle sobre mim
mesmo, em que meu pau e meus quadris começam a se mover por conta
própria.

Uma estocada. Ele geme contra o travesseiro sob o rosto.

Duas. Vejo as escápulas se contraírem pelo desconforto, as costas


lisas e brancas abertas totalmente para mim.

Três. A tensão nos ombros dele me faz apertar sua cintura,


esmagando-a, transpassando para sua carne o quão difícil é manter a minha
sob controle.
Quatro. Meu pau entra totalmente pela primeira vez.

Cinco. Sai totalmente pela primeira vez.

Seis. Jude move o quadril em minha direção suavemente, como se se


espreguiçasse. O movimento muda o ângulo de entrada, consigo ir um pouco
mais fundo.

Na sétima estocada, cedo totalmente ao prazer. Nem em mil anos


imaginaria que comer um homem poderia ser tão bom. Curvo-me sobre ele
até meu rosto encontrar sua nuca, até o cheiro brando e fresco dos seus fios
me envolverem. Mesmo de joelhos e apoiado nos cotovelos, parte do meu
corpo se deposita sobre o dele. Abraço-o por trás, meu peito cola em suas
costas. Suor se acumula na linha delicada de sua coluna e se mistura àquele
no vão do meu peitoral, àquele que escorre do meu pescoço.

Talvez eu não seja gay. Foder mulheres é tão prazeroso quanto, afinal
de contas.

Mas há algo no corpo deste filho da puta que me faz duvidar disso.

E, quando dou a oitava estocada, tenho certeza. Gemo baixinho.


Minha pelve se cola à bunda dele e fica ali por um tempo. Olho para o lado.
Vejo seus punhos brancos agarrando os lençóis. Nenhum som sai de sua
garganta — talvez já tenha se acostumado.

Movo então os quadris com um pouco mais de pressa, um pouco mais


de anseio.

— Ah... — resmunga contra o travesseiro.

Ergue-se pelos cotovelos, curvando a nuca para o lado o suficiente


para me encarar.

— Vá mais devagar — ordena numa voz ríspida, despida do cinismo


usual.

Meu corpo se retesa.

— Não tá sendo fácil pra mim também.

— Vá. Devagar. — Sua mandíbula está tensa.

Encarando-o desta posição, vejo uma mancha rosa colorindo a pele


pálida a partir das bochechas, descendo pelo pescoço e pelos ombros.
— Não é você que está sendo fodido, é? — ele continua.

Está aí algo que nunca imaginei ouvir durante o sexo. Mulheres


geralmente são bem menos explícitas sobre seus desconfortos na cama. O
que faço agora? Posso forçar um pouco e machucá-lo, dando-lhe um gosto
da dor que me fez passar até aqui. Não posso verdadeiramente dizer que não
mereça.

Em que merda estou pensando?

Aproximo mais o rosto de sua nuca. Talvez alguns beijos transmitam-


lhe um pouco de calma e ele finalmente relaxe. Tento colar os lábios na parte
de trás da orelha dele, mas Jude me afasta para o lado com o braço.

— Foda-se isso — diz. Meu pau desliza para fora, em direção ao meu
próprio abdome. Caio deitado na cama, ao seu lado. — Preciso de um tempo.

O desgraçado senta na extremidade da cama, de costas para mim, e


se inclina até a mesa de cabeceira amarela. Apoio-me nos cotovelos,
frustrado e ansioso.

Observo as linhas delicadas dos músculos de suas costas, a forma


como as omoplatas se movem quando os braços se estendem em direção à
gaveta — contraindo e relaxando — para então contrair e relaxar outra vez.
Seu corpo é completamente sem pelos. Completamente... despreocupado.
Ele se move como se tivesse toda a calma do mundo, como se o mundo todo
estivesse aos seus pés — e talvez realmente esteja.

— Qual é o problema? — pergunta subitamente.

Fecha a gaveta e se volta a mim. Recosta-se na cabeceira da cama


onde, até pouco tempo atrás, eu estava amarrado. Traz um cigarro e um
isqueiro nas mãos.

— Problema? — rebato. Minhas sobrancelhas se arqueiam.

Ele acende o cigarro e aspira fundo uma única vez. Deixa um cinzeiro
de metal sobre a mesa de cabeceira. Inclina-se em minha direção. Antes que
eu possa perceber o que ele vai fazer, sua mão se fecha ao redor do meu
pau.

— Com isso aqui. — Ele o aperta dolorosamente, então solta. — Por


que não gozou ainda? — E me encara desconfiado. — Quando te comprei —
volta a se recostar na cabeceira e dá outra tragada —, não me disseram que
tinha problemas com isso.

— Não tenho.

Aperta meu queixo bruscamente.

— Então qual é a porra do problema? — rosna contra o meu rosto.


Seu hálito quente e enfumaçado me inebria.

— Nunca comi um homem. Não tenho o gosto pra isso. Essa é a porra
do problema.

— Jesus Cristo. — Solta meu queixo, mas continua próximo. — Acha


que me importo com essa merda? Nunca teve que fazer algo para o qual não
tinha o gosto na vida?

Dou-lhe um longo olhar de animosidade antes de responder:

— Os Snakes me arrastaram pra dentro daquele inferno escuro e


podre, que fede a sangue e mijo de caras que morreram na lona. O cara que
pegou todo o dinheiro do meu pai invadiu minha casa e quase colocou uma
bala na cabeça do meu irmão me obrigou a lutar por 365 dias ininterruptos.
Se eu perdesse, uma vezinha sequer, eles fariam comigo e com Noah coisas
que você sequer pode imaginar. Estupro? Esquartejamento? Eu ficaria
agradecido se fosse só isso. — Limpo a garganta. — Você não me dá medo.
É apenas um inseto com uma carapaça de ouro. Por fora é brilhante; mas,
por dentro, é tão asqueroso quanto todos nós. Me dá pena. Me dá... nojo.

Em silêncio, ele traga o cigarro novamente. A fumaça flutua sobre


minha cabeça como uma cortina.

Jude encosta a parte de trás da cabeça na cabeceira mais uma vez, o


olhar voltado ao teto. Cruza um dos joelhos sobre a cama, a palma do pé
pressiona o colchão. Apoia o cotovelo sobre o joelho e fica nessa posição por
um tempo, refletindo sobre algo.

Refletir, percebo, é algo que ele faz muito.

— Inseto? Carapaça de ouro? Porra... — Seu tom é cínico, baixo,


quase um sussurro. Estamos sozinhos na cama, no apartamento. Não há por
que falar mais alto. — Vou confessar: não esperava que tivesse uma alma tão
poética, Kim. Devia pensar em escrever um livro ou uma merda do tipo. — Os
cantos de seus lábios sobem num sorriso falso: — Que tal fazê-lo enquanto
lambe a cabeça da minha pica?

Pairo o olhar sobre seu pescoço, as clavículas, a depressão entre elas,


então sobre seu peito. Quando chego ao baixo-ventre, meus lábios se
entreabrem, mas fecho-os antes que ele perceba.

— Não quer? — replica diante do meu silêncio.

— Não.

— Não tem sequer um pouquinho de curiosidade em descobrir qual


gosto tem?

— Não.

— Você é entediante.

— Você é desprezível.

— Pelo menos não sou um broxa.

— Não broxei. Caso não se lembre, foi você que não aguentou por
muito tempo.

— Você entendeu o que eu quis dizer, engraçadão. Estamos nisso há


pelo menos uma hora. — Curva a nuca em minha direção. Nossos olhares se
encontram. — Minhas pernas estão dormentes. Eu sei, por experiência, que
foder um homem não é tão diferente de foder uma mulher. — Sua voz perde
um pouco do cinismo a cada palavra, até se tornar um suspiro áspero.

Minha desconfiança desperta.

— O que quer dizer com isso?

— É irrelevante o que quero dizer. Se você quer dar o fora daqui o


mais rápido possível, então sugiro que dê um jeito no seu amiguinho. Isso tá
começando a ficar irritante pra mim. E, acredite: você não quer me ver
irritado.

Pisco longamente e expiro fundo. Deito de costas na cama. Encaro o


teto branco e alto por algum tempo. Depois, fecho os olhos. Uma tensão
peculiar se acumula em meus ombros: a de estar decepcionado comigo
mesmo.
Você é inútil, Kim, meu pai disse quando abandonei a escola pela
primeira vez para procurar um emprego e sustentar meu irmão. Como a puta
da sua mãe.

— Eu só... — murmuro de olhos fechados — também preciso de um


tempo.

Descanso as mãos sobre os músculos do abdome, sentindo-os


subirem e descerem com minha respiração. Ouço Jude dar uma quarta,
quinta tragada no cigarro. Meu corpo relaxa um pouco. Perco a ereção.

Depois disso, abro os olhos e me viro para ele. Fico preso num
pequeno detalhe em suas costelas que não tinha notado até agora.

— Você se ama tanto que tatuou a inicial do próprio nome?

Seu olhar desce em direção ao meu, então ao ‘j’ minúsculo tatuado na


lateral do torso, logo abaixo da axila — similar ao ‘h’ e ‘a’ no peito. Solta uma
lufada de ar pela boca:

— Algo assim — diz com desdém e se volta à frente. Alguns segundos


depois, volta a me encarar, desta vez com um pouco menos de desdém. —
Você tem uma cicatriz nas costas.

Sento na cama, assim como ele, mas fico de frente, afastado da


cabeceira. Cruzo os dois joelhos para cima e apoio os braços sobre eles.
Curvo a nuca para baixo, tenso. Observo a parte vazia do colchão em minha
frente. Tento não deixar essa lembrança me afetar demais.

Fique calmo, Kim. É uma pergunta qualquer. Ele não teria como saber.

— Todos nós temos — murmuro baixo, sombrio. Brinco com meus


dedos. — Todos os lutadores.

Ergo os olhos até ele. Sua expressão muda. O cinismo frio dá lugar a
um pequeno rastro de interesse. O cigarro parcialmente consumido é
abandonado no cinzeiro.

— Eles não tatuam vocês também?

— Tatuagens são apenas pra membros da gangue — explico. — Nós


somos os cães. — Desvio o olhar para o lado. Encaro o restante do quarto,
sem realmente prestar atenção em coisa alguma. — Você não compra ou
vende seus irmãos — balbucio, mais para mim mesmo do que para ele.
Jude expira fundo.

— Selvagens — comenta com indiferença.

— E você é bem melhor que eles, não é?

Volto a encará-lo.

— Não. Não sou — diz. As íris azuis fixam-se sobre mim. Observo sua
expressão mudar outra vez: a ponta da língua passeia sobre os lábios
vermelhos, as pupilas se dilatam. — Se toque pra mim.
TORTURA
talvez eu devesse gritar por ajuda
talvez eu devesse me matar
sail — awolnation

E V O U M T E M P O AT É P R O C E S S A R o que ele disse.


L
— O quê?

— Surdo outra vez? — Seus olhos deslizam do meu rosto até o


membro parcialmente oculto entre minhas pernas. — Eu quero ver... —
murmura, mas não termina.

— Quer ver eu bater uma?

— Sim — responde com um sorriso divertido. Deita-se de lado,


apoiando a cabeça com um dos braços. — Quem sabe assim você não
chega mais perto de gozar sem precisar me esfolar vivo no processo?

Sua expressão, seu sorriso e seu tom desinibido fazem minha ereção
despertar outra vez. Desvio o rosto, preocupado. Estico as pernas sobre a
cama. Encaro meu pau semiereto. Jude acompanha meu olhar. Cerro os
punhos nos lençóis. Há um calor bem específico nas palmas das minhas
mãos.

Mas não faço nada. Ainda há tensão sobre mim, ainda sinto as cordas
de Jude esmagando meus pulsos.

Com minha falta de reação, ele murmura:

— Faça. Não estou pedindo. — E ergue o olhar frio até meu rosto.
Embora a voz seja calma, há um comando violento no azul-marinho de seus
olhos.
Inspiro fundo. Encaro a parede branca em minha frente, onde a
cabeceira se apoia. Preciso imaginar algo erótico para recuperar o tesão.
Penso que a primeira coisa que aparecerá em minha mente será Olivia, mas
não é. Minha mente viaja no tempo até alguns minutos antes, quando estava
enterrado no interior de Jude, quando ele se deitou de bruços em minha
frente, seu corpo aberto e impenetrado entregue a mim, seu rosto corado
colado aos lençóis, seu pescoço curvando-se para trás de maneira incômoda
para observar meus movimentos.

Ajoelho-me no colchão. Tiro a camisinha e deixo-a de lado. Fecho a


mão na base do membro. Sentir o aperto da minha carne logo depois de
estar dentro dele é decepcionante, quase uma piada — uma coisa é
incomparável à outra. De qualquer forma, aperto os dedos ao redor e subo a
mão fechada até logo abaixo da cabeça. Começo lentamente, enrijecido,
desconfortável pelo olhar tão atento de Jude. Fecho os olhos, deixo minha
mão trabalhar por conta própria.

Intensifico o movimento. Meu coração acelera, a respiração se


aprofunda vagarosamente. É automático como andar de bicicleta, fácil como
partir o coração de alguém que você não ama mais.

Contraio o maxilar, pressionando a mandíbula. Minha mão acelera


mais. Me lembro dos gemidos baixinhos de Jude durante as primeiras
estocadas, de seu sorriso divertido quando me pediu para fazer isso. Abro os
olhos, encaro-o.

— Você gosta disso? — pergunto entre um suspiro e outro. Minha voz


está tão próxima do tom cínico dele quanto jamais chegará.

Seus olhos estão fixos no meu pau, na minha mão, talvez na forma
como minhas bolas sobem e descem, acompanhando o vai e vem. Ele
semicerra os dentes, arrastando uma fileira sobre a outra. Solta um suspiro
lânguido.

— Cale a boca.

Sua respiração também está alterada. Há algo diferente no olhar, algo


que não estava ali antes. Tesão.

Quando percebo isso, o resto da tensão em meus ombros se desfaz.


Fito Jude enquanto ele fita meu pau.

— Por que está fazendo isso comigo? — pergunto.


— Porque você—

— Não estou falando da punheta.

Nossas íris se encontram. Repreensão asfixia o tesão que esteve ali


por um breve momento, traz à superfície o Jude gélido de antes.

— Não faça perguntas demais — Jude corta. Desacelero a punheta. —


Se preocupe apenas em pagar sua dívida.

Umedeço os lábios. Olho para baixo, para o pau em minha mão. Meus
dedos se movimentam, mas não sinto muita coisa. O balde de água fria que
ele acabou de jogar em mim arruinou o pouco prazer que tirava disso.

Cerro as pálpebras. Toco meus mamilos. Isso parece funcionar — para


mim, não para Jude.

— Mais forte — diz e senta sobre os próprios joelhos, como eu. — Use
as duas mãos.

— Eu sei bater punheta.

— Pensei que tinha mandado você se calar — replica num tom mais
malicioso do que severo. — Use as duas mãos.

Fecho a mão esquerda na base do membro, a direita mais próximo da


cabeça, e faço o que ele diz. Ergo o queixo e observo seu rosto. Há um som
abafado de carne se chocando contra carne toda vez que minhas mãos
completam um movimento. Mordo o lábio inferior.

Por quê?, é a pergunta que martela em minha mente enquanto o


encaro. Por quê? Por quê? Por qu—

— Bom. Agora diminua o ritmo — diz Jude, sereno como um professor.

Faço o que ele pede.

— Aperte o polegar na cabeça.

Coloco o polegar onde ele me diz para colocar e aperto. Um pequeno


suspiro deixa meus lábios.

— Assim.

Seu interesse me deixa confuso — confuso e excitado. Quero largar


uma mão e puxar seus fios para trás, observar seu rosto de cima, mergulhar
naqueles olhos frios enquanto meu interior queima.

— Você só vai me torturar desse jeito? — balbucio.

— Tortura? — Ergue o olhar, um sorriso radiante na face. — Você tem


uma definição estranha de tortura, Kim Henney.

Penso em responder alguma coisa. Quando abro a boca, tudo o que


sai é um suspiro longo. Estou perto.

Jude percebe isso.

— Solte — diz.

Afasto as mãos do pau, deixo-as lânguidas e inertes ao lado do corpo.


Inspiro fundo. Sigo ereto e sensível. Jude se aproxima, os lençóis brancos
arrastam-se ao seu redor. Ele para a meros centímetros — talvez milímetros
— de mim, e fecha a mão direita ao redor do meu membro.

Seus olhos me analisam de baixo, o peito tão próximo do meu que


nossas peles roçam quando respiro fundo demais. Sua mão se move
devagar, tortuosamente devagar, desafiadoramente devagar.

Entreabro os lábios. Ele está próximo demais para que eu não imagine
seu gosto.

— Gosta disso? — sussurra.

Gosta disso? era o que Olivia repetia quando eu gozava depois de tê-
la enforcado. Enrijeço e me afasto alguns centímetros. Meu pau desliza em
sua mão, mas ele aperta forte, me prendendo perto de si. Seu olhar se
estreita.

Uma mecha amarela cai sobre seu rosto, obstruindo minha visão de
seus olhos. Tento tirá-la do caminho, mas ele me impede.

— Uh-uh — repreende, prendendo meu antebraço. — Sem tocar. — E


me solta.

Volta a me masturbar. O corpo nu continua próximo de mim. Em algum


momento, a excitação se intensifica até se tornar frustração e meus ombros
voltam a ficar tensos.

— Pare com isso — esbravejo quando não consigo mais segurar. —


Me deixa te foder de novo. — As palavras me deixam sem controle, sem filtro.
— Não.

É como levar um tapa gentil, mas doloroso.

Jude aproxima-se de vez: cola nossos peitos, as coxas encostam nas


minhas. Inclina meu pau pra cima, esmagando-o entre nossos abdomes,
aumentando a fricção.

Inspiro sobressaltado. Ele não me dá tempo para expirar e enrola o


braço livre no meu pescoço. Os dedos apertam os fios na minha nuca,
puxando-os. A ponta do seu nariz roça no meu.

— Você precisa me obedecer, Kim. Precisa fazer tudo o que eu disser


— cicia contra meu rosto.

Um grunhido baixo sai da minha garganta.

Ele arrasta os dedos por toda a parte de trás da minha cabeça, me


acariciando, deixando a situação um pouco mais complicada para mim.
Chego perto, mas faço um esforço para me segurar.

Isso não o deixa feliz.

Jude se afasta quando percebe a rigidez em meus ombros, seu rosto


inexpressivo. A mecha que obstrui o olhar continua ali. Ele se volta para
baixo, pesa meu pau em sua mão.

— Acho que você precisa de um pouco mais de ajuda — diz para o


espaço entre nossos corpos, não para mim.

Acompanho seu olhar. Antes que perceba suas intenções, ele envolve
minha cintura com a mão esquerda e me empurra para o lado. Caio de costas
na cama. O loiro deita de bruços em minha frente, não larga meu pau por um
segundo. Seu corpo fica preso no espaço entre minhas pernas abertas. Fita-
me com uma lascívia tímida, asfixiada — o tipo que se vê num adolescente
rebelde quando está prestes a experimentar uma droga nova.

— Nunca fiz isso — diz —, então seja paciente — antes de colocar


meu pau na boca.
RELAXE O QUEIXO
nós somos apenas animais
amor, isso é primitivo
eu te quero de quatro
e antes que eu te deixe andar, precisa me mostrar como engatinha
se realmente quer isso, não é negociável
precisa fazer exatamente o que eu disser
se quer o emprego, saiba bem quem é o chefe
get on your knees — nicki minaj, ariana grande

EPOUSO UM T R AV E S S E I R O SOB A NUCA.


Olho para baixo, para ele.
R
Estranhamente, ser chupado por um homem não me incomoda tanto quanto
pensei que incomodaria.

Jude realmente nunca fez isso antes. Seus dentes roçam sobre a
cabeça quando tenta engolir mais do que consegue. Os olhos abrem e
fecham sem um padrão, nunca encontram os meus. Ele não masturba a
base, não se concentra o suficiente na ponta, não faz ideia do que fazer com
as bolas.

A coisa mais excitante sobre isso é seu rosto corado por um tom rosa
claro, mais intenso nas bochechas e no pescoço. Consigo ver a tensão em
seus ombros, os bíceps levemente flexionados mesmo que não tenha que
fazer força alguma.

Esfrego seus ombros delicadamente, tentando fazê-lo relaxar. Ele me


fita pela primeira vez — com um franzir de cenho que diz avisei para você
não me tocar —, e não me tira da boca. Desvia o rosto para o lado antes de
abaixá-lo outra vez. Desce um pouco mais no membro. Toco sua úvula. Ele o
retira da boca logo depois, tem uma pequena crise de tosse.

Pigarreio.

— Consegue ir mais fundo?


— Não — responde baixo, talvez envergonhado.

Inclino o pescoço para o lado. Tento adivinhar cada pensamento que


passa em sua cabeça — e desisto tão rápido quanto comecei. Decido apenas
me ater ao que ele me trouxe aqui para fazer.

Faz quase uma hora desde que começamos isso. Homem, mulher, não
importa. Depois que você passa tanto tempo sem conseguir gozar, a
frustração começa a se transformar em dor física.

— Vou te ajudar — digo e me arrasto até sentar na cama.

Recosto-me na cabeceira. Ele me observa sem reação por um


segundo, mas logo segue. Toco as laterais do seu rosto, conduzo-o até o
membro.

Jude entreabre os lábios, seus olhos fogem de mim. Encosto a cabeça


do pau na sua boca e empurro-o para baixo. Ele engole metade, até se forçar
contra minhas mãos e precisar retirá-lo. Meu pau deixa sua boca junto a um
suspiro de alívio rouco, no meio-termo entre um gemido e um grunhido de
socorro. Me encara como um animal assustado.

— Relaxe o queixo — digo.

Toco sua mandíbula, abro sua boca. Encosto-a na glande. Ela desliza
para dentro lentamente. Jude consegue engolir pouco mais da metade dessa
vez, mas então está tossindo e recuando novamente.

— Precisa abrir a garganta.

Ele solta uma lufada de ar pela boca, encarando minha ereção.

— De jeito nenhum essa merda vai entrar toda na minha garganta.

— Ele já entrou em lugares mais apertados.

Ergue os olhos até os meus. Meu sorriso desinibido o contagia.

— Acho que você não é tão caladão assim.

Jude se levanta pelos cotovelos, engatinha em minha direção. Agarro-


o pelas axilas e giro nossos corpos no colchão. Paro em cima dele. Meus
braços cercam as laterais de sua cabeça, as pernas ficam enjauladas entre
as minhas, nossos paus roçam: meu líquido pré-gozo se mistura ao dele,
deixando um rastro úmido em nossos abdomes.
Ele suspira descontente.

— Quer me foder de novo?

Suas pernas se enroscam ao redor da minha cintura, puxando-me para


baixo. Seus braços envolvem minhas costas, fazendo o mesmo. Meus
cotovelos cedem. Meu peito despenca sobre o dele em um baque surdo e
quente de pele e carne. Seu coração pulsa contra o lado direito do meu tórax.

Pelo ângulo de nossos quadris, consigo sentir sua entrada.

— Acha que consegue gozar agora? — sussurra, meio uma


repreensão, meio uma provocação.

Não respondo.

Retiro a maldita mecha amarela que esteve sobre seus olhos esse
tempo todo e prendo-a atrás da orelha.

Ele franze a testa, mas não diz nada. Arrasto-me para baixo, sentando
sobre os joelhos e calcanhares. Sem desviar os olhos dos seus, desprendo
suas pernas da minha cintura e forço-as para frente, em direção ao peito.

Jude fica sem reação, o olhar desconfiado. As pernas dobram-se sobre


as coxas, o quadril inclina-se para cima, em minha direção.

— Erga os joelhos até o peito pra mim — ordeno. Entrego a ele o


controle sobre as próprias pernas.

Para minha surpresa, Jude obedece. Segura as pernas no nível da


dobra dos joelhos e as puxa em direção ao torso. Preciso me controlar para
não rir de sua expressão confusa.

Pego outra daquelas camisinhas apertadas e desconfortáveis perdida


entre os lençóis. Coloco-a em alguns segundos. Cuspo na palma da mão e a
esfrego na extensão do membro. Jude cora cada vez mais; seus lábios estão
abertos em antecipação.

Posiciono a cabeça do pau em sua abertura. Ele grunhe, mas se


controla, fica calado durante todo o tempo que levo para penetrá-lo. Quando
minha pelve encosta em sua bunda, Jude se contrai e me pressiona tanto
que não consigo me mover. Preciso esperá-lo relaxar. Ele aperta os olhos
fortemente e geme um gemido sôfrego, doloroso. Seus lábios
embranquecem:
— Desgraçado... — rosna.

— Vou me mover devagar.

Inspiro. Alterno o olhar entre o desconforto em seu rosto e o membro


deslizando lentamente para fora, então para dentro, então para fora outra vez
— no ritmo da minha respiração lenta.

Jude consegue relaxar depois de um tempo. O desconforto em seu


rosto se desfaz, dá lugar a um prazer que se intensifica quando me movo
para fora, e diminui quando entro.

Após um, dois minutos, ele consegue abrir os olhos e me encarar.


Aperta os lábios toda vez que afoga um gemido, toda vez que um suspiro
forte demais ameaça escapar.

Esse desgraçado é frio demais mesmo enquanto fode. Olivia também


é assim. Me amaldiçoo com esse pensamento. Cerro as pálpebras e entro
mais fundo e com mais força em Jude. Dessa vez, não consigo afastar a
imagem da médica do ringue da mente.

— Ah! — Soca meu abdome. — O que deu em você?

Tiro o pau até a metade e encaro seu rosto irritado por um tempo.
Flashes de quando fodi Olivia nessa mesma posição e encarei seu rosto
irritado depois de deslizar para dentro dela rápido demais me vêm à mente.
Meus dedos afundam mais no seu pescoço delicado e fino, pisco
rapidamente para não perder o controle. Aperto a traqueia e vejo-a grunhir
em busca de ar, em vão.

E então me lembro de que na verdade estou com Jude. E minhas


mãos estão longe do pescoço de Jude. E Jude soca meu estômago para me
trazer de volta à realidade. E finalmente percebo o motivo pelo qual não
consegui gozar até agora.

O golpe na barriga me faz grunhir. Curvo-me para trás. Jude afasta os


joelhos do peito.

— Me responda!

Tusso uma vez, o desconforto do soco vai embora. Descanso uma


mão sobre o local, esfregando a pele. Observo o abdome úmido de Jude,
então subo até seu peito, clavículas, pescoço.
— Posso te enforcar? — Não consigo manter a pergunta dentro de
mim. Quando percebo, a merda está feita.

Desvio o olhar para o piso do quarto, um pouco envergonhado, um


pouco ansioso.

Jude estreita os olhos e os deposita sobre mim como os canos de


duas semiautomáticas. Não fala nada por algum tempo. Apenas fica ali,
deitado, apoiado nos cotovelos, me fitando.

O sangue galopa nas minhas veias. Um calor estranho se espalha pelo


meu peito, pescoço e rosto. Estou corando.

Depois do que parece uma eternidade, Jude responde:

— Então é disso que você gosta? — O tom é desconfiado e sóbrio.


Não há cinismo até a frase seguinte: — Você é mais pervertido do que
pensei.

Esfrego minha barba por fazer. Se ao menos eu pudesse voltar no


tempo e—

— Vai gozar se fizer isso? — interrompe meu pensamento.

Viro em sua direção instintivamente. Ele não parece tão tenso quanto
antes. Há algo convidativo em suas pernas ainda abertas para mim.

Engulo em seco:

— Sim.

Ele senta na cama e enrola os braços no meu pescoço, me usa de


apoio para se puxar para cima e sentar sobre minhas coxas. As pernas
enrolam-se em mim outra vez, seguro suas nádegas para dar apoio. Meu pau
encosta em sua entrada, entra alguns centímetros enquanto ele desliza para
baixo em busca de uma posição confortável. Ainda há desconforto no rosto
dele ao ser penetrado, mas em menor intensidade. Ou ele se acostumou, ou
está escondendo a dor de mim.

Aproxima-se do meu ouvido, sussurra:

— Se lembre do que eu disse antes. Sobre o prédio.

Beija o lóbulo da minha orelha, a parte do pescoço logo abaixo da


mandíbula, a mandíbula, minha bochecha. Quando sinto que vai se afastar, a
curiosidade toma o melhor de mim; esqueço todos os ensinamentos do meu
pai sobre homens, mulheres, sexo, o que é certou ou errado. Viro o rosto em
sua direção, voluntariamente. Nossas bocas se encontram. Ele se
sobressalta. Levo uma das mãos até sua coluna, mantendo-o pressionado
contra mim. Jude geme ao se ver preso. O gemido entreabre sua boca. Esse
leve entreabrir é passagem suficiente para minha língua, que desliza para
dentro. A merda já está feita, então é melhor ir até o fundo. Quando minha
língua toca a sua... ele relaxa em meus braços.

Seu gosto é exatamente como imaginei: frio e mentolado, levemente


amargo, fortemente etílico. Um calafrio atravessa minha espinha quando sinto
esse gosto pela primeira vez. É familiar e distante ao mesmo tempo, diferente
de tudo que já provei. Sua língua se enrola e brinca com a minha. Não posso
adivinhar o que está pensando, mas seu corpo se move sob minhas mãos, se
move contra meu pau.

O gosto de Jude é como álcool, como nicotina: estranho no começo,


delicioso no final. Me faz questionar como passei a vida toda sem prová-lo.

Não tenho mais dúvidas: também gosto de homens, ou gosto de Jude.


As duas opções me assustam.

Quando nos separamos, ele joga o peso para trás. Seu aperto no meu
pescoço e na cintura me fazem acompanhá-lo. Deitamos na cama
novamente. Roça o nariz contra o meu.

— Faça — seu sussurro é firme.

Afasto-me alguns centímetros, o suficiente para encará-lo, para me


certificar de que está seguro. Arrependo-me imediatamente. Como se ele
fosse o tipo de homem que demonstra estar inseguro.

Concordo com a cabeça. Fecho as mãos ao redor de seu pescoço.


Enterro o pau nele com muito menos sutileza. A agressividade que guardo
para momentos como este — que até então só compartilhei com Olivia —
sobe à superfície como uma segunda pele. Aumento a pressão. As veias dos
meus braços incham. Meus quadris se movem mais rápido, mais violentos
contra Jude. Ele me aperta e se contrai, mas não me pede para parar.

Mordo o lábio inferior até o limite de rompê-lo. Sigo fodendo-o de


maneira rápida, agressiva e inescrupulosa, como um maldito animal no cio.
Meus dedos em sua garganta estão frouxos o suficiente para permitir que
respire, mas sei que estou machucando-o. Meu corpo se curva à frente,
minha pelve e minhas bolas ficam sensíveis.

Quando sinto a pressão familiar abaixo do umbigo, o orgasmo


finalmente chegando, aperto completamente a garganta de Jude. Que se
foda o espaço para respirar. Ele agarra meus pulsos.

— K-Kim... — balbucia sem voz.

Gozo com um grunhido gutural.


SELVAGENS
eu sei que esse garoto vai me rasgar
porque ele não é um dos bonzinhos
ele não vai me fazer bem
vai deixar um corte profundo
paper love — allie x

com as costas curvadas à frente, os cotovelos


E N T O N A P O N TA D A C A M A
S
apoiados no joelho, os olhos focados na porta semiaberta do banheiro. Jude
está lá dentro analisando as marcas que deixei em seu pescoço.

Seu estúpido. Seu filho da puta estúpido e miserável. E se o tivesse


matado, o que aconteceria com Noah?

Esfrego o rosto, gemendo contra as palmas. Tento suprimir parte


dessa frustração. Levanto. Caminho até a varanda. Afasto as cortinas
escuras: as portas de vidro me dão uma visão noturna privilegiada de Nova
York. Devemos estar ao menos no 50º andar do prédio. Posso ver o Empire
State Building a um, dois quilômetros daqui.

Abro as portas da varanda. A brisa fresca de maio me envolve. O


vento parece particularmente forte esta noite. Escondo as mãos nos bolsos
da jogger preta que Jude atirou em mim quando a transa acabou — junto
dela veio uma camiseta e tênis brancos. Encosto-me na parede e observo a
porção da cidade além do Empire State.

Como meu irmão está neste momento?

Não há um relógio na parede, e Jude não devolveu meu celular. Não


faço ideia de que horas são.

Você dormiu por três dias, ele comentou casualmente mais cedo. Esse
é meu único marcador da passagem de tempo. Meu coração dói quando
imagino Noah sozinho, há três dias sem notícias minhas.
— Parece que fui atacado por um grupo de selvagens. — A voz ríspida
soa atrás de mim. — Você não podia ter sido mais cuidadoso?

Me volto em sua direção. O peito de Jude está parcialmente coberto


por um roupão de banho. Ele toca as manchas escuras no pescoço.

Expiro fundo e esfrego a nuca.

— Desculpa. Eu perdi o controle.

— Não fode — rebate raivoso.

— As marcas vão desaparecer logo. Se você encobri-las bem...


ninguém vai notar.

Vincos profundos se formam na testa de Jude enquanto ele internaliza


o que falei. Um silêncio abrupto e desconfortável ergue-se entre nós como um
muro — o único som presente é o das cortinas balançando contra a brisa.

Jude me dá as costas e caminha em direção ao closet — o cômodo


escondido pela porta espelhada que notei enquanto estava amarrado. Ele
desliza a porta para o lado e entra.

Volto a me concentrar na paisagem noturna de Nova York. Meus lábios


secam com o vento, estou desidratado. Fiquei sem água por todos esses
dias?

Ouço algumas gavetas serem abertas, cabides remexidos dentro do


closet. Ele provavelmente vai ficar ali por algum tempo. Me aproximo da
abertura da escada do quarto e desço rapidamente até o primeiro andar.

Olho ao redor. O apartamento tem poucas portas e paredes, parece


um cômodo contínuo com um ambiente privado aqui e outro ali. A escada que
conecta o primeiro andar ao segundo dá acesso direto à sala de estar. A
cozinha está mais à frente. A porta de saída, à direita da cozinha. Há uma
porta menor, adjacente à principal; outra à minha direita, encerrando a sala
de estar; mais uma no fim do corredor aberto entre a cozinha e a sala de
estar. O teto parece ainda mais distante daqui.

Caminho até a pia da cozinha, pego o primeiro copo de vidro que vejo
pela frente. Abro a torneira. Encho o copo até a metade. Levo-o à boca.

— Com quantas mulheres você já fez isso?


Me sobressalto. O copo cai da minha mão, bate na superfície metálica
da pia, então se estilhaça no piso de madeira. Me viro para trás.

Jude está ali, com uma camisa social branca, um blazer azul e uma
calça de alfaiataria. Não demonstra reação alguma ao copo quebrado no
chão. Apenas permanece me fitando, apático.

Observo os cacos de vidro aos meus pés.

— Uma. — Mordo a língua e o encaro. — Apenas uma.


IMPLORE
você quer que eu acaricie seu ego?
implore por isso
morra por isso
eu tenho esse toque que pode te enganar
stroke — BANKS

— OQ U E É I S S O ?— Encaro os papéis que Jude jogou sobre a mesa de


centro na sala de estar. Sentado no sofá, me inclino ligeiramente sobre
eles. Tenho um pressentimento ruim sobre isso.

Jude caminha de volta à cozinha depois de me atirar as folhas, finge


não me ouvir. Acompanho-o com o olhar. Ele se agacha para recolher os
estilhaços do copo, colocando-os sobre a palma desprotegida, a um descuido
de provocar um corte profundo.

— O contrato da sua dívida — responde quando termina com os


cacos. Atira-os de qualquer jeito na lixeira mais próxima. — Já assinei, agora
só falta você. Faça uma rubrica ao lado da minha em cada página e assine
seu nome inteiro na última. — Seu tom é distante. — Sei que você é um
imbecil, então leia com cuidado, inclusive as entrelinhas. Não quero ter que
ficar explicando sua situação várias vezes depois.

Quando paira sobre mim, seu olhar é vago e inexpressivo. Não há nele
sequer um resquício do homem que acabou de gemer na minha pica.

Apanho os papéis: são quatro folhas, preenchidas até as margens por


cláusulas e entrelinhas. A letra é diminuta: parece propositalmente feita para
dificultar a leitura. Analiso suas rubricas e a assinatura no final. Ergo uma
sobrancelha na direção do loiro. Que tipo de jogo está fazendo agora?

Ele lava as mãos na pia e me fita enquanto se seca.

— Além de dois mil dólares a cada foda, você vai trabalhar como meu
chofer pessoal. Uma porcentagem de seu salário será debitada todo mês do
valor total da dívida.

— O que quer dizer? Vou trabalhar de graça?

— Não. A porcentagem é pequena, apenas 5%. Leia a porra do


contrato e você vai entender.

Estufa o peito. O botão mais alto da camisa está aberto. Consigo ver a
leve depressão entre suas clavículas pelo espaço. Merda. Como posso me
atrair tanto por um decote masculino?

— Chofer pessoal? — questiono.

Jude caminha de volta à sala e senta no sofá em minha frente. Se


recosta, relaxado. Estica um dos braços sobre o estofado e cruza as pernas.

— Sabe dirigir, não sabe?

— Claro que sim.

— E tem uma habilitação limpa?

— Tenho.

— Ótimo.

Desvia o olhar para outro canto qualquer da sala, como se eu o


estivesse incomodando. Contraio os lábios, começo a ler o contrato. A
primeira página já me tira do sério.

— Código de ética? Código de comportamento? — resmungo. Há uma


série de itens que me dizem o que fazer, como fazer, o que dizer, quando
dizer, o que vestir, quando vestir. Ergo os olhos até o homem relaxado à
minha frente. — Que porra é essa?

— Pequenas concessões que todos que trabalham para a Goldman


precisam fazer — explica de maneira lenta e monótona, quase mecânica.

— Nunca concordei com isso.

— Sim, concordou. — Aponta o contrato com o queixo. — Está escrito


bem aí.

Sua prepotência deixa a humilhação ainda pior. Atiro na mesa o


contrato, que se arrasta sobre a superfície de vidro até cair do outro lado, aos
pés de Jude.
— Não assinei essa merda — replico.

— Oh. — Ele se curva e apanha o contrato. — Mas vai.

Os papéis voam de volta contra o meu rosto. O som de papel se


chocando em alta velocidade com carne eclode na sala. Apanho as folhas por
reflexo, encaro-o completamente abismado. Uma força divina mantém minha
bunda presa neste sofá e me impede de saltar no seu colarinho para enforcá-
lo outra vez.

— E se eu queimar essa porra? — digo.

— Vou ter que fazer outra cópia. Embora eu realmente fosse gostar
que você não fizesse isso.

Jude estica os dois braços sobre o estofado ao se recostar desta vez.


Sorri, arrogante. As pernas ficam abertas, me dando uma visão privilegiada
da protuberância entre elas.

Amasso as folhas de papel e as jogo sobre o sofá. Meus punhos


cerrados estão a um, talvez dois segundos de quebrar sua cara.

— Escuta, não vai ser o fim do mundo. — Inclina-se em minha direção,


a arrogância desaparece de seu rosto. — Trabalhar pra mim vai ser bem
melhor do que ter sua cara arrebentada no ringue dos Snakes toda noite.

Encaro seu semblante despreocupado. Ele sequer se importa que eu


possa quebrar cada maldito osso no seu rosto? Movo a mandíbula de um
lado para o outro. Após alguns segundos, consigo controlar minha ira.
Recosto-me no sofá e deixo um longo suspiro escapar dos meus lábios.

Esse suspiro leva embora parte da tensão que me manteve defensivo


esse tempo todo. Ele tem razão afinal de contas. Dirigir um carro de dia e
comer um riquinho de noite é melhor do que aquele inferno nos ringues.

Mas morrerei antes de confessar isso para ele. Então o que digo é:

— Tenho minhas dúvidas.

E o que ele responde é:

— Enfie elas no cu — enquanto volta a cruzar as pernas e se encostar


no sofá.
— Espera mesmo que eu simplesmente cale a boca como uma cadela
e obedeça suas ordens?

— Espero que tente o seu melhor — rebate ríspido. — Pode florear


isso da forma que quiser, mas você é meu agora. Trabalha pra mim. Me
serve. Quanto menos resistir e questionar, mais fácil será pra nós dois.

Estreito os olhos na direção dos fios loiros cuidadosamente arrumados,


os fios que pingavam suor alguns minutos atrás.

Nego com a cabeça.

— Não acredito em você. Não acredito que me trouxe aqui pra te


servir, pra te foder. Pelo menos, não só pra isso. — Semicerro os dentes. —
Quer me usar pra algo mais.

Jude me encara com cuidado.

— Então você tem um cérebro afinal de contas. Quem diria? Achou


mesmo que te comprei só pelo seu pau hétero defeituoso?

— O pau que acabou de te fazer gozar?

— Não fique petulante.

Jude levanta do sofá. Sigo-o com o olhar. Ele caminha em direção à


cozinha. Ou melhor, em direção à porta principal do apartamento, ao lado da
cozinha. Provavelmente, é minha deixa. Provavelmente, vou sair daqui com
mais perguntas do que respostas. O que acontecerá quando eu voltar para a
minha casa? O que acontecerá se ele achar que pretendo fugir?

Sei que você tem um irmão mais novo, Kim Henney. Acha que ele
conseguirá pagar sua dívida no seu lugar?

A ansiedade queima no meu peito.

— Prometa que isso vai ficar apenas entre nós dois. — Cruzo os
dedos. Minhas pernas balançam freneticamente.

Jude para e ergue a nuca. Mesmo de costas, consigo visualizar o


questionamento em sua expressão, a ponta da língua umedecendo os lábios
silenciosos. Quando se vira, há um traço de vulnerabilidade em seu rosto.
Sutil. Muito sutil.

Tão sutil que desaparece quando sua boca se abre.


— O que quer dizer com isso?

— Meu irmão — elaboro. — Prometa que não vai envolvê-lo em seja lá


que merda você esteja planejando.

Suas sobrancelhas se aproximam.

— Por que eu me importaria com a sua família?

Levanto do sofá e caminho até ele. A cada passo, meus ombros ficam
mais tensos. A ansiedade me deixa mais agressivo. Jude dá um passo para
trás, me fita profundamente. Paro a alguns centímetros dele. Não digo nada,
deixo que minha postura fale por mim.

A dúvida permanece em seu rosto, mas Jude cede:

— Eu prometo.

E seu tom é honesto o suficiente para me acalmar. Ou talvez ele esteja


apenas me mantendo sob suas rédeas.

— Preciso voltar pra casa — balbucio para o espaço vazio entre


nossos corpos.

Passo por ele e caminho em direção à porta. Jude fica para trás, leva
alguns segundos até se aproximar novamente.

Encaro a porta. E se eu abri-la e tudo tiver sido apenas um sonho? E


se eu ainda estiver ensanguentado e quebrado no ringue? E se isso for o
inferno?

— Vire-se — diz.

Me viro. Jude está logo atrás de mim, joga os papéis desamassados


sobre meu peito.

— Esteja no endereço sublinhado às 8h da manhã, com o contrato


assinado. Sem atrasos.

Assinto, então retorno à porta. Levo uma mão ao puxador, mas ele me
para no meio do caminho.

— Espere.

Retira um molho de chaves do bolso e o atira sobre mim como fez com
o contrato.
— São as chaves do carro.

Apanho o molho em pleno ar. Há duas chaves idênticas e um controle


de alarme presos nas argolas. Jude toma a frente, afasta minha mão do
puxador e abre a porta do apartamento por conta própria. Um corredor
iluminado e repleto de seguranças estende-se do outro lado.

— Pegue-o no estacionamento — ele completa —, e cuide bem da


lataria. Só ela custou mais do que sua casa com o viadinho do seu irmão
dentro.

Encaro as chaves, e um turbilhão de pensamentos me atinge. Um


turbilhão de possibilidades, também. Algumas delas perigosas.

No final, guardo o molho no bolso e encaro o loiro. Ele está diferente


agora, de alguma forma. Manhoso e arisco ao mesmo tempo: os ombros
estão relaxados, embora a jugular continue pulsante. Um exterior calmo e um
interior perturbado. Sinto a vontade autodestrutiva de envolver seus ombros e
abraçá-lo. Me amaldiçoo logo em seguida.

Fito o corredor — os homens parados em sua extensão fingem não


nos ver — e o elevador ao final. Como foi para Jude me carregar do ringue
até aqui?

É claro que ele não te carregou, estúpido. Os seguranças fizeram isso.


Reviro os olhos. Ainda assim... será que ele dormiu ao meu lado na cama?

— Você me manteve preso na cama por dias, mas confia que não
pegarei seu carro e tentarei fugir assim que deixar esse prédio?

— Algo assim — responde desinteressado.

Quando volto o olhar para o seu rosto, noto, pela primeira vez, marcas
de cansaço na testa e sob os olhos.

— Por quê? — pergunto.

Jude não me encara de volta. Seu olhar paira no chão à frente, no


espaço vazio entre uma fileira de seguranças e a outra. Recosta-se sobre a
porta aberta e murmura:

— Porque você disse que não faria nada estúpido. — Finalmente me


encara. — E tenho a leve impressão de que é um homem de palavra.
Não é a resposta que eu esperava. Entreabro os lábios, inúmeros
questionamentos passam mudos por eles. Jude parece ouvir todos e me
perfura com o olhar cansado.

— Posso estar te enganando — balbucio.

Ele sequer pisca.

— Se estiver, meus homens te encontrarão assim que amanhecer e te


cortarão em pedaços.

Me inclino em sua direção, prendo-o vagarosamente contra a porta.

— Eu os cortaria primeiro.

Ele engole em seco. Tenta fugir do meu olhar.

— Você é muito egocêntrico.

Me aproximo mais, colo nossos peitos. Pego seu queixo e o obrigo a


me encarar.

— Você me subestima — digo lânguido, quase chateado.

Jude não resiste ao meu toque — mesmo que possa, mesmo que seus
seguranças possam estourar minha cabeça com um comando só. Na
verdade, ele o aceita: curva a nuca para cima, expira fundo, passa a ponta da
língua sobre os lábios.

— Então você não abomina mais a ideia de estar tão próximo de outro
homem? — Pressiona as pernas contra as minhas, o pau contra o meu.

— Tenho escolha? — Esfrego a ponta do polegar sobre seus lábios


úmidos, abrindo sua boca, tateando seus dentes. — É difícil comer alguém
sem estar... — sussurro — bem próximo dele — mais baixo —, ou dela.

Não sei a coisa certa — ou inteligente — a se fazer. Minha cabeça e


meu coração estão em dissonância. Ele agarra meu pulso, então murmura
ferozmente:

— Quer um beijo de despedida?

É quando percebo que meu toque em seu queixo se tornou forte


demais, agressivo demais. Solto-o e dou um passo para trás. Ele não resistiu
ou recuou, mas é melhor não testar minha sorte.
Observo-o. A iluminação do corredor deixa as marcas escuras no seu
pescoço azuladas, e o azul de seus olhos mais escuro.

Quando ele diz:

— Então implore —, minhas entranhas se contraem em resposta.

Há algo sexy e perigoso nisso, nessa frase, na sua voz, no seu rosto.
Algo magnético. Tenho que desviar o olhar para o corredor e esfregar o rosto
para não me perder completamente.

— Vá à merda — rebato. Caminho em direção ao elevador.

— Boa noite pra você também, Kim Henney — a voz soa atrás de mim,
logo antes do fechar da porta.

De relance, fito um dos seguranças. Minha atenção cai instintivamente


na pistola escura presa no coldre de seu cinto.

Se você me matar e tentar atravessar aquela porta, não conseguirá dar


dois passos antes de ser fuzilado pelos meus seguranças.
NOAH
você tinha essa imagem perfeita de mim
e eu destruí seus sonhos
eu sei a verdade e ela me mata
[...]
sou o culpado, não se aproxime de mim
a única coisa na qual sou bom
é em machucar outras pessoas
guilty — paloma faith

as paradas nos faróis vermelhos na volta


E I O O C O N T R AT O I N T E I R O E N T R E
L
para casa. Bufo a cada parágrafo. Depois da última linha, o amasso outra
vez e jogo o papel no banco ao lado.

O contrato dos Snakes era menos formal do que esse, bem mais
simples também:

Seja um de nossos cães de briga e seu corpo não vai parar em


pedaços numa vala qualquer, seu irmão não vai acabar em um esquema de
tráfico sexual de menores. De praxe, se vencer 365 lutas seguidas, pode até
ganhar sua liberdade.

Pelo canto dos olhos, vejo o papel amassado. Tenho mais de um ano
para cumprir as condições de Jude, muita coisa pode acontecer nesse meio-
tempo. E se ele se cansar de mim? E se resolver me atirar de volta no
ringue? Estou navegando por um território desconhecido — tanto profissional
quanto pessoal.

Esta noite, perdi todos os resquícios de dignidade que um dia tive.

E se alguém descobrir que estou transando com um homem?

Mas, de qualquer forma, quem se importaria? Noah? Algo me diz que


ele ficaria feliz em ter um irmão que também gosta de pau. Meu pai? Virou
comida de vermes a sete palmos. Não preciso temer o julgamento de
ninguém, a não ser de uma pessoa: eu mesmo. Eu sei que a situação com
Jude é degradante, vergonhosa, imoral. Estou sendo apenas um tipo
diferente de cão, de puta. Quantas vezes serei violentado, passado de mão
em mão até conseguir me libertar?

Me odeio por ser tão fraco, tão insuficiente, tão desprezível. Por que
Deus me castigou tanto? Por que minha miséria parece nunca ter fim? Mas
não importa. Posso me odiar o quanto quiser, questionar Deus o quanto
quiser. Preciso engolir tudo, manter a cabeça erguida. Preciso enxergar a luz
no fim do túnel; não por mim, mas por meu irmão.

Angústia se acumula no meu peito, piora quando cruzo a esquina da


rua de casa. Mesmo de longe, percebo que as luzes da varanda estão
acesas. Noah sempre as deixava ligadas quando nosso pai sumia — para
ajudá-lo a achar o caminho de volta.

Aperto o volante. Estou me tornando ele?

O carro passa por um buraco no asfalto. É claro que não. Ele teve uma
escolha. Eu, não.

Manobro o veículo lentamente até a casa, guiado pelas luzes. Desligo


as engrenagens. Fico sentado no escuro, em silêncio, observando a rua. Pelo
rádio do carro, vejo que são 3h da manhã. O sol nascerá daqui a três horas.
Em cinco, terei que colocar um terno e encontrar Jude no prédio da Goldman,
o mesmo local em que meu irmão trabalha. Como caralhos vou explicar isso
a Noah? Em alguns minutos, terei que fazê-lo — ou, ao menos, tentar.

Não me sinto preparado para nenhuma dessas merdas. Mas não é


como se tivesse escolha.

Retiro a chave da ignição, guardo-a no bolso. Abro a porta, saio do


carro. Tranco-o. Caminho em direção à varanda. O contrato amassado fica no
banco do passageiro.

— AH!

Dou de cara com Noah na sala de estar. O grito grosso e ensurdecedor


é inconfundível, embora seu corpo não esteja visível na escuridão da casa.
Provavelmente fui barulhento demais trancando o carro e o acordei.

Passos se aproximam do interruptor da luz da sala, que se acende.

— Kim! — grita mais uma vez.

Solto uma lufada de ar pela boca. Um alívio lancinante me preenche


ao ver a cara de assombro do meu irmãozinho. Sorrio, esquecendo meu
cansaço por um segundo.

Abro os braços e ele praticamente pula neles. Dou um passo para trás
para me equilibrar. Envolvo suas costas, aperto-o. Noah descansa o rosto no
vão do meu peitoral. Está vestido apenas por uma calça de moletom, o torso
desnudo, o cabelo bagunçado e o rosto abatido de alguém que acabou de ser
acordado.

— Meu Deus, Kim! — exclama contra meu peito. Seus braços estão
firmes ao redor da minha lombar.

Uma risadinha abafada escapa dos meus lábios.

— Tá tudo bem, príncipe. — Acaricio os fios lisos do topo de sua


cabeça. — Tá tudo bem. — E beijo o local.

Ele desenrola os braços de mim e me empurra para trás, até que me


segura pela camisa. Seu olhar passa de aliviado a irritado em um segundo.

— Tudo bem? — Contorce o rosto. — Não está nada bem! Sabe o


quão fodidamente preocupado fiquei com você? — Dá um soco leve nos
meus ombros. A expressão de protesto se acentua. — Estive preocupado pra
caralho.

Encaro seus olhos escuros, arredondados e proeminentes, olhos que


lembram a curva de uma lágrima, a única herança boa que nosso pai nos
deixou.

— Desculpa. Eu queria ter mandado notícias antes, mas... — dormiu


por três dias — não pude. — Expiro fundo. — Achou que eu tinha morrido,
seu idiota?

— Sim.

— Achou mesmo que eu tinha te deixado sozinho?

— Sim.
Ele dá um passo para trás e outro soco no meu ombro. Cruza os
braços. Desvia o olhar para as janelas na parede atrás de mim, faz um
biquinho. Após alguns segundos, ergue as sobrancelhas, como se tivesse se
lembrado de algo.

— Sim, por algumas horas — corrige —, até os seguranças daquele


cara me avisarem que você tava bem, que tava se recuperando da última
luta.

— O quê? Ele te avisou?

Noah dá as costas e caminha até o balcão que separa a sala de estar


da cozinha. À esquerda, está o pequeno corredor que conecta a entrada da
casa aos quartos e à área dos fundos.

Sigo-o até o balcão. Noah senta em uma das banquetas. Faço o


mesmo. Apoio os antebraços na superfície de pedra fria, me inclino para ouvir
sua voz com cuidado.

— Sim — diz com uma serenidade que me assusta. — Ele não veio
aqui pessoalmente, mas mandou entregar seu celular, sua carteira e as
outras coisas que estavam com você no ringue. Coloquei tudo no seu quarto.
— Aponta o corredor com o queixo quadrado.

Navego pelas atitudes frias e cínicas de Jude. Se é tão indiferente a


mim quanto quer provar, por que fez isso?

— E me deu um cartão de crédito pra usar enquanto você não estava


aqui. Não tinha nome ou identificação alguma, mas foi útil — Noah completa.

— Ele te deu dinheiro? — questiono um pouco mais alto.

Por que eu me importaria com a sua família?

Noah descruza os braços e os estende sobre o balcão, aproximando-


se. Faz uma careta de pena ao dizer:

— Isso é meio que o mínimo que ele podia fazer depois de te


sequestrar, Kim. Pelo menos não precisamos nos preocupar com dinheiro
pelo resto do mês. Aproveitei e adiantei alguns aluguéis. Você pode
descansar por um tempo, caso precise. — Aperta minhas mãos entre as
suas.
Abro a boca, mas não respondo de imediato. Não tenho vontade
alguma de explicar a Noah sobre o contrato com Jude, de dizer ao meu irmão
mais novo que estou comendo seu chefe por dinheiro — e que sinto algum
prazer nisso. Mesmo que ele mereça saber, mesmo que seja inteligente o
suficiente para juntar as peças por conta própria eventualmente. Minhas
pálpebras pesam. O cansaço está cobrando seu preço. Retraio a mão.

— Ele não me sequestrou. É um pouco mais complicado do que isso.


— Fito meus pulsos, lembro-me das cordas que me amarraram por três dias.
— Explico tudo pela manhã. Tô exausto, preciso fechar os olhos pelo menos
uma vez antes do sol nascer.

Noah concorda em silêncio.

Levanto da banqueta. Caminho até o corredor. Encaro a porta aberta


do quarto dele logo à frente.

— Conseguiu passar bem esses dias sozinho?

Encaro meu irmão. Ele concorda silenciosamente uma segunda vez e


esfrega os ombros. Toma a frente, como Jude fez no apartamento, e entra em
seu quarto. Ao passar por mim, me abraça com força, envolve meu pescoço
com os braços e fica na ponta dos pés para encaixar o rosto no vão entre
minha garganta e os ombros. Toco suas costas e a parte de trás de sua
cabeça, fazendo um cafuné nos fios espetados e rebeldes. É um abraço de
saudade, carregado de sentimentos e medos. Noah pode mentir o quanto
quiser, mas sei que os últimos dias foram duros para ele.

— Bom, você sabe que eu te amo, que nunca te abandonaria —


murmuro baixinho e nos afastamos.

Acena com a cabeça, sem dizer mais nada.

Caminho na direção do meu quarto encarando o chão, encarando os


tênis, que não são realmente meus, nos meus pés.

— Kim... — Noah chama. Paro e fito-o sobre os ombros. Ele abraça a


si mesmo, apertando os ombros. — Você venceu a luta? Está livre?

Mordisco o lábio inferior.

— Não. Eu perdi. — Então me apresso a completar: — Mas não


vamos mais precisar nos preocupar com os Snakes.
Ele faz o biquinho característico e olha para baixo, assentindo. Sei que
não é o suficiente depois de uma ausência tão grande, mas essa resposta
meio merda vai ter que controlar sua ansiedade por esta noite.

Toco a maçaneta do meu quarto.

— Kim? — ele insiste.

— Noah, por favor... — digo mais ríspido do que gostaria.

— Outra pessoa veio aqui enquanto você tava com o seu empregador.

Encaro suas íris escuras sob a penumbra do corredor.

— Quem? — pergunto.

Ele engole em seco.

— Olivia.
FÁCIL
não me deixe triste, não me faça chorar
às vezes amor não é suficiente
quando a estrada fica muito difícil
[...]
escolha suas últimas palavras com cuidado
essa é a última chance que terá
born to die — lana del rey

EITO NA CAMA E FECHO os olhos.


D
Abro-os um segundo depois.

Já é manhã.

Merda.

Não sinto uma fração de descanso sequer, meus músculos continuam


duros e tensos, mas saio da cama sem hesitar. Checo o horário no celular.
7h10. Preciso me apressar.

Tomo um banho rápido.

Encaro as manchas escuras e profundas sob meus olhos. Inspiro


fundo.

Abro o guarda-roupas e pego o único terno que tenho. O terno do meu


pai — o que usei no seu funeral. Emprestar um de Noah está fora de
cogitação — meu corpo é muito maior que o dele.

Tento não ser tão melancólico. Visto a roupa, faço o possível para não
parecer que acabei de ser atropelado por um caminhão (embora seja
exatamente assim que me sinto por dentro).

Além do terno, me lembro de outra coisa que será útil hoje. Apanho
uma pequena caixa preta no topo do guarda-roupas. Abro-a. O peso e a
frieza do metal são desconfortáveis, mas é melhor estar prevenido — não sou
otário o suficiente para acreditar na palavra de Jude de que os Snakes vão
me deixar em paz. Prendo o objeto na parte de trás da calça, encubro-o.
Guardo a caixa.

Pego as chaves do carro de Jude. Deixo o quarto.

Do corredor, escuto o zumbido matinal da cafeteira, algumas xícaras


sendo movidas, passos suaves e cuidadosos. A pontualidade de Noah é
obscena — o café que consegue preparar naquela máquina, também. Às
08h, precisa estar no trabalho. Às 14h, na faculdade.

Caminho até o limite entre o corredor e a cozinha sem fazer barulho.


Me apoio na parede, cruzo os braços e observo-o arrumar a mesa redonda,
distraído.

Noah é a primeira pessoa da nossa família a entrar na faculdade, o


único orgulho que tenho em minha vida. Por ele, me sacrificarei quantas
vezes forem necessárias. Ao menos um de nós tem um futuro garantido.
Nunca sonhei em passar do Ensino Médio — não sou de sonhar com coisas
que não posso alcançar.

Abro um sorriso bobo, muito bobo, nos lábios enquanto o observo.

Após alguns minutos, e com o café da manhã praticamente pronto, ele


nota minha presença.

— Droga... — resmunga, sobressaltado. — Por que está aí na


encolha? Vem comer.

— Estava com saudade de te ver, só isso.

Descruzo os braços e me sento à mesa, de costas para a sala.

— E sua maneira de matar a saudade é ficar caladinho num canto, me


observando?

— Sabe que sou estranho.

Noah ri e deixa a jarra de vidro com café em minha frente. Em seguida,


me estende um prato com torradas, ovos mexidos e bacon. Meu estômago
ronca, alto e doloroso, diante do banquete. A sensação que tenho é de não
comer há muito tempo. Jude me deixou passar fome por todos esses dias
também?
— Estranho é eufemismo — Noah diz.

Se junta a mim na mesa. Enquanto me atenho à comida, ele enche


duas xícaras brancas com o café que preparou. Sobre a mesa, arrasta uma
delas em minha direção.

— Eufemismo? — repito enquanto mastigo.

Ele dá um gole na bebida quente e se inclina para trás na cadeira,


equilibrando-a apenas sobre duas das quatro pernas.

— É... — balbucia, tentando encontrar as palavras certas para explicar:


— É quando você não diz exatamente o que quer dizer, mas suaviza isso.

— Está dizendo — falo de boca cheia — que sou pior do que


estranho?

Roubo mais algumas de suas risadas, que ecoam por nossa casa. Me
contagio, rio junto.

— Você é nojento, Kim Henney.

— Agora está exagerando. — Percebo algo em seu pulso que não


notei antes. Minhas risadas cessam. — O que é isso no seu pulso?

Ele acompanha meu olhar em direção ao relógio dourado, e


permanece calado por algum tempo. Toma mais um gole de seu café e volta
a me encarar:

— Como eu disse, coloquei o cartão de crédito do cara pra uso.

Largo o garfo e a faca no prato quase limpo e fecho o rosto lentamente


à medida que essa merda vai se encaixando na minha cabeça.

— Você me disse que tinha pago os aluguéis, Noah.

— Bem, comprei o relógio também. Pode ser útil no futuro.

— Como caralhos essa merda vai ser útil no futuro? Quanto custou?

— Não acho que o cara vai sentir falta disso, Kim. Aliás, você sabe
disso melhor do que eu. Passou muito tempo com ele afinal. — Balança a
xícara em pleno ar, observando o líquido no interior, evitando meu olhar.

Há algo estranho no meu irmão, um desconforto na voz, um cinismo ao


me rebater deste jeito. Pela primeira vez desde que éramos moleques, perco
a paciência com ele. Cerro os punhos sobre a mesa.

— Isso não é uma brincadeira, Noah. Comprou mais alguma coisa


nesse cartão de crédito?

— Só o relógio.

— Devolva.

— O quê?

— Devolva a merda do relógio hoje e nunca mais faça uma idiotice


como essa, me entendeu?

— Por que é idiotice? O cara literalmente deu esse cartão pra gente—

— Faça o que estou mandando, caralho — grito e soco a mesa. —


Quer que nossa família seja destruída por dívidas outra vez? Os últimos doze
meses não te ensinaram nada, porra?

Minha xícara de café tomba, e o conteúdo se espalha, manchando a


toalha branca que Noah preparou para o momento. Consigo impedir que role
para fora da mesa e se espatife no chão, mas, de resto, é um desastre.

— Merda — xingo e me afasto para trás, impedindo que o café


derramado alcance o único terno que tenho.

Meu irmão arregala os olhos e, se não fosse pelo balcão da pia em


que apoia sua cadeira equilibrada sobre as duas pernas, o golpe o teria feito
cair para trás. Está pálido e imóvel, os lábios apertados como se tivesse
acabado de ver um fantasma.

Levanto do meu lugar e apanho um pano de limpeza qualquer na pia.


Uso-o para enxugar a maior parte do café derramado. A toalha está
deplorável.

— Merda — continuo vociferando enquanto limpo. — Merda, merda,


merda.

Ao final da bagunça, minhas mãos estão impregnadas pelo cheio forte


do líquido escuro.

Fito o semblante pasmo de Noah outra vez, e me sinto a pior pessoa


do mundo.
— Desculpa. — Esfrego o rosto, caminho a esmo pela cozinha
apertada. — Desculpa, eu não devia ter gritado com você desse jeito.

— Você soou igualzinho ele — Noah balbucia, baixo e trêmulo.


Finalmente deposita sua xícara sobre a mesa e conserta a postura na
cadeira.

Expiro fundo. Apoio uma mão na cintura e viro em direção à sala de


estar.

— O que aconteceu com você, Kim? — pergunta. — Por que tá


tentando me controlar como ele?

— Não tô tentando te controlar, Noah. — Viro-me para ele e me


ajoelho em sua frente. Tomo uma de suas mãos entre as minhas. — Só tô
tentando te manter seguro.

— Seguro? — repete, desconfiado. Franze o cenho e nega com a


cabeça. Merda. — Estou em risco? Você está em risco?

— Não, me escute bem, por favor—

— Por que está usando o terno de Do-Yun?

— É complicado demais, Noah.

— Por que está usando o terno do seu pai, Kim? Pra onde está indo?

Hesito.

— Ele era seu pai também.

— Não, não era. Não tive pai, fui criado por um monstro. Você sabe
muito bem disso, foi criado por ele também. E, mesmo assim, é estúpido o
suficiente pra lhe dar alguma validação depois da morte mais que merecida.
Depois de tudo o que ele fez comigo, como pode me pedir para chamá-lo de
pai?

Afasto nossas mãos e me levanto.

— Não estou. Você é bem grandinho, pode pensar por conta própria.
Mas nunca mais diga que sua morte foi merecida. Foi por causa dela que eu
fui parar naquela fossa, caso não se lembre.

Ele engole em seco e cruza os braços, virando o rosto para o lado.


— Por que está se comportando dessa maneira?

— Porque foi difícil pra caramba ficar sem você nos últimos dias —
dispara ferozmente. — Eu menti, okay? — Volta o olhar marejado a mim. —
Não estou bem. Como espera que eu esteja bem quando a única pessoa que
tenho faz uma coisa dessas comigo?

— Noah, eu não tive—

— Cale a boca. Cale a boca. Eu não ligo se teve a intenção ou não. O


que importa é que você sumiu, Kim. — Suas lágrimas descem silenciosas,
cada vez mais abundantes. — Exatamente como ele fez. Eu tive medo. Tive
medo de te perder, de você não voltar mais, assim como ele. Até onde eu
sabia, esse cara podia estar te torturando, te vendendo pra outra gangue,
porra.

Puxo-o pelo braço e o obrigo a ficar em pé. Abraço-o mais forte do que
jamais abracei, praticamente abrigando-o em meus braços. Noah chora
silenciosamente contra meu peito, contra o terno de nosso pai, e descarrega
toda a frustração que queimava em seu interior, tudo aquilo que ainda não
tinha colocado para fora. Ele se agarra em mim como se estivesse lutando
pela própria vida. Meu coração afunda, como se uma faca fosse passada
sobre a carne delicada.

Encaro a sala silenciosa, os raios de sol brandos que atravessam as


frestas da cortina.

— Nunca quis que você se sentisse desse jeito, assustado, que


passasse por uma situação como essa. Noah, você é tudo o que tenho,
precisa acreditar nisso. Precisa acreditar que é a pessoa que mais amo no
mundo, que jamais te deixaria como nosso pai o fez. Mas, às vezes, as
coisas saem do meu controle. Às vezes... não consigo controlar meu próprio
destino.

Ele se afasta do meu corpo e me empurra. Dá as costas para mim e


esfrega os olhos.

— É, sobre isso — diz numa voz mais próxima do normal —: você não
vai deixar essa casa até me explicar o que tá acontecendo, Kim. — Vira-se e
aponta o indicador para o meu peito. — E até prometer que nunca mais
sumirá desse jeito. — O rosto vermelho está confiante e sério. Tão sério que
realmente acredito que não me deixará sair de casa antes de ter o que quer.
Deus, como vou explicar que agora temos o mesmo chefe, que, esta
manhã, sairemos para o mesmo lugar?

Guardo as mãos nos bolsos da calça social azul, encaro meu irmão.
Embora eu tivesse apenas cinco anos na época, ainda me lembro de sua
cara no berçário do hospital logo depois de nascer. Era uma cara parecida
com essa.

— Se eu pudesse ter feito alguma coisa pra... — começo no tom mais


apaziguador que consigo, mas a expressão dele não se desfaz por um
segundo sequer. Expiro fundo. Meus ombros se abaixam: — Eu prometo.

— Obrigado. — Me empurra para o lado e volta a sentar em sua


cadeira. Cruza os braços. — Agora faça o favor de explicar o que tá
acontecendo. — Empina o queixo para me fitar.

— Nem mesmo eu sei que merda tá acontecendo — respondo com


meias-verdades.

Noah pondera sobre a resposta por um tempo.

— Bem... Quem é o homem que cuidou de você depois da luta? Os


seguranças foram um pouco... vagos. Não falaram quase nada sobre ele.

Volto a encará-lo. Minha boca seca, minha voz sai mais áspera do que
deveria:

— Ele não cuidou de mim, Noah. Ele me comprou.

Meu irmão franze o cenho, assustado.

— Ou melhor — pigarreio, buscando uma maneira mais amena de


dizer isso —, comprou minha dívida. A dívida do nosso pai, ou melhor, de Do-
Yun — corrijo —, com os Snakes.

Noah assente, engolindo a preocupação.

— Eu perdi a luta — completo —, e essa pessoa por algum motivo—

— Quem é ele? — me interrompe.

Mordo o lábio inferior, vacilante.

— Você não vai gostar disso.

— Por quê?
Tento abrir os lábios e dizer as palavras, mas algo me impede. Merda.
Um peso se deposita sobre meus ombros, o semblante confuso e
preocupado de Noah é constrangedor.

Dou as costas para ele e caminho até a janela da sala. Afasto as


cortinas e observo o carro de Jude estacionado na rua. Conte a ele o que
quiser, não me importo, suas palavras reverberam em minha mente. Maldito
filho da puta.

— Kim? — Noah me segue e, ao meu lado, também fita o sedan preto.


— Que carro é aquele?

— É dele.

— Do cara que te tirou do ringue? Por que ele te deixou dirigi-lo? O


que está acontecendo, Kim? Porra! Tá me assustando de novo.

Expiro fundo. Sem ter como continuar correndo, finalmente cedo:

— Você o conhece pelo nome.

— Pelo nome? — Ergue uma sobrancelha. — Que é...?

— Jude Goldman — praticamente cuspo.

Noah arfa e fica em completo silêncio. Encaro-o de relance, e vejo meu


irmão ser tomado por um estrato de emoções: primeiro, espanto; então
confusão, desconfiança, negação.

— Não, você não tá falando sério. Por que tá brincando comigo, Kim?
— balbucia com um sorriso nervoso.

Umedeço os lábios. Encarando o carro lá fora, rebato:

— Por que eu mentiria pra você?

E então sua descrença dá lugar à aflição.

— Kim — murmura, os olhos arregalados —, isso é... É absurdo.

— Eu sei.

— Goldman, tipo... Goldman Entertainment? A empresa onde


trabalho?

— Uh-huh.
— Tem certeza de que não está enganado?

— Acho que me lembro bem do nome do cara que comprou minha


dívida, Noah.

— Eu sei, mas... meu chefe? Meu chefe comprou sua dívida? —


Aceno mais uma vez. — Qual a possibilidade disso acontecer? O que ele
sequer tava fazendo naquele clube ilegal?

— Não sei, Noah. Realmente, não sei. Tem muito sobre isso que eu
ainda não entendo. Dormi por três dias depois da luta. Acordei ontem. E,
acredite em mim: quando soube de quem se tratava, também fiquei tão
confuso quanto você.

Ele leva uma mão à base da garganta como quem tenta se acalmar.
Seus olhos pairam sobre os cômodos vazios na casa, e então sobre o relógio
dourado no pulso. Retira-o rápida e apressadamente. Caminha para longe de
mim, em direção ao próprio quarto.

— Noah...?

Sigo-o. Apoio-me na porta aberta de seu quarto. Meu irmão abre a


gaveta superior de sua mesa de cabeceira e apanha a caixa do adorno. Em
seguida, devolve o relógio à caixa, e então a guarda na mochila esquecida
sobre a cama.

— Vou devolver hoje, depois da faculdade — afirma, um tanto frágil,


angustiado.

Aproximo-me e seguro um de seus braços, forçando-o a me encarar.

— Escute, não quero que fique paranoico ou preocupado comigo.


Preocupe-se com seu trabalho, com seus estudos. Sei me virar. Já suportei
os filhos da puta dos Snakes. Um riquinho de merda vai ser fichinha.

— Como você quer que eu não me sinta paranoico ou preocupado? —


rebate. — Quer que eu simplesmente ignore que meu chefe comprou meu
irmão de uma gangue no subterrâneo da cidade?

Ele se desfaz do meu toque e joga a mochila nas costas. Passa por
mim e caminha até a porta, como se desse a conversa como encerrada.
Porém, logo depois, desiste da ideia.

— É algum tipo de caridade? Ele quer alguma coisa de você?


Minha mandíbula fica tensa.

— Definitivamente não foi caridade. Ele quer todo o dinheiro de volta.

Noah dá um passo para trás, os lábios semiabertos.

— Kim... — murmura, trêmulo —, o que... — e não consegue terminar


a pergunta.

Seguro seus ombros, puxo-o para perto novamente.

— Não, não é como da última vez — asseguro. — Ele pode frequentar


o ringue de luta, mas não tem envolvimento com os Snakes. Pelo menos, não
que eu saiba.

— Então...?

— Ele quer que eu pague com — sexo — trabalho. — Largo-o. — É


por isso que estou com o terno, por isso o carro lá fora. Quer que eu seja seu
chofer.

— Chofer?

— Sim. Parte do meu salário vai ser descontado no pagamento da


dívida, fico com a outra parte. Vou trabalhar pra caralho pra pagar isso o
quanto antes, e finalmente estaremos livres de desgraçados que possam nos
tirar vantagem. Estamos bem, Noah, realmente estamos — digo, confiante.
Mais confiante do que achei que pudesse estar depois de tudo. — Entende
por que estava tão preocupado com o rel—

Noah me dá um tapa forte no rosto, quase um soco. O som ecoa pelo


quarto. Meu rosto se curva para o lado, minha bochecha esquerda queima.
Esfrego o local enquanto volto o olhar ao meu agressor.

— Mas que porra...?

Ele está furioso, aponta um indicador trêmulo em direção ao meu


rosto:

— “Estamos bem”? Essa foi a mesma merda que você me disse antes
de ir pro ringue pela primeira vez. Não sei o que está acontecendo entre você
e o meu chefe, mas, eu juro por Deus, Kim: se você se envolver com
qualquer coisa parecida com os Snakes novamente, pode me considerar
morto. Se entrarem por aquela porta — aponta a entrada da casa — pra
cobrar alguma merda de dívida que você me deixou, não vão me pegar vivo,
entendeu?

— Eu rasgaria a garganta de Jude, dos Snakes, de qualquer um que


tentasse colocar um dedo—

— Você entendeu? — grita.

Não há qualquer sinal de dúvida em seu rosto, está completamente


deformado por rancor. Não reconheço a pessoa em minha frente. E ele
continua:

— Acha que era fácil te ver chegar em casa ensanguentado toda


maldita noite? Acha que era fácil cuidar das suas feridas que abriam no meio
da madrugada? Chorar com medo de alguma delas infeccionar? Observar
você cair no sono dopado de analgésicos? Meu sofrimento sequer importa
pra você?

Me sinto o menor homem do mundo. O menor e mais miserável


homem do mundo.

— Você é tudo o que importa pra mim.

— Então não faça essa merda novamente.

— Tudo o que vou fazer é pagar minha dívida, de forma limpa dessa
vez.

— É bom mesmo. — Caminha para longe de mim.

A casa é imersa num silêncio tenso, até o barulho da porta da sala


sendo aberta, e então fechada.

Algo estranho arde em meu peito e em meus olhos.

Soco a parede do quarto e grito antes que a primeira lágrima desça.


Quando elas escorrem pelo meu rosto e alcançam os lábios, sinto um gosto
terrivelmente amargo.

Saio da casa às pressas. Noah já está longe, mas posso alcançá-lo


com o carro.

Entro no sedan. Minhas lágrimas molham o contrato amassado


enquanto o assino. Enxugo-as rapidamente. Guardo o papel dobrado no
bolso interno do terno. Dou partida.
— Entre — ordeno a Noah quando o alcanço. Diminuo a velocidade
para acompanhar sua caminhada. Ele não responde nada. — Noah, entre na
merda do carro.

Fita-me de relance.

— Eu sei muito bem o caminho do trabalho, faço todo dia.

— Vou te levar hoje.

— Não preciso.

— Por que tá sendo um pau tão grande no meu cu, caralho?

Meu irmão apressa o passo.

Afundo o pé no acelerador e faço uma curva fechada à sua frente,


obstruindo seu caminho. O asfalto canta sob os pneus ágeis e caros.

— Não me desobedeça — finalizo, ríspido.

Noah ainda hesita, olhando ao redor até se certificar de que não tem
alternativa.

Por fim, expira fundo e abre a porta do passageiro.


FRIO
tudo o que eu temo sempre me encontra aqui
logo cedo, estou dançando com minhas dúvidas
posso ser uma luz difícil de acender
porque todos os meus pesadelos existem de verdade
conscious — broods

ICAMOS EM SILÊNCIO NA MAIOR parte da viagem; nos entreolhamos vez ou


F
outra pelo retrovisor. No banco de trás, Noah se assemelha a um desses
engomadinhos que tem tanta grana ao ponto de não precisarem colocar as
mãos num volante. De certa forma, combina com ele. Com um blazer mais
caro e sem a mochila, sequer se poderia dizer que é pobre se o encontrasse
na rua. Posso perfeitamente imaginá-lo naquelas salas de reunião, cercado
por empresários ricos. Salas para as quais estou me dirigindo neste momento.

Em determinado momento, talvez vencido por sua curiosidade, Noah


comenta:

— Se você é o chofer dele, por que não tá indo buscá-lo?

— Hoje ele me liberou.

— Por quê?

Engulo em seco. Concentro-me na estrada por alguns segundos.


Minha hesitação aguça sua curiosidade. Meu irmão passa o banco da frente,
ao meu lado, enquanto o carro está em movimento.

— Não faça isso, seu imbecil.

Ele se acomoda e passa o cinto de segurança pelo torso.

— Me responda: por que ele te liberou hoje?

— Por que tá teimando tanto em meter o nariz nisso?


— Porque não vou cometer o mesmo erro que cometi com os Snakes
— responde, sério e firme. — Dessa vez, quero meter meu nariz nessa
história até onde puder.

Faço uma curva suave e então paro num sinal vermelho em frente a
uma faixa de pedestres. As pessoas caminham em minha frente enquanto
resmungo:

— Será melhor se você ficar na sua.

— Melhor pra quem? Pra mim ou pra você?

— Só tô tentando te proteger, droga.

— Quanto mais você se esquiva de todas as perguntas que te faço,


menos seguro me sinto.

Fecho os olhos e esfrego a testa. Solto uma lufada de ar longa e


exausta pela boca.

— Não fui pegá-lo hoje de manhã porque preciso levar o contrato


assinado até ele — explico.

Noah reflete sobre isso por um tempo.

O sinal abre. Arranco com o carro.

— Ele te deu a opção de não assinar?

Uma risada seca e cínica escapa da minha garganta. Sim, com


certeza. Me deu todas as opções do mundo.

— O que aconteceria se você não assinasse, Kim? — meu irmão


indaga.

— Não sei, ele não explicou direito. De qualquer forma, nunca


considerei não assinar — minto. — O acordo é bom demais pra recusar.

— É. É mesmo bom demais — ecoa num tom sugestivo.

Noah me observa manobrar o carro por mais algumas ruas no centro


caótico de NYC logo pela manhã.

— Sabe... ele é bem frio, bem... estranho. — Cruza os braços e fixa o


olhar à frente. — Todo o time de estagiários sabe. Ninguém sabe muito sobre
ele, é difícil achar informações sobre seu passado na Internet. Sabe que
trabalho com a secretária dele, certo? Nem mesmo ela tem muita noção de
quem é Jude Goldman.

— Talvez ele só goste de privacidade.

— Talvez. Mas, ainda assim, é bem estranho que alguém rico e


exposto como ele não tenha sequer uma página na Wikipédia.

— O que é Wikipédia?

— Jesus Cristo, Kim.

Gargalho.

— Só tô te zoando.

— Idiota — diz, divertido. Em seguida, seu tom muda drasticamente:


— Na verdade, talvez não seja uma surpresa tão grande que ele frequente
clubes como o dos Snakes pela madrugada. Algo me diz que, por baixo dos
panos, faz coisas ainda piores.

Tento esconder meu desconforto.

Cruzo uma última esquina e estamos na rua da Goldman. O prédio


espelhado e gigantesco toma conta de praticamente um lado inteiro da rua. É
intimidador. Meu estômago revira.

— Mas você já tá trabalhando com ele há três meses — comento ao


reduzir a velocidade, aproximando-me da entrada do prédio. — Certamente
deve saber mais do que a maioria. Não prestou atenção em mais nada
relevante? — Ele certamente prestou atenção em você, Noah.

— Na real, não. Quem sabe ele não se abre mais com você, meu
irmão? Nunca vi Goldman andando com outros caras da empresa, deve estar
precisando de um amigo. Talvez, por isso, tenha comprado sua dívida.

Que grande amizade teremos.

— Pode ser.

Diminuo ainda mais a velocidade.

— Mas há algo que talvez seja útil você saber.

— O quê? — Viro o rosto para ele.


— Jude tem—

Um filho da puta nos corta pela esquerda, afundando o dedo na


buzina.

Me sobressalto e piso no freio bruscamente.

O SUV preto que fez a ultrapassagem continua buzinando até parar


um pouco mais à frente, logo na entrada do prédio.

— Que merda...? — vocifero.

— Relaxe, deve ser só alguém de mal humor. Um conselho: você não


quer brigas com essa gente, Kim.

Pequeno Noah Henney, estagiário há três meses. Sempre pontual;


sempre com o terno bem alinhado, um sorriso no rosto perfeito, os olhos
brilhando enquanto lambe o chão onde piso. Me pergunto se ele ainda
manteria esse sorriso caso eu comesse seu cu na mesa do meu escritório.

— O que quer dizer com isso? Que tipo de coisa já teve de engolir
vindo dessas pessoas?

— Não se preocupe comigo, já tô acostumado. A pessoa com a qual


precisa se preocupar é você mesmo. — Ele solta o cinto de segurança.

Volto o olhar ao SUV parado à frente. O chofer desce primeiro — o


uniforme preto perfeito, dos sapatos sociais ao chapéu. Ele abre a porta do
passageiro, e ajuda um demônio loiro a descer do carro.

— E se há uma certeza de que tenho na vida — Noah completa —, é


de que você não quer comprar uma briga com Jude Goldman.

O desgraçado abotoa o terno azul, despreocupado. Através do vidro


dianteiro, nossos olhares se cruzam e permanecem imóveis, inertes, fixos um
no outro por tempo indeterminado. Ele é mais do que frio: é uma tempestade
no meio da noite mais fria do inverno; uma brisa congelante matando um
sem-teto nas ruas.

E encará-lo... Encará-lo me faz querer foder essa pedra de gelo


violentamente, até vê-la derreter. E então atirar em sua cabeça para me livrar
desse desejo para sempre.
A batida da porta do lado de Noah desvia minha atenção. Ele desce do
carro, cumprimenta Jude de longe e entra apressado no prédio.

Toco o contrato dobrado no interior do terno e sinto meu coração


acelerado. Deixo meu revólver no carro antes de seguir meu irmão. A última
coisa que preciso no momento é colocar uma bala na testa desse filho da
puta de cabelos dourados.
SR. HENNEY
veja como destroçarei cada pedacinho seu
não subestime as coisas que farei
há um fogo queimando no meu coração
me deixando febril, me tirando da escuridão
rolling in the deep — adele

PRÉDIO DA GOLDMAN É luxuoso por fora e por dentro.


O
Há pelo menos uma centena de andares cheios de executivos e
celebridades da TV. Topei com vários deles no hall de entrada e no elevador
em direção ao andar do escritório de Jude. Foi uma subida longa, minutos em
que revivi a conversa com Noah no carro e a sensação estranha ao rever
Jude. Tudo bem você ser um viadinho. Mas sentir qualquer coisa que não
seja desprezo por esse homem em particular já é demais.

Aperto meus punhos na frente do corpo. Eu o conheci ontem, como


posso sequer considerar sentir algo por ele? Estou completamente insano?

Penso no papel dobrado no bolso interno do meu terno. Posso


imaginar o sorriso arrogante e vitorioso daquele filho da puta quando eu
entregar o documento em sua mesa. Ele sabia que minha única opção era
assiná-lo; sabia que eu não poderia discutir os termos; sabia que eu estaria
aqui hoje, com meu irmão, independentemente do que fizesse comigo ontem.
Ele sabe de tudo. E sinto como se eu não soubesse de nada.

Limpo a garganta. Ergo os olhos até o relógio de vidro na parede à


frente, acima das cabeças de meu irmão e da secretária de Jude, que
compartilham o mesmo balcão. São 11h43. Cheguei aqui às 7h58. Quando
desci do elevador e coloquei os pés neste andar — que basicamente tem
todo seu espaço ocupado pelo escritório de Jude à esquerda, a mesa da
secretária à direita, além de um pequeno espaço de espera escondido ao
lado do elevador —, Jude já estava recluso em sua sala. A única instrução
que recebi foi a de esperar junto da porta do escritório até que fosse
chamado.

E assim o estou fazendo.

Suspiro. Não sou fraco, mas, depois de horas em pé, minhas


panturrilhas estão reclamando. Observo os estofados confortáveis no espaço
de espera. Descansar neles seria desobedecer às ordens de Jude?

Você precisa me obedecer, Kim. Precisa fazer tudo o que eu disser, as


palavras ressoam no meu crânio vazio e, como um cão, permaneço no lugar
indicado pelo meu dono.

Volto a olhar pelo andar. Apesar da dor nas pernas, é divertido


observar Noah trabalhando. Em seu lado da bancada longa e curva, ele é
calmo e silencioso, passa quase o tempo todo fitando a tela do computador,
salvo vez ou outra em que atende o telefone. Me ignora completamente, um
verdadeiro cuzão. Isso, de certa forma, me traz paz: me sentir invisível num
lugar como esse provavelmente é o melhor que eu poderia pedir. Não sei
muito bem como essa coisa de negócios e empresários funciona, mas se a
secretária de Jude precisa de um estagiário, o trabalho não deve ser fácil.

Há alguns seguranças espalhados pelo local — menos do que havia


no corredor do andar do apartamento de Jude ontem à noite —, as mãos
cruzadas na frente do corpo assim como as minhas, os ternos escuros
melhores e mais caros do que o meu, os rostos sérios e inexpressivos, como
se suas panturrilhas pudessem suportar semanas em pé.

Aperto mais meus pulsos. Forjo uma expressão séria e inexpressiva


como a deles. Então o pensamento me cruza a mente: Além de chofer, agora
sou segurança pessoal de Jude também?

Vejo um pedaço da cidade através das janelas. Por um instante, me


distraio com os prédios e os arranha-céus. Mas, conforme os minutos se
passam, fico inquieto. Tive quatro horas de sono noite passada; os efeitos da
falta de descanso estão afetando minha habilidade de continuar firme.

Isso é algum tipo de tortura? Algum tipo de teste?

Observo o relógio outra vez.

11h47.
Merda.

O telefone da bancada toca. O bipe irritante ecoa pelo andar. Noah se


afasta do computador e apanha o telefone preto do gancho.

— Sim? — ele atende.

Me concentro no rosto dele para tentar descobrir alguma coisa. Ele


ouve a pessoa do outro lado e meneia a cabeça de maneira sutil. Nossos
olhares se cruzam e ele desvia os olhos para a bancada rapidamente.
Pigarreio baixinho.

— Tudo bem — murmura e devolve o telefone ao gancho. Troca um


olhar breve e suspeito com a mulher de fios longos e loiros ao seu lado.

Meu irmão levanta da cadeira e se inclina sobre a bancada; a atenção


volta-se completamente para mim.

— Sr. Henney? — diz de maneira distante, impessoal, fria. Os olhos,


por outro lado, são estranhamente ardentes.

Afasto as mãos uma da outra e consigo adivinhar o que vai falar antes
de seus lábios se abrirem.

— O Sr. Goldman solicitou sua presença no escritório dele agora.


22
desculpa se é difícil me entender
eu preciso de alguém em que possa confiar
diga que você está do meu lado
[...]
não falo muito sobre meus sentimentos, eu admito
sei que você tem algumas coisas pra dizer
então diga
estou aqui pra escutar
love lies — khalid, normani

E O PRÉDIO DA GOLDMAN é luxuoso, o escritório de Jude é mais, muito


S
mais.

O lugar se estende para os lados como se não tivesse fim, cheio de


decorações nas paredes, alguns discos de ouro, placas de diamante, quadros
em molduras delicadas, lustres baixos e vasos de vidro pendurados do teto.
Há poltronas de veludo sobre o tapete vermelho-sangue que recobre o chão;
pequenas mesas circulares de vidro acompanham cada par de poltronas. Ao
lado da porta, estendem-se uma dúzia de estantes com livros grossos e com
capas de couro. Há detalhes demais para um olhar distraído e cansado.

A opulência é apenas isso: opulência. E, em meio a ela, há só uma


coisa que chama verdadeiramente minha atenção.

— Assinou o contrato? — Jude diz.

Começo a perceber que “olás” talvez não façam seu estilo.

Retiro os papéis do bolso.

— Sim — respondo baixo demais, inexplicavelmente apreensivo. Meu


coração acelera.

— Ótimo. Tranque a porta atrás de você.


A mesa dele fica no centro do escritório, oposta à porta. Às suas
costas, há uma parede feita de vidro — as entranhas de Nova York abrem-se
atrás dele como se o servissem. Jude está levemente curvado sobre a mesa,
focado em algumas folhas de papel timbrado. Pela primeira vez, presto
atenção nos adornos em sua mão. Há três anéis finos e delicados — poderia
até confundi-los com alianças, especialmente aquele no anelar da mão
esquerda, se ele se comportasse mais como um homem casado. Sua
poltrona é maior e mais escura que as outras, feita de um couro mais liso e
fosco do que o comum. Fosco e frio, assim como ele.

Fecho as duas portas altas às minhas costas, dando um último olhar


de relance ao meu irmão e à secretária, que cochicham algo atrás de seu
balcão. Meus olhos cruzam com os de Noah brevemente. Ele parece ansioso.

Quando Jude ouve o clique da maçaneta, ergue os olhos até mim. São
os mesmos olhos gélidos que conheci na noite passada, o mesmo rosto
apático, os mesmos fios dourados — agora reluzentes sob o sol. Diferente de
mim, ele parece ter tido todo o sono de que precisava.

Há algo diferente na sua postura, entretanto. Algo perigoso na forma


como seus ombros se elevam e se abaixam. Algo cortante na maneira como
inclina o pescoço para o lado e me analisa cuidadosamente. Algo que me
deixa na defensiva.

Sem dizer uma palavra, ele abandona a caneta com a qual assinava
os papéis e se levanta da poltrona. Abre os botões do terno azul-marinho, dá
a volta na mesa e se senta na ponta dela. Retira um maço de cigarros e um
isqueiro do bolso da calça.

Mantenho as mãos junto das costas, o contrato preso entre elas, e


observo seus movimentos cuidadosos, quase ensaiados. Pela forma como
sua perna está estendida à frente, consigo ver a marca dos músculos da coxa
sob o tecido. Contra o sol, seus fios parecem mais escuros, um tom de ouro
queimado; as sombras no rosto deixam-no mais misterioso. As marcas
escuras que deixei em seu pescoço desapareceram como mágica. A pele
alva parece intocada. Fez um bom trabalho ao escondê-las.

— Que caralho de terno é esse? — Coloca um cigarro entre os lábios


e o acende.

Toco a lapela e sinto o tecido barato entre os dedos. Tenho


consciência de sua idade, mas não tenho vergonha. O olhar crítico e incisivo
de Jude me incita a pensar diferente, no entanto.

— O que tem de errado com ele?

Ele expele a fumaça do cigarro. Há muito espaço entre nós, o que não
impede que eu me sinta encurralado.

— É o único que você tem? — pergunta.

— É. — Ergo o queixo. Volto a apertar as mãos atrás do corpo e


inspiro fundo. — Era do meu pai.

Jude traga o cigarro outra vez.

— É horrível — cospe. — Seu pai tinha um gosto de merda.

Semicerro os olhos. Ele acha que não sei disso?

— Não sei se percebeu, mas não sou o tipo que liga pra esse tipo de
frescura. Não precisei de um terno enquanto socava a cara de filhos da puta
no ringue, ou em qualquer um dos serviços que fiz antes disso.

Uma lufada de ar escapa de sua boca.

— Serviços? — repete. Interesse mórbido reluz em seus olhos. —


Você tem 23 anos, certo?

— Como sabe a minha idade?

Os cantos de seus lábios finos erguem-se num sorriso lento,


provocador.

— Por acaso achou que eu te compraria sem saber algumas


informações básicas antes? O que acha que eu sou? — Cruza os braços
sobre o peito e os tornozelos, um sobre o outro, no chão. A brasa do cigarro
se acentua contra o terno azulado. — Quer saber o que mais eu sei? Sei que
nasceu no Brooklyn, 23 de setembro de 1998. Tem ascendência coreana.
Não preciso mencionar tudo o que sei sobre seu irmãozinho, não é? Seu pai,
Do-Yun Henney, morreu num acidente de trânsito um ano atrás. Você estava
no ringue por causa de uma dívida com os Snakes que ele deixou. — O
sorriso se alarga a cada frase.

Sinto minhas costas pressionadas ainda mais contra a parede. Aperto


o contrato com força em minhas mãos. Confirmar que ele sabe tanto sobre
mim é perturbador. A ameaça de Jude não está apenas na força, na fortuna,
em todos os seguranças que o cercam. Ele é perigoso porque sabe brincar
com informações, sabe como usá-las ao seu favor.

— Isso é tudo o que sabe? — provoco ainda assim.

Ele dá de ombros.

— É tudo de que preciso.

Sua postura relaxada me dá nos nervos. Sei que posso manter a nuca
curvada e aceitar as merdas que ele diz, as merdas que faz. Essa é a opção
mais segura afinal de contas. A opção que mais o deixaria feliz.

Mas não sou muito de escolher caminhos seguros. E muito menos de


fazer filhos da puta como ele felizes.

— Achei que não se importasse com a minha família — desafio.

Jude franze o cenho, pego de surpresa. O sorriso no rosto se


pulveriza, deixa para trás uma expressão vazia, desconfortável, feia. Bom.

Caminho até ele. Goldman me acompanha com o olhar. Paro perto o


suficiente para agarrar sua garganta e enforcá-lo outra vez, caso queira. Ele
percebe isso e descruza os tornozelos, assumindo uma posição menos...
relaxada.

Estendo os papéis castigados em sua direção.

— Aqui tá a porra do seu contrato.

Ele dá uma longa olhada nas folhas, então me encara. Não há sorriso
arrogante em seus lábios, ou expressão de vitória. Há apenas tédio. “E daí?”,
me pergunta silenciosamente. A apatia me irrita. Atiro o maldito documento
sobre sua mesa e ele se mistura aos outros.

Aponto para o cigarro esquecido na sua mão.

— Me passe um.

Ele olha de relance para as faíscas de nicotina. Permanece em silêncio


por um segundo a mais do que qualquer pessoa normalmente ficaria.

— Você pode ficar com os meus restos.

Me estende o cigarro aceso. Pego e levo aos lábios. Trago a fumaça


vagarosamente, apreciando o sabor mentolado e distintamente caro. Jude me
analisa. Quando expiro, ele continua num tom mais suave:

— Em quais serviços você trabalhou antes da morte do seu pai?


Serviços braçais?

Assinto. Afasto o cigarro dos lábios e escondo a mão livre no bolso da


calça escura. Encaro uma das garrafas de uísque sobre as mesas redondas
à direita, assim não tenho que olhar para ele. Mas não penso em bebida,
penso na conversa de instantes atrás. “Por acaso achou que eu te compraria
sem saber algumas informações antes?”. E então em Noah no carro.
“Ninguém sabe muito sobre ele.”

— Isso é uma puta injustiça — comento, então volto a encará-lo.

Jude cruza os braços novamente, desta vez com mais força — o


suficiente para que eu possa ver seu peitoral delineado sob o tecido.

— O mundo é injusto — diz com desdém.

— Você sabe de toda essa merda sobre mim e eu não sei porra
nenhuma sobre você. Absolutamente nada.

Dou dois passos à frente, encerrando a distância entre nossos corpos.


Nossas respirações começam a se misturar. A reação instintiva de Jude é
jogar os ombros para trás — está encurralado, e sabe disso. Coloca uma mão
entre nossos peitos, impedindo que os tecidos dos ternos se toquem.

— Acho que já sabe o suficiente.

— Eu vou decidir isso.

— Se você acha que tem algum poder nesta relação, está enganado.

— Eu não me importo com poder, me importo apenas com a verdade.


A verdade sobre o que você quer comigo. A verdade sobre isso — aponto
com a ponta do cigarro para ele e então para mim mesmo —, que você
insiste em esconder de mim. Como não acho que vou conseguir espremer a
resposta toda da sua maldita garganta de uma só vez, conhecer o demônio
com o qual tô lidando é a segunda melhor opção. Melhor o inimigo que você
conhece—

— Do que o que não conhece. É, eu conheço o ditado. — Estreita os


olhos. — Então me diga uma coisa: vi você chegando com seu irmão hoje
cedo. O que disse a ele?
— Que sou seu chofer.

Jude entreabre os lábios e roça os caninos entre si. Dobra a nuca para
trás, me encara solícito e selvagem.

— Devia ter falado pra ele que você é o meu cão. É mais próximo da
verdade, não acha?

Aperta a lapela do meu terno bem no local onde meu coração bate.

— Só vou responder suas perguntas se também puder fazer as minhas


— declaro.

Jude abaixa o olhar para minha garganta, então para o peito sob o
tecido fino da camisa. Passeia a mão sobre a linha média entre minhas
costelas.

— Você pode achar tudo o que quiser sobre mim em uma página da
Wikipédia.

Os dedos param no botão superior da minha camisa. As digitais


flertam com o pequeno pedaço de plástico.

“É bem estranho que alguém rico e exposto como ele não tenha
sequer uma página na Wikipédia.”

Sem retirar os olhos dos fios claros que caem sobre sua testa, dou
uma última tragada no cigarro e rebato:

— Não, não posso. Já tentei isso. — Mascaro uma mentira.

Atiro a bituca na lata de lixo metálica ao lado da mesa.

Ele limpa a garganta e abre o botão com o qual esteve brincando.

— Que cão esperto — murmura. Encara a pele exposta do topo do


meu peito. — Minha querida tia Brianna, a CEO desta empresa, apagou
quase todos os registros sobre mim na Internet quando entrei na faculdade.

— Sua tia?

— Aham.

— Por que ela fez isso?

Mordisca o lábio.
— Já está fazendo perguntas difíceis... Nem começamos nosso
joguinho ainda.

Ele sorri, provocativo. Mas não me engana: vejo a tristeza por trás
deste sorriso. Tristeza que me deixa curioso.

Ele aperta meu queixo, curva minha nuca para baixo.

— O que você quer saber sobre mim, Kim Henney?

— Sua idade.

A pergunta o tira de uma espécie de transe. O rosto muda da calma


cínica de sempre a um desconforto abismado. Ele solta meu queixo, quebra o
contato visual. Os olhos buscam desesperadamente algo ao redor que não
seja eu. É uma pena que meu peito esteja cobrindo todo o seu campo de
visão.

Espalmo as mãos na mesa, me curvando à frente. Jude fica preso


entre meu corpo e o móvel, sem ter para onde correr desta vez.

— Olhe para mim — sussurro contra seu rosto. Ele o faz. — Quantos
anos você tem?

— 22. — Há amistosidade em seu rosto agora, como se aceitasse as


regras do meu jogo. — Quais empregos você teve antes de ser levado pro
ringue?

— Qualquer um que aparecesse, legal ou não. Mecânico. Garçom.


Eletricista. Segurança. Vendedor de carros usados. Atendente. — Aperto os
lábios quando me lembro do verão particularmente fodido em que fui
esfaqueado por um cliente com o pedido trocado num drive-thru. — As
oportunidades variam com as estações. Se você procurar bem, sempre acha
algo pra fazer.

— Por quê? — pergunta com desconfiança. — Por que fez tudo isso?

Fecho o rosto.

— Você era mesmo virgem até ontem?

Consigo surpreendê-lo pela segunda vez no dia. Jude entreabre os


lábios para disparar alguma ofensa instintiva, mas hesita. Além disso, não
consegue segurar meu olhar por muito tempo.
Suas bochechas coram quando a resposta escapa de seus lábios:

— Sim. — E desvia o rosto para o lado.

Suspiro contra a porção da garganta exposta diante de mim. Se eu


encarar bem, consigo ver as manchas sob a maquiagem quase perfeita.

— Minha mãe nos abandonou quando Noah tinha quatro anos. Meu
pai preferia gastar seu dinheiro com bebidas e putas ao invés de alimentar os
filhos. — Reflito. — Entre bebidas, putas e apostas ilegais, não devia sobrar
muito pra comida mesmo. — Uma risada amarga deixa meus lábios.

As brigas infindáveis com meu pai retornam à minha mente. São


lembranças agonizantes. Tenho que me concentrar bem para afastá-las. E,
mesmo assim, fico perturbado por um tempo. Com o silêncio, Jude volta o
rosto ao meu lentamente.

Preso nas memórias, lamento:

— Fui muito cego. Devia ter percebido o que ele estava fazendo antes
que fosse tarde demais. Assim... poderia ter fugido com meu irmão, ou
guardado alguma coisa pra quando os cobradores viessem à nossa casa.

Cerro os punhos sobre a mesa e os encaro. Me dou conta de como


Jude se encaixa perfeitamente nos meus braços, do quão perto meus dedos
estão da sua cintura. Sinto seu olhar gélido na lateral do meu rosto,
analisando, refletindo, até que diz:

— Pretende me matar quando a primeira oportunidade surgir?

Volto-me para ele. Nossos lábios se separam por meros milímetros.

— Já surgiu.

Estupidamente, invisto na direção do seu rosto. Ele recua.

— Achei que não sentisse atração por homens.

— Não sinto.

— Então por que quer me beijar?

— Não sei.

— Você não decide beijar pessoas ao acaso, Kim.


— Talvez eu esteja fora de mim.

— Por que não se afasta?

— Não sei. Quero me afastar, mas não consigo. Meu corpo não
obedece minha mente.

— Você parece mesmo ter um ou outro parafuso solto.

— Isso não te assusta?

— Acredite em mim: na minha vida, você é uma das coisas menos


assustadoras.

— Eu costumava quebrar crânios com os nós dos dedos até pouco


tempo atrás. Há pessoas que fazem pior do que isso na sua vida?

— Você não tem ideia...

— Então me conte.

— Pretende fugir? — pergunta.

— Vim aqui hoje... com o seu carro — balbucio, o olhar fixo em seus
lábios. — O contrato tá assinado, na sua mesa. Tô te contando sobre o meu
passado fodido. — Ergo os olhos até os dele. — O que você acha?

Jude não responde em voz alta, nem espero que o faça. A


compreensão nas íris já é resposta suficiente. Ele sabe que não estou
mentindo. E eu sei que ele sabe disso. Ainda assim, resta um impasse. Para
resolvê-lo, pergunto o que não saiu da minha mente no caminho do
apartamento dele para a minha casa:

— Foi prazeroso pra você... — deslizo a ponta da língua pelos lábios


— perder a virgindade comigo?

Ele hesita por alguns segundos, entra em defensiva. No final, cede:

— Sim. Menos a parte do enforcamento.

Meus olhos vagam até seu pescoço. Penso em pedir desculpas, mas
suprimo o desejo. Não vou me desculpar uma segunda vez.

Quando Jude volta a falar, seu tom é curioso — curiosamente hostil:

— Quem era a mulher com quem você costumava fazer isso?


É minha vez de ser pego de surpresa. Encaro-o de lado. Minha mente
viaja a uma memória distante.
PROMÍSCUO
garoto promíscuo
chegamos num impasse
então chega de joguinhos
promiscuous — nelly furtado, timbaland

ANTES

Olivia se curvou para trás, deixando o pescoço liso


E N TA D A N O M E U C O L O ,
S
e macio inteiramente exposto. Fechei a mão inteira ao redor dele,
envolvendo-o quase completamente. Afundei os dedos, esmagando a
traqueia, interrompendo seu fluxo de ar. Sua face se contraiu numa expressão
dolorosamente prazerosa.

Observei as veias pulsarem no pescoço e na testa.

Após alguns segundos, ela começou a esganiçar. Fechou as duas


mãos ao redor do meu braço, pedindo-me para parar. Soltei sua garganta e
afoguei o rosto no espaço entre seu pescoço e seios. Depois de respirar
fundo, ela gemeu:

— Vá com calma, Kim. Se for agressivo demais, pode acabar me


desacordando.

Subi as mãos das coxas até a cintura, apertei-a mais contra mim.

— Me desculpa — eu disse.

Beijei a marca escura deixada pelos meus dedos em seu pescoço.

— Não precisa se desculpar — sussurrou.

Ela inclinou meu queixo para cima e me beijou.


AGORA

JUDE APROXIMA NOSSOS ROSTOS. Desconfiança arde em suas íris frias.

— Ainda estamos jogando o seu jogo, Kim. Quem era a mulher que
você enforcava enquanto fodia? — dispara de maneira cínica. — Foi ideia
sua... ou dela? Hmm, pelo olhar no seu rosto, acho que nem vale a pena
perguntar quem era a putinha da relação.

Afasto nossos corpos bruscamente. Coço o queixo enquanto meus


olhos correm pela sala em busca de algo que possa me salvar de falar sobre
Olivia com esse filho da puta. Jude continua sentado na mesa, o olhar
questionador. A cada segundo que passo em silêncio, sua curiosidade
aumenta. Tenho apenas um último recurso para encerrar essa conversa.

E ele está entre minhas pernas.

— Me chamou até aqui pra falar sobre o meu passado ou pra que eu
coma seu cuzinho?

Jude reage como espero: desfaz a pose tensa e desce lentamente da


mesa. Um sorriso largo, petulante, toma forma em seu rosto. Suas íris esfriam
a cada passo que dá em minha direção — como uma serpente venenosa se
aproximando da presa.

— Quer me comer no meu escritório?

Não respondo.

Ele mantém o olhar preso no meu quando toca minha nuca, forçando-a
para baixo.

— Kim Henney, você é mesmo um pervertido — diz mais baixo, grave


e envolvente.

Aperto meus pulsos nas costas, evitando agarrá-lo de imediato.

Jude repousa a mão livre no meu peito, então sussurra ao meu ouvido:
— Não tem medo de que seu irmão nos escute do lado de fora? — E
morde o lóbulo da minha orelha.

— Não fale de Noah em momentos como esse.

— Falo de quem quiser, quando quiser. Na verdade, talvez eu devesse


chamá-lo pra que possa testemunhar o excelente trabalho de chofer que seu
irmão faz. O que acha?

— Você não faria isso.

— Oh, eu faria. Faria coisas muito piores.

— Por favor... — engulo em seco. — Isso não.

— Acha que palavras serão suficientes pra me convencer?

— Não, não acho. Enrole os braços no meu pescoço e segure firme,


seu filho da puta — sussurro de volta em seu ouvido.

Jude o faz sem questionar. Aperto suas coxas, impulsiono-o para cima.
Suas pernas envolvem minha cintura, está preso nos meus braços. Suas
mãos apertam minha cabeça e o terno barato. Ele descansa o rosto no vão
entre meu pescoço e o ombro.

Carrego-o de volta à mesa sem balançá-lo demais. Acomodo-o


delicadamente sobre ela. Ele esfrega os fios finos da minha nuca sem se
afastar demais.

— Bom garoto, carregando seu dono dessa forma — murmura com a


voz lânguida.

Minhas mãos sobem de suas coxas aos flancos, entre o tecido do


terno e a camisa. Ele suspira contra meu pescoço, beija o local sob minha
mandíbula.

— Pode quitar mais uma parte da sua dívida agora.

Se afasta um pouco — os olhos presos em mim — e se inclina para


trás. As pernas continuam cruzadas ao redor da minha cintura, sinto sua
ereção despertando. Jude desfaz o nó da gravata azul e a atira no chão. Em
seguida, trabalha rápido nos botões da minha camisa. Os dedos estão
afoitos.
— Não está sendo descuidado demais pra alguém na sua posição? —
pergunto quando meu peitoral inteiro está exposto.

Jude passeia as palmas sobre minha pele nua. Os polegares passam


uma, duas vezes sobre meus mamilos. Na terceira, ele os aperta.

— Está me chamando de promíscuo?

Controlo o grunhido, apertando o maxilar contra a mandíbula.

Ele parece satisfeito com a provocação: afasta as mãos de mim; volta


a se debruçar sobre a mesa, apoia-se nos cotovelos. Suas pernas cruzadas
ao redor da minha cintura puxam-me mais para a frente.

— Tô só tentando te entender — digo.

— Não tente. Assim como você, também tenho alguns parafusos


soltos. — Começa a abrir os próprios botões.

— Devo ter medo de você? — questiono.

Deixo o terno e a camisa deslizarem pelos meus ombros e meus


braços e caírem esquecidos no chão.

— Sim.

Quando Jude fita meus músculos, seus dedos ficam imóveis nos
botões. Sua expressão se fecha, mas de uma maneira diferente. Não está
irritado ou magoado. Está sedento.

— Não tenho.

— Esse é um erro do qual você provavelmente vai se arrepender em


breve.

— Em breve quando? Quando você sentar na minha pica? Quando eu


gozar na sua boca?

— Quando descobrir que tipo de homem eu sou.

Curva-se para frente, enrola um braço no meu pescoço.

— Acho que sei exatamente o tipo de homem que você é.

— Isso não importa agora. Tudo no que você precisa se concentrar —


agarra meu pau — é em endurecer isso aqui e me foder com ele. Entendeu?
— E lambe minha bochecha, lentamente.

Agarro seu queixo, viro-o bruscamente para o lado e retribuo a


lambida.

— Se lembre de que você pediu por isso.

Definitivamente não posso mais me chamar de hétero.


BONITO QUANDO MENTE
eu coloquei um feitiço em você
porque você é meu
[...]
e não me importo se você não me quer
porque sou seu agora
i put a spell on you — annie lennox

de vidro — os com uísque e


O S S O C O N T R AT O , PA S TA S , C A N E TA S , C O P O S
N
os com café — e mesmo a pequena jade que ganhei de presente de
Florence despencam e se espatifam no chão quando Kim se atira contra mim e
me arrasta pela mesa. Sobre ela, restam apenas meus computadores, o
telefone e alguns papéis quiescentes. Do outro lado, alguém com certeza
ouviu a bagunça. Se Kim queria manter nossos negócios escondidos de seu
irmão, está fazendo um péssimo trabalho. Minha camisa fica aberta pela
metade, sequer tenho tempo de tirar o terno. Agarro seus ombros e os fios de
cabelo em sua nuca.

Kim se curva sobre mim, esmagando nossos abdomes e peitos uns


contra os outros. Ele toma minha boca de forma voraz, quase desesperada.
Assim que entreabro os lábios, sua língua me invade. Sua umidade se
mistura à minha e faz meus músculos relaxarem, minha mente se enevoar. A
pele dele tem um aroma amadeirado, másculo. Em contraste, a boca tem um
gosto cítrico e doce — um gosto que deixa meus lábios dormentes, me faz
perder a sensibilidade, e no qual estou lentamente me viciando.

De olhos fechados, ouço-o empurrar os papéis que permaneceram na


mesa para o lado, deixando a superfície mais livre para nós dois. Impulsiona
a boca contra a minha, sua língua me explora mais fundo. Um gemido
completamente descontrolado deixa minha garganta e ressoa pela dele. Solto
sua nuca e desço a mão até a base de seu pescoço, empurrando-o para trás.

— Alguém está animado hoje — digo.


Se ele quer continuar mantendo essa fachada de hétero, está fazendo
um trabalho pior ainda.

Kim mantém o peso todo depositado sobre mim, seu peito exposto me
encobre como uma muralha de músculos. Fito-o e vejo o desejo de entrar na
minha boca outra vez estampado nas íris escuras. Viro o rosto para o lado.

— Olha só a bagunça que você fez. O pobre Noah vai ter que ficar
depois do expediente pra arrumar tudo.

— Você fala tanto no meu irmão que tô começando a acreditar que


quer a pica dele ao invés da minha. Foi por isso que me escolheu no ringue?

Volto a encará-lo. Com as pernas, puxo sua cintura contra a minha.


Seu pau rijo arrasta-se contra o meu. Envolvo os braços em sua nuca, puxo-o
para baixo.

— Ele não faz bem o meu tipo. Você faz.

Kim me beija novamente, porém de forma mais suave. Seus braços


passam sob minhas costas e apertam minhas costelas, esmagando-me
contra ele. Me inclino para cima e para trás: o ângulo facilita o beijo. Perco o
ar, mas não nos separo. Pequenas descargas de eletricidade atravessam
minha espinha onde ele toca, espalham-se pelo meu corpo inteiro, fazem
meu interior borbulhar.

O calor torna-se insuportável, mas não tenho forças para afastar Kim e
retirar minha camisa; não tenho forças para me descolar dele por um
segundo sequer. Ele me exaure.

Kim morde meu lábio inferior e puxa-o para cima, bem próximo de
rasgá-lo.

— Ah!

Afasto o rosto e encubro a boca. Me certifico de que não está


sangrando.

— Merda — vocifero —, o que deu em você hoje?

Ele não parece assustado, acuado ou envergonhado de qualquer


forma. Os olhos castanhos me fitam de maneira inescrupulosa. Seus lábios
entreabrem-se, os dentes frontais estão cerrados. Os cantos das
sobrancelhas grossas e escuras tremem.
Por dentro, tremo do mesmo jeito quando ele murmura:

— Você tá me deixando assim — em sua voz grossa e baixa que faz


minhas entranhas se revirarem.

Respiro fundo. Sem largar seu olhar, abro alguns botões da minha
camisa.

— Você foi mais tímido e cuidadoso ontem — menciono de maneira


sutil.

Kim retira os braços de baixo de mim e agarra meu queixo. Esfrega o


polegar em meus lábios, abrindo-os, tateando os dentes gentilmente.

— Eu não tinha certeza se ia sair vivo do seu apartamento ontem.

Toco seu dedo com a língua e o chupo até a base. Deixo que deslize
para fora lentamente. Saboreio o gosto de suas digitais, de sua pele. Ele me
fita como se estivesse hipnotizado.

— Sendo sincero... — digo quando está totalmente fora de mim —,


também não sabia se ia te deixar sair vivo de lá. — Sorrio, maldoso.

Ele afasta minhas mãos e começa a desabotoar a minha camisa por


conta própria. Perco o ritmo da respiração. Suspiro, assustado com minha
incapacidade de tomar as rédeas da situação, com a facilidade com que meu
corpo simplesmente se entrega a ele, um homem que comprei e mantive
preso em minha cama por três dias.

Seus olhos voltam-se aos botões por um segundo. Então retornam ao


meu rosto:

— Você fica mais bonito quando mente — sussurra.

— Obrigado. — Meu sorriso se alarga. — É o primeiro elogio que você


me dá.

Kim não responde de imediato, mas posso ver uma ou outra coisa
passando pela sua mente. Ele é muito transparente. Isso é perigoso... para
ele mesmo.

Será que tem ideia do que homens como eu podem fazer com homens
como ele?
Toco os fios lisos e macios nas laterais de sua cabeça, inclino-me até
ele. Sinto o cheiro suave, fresco, de seu cabelo.

Ele termina com o último botão da minha camisa e a abre em um


supetão. O barulho peculiar de tecido rasgando ecoa pelo escritório. Kim
curva-se para trás e me puxa junto. Sento na mesa. Ele desliza o terno e a
camisa pelos meus braços. Tudo o que faço é movimentar um pouco os
ombros, garantindo que seu olhar esteja totalmente focado em mim.

Desenlaço as pernas de sua cintura e as deslizo por suas coxas. Ele


espalma uma mão larga no meu peito. O golpe é fraco, mas me faz sibilar,
perder um pouco do equilíbrio.

Kim aperta meu peitoral, o músculo inteiro cabe em sua palma.


Aproxima-se do meu ouvido e sussurra:

— Agora é hora de você retribuir me dando outra coisa.

— E o que seria isso?

Ele não se afasta, nem vira o rosto para me encarar. Na antecipação


de sua resposta, sinto um toque suave na minha calça. Ele é rápido ao abrir o
zíper, puxando-o para baixo delicadamente. A cada segundo, meu coração
acelera. A cada segundo, me sinto mais exposto a ele. A cada segundo,
meus joelhos fraquejam mais.

Quando o zíper está totalmente aberto, ele me empurra para trás.


Minhas costas voltam a tocar a mesa, mas Kim não se debruça sobre mim.
Permanece de pé. Seu rosto está fechado, distante, como se se forçasse a
fazer algo.

Suas mãos tocam o cós da minha calça e a barra da minha cueca e os


puxam para baixo de uma vez só. Meu pau ereto pula para fora e descansa
sobre a pelve. Vejo, com certo horror, o líquido pré-ejaculatório acumulado na
abertura da cabeça.

Estou perdendo o controle sobre mim mesmo?

As pontas de seus dedos roçam meu quadril, minhas coxas, meu


joelho e minhas panturrilhas. Ele se abaixa no chão, fazendo as peças
passarem pelos meus tornozelos, pelos meus pés. Apoio-me nos cotovelos
para observá-lo. Kim atira a calça e a cueca para trás com desdém e
desamarra os nós do meu sapato. Em alguns segundos, também estão
voando para trás.

Levanta-se — a respiração lenta, o peito desnudo estufado, o queixo


erguido como o de um animal orgulhoso pela nova presa.

Sequer desconfia de que sou eu que o estou predando neste


momento?

Sem desviar o olhar do meu, ele segura minhas coxas e as inclina para
trás, dobrando meus joelhos, me expondo completamente a ele. Aproxima
uma mão dos meus lábios, dois de seus dedos invadem minha boca
apressadamente. Chupo os dois como fiz com o polegar. Quando deslizam
para fora, estão encharcados de saliva. Kim não demonstra qualquer reação.
Os dedos viajam diretamente dos meus lábios à entrada entre minhas pernas.
Meu estômago queima pela antecipação.

Ele brinca no exterior por alguns segundos: as pontas dos dedos


circulam o orifício, fazem meus joelhos enfraquecerem mais, estimulam uma
sensação prazerosamente confusa que deixa minha ereção dolorida. O
líquido pré-gozo flui de maneira mais abundante enquanto ele prolonga esse
jogo. Quando estou pronto para fazer um comentário cínico e pedir que
termine logo com isso, os dedos me penetram de uma única vez.

Curvo a nuca para trás e aperto os olhos. Meus ombros enrijecem,


mas relaxam em seguida. Tê-lo dentro de mim desse jeito é diferente da
sensação que tive na noite anterior — não é doloroso ou desconfortável. Meu
corpo se ajusta lentamente à sua presença.

Os dedos se movem para dentro e para fora lentamente, uma vez


profunda, outra superficial. Kim os retira e me penetra totalmente uma
segunda vez, em um ângulo novo — um ângulo que o faz tocar minha
próstata. Suspiro. Me contorço à frente. A sensação é próxima à de gozar,
mas o filho da puta não tocou meu pau por uma vez sequer.

— Hmmm... — passo a ponta da língua pelos lábios — Kim...

Ele observa cuidadosamente minhas reações a seus movimentos com


essa expressão sóbria, vazia — que me deixa com ainda mais tesão. Minha
mandíbula está tensa. Inúmeras provocações se acumulam na minha
garganta, mas as engulo quando ele toca minha próstata uma segunda vez.
Continua estimulando-a sem me dar descanso.
Fecho os olhos. Ao invés de provocações, o que deixa meus lábios
são gemidos e grunhidos. Tento abafá-los — sem sucesso.

— Apesar de ser só a segunda vez... — ouço a voz grossa pela


primeira vez desde que seus dedos me penetraram —, você está mais
relaxado.

Cerro os punhos diante de seu tom presunçoso. Abro os olhos e o


encaro.

Ele descansa a mão livre sobre meu abdome, os dedos da outra


afundam-se em mim.

— Vou conseguir te comer sem lubrificante dessa vez — diz. — Sem


muitos problemas.

Movo o quadril em direção aos seus dedos. Arrasto uma das pernas
pelo seu torso desnudo, até descansar o tornozelo em seu ombro. Ele
acaricia meu pé com a bochecha. Traço o contorno de sua sobrancelha com
o dedão.

— Sem muitos problemas pra você, quer dizer — replico. — Por que
está tão tagarela hoje?

Os dedos entram fundo outra vez, minha perna desliza pela lateral de
seu corpo. Ele se deita sobre mim. Apoia o cotovelo ao lado do meu rosto,
responde com certa ferocidade:

— Só falo desse jeito quando sou provocado.

Deslizo a perna pelo seu abdome, toco sua bunda. Tento puxá-lo para
mais perto. Kim é uma parede, no entanto. Não se move a não ser que
queira.

Roça o nariz no meu. Está tão perto de mim que contemplo a


possibilidade de sentir o gosto de sua boca outra vez, de deixar esse hétero
confuso sanar seu desejo. Porém, sinto uma dor abrupta e lancinante.

— Ah! — grito quando o terceiro dedo me penetra. Tento empurrá-lo


para longe, mas Kim não se move. — Filho da puta. — Agarro seus ombros,
enfio as unhas na sua carne. Espero meu corpo se ajustar. — Posso te matar,
sabia disso? — ameaço.

Ele finge não ouvir.


Aperto seus ombros com mais força. Após alguns segundos, me
acostumo o suficiente para deixar um suspiro prazeroso escapar.

Kim traça a lateral do meu rosto e do meu pescoço com beijos suaves
— beijos que me acalmam. Quando chega ao ombro, para. Seus dedos
deslizam para fora e ele se afasta, volta a ficar em pé. Não consigo desviar o
olhar, é como se uma corrente magnética me prendesse aos traços brutos e
jovens de seu rosto.

Ele retira o cinto, abre o zíper da calça e a desliza para baixo. Tudo
lentamente, tudo sem piscar uma vez, tudo enquanto meu corpo treme por
desejo, por desejo dele.

Mais magnético do que seu olhar é seu pau. Meus olhos deslizam até
ele sem nem perceber. Sob a cueca branca, vejo claramente o desenho do
membro. As veias, a cabeça, o espaço sensível entre a cabeça e o corpo, a
abertura de onde uma ou outra gota de pré-gozo escapou e umedeceu o
tecido, a protuberância circular dos testículos.

Não há novidades aqui. Já vi tudo isso na noite passada. Mesmo


assim... é como se não tivesse, como se o visse pela primeira vez, como se o
homem em minha frente fosse diferente do que mantive amarrado na cama
por três dias.

Kim inclina o pescoço para o lado, observando minha expressão


contemplativa direcionada ao seu pau. Ele toca a cabeça sobre a cueca,
esfrega o polegar na região sensível logo abaixo.

Aperte o polegar na cabeça, minha própria frase ecoa na minha mente.


Treiná-lo está sendo mais fácil do que pensei que seria.

Kim toca meu queixo e faz nossos olhares se encontrarem. Mais do


que isso, puxa minha mandíbula para frente. Sou obrigado a deslizar para
fora da mesa e ficar em pé, assim como ele. Meu pau exposto, dolorido pela
tensão, encosta no dele sob a cueca.

Com nossos rostos bem próximos, ele murmura em um tom grave,


profundo, fanho:

— Vire pra mim.


QUE TIPO DE DONO VOCÊ É?
eu posso te foder melhor que ela
two weeks — fka twigs

IM ME PENETRA COM UMA velocidade calculada. Não quer me machucar,


K
mas não tem intenção de ser tão retraído quanto ontem. É lento, mas não
tímido. Firme, mas não agressivo. Sinto cada centímetro do seu pau me
abrindo; meus músculos reclamam pela invasão, mas se ajustam logo depois.

Ele me penetra um pouco, depois recua um pouco. Me penetra um


pouco, recua um pouco. Se aprofunda centímetro por centímetro a cada
estocada, o pré-gozo e minha saliva lubrificam o atrito. Um calor
excitantemente doloroso se espalha no meu interior.

Agarro a mesa e engulo um grunhido toda vez que o sinto se


aprofundar mais, toda vez que sua cintura se aproxima da minha. Minha testa
está suada; minhas costas, encharcadas. Gotículas espalham-se sobre mim.
Observo-as se acumularem, formarem gotas maiores. Algumas deslizam pelo
meu cabelo, param nos lábios. O gosto é salgado e agradável, complementa
a sensação febril que tenho da cintura para baixo.

Estico o pescoço para trás para observar Kim.

Há suor acumulado no peito dele, seus olhos estão cerrados e seu


rosto, contraído numa expressão de prazer controlado. Os lábios estão
apertados fortemente; o cenho, vincado; a respiração, lenta e profunda,
entrecortada quando ele tenta reprimir os próprios gemidos. É a expressão
mais atraente que já vi em seu rosto. Kim tem uma trilha de pelos no peito
que desce pelo centro do abdome, passa por seu umbigo e se mistura no
baixo-ventre aos pelos pubianos.

Uma mão segura meus quadris; a outra, meus ombros. Curvo a perna
esquerda sobre a mesa, estico a direita até o chão. Meu pau é esmagado
delicadamente contra a mesa, num ângulo que não me permite tocá-lo, mas
não incomoda.

As veias em sua testa dilatam quando ele se aprofunda em mim,


relaxam quando se afasta. Os músculos contraem enquanto seu corpo inteiro
ondula nesse vai e vem firme e contínuo. Suor também pinga de seus fios,
algumas gotas respingam sobre minha lombar.

Entreabro os lábios. Quero provar seu suor.

Ele abre os olhos, encara meu rosto molhado. Meu corpo esquenta
sob suas mãos; em resposta, elas me apertam com mais força. Seus
movimentos lentamente se tornam mais intensos, o pau começa a entrar até
a base. Seu quadril se impulsiona contra o meu com cada vez mais
ansiedade, mais violência. O som de nossas peles se chocando é alto e
obsceno. Espero que o jovem Noah esteja bem longe da porta do escritório.

Sem desviar nossos olhares, deslizo o peito até a mesa, arqueio as


costas, elevo o quadril em sua direção, me exponho ainda mais — se isso
sequer é possível.

Meu ajuste melhora o ângulo da penetração.

— Hmm... — o gemido escapa. Ele pressiona e desliza sobre minha


próstata de maneira mais intensa. — Hm... — Mordo o lábio, tentando conter
os malditos gemidos, mas é impossível.

Fecho os punhos mais fortemente, frustrado com minha falta de


controle. Afasto o olhar dele, fito a poça de suor acumulado sob mim.

Ele intensifica as estocadas. A mesa range toda vez que seu quadril se
choca com a minha bunda. Preciso trincar os dentes para não acabar
gritando.

Kim se inclina sobre mim e fecha as mãos no meu pescoço, puxa


minha cabeça para trás. Fica parado, enterrado no meu interior, e murmura
no meu ouvido:

— Gosta quando eu aperto bem aqui, não gosta?

Se move para trás, até pressionar o local sensível dentro de mim.

— Hmm... — o grunhido me escapa.


Soco a mesa. Mesmo sem encará-lo, posso ver o sorriso de satisfação
no seu rosto.

— Achei que sim.

— Seu cão idiota.

Roça a ponta do nariz em minha nuca, beija meu pescoço. Crava os


dentes na carne e suga a pele. Quando se afasta, sei que deixou uma marca
ali.

Empurro-o para o lado com o ombro. Curvo o pescoço para trás. Fito-
o.

— Não fique arrogante.

Um sorriso perigoso se desenha em seus lábios.

— Não se preocupe, não sou você. — Volta a ficar em pé. Me fode


mais rapidamente, tão rapidamente que a dor começa a superar o prazer.

— Ah! — grito em uma estocada particularmente dolorosa.

Jogo um dos braços para trás e fecho o punho em seu peito, o impeço
de continuar. Me movo para frente sem perceber, tentando fugir da
penetração.

Kim fica parado, seu coração acelera sob o meu punho.

— Quer que eu pare? — pergunta.

— Não, não, só... — Afasto a mão de seu torso e esfrego o rosto.


Parado, o desconforto vai embora. — Vai com mais calma.

Encaro-o sobre os ombros. Kim assente. Segura as laterais do meu


quadril e se retira de mim lentamente. Me vira sobre a mesa. Deito de bruços,
ergo as pernas, enrolo-as em sua cintura. Seu rosto fica distante outra vez,
me observa com certa cautela. Segura minha perna no ar com uma mão,
acaricia meu corpo com a outra. Seus dedos passeiam por meu pescoço,
peitoral, abdome, pelve, fecham-se ao redor do pau, me masturbam
delicadamente — mais delicadamente do que quando masturbaram ele
mesmo na noite passada.

Seu rosto não mente: ele está chateado por ter me causado dor, e
agora está tentando me agradar. Que cão bem treinado.
— Você tá diferente hoje — comento. Encontro suas íris escuras: —
Parece que comprou a história do cão e entrou no cio.

— Só quero pagar logo minha dívida.

— Só isso?

— Só.

Se inclina sobre mim e me beija. Não larga meu membro por um


segundo. Seu pau encosta na minha bunda. Seu gosto me inebria.

Quando nos separamos, ele sussurra:

— Posso te enforcar?

Espalmo seu peito e o afasto. Fico tenso instintivamente. Me lembro da


sensação de quase-morte da noite passada, do horror ao ver as marcas no
meu pescoço mais tarde, do horror ainda maior ao vê-las se tornarem mais
escuras, da ansiedade para cobri-las hoje de manhã.

Encaro-o com desconfiança, mas não vejo segundas intenções em seu


rosto, apenas um brilho apagado de desejo — desejo de me enforcar. Um
calafrio atravessa minha espinha.

Seu pau força um pouco a entrada, mas sem penetrar. A umidade do


pré-gozo me deixa ansioso por tê-lo em mim outra vez.

Posso te enforcar?

A pergunta reverbera em minha mente.

Posso te enforcar?

Não posso ser hipócrita comigo mesmo e dizer que não gostei de seus
dedos rudes e grossos ao redor da minha garganta.

Posso te enforcar?

E se Kim perder o controle de novo? E se eu não conseguir encobrir as


marcas da próxima vez?

Posso te enforcar?

Devo deixá-lo me enforcar? Ele sequer merece fazer isso?


Posso te enforcar?

O telefone toca.

Me volto para ele bruscamente. Kim se sobressalta e se afasta, os


olhos arregalados na direção dos bipes irritantes. Vê-lo assustado abre um
sorriso divertido nos meus lábios. Sento na mesa. Estico o braço até o
telefone. Retiro-o do gancho.

— Sr. Goldman? — a voz melódica de Stacy soa do outro lado.

Reviro os olhos. Encaro Kim quando respondo:

— Achei que tinha deixado bem claro que eu não deveria ser
incomodado enquanto estivesse com meu chofer. É melhor ter uma
justificativa muito boa para fazer isso agora, ou uma nova vaga de secretária
será aberta ainda esta tarde.

Kim semicerra os olhos ao ouvir a palavra chofer. Ergo uma


sobrancelha em resposta. Ele pisca longamente, suspira e vira de costas, me
dando uma visão excepcional de sua bunda pálida. Ele apanha suas roupas
do chão, veste as peças de baixo. Senta na poltrona mais próxima, de frente
para mim, com o zíper da calça ainda aberto. Seu pau ainda rijo se projeta
para fora, sob a cueca, de maneira convidativa.

— Mil desculpas, senhor. É que uma situação urgente surgiu neste


momento, e não creio que seja possível adiá-la.

— Que situação?

— Brianna solicitou a antecipação da reunião do Conselho para


discutir as negociações com a UE.

— Essa reunião deveria acontecer só semana que vem.

— Sua tia acha que a iminente crise do euro vale uma discussão em
caráter emergencial.

Uma risada amarga deixa minha garganta.

Isso faz bem o estilo dela, aproveitando-se de pessoas em seu


momento de maior vulnerabilidade. Acho que se cansou de homens,
mulheres, e agora está planejando destruir governos também.
— A reunião acontecerá na sala do Conselho no trigésimo andar em
quinze minutos — Stacy completa.

— Obrigado.

Desligo o telefone, coloco-o de volta no gancho. Permaneço sentado


na mesa, minhas pernas balançando enquanto Kim me fita, descontente.

— Vai me deixar assim? — Indico meu pau exposto com o olhar.

Ele fica parado por alguns segundos, mas não consegue ignorar a
ordem implícita no meu olhar. Apanha minha camisa branca do chão e a
coloca sobre meus ombros, encobrindo parte da minha nudez.

— A calça também, Kim. Vou parecer um chefe pouco profissional se


meus funcionários me verem com o pau de fora.

Ele bufa, mas, como antes, me obedece.

— Bom garoto.

— Não sou um garoto — rebate exatamente como um garoto o faria.


Em seguida, volta à poltrona.

Calço meus sapatos e passo o terno por cima da camisa. Abotoo as


mangas, alinho a lapela. Dou um nó na gravata. Arrumo meus fios,
penteando-os para o lado. Kim me observa atentamente.

— Sobre o que era a ligação? Por que precisa sair?

— Se achasse que você precisa saber, teria falado.

Ele revira os olhos, rindo sem humor.

— Você é tão mais agradável quando tá gemendo.

— E você não é agradável em momento algum, então acho que ganha


nesse jogo. Agora, vista-se. Não quer que o seu irmão testemunhe em
primeira mão a bagunça que eu fiz com você, quer?

Nega com a cabeça, irritado, e me obedece pela terceira vez. Em


alguns segundos, está vestido. O terno feio e barato em condições ainda
piores do que as que entrou aqui.

Apanho meu celular, guardo-o no bolso. Afasto-me da mesa e caminho


em direção à porta.
— Venha comigo — chamo.

Kim segura meu braço, impedindo-me de continuar.

— Pra onde?

— Vai descobrir em breve.

Ele se aproxima mais. Seu corpo projeta uma sombra sobre mim, seus
lábios aproximam-se do meu ouvido:

— E você vai me deixar assim? — Leva minha mão até seu pau. —
Que tipo de dono você é?

Inspiro fundo. Tateio sua ereção sobre o tecido.

— Você vai me esperar no carro. Desço em uma, talvez duas horas, e


preciso que me leve até um lugar. Se se comportar bem — toco a lateral de
seu rosto e beijo o canto de sua boca —, te darei um prêmio. Caso contrário,
terei que te punir. — Puxo minha mão e me afasto. — Agora, vamos. A puta
da minha tia tá me esperando.
24/7
te tenho na palma da minha mão
vou te dizer o que você quer ouvir
e ficar preso na sua mente
te viciando, te fazendo chorar
essa não é uma luta justa
estou ganhando de você
[...]
porque eu sei fazer o Diabo chorar
sei quebrá-lo enquanto ele olha nos meus olhos
é isso que vou fazer com você hoje
bad boy — red velvet

AIO DO PRÉDIO DA GOLDMAN e coloco meus óculos escuros no rosto. São


S
quase 14h da tarde, o sol está a pino. A reunião com Brianna foi infindável,
mas produtiva. Todo caos é uma oportunidade. Com a crise na Europa e a
queda dos valores da libra e do euro, a Goldman tem uma vantagem valiosa
para negociar as regulações que até agora nos castram no continente. Até o
final do ano, cresceremos de forma agressiva no berço do capitalismo. Bom.

Vejo o sedan estacionado logo do outro lado da rua, e um certo chofer


encostado na lataria, o semblante distraído, os ombros levemente curvados à
frente, as mãos escondidas nos bolsos. Exala tranquilidade e paciência. Não
duvido que não tenha saído de perto do carro por um momento sequer
enquanto estive na reunião. Até agora, ele se mostrou bom em acatar ordens.
Talvez seja algo no sangue dos Henney.

Kim finalmente me nota, logo abandona a postura relaxada. Cruzo a


rua. Surpreendentemente, ele abre a porta do passageiro para mim e a
segura aberta.

— Olha só, alguém aqui aprende rápido. — Entro no carro. Ele fecha a
porta e se dirige ao banco do motorista. Coloca a chave na ignição.

— Como foi sua reunião?


Respiro fundo.

— Longa e complicada. Provavelmente complicada demais pra um


chofer sem Ensino Superior entender.

Vejo-o apertar o volante, irritado com a provocação. Perturbá-lo é


sempre satisfatório. Sou um pouco elitista, o que posso fazer?

— Qual o endereço? — pergunta um pouco mais ríspido.

— Antes de darmos partida, preciso te dar uma coisa.

— Não acho que foder no meio da rua seja uma boa ideia.

— Você não consegue mesmo pensar com a cabeça de cima, não é?


Abra o porta-luvas.

Ele fita o pequeno compartimento fechado por alguns segundos,


desconfiado, e então o abre.

— Que merda é essa?

Apanha o embrulho retangular que guardei ali alguns dias atrás. Ele o
vira de um lado para o outro com algum interesse. Nossos olhares se cruzam
pelo retrovisor.

— Abra e descubra.

E ele o faz, rasgando o embrulho. Suas sobrancelhas grossas se


arqueiam diante da caixa branca — especialmente, diante de seu conteúdo.

Solto uma lufada de ar pela boca.

— É um aparelho especial. Apenas eu tenho acesso ao número, e


meu número é o único na lista de contatos. Então, sempre que esse celular
tocar... atenda, não importa o que esteja fazendo — explico sério, inflexível.
— E não o use pra qualquer outro fim.

Kim me fita com os lábios contraídos.

— Preciso que esteja disponível 24h por dia, Kim.

Ele liga o aparelho e o devolve ao porta-luvas.

— Então seria melhor ter me deixado amarrado na sua cama.


— É, talvez. Agora, deixe de conversa fiada e faça seu trabalho.
Temos algo a comprar.
UM HOMEM PODEROSO
eu quero você de joelhos esta noite
quero tornar seus sonhos realidade
quero que anseie por mim, que seja meu
[...]
eu quero o seu toque, o seu beijo
quero seu amor bruto, seu medo, sua vida, sua mente
eu quero tudo
i want it all — bonnie mckee

S TA C I O N O E M F R E N T E A O P R É D I O que ele indicou.


E
— Vai comprar roupas? — pergunto, analisando a fachada bege e o
letreiro dourado da marca de grife.

— Sim — Jude responde despreocupadamente e guarda o celular no


bolso do interior do terno. Passou a viagem inteira distraído com o aparelho.
— Mas pra você.

— O quê? — Desligo o carro e guardo a chave.

Uma risadinha sarcástica deixa seus lábios.

— Não espera que eu permita que você trabalhe pra mim vestido
nisso, não é? — Indica meu terno com um levantar das sobrancelhas. —
Como você disse que não tem mais nenhum, não temos outra opção.

— Meu terno não é tão ruim assim.

— Poderia esfregar o chão do meu banheiro com ele.

— Ninguém dá a mínima pra esse tipo de merda.

— Eu dou a mínima. E quer saber? — Retira o cinto de segurança. —


Sou o único que precisa se importar.

— Você... — Soco o volante do carro.


— Qual o problema?

— Tem prazer em me humilhar?

— É claro que tenho. Você é tão importante pra mim quanto um


pedaço de carne — responde sem hesitação. Meu sangue ferve. Maldito. —
Mas não estou te humilhando. Kim, eu tô te ajudando.

— Ajudando?

— Sim. Seu irmão estava mais bem vestido do que você. Isso não te
incomoda?

— Eu... Eu... — Luto para encontrar as palavras certas. — Eu não


consigo entender o cenário que se passa na sua cabeça pra você imaginar
que isso possa me incomodar. É claro que eu quero que ele se vista melhor.
Eu amo ele. Eu não me importo com essa merda. Não tô aqui pra me mostrar,
pra provar nada pra ninguém. Não me importo com esse tipo de futilidade.
Não sou você.

Jude morde o lábio inferior e respira fundo. Desvia o olhar para a


fachada do prédio lá fora, fitando-o através da janela.

— Bem... não é como se tivesse escolha. Ou compramos um terno


novo, ou não vai trabalhar pra mim.

— Ótimo. Eu nunca quis trabalhar pra você.

Esfrega o queixo com o polegar e me encara.

— Não consegue entender o que estou dizendo? — rebate, mais baixo


e austero. — Se você deixar de ser meu chofer, vai romper seu contrato. Se o
contrato for rompido, você volta direto praquela fossa de onde eu te tirei,
dessa vez sem escapatória. — Minha respiração se descompassa. A fúria
impulsiva dentro de mim é substituída por um temor angustiante. Meus olhos
se perdem no painel do carro. — Olhe pra mim — Jude comanda, e obedeço
por instinto. — É isso que você quer? Quer voltar pros Snakes, pra que eles
façam todas as atrocidades que, segundo você mesmo, são muito piores do
que qualquer coisa que eu jamais poderia fazer?

Sinto-me empalidecer. Seu estúpido, estúpido miserável. Precisa


aprender a controlar a boca quando estiver com ele.
— Me responda, Kim — grita, a respiração pesada, como se estivesse
hiperventilando. Apenas agora percebo o leve tremor em sua mandíbula. — É
isso que quer?

— Não — murmuro, seco e fraco, e uma bola de frustração fica presa


em minha garganta.

— Então, puta que pariu, demonstre. A impressão que tenho é de que


está desesperado pra cair de volta nas garras deles. Cale a boca, abra a
porta do carro pra mim, e escolha um maldito terno na porra da loja pra
parecer minimamente decente.

Se entrarem por aquela porta pra cobrar alguma merda de dívida que
você me deixou, não vão me pegar vivo, entendeu?

Cerro os dentes. Engulo meu orgulho, minha indignação, minha


revolta. Preciso ser mais cuidadoso. Por Noah.

— Sim, senhor.

Saio do carro e abro a porta de Jude. Ele fecha o terno e caminha para
o interior da loja. Sigo-o logo atrás.

O andar é gigantesco, conectado ao segundo por uma escada circular


espantosa bem no centro, que mais parece uma obra arquitetônica. A
iluminação alaranjada e rosa ao redor me transmite tranquilidade. Ao fundo,
há música clássica tocando. Manequins e peças de mostruário estão
espalhadas em todas as direções, criando uma espécie de labirinto. Ternos,
blazers, camisas de linho, de alfaiataria, sapatos, gravatas. Consigo distinguir
até algumas peças de seda — do tipo que se vê nos filmes. Somente roupas
masculinas, percebo.

Há outros clientes na loja, mas poucos e esparsos. Dando uma olhada


rápida nos valores nas etiquetas, não é difícil entender o porquê.

— Buon pomeriggio, signori — um funcionário se aproxima, vestido


num delicado conjunto de alfaiataria branco. — Sr. Goldman — abre um
sorriso largo ao reconhecer o desgraçado —, é sempre um piacere tê-lo na
Armani da 5th Avenue. Come posso ajudá-lo questa vez?

— O prazer é sempre meu, Giovanni — Jude cumprimenta-o. Logo


depois, esconde as mãos nos bolsos e me fita sobre os ombros com um
sorrisinho sugestivo. Afasta-se, deixando o caminho livre entre mim e o
funcionário. — Como pode ver, meu assunto é um tanto urgente. Meu amigo
aqui está procurando por um terno fino, mas que possa ser usado no dia a
dia. Algo adequado para um chofer de luxo.

Chofer de luxo? É de foder mesmo, viu?

Limpo a garganta, desconfortável pela súbita atenção voltada a mim. O


funcionário praticamente me escaneia com os olhos, dos pés à cabeça.
Permanece um tempo particularmente longo no meu terno, fazendo um bico
feio com os lábios secos que me dá vontade de esmurrá-lo até vê-lo sangrar
por todos os orifícios do rosto.

— Capito — é tudo o que o homem italiano levemente grisalho diz.


Apanha uma fita métrica corporal de um dos bolsos e aproxima-se de mim. —
Pode erguer os braços, per favore? — Faço como o pedido. Ele tira as
medidas dos meus dois braços, pescoço, peito e abdome. Quando finaliza,
guarda a fita e volta-se a Jude: — Un maschio forte, um físico admirável. Pela
cor de pele e de cabelo, acho que uma peça inteiramente preta ficará
perfetta. — Bate com a fita no próprio queixo enquanto dá voltas no próprio
eixo, olhando pra cima, com uma expressão de reflexão. — Já tenho alguns
modelos in mente. — Ele se afasta.

— Siga-o — Jude comanda, indicando o italiano com o queixo.

Reviro os olhos e caminho atrás do funcionário. Goldman segue no


meu encalço, tenho a impressão de vê-lo suspirar vez ou outra. Talvez esteja
entediado.

Subimos na estranha e imensa escada circular. O italiano está


apressado. Chegamos ao segundo andar e nos aproximamos de uma seção
onde há somente ternos pretos. Giovanni passeia entre alguns manequins
até finalmente parar em um específico. Cuidadosamente, despe o boneco de
sua vestimenta mais externa, e a pendura em um cabide próximo. Estende-a
contra mim. Jude aproxima-se dele e, juntos, analisam a peça em contraste
ao meu corpo.

— Cosa ne pensi?

— Realmente — Jude balbucia baixo, um tanto embasbacado —,


perfeita. — Seu olhar me penetra de uma forma peculiar.

Movo a mandíbula de um lado pro outro e curvo a nuca para baixo,


tentando afastar meu desconforto.
O italiano entrega o terno a Jude, que o entrega a mim. Enquanto o
funcionário procura as peças complementares ao terno no estoque — talvez
para não deixar o manequim completamente nu —, Goldman senta-se numa
poltrona acobreada, sem retirar o olhar de mim por um momento sequer.

Vejo o preço do terno na etiqueta.

— Mas que porra...? — murmuro com os olhos arregalados.

— O que foi?

— Eu não posso pagar por essa merda.

Ele ergue uma sobrancelha.

— E eu falei que precisaria pagar? — replica num tom carregado,


envolvente.

— Vai me presentear?

Os cantos de seus lábios se elevam. Ele repousa um cotovelo sobre o


apoio da poltrona e segura o queixo, fitando-me de baixo com um cintilar de
maldade nas íris azuis.

— Não. Já gastei demais com você. Vou descontar o valor do seu


próximo salário.

Esfrego o tecido caro e macio entre meus dedos. Miro-o com certo
desgosto.

— Não — replico. — Se for assim, ficarei sem boa parte do meu


salário, e não posso aceitar isso. Tenho que tomar conta do meu irmão,
guardar um pouco de... — me interrompo no meio da frase.

— Dinheiro? — Desperto sua curiosidade. — Por que quer guardar


dinheiro?

Inspiro fundo.

— Pra caso você resolva cobrar as coisas que Noah comprou no seu
cartão enquanto eu estava fora de casa.

E vejo um misto de surpresa e embaraço em seu semblante. Ele abre


os lábios, mas os fecha rapidamente. Leva alguns segundos até dizer:

— Isso sequer passou pela minha mente.


— Se há uma coisa que meu tempo no ringue me ensinou... — dobro o
terno — é estar sempre atento às dívidas da minha família.

Jude fica mais um tempo em silêncio. É impossível descobrir o que se


passa em sua mente. E, honestamente, não me importo. Esse melodrama
todo por causa de um maldito terno está me enchendo o saco. Vou comprar
um qualquer no caminho de volta para casa, nas lojas baratas longe do
centro, e assim daremos o assunto como encerrado. Antes de conseguir
declarar minha decisão, Jude se apressa:

— Esqueça aquele cartão, não há dívida alguma a ser paga por causa
dele. Tem minha palavra — afirma, soando honesto o suficiente para me fazer
vacilar. — Posso ser várias coisas abomináveis, mas sou um homem de
palavra, Kim Henney. — Estreito os olhos. — Também tem minha palavra de
que o valor do terno não será descontado do seu salário.

— E você não quer nada em troca?

Ele olha para o lado, pensativo.

— Talvez eu queira.

O italiano retorna com calças, uma camisa social preta, um cinto,


sapatos de couro, abotoadoras, uma gravata. Até mesmo um maldito fedora.

— Aqui está o conjunto completo, signor. — Entrega-os a mim. Não


tenho opção a não ser pegá-los, mesmo que a última frase de Jude ainda
esteja ecoando em minha mente. — Irei auxiliá-lo a vestir as peças. Per
favore, me acompanhe, o vestiário é por aqui. — Estende uma mão em
direção à ala de vestiários mais ao fundo no andar.

— Não — Jude interrompe e se ergue da poltrona. — Eu posso cuidar


disso. Grazie, Giovanni. — Troca um aperto de mãos e alguns tapas nas
costas do funcionário.

— Prego, signor Goldman. — O homem faz uma curta reverência e


abre caminho para que Jude tome a frente.

Goldman o faz, me chamando aos vestiários com um sutil gesto de


cabeça. Despeço-me do italiano com um sorriso desconfortável. Sigo o loiro.

O que ele está tramando agora?


Entramos em um dos provadores luxuosos da loja, numa porção do
andar particularmente imersa em penumbra. As cabines são vermelhas,
largas, e bem privadas, guardadas por uma cortina grossa cada uma. Em seu
interior, há um espelho enorme, que sozinho ocupa uma das paredes. Há um
estofado acoplado a cada uma das outras duas paredes, ganchos e
mesinhas espalhados ao redor para o descanso das peças.

Jude entra primeiro e se senta em um dos estofados. Fecho a cortina e


deixo as roupas sobre uma das mesas.

— Acha que pode fazer um trabalho melhor do que o seu amigo lá


fora?

— Ele é só um velho pervertido que adora ver caras como você de


cueca.

— Está sendo mau.

— Eu sei.

Cruzo os braços. Encaro-o de cima.

— Vai mesmo me assistir trocar de roupa? — sussurro.

Vejo-o se preparar para dar uma resposta instantânea e provavelmente


assertiva, mas então observo essa mesma resposta se desmanchar em sua
garganta. Jude não me responde de imediato. Ao invés disso, desvia o olhar
para baixo, como se estivesse acuado, freando o impulso de me contrariar.
Seus olhos não retornam a mim ao responder baixinho:

— Não, não vou. — Entrelaça os dedos e apoia os cotovelos nos


joelhos. — A menos que queira. Se quiser que eu saia, diga, e sairei. Se
quiser que eu fique, ficarei. — Me fita. — A escolha é sua. Nessa cabine, e
somente nessa cabine, farei o que você quiser.

Analiso seus olhos solícitos, sua expressão condescendente, a postura


servil. Os fios amarelos perfeitamente alinhados para um lado da cabeça. Os
lábios rosados levemente entreabertos. Ele realmente se sentiu mal pelo
assunto do cartão?

— Tudo o que eu quiser?

— Desde que não seja nada absurdo.


— Tenho alguns parafusos soltos, não se lembra?

Arranco uma risadinha dele.

— Sim. E eu tenho também.

Esfrego minha barba por fazer, os olhos fixos nele. Um calor estranho
espalha-se em minhas entranhas, meu coração dispara sem razão aparente.

— Você disse que, se eu me comportasse, me daria um prêmio —


relembro.

— Sim.

— E qual é esse prêmio?

Ele se levanta e se aproxima lentamente.

— Qualquer coisa que quiser — murmura lânguido. — O que quiser, e


estiver nas minhas mãos, vou te dar.

Nossos peitos roçam.

— Me comportei. Esperei por você no carro como pediu. Então mereço


um prêmio, não acha?

Jude assente.

— O que você quer?

Aproximo nossos rostos.

— Sabe o que eu quero — digo, incisivo, agressivo.

Ele não recua. Permanece fitando o fundo dos meus olhos.

— Quebrar o contrato é a única coisa que não posso fazer, sinto muito.

Umedeço os lábios.

— Não, não sente.

— Nem um pouco.

Agarro sua bunda e encerro a distância entre nossos corpos


definitivamente. Encaro sua boca tenra, lisa, suplicante por algo que a
preencha.
— Um beijo, então — digo tão próximo que consigo sentir sua
respiração.

Goldman toca meus braços, e então sobe as mãos aos meus ombros,
meu pescoço. Por fim, repousa-as no meu rosto.

— Como queira.

E me puxa para nosso segundo beijo.

É mais afoito e intenso do que o primeiro, mais ávido também. Jude


não resiste desta vez. Pelo contrário, se entrega de inteiro, afogando a boca
na minha tão fortemente quanto consegue. Seguro sua cintura com uma mão.
Enfio a outra sob sua camisa, tocando a pele sensível de sua lombar,
navegando para dentro de sua calça em seguida. Ele suspira quando sente
meus dedos, apertando o quadril contra o meu. Preso sob a cueca, meu pau
duro reclama. Seus dedos agarram firmemente os fios da minha nuca, assim
como os meus o fazem na sua bunda.

Todos os pensamentos desaparecem da minha mente. Não sinto meus


pés. Sequer sei se estou respirando ou não. Concentro-me unicamente no
beijo, em sua saliva se misturando à minha, no calor que emana de seu
corpo. Minha língua explora sua boca, todos os cantos, de todas as formas. O
gosto etílico forte de antes ainda está aqui, me deixando ébrio. Como um filho
da puta desses pode ser tão gostoso?

No fim do beijo, Jude morde meu lábio inferior, puxando-o para cima
entre os dentes. A pele se rompe. A dor é pífia, mas o gosto metálico e forte
de sangue espalha-se em minha boca. Goldman admira sua travessura com
certo encanto. Passa a ponta da língua sobre meus lábios, saboreando
algumas das gotas rubras. Nossos olhares se encontram.

— Você gosta de me ver sangrar? — sussurro rouco, roçando o nariz


no dele.

— Quando estou com você — ele murmura quase sem voz —, não sei
mais o que gosto ou não gosto. Não sei mais quem sou.

Sorrio.

— Então estamos na mesma.

Seu polegar acaricia minha bochecha.


— Gostou do seu prêmio?

Aproximo-me de seu ouvido:

— Achei que iria ficar satisfeito com um beijo, mas estava enganado.

— Você ganhou um terno e um beijo hoje, Kim. Não acha que está
sendo ganancioso? Essa é uma das piores qualidades de um homem.

— Talvez. Mas também tenho uma das melhores — fito-o —:


compromisso com minhas dívidas. Você disse que talvez quisesse algo em
troca pelo terno...

— Aham.

— E o que seria isso?

Sua respiração se aprofunda.

— Algo que eu quero muito provar.

— O quê?

— Sua porra.

A forma resoluta e dissimulada com que responde me deixa


embasbacado por alguns segundos. Não há pudor algum em seu olhar, ou
hesitação em seu corpo. Um rubor tímido espalha-se em seu pescoço — se
de constrangimento ou de tesão, não consigo discernir.

Encaro seus lábios vermelhos entreabertos, maculados pelo meu


sangue. Algo quente espalha-se no meu peito, um vazio toma conta do meu
estômago. Começo a suar. Meu pau pulsa.

— Você ainda não disse se quer que eu fique — murmura tenso diante
do meu silêncio.

Dou alguns passos para trás, aproximando-me do enorme espelho da


cabine, sem desviar a atenção de Jude uma única vez.

— Vou te falar o que quero. — Retiro o terno velho do meu pai e atiro-o
para o lado. — Quero que me ajude a trocar de roupa, a colocar o terno que
vai comprar pra mim. Se fizer um trabalho tão bom quanto seu amigo
pervertido lá fora faria, vou gozar na sua boca.
Goldman inclina o pescoço para o lado, analisando minha proposta,
examinando minhas intenções.

— O que tá esperando pra começar? — Ergo as sobrancelhas. —


Minha camisa não vai se desabotoar sozinha.

Jude se aproxima calma e silenciosamente, como um animal calteloso.


Os olhos dissimulados não se afastam dos meus.

Sem dizer uma palavra, começa abrindo os botões das mangas, então
parte para o meu colarinho. Os dedos manhosos deslizam sobre a camisa
como se quisessem esticar a tarefa; tateiam o botão mais superior na parte
da frente, e o abrem. Então o segundo, o terceiro, o sétimo. Meu torso e
abdome ficam expostos. Goldman puxa o tecido preso dentro da minha calça
para fora e, sem cerimônia, empurra a camisa para trás, fazendo-a cair pelos
meus ombros, costas e braços. A peça repousa no chão com um baque
surdo.

Jude me encara um tanto indeciso.

— Tire o meu cinto agora — comando.

Ele obedece instantaneamente, trabalhando rápido. Apenas a


insinuação de sua mão em minha pelve é o suficiente para me alucinar.
Quando cola o peito ao meu e retira o cinto dos passantes traseiros, sinto que
posso explodir a qualquer momento. Ele respira com a boca aberta em meu
pescoço, e sei que está fazendo isso para me provocar. Seu filho da puta.

Retira o cinto e o atira para o lado com um pouco de violência. A fivela


bate na parede e produz um ruído alto.

— Sabe o que fazer agora.

Suas íris fixam-se na protuberância em minha calça. As digitais


margeiam o metal do botão e do zíper, as unhas deslizam sobre o tecido
grosso, roçando meu pau latejante. É quase uma tortura. Preciso de muito
autocontrole para continuar parado.

— Você tá me zoando.

— Agora que percebeu? — rebate, desdenhoso.

Os dedos finalmente abrem o botão, então o zíper da calça. Puxam-no


para baixo, libertando minha ereção de uma das camadas de tecido que
esmagavam-na. Jude arrasta a calça para baixo, ajoelha-se em minha frente.
A peça se enrola em meus tornozelos. Ele a larga para desamarrar meus
sapatos, que voam para trás em poucos segundos. Finalmente, ergo um pé
de cada vez, me livrando da calça.

Estou apenas de cueca em sua frente. Goldman me encara de baixo,


dócil e subserviente, muito diferente do homem que achei conhecer até
agora. Quando está com tesão, muito tesão, torna-se apenas uma putinha.
Talvez eu consiga tirar vantagem disso em outro momento, quando conseguir
pensar apenas com a cabeça de cima.

— O que está achando do meu serviço? — ele balbucia, manhoso.

— Uma merda. Mas ainda pode melhorar. — Aponto as peças


repousadas na mesa com o queixo. — Me vista.

Ele acata as ordens como um profissional. Pega a camisa social preta,


levanta-se do chão e a abre. Caminha até as minhas costas e me veste.
Abotoa a peça lenta e ardilosamente. Passa a gravata fina pelo meu pescoço
e dá o nó delicadamente, puxando-me alguns centímetros para frente quando
o faz. Nossas respirações se misturam. Há malícia em cada um de seus
movimentos, desejo reprimido nos olhos ardentemente azuis, obstinação no
rosto angulado coberto por penumbra.

A calça sobe pelas minhas pernas e se fecha na minha cintura. O cinto


se arrasta pelos passantes, e as mãos de Jude tocam minha bunda pela
primeira vez. A fivela é cerrada; minha ereção reclama. De joelhos, Goldman
me ajuda a calçar os sapatos de couro reluzentes. Por fim, apanha a peça
restante e novamente se posiciona às minhas costas. O terno passa pelos
meus ombros como a camisa. Jude se encarrega de fechar os botões da
frente. Quando termina, dá um passo para trás e observa o resultado. Abre a
boca, mas nenhum som escapa dela — está mudo, mudo e pasmo.

Viro e me encaro no espelho da cabine. Franzo o cenho, espantado


com a beleza do terno. Parece ter sido feito especialmente para mim,
delineado com cuidado ao redor dos meus músculos. Todas as peças são
pretas, mas de tons diferentes. O terno é de um tom preto profundo, mas
brilhante como petróleo. A camisa é de um preto lavado, mais próximo do
cinza. A calça tem a mesma cor do terno, apenas um pouco mais fosca. Os
sapatos são tão reluzentes quanto a peça principal. O reflexo no espelho é o
de uma pessoa completamente diferente — alguém corajoso e perigoso, que
jamais deixaria uma gangue de filhos da puta arrastá-lo para dentro de um
ringue clandestino, que nunca permitiria que seu irmão mais novo, a coisa
que mais estima no mundo, se sentisse inseguro e com medo.

Meu olhar cruza com o do Kim do outro lado. Eu quero ser como você.
Me ensine a ser você.

— Gostou? — Jude pergunta atrás de mim.

Muito, penso em dizer. Mas então reflito mais um pouco.

— É assim que um chofer de luxo se parece? — Encaro-o sobre os


ombros.

Goldman dá um passo em minha direção.

— Você parece muito mais do que um chofer — diz baixinho.

Viro-me para ele.

— Então pareço o quê?

Jude toca a lapela do terno, esfrega o tecido entre os dedos.

— Um homem poderoso.

Abro um sorriso pertinente.

— Não me toque — comando. Ele afasta a mão, surpreso. Dou um


passo para trás. — Você fez um trabalho decente com o terno, então merece
sua recompensa.

— Mereço?

— Sim. — Abro a calça, deslizo o zíper para baixo. — Agora, ajoelhe-


se. — Puxo meu pau duro para fora. — Vou foder sua boca.

O homem em minha frente estufa o peito e engole em seco. Excitação


queima em suas íris. Lentamente, ajoelha-se, o olhar preso ao meu. Toca
minha perna para tentar se equilibrar.

— Uh-uh — repreendo. — Sem tocar. Não me ouviu?

Ele acena e se retrai.


— Também não quero que fale nada até eu gozar. Depois que engolir
minha porra, a primeira coisa que vai dizer é qual gosto tem.

Jude pisca longamente, a pele pálida das bochechas mancha-se de


rosa. Abre a boca, os lábios vermelho-vivos úmidos e ansiosos. Há veias
saltadas em sua testa, determinação em seu olhar. Seguro meu membro pela
base com uma mão e, com a outra, agarro seus fios. Puxo-os para trás
fortemente, curvando sua nuca e testando sua capacidade de obediência.
Nem um ruído sequer escapa de sua garganta.

— Bom garoto.

Aproximo a cabeça do pau de sua boca. Ele fecha os olhos em


resposta. Esfrego a extremidade no lábio inferior, no superior, e então no
rosto inteiro. Descanso o membro sobre sua face, cobrindo-a. O corpo roça
em sua bochecha, seu queixo toca minhas bolas.

— Você fica lindo desse jeito. — Nossos olhares se encontram. —


Queria que ficasse sempre assim, com meu pau na sua cara. Talvez parasse
de ser um cuzão tão grande. Sabe o que meu irmão falou sobre você? —
Arqueio uma sobrancelha. — Que você é frio, estranho. Que ninguém te
conhece de verdade, nem a pobre da sua secretária. Ele acha que você
precisa de um amigo. — Movimento meus quadris para frente e para trás,
arrastando a pica sobre seu rosto. — Vou te dar o amigo de que precisa.

Introduzo o membro inteiro em sua garganta, até o talo. Esmago sua


face contra minha pelve. Ele engasga, e tosse, e engasga um pouco mais.
Tenta se afastar, mas não consegue, está bem preso em minhas mãos.

— Ninguém te conhece tanto quanto eu, Jude Goldman.

Saliva escapa de seus lábios e se espirra ao redor, molhando seu


rosto, seu terno, e minha calça. Mantenho meu pau fundo em sua garganta
por mais alguns segundos até permitir que se afaste.

Livre do membro invasor, Jude tosse e limpa a boca a com a manga do


terno. Me olha com uma fúria comedida — a fúria de um animal que acabou
de ser cutucado exatamente no local que adora.

Continuo segurando seus cabelos com firmeza. Esfrego o pau


molhado em sua face, espalhando saliva por todo esse maldito rostinho lindo.
Ele fecha os olhos outra vez e respira fundo, recuperando o fôlego.
— Sua garganta é tão macia. Quero senti-la de novo.

Volto a penetrar sua boca. Jogo o pescoço para trás e cerro as


pálpebras, concentrando-me na sensação aveludada e morna de suas
bochechas e língua me envolvendo, de meu pau cavando uma abertura cada
vez mais funda em sua garganta a cada estocada, um centímetro por vez.

— Gosta disso, Jude? Aposto que gosta. — Abro os olhos com um


sorriso cínico. Viro o rosto em sua direção. — Viadinhos como você sempre—

Há uma figura parada na entrada da cabine.

Não, não uma. Duas.

— Merda.

São dois homens muito parecidos. Ambos carecas, com poucos traços
distintos em seus rostos; as mandíbulas são bem definidas, os olhos são
afiados, pequenos e sugestivos. O da direita tem olhos castanhos; o da
esquerda, verdes. Talvez sejam irmãos. Vestem blazers acobreados e calças
um pouco mais escuras, vináceas. As blusas são pretas, grossas e de gola
alta. No lado direito de seus pescoços, uma tatuagem entrega suas
identidades.

Meus ombros enrijecem e estreito os olhos. Entro em defensiva. Se


esses desgraçados vieram aqui para me matar, escolheram a oportunidade
perfeita: estou com as calças abaixadas, encurralado, e com outro indivíduo
no meio para atrapalhar.

Meu pau escapa da boca de Jude. Afrouxo a pegada em seus fios e


toco seu rosto com uma mão. Levo a outra até a parte de trás da minha calça,
para apanhar meu revólver. Então me lembro de que o deixei no carro hoje
de manhã.

Merda. Merda.

Merda. Merda. Merda. Estamos fodidos.

Goldman me fita.

— O que foi?

E, aos poucos, vira-se para trás, em direção aos intrusos no vestiário.


Para minha surpresa, Jude apenas franze o cenho, sem se levantar ou se
afastar de mim. Meu pau continua hígido próximo de seu rosto.

— São imbecis demais pra entenderem que a porra da cabine tá


ocupada? — vocifera.

— Os senhores deveriam fazer isso em outro lugar, não acham? Um


motel, talvez? — o mais à esquerda comenta. Tem uma tatuagem de arame
farpado logo acima da sobrancelha direita, um alargador imenso na orelha do
mesmo lado.

— Acho que você devia dar o fora aqui antes de termos problemas.

Eles assobiam em uníssono.

— O boqueteiro ficou estressadinho — o desgraçado à direita provoca.

— Filho da puta.

Jude se levanta num supetão e parte para cima dos homens. Seguro-o
pelo braço. Ele se vira bruscamente.

— O que está fazendo?

— Olhe seus pescoços. São Scorpions — digo pausada e rigidamente.

O loiro faz como o indicado, nota os ferrões de escorpiões se


projetando das costas aos pescoços dos intrusos. Se contém, mas não recua.

— Que merda estão fazendo aqui? — pergunta aos mafiosos.

Eles se entreolham e sorriem com certo escárnio um para o outro.

Quando decidem responder, se dirigem a mim:

— Talvez queira guardar seu amigo nas calças outra vez — o cara da
direita diz e indica meu pau com o olhar. — Precisamos conversar.

Largo o braço de Jude e finalmente escondo minha nudez. Cerro os


punhos. Não tenho um revólver, mas ainda tenho algo tão letal quanto, bem
aqui nos meus dedos.

— E se eu não quiser? — indago.

Uma risada cínica ecoa de sua garganta.


— Então aí sim, meu camarada, teremos um problema. — E retira uma
submetralhadora da parte interna do blazer.

Merda.
ESCORPIÕES
se você precisar de alguém,
vou interromper meus planos
mas você vai ter que me amarrar
e então quebrar minhas duas mãos
se você precisar de alguém, estarei bem aqui
mas você vai precisar me segurar pela garganta
e me erguer no ar
jumpsuit — twenty one pilots

o desgraçado de olhos castanhos oferece quando


— QU E R U M C I G A R R O ? —
a porta do carro é trancada. Do banco do motorista, ele se curva, olha-me
sobre os ombros e estende o maço aberto. Estou sentado
desconfortavelmente no banco de trás; o filho da puta de olhos verdes segura
uma faca contra minha garganta.

Não respondo e nem me mexo demais. Um movimento


descoordenado, por mais leve que seja, e um sulco será aberto no meu
pescoço. Às minhas costas, o mafioso sabe bem o que está fazendo: sua
mão não vacila por um segundo sequer. Não sei que posições esses caras
ocupam entre os Scorpions, mas, julgando pelas roupas caras, o carro
luxuoso e a habilidade em me fazer de refém, não são reles gangsters de rua.

Quando voltei para casa, prometi a Noah que não tinha mais uma
gangue no meu rabo. E estava certo: agora tenho duas. Boa, Kim.

No banco da frente, o mafioso dá de ombros, acende o cigarro e o leva


aos lábios. Traga a fumaça profundamente, expira logo em seguida.
Descansa a submetralhadora no banco ao lado e encara o beco sem saída
no qual o carro está estacionado.

— Me diga, Kim Henney — ele volta a se curvar para trás, encarando-


me —: Jude Goldman comprou sua dívida com os Snakes pra cair de boca no
seu pau? Ele é um bom mamador? — Sorri, canalha. Há um tom de humor
em sua voz, algo descontraído nas linhas severas de sua face. — Vamos,
cuspa tudo. Sem trocadilhos.

Semicerro os olhos. Mas que merda está acontecendo aqui?

A faca afasta-se alguns milímetros da minha garganta, o suficiente


para me permitir falar sem o perigo de ser degolado.

— Vou abrir seus estômagos com os dentes, puxar suas entranhas pra
fora e então forçá-los a comê-las se não me disserem quem são e o que
querem nos próximos trinta segundos — afirmo vagarosamente.

— Uau, uau, uau, ele tem culhões de ferro, Wolf. Viu isso? — Ri como
uma hiena, agarrando o couro do banco. Atrás de mim, o outro mafioso
acompanha sua risada. Wolf. — É mesmo a porra de um milagre que os
Snakes tenham conseguido te adestrar.

Trinco a mandíbula e continuo sério. Cada fibra em meu corpo está


tensa, precisarei tomar muito cuidado se precisar chegar aos finalmentes com
esses dois. A arma no banco da frente é minha principal preocupação.

— Escute... — o homem de olhos castanhos continua quando suas


risadas cessam. — Sei que com uma faca no seu pescoço é difícil de
acreditar nisso, mas viemos aqui em paz. Se não quiser me contar os
detalhes daquele boquete lá na loja, tudo bem. Pelo menos me diz: já comeu
ele? Ou ele te comeu? É assim que vocês viados fazem isso, não é?
Trocando. — Faz um gesto com as mãos, abrindo o indicador e o polegar e
balançando-os no ar, para enfatizar.

Aperto os dentes tão forte que minha mandíbula começa a doer.

Lentamente, a nuance divertida desaparece de seu sorriso e de seu


semblante.

— Ok, ok. Como eu quero manter minhas tripas aqui dentro — toca
sua barriga —, vou parar com as piadinhas. — Direciona-se ao mafioso ao
meu lado: — Não seja um cuzão, deixa o cara respirar.

A faca é afastada definitivamente de minha garganta, assim como o


homem que me mantinha refém. Fito-o com desconfiança, e ele se arrasta no
banco até repousar o cotovelo na janela abaixada do carro.
Respiro um pouco mais tranquilo, mas não muito. Algo ainda está me
dizendo que estou numa enrascada.

— Tá mais tranquilo agora? — o desgraçado em minha frente


pergunta. — Como eu disse, viemos em paz. — Estende a mão em minha
direção. — Meu nome é Maddox. Maddox Donovan. — Encaro sua palma por
alguns segundos, hesitante, até resolver cumprimentá-lo. — Esse aí é
Wolfgang, também Donovan. Pode chamá-lo de Wolf. — Aponta para o
homem apoiado na janela com o queixo. Olho-o de relance. Ele bate uma
continência, sem muito afeto ou entusiasmo.

Demoro a processar a informação. E, quando o faço, percebo que a


merda na qual estou enfiado é muito pior do que imaginei. A voz de Olivia
ecoa na minha mente:

Aqueles dois são monstros, Kim. Selvagens, cruéis, implacáveis.


Personificam tudo o que os Scorpions representam: calamidade, caos,
anarquia.

Volto ao mafioso no banco da frente e encerramos o cumprimento.

Estranhamente, além de Olivia, estes são os gangsters mais


civilizados que já encontrei.

— Maddox e Wolf Donovan? — repito, o cenho franzido.

— Sim. Sabe quem somos?

— Sei.

— Ótimo, meu irmão. Então podemos encerrar as apresentações e


partir pra parte boa do negócio.

— Não tenho negócios com vocês.

Ele ri novamente, dessa vez um pouco mais controlado.

— Correto. Não tem, ainda.

— Nem pretendo ter.

Maddox aperta os lábios fortemente e esfrega o cavanhaque. Traga o


cigarro uma segunda vez e volta a encarar a parede do beco. Nossos olhos
encontram-se pelo retrovisor.
— Se sabe quem somos, então sabe que os Snakes são nossos piores
inimigos.

— E vocês são os piores inimigos deles.

— Serpentes e escorpiões... — faz uma careta de desgosto —


simplesmente não podem conviver no mesmo espaço, saca? Um predador é
suficiente. Dois, é exagero. Acabam brigando entre si por dominância, e
então todas as presas escapam. A natureza tem uma ordem, e precisamos
devolver ordem às ruas dessa cidade — diz tudo com uma prepotência
extrema, como se ensinasse algo óbvio a um tapado.

— Não precisa florear essa merda. São duas gangues de criminosos e


assassinos brigando pelo direito de destruir vidas como a minha, como a do
meu irmão, ou do meu pai. Isso é tudo o que preciso saber.

— Tá certo. Somos todos criminosos, assassinos, o caralho a quatro.


Mas sabe de uma coisa, Kim Henney? — Vira-se no banco e aproxima o
rosto do meu. Arregala bem os olhos. — Somos uma irmandade, e
carregamos a marca dela — esfrega o lado direito do pescoço — na pele. —
Me analisa com certo interesse. — Os Scorpions pelo menos. Os Snakes são
estupradores, infanticidas, cagam e andam pra qualquer tipo de ordem. Sabe
que não são de Nova York, certo? Os arrombados vieram da Pensilvânia,
como uma praga financiada pelos republicanos. Essa é a nossa cidade, e
vamos tomá-la de volta — discursa com paixão, como se falasse com uma
multidão.

— Ah — resmungo, pouco impressionado. Dou uma boa olhada ao


meu redor. Talvez todos esses filhos da puta não passem de lunáticos com
submetralhadoras e quilos de coca nas mãos. — E o que isso tem a ver
comigo?

— O quê? — Ele inspira fundo.

— Como você mesmo disse, minha dívida foi comprada. Não tenho
mais relação alguma com os Snakes — explico. — Então por que caralhos tô
nesse carro?

Ele abre a boca para responder algo furioso, mas então a fecha
rapidamente. Luta por alguns segundos contra a vontade de deixar escapar o
que quer que tenha passado por sua mente neste momento, fazendo
algumas caretas cômicas ao abrir e fechar os lábios.
— Não são muitos os miseráveis que entram naquele covil e saem pra
contar história — diz num tom mais brando. Me fita tão profundamente que
me sinto invadido. — Kim, nós também sabemos quem você é. Sabemos o
que eles fizeram com você, com sua família. A dívida de seu pai não merecia,
não deveria, ter sido cobrada do jeito que foi. Eles te ameaçaram com outra
coisa antes de te arrastarem pro clube de luta?

Minhas entranhas gelam apenas de me lembrar daquela noite.

— Não interessa.

— Não, não mesmo. Mas sabe o que interessa? — Toca meu rosto e
me puxa para frente, nos aproximando mais. — Que você sobreviveu a toda
essa merda, que está aqui hoje pra contar história. E que tem a chance de se
vingar das pessoas que fizeram tudo isso.

— O que quer dizer?

— Não ouviu o que eu disse? Vamos tomar de volta nossa cidade das
mãos daqueles filhos da puta, vamos explodi-los antes que percebam o que
os atingiu, cortar a cabeça da serpente e triturar suas presas, enfiar seu
veneno goela abaixo de todos que a seguem, como você estava enfiando o
pau na garganta daquele loirinho. Vamos arrombar suas gargantas com
nossos caralhos de ferro, Kim, asfixiá-los até ver as lágrimas saindo de seus
olhos malditos.

— E o que essa porra tem a ver comigo?

— Queremos que você faça parte disso. Eu e meu irmão, líderes da


gangue que fundou Nova York, estamos te convidando para ser um membro
dos Scorpions. Você será um de nossos irmãos; não de sangue, mas de
gangue. Receberá todas as tatuagens de um membro comum, e estará ao
nosso lado quando cobrarmos de volta tudo o que os Snakes nos devem,
começando pelo seu líder. Você o conhece, não conhece, Kim? Há boatos de
que ele vai pessoalmente recolher as dívidas.

Engulo em seco. Aceno com a cabeça.

— Você sabe o nome dele?

— Dom — o nome se arrasta pela minha garganta como se fosse


ácido. Toda a fúria, o desejo incessante de vingança que senti nos últimos
365 dias volta a me dominar.
— Vamos destruí-lo de formas que você sequer pode imaginar. — Abre
um sorriso perigoso. — Ou talvez saiba, considerando as coisas que
vivenciou lá dentro. Você não quer isso, Kim? Não quer se vingar do homem
que fodeu sua vida?

Afasto meu rosto de sua mão e observo com cautela os dois mafiosos
no carro. O sorriso de Maddox se desfaz.

— Sim, sim, toda essa conversa de vingança é boa de ouvir — rebato


—, mas o que querem de mim em retorno? Com certeza os líderes dos
Scorpions não se importariam em oferecer pessoalmente uma vaga na
gangue pra um cara qualquer caso não quisessem algo muito valioso em
troca. Então corte a conversa fiada e diga o que é.

Ele morde os lábios com força, como se tentasse controlar sua


frustração. Move a mandíbula de um lado para o outro e, no fim, abre um
sorriso voraz:

— O que queremos, Kim? Queremos homens fortes, homens de


verdade, que nos ajudem a destruir aqueles filhos da puta. Homens como
você. — Toca meu peito com o indicador. Em seguida, faz uma careta de
desdém. — Também seria interessante ter alguém que já esteve dentro da
barriga da serpente e escapou com vida.

Uma risada ácida me escapa.

— Eu sabia. Vocês são só dois interesseiros. Da próxima vez, tenham


os culhões pra falar logo o que querem antes de toda essa baboseira de
vingança.

A lâmina afiada volta a encostar na minha garganta, rapida e


brutalmente. Curvo o pescoço para cima em reflexo. Pelo canto dos olhos,
vejo Wolf colado às minhas costas antes de sua voz soar no meu ouvido:

— Tenha cuidado com suas palavras, garoto.

Agarro a lâmina da faca e puxo-a para longe da minha garganta. Um


corte longo e profundo se abre na minha mão, mas a dor é só uma pontada
distante.

Me dirijo a Maddox:
— Tô farto dessa merda. Se você acha que vou escapar de uma
gangue e pular de cabeça em outra só por vingança, está redondamente
enganado — declaro, grave e seguro. Sangue começa a vazar entre meus
dedos. — Além do mais, não acho que tenha muita utilidade pros planos de
vocês. Não é como se eu frequentasse reuniões da cúpula dos Snakes
enquanto estava lá. Eu era um cão, caso não saibam ou não se lembrem.
Meu lugar era no canil, no subterrâneo, rasgando as gargantas de outros
como eu pra conseguir ver um novo dia nascer. Eu conheço violência,
conheço sangue, conheço dor. Não conheço nada mais que venha daqueles
desgraçados. — Solto a faca e empurro Wolf para trás, livrando-me dele. —
Então sinto muito em decepcioná-los.

Maddox não responde de imediato. Seu semblante vai de surpreso a


preocupado e contemplativo em questão de segundos. Parece ter parado de
respirar, fita-me com os olhos mais arregalados que já vi na vida. Sob as
sombras do interior do carro, sua expressão parece fantasmagórica. Merda,
esses filhos da puta são mesmo estranhos para caralho.

Wolf faz menção de tentar se aproximar com a faca, mas Maddox


ergue um dedo em sua direção, impedindo-o. O outro irmão Donovan fica
parado no assento, me encara com certa ira reprimida.

— Você... — O dedo passa a apontar para mim. — Você tem algo


dentro de si, algo que nunca vi em nenhum outro homem. Meu pai... Meu pai
costumava dizer que você pode reconhecer um mafioso pelos olhos, que
seus olhos são... são diferentes de olhos comuns, há uma escuridão neles.
Seus olhos, Kim Henney, são mais escuros do que os de qualquer outro
camarada que já encontrei. — Inspira fundo, sofregamente. — Talvez esteja
farto dessa merda, mas essa merda com certeza não está farta de você. Seu
lugar é conosco; a oferta ainda está de pé, e continuará de pé enquanto os
filhos da puta que te comeram de quatro ainda estiverem respirando. Não
precisa responder agora. Quando decidir que não está mais farto e quer usar
seus culhões em algo que realmente importa nesta vida além de gozar na
boca de putos como Jude Goldman — retira um cartão do bolso —, saberá o
que fazer — e me entrega.

Apanho o pequeno pedaço de papel com a mão ensanguentada. Na


parte da frente, é completamente preto, com o desenho de um escorpião
dourado em alto-relevo. Viro-o. Há um número de telefone rabiscado à mão.
Fico um tempo encarando-o. É para isso que fui feito? Para destruição?
Guerra? Selvageria? É isso que corre em minhas veias? Por isso minha vida
se transformou nesse inferno? Fito meus punhos surrados, grossos,
machucados, cheios de nós e cicatrizes. Não são os punhos de uma pessoa
comum. São os punhos de um animal. Devo apenas abraçar tudo isso de
uma vez?

Acha que era fácil te ver chegar em casa ensanguentado toda maldita
noite?, as palavras de Noah ecoam na minha mente. Acha que era fácil
cuidar das suas feridas que abriam no meio da noite?

Guardo o cartão no bolso do terno novo.

— Obrigado. — Limpo a garganta. — Agora, se não se importam,


preciso voltar ao trabalho. — Abro a porta do carro e saio sem olhar para trás.

Cerro bem os punhos para estancar o sangramento. Caminho para


fora do beco e levo dez minutos até chegar no local onde deixei Jude junto ao
sedan.

Quando cruzo a última esquina e vejo o filho da puta mais detestável


que já tive o desprazer de conhecer encostado à lataria com os braços
cruzados, o terno aberto e os fios loiros esvoaçados por causa da brisa do
final de tarde, sinto um alívio surreal. Paro de andar e fico parado por alguns
segundos, respirando, observando-o. Admirando-o.

Que porra é essa que estou sentindo?

Jude me nota e sou obrigado a continuar caminhando até ele. Curvo a


nuca para baixo.

— O que aconteceu com sua mão? — indaga quando me aproximo.

Cerro os punhos mais fortemente.

— Nada.

— Kim—

Abro a porta do passageiro.

— Entre no carro.

— Vai me contar o que aconteceu?

— Entre na porra do carro e conversamos depois — esbravejo.


Ele franze o cenho e, embora contrariado, faz como o ordenado.

Entro no lugar do motorista. Esfrego o rosto com a mão intacta.

— Que merda aqueles babacas queriam com você? — Jude insiste.

Expiro fundo contra a minha mão.

— Queriam fazer uma oferta.

— Uma oferta? Que caralho eles podiam querer te oferecer?

Ligo a ignição e dou partida no carro.

— Algo que não pedi, e que não quero — digo, muito mais inseguro do
que achei que soaria.

— O quê?

Nossos olhares se encontram pelo retrovisor.

— Um lugar na máfia.
INTERLÚDIO
1 ANO ANTES

Aviso de gatilho:

menção a pedofilia, esquartejamento e tráfico de menores

NGASGUEI COM MEU PRÓPRIO SANGUE e fiquei sem respirar


E
por alguns segundos. Cuspi no chão, limpando minha garganta,
e vi pequenos fragmentos de dentes misturados à massa
vermelha-viva. Um grunhido doloroso, como o de um animal
morrendo, escapou da minha garganta quando inspirei fundo.

O homem que havia acabado de quebrar minha cara


puxou meus cabelos para trás e ergueu meu rosto do chão.
Meus braços e minhas pernas continuaram imobilizados pelos
outros quatro capangas. Com o rosto erguido, vi Noah encolhido
num canto da cozinha, cercado por outros três mafiosos. Seu
rosto choroso e assustado me causou dor maior do que os ossos
quebrados no meu rosto.

Ao nosso redor, a casa estava destruída. Móveis


revirados, a porta em pedaços, fragmentos de vidro cobrindo o
chão.

— Olha pra sua cara — o Snake disse ao colocar, com a


mão livre, um pedaço grande de vidro espelhado em minha
frente. Vi meu rosto esmagado, ensanguentado, roxo e
vermelho, quase irreconhecível. — Isso não é nada comparado
ao que vamos fazer com ele — continuou num tom
perturbadoramente calmo. — Entendeu?

Cuspi no pedaço de vidro, manchando a superfície à


minha frente e nublando o reflexo do meu rosto. Com lágrimas
de dor, forcei meu pescoço contra os dedos do homem o
suficiente para encarar seus olhos escuros e macabros.

— Vá à merda. — Cuspi em sua cara dessa vez.

Ele fechou os olhos, o rosto contraído de nojo. Puxou


meus cabelos para trás com mais violência, me fazendo gemer.
Algumas lágrimas desavisadas me escaparam.

O homem esfregou o rosto até se livrar das gotas de


saliva e sangue. Sua camisa social branca estava
completamente suja, manchas rubras maculavam o tecido fino
com o que ele havia retirado de mim. Os nós de seus dedos
estavam vermelhos.

— Resposta errada, puto.

Outro soco me atingiu antes que eu pudesse perceber.


Por fim, ele soltou meus cabelos e meu rosto despencou sobre
os cacos de vidro no chão. Mais um tanto de sangue se
acumulou em minha garganta, o que fez com que eu me
engasgasse.

Para minha surpresa, meus braços e minhas pernas


também foram libertados.

— Levem o moleque — ouvi o líder do grupo ditar aos


outros homens ao redor.

Noah gritou desesperadamente.

— Não. — Eu sequer tinha forças para falar alto. Usei


meus cotovelos para me levantar do chão. — Não. — Minhas
palmas pressionaram alguns estilhaços particularmente
cortantes no chão. — Espera! — Estendi uma das mãos na
direção do homem que havia acabado de me esmurrar.

Sentei sobre os meus calcanhares. O homem de cabelos


escuros e curtos dava meia-volta em direção à porta quando me
ouviu gritar. Ele parou, então me encarou de relance. A testa
larga se franziu. Havia uma desconfiança fria em seus olhos, a
desconfiança de quem olhava para um inseto na rua e decidia se
o matava ou não.

Nesse momento, seus três capangas imobilizaram e


puxaram Noah, que se debatia sem muito sucesso, à força pela
cozinha.

Encarei tudo com um temor que nunca havia sentido na


vida antes. Um desespero delirante fazia minha cabeça girar, me
imobilizava. Minha vontade era de me jogar contra aqueles
homens e lutar — mas eu sabia que essa seria a última coisa
que faria.

— Esperem — o homem de quase dois metros ordenou.


Os capangas obedeceram.
Os braços de Noah foram libertos e ele voltou a
despencar no chão, arrastando-se até suas costas encontrarem
o fogão. Ele abraçou os próprios joelhos, tentando se proteger.

O Snake líder deu passos firmes em minha direção.


Enquanto se aproximava, a serpente tatuada em seu pescoço
parecia ganhar vida diante da minha visão borrada e dos meus
sentidos bagunçados. Ele se agachou, de modo que nossos
rostos ficaram no mesmo nível. De perto, pude ver seus
músculos quase estourando os botões da camisa.

— Cuspa — mandou.

Até criar coragem de falar, inspirei fundo e engoli mais do


meu sangue.

— E-Eu aceito. Vou com vocês. — Mantive minhas mãos


erguidas no ar em sinal de rendição. Meus olhos se alternavam
entre meu irmão encurralado e meu sangue derramado no chão.
— Deixem-no em paz — pedi um pouco mais baixo.

O homem agarrou meu queixo machucado e o apertou.


Os dedos dele afundaram em minha mandíbula, acentuando a
dor em minha boca. Com isso, me obrigou a encará-lo.

— A fila andou, desgraçado. A proposta tava de pé até um


minuto atrás. — Fechou o punho livre no ar e então o abriu. —
Agora desapareceu. — Apontou para cozinha com um breve
levantar das sobrancelhas. — Como seu maninho vai
desaparecer. Talvez eu consiga um ou dois terços da dívida do
seu pai com ele. — Esticou o pescoço até encarar Noah. —
Quantos anos ele tem? 17? — perguntou de maneira doentia. —
Antes de vendê-lo pro pedófilo que fizer o maior lance, vou retirar
alguns órgãos. Ele não vai precisar dos dois rins, os dois
pulmões, o fígado inteiro e as duas pernas pro lugar onde será
enviado. E quanto mais jovens os órgãos, mais eles valem. Não
posso deixar essa oportunidade passar.

A ameaça preencheu minha mente com imagens


desgraçadas, muito piores do que as do meu pai esfacelado no
asfalto no meio da noite. Meu peito apertou, tive que me
controlar para não vomitar em cima dele ou pular na jugular
exposta em seu pescoço. Apenas uma mordida funda, um rasgar
dos meus dentes, e ele estaria acabado. Assim como eu e meu
irmão estaríamos logo em seguida.

Engoli em seco, tentando afastar aquele impulso suicida.

— Eu posso pagar tudo de volta no ringue — disse com


uma firmeza encenada; por dentro, estava tremendo. O Snake
voltou o olhar sereno para mim. — Vou pagar tudo de volta. —
Apertei os lábios e inspirei fundo. — Ninguém vai poder me
derrotar. Vou foder todos, todos eles, todos que colocarem contra
mim — insisti um pouco exasperado, temendo que minha prece
não fosse atendida. — Eu sou o melhor que vão encontrar.
Ninguém... ninguém é tão... selvagem quanto eu. Sou um
animal, feito pra violência.

Ele empinou o queixo, me fitando com doses simultâneas


de contemplação e superioridade.

— Você parece mesmo um bom cão de briga. — Virou


meu rosto de um lado para o outro, analisando os cortes que ele
mesmo havia provocado. Por fim, deu dois tapas fortes em
minhas bochechas e se levantou. — O ringue já está sem
sangue fresco e promissor há algum tempo.

Pigarreei. Levantei um joelho e o usei de apoio para me


erguer do chão. Ainda cambaleava, tinha a visão embaçada e
sangrava. Diante de mim, não via nada que não fosse a chance
de salvar o que restava da minha família.

— Eu vou lutar — eu disse. — Quantas vezes quiserem.


Contra quem quiserem. Apenas não toque nele.

O Snake assentiu sutilmente, um tipo distorcido de


orgulho reluzia em suas íris escuras como um pesadelo. Ele
segurou meu rosto pela lateral outra vez. Sob seu toque, respirei
profundamente.

— Bom garoto. Tenho certeza de que seu papai ficaria


orgulhoso de ver o filho no mesmo ringue em que ele costumava
apostar. — Seus dedos esmagaram meu rosto. Seu cenho se
franziu mais uma vez. — Acha que ele apostaria em você se
ainda estivesse vivo, Kim? Se ele apostasse e você vencesse,
poderiam até se livrar de nós... — Uma risada perversa escapou
de sua garganta. — Que pena que ele morreu tão cedo. Já vi
muitos homens como ele antes. Geralmente não vivem pra
contar história.

Ele se curvou em minha direção, aproximando nossos


rostos, e me fitou tão intensamente que senti minhas entranhas
se revirarem. Bufei diante de seu semblante cruel.

— Tenho a impressão de que com você vai ser mesma


merda. Vai estar morto assim como seu paizinho em algumas
noites, no máximo. Então... — se aproxima do meu ouvido e
sussurra: — eu vou me divertir muito com seu irmão.

Quando se afastou e soltou meu rosto, um sorriso


fantasmagórico se esticou em seu rosto. Foi o sorriso mais
horrível que já vi na vida. Parecia errado: o sorriso de uma cobra.

Ele virou de costas.


— Deixem o garoto.

Com esse simples comando, os homens se afastaram de


Noah. Meu suspiro de alívio, no entanto não durou sequer um
segundo.

— Levem o cão pra ser marcado — ordenou, caminhando


para fora da casa. — A partir de hoje, ele é nosso.

Depois disso, dois homens agarram meus braços e me


arrastaram junto com eles. Meu olhar cruzou com o de Noah por
um breve momento. Sua expressão aterrorizada ficou comigo
durante todo o trajeto até o clube de luta clandestino onde meu
pai havia destruído a própria vida e onde eu, a partir daquele
momento, destruiria a minha.
eu estava apenas mentindo
quando olhei nos seus olhos
estou chorando diamantes
como se tivesse um rio dentro de mim
[...]
estou deitando com você uma última vez
e é tão triste, tão sexy
so sad so sexy — lykke li
HORA EXTRA
agora está frio demais para você aqui
então me deixe segurar suas mãos
pelos buracos do meu suéter
sweater weather — the neighbourhood

1 SEMANA DEPOIS

— ALOIRA PEITUDA É SEMPRE a primeira a morrer.

Noah aponta com o gargalo de sua cerveja a televisão, onde uma


mulher — loira e peituda —, está se despindo para tomar banho em um lago
nos arredores de uma floresta. De costas para a câmera, ela retira primeiro a
camisa branca quase transparente, então o sutiã rosa e, por fim, a saia jeans
curta. Vira-se para o namorado, na direção da câmera, para dar ao filme de
terror slasher de classe B (bastante duvidosa) sua cota obrigatória de nudez
gratuita.

Noah dá um tapinha no meu ombro.

— Fica olhando, essas coisas nunca mudam — completa, e dá um


gole na cerveja.

Analiso meu irmão — todo largado e tranquilo ao meu lado, como se


não tivesse uma preocupação sequer no mundo — apreciando o filme ruim
que eu escolhi. Tudo parece tão normal, tão mundano. Senti falta de
momentos como este, de dias como este. Pela primeira vez, posso
simplesmente desligar meu cérebro e fingir que nada mais importa, que nada
mais existe. Parece que se passaram milênios desde a última vez em que vivi
de verdade, não apenas sobrevivi.

— Cê tá louco — resmungo.
— Tem uma ciência por trás dessas coisas, Kim — ele diz com uma
certeza cômica e gesticula com as mãos como se tivesse descendência
italiana. — O enredo é sempre a mesma porcaria.

Estreito os olhos, desconfiado, e volto a prestar atenção no filme.

A mulher já está na água. O namorado retira a camisa, seus tênis e a


calça jeans, se preparando para acompanhá-la. Ele está prestes a retirar a
cueca. Estranhamente, estou mais ansioso para ver a bunda do cara do que
os peitos da mulher. No entanto, subitamente, a garota para e aponta algo
atrás do homem, na floresta. Ele se vira, mas não vê nada. A câmera
lentamente dá zoom na floresta. Uma música de suspense toca no fundo. A
garota corre para fora do lago e joga água no rosto do namorado, rindo. Ele
fica desnorteado. Ela desaparece entre as árvores e grita que ele nunca
conseguirá alcançá-la. O namorado a xinga e a segue logo em seguida.

— Nah. O cuzão aí vai rodar primeiro — rebato e tomo um gole da


cerveja gelada.

— Nem fodendo.

Ele estica um dos braços sobre o apoio do sofá e cruza os pés sobre a
mesa de centro da sala de estar. Pego o recipiente plástico cheio de batatas
fritas sobre a mesa e trago para o sofá, deixando-a no espaço vazio entre nós
dois. Como uma, duas, três, enquanto o filme se prolonga.

— Quer apostar? — Noah fala, petulante.

— Olha só quem tá confiante hoje — escarneio. Penso um pouco na


proposta. Dou uma olhadinha rápida no filme por segurança, e então volto-me
ao garoto atrevido ao meu lado. — Cinquenta paus que o namorado é o
primeiro a morrer.

Ele me estende uma mão para selar a aposta. Aperto-a firmemente,


até ver uma careta de dor em seu rosto.

— Você vai me dever cinquenta paus daqui a pouco — debocha. Um


alarme irritante soa pela casa inteira, partindo da cozinha. É o micro-ondas.
— A pipoca ficou pronta. — Noah deixa sua cerveja sobre a mesa de vidro e
pula para fora do sofá. De calça de moletom e um suéter que dei de presente
de aniversário três anos atrás, ele corre em direção à cozinha.
Relaxo mais no sofá, coloco para dentro metade da garrafa com
apenas um gole. O líquido amargo e gelado desce suave pela minha
garganta. Na tela, a cena do filme muda para o parto de um bebê deformado
de um casal canibal.

Meu rosto se contrai numa expressão de nojo.

— Cara, esse filme é uma merda — comento.

— Você que escolheu — ele grita da cozinha.

— Mas olha isso. — Pego a capa do blu-ray jogada sobre a mesa. —


Pânico Na Floresta. O nome é foda, você fica achando que o filme vai ser
pelo menos decente. — Deixo a capa no chão. — Pensa comigo: se a loira
peituda morrer logo no começo, metade da molecada que tá assistindo essa
porcaria deixa de prestar atenção. O cara tem que morrer primeiro. As
gostosas só morrem depois, quando o bicho tá pegando, pau torando,
sangue escorrendo.

— Ah é? — Ele me encara de longe e ergue as sobrancelhas. — Você


é parte dessa molecada que vai deixar de prestar atenção quando ela morrer
primeiro?

— Óbvio — digo com uma risada. Noah ri junto.

— Você é um cafajeste, sabia disso? — acusa num tom risonho.

— Grande novidade. — Tomo o restante da cerveja. — E essa pipoca


que não fica pronta?

— Calma, rapaz — rebate num tom levemente repreensivo. — Dá pra


esperar um segundinho?

Apanho a garrafa que abandonou sobre a mesa e dou um gole.

— Sua cerveja tá ficando quente aqui.

Noah termina de temperar a pipoca e retorna à sala com dois


recipientes nas mãos.

— Toma. — Me oferece um deles e se atira no sofá. Entrego sua


cerveja, provo o petisco salgado e volto a me concentrar no filme de terror.
Vou mesmo perder 50 paus por causa dessa aposta idiota? Estou quase
pensando em convencer Noah a jogar videogame ou fazer qualquer outra
coisa menos entediante e que não acabe com um déficit de dinheiro na minha
carteira quando ele se volta a mim e comenta numa voz manhosa: — Já que
tamo falando de mulheres...

— O quê?

Meu irmão brinca com as pipocas em seu recipiente um tanto


desinteressado. O olhar está distante; a expressão, angustiada. Começo a
ficar desconfiado.

— Você falou com... — hesita, e morde o lábio inferior antes de dizer o


nome: — Olivia desde que deixou o ringue?

Imediatamente fico tenso. Volto-me à televisão, mas não presto


atenção ao filme. Minha mente me transporta à última conversa que tive com
ela, logo antes da luta. Relembro a memória vividamente, toda a frieza e
insensibilidade da mulher que achei amar me atinge como uma bala bem no
peito. Engulo em seco. Pedi para que fosse minha, para deixar a organização
que me escravizou por doze meses. E ela me chamou de idiota por fazê-lo.

Mesmo assim, mesmo com a merda do coração partido e me sentindo


o otário mais mal-amado do mundo, eu ainda a procuraria — meus
sentimentos não evaporaram de uma hora para outra, afinal de contas —,
mas não posso. Preciso me afastar de Olivia... para garantir a segurança de
outra pessoa em minha vida, uma pessoa que amo mais.

— Não. Não procurei — finalmente respondo. — Pensei na


possibilidade, porém... — volto a fitá-lo — prometi a você que não ia me
envolver com mais nada que tenha relação com os Snakes.

A angústia em seu rosto lentamente se desfaz, torna-se uma forma


constrita de felicidade — alívio, talvez.

— Obrigado por isso — diz, e então encara o recipiente de pipoca. —


Obrigado por cuidar de mim.

Um sorriso sereno se abre em minha face. Bagunço seus fios escuros.


Ele ergue os olhos de volta aos meus.

— É o meu trabalho como seu irmão mais velho, idiota — digo. Estico
o braço sobre o estofado, convidando-o a se aconchegar em mim. — Agora
vem aqui.
Ele o faz prontamente, aninhando-se no meu peito.

Em silêncio, seguimos assistindo o filme por algum tempo. Noah come


sua pipoca, e eu roubo sua cerveja para mim. Mais cinco minutos se passam,
e nada da primeira morte. Que tipo de filme de terror economiza nas mortes?

— Foi tão bom passar o dia com você hoje — meu irmão murmura em
determinado momento. Encaro o topo de sua cabeça, num misto de surpresa
e compreensão. Ele continua: — Queria que a gente pudesse passar mais
tempo juntos assim. Sinto como se tivéssemos perdido um ano inteiro com
tudo o que aconteceu.

Expiro fundo, fico calado por alguns segundos. Noah curva o pescoço
para o lado e para cima, me encara.

Estive tão focado em sobreviver no ringue, em vencer luta após luta


sob quaisquer custos, que talvez tenha sacrificado seus sentimentos, nosso
companheirismo. Talvez a fúria e o rancor de meu irmão na primeira manhã
depois que voltei para casa não devesse ter sido uma surpresa tão grande
para mim. Fui negligente, o machuquei. E agora preciso lidar com as
consequências.

— Vamos apagar esse ano da memória e focar no futuro, tudo bem?


— Ele assente e volta a assistir à tela. Aperto-o um pouco mais. — Agora que
tenho um emprego normal, poderemos passar muito mais tempo juntos.
Podemos sair mais, viver mais.

Ele suspira, e vejo seus ombros se erguerem e abaixarem


rapidamente.

— Eu gostaria disso.

Dou alguns tapinhas em seu braço.

— Eu te amo, maninho.

Ele se aconchega mais em mim, e é toda a resposta de que preciso.

Dou um último gole na garrafa de Noah, me estico o suficiente para


deixá-la no chão. Ele se desvencilha do meu abraço:

— Quer outra cerveja?

Assinto.
Meu irmão sai do sofá e se dirige à cozinha outra vez.

Observo suas costas. Como posso amar outra pessoa dessa forma?
Ao ponto de me sacrificar por ele sem pensar duas vezes, de sentir dores
piores quando ele está machucado do que quando estou completamente
fodido? Como meu pai pôde não nos amar dessa mesma forma?

Um telefone toca, me tirando da digressão. Olho para a mesinha de


centro, meu celular está com a tela apagada. Apanho-o por preocupação e o
desbloqueio. O toque não está vindo dele.

— É o seu? — grito a Noah.

— Nope — ele responde antes de abrir a geladeira e puxar outro fardo


de cervejas para fora.

Mas que porra?

O toque continua ressoando cada vez mais alto, cada vez mais
desnorteante. Está vindo de algum lugar ao meu redor. Guardo meu aparelho
no bolso e procuro sobre o sofá, a mesa, o chão, mas não encontro a fonte
do barulho irritante. Até que me viro em direção à porta. Mais
especificamente, ao gancho para chapéus preso à porta, onde larguei meu
terno quando cheguei em casa ontem à noite.

Por alguns segundos, fico simplesmente parado, encarando a peça de


roupa, incrédulo. Você deve estar brincando comigo. Espero mais um pouco,
talvez ele desista da ligação e me deixe em paz. Mas então me lembro de
sua voz, de suas palavras no carro.

Sempre que esse celular tocar... atenda, não importa o que esteja
fazendo.

Aperto bem os olhos, sentindo uma queimação na garganta.

Caminho até o terno, vasculho seus bolsos até pegar o aparelho que
Jude me deu. Encaro a tela, e é o seu maldito número.

— Quem é? — Noah pergunta ao retornar à sala e me oferecer a


cerveja.

— Preciso atender. — Pego a garrafa e dou de costas.


A passos apressados, me dirijo à cozinha. Apoio-me no balcão que
divide os dois cômodos. De costas para Noah, atendo a chamada.

— O que você está fazendo? — a voz soa do outro lado, fria e ríspida
como sempre.

— Passando o sábado com meu irmão, descansando — sussurro


tenso. — Por quê? O que você quer? — indago, incisivo, mas receoso.

— Preciso de você.

Droga. Fito meu irmão sobre os ombros, disfarçadamente. Ele se ajeita


no sofá, mas seus olhos estão centrados em mim. Volto-me ao vazio da
cozinha.

— Não agora, Jude — praticamente rosno. — Não hoje, porra. — Bato


a garrafa no balcão e fecho os olhos. Esfrego o rosto com algum desespero.
— Por favor...

— Estou te esperando no meu apartamento agora. A porta está


destrancada pra você. Se apresse.

Por que eu ainda sequer tento?

— Isso não é justo — vocifero, cerrando os punhos. — Você disse que


eu podia passar esse dia com ele.

— Mudei de ideia. — E desliga.

— Filho da puta.

Reteso a mandíbula, e preciso me relembrar de que Noah está no


cômodo para não atirar o celular contra a parede e quebrá-lo em algumas
dezenas de pedaços.

Respiro fundo e encaro a garrafa de vidro gelada em minha frente. Sou


mesmo apenas um objeto para ele, não sou? Um boneco sem sentimentos,
sem necessidades, que não faz nada além de foder quando ele quiser, onde
ele quiser. Eu não sou um chofer de luxo. Sou um puto de luxo. Seu puto de
luxo. Talvez Jude tenha um fetiche em caras tão fodidos que não podem
resistir aos seus desejos, às suas vontades, cuja única alternativa seja
consentir ou se foder.

Quer voltar pros Snakes?


Isso explicaria porque estava no clube de luta naquela noite, e por que
me comprou.

Mais uma vez, preciso fazer algo que não quero. Mais uma vez,
preciso abandonar meu irmão em prol da maldita dívida que sequer é minha.
Não sei se Deus existe. Se existe, não sou um de seus filhos favoritos. Nem
de longe.

Tento me recompor. Quando o faço, Noah já está ao meu lado.

— Kim? Quem era no celular?

Tomo uma respiração longa, sentindo o ar se espalhar pelos meus


pulmões e me dar a energia necessária para obedecer Jude.

— Ele — resmungo e me afasto do balcão. Caminho em direção ao


meu quarto.

— Jude Goldman? — Noah me segue. — O que ele quer?

— Precisa ir a um certo lugar e nenhum outro chofer está disponível —


minto. Abro meu guarda-roupas e pego a primeira camisa razoavelmente
apresentável que vejo pela frente.

— O que quer dizer? Tem que ser justo você? — Meu irmão começa a
se alterar. — Esse não é o seu dia de folga?

— Deveria ser. — Retiro a camisa preta surrada que vestia até então e
troco pela outra. Faço o mesmo com a calça, trocando-a por um jeans escuro
e rasgado nos joelhos.

— Ele tá te pagando hora extra por isso?

— O que você acha? — replico, mal-humorado.

Calço um par de tênis esportivos e coloco um boné qualquer, mesmo


que já seja noite.

— Isso é abusivo — afirma, revoltado.

— Abusivo ou não, não tenho escolha.

Passo pelo olhar enfurecido do meu irmão e deixo o quarto. Caminho


de volta à sala, de volta ao terno pendurado na porta, onde deixei as chaves
do carro. Apanho o molho e guardo-o no bolso.
Atrás de mim, Noah se aproxima pisando no chão como se quisesse
abrir buracos sob seus pés.

— Ótimo — grunhe.

— O quê?

Volto-me a ele. Seus braços estão cruzados; sua expressão,


deformada.

— Te ganhei de volta daqueles bandidos miseráveis só pra te perder


de novo pro meu próprio chefe?

— Para de ser dramático, porra — começo a me irritar também. —


Você não tá me perdendo pra ninguém. Vou voltar em uma, duas horas no
máximo.

Noah faz um biquinho e olha para o lado, batendo o pé no chão e


negando com a cabeça.

— Ele provavelmente vai te prender lá a noite inteira. — Então, fica


imóvel por alguns momentos. — E se Jude precisar que você o leve pro
ringue pra assistir uma nova luta?

Reviro os olhos.

— Não seja estúpido.

— Por que não? Se ele não frequentasse o lugar, não teria te


encontrado de qualquer forma.

Aperto os lábios até doerem.

— Não acho que ele vá ao clube de luta frequentemente.

— Por quê?

— Ele... — Apoio-me na parede logo ao lado. — Ele não é o tipo. Não


é tão terrível quanto a maioria de vocês acha.

Arregalo os olhos, percebendo que estou mesmo defendendo o filho


da puta que acabou de acabar com meu dia. Sou mesmo uma putinha, não
sou?

Noah não parece aceitar a defesa, no entanto. Ela parece apenas


deixá-lo ainda mais indignado. E, em meio à indignação, uma sombra de
malícia recobre seu olhar.

— Então, por favor, me conte mais detalhes sobre meu próprio chefe,
Kim Henney. Aposto que vocês dois têm aproveitado muito seu tempo juntos.

Viro-me para ele lentamente. Demoro até digerir as palavras.

— Que merda você quer insinuar com isso? — A tensão me faz


morder minha própria língua; meu sangue borbulha.

Ferino, perverso, Noah dá um passo em minha direção e me fita com


os olhos semicerrados.

— Você não pode achar que sou tão idiota, certo? Não pode realmente
acreditar que eu cairia nesse papinho de que um homem como ele compraria
a dívida de um homem como você apenas pra te colocar no cargo de chofer.
Eu sei que tem mais alguma coisa acontecendo — insinua —, e vou descobrir
o que é.

Por um momento, tudo o que vejo em minha frente é um borrão


vermelho. Paro de respirar, minha mandíbula treme. Tento abrir os lábios
algumas vezes, mas meu maxilar está tão rígido que não consigo. Cravo as
unhas em minhas palmas, deixando que a dor me traga alguma lucidez.

Em completo silêncio, fito a pessoa pela qual sacrifiquei boa parte da


minha vida, da minha dignidade, pela qual renunciei meu futuro. Eu o fito, e
não tenho certeza se reconheço meu irmão. A fúria e o rancor de antes estão
de volta, em suas formas mais aparentes, asquerosas. Meu próprio irmão me
odeia?

— Homem como ele? Homem como eu? — repito, num grito tão alto e
rouco que machuca minha garganta. Inspiro fundo com alguma dificuldade. O
ar que antes me dava claridade agora me envenena. — Tá tentando me
machucar? — questiono, sem esconder a mágoa em minha voz.

A fúria de Noah se desmancha. Ele descruza os braços e afasta o


olhar de mim rapidamente. Dá um passo para trás, então um para frente, e
outro para trás, talvez finalmente se dando conta do que acabou de sair de
sua boca.

— Não, não, eu não quis dizer dessa for—


— Tô com pressa — corto-o como uma lâmina passando sobre uma
ferida aberta —, então não vou prolongar isso por muito tempo. — Aponto um
dedo em direção ao seu peito e digo com firmeza: — Se você me
desrespeitar dessa forma de novo, teremos uma briga. E vai ser uma das
feias. Pense o que quiser pelas minhas costas, Noah, mas nunca mais se
atreva a me insultar bem na minha cara. Minha rotina, meu trabalho, minha
vida, tudo gira em torno de você, faço das tripas coração pra garantir que
você tenha uma vida muito melhor do que a que eu tive quando tinha a sua
idade. Ninguém fez o mesmo por mim, ninguém nunca me amou da forma
como eu te amo, então tenha um pouco mais de consideração. É o mínimo
que pode fazer. — Ao final, minha voz está quebradiça; meu semblante,
despedaçado.

— Kim, me desculpa. — Tenta me tocar, mas afasto-o, um pouco


agressivo.

— Cale a boca. — Abro a porta. — Não quero ouvir sua voz por um
tempo.

Deixo minha casa com a sensação de que acabei de levar uma


marretada na nuca.
do prédio de Jude, hesitante em me dirigir
S TA C I O N O O S E D A N E M F R E N T E
E
ao estacionamento. Abaixo o vidro da janela. Dou uma longa olhada nas
centenas de andares, ainda irritado. O que Goldman está fazendo lá dentro?
Vou ter outra surpresa desagradável quando entrar?

Desvio o olhar para o rádio do carro de relance. Os LED’s vermelhos


me indicam o horário: 21h58. Talvez eu devesse cobrar hora extra desse filho
da puta.

Expiro fundo e aperto o volante. Retiro o celular exclusivo que ele me


deu e atiro-o no porta-luvas. Sem mais ligações emergenciais como essa.

Giro a chave na ignição e entro no estacionamento. Sobre minha


cabeça, o tom sugestivo e cruel de Noah ainda paira como uma nuvem
escura de tempestade.

Te ganhei de volta daqueles bandidos miseráveis só pra te perder de


novo pro meu próprio chefe?
Ele estava com ciúmes? Ciúmes de Jude? Que ridículo. E o mais
engraçado é que ele nunca explodiu desse jeito por causa de Olivia.

Abafo uma risada.

Se ao menos soubesse que Jude é a pessoa que mais odeio no


universo.
ME BEIJE COM ÓDIO

Aviso de gatilho:

violência conjugal/doméstica

começamos com o pé errado


eu não sabia muito bem o que fazer
só queria que você conversasse mais comigo
[...]
mas agora,
acho que minha consideração por você está aumentando
growing on me — foxes

S P O R TA S DO abrem e caminho pelo corredor até o


E L E VA D O R SE
A
apartamento de Jude. Há apenas dois seguranças guardando-o — dois
amigos que fiz nesta última semana. Cumprimento-os silenciosamente e
alcanço a porta. Empurro o puxador e verifico que está realmente destrancada
como o desgraçado mencionou.

Entro no apartamento e fecho a porta às minhas costas.

— Jude? — chamo no ambiente aparentemente vazio.

Olho ao redor, ando até as escadas, verifico o quarto, desço de volta à


sala. Nada e ninguém.

— Jude? Está aqui? — Novamente, não tenho resposta.

Prestes a pegar meu celular pessoal e ligar para ele, ouço sons
abafados e altos num cômodo próximo. Parecem pancadas contra uma
superfície macia.

Com curiosidade mórbida, caminho pelo corredor em direção ao som.


Definitivamente são pancadas — e soam bem familiares.
Além da cozinha e da sala, há apenas um cômodo no apartamento
com as luzes acesas. Aproximo-me da porta aberta e cruzo-a, observando
seu interior. Você só pode estar brincando comigo. Guardo o celular de volta
no bolso, cruzo os braços sobre o peito e me apoio no batente da porta.

Jude está de costas para mim, vestido apenas com uma bermuda
curta de treino, branca, e um par de luvas de boxe. Suas costas estão
suadas, e os músculos se contraem e relaxam enquanto soca um saco de
pancadas pendurado próximo a uma das janelas do cômodo, em frente a
uma parede espelhada. O chão está recoberto por um tatame; há uma luva
extra, uma luva de foco aparador, duas bandagens, além de protetores de
cabeça, bucais e genitais, largados num dos cantos do cômodo. Quando ele
preparou toda essa porra?

Jude parece concentrado em seus golpes no saco, embora tenha um


problema ou outro de coordenação. Fico parado, olhando-o intrigado. Achei
que viria aqui apenas para fodê-lo, mas tenho a impressão de que isso vai
ser mais interessante do que o esperado.

— Vai ficar só aí me olhando ou vai entrar? — ele indaga. Se vira,


abaixando a guarda.

Seus fios estão encharcados de suor, grudados na testa. Seus olhos


estão particularmente vibrantes esta noite, duas safiras perigosas. As
bochechas e o pescoço estão corados. O peito liso, reluzente. Respira
profundamente, recuperando o fôlego depois da sequência de golpes. Ele
abre o velcro das luvas com os dentes, me encarando. Quando meu silêncio
se prologa demais, ergue as sobrancelhas.

— O que cê tá fazendo? — pergunto. Descruzo os braços e entro no


cômodo. O tatame é macio e firme, não parece barato.

— O que parece? — Retira as luvas, deixando as mãos respirarem.

Aproximo-me dele.

— Daqui parece que você tá lutando contra esse saco de pancadas e


perdendo feio — provoco.

Jude senta na janela baixa do cômodo e um sorriso bobo abre-se em


sua face. Esse maldito sorriso.

— Tava tão ruim assim?


— Tava — acabo sorrindo junto.

Analiso suas mãos, vermelhas principalmente nas extremidades


ósseas e nas articulações.

— Você não usou bandagens.

Olha o tecido preto abandonado no chão junto aos outros


equipamentos.

— Não achei que fosse necessário.

— Num treino amador, as outras porras não são mesmo, mas as


bandagens sempre são. — Toco suas mãos, e esfrego os nós dos dedos. A
pele de Jude é quente e macia ali, um contraste aos meus dedos grossos e
calejados. — Tá vendo como sua pele tá vermelha? Tá doendo também, não
é?

— Apenas ardendo um pouco.

— Porque ignorou as bandagens. — Viro sua mão direita para cima. —


Elas servem pra impedir que os ossos do carpo — toco a parte mais próxima
do pulso — e do metacarpo —então os dedos — se movimentem durante os
golpes. Sua mão precisa estar o mais firme possível pra não se machucar —
explico, baixinho.

Jude engole em seco e recolhe a mão.

— Vou colocá-las da próxima vez. É o meu primeiro dia. — Dá de


ombros.

Balanço a cabeça e me aproximo do canto do cômodo. Pego a luva


preta extra abandonada no chão e calço-a. Dou uma sequência de golpes no
saco de pancadas — um jab, dois cruzados e um gancho. Desligo a mente e
deixo meu corpo livre. Desde minha última luta, nunca mais dei um bom soco
em ninguém — embora Jude me tente constantemente.

Controlo a respiração e estendo minha série, olhando-me no espelho o


tempo todo. É automático, espontâneo. Liberar a violência que corre em
minhas veias é a maior habilidade que tenho e, por mais que deteste
confessar, senti falta disso.

— Sua mão tá totalmente cicatrizada? — Jude pergunta em


determinado momento, ainda sentado na janela.
Finalizo a série e retiro as luvas. Fito a cicatriz na palma de minha mão
esquerda — apenas mais uma para a coleção.

— Foi só um corte idiota — respondo com desdém. Então, minha


desconfiança volta a aflorar. Olho o ambiente de treino no meu entorno, e
então o homem que o compartilha comigo. — Por que você tá fazendo isso,
Jude?

— O quê? — Ele se afasta da janela, um tanto divertido, um tanto frio,


e se aproxima do saco de pancadas. Dá um chute na coisa, balançando-a. —
É divertido, ótimo pra aliviar tensão. — Esfrega o suor do rosto e penteia os
fios para trás. — Melhor do que isso, só gozando. Agora entendo por que
você gosta tanto. — Me dá as costas e apanha as bandagens do chão.

Encaro sua nuca. Um filme do último ano da minha vida passa pela
minha mente. Curvo a nuca para baixo, melancólico.

— Eu não tive opção — murmuro ríspido algum tempo depois.

Ele se vira, ainda sem conseguir colocar as bandagens de tecido


escuro, e estreita os olhos em minha direção.

— O que quer dizer? Você não lutava antes de ir pro ringue dos
Snakes?

— Não.

— Você venceu 364 lutas seguidas sem lutar boxe antes? — Contrai o
rosto, incrédulo.

Aceno e dou um passo até ele. Prendo as luvas pretas sob as axilas e
puxo seus braços até mim. Sem dizer uma palavra, desfaço a bandagem
porca que ele fez sozinho e inicio o processo de fazer uma mais decente.
Quando eu era iniciante, também tive problemas com essa coisa.

— Eu sabia o básico — esclareço, pensativo. Minha mente está


distante, presa nas memórias do ringue. — O resto foi...

— Sorte. — Faíscas de interesse ardem em suas íris.

Contraio os lábios.

— Aprendizado. Prática — corrijo. — Perseverança.


Enrolo o tecido escuro em seu pulso, prendendo os ossos do carpo.
Em seguida, cruzo entre cada um dos dedos, imobilizando-os. Por fim, enrolo
ao redor dos nós, protegendo seu metacarpo. Quando minhas digitais tocam
a pele de Jude, não posso evitar me lembrar da pessoa que me ajudava
nesse processo antes de cada luta. Ela é grande parte dos momentos bons
que tive naquele inferno afinal de contas.

— Não acha que eu tenho perseverança? — indaga quando largo sua


mão.

Dou um meio-sorriso cansado.

— Acho que você é uma caixinha de surpresas.

Jude calça as luvas vermelhas, sem fechar o velcro, e ergue-as no ar.

— Gostou dessa?

— Não — digo ríspido e dou-lhe as costas. Caminho até a parede mais


próxima e só volto a olhar para ele quando me apoio nela.

Jude dá de ombros e entra em posição de guarda contra seu reflexo


no espelho.

— Não importa — replica. — Coloque suas luvas.

— Por quê?

— Você vai ser meu professor — diz com tanta naturalidade que, por
um segundo, não me dou conta do que as palavras significam.

Dou outra olhada no cômodo de treino ao redor. Quando percebo a


merda que ele acabou de dizer, rio descontroladamente por dois motivos:
Jude construiu tudo isso para chamar minha atenção, e resolveu me contar
isso num sábado à noite em que eu deveria estar de folga.

— O quê? — Goldman se distrai com meu riso e me fita desconfiado,


saindo da posição de ataque.

— O quê? O que, seu filho da puta? — Minha voz sai esganiçada entre
as risadas. — Você tem coragem de me perguntar isso? — Encubro a boca
com a mão. Fecho os olhos, caminho de um lado para o outro, respirando
fundo. Quando consigo me recompor, rebato: — Me tirou de casa e me
chamou até aqui pra essa merda?
— Posso te chamar quando quiser, para o que eu quiser. Temos um
contrato, se lembra? — fala em seu tom arrogante e frio costumeiro.

Enxugo as lágrimas acumuladas em meus olhos pelo riso. Expiro


profundamente mais algumas vezes até me recuperar de forma completa.

— Você é a pior pessoa que eu já conheci. A pior. Sem dúvidas — digo


com um sorriso contemplativo no rosto. Como tanta prepotência pode caber
num serzinho tão pequeno?

Ele se irrita.

— Claro. — Aproxima-se a passos pesados e furiosos pelo tatame. —


Na fila pro inferno, vou correndo na frente dos assassinos, pedófilos e
traficantes de bebês que você logo, logo vai chamar de irmãos.

É o suficiente para me irritar.

— Para com essa merda. — Aponto um indicador para seu rosto,


justamente o da mão que carrega a cicatriz. — Te disse o que aconteceu
naquele carro. Nem considerei a proposta dos Scorpions.

— Por quê? — dispara alto. — Parte da selvageria deles você já—

Agarro sua garganta e aperto-a entre meus dedos bruscamente. Jude


se sobressalta, mas não consegue se afastar; engasga, arregala os olhos,
entreabre os lábios e segura meu pulso. Inclino seu rosto para cima, para
ficar bem próximo ao meu. Penetro seus olhos azuis com meu olhar violento,
e consigo ver pequenas veias estouradas na parte branca. Na parte mais
inferior do rosto, a pele pálida é corada por um tom azulado que se alastra
lentamente.

— Me faça as piores ofensas que quiser — rosno —, mas nunca —


aperto mais seu pescoço — , nunca — sussurro —, me compare a eles.

Jude aperta os lábios e treme sob meus dedos.

Largo-o. Ele tosse e leva as mãos à garganta. Em seguida, puxa o ar


para dentro dos pulmões intensamente — tudo sem descolar os olhos de
mim. Seu peito chia, seu rosto está contorcido num ódio vertiginoso.

Você não quer comprar uma briga com Jude Goldman. Acho que enfiei
o conselho de Noah no cu.
Para minha surpresa, Jude não se afasta. Na verdade, dá um passo
em minha direção e cicia:

— Eu devia cortar sua garganta por isso.

Estreito os olhos e analiso sua expressão por um bom tempo: há fúria


misturada a algo mais intenso, algo capaz de corroer carne, ossos e bom
senso. Algo tão forte e deturpado que faz um asfixiamento parecer obsoleto.
Algo capaz de ordenar outra pessoa a construir um ringue de boxe de um dia
para o outro.

— Mas não vai — afirmo.

Jude retesa a mandíbula.

— E como tem tanta certeza? — sua voz sai rouca e baixa.

— Porque precisa de um professor de boxe. — Calço as luvas pretas


novamente. Caminho ao redor de Goldman, circundando-o, e então me
aproximo do saco de pancadas. Posiciono-me atrás dele. — Que outro
homem sobreviveu centenas de lutas sangrentas, brutais e fodidas, uma
atrás da outra? Que outro filho da puta vai poder te ensinar o que sei? —
Ergo as sobrancelhas e abro os braços. — Quer brincar? Então vamos
brincar, playboyzinho. — Aponto para ele com o queixo. — Aperte o velcro
das suas luvas. — Aperto o saco de luta com as duas mãos, balançando-o.
— Me mostre o que consegue fazer.

E cruzo os braços.

Ele não segue minha deixa imediatamente. Fica parado, me analisa de


forma suspeita. As linhas mais pronunciadas de seu rosto — nas bochechas
e logo acima das sobrancelhas — parecem particularmente afiadas. O torso
torneado, mas sem muitos músculos definidos, é desafiador — especialmente
com as letras tatuadas em suas costelas e peito. A maior parte do suor em
seu corpo já secou. A bermuda branca, fina, curta e apertada em sua cintura
deixa a maior parte de suas coxas à mostra. Nunca admitiria isso em voz alta,
mas ele está gostoso para caralho nessa roupa, neste lugar, desse jeito.

Ao fim de um minuto inteiro, Jude resolve fazer como o indicado.


Termina de fechar as luvas e caminha em minha direção. Seguro o saco de
pancadas em expectativa. Seu semblante está azedo, contrariado; os
ombros, tensos. Para em minha frente, fúria cintila nas extremidades afiadas
de seu rosto. Entra em guarda e se prepara por alguns segundos antes de
deferir o primeiro golpe, bem no centro macio do obstáculo entre nossos
corpos. Seus olhos se fixam nos meus — talvez imagine que os golpes são
em mim. Isso aumenta meu tesão.

Quando percebe que consegui absorver o golpe sem problemas e o


saco de pancadas quase não balançou, parece se irritar ainda mais. Dispara
uma série de socos descoordenados e pobremente calculados no
revestimento sintético. E não para. Não para. Não para até cansar. Sua
respiração fica pesada em busca de ar. Seu corpo é banhado num suor que
escorre por seu abdome até a bermuda, cola em seu corpo o tecido branco,
que fica transparente. E, quando por fim se cansa, continua me fitando, puto
por não conseguir me mover por sequer um centímetro.

Empurro o saco de pancadas em sua direção com força, e ele não


consegue se defender a tempo, leva um golpe na barriga.

— Patético — comento. Saio de trás do equipamento e me aproximo


de Jude.

Ele chuta o saco para trás, descontrolando-se.

— Quer saber? — cospe. — Eu não preciso que—

Seguro seu queixo e seu abdome, giro-o em direção à parede


espelhada no cômodo. Aperto-o fortemente para que não se solte,
envolvendo-o com um braço na barriga e outro sobre o torso. Sobressaltado,
Goldman sequer chega a se debater e tentar escapar. Fica parado, calado,
observando nossos reflexos junto comigo.

Com o rosto colado em seu ouvido, murmuro numa voz grave:

— Sempre olhe seu oponente nos olhos. — Ele deposita o olhar em


mim através do espelho. — Se você olhar para qualquer outra parte do meu
corpo, vou saber qual vai ser seu próximo movimento antes mesmo de você
decidir fazê-lo. Entendeu? — Ele engole em seco e assente, um pouco
relutante. Afasto-me, deixando-o livre. Posiciono-me ao seu lado, enquanto
Jude segue centrado no espelho. Analiso-o de cima a baixo, e continuo: —
Agora observe sua postura, é a primeira preocupação de um lutador
profissional. Acha que essa postura está correta?

Ele parece subitamente consciente do desalinho de seu próprio corpo.


Tenta ajustá-lo, mas não sabe o que ajustar. Por fim, apenas desiste.
— Não.

— O que tem de errado nela, consegue me dizer?

— Não.

Levanto o canto dos lábios num sorriso arrogante e entro em posição


de guarda para exemplificar.

— Sua base precisa estar aberta; confortável, mas equilibrada —


chamo atenção para meus pés afastados. — Sei que é destro porque você
bate punheta pra mim com essa mão, então sua perna esquerda fica à frente;
a direita, atrás. Os joelhos, levemente fletidos. — Ele me observa
cuidadosamente, e então imita a posição. Assinto. — Isso. Já melhorou
bastante. — Posiciono-me às suas costas. — Vire-se pra mim — peço, e ele
obedece. — Entre em guarda — peço, e ele obedece novamente. Talvez eu
possa me acostumar com isso. Ergo os punhos fechados. — As mãos ficam
sempre próximas do rosto, protegendo seu queixo. Não as deixe próximas do
peito em momento algum — abaixo os punhos para exemplificar —, ou seu
oponente terá caminho livre para nocauteá-lo. Entendeu?

— Sim.

Ele repete o que lhe foi ensinado, posso até confundi-lo com um
boxeador amador que nunca viu um tatame antes na vida.

— Bom. Temos três golpes básicos no boxe: jab e direto; cruzados; e


ganchos. O jab e o direto são golpes retos, para quando seu oponente estiver
longe. O jab é feito com a mão não-dominante. O direto, com a mão
dominante, e fazendo uma rotação com o quadril direito, até encostar suas
coxas, impulsionando seu braço. Lembre-se de que, no boxe, não são
apenas seus punhos que fazem o trabalho. Na verdade, suas mãos servem
apenas pra transferir o impulso do seu corpo ao corpo do adversário. Pense
em mover seu corpo inteiro, em movimentá-lo o tempo inteiro. Ficar parado
como uma estátua é um dos principais erros que pode cometer.

Jude expira fundo.

— Pode partir pra parte que importa? — diz com alguma antipatia.

Aperto os lábios.
— O jab é um golpe reto no seu oponente, no queixo ou no abdome.
Vamos focar só no queixo pra não complicar demais. O soco é rápido, sua
mão precisa voltar para proteger seu queixo imediatamente. — Enquanto
explico, realizo o movimento várias vezes, enfatizando diferentes etapas. —
Percebe como minha palma fica voltada pra baixo? Como meus cotovelos
não dobram pro lado? — Ele acena, e mimetiza o movimento. No entanto,
comete o erro mais básico de todos. Seguro seu braço próximo ao corpo. —
Não deixe sua mão abaixada dessa forma, lembre-se sempre de proteger seu
queixo. — E ergo-o até próximo ao rosto. Esfrego seu queixo com o polegar.
— Não iria querer que um selvagem como eu destruísse essa coisinha linda,
não é mesmo?

Um sorriso sugestivo estica-se em seus lábios:

— Então você acha meu queixo lindo?

Franzo o cenho.

— Nunca falei que o achava feio. Agora repita o jab, protegendo seu
queixo dessa vez. — Ele o faz. — Perfeito.

Continua por mais alguns segundos, até sentir que compreendeu


totalmente o movimento. Quando abaixa a guarda, há fiapos de interesse
costurados em seu semblante apático.

— E que outras partes de mim você acha bonitas?

— Por quê?

— Curiosidade.

— Então continue curioso. Agora, preste atenção — entro em posição


de guarda outra vez —: o direto é praticamente igual ao jab, mas com o braço
dominante. Pra fazê-lo, precisa girar o quadril e dar o impulso necessário.
Precisa ficar na ponta do pé, como se fosse dar um passo. Suas coxas
devem se tocar. — Novamente, realizo o movimento enquanto explico. —
Estenda o braço assim como fez no jab — ordeno. Jude o faz, com um pouco
mais de agilidade do que fez o movimento anterior, mas ainda com alguns
erros básicos. — Isso, garoto. Sempre proteja o queixo, não se esqueça.

Ele se corrige, mas volta a errar, o que é normal para alguém cuja
experiência no boxe até agora consistia em sentar na plateia e observar os
homens de verdade lutando no ringue.
— Agora, faça uma série, se aproximando com um passo — faço um
jab —, e se afastando com um passo — e um cruzado — em seguida.

Para minha surpresa, a série de Jude é mais competente e ágil do que


se esperaria de um iniciante; e, desta vez, a mão permanece o tempo todo
protegendo o queixo, o que demanda muita coordenação motora. Talvez esse
desgraçado realmente aprenda rápido.

— Ótimo. Vou socá-lo a cada dois golpes seus, e quero que se


defenda — declaro. Ele contrai os lábios e acena com a cabeça.

Começo devagar, um jab óbvio aqui, outro ali. Ele se defende deles
com alguma habilidade, porém com dificuldade em coordenar o movimento
seguinte. Quando inicio os cruzados, as séries e, principalmente, quando
aumento a velocidade, ele se desespera e acaba perdendo parte do controle.

Por algum tempo, tento não atingi-lo, espero que se renda. Mas ele
não o faz, e continua insistindo, mesmo que em clara desvantagem. Avanço
contra Goldman, empurrando-o para trás, errando meus socos
propositalmente. Quando suas costas encostam na parede espelhada e um
suspiro de surpresa deixa seus lábios, desfiro um golpe com toda a força em
seu rosto, parando a meros milímetros de seu nariz — e de uma chamada de
urgência por uma ambulância.

Jude enrijece totalmente. Suas íris assustadas encontram as minhas


enquanto meu punho ainda está tão próximo de sua face que sua respiração
fria umedece o tecido da luva.

— Não está rápido o suficiente ainda — explico —, mas não se


preocupe — e afasto minha mão. Jude engole em seco, tão tenso que
consigo ouvir a saliva descendo por sua garganta apertada pelo susto. —
Isso diz mais sobre a minha habilidade do que a falta da sua — comento
casualmente.

Abro o velcro das luvas e viro de costas, caminhando para trás. Atiro-
as sobre o tatame e esfrego o rosto. Tento ignorar minha ereção.

— Acha que tenho habilidade? — é a pergunta que faz depois de eu


quase ter quebrado seu nariz.

Posso ter alguns parafusos soltos, mas ele tem mais, muito mais.

Encaro-o novamente e dou de ombros.


— Acho que não é o pior nisso que já vi. — Encosto-me na parede
oposta ao espelho e deslizo por ela até sentar no chão. — Duraria pelo
menos um minuto contra mim no ringue.

Ri com escárnio.

— Um minuto? — Solta uma lufada de ar pela boca.

— É mais do que a maioria deles suportava.

— Claro, Sr. Rocky Balboa. — Revira os olhos e retira as luvas


também. O sorrisinho arrogante retorna ao meu rosto.

— Contra mim, o Rocky ia beijar o tatame em menos de um minuto.

Jude atira as luvas no chão.

— Você é muito prepotente — comenta.

E, mais uma vez, minha mente se prende nas memórias do ringue. Fito
a paisagem noturna de Nova York pela janela. Vejo as luzes de um avião
cruzando o céu neste momento.

— Honestamente, não era culpa deles — digo, o tom distante.

— Culpa de quem?

— Dos caras que lutavam comigo. Eles não tinham culpa de serem tão
despreparados. Eram homens normais, como eu, arrastados praquele lugar
contra a vontade.

Jude se senta ao meu lado, apoia os antebraços sobre os joelhos


curvados.

— Assim como você. Não se culpe por sobreviver — sussurra próximo


ao meu rosto, gentil e cálido.

Em momentos como esse, ele soa tão diferente do homem que acabou
de me comparar aos criminosos que destruíram a minha vida; preciso me
virar em sua direção para me certificar de que é a mesma pessoa. E,
surpreendentemente, ainda é. E suas palavras — as palavras que ninguém
me disse até agora, nem Olivia, nem Noah, nem o maldito espírito de meu pai
em meus pesadelos — preenchem um buraco em meu peito junto com a
serenidade de seu olhar, com o calor de sua pele tão próxima à minha.
Por um momento, esqueço qualquer coisa sobre o homem ao meu
lado que não seja este olhar, esta voz, estas palavras, e me permito demolir
parte da armadura com que aprisiono minhas inseguranças.

— Quantas mortes causei por causa daquele maldito ringue? —


murmuro, mais frágil do que gostaria, talvez mais frágil do que jamais soei em
minha vida.

E Jude percebe isso. Percebe, e não tenta se aproveitar. Percebe, e


responde instantaneamente:

— Você não causou nenhuma morte. Os cadáveres estão todos nos


ombros dos Snakes, Kim. Não seja cruel consigo mesmo.

— O meu também estaria nos ombros deles se não fosse por você.

Os lábios desenham um sorriso tímido, um sorriso que nunca antes vi


em sua face. É doce e calmo e vívido e jovial; parece o sorriso de uma versão
passada de Jude, uma cujos sentimentos não estão escondidos sob camadas
e camadas de gelo impenetrável.

Ele desvia o olhar de mim em direção ao espelho. Agora, eu que não


consigo afastar a atenção dele.

— Bom saber que tem alguma gratidão por isso — balbucia. Os dedos
brincam com o tecido acolchoado do chão.

— Ainda não sei por que fez isso.

O sorriso jovial se desfaz. O rosto volta a ser recoberto por penumbra.

— Agora não é o momento certo.

— E ele virá eventualmente?

— Não sei.

Ajusto-me na parede. Encaro-o ainda mais de perto:

— Por que inventou essa história do boxe justo hoje, quando eu estava
com Noah? — Arqueio as sobrancelhas. — Estava com ciúme dele?

— Ciúme? Do seu irmão? — Força uma risada. — Você é muito


engraçado.
Arrasto meus dentes uns contra os outros. Aproximo-me mais; nossos
ombros se encostam. Jude respira fundo.

— Então me dê uma explicação melhor — reclamo.

— Me deu vontade súbita de socar alguma coisa e você não estava


aqui. Tentei me distrair com essas coisas — aponta o saco de pancadas —,
mas no final tudo o que queria era socar esse seu rosto feio.

Jude parece claramente desagradado, impaciente. Está mentindo.

Seguro seu queixo e viro-o para mim, fitando suas íris gélidas outra
vez, os malditos pedaços de oceano que às vezes me fazem esquecer de
quem sou.

— Acha que sou feio? — indago com o cenho franzido, e sinto sua
respiração pesada contra meu rosto.

— É o filho da puta mais deformado que já vi na vida — diz com uma


convicção fajuta.

Uma lufada de ar escapa da minha boca.

— E você fica de quatro com um sorriso no rosto pro cara mais feio
que já viu na vida? É tão pouco exigente, Jude Goldman? Sei que não se
importa com o boxe, que só fez essa merda pra chamar minha atenção.

— E por que caralhos eu iria querer chamar sua atenção?

— Essa é uma pergunta pra você mesmo responder.

— Está se iludindo, Kim Henney.

Fecho os lábios num biquinho parecido com o de Noah e penso um


pouco.

— Sabe o que acho? — Afasto a mão de seu rosto e apoio a cabeça


na parede, sem desviar o olhar dele. — Acho que, mesmo quando estou
longe, você não consegue me tirar da cabeça. Estou certo, Jude? Você vive
pensando em mim quando está sozinho no seu apartamento, e até quando
está no seu escritório com as portas fechadas. — Toco sua coxa exposta, e
minha mão sobe até logo abaixo de seu pau. — Quantas punhetas já bateu
pensando em mim?
Jude vira o rosto para o outro lado. Obrigo-o a olhar para mim. Ele toca
meu pulso ao mesmo tempo em que fecho a mão ao redor de seu membro
sobre a bermuda. Um gemido exasperado escapa de sua garganta.

— Eu te odeio tanto. — Aperta forte meu pulso com uma mão, e com a
outra agarra meu ombro. — Às vezes acho que estou enlouquecendo —
confessa de olhos fechados.

Um calafrio atravessa minha espinha. É exatamente assim que me


sinto.

Seguro seu rosto e trago-o para mim. Nossas testas se tocam.

— Mesmo assim — murmuro em sua face —, você escolhe treinar o


esporte que eu treino. Escolhe aprender o que eu sei, me chama pra vê-lo
assim, em busca de validação. Fica desesperado pela minha atenção. — A
respiração de Jude se acentua a cada palavra minha. Deslizo o polegar para
dentro de sua boca, tateio seus dentes, em cima e embaixo, e então puxo o
canto dos lábios, tensionando e esticando a pele sensível, sentindo a
umidade quente de sua saliva na ponta de minhas digitais. Ele geme
profundamente quando a tensão se torna dor, desmanchando em meus
braços. — É isso que chama de ódio? — Dou um tapa forte em seu rosto. Ele
geme novamente e abre os olhos. — Então me beije com todo o seu ódio —
comando, ávido e rijo. Sob a cueca, minha ereção reclama. — Eu vou te fazer
gritar com o meu. — E encubro-lhe com todo o nojo, fúria e indignação que
cozinhavam dentro de mim.
QUER ME ENFORCAR?
há certas palavras que você não diz
não há amor quando você me segura
não há ligação no dia seguinte
esse amor é unilateral
sex money feelings die — lykke li

de Jude. Sinto a dor estimulante de seus


N F I O D O I S D E D O S N A G A R G A N TA
E
dentes se fechando em minha carne. Sua boca se enche de saliva — saliva
que escorre pelos cantos dos lábios. Ele chupa meus dedos enquanto o como
de quatro sobre o tatame, de frente para a janela e de costas para a porta. Ao
lado, há o reflexo de nossos corpos nus e suados no espelho. Retiro os dedos
de sua boca e seguro seu quadril. Com a mão livre, puxo seu cabelo, curvando
suas costas — elas tocam meu peito, a pele suada desliza sobre a minha.
Nossos corpos se movem em um ritmo contínuo, prazeroso.

A cada vez que fodemos, entendo mais sobre o corpo dele. Existe um
equilíbrio entre a velocidade e a intensidade que Jude consegue suportar;
preciso me controlar para não ultrapassar esse limite. O problema é que ele
se comunica apenas quando o limite já foi ultrapassado. É difícil saber
quando está sentindo prazer ou desconforto, quando está sentindo algo ou
nada.

Isso é novo para mim. Olivia sempre deixou seus gostos muito
explícitos, eu estava acostumado a ultrapassar o limite entre dor e prazer com
ela. Com Jude, me sinto preso por uma coleira.

Foder Jude é como navegar por uma maré turbulenta e cheia de


tubarões — qualquer erro e viro a carne do seu jantar.

Penetro Jude inteiro de uma vez só. Ele praticamente engasga com a
própria saliva.
— Vá um pouco mais devagar, desgraçado! — Soca meu peito,
impedindo meus movimentos. — E um pouco menos fundo também.

Ele se curva sobre o tatame e apoia os cotovelos na superfície


acolchoada. Deslizo para fora, até mais ou menos a metade. Espero alguns
segundos até seu desconforto passar.

Arrasto os polegares pelos flancos do homem de quatro até o “J”


tatuado sobre os músculos oblíquos. É mesmo a inicial de seu próprio nome?

Observo a paisagem da cidade através da janela. A noite está em seu


ápice, mas algo chama minha atenção: o tom índigo profundo do céu está
atravessado por algumas nuvens carregadas. Choverá em breve. Espero que
eu consiga voltar para meu irmão antes do temporal. Depois de nossa briga,
não há dúvidas de que precisamos de algum trabalho de reconstrução em
nossa relação, e de que a desconfiança de Noah está saindo do controle.

Antes disso, no entanto, preciso encerrar o expediente aqui com Jude.

Piso no tatame com o pé direito, me posicionando de maneira mais


cômoda. O joelho esquerdo está no chão, me equilibrando. Seguro a cintura
de Jude com firmeza, então volto a me movimentar. Os sons de nossos
corpos se chocando ficam mais altos e rápidos.

— Hmm... — Ele se apoia em um punho cerrado, curva-se para trás e


fecha o outro ao redor da minha garganta. — Não escutou o que eu disse,
porra? Por acaso está com pressa hoje?

Meu corpo inteiro se retesa. Fico imóvel, fitando seu olhar


repreendedor. Devo mentir? Devo inventar uma desculpa esfarrapada?
Sequer devo satisfações a este filho da puta?

Não. Não devo.

O silêncio se prolonga. Ele aperta mais meu pescoço. Os dedos se


enterram na minha traqueia, me enforcando.

Sento nos calcanhares, saio de dentro dele. Agarro seu pulso.

— E se eu estiver? Você se importa?

— Da mesma forma que me importo com todos os meus animais de


estimação. Gosto de saber o que se passa em suas cabeças.
— Então você anda dando o cu pra outros homens?

Jude crava as unhas na minha garganta, logo acima das jugulares.

— Não me teste, cão — rosna. — Por que está com pressa?

Meus dentes rangem, mas permaneço firme. Lágrimas de dor


queimam meus olhos, mas permaneço firme.

— Não é da sua conta.

Ele semicerra os olhos.

— Você é meu. É claro que é da minha conta. Se lembra do que eu te


disse, Kim. Você precisa parar de resistir. Será mais fácil pra amb—

Puxo seu braço para longe do meu pescoço. Ele se desequilibra, cai
de costas no chão. Surpreso, fica parado, me encarando de baixo. Há
hostilidade em seu olhar.

Meu estômago embrulha. Talvez eu tenha sido agressivo demais.

Estendo-lhe uma mão.

— Desculpa por isso. Você estava me machucando.

Ele encara a mão, furioso. Ainda preciso decidir se o odeio mais


quando não tem expressão nenhuma no rosto ou quando tem.

Por um momento, acho que vai me socar ou me derrubar junto


consigo. No entanto, tudo o que faz é dar um tapa na palma estendida e se
levantar por conta própria.

— Pra alguém que sobreviveu tanto tempo num ringue, você tem uma
baixa tolerância pra dor. — Bufa e se arrasta para longe, sentando-se contra
a parede oposta ao espelho.

Cruza os braços — como Noah faz quando é contrariado.

— Vai ficar surpreso quando descobrir que os lutadores são todos uns
frouxos — digo.

Com certa cautela, me aproximo dele no tatame.

Jude me fita novamente.


— Você é um frouxo? — debocha.

Vejo parte da fúria se dissipar em suas íris. Estico os braços pela


parede e inspiro fundo. Contorço a nuca para aliviar o desconforto, as
vértebras estralam. De relance, vejo meu pau mole colado na coxa. Faço uma
careta de dúvida.

— Às vezes...

Os vincos na testa de Jude desaparecem. Ele aperta os lábios e vira o


rosto para o outro lado.

— O que foi? — pergunto.

— Nada.

Agarro seu queixo, viro-o de volta a mim.

— Nada? Com esse sorrisinho? — Ele balança a cabeça até se soltar


e fita o espelho à nossa frente. — O quê?

Continua em silêncio. Só pode estar de brincadeira comigo.

— Então você quer saber tudo o que se passa na minha mente mas
não quer dizer o que se passa na sua? — pergunto.

— Exatamente. Algum problema?

— Bem injusto da sua parte.

— Está procurando por justiça no lugar errado. — Bufa outra vez, e


agora parece mais próximo do Jude convencional, apático e insuportável.

Ficamos em silêncio por um tempo, pelo tempo necessário até as


coisas se tornarem um pouco menos desconfortáveis. Esfrego a nuca. Penso
no que me levou a agredi-lo daquele jeito.

Desligo a mente, então deixo meu peito falar:

— É Noah. As coisas não estão exatamente boas em casa depois de


todo o tempo que passei com os Snakes, e agora com você. Ele desconfia de
nossa relação, Jude, e não acha que estou seguro. Acha que estou me
enfiando num buraco ainda maior. E está certo, certo pra caralho. Os
Scorpions já vieram atrás de mim. É questão de tempo até os outros filhos da
puta vierem também.
Pelo canto dos olhos, Jude me fita com curiosidade mórbida. Continua
alerta, mas um pouco menos tenso.

— Você me disse que a conversa foi pacífica, exceto pelo corte. Houve
algo a mais na oferta deles que te fez achar o contrário?

— Sempre há segundas intenções quando se trata desse tipo de


gente. E se insistirem? E se a próxima conversa pacífica ocorrer na minha
casa, com meu irmão? Pensava que tudo ficaria bem quando o inferno com
os Snakes acabasse, mas talvez tenha sido otimista demais, idiota demais.

— Você é bem idiota. — Um sorriso irônico arrasta-se em seus lábios.

Afogo uma risada. Abro mais as pernas, relaxando.

— Eu sei. Assinei um contrato com você.

Seu sorriso se alarga. Para alguém tão sério o tempo todo, ele tem um
sorriso lindo.

— O único que pode colocar as mãos em você, ou em Noah, sou eu.


Se os Scorpions tentarem foder com você, estarão fodendo comigo. Se os
Snakes resolverem voltar atrás no nosso negócio, ou colocarem a mão na
minha propriedade, haverá sangue. E eu te garanto, Kim: não será meu, nem
seu.

— Se preocupa tanto comigo?

— Enquanto nosso contrato estiver vigente, você é minha propriedade.


Ninguém toca no que é meu.

Lentamente, nos aproximamos.

— Além do mais, você reclama muito — comenta depois de um tempo.


— Qualquer outro cara naquela fossa mataria pra ter a mesma oportunidade
que você tem.

— E, mesmo assim, você me escolheu.

— Já disse, você era o—

— Mais barato? Corta essa. — Nego com a cabeça. — Você não


parece o tipo de cara que economizaria nisso. — Aponto para mim, então
para ele.
Jude semicerra os olhos.

— O que te faz achar que sabe que tipo de cara eu sou?

Touché.

Preciso me concentrar para não sorrir. Me aproximo mais dele, envolvo


seus ombros com o braço. Sussurro:

— Não sei. Foi só um chute. — Ele se retesa, mas está preso sob o
meu toque, não pode se afastar muito. — E, pela sua reação, acho que
acertei.

Não consigo mais controlar o sorriso quando ele me olha assustado.


Suas bochechas estão particularmente rosadas depois do sexo.

— O que você realmente quer de mim? — pergunto. O silêncio de


Jude é impenetrável. — Meu pai dizia que diálogo é uma via de mão dupla —
sussurro.

— E devo ouvir os conselhos do seu pai agora? — sussurra de volta.


Os lábios pairam entreabertos, úmidos.

Toco seu rosto, fazendo um carinho lento nas bochechas.

— Não precisa estar sempre na defensiva comigo. Não vou te


machucar, não vou fugir. Tenho uma família pra cuidar — tiro esse peso do
peito. Encaro o fundo de seus olhos. — Vou apenas cumprir o contrato e
sumir da sua vida logo em seguida.

— Bom — é tudo o que diz, no tom mais frio que já escutei sair de sua
garganta.

No instante seguinte, nossos lábios se encontram, mais ávidos e


violentos do que antes. Meu coração dispara por um motivo que não consigo
identificar ou descrever. Enquanto monta em mim e meu pau volta a
endurecer, tudo em que penso é naquela voz fria, na total falta de expressão
no seu rosto.

O que você esconde por trás dessa máscara de apatia, Jude


Goldman?

Jude faz todo o trabalho de me colocar dentro do seu corpo. De frente


à janela, senta no meu pau com certa dificuldade. Curva-se sobre mim e
morde meu lábio quando entro até a base, bem no local que mordeu no
vestiário da Armani. Fica parado, se acomodando à penetração.

Tenta se mover pela primeira vez. Se interrompe e seu corpo enrijece


logo em seguida. Arfa em busca de ar. Nossas bocas se separam. Observo-o.
O rosto está contraído em uma expressão de desconforto. As bochechas não
estão mais coradas: estão vermelhas. Os olhos estão fechados fortemente.

Retiro alguns dos fios que caem sobre sua testa.

— Se estiver doendo demais, podemos mudar de posição.

— Cala a porra da boca — resmunga e geme ao mesmo tempo.

Deslizo as mãos pelo seu corpo, até segurar seus flancos e me inclino
para frente, sentando. Puxo-o para frente, de encontro ao meu peito,
retirando parte da pressão de seus quadris. Ele aperta meus braços quando
sente o alívio, enterra a cabeça no vão entre meu pescoço e meus ombros.

Coordeno os movimentos lentamente, puxando sua cintura para cima e


para baixo, empurrando meus quadris quando quero senti-lo um pouco mais.
Os grunhidos e suspiros de Jude em minha nuca tornam-se mais frequentes
— é o sinal de que o prazer está substituindo a dor. Os gemidos pertinho do
meu ouvido me enlouquecem.

Crava as unhas nos meus bíceps e arrasta-as sobre a pele.

Geme sobre mim, e quero que gema mais.

Me machuca, e quero que machuque mais.

Sua respiração acelera, e quero que fique exasperada.

Depois de algumas estocadas, quando estou bem próximo de gozar,


Jude se afasta do meu pescoço. Pega minha mão e a leva até sua garganta.

— Quer me enforcar? — sugere, ansioso.

Não paro meus quadris. E ele não para os dele.

Por que a súbita mudança de ideia? Abro os lábios para perguntar,


mas ele é mais rápido:

— Pode fazer. Eu permito dessa vez.


Merda. Tento pensar claramente, mas a cada estocada minha mente
se torna um borrão. Estou muito próximo.

Esfrego seu pomo-de-adão com o polegar, sinto a fricção da pele


macia contra minhas digitais. Ele engole em seco bem nesse momento, retira
um gemido de mim. Como quer que eu me controle desse jeito? Meu coração
acelera mais, adrenalina corre em minhas veias.

Fecho a mão na base da sua garganta. Ele inspira fundo, inseguro,


mas decidido. Assente suavemente, me encorajando a continuar.

Foi você quem pediu.

Começo a apertar. Ele perde o ar por um segundo.

Interrompo meus dedos, meus quadris também. É quando enrijeço


completamente, como se visse uma assombração por cima de seus ombros.

— O que foi? Por que parou? — indaga, o semblante confuso.

Meus olhos arregalados estão longe dele, parados na porta do cômodo


às suas costas.

Jude segue meu olhar lentamente, curvando o pescoço para trás.

— Oh, perdão por atrapalhar — diz a mulher parada na entrada. Ela


fita nossa foda sem receio, sem susto, sem incômodo algum, e isso me
apavora ainda mais.

Seus cabelos são de um amarelo brilhante, estão presos em um coque


frouxo. Os ossos das bochechas são bem pronunciados, assim como as
clavículas. A pele é alva e delicada. As roupas são finas e caras: uma blusa
bege, que expõe os ombros, cuidadosamente entocada no interior da saia,
branca, de cintura alta e que desce até os joelhos. Brincos com pedras
preciosas balançam nas orelhas. Um colar de pérolas adorna o pescoço fino.
Saltos altos. Uma pequena bolsa de grife na mão direita. Uma aliança de
ouro na esquerda.

Seu olhar esverdeado encontra o de Jude. Eles se encaram por algum


tempo.

Assustadoramente, Goldman parece tão tranquilo com a situação


quanto a mulher que invadiu sua casa.
Ele expira fundo quando termina de analisá-la.

— Por que veio aqui sem avisar? — pergunta.

A mulher dá dois passos à frente, entrando no mesmo cômodo que


dois homens no meio de uma foda. Meu pau ainda está dentro de Jude.

— Não achei que precisasse — ela diz.

— A partir de agora, precisa — Jude rebate num tom calmo.

Alterno o olhar confuso entre o rosto dele e o dela. Tento entender que
merda está havendo aqui. Porém, qualquer hipótese na qual eu possa chegar
é triturada quando ele se volta para mim e diz:

— Vamos continuar. — E tenta me beijar.

Empurro-o para o lado bruscamente, afastando nossos corpos.


Levanto do chão.

— Continuar...? Enlouqueceu? — é tudo no que consigo perguntar.

O absurdo da situação faz o mundo girar ao meu redor.

Jude franze o cenho. Meio deitado no tatame, dá outra boa olhada na


mulher que invadiu seu apartamento. Ela respira fundo, passa por nós ao
aproximar-se da janela. Dali, observa a vista de Nova York.

Goldman volta a olhar para mim, agora com um sorriso cínico.

— Não se preocupe, ela é só a minha esposa.


PET
em algum momento você pensa em mim
quando deita na sua cama de mentiras?
sou inteligente o bastante pra não olhar nos seus olhos
eles só fingem que você é meu
e você me fez acreditar nisso
me manteve preso em todas as teias que teceu
bed of lies — nicki minaj, skylar grey

PA N H O M I N H A C A L Ç A D O C H Ã O e encubro meu pau. Aproximo-me da porta


A
do cômodo.

— Mas que porra, Jude? — sibilo entredentes, furioso. Tão furioso que
nem consigo fitá-lo nos olhos.

Ele finalmente se levanta, as sobrancelhas douradas terrivelmente


franzidas, como se realmente não entendesse a merda que está acontecendo
— a merda que ele está fazendo.

Pego minha cueca e visto-a com pressa, um tanto desajeitado.

— Por favor, não se incomode comigo, finja que não estou aqui. — A
mulher cantarola e se vira em minha direção. Nossos olhares se cruzam. —
Sempre tive curiosidade de ver dois homens fodendo na vida real. —
Caminha em direção a Jude. Posiciona-se ao seu lado, como uma matriarca,
e esfrega seus ombros. Beija sua bochecha e acaricia seu rosto. — E que
oportunidade melhor de fazê-lo do que com meu próprio marido? — Jude a
fita. — Vá em frente, quero ver.

Meu rosto queima. Minha mandíbula está tão tensa que posso quebrar
meus próprios dentes a qualquer momento.

Com um pequeno aceno à mulher e uma expressão de desinteresse,


Jude se aproxima de mim. Estou meio paralisado, então não consigo impedi-
lo. Ele beija meu peito.
— O que foi? — resmunga contra minha pele, subindo os beijos até os
ombros. — Você a ouviu. — Beija minha clavícula. — Esqueça ela. — Beija
meu pescoço. — Esqueça sua casa. — Beija minha bochecha, acariciando os
cabelos na minha nuca. — Foque apenas em mim. — Pega minha mão, leva-
a até sua garganta outra vez. — Aqui. Você quer me enforcar, não quer?

Meu olhar está fixo na mulher às suas costas.

— Kim? — Jude insiste. Contraio os lábios. Ele se aproxima do meu


ouvido e sussurra: — Faça o que quiser comigo hoje.

Saio do transe e empurro Jude para trás bruscamente. Visto a calça de


maneira rápida e desajeitada.

— Que diabos é isso? — esbravejo. A intrusa inclina o pescoço para o


lado num misto de curiosidade e decepção. Jude estreita os olhos, entrando
em posição de defesa. — Como quer que...?

Não consigo colocar para fora tudo o que estou sentindo. Vergonha
misturada à ira, misturada a desejo; é uma combinação explosiva.

Me recomponho. Respiro fundo algumas vezes, então pergunto mais


baixo, somente para ele:

— Ela é mesmo sua mulher?

— Acha que eu mentiria sobre algo assim?

Jude estuda meu semblante por um tempo. Após alguns segundos,


vira-se à intrusa e faz um gesto com a cabeça para que deixe o local.

— Vou esperar na sala — ela diz e segue a ordem silenciosa. Ao


passar por mim, toca meus ombros e minhas costas. Seu olhar permanece
fixo no meu até desaparecer pelo corredor.

Jude caminha até a janela de maneira relaxada e se senta nela, as


pernas bem abertas, os fios bagunçados caindo sobre o rosto. Há repreensão
em seus olhos.

— Feliz agora? Estou sentindo um tom de julgamento na sua voz, Kim.


Desconfiança, até. Achou que éramos exclusivos um do outro?

Mordo o lábio inferior e esfrego a boca. Ele levanta, depois se


aproxima.
— Que estúpido — diz. Empina o queixo. — Você é meu pet, não deve
ter uma consciência. Ou melhor: não tem permissão pra ter uma consciência.
Julgamentos? Senso crítico? — Uma risada ácida ecoa pelo ambiente. —
Cães não têm essas coisas. Então obedeça suas ordens e não pense em
mais nada.

A ira suprime a vergonha, dizima qualquer resquício de desejo que


ainda existia dentro de mim.

— Vá à merda.

Pego minha camisa do chão. Me viro. Tento sair pela porta, mas Jude
agarra meu braço.

— O quê?

— Vá à merda você — repito — e sua maldita esposa — puxo meu


braço com força. — Tá brincando comigo? Não vou te foder enquanto...

Percebo que não sei o nome da estranha; compreensível, já que


sequer sabia de sua existência até minutos atrás.

— Vou esperar no carro caso precise ir a algum lugar — digo.

Dou as costas e caminho para fora do cômodo de treino; depois, em


direção à porta do apartamento.

— Não seja insolente — ele murmura às minhas costas e me segue.


— Fique aqui.

Quando percebe que não vou obedecê-lo desta vez, é tarde demais.
Agarro o puxador da porta de saída do apartamento e fito-o sobre os ombros
uma última vez.

— Não vou permitir que me humilhe desse jeito.


do box e inclino o pescoço para baixo. Fito
E R R O O P U N H O N A PA R E D E
C
meus pés descalços. A água fervente cai em minha nuca, desce pelas
minhas costas, me ensopa, e, paradoxalmente, aplaca o calor incontrolável
que sinto por dentro. O vapor embaça minha visão. Cravo as unhas na carne
macia das minhas palmas enquanto suas palavras ressoam ao meu redor.

“Não vou permitir que me humilhe desse jeito.”

“Não vou permitir que me humilhe desse jeito.”

“Não vou permitir que me humilhe desse jeito.”

Quem ele acha que é para decidir o que posso ou não fazer com ele?
Para dizer quando posso ou não humilhá-lo? Quão inconsequente alguém
precisa ser para desafiar o homem que tem seu destino na palma da mão?
Que o salvou de um maldito canil? Ele quer voltar para lá?

Ou é simplesmente emocionado demais? Algumas fodas e já acha que


somos namorado e namorada? Não entendeu a merda que está acontecendo
aqui?

Soco a parede.

Como pode me deixar desse jeito?

Soco a parede.

Como pode me fazer perder a porra do controle?

Esmago a parede com os nós dos dedos.

Por que não me obedece o tempo todo? Posso matá-lo só por isso.

Soco.

Posso jogar seu corpo aos ratos do esgoto só por ter complicado tudo.

Soco.

Não entende que há muito mais em jogo aqui? Por que não entende?

Soco.

“Não vou permitir que me humilhe desse jeito.”

A dor me invade de uma vez só, como um choque. Grito. Tento abrir a
mão, mas não consigo: é como se a passasse por um moedor de carne. Meu
braço inteiro fica dormente.

Por que ele é tão atraente quando toma controle sobre si?

“Não vou permitir que me humilhe desse jeito.”

Talvez deva devolvê-lo ao canil e comprar outro cão — um que não me


cause tanto estresse, que não faça meu coração acelerar.

Deixo a cabeça sob o jato de água quente, sentindo-o lavar minhas


impurezas. As de fora, pelo menos. Nada pode me livrar das impurezas de
dentro.

Encaro os nós dos meus dedos em carne viva. Tenho o desejo visceral
de esmagá-los contra a parede até meu sangue pintar os azulejos brancos.
Mas me lembro de que tenho visita. Minha querida esposa está me
esperando no andar de baixo.

Me ajoelho no chão do banheiro.


Que espere.
AUDREY
posso ver pelo seu olhar
que você acha que não sou digna do seu tempo
que não se importa com a mulher na qual posso me tornar
que fica ofendido sempre que faço exatamente o que você quer
like that — bea miller

fecho e abro a mão machucada. Não está


— ME R D A . . . — R E C L A M O Q U A N D O
quebrada e a dor não vai me incapacitar, mas, ainda assim... sinto que
devo punir Kim por isso de alguma forma.

Desligo o chuveiro. Deslizo a porta de vidro do box, abrindo-a apenas


o suficiente para que meu braço escape. Pingando água quente, estendo a
mão para apanhar a toalha que deixei presa no suporte da parede.

Não a encontro. Expiro fundo. Abro totalmente a porta. Dou dois


passos para fora do box.

Florence está apoiada na entrada do banheiro, a toalha branca em


suas mãos, a nuca curvada para baixo. Ela brinca com as fibras do tecido,
arrancando uma por uma, desfigurando-o lentamente. Pelo buraco aberto no
centro da toalha, percebo que ela está aqui há algum tempo.

Isso não me surpreende, não me assusta, não me causa qualquer


reação. Encaro-a inexpressivo, esperando o momento em que me estenderá
a toalha. A água residual escorre pelo meu corpo, empoça o chão. Quando
alcança seus saltos, molhando-os, ela ergue o rosto em minha direção.
Ignorando minha nudez, me estende o tecido.

Apanho-o. Caminho até a frente do enorme espelho retangular sobre a


pia, na parede oposta à do box. Florence continua apoiada na abertura da
porta, me observando com seus olhos cristalinos e analíticos — olhos que
perdem em frieza apenas para os meus.

Esfrego a toalha no corpo. Ela começa:


— Parece que você mordeu mais do que consegue engolir. — Cruza
os braços sobre o peito. Sigo focado em me secar. — Quem era o homem na
sala de treino? Ele pareceu um pouco... — se interrompe para buscar a
palavra certa — temperamental.

Ignoro o tom viperino em sua voz. De fato, ignoro-a completamente


enquanto me seco. Termino com o corpo e enrolo a toalha na cintura. Ligo o
secador de cabelo. Ele faz um barulho irritante que preenche o banheiro.
Florence permanece me encarando enquanto aguarda sua resposta. Ela tem
a paciência de um animal noturno.

Após alguns minutos, termino também com o cabelo. Quando desligo o


aparelho da tomada.

— Não te interessa — respondo.

E não parece ser bem o que ela queria ouvir.

Minha esposa descruza os braços do peito e caminha até mim. Se


apoia na porcelana branca da pia, retruca em tom afiado:

— Acho que saber quem é o homem que está fodendo meu marido é
de meu interesse sim, Jude. Não acha também?

Encaro-a de relance. O quão útil será essa conversa?

Encaro meu reflexo no espelho. Tão útil quanto raspar os pelos quase
invisíveis da minha barba.

Já que ela não parece disposta a me deixar em paz facilmente, resolvo


unir uma inutilidade à outra. Pego a navalha e o creme de barbear guardados
no balcão da pia.

— Meu chofer — digo, despejando parte do creme de barbear na


palma das mãos. — Ele é apenas meu chofer. — Esfrego o creme no rosto.

— Chofer? — Ergue as sobrancelhas bem delineadas. — Ele não é


jovem demais pra um chofer?

Abro a navalha.

— É mais velho do que eu e você.

Fito o rosto da minha mulher, a lâmina perigosamente exposta entre


nós. Florence não se altera, não pisca, sequer perde o compasso da
respiração. Ou não tem medo de mim, ou não imagina o que a navalha pode
fazer em seu belo rosto.

Reviro os olhos. Aproximo a navalha da minha bochecha e me inclino


em direção ao espelho. Esfrego a lâmina na pele pela primeira vez. O creme
cai na pia branca.

— Aqui, deixa que eu faço pra você — diz.

Ela toca meu ombro, retira a navalha da minha mão. As unhas


vermelhas parecem particularmente letais segurando uma lâmina. Me vira
para encará-la, aproxima a navalha do meu rosto, concentrada. Seu
semblante se distancia, seus olhos perdem o brilho — está refletindo sobre
algo.

Observo seus movimentos delicados e gentis em silêncio. A lâmina


toca minha bochecha e desliza para baixo, levando parte do creme. Florence
bate a lâmina na pia e a limpa, recomeçando o processo.

Meus pensamentos acelerados por causa de Kim se acalmam neste


processo. Há certa paz em ser barbeado por outra pessoa, em confiar a
alguém uma lâmina afiada próxima de seu rosto, contra sua garganta... e
saber que não está em perigo.

— Eu sei o que é isso — ela comenta depois de um tempo.

— Sabe?

— Aham — murmura de lábios fechados.

Segura meu queixo, sujando os dedos com o creme. Vira meu rosto de
um lado para o outro, analisando as áreas já barbeadas e as que ainda
precisam de trabalho.

— Ele é a parte que estava faltando no plano, não é? Seu... —


aproxima a lâmina da minha mandíbula — chofer — e a puxa para baixo. A
navalha passa um pouco fundo demais, mas não o suficiente para me
machucar. — É ou não?

— É.

Faz um biquinho com os lábios finos e rosados, afogando um possível


sorriso de convencimento.
— Como está indo? — Ela pressiona a navalha contra a parte mais
superior e lateral da minha mandíbula. — O plano?

Movo as fileiras de dentes de um lado para o outro enquanto a lâmina


desliza, testando sua habilidade de não me cortar.

— Como o planejado.

— Isso é uma coisa boa, certo?

Viro o rosto para o lado, para o homem — recém-banhado mas pútrido


por dentro — do outro lado do espelho.

— Sabe muito bem que sim — respondo roucamente. Limpo a


garganta, encaro Florence de relance. — Ela estará de volta em alguns dias.

— Ouvi o rumor. — Minha esposa toca meu queixo e me vira para


encará-la outra vez. A lâmina é mais suave quando me toca desta vez, e a
voz é mais cuidadosa ao dizer: — Também ouvi os rumores sobre você que
provavelmente a fizeram abandonar tudo em um momento crítico das
negociações. Notícias viajam rápido.

Minha mente navega até a mulher do outro lado do Atlântico.

— Especialmente quando interessam a ela — balbucio.

— Por que resolveu desafiá-la agora, Jude? Depois de todos esses


anos? Se isso é uma parte do plano que não me contou, então é uma parte
bem estúpida.

— O plano é meu. Eu decido o que é estúpido e o quanto quero que


você saiba.

— Então por que trazer um miserável inocente pra dentro disso? Por
que ser tão cruel?

— Não há inocentes aqui. Você já deveria ter aprendido isso.

Ela se limita a concordar com a cabeça. Retira mais um, dois cortes de
creme do meu rosto antes de comentar:

— Ele é bonito.

Perco a concentração e meu pescoço afunda alguns milímetros na


lâmina. Florence a puxa para trás. Fico a uma respiração profunda de ser
degolado.

Ela me fita com repreensão. Semicerro os olhos e atravesso esse


olhar.

— Quer fodê-lo? — pergunto sem esconder a repulsa na voz.

Florence faz uma careta de tédio.

Quando estou certo de que a resposta é negativa, digo em tom mais


cínico:

— Ele ficaria feliz em me prestar mais esse serviço.

— Já sabe o que quero.

— Sei de seu fetiche, mas pode esquecer; não vamos transar com
você no mesmo cômodo. Particularmente, não me importaria, mas Kim é
muito moralista.

Ela encosta a lâmina na última porção do meu pescoço ainda coberta


pelo creme quando diz:

— Você está mais arisco do que o comum — e a desliza para baixo.

A navalha faz um som abafado ao romper a pele do meu pomo-de-


adão, arrancando uma lasca. Sinto um ardor fraco no local. Encaro minha
mulher com descrença; seu rosto parece inexpressivo, inabalado.

— Desculpe — diz sem qualquer emoção e atira a navalha aberta na


pia, sem se preocupar em limpá-la.

Aperto os lábios, controlando minha fúria. Me inclino sobre a pia e


observo o corte no espelho. É insignificante, mas vai deixar uma marca. Um
minúsculo filete de sangue se derrama do ferimento. Esfrego o polegar sobre
ele. Abro a torneira de água quente. Lavo meu rosto.

— Como conheceu ele? — indaga despreocupada, como se


perguntasse sobre as horas ou a merda do clima.

— Durante a investigação.

Pego a embalagem do pós-barba sobre a pia.

— No clube de luta? — pergunta.


— No clube de luta.

Passo o gel na pele recém-barbeada, especialmente no corte deixado


por Florence. O sangue já estancou, embora o ardor fraco ainda permaneça.

Florence apoia as costas na porcelana branca e cruza os braços sobre


os seios. Encara o box úmido atrás de mim. As pulseiras de prata balançam;
a aliança que dei a ela reluz no dedo anelar da mão esquerda.

— Ele não é exatamente o que penso quando imagino um lutador


ilegal — diz com desdém fingido.

— Você tem uma imaginação bem limitada.

Me lança um olhar desagradado. As íris frias descem do meu rosto às


tatuagens em meu peito, então à em minhas costelas. Seu olhar para ali por
alguns segundos.

— O que descobriu nos Snakes? — pergunta.

Me apoio na pia e estico os braços, os olhos fixos no reflexo.

— Não muito. — Suspiro. — Um nome. — Meus braços se contraem


quando aperto a porcelana com mais força.

— De quem?

— De alguém que pode ter participado do assassinato.

— E qual é o nome?

Umedeço os lábios.

— Olivia — o nome sai, deixando um gosto agridoce para trás. Se por


um lado preenche cada buraco aberto que aquele assassinato deixou em
mim, também significa que estou um passo mais próximo da minha vingança.

Florence parece ler o que se passa na minha cabeça — não duvido


que seja mesmo capaz de fazê-lo — e observa a lateral do meu rosto em
silêncio. Sua serenidade vai embora.

— Tome cuidado, Jude — aconselha após um minuto inteiro em


silêncio. Se aproxima de mim. Sussurra em uma voz tão baixa que preciso
me inclinar para escutá-la: — Quando se entra de cabeça num covil de
serpentes, você precisa se preparar para uma ou outra picada. Não deixe o
veneno ficar nas suas veias por tempo demais.

Em seus olhos, percebo que o veneno em questão é Kim.

Meu sangue começa a borbulhar.

— O que você está fazendo aqui? — pergunto. Florence fecha o rosto


e se afasta. Sombras dançam em sua face como se estivesse magoada. — O
que foi? — insisto.

— Se esqueceu de que amanhã é o aniversário de Audrey?

Largo a pia e dou um passo para trás. Entreabro os lábios, mas não
tenho uma resposta pronta. Realmente me esqueci. Encaro o piso branco
entre nossos corpos com um olhar vazio.

— Falei pra você anotar na sua agenda nas últimas vezes em que se
esqueceu — reclama e bate o salto no chão uma única vez.

O estampido irritante me tira da divagação. O pífio acanhamento que


senti ao ouvir o nome de Audrey seca como as gotas em minha pele.

— Não há espaço na minha agenda pra isso.

Caminho para fora do banheiro. Essa conversa já se prolongou


demais.

Florence agarra meu braço.

— Mas há espaço pra ser fodido pelo seu chofer? — esbraveja contra
meu rosto. — Ela é sua filha, tanto quanto é minha. — Aperta mais meu
braço.

Curvo o pescoço para baixo, até estar tão perto dela que nossas
respirações se misturam.

— Aniversários são uma perda de tempo — cuspo.

Puxo meu braço de volta bruscamente. Continuo a caminhada para


longe dela.

— Não pra uma criança de quatro anos, Jude. — Seu tom magoado,
frágil, me faz parar. — Mesmo que ela não seja nada pra você, é tudo pra
mim.
Cerro as pálpebras. Tento controlar a enxurrada de sentimentos que
me invade neste momento. Florence não me dá tempo, entretanto. Logo está
me virando pelos ombros.

— Me olhe nos olhos enquanto falo com você. — Aponta um indicador


contra o meu peito. — Caso se importe comigo de alguma forma, não vai me
decepcionar outra vez. Se significo qualquer coisa pra você, vá à festa de
Audrey amanhã à noite. Está na hora de crescer alguns culhões e assumir
suas responsabilidades, Jude. — Dá um passo para trás, um traço de asco
no tremeluzir de suas sobrancelhas. — Achei que o bêbado inconsequente
que conheci tinha morrido na faculdade. Mas olhando agora... — me analisa
dos pés à cabeça — você ainda se parece muito com ele.

O asco me faz perder o controle. Agarro seu braço fino, puxo-a para
perto grosseiramente.

— Não fale comigo assim — ladro entre os dentes cerrados.

Florence me fita como uma águia, o corpo inteiro tenso sob meu toque.
Não vacila um momento sequer quando diz:

— Me solte — no seu tom calmo e autoritário de sempre.

Mas não a solto. Em vez disso, encaro o fundo de seus olhos. Me


lembro dos momentos felizes que passamos juntos quatro anos atrás. Não
são muitos, posso contá-los nos dedos de uma mão mesmo se quatro forem
decepados.

— Achava que era por esse adolescente bêbado e inconsequente que


você tinha se apaixonado.

Ela segura meu braço com a mão livre, finca as unhas afiadas na
carne.

— Não use meus erros contra mim. — Me empurra para trás.

As unhas deixam marcas profundas na minha pele. Inspiro fundo e


esfrego o rosto, dou as costas a ela outra vez.

— Suma daqui — esbravejo.

Deixo o banheiro. Caminho até o closet. Pela varanda, vejo que daqui
a pouco estará escuro. Abro o closet. Navego até a seção de cuecas. Retiro a
toalha da cintura. Visto a primeira peça que encontro.
— Ela te ama, Jude — a maldita voz de Florence volta a ecoar às
minhas costas. Aperto os olhos, amaldiçoando os seguranças que a deixaram
entrar no prédio. — Ela te ama tanto. Me pergunta sobre você todo dia.

— Acha que me importo?

Remexo alguns cabides em busca de uma camisa qualquer, mas


percebo que esqueci algo no banheiro. Tento sair do closet e voltar para lá,
mas Florence está na porta, me bloqueando a passagem.

— Não foda a infância da sua filha como foderam a sua — ela diz
calmamente, em completo contraste ao rosto transtornado.

Dá um passo em minha direção. Encerra a distância entre nossos


corpos, seu busto toca meu peito. Ela curva a nuca para cima, me fitando.
Toca meu peitoral esquerdo, os dedos roçando sobre a pele como se
quisessem sentir meu coração.

— Eu te amo.

Afasto sua mão de mim.

— Não, não ama — rebato. — Só ama a possibilidade de se livrar de


Brianna.

Ela desvia o olhar para baixo, pega em sua própria armadilha.


Florence sabe que nunca poderá me enganar, mesmo que tente
repetidamente.

Assim como sei que não me ama, ela sabe que não a amo de volta,
que não amo nossa filha, que não amo qualquer coisa que jamais tenhamos
tido. A única coisa que nos mantém ligados é o ódio comum a outra pessoa.
Um ódio mortal. O sentimento mais vil, hediondo, desdenhável do universo. O
único sentimento capaz de manter unidas duas pessoas que deixaram de se
importar consigo mesmas há muito tempo — duas pessoas que têm muito
pouco a perder.

Ela toca meu rosto de forma tenra, maternal.

— Você tem uma aura tão autodestrutiva, Jude. — Seu polegar


acaricia minha bochecha. — Eu queria poder nunca ter te conhecido.

Depois disso, me dá um tapa forte no rosto. Um tapa que me faz


fechar os olhos, que irradia dor por toda minha face, que bagunça meus
nervos, que me faz esquecer da realidade por um milissegundo. Por dentro,
agradeço-a pelo golpe. Tenho vontade de pedir outro.

Quando abro os olhos para fazê-lo, Florence já está deixando o closet.


O DEMÔNIO EM MIM
eu não quero acordar
o demônio em mim
devil in me — halsey

BSERVO A CASCA PÚTRIDA E quebrada de homem que me encara de volta


O
no espelho do banheiro. Tento me convencer de que esse não sou eu, de
que o verdadeiro Jude Goldman está escondido em algum lugar aqui dentro,
de que essa fachada é só uma ferramenta para conseguir o que quero.

Minha garganta seca. Minha boca treme. Não consigo mentir para mim
mesmo.

Pego a aliança que larguei sobre a pia antes de entrar no box. Seguro
a circunferência dourada entre os dedos, observo-a cuidadosamente. Minhas
iniciais e as de Florence estão cravadas na concavidade. Não tinha percebido
isso até agora.

Coloco a aliança de volta no anelar. Estico os dedos. O ouro parece


anormalmente pesado. Tenho que lutar para manter a mão parada no ar, o
metal me puxa para baixo como se o chão fosse um grande ímã.

“Eu queria poder nunca ter te conhecido.”

Cerro os punhos. Os nós machucados dos dedos estão ainda mais


vermelhos. Há na pele pequenos cortes, que realçam a cor dourada da
aliança.

“Não foda a infância da sua filha como foderam a sua.”

Encaro meu reflexo outra vez.

“Não deixe o veneno ficar nas suas veias por tempo demais.”

Soco o espelho.
Uma, duas, três vezes.

O reflexo se racha. O vidro estilhaça a partir do meu punho, despenca


sobre a pia e sobre o chão. Os cacos arrastam-se sobre os azulejos.

Fecho os olhos. Aperto-os fundo quando a dor dos golpes se sobressai


à minha fúria. Mordo a língua, engolindo os gritos. Cerro o punho com mais
força.

Abro os olhos então: os cortes pequenos se abriram, pedaços inteiros


de pele foram embora com os cacos. O sangue se derrama em filetes rápidos
e exasperados. Se parecem com um conjunto de minúsculos riachos rubros.
Descem pelo meu braço, pingam na porcelana branca da pia, pingam no
chão.

Fito o espelho quebrado outra vez.

Sinto vontade de fazer tudo de novo.


CHAME MEU NOME, PT. I
eu te ajudei a sair de um lugar quebrado
você me deu conforto,
mas me apaixonar por você foi um erro meu
te coloquei acima de tudo, te clamei tão alto e orgulhoso
e quando tudo voltou a ser difícil
te segurei perto de mim
então chame o meu nome quando eu te beijar gentilmente
quero que você fique, mesmo que você não me queira
call out my name — the weeknd

PERTO O VOLANTE DE COURO até meus punhos perderem a cor, até minhas
A
palmas ficarem frias, até minha frustração ser transferida ao carro. O carro
dele.

Fecho os olhos, empurro a cabeça contra o banco. Respiro fundo


várias vezes até me acalmar. O estacionamento do prédio está vazio, posso
ficar sozinho com meus pensamentos.

Fui um idiota, não fui? Fui um idiota ao sair do apartamento daquele


jeito. Por que não pude simplesmente fodê-lo e considerar meu trabalho
feito? Por que me sinto traído? Por que sempre tenho que complicar tudo? O
que há de errado comigo?

Foi a mesma coisa com Olivia.

Eu não me apaixono, ela dizia. Então não confunda o que estamos


fazendo aqui, Kim. Para o seu próprio bem. E eu fui lá e confundi como um
maldito adolescente inconsequente.

Mas a porra de uma esposa? Uma esposa? Estou fodendo um homem


casado? Onde está a porra da lógica?

“Não se preocupe, ela é só minha esposa. Vamos continuar.”

Bato no volante e esfrego o rosto.


— Merda!

Encubro a face com as mãos. Me concentro em respirar, em pensar


com clareza. Sou seu amante? Sua puta? Ao menos, agora sei como definir
essa relação para Noah quando ele perguntar.

Reviro os olhos. Mordo o interior do lábio quando me lembro de todas


as vezes em que ele gemeu meu nome.

“Faça o que quiser comigo hoje.”

As lembranças me acalmam. Ele foi meu. Naqueles momentos, pelo


menos. Mesmo que estivéssemos deitados numa cama de mentiras e
traições.

A esposa chegou de surpresa porque vive aqui também? Por que não
a vi antes? Onde ela estava quando passei três dias inconsciente no quarto
dele?

Por que veio aqui sem avisar? Pela fala de Jude, não deve ser o caso.
De qualquer jeito, por que ficou tão calma ao ver o marido trai-la? Eles têm
algum tipo de contrato? Um casamento aberto?

Ótimo. A única parte sendo traída aqui sou eu mesmo. Uma risada
ácida deixa meus lábios. Uma risada amargurada.

Com menos força, bato no volante outra vez. E outra. E outra. E outra.
Até toda a ira deixar meus sistemas. Até o peso da vergonha se afastar dos
meus ombros.

E, justamente depois que me recomponho, as portas do elevador do


estacionamento se abrem. A mulher que invadiu o apartamento sai dele.
Minhas entranhas reviram e minha mandíbula retesa mesmo sem motivo
algum para isso.

Como posso sentir repulsa de uma pessoa que nem conheço?

Ela caminha calmamente — com os saltos altos e queixo erguido —


até uma BMW branca próxima à saída do estacionamento. Passa reto pelo
carro de Jude, agradeço por isso. Há um chofer esperando-a no banco do
motorista. A mulher entra no banco do passageiro. O carro arranca pouco
depois.
Observo a trilha invisível que deixa para trás. Tenho o impulso mórbido
de segui-la, de descobrir onde e com quem mora. Quero descobrir mais sobre
a esposa do cara que estou fodendo.

Nego com a cabeça. O que está acontecendo com você, Kim? É um


stalker agora?

Relaxo no banco outra vez. Estou farto deste maldito dia.

Ouço o toque de um celular. Xingo em voz alta enquanto retiro o


aparelho do bolso. A tela está apagada, não vibra, mas a chamada continua
tocando. Fico perdido por alguns segundos até notar que o som está vindo do
porta-luvas do carro. Oh, merda.

Abro o pequeno compartimento. A tela do celular que Jude me deu há


uma semana está acesa. O aparelho vibra intensamente.

Toda a frustração, a ira, a vergonha de antes me atingem de uma vez


só, fazem minha cabeça girar. O teto do carro me esmaga, me transforma
num amontoado de vísceras e raiva. Fito o celular. Por vários segundos,
contemplo simplesmente deixá-lo tocar, descer do carro, correr para casa, dar
a Jude um gosto pífio da frustração que me causou. Mas fiz uma promessa a
Noah.

Tudo o que vou fazer é pagar minha dívida, de forma limpa desta vez.

Ainda me lembro vividamente do rancor em seu rosto, mesmo depois


de tantos dias. É como se seu semblante deformado em fúria e decepção
estivesse em minha frente. Sinto a dor da pessoa que jurei proteger com
minha vida martelar no lado esquerdo do meu peito, martelar, martelar...

“Não pode realmente acreditar que eu cairia nesse papinho de que um


homem como ele compraria a dívida de um homem como você apenas pra te
colocar no cargo de chofer.”

Atendo o celular.

Por vários segundos, tudo o que ouço é uma respiração profunda e


controlada. Até a voz imponente de Jude soar:

— Suba. Agora. — Do outro lado, ouço um pedaço de vidro cair no


chão e se espatifar. Jude grunhe e completa: — Preciso de você.
CHAME MEU NOME, PT. II
eu disse que não sentia nada, amor
mas eu menti
quase cortei um pedaço de mim pela sua vida
acho que eu era só mais uma parada
até você se decidir
você desperdiçou meu tempo
call out my name — the weeknd

IGO A TORNEIRA DE ÁGUA quente da pia e controlo o registro até a água


L
estar morna. Guio a mão ensanguentada dele até o fluxo, molho-a. Esfrego a
pele maltratada, cortada, esfolada. Retiro o excesso de sangue fresco e
algumas lascas de sangue seco, especialmente as que se acumulam sobre os
cortes.

Foco em sua mão. O banheiro é preenchido pelo chiar baixo da água.


Não me distraio com o espelho quebrado em minha frente ou com os cacos
afiados espalhados pelo chão. Tenho perguntas, muitas perguntas. Mas
também tenho mágoa e rancor. Então fico em silêncio. Talvez eu não deva
me importar com como esse desgraçado se machuca ou não. Ele certamente
não se importa comigo.

A primeira coisa que digo depois de subir até o apartamento e ver Jude
ensanguentado é:

— Feche a mão até os nós dos dedos ficarem brancos. — Minha voz é
calma, desinteressada.

Ele leva alguns segundos até assimilar o que falei, então faz como o
indicado. Seu olhar paira sobre meu rosto o tempo todo, como se os
ferimentos em sua mão não importassem, como se o sangue descendo pelo
ralo fosse entediante.

Quando a mão está limpa, fecho a torneira. Enxugo-a na toalha branca


que separei. O único indicativo de dor que vejo é um leve recolher de seu
braço quando aperto a toalha ao redor da pele. O rosto permanece uma folha
em branco, as íris frias como sempre. Isso me irrita. Porém, como todos os
meus sentimentos e questionamentos neste momento, engulo mais esse
também.

Abro o kit de primeiros socorros sobre a pia. Retiro o material


necessário: duas gazes comuns, finas; uma tesoura para cortá-las; um pacote
de algodão; um vidro de álcool; um analgésico tópico; um rolo de
esparadrapo. Há muitas coisas nesse kit — algumas que nunca vi —, mas
pego somente o necessário, somente o que tenho em casa, o que conheço e
já usei centenas de vezes depois das lutas.

Jude aperta a porcelana da pia enquanto observa meus movimentos.


Talvez esteja com medo de que eu tente machucá-lo ainda mais. Talvez
esteja imaginando que irei matá-lo. Talvez nunca tenha aberto o kit de
primeiros socorros antes. Pelo seu rosto vazio, não sei dizer.

Volto a analisar sua mão. Os cortes nos nós pararam de sangrar. Bom.
Abro o pacote de algodão, molho-o no álcool.

— Se doer demais, me diga.

Tomo sua mão e esfrego o antisséptico sobre cada corte, devagar e


cuidadosamente. O álcool desliza pela pele e evapora em alguns segundos.
O algodão fica manchado de um vermelho claro. Não vejo uma reação
sequer no rosto de Jude, e sei que essa merda dói pra caralho.

Bufo. Jogo o algodão com álcool no lixo, pego outro. Abro o frasco de
analgésico, despejo uma quantidade pequena sobre o chumaço branco.
Fecho a pomada e devolvo-a ao kit. Esfrego a pomada sobre os cortes
abertos delicadamente. Sobre minha mão, sua palma esquenta e relaxa — é
o medicamento fazendo efeito. Olho para seu rosto de relance. Nada.

Após encobrir seus cortes com o analgésico, enrolo as gazes. Tento


não apertar demais — embora minha vontade seja de apertar os ferimentos e
ver a dor em seu rosto — e as fecho com o esparadrapo. Guardo tudo de
volta no kit, que, por sua vez, guardo sob a pia.

Um muro de silêncio se ergue entre nós enquanto espero seu


agradecimento ou qualquer indicação de que está grato pelo favor, algum tipo
de remorso pela situação com a esposa.

E o silêncio se prolonga.
Jude analisa o curativo sem interesse algum. Estica os dedos, vira a
mão de um lado para o outro. Subitamente, com a mão erguida em frente ao
rosto, seu olhar se distancia. Deve estar pensando na próxima merda que vai
fazer, no próximo espelho que vai quebrar, na próxima maneira de me
humilhar enquanto o contrato durar.

Expiro fundo. Não sei por que ainda me esforço para esperar algo
dele. Viro as costas para deixar o banheiro.

— Nem uma palavra sobre isso? — indaga.

Paro imediatamente ao ouvir sua voz. Meus ombros se elevam,


tensos. Suas palavras soam baixas e amargas, quase cruéis. Esperava que
eu tomasse a iniciativa para tocar no assunto?

— Sou um cão, não se lembra? Não tenho julgamentos — digo sobre


os ombros. — Não tenho senso crítico. — Fito seus olhos frios. — Apenas
obedeço minhas ordens.

Os cantos de seus lábios tremem.

— Bom. — Ele estica os dedos mais uma vez. As gazes permanecem


imóveis no lugar. — Preciso de um médico — diz casualmente.

Me viro.

— São só alguns cortes. Com o antisséptico, não vão infeccionar. O


efeito do analgésico vai ficar mais forte em breve, você não vai sentir muita
dor. — Tomo sua mão outra vez, analiso o curativo. Está perfeito. Deixo seu
braço cair inerte ao lado do corpo. — Tire as bandagens antes do banho.
Coloque novas logo depois — falo com desdém.

Ele assente sutilmente.

Dou um passo para trás e então olho ao redor, me dando conta da


bagunça que ele fez no banheiro. Como alguém pode fazer isso consigo
mesmo?

Sequer quero saber?

Meu olhar viaja dos cacos de vidro no chão ao espelho quebrado na


parede, então a Jude parado no meio de tudo, os fios amarelos sedosos
caindo até a mandíbula, as roupas sociais cuidadosamente passadas. O
rosto é de alguém poderoso, mas o punho enfaixado é de alguém vulnerável.
No meio desta bagunça, ele parece uma espécie de pintura triste, trágica e
melancólica; uma pintura que seria admirada e valeria milhões em um museu
por todas as razões erradas.

— No que está pensando? — interrompe meus pensamentos. Engulo


em seco, notando que passei tempo demais o encarando. — Fale.

É claro que não vou falar toda a ladainha sobre a pintura. Por isso, falo
a segunda coisa que me vem à mente:

— Para o sobrinho da dona da Goldman Entertainment... você é


estranhamente solitário.

Vejo o primeiro traço de dor no rosto de Jude desde que entrei neste
banheiro. Sua expressão se fecha de uma maneira diferente — se fecha
tanto que não tenho ideia de como vai conseguir se abrir depois.

Ele esfrega a mão enfaixada. Não consegue suportar meu olhar


questionador por muito tempo.

— Minha vida não é da sua conta. — Passa por mim e sai do banheiro.
— Agora, vá embora. Esteja preparado pra trabalhar amanhã à noite: tenho
uma festa importante pra ir.
PESAR DE TODA A MINHA fúria, entro em casa com todo o cuidado do
A
mundo para não fazer um barulho sequer. Sei que deveria conversar e
acertar as coisas com Noah imediatamente, mas não quero. Esta noite já foi
estressante o suficiente.

— Kim? — No entanto, ouço sua vozinha acanhada logo após eu


trancar a porta. Ele está escondido em meio ao breu da casa, sentado num
dos sofás da sala de estar.

Acendo o interruptor perto da porta e consigo vê-lo claramente.

— O que está fazendo acordado? Já são quase 1h da manhã.

— Não sou mais uma criança.

Rio, sarcástico, e reviro os olhos.

— Difícil de acreditar.
Caminho em direção ao meu quarto para dar esta noite como
encerrada, mas paro quando ele diz:

— Me desculpa.

Volto-me ao meu irmão, sério, ainda muito magoado, mas com uma
pontada quente no coração.

— Pelo quê? — Cruzo os braços.

— Por falar com você daquele jeito.

Ele se levanta do sofá apressadamente, os olhos arregalados, o rosto


solícito.

— Não queria te magoar ou insinuar nada. Às vezes, falo merdas sem


pensar, me desculpa.

Aproxima-se. Ficamos nos encarando por alguns segundos, um


silêncio morno e agridoce nos rodeia. Olhando no fundo dos olhos de Noah, é
difícil continuar chateado com ele por muito tempo; mas também é difícil
esquecer suas palavras cruéis. No meio-termo entre o perdão e o rancor,
encontro minha resposta:

— Não importa o que você diga, sempre será meu irmãozinho, o


moleque que eu vi nascer, crescer, que praticamente criei. Esse tipo de laço
ninguém pode quebrar. Nem uma gangue, nem o seu chefe, nem nosso
próprio pai pôde. Então você precisa entender isso de uma vez por todas.
Nunca vou abandoná-lo por livre e espontânea vontade. Sempre tentarei
protegê-lo, salvá-lo de toda a merda e podridão que exista no mundo, te dar
tudo o que eu não tive. Mas, às vezes... não vou conseguir. Só sou capaz de
agir até um certo limite, Noah. Então... Então fica nas mãos de Deus, ou de
que quem quer que esteja olhando por nós. — Meus olhos marejam. — Sou
apenas um homem; não sou um super-herói, não tenho qualquer tipo de
poder. E não tenho a intenção de mentir pra você, de enganá-lo, de... planejar
coisas pelas suas costas ou seja lá o que passe pela sua cabeça. Mas eu
tenho meus próprios problemas, tenho meus próprios demônios com os quais
lidar, e uma vida que não circula inteiramente ao seu redor. Entende isso?

— Entendo.

— Não, não entende. Você diz que entende pra me agradar, mas sei
que na verdade gostaria que tudo o que eu fizesse fosse para os seus
interesses, sei que queria que eu vivesse por você, e não com você. E talvez
eu seja o culpado por isso também, talvez... nas minhas tentativas de dar a
você o que não tive quando era moleque... posso ter dado demais. E agora já
é tarde demais para consertar isso.

— Mas você vai me perdoar... pelo que eu disse?

Expiro profundamente.

— Com o tempo, sim. Mas, por enquanto... — Miro o chão. — Por


enquanto, talvez precise de um pouco mais de espaço pra lidar com as
minhas merdas. — Miro então seu olhar entristecido.

Noah se limita a apertar os lábios num biquinho e concordar com a


cabeça, embora eu saiba que há muitas coisas que esse tagarela gostaria de
dizer. Também assinto e, com um sorriso de canto forçado, continuo o
caminho até meu quarto. Quando estou quase entrando no corredor, ele
murmura às minhas costas:

— Fiz algo pra você.

— O quê? — Encaro-o sobre os ombros.

Noah se dirige à cozinha e, da geladeira, retira uma larga embalagem


retangular e amarronzada. Observo-o, afastado. Ele descansa a embalagem
sobre o balcão que separa a cozinha da sala de estar e a abre.

— Bolo de sorvete, o seu preferido. Talvez pudéssemos ficar


acordados mais um pouco, comer, e assistir outro filme qualquer. Eu prometo
que não vou reclamar desta vez. Só quero... Só quero passar mais tempo
com você, em paz.

Umedeço os lábios, fitando o bolo dentro da embalagem. Ele está


certo. É o meu favorito. Não como qualquer bolo de sorvete, como apenas o
bolo de sorvete de Noah. E meu irmão sabe disso — não é a primeira vez
que tenta me subornar. Desta vez, no entanto, o bolo parece tão apetitoso
quanto a caixa de papelão que o envolve.

Engulo em seco. A saliva desce amarga pela garganta.

— Podemos fazer isso amanhã — digo baixo, retraído, sem muito


entusiasmo e sem fitar Noah nos olhos.

Viro de costas e sumo de vez em direção ao meu quarto.


Se eu fosse inteligente, começaria a viver mais por mim e menos por
Noah. Mas não sou inteligente, sou o filho da puta mais idiota que já pisou
nesta terra. E, por isso, mesmo com o coração partido, eu ainda tomaria um
tiro na testa por ele — com um sorriso no rosto.

É exatamente isso que farei amanhã à noite.


INTERLÚDIO
6 ANOS ANTES

— UM , D O I S , T R Ê S , Q U AT R O ,
cinco, seis, sete, oito, nove, dez.
Conte até dez e tudo vai ficar bem. Depois, conte novamente.
Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez. Conte até
dez e tudo vai ficar bem. Depois, conte novamente. Um, dois, tr—

Ouvi um som metálico abrupto ao meu lado e me


sobressaltei, afastando as mãos dos meus ouvidos. Me arrastei
no chão sujo e úmido até minhas costas baterem na parede mais
distante da direção do som. Inspirei e expirei profundamente,
desesperado. E, conforme continuei encarando a escuridão
profunda e infindável que me cercava, meu desespero cresceu e
cresceu e cresceu. O barulho metálico se repetiu, e dessa vez
não parou. Abracei meus dois joelhos e trouxe-os para perto do
peito. Senti pela patela meu próprio coração disparado.

As lágrimas desceram facilmente, e não foram as


primeiras que derramei aqui. Mordi meu lábio inferior e apertei
bem os olhos. Abaixei a cabeça e escondi o rosto no pequeno
espaço entre meu tronco e minhas pernas, descansei a testa nos
joelhos. Sangue seco e pus dos ferimentos porcamente
cicatrizados em minha face se arrastaram sobre a pele sensível
das pernas. Pequenos grunhidos de dor e medo deixaram meus
lábios, e já não sabia mais a quem pedir ajuda. Desde que fui
jogado nesse buraco, pedi a Deus, aos espíritos de meus pais, a
Jason.

Ninguém me atendeu.

Restava somente uma pessoa, a mesma que me atirou


aqui.

Um barulho mais alto ecoou em meus ouvidos doloridos.


Ergui o rosto. A escuridão foi bruscamente substituída por um
feixe incandescente de luz, um feixe tão intenso e absoluto que
queimou meus olhos. Estendi uma mão para o alto, tentando me
cobrir. Talvez eu tivesse morrido e ido para o céu — a ideia não
me parecia mais tão ruim.

Mas esse breve suspiro de alívio me preencheu apenas


por alguns segundos, os segundos necessários até meus olhos
se acostumarem à luz. Lentamente, consegui distinguir uma
silhueta escura diante de mim, e então todo o resto além dela.
Eu não morri.
— Espero que tenha aprendido algo, Jude. Há um inferno
muito pior do que esse te esperando para sempre caso resolva
me decepcionar novamente. É isso que você quer, Jude? Quer
continuar sofrendo dessa forma para sempre, mesmo depois da
morte?

A voz suave e melódica me fez tremer e chorar


violentamente. As palavras cavaram buracos em minha espinha.
Seu rosto permaneceu escondido sob a penumbra por um
tempo, mas a pequena chave dourada estendida entre seu dedo
e a fechadura da porta reluziu e chamou minha atenção. Essa
chave. Eu devia ter orado pela ajuda dessa chave.

— Jude? — A voz se tornou mais violenta, mais cruel. —


Me responda, Jude. Você quer continuar aqui para sempre?

Meu peito afundou com essa possibilidade. Chorando


desenfreadamente, fitei a penumbra em seu rosto e balancei a
cabeça de um lado para o outro, negando, negando, negando.

— Não, por favor... — balbuciei.

Ela fechou o punho, escondendo a pequena chave


dourada.

— Bom garoto.
te achei quando seu coração estava partido
enchi seu copo até extravasar
passei dos limites pra te manter perto
tinha medo de te deixar sozinho
[...]
dei a esse amor ao menos cem tentativas
sempre correndo e me esquivando dos demônios em sua
cabeça
então eu os peguei e os transformei em meus próprios
não percebi nada porque meu amor era cego
[...]
você não precisa dizer o que fez
eu já sei
descobri por conta própria
without me — halsey
O JOGO DO SILÊNCIO
acho que eu fujo às vezes
quando fico vulnerável demais
isso não é culpa sua
[...]
e todas as vezes que eu te afasto
na verdade, eu queria dizer que sinto muito
mas não digo nada
let you love me — rita ora

ARO NO DÉCIMO SINAL VERMELHO desde que saímos do prédio. Relaxo as


P
mãos no volante e as costas no banco do motorista. Olho para a rua pela
janela. Faço o melhor para ignorar Jude no banco de trás, para ignorar o
silêncio desconfortável entre nós.

Analiso o carro parado na faixa ao lado. É um Honda City preto; a


pintura reflete as luzes dos postes, a luz vermelha do sinal e a luz da lua —
particularmente brilhante hoje. É o tipo de carro que desejo, que um dia vou
ter. No dia em que me livrar desse contrato e encontrar um emprego de
verdade.

Sou jovem. Sei que ainda vou ter outras oportunidades, que ainda
posso tirar meu irmão daquele bairro, que ainda posso ganhar o suficiente
para comprar o carro que quiser. Estou cansado de viver para enriquecer
outros homens — seja em dinheiro ou em subjugação.

Bufo em silêncio. Olho para Jude pelo retrovisor. Está jogado no


banco: as pernas bem abertas, os fios amarelos caindo de maneira
calculadamente bagunçada no rosto, o blazer preto se tornando apenas uma
sombra em meio à penumbra do carro. A cabeça está apoiada no banco; o
rosto, totalmente voltado à janela, embora seus olhos estejam distantes e
serenos. Ele morde a ponta de um dos dedos da mão machucada.
Como se sentisse meu olhar, me fita pelo retrovisor. Desvio
bruscamente, encaro a traseira do carro à frente. Minha respiração pesa pelo
susto, mas faço o possível para não deixá-lo perceber.

Xingo mentalmente esse trajeto que parece eterno. O GPS indica mais
quinze minutos de viagem. Olho para o horário no relógio do rádio. 20h17.

Dependendo da duração dessa festa — que o silêncio de Jude não me


permitiu descobrir do que se trata —, chegarei em casa próximo da meia-
noite, longe do horário usual. As coisas com Noah continuam estranhas
desde a nossa briga, e chegar no meio da madrugada em casa certamente
não ajudará em nada. Merda.

Passo tempo demais encarando o rádio, até que percebo uma coisa:
está mudo. Talvez ouvi-lo aliviará a tensão neste carro. Toco no botão de
volume.

— Onde você aprendeu isso? — a voz de Jude me interrompe. Viro


em sua direção. — O curativo. — Estica e contrai os dedos para evidenciar as
gazes na mão. — Onde aprendeu a fazer isso?

Seu olhar nebuloso e enigmático repousa sobre o meu. Volto a encarar


o carro à frente e suspiro. Aumento o volume do rádio, ignorando-o. Me jogo
no banco enquanto o maldito sinal não muda de cor.

A música pop melancólica da estação ecoa pelo carro. Engulo em


seco. É melhor que fique assim. É melhor que minha relação com Jude
permaneça estritamente—

— Vai jogar o jogo do silêncio comigo agora? — Ele se inclina à frente


e desliga o rádio. Range os dentes e diz num tom afiado: — Você é cheio de
joguinhos, Kim Henney. Ainda vai sair perdendo em algum deles.

Jude volta a se recostar no banco traseiro. Cruza os braços sobre o


peito.

Inclino a nuca para baixo e fecho os olhos. Aperto o volante. Meu


coração acelera. Se quer conversar sobre isso, então conversaremos sobre
isso.

— Ela é mesmo sua mulher? — questiono em tom de repulsa, encaro-


o pelo retrovisor.
Ele pensa sobre a pergunta por alguns segundos, responde sem olhar
para mim:

— Seu nome é Florence. Florence Goldman. — A voz soa baixa e


fraca, quase amargurada. Quando me encara, tem um ódio silencioso nos
olhos. — Casamos quatro anos atrás, logo que ela completou dezoito anos.

Olha para o dedo anelar parcialmente encoberto pelas gazes.

— Achou que a aliança era só decoração? — pergunta.

— Achei que era mais um anel qualquer.

— Estava errado.

— Por que não me contou? — Tento não me exasperar, não meter os


pés pelas mãos, mas não consigo. Largo o volante e me volto totalmente
para ele. — Por que não me contou antes que tinha a porra de uma esposa?

Ele entreabre os lábios, mas não responde imediatamente. Treme —


de ódio, frio ou frustração, não sei, mas treme. Vejo a longínqua sugestão de
uma lágrima em suas íris. Uma sugestão que logo é apagada.

— Você não perguntou quando teve a chance — diz por fim.

Estreito os olhos em sua direção.

— Então é assim que quer jogar?

Ele volta a fitar a janela, afasta o rosto do meu campo de vista.

— Não devo explicações sobre a minha vida pra você, chofer.

Fico sem reação, desejando ter em minhas mãos algo que possa
quebrar.

O sinal abre.

Jude me encara outra vez para dizer:

— Dirija.
em frente à porra do prédio indicado pelo
E S TA C I O N O A M E R D A D O C A R R O
caralho do GPS e sinto vontade de explodir. A raiva acentua meu cansaço.
Esta foi uma semana longa, exaustiva e terrível. Só quero que acabe o mais
rápido possível. Estarei feliz quando estiver em minha cama e me esquecer de
que esse merdinha chamado Jude Goldman sequer existe.

Com alguma sorte, a próxima semana será diferente.

Cerro as pálpebras e afasto as mãos tensas do volante. Imagino o


cenário: minha cama, o quarto escuro, o silêncio abafado da madrugada, a
brisa noturna fresca entrando pelas janelas. É tudo o que quero, apenas um
momento de descanso.

— O que está fazendo? — Jude indaga.

Abro os olhos. Parece que mesmo um momento de descanso é pedir


demais quando se trabalha para este desgraçado.

— Vou esperar você voltar aqui — respondo sem emoção.

Retiro o cinto de segurança.

— Não, não vai — diz. Observo-o pelo retrovisor, ergo uma


sobrancelha. Ele complementa: — Você vai subir comigo pra festa.

Mas que merda?

Olho ao redor. A maior parte dos carros de luxo estacionados tem


choferes em seu interior. Alguns conversam entre si na parte de fora. O
prédio da festa parece sofisticado demais. Com certeza é uma festa de grife
ou uma porra dessas. Franzo o cenho. O que ele está fazendo agora?

— Um chofer precisa deixar o carro sempre preparado pra quando—

— Você vai subir comigo pra festa, Kim — insiste, imponente. —


Pense em si mesmo como meu segurança pessoal esta noite. — E sai do
carro.

Observo sua silhueta pelo retrovisor. Olho para os outros choferes e


para o interior do prédio outra vez. Segurança pessoal? O filho da puta quer
que eu trabalhe em dobro e continue recebendo essa porcaria de salário?

Boa, Kim. Acabou de sair de um tipo de escravidão e está caindo de


cabeça em outra.
Abro a porta do carro.
LILITH
eu só sei foder as coisas
caso ainda não tenha percebido
lilith — halsey

filha dele. Filha dele. O desgraçado não apenas é


A M A L D I TA F E S TA D A
É
casado, mas tem uma filha. E é a criança mais linda que já vi, idêntica ao pai
na aparência e trejeitos — até na forma rígida de se mover.

Fico parado em um dos cantos do enorme salão de festas — recheado


de burgueses em mocassins, ternos, vestidos cobertos de cristais, vinho
branco e risadinhas abafadas —, tentando controlar meu estúpido coração
galopante, minha estúpida vergonha, meu estúpido olhar curioso. Mas não
consigo controlar nenhum deles.

A garota — Audrey — está mais ao centro do salão. Usa um vestido


branco com cauda e uma tiara dourada que se mescla aos fios amarelos. Não
parecem roupas de aniversário adequadas para uma criança pequena — esta
festa inteira não parece adequada.

A filha de Jude é uma das três ou quatro crianças no salão. O lugar


está infestado de adultos. Há uma mesa de doces esquecida num canto
afastado, onde a iluminação é fraca.

As pessoas bebem e cochicham, bebem e cochicham, como se


casualmente resolvessem problemas de negócios. Vez ou outra, a atenção
do salão é centrada na garota. Vez ou outra, escuto uma risada infantil mais
alta. Vez ou outra, vejo um pedaço de bolo oferecido pelos garçons ser
aceito. Mas tudo aqui parece fora de lugar, inadequado.

Talvez a única coisa que faça sentido seja a semelhança entre Audrey
e seu pai. Jude a carrega nos braços agora, e seus traços parecidos ficam
ainda mais claros. É o mesmo tom de cabelo, a mesma cor das íris, o mesmo
tom levemente rosado nas bochechas, os mesmos rostos quadrados, as
mesmas mandíbulas retas. Não há dúvida de que é sua filha biológica — ou
isso, ou eles rodaram o mundo até achar uma criança idêntica a ele.

Com sua mãe — Florence —, no entanto, a garota não compartilha


quase nenhuma semelhança. Talvez o pescoço sutilmente alongado, talvez a
forma pretensiosa de olhar os outros ao redor. As clavículas pontudas,
certamente.

Observo a mulher se aproximar do marido e da filha. Juntos, eles


conversam com alguns dos convidados mais próximos. A garota parece feliz
nos braços do pai. A esposa parece feliz ao tocar o ombro do marido e ao se
inclinar em sua direção suavemente. O marido parece feliz e orgulhoso de
sua família.

Eu, o chofer — seu guarda pessoal —, fico neste canto escuro, vazio e
esquecido... como um cão.

Mordo o interior da bochecha. Pare com esses pensamentos


estúpidos. É exatamente o que ele quer. Foi por isso que te trouxe aqui: para
te humilhar um pouco mais.

Inspiro fundo, aperto minhas mãos atrás das costas. Percorro o salão
com os olhos novamente. Não há qualquer outro “guarda pessoal”, ou
qualquer outra pessoa tão destruída quanto eu. Todos parecem banhados em
opulência e riqueza. Todos parecem exploradores — e sou o único explorado.

Só quero que esta noite de merda acabe, que esta festa maldita
acabe.

É quando me dou conta de que não avisei Noah que vou chegar tarde
em casa esta noite. Droga. Não quero assustá-lo outra vez. Pego meu celular
do bolso e ligo para casa. Viro de costas para ter a ilusão de privacidade.

— Kim? — Noah atende, sonolento do outro lado.

— Sei que disse que estaria por aí mais cedo, mas não vou conseguir.
Não me espere acordado.

— Ok. Tá tudo bem?

— Sim. Foi só um imprevisto com...

— Jude? Tá tudo bem, pode falar dele comigo, não vou insinuar nada.
Depois de uma semana, já descobriu o que ele quer de você? Realmente
tava só precisando de um amigo?

Estalo a língua e coço o queixo.

— Apenas trabalho, Noah. Apenas trabalho.

Ele respira fundo.

— Tudo bem. Te vejo amanhã então. Deixei seu jantar no micro-ondas


se ainda estiver com fome quando chegar.

— Obrigado.

— Volte seguro pra casa.

— Eu sempre vou. Prometo.

— Estranhamente, não sei mais se isso é verdade, Kim.

— O que quer dizer?

— Nada. Só tô com essa sensação estranha no peito desde que você


saiu, só isso. Também me preocupo muito com você.

— Se há alguém nessa cidade que sabe se cuidar sozinho, sou eu,


então não precisa disso.

— Como eu disse, estranhamente... não sei se consigo mais acreditar


nisso. Só volta logo pra casa, irmãozão. Independente de nossos altos e
baixos, somos família. E esse aperto no peito, Kim... não é coisa boa. Senti a
mesma coisa na noite em que...

— Em que?

— Em que Do-Yun morreu.

Um calafrio atravessa minha espinha. Franzo o cenho agressivamente:

— Não vou morrer esta noite, Noah.

— Você mesmo disse: não está o tempo todo em controle sobre tudo.

— E você quer que eu morra?

— Não seja estúpido. Tô só preocupado.

— Jeito estranho de demonstrar esta merda.


O outro lado da linha fica em silêncio por alguns momentos até ele
dizer:

— Dirija em segurança de volta pra casa. Boa noite. — E desligar.

De novo, um mórbido senso de fracasso paira sobre meus ombros.

A distância entre nós irá apenas se acentuar caso noites como essa
continuem se repetindo. Se isso acontecer... vou ter falhado em literalmente
todos os aspectos da minha vida.

Outra pessoa veio aqui enquanto você estava com o bilionário, a frase
que Noah disse uma semana atrás volta a ressoar em minha cabeça.

Afasto o celular do rosto, abro a lista de contatos e rolo para baixo até
a letra O. Observo o nome e o número na tela por um tempo. Aproximo o
polegar para tocá-lo, mas paro no meio do caminho.

O que ela queria conversar comigo?

ANTES
— OUCH.

Puxei a cabeça para trás, fugindo do ataque de Olivia e de seu pano


com álcool.

— Pare de choramingar e fique parado — ela esbravejou com um olhar


sério.

Tocou meu queixo e me aproximou novamente de si com calma. Seus


dedos eram ternos e mornos, afastavam a dor dos golpes — até o
antisséptico entrar em contato com as feridas.

— Dói tanto assim? — perguntou.

— Vou sobreviver — eu disse da boca para fora.

Ela tocou o corte na minha sobrancelha com o pano outra vez.

— Ouch.
Me puxei para trás bruscamente, desvencilhando-me dos seus dedos e
daquele maldito pano branco.

Sentado num banco de madeira no vestiário precário do ringue, olhei


para a fileira de armários azuis ao meu lado. Respirei fundo. Meus ombros se
elevaram, então se abaixaram. Gotas de suor escorreram pelo meu peito.

— Fica parado, Kim — ela ralhou outra vez, depois bateu o pé no


chão.

Seu olhar cansado permaneceu sobre mim. Não com irritação ou


estresse, mas uma preocupação velada. A preocupação de quem havia
acabado de me ver esmurrado. A preocupação de alguém que se importava
com a carcaça abatida sentada em sua frente.

Olivia puxou outro banco de madeira e se sentou em minha frente.


Acompanhei seus movimentos com alguma relutância, envergonhado por não
conseguir suportar aquele pequeno ardor. Ela tocou a lateral do meu rosto,
acariciou a bochecha com o polegar. Me inclinei em direção à sua mão
inconscientemente, buscando um pouco mais do toque sereno, do conforto
que ela — e ninguém mais — podia me dar.

A médica me puxou lentamente para um beijo. Seu gosto me deixou


leve, fez a exaustão e as dores de mais um dia no inferno irem embora.

Agarrei o pescoço dela e apertei sua boca contra a minha. Seus lábios
grossos eram suaves, seu polegar no meu rosto era macio. Queria tomá-la
naquele momento, na frente de qualquer um que decidisse entrar no
vestiário. Afinal, como ela tanto gostava de reiterar, eu era um exibicionista.

Olivia espalmou meu peito e me afastou, no entanto. Fiz uma careta de


protesto. Ela ergueu um polegar entre nossos lábios.

— Se ficar completamente imóvel até eu limpar toda a ferida, vou te


dar uma recompensa — murmurou.

Abri um sorriso safado.

— Uma recompensa?

— Sim.

Envolvi sua cintura com as mãos e a puxei para mais perto. A médica
sentou na extremidade do banco. Suas coxas tocaram as minhas, meu suor
manchou sua calça branca. Quero manchá-la um pouco mais.

— O quê? — perguntei, e meu sorriso se alargou.

Ela se aproximou do meu ouvido, sussurrou:

— Qualquer coisa que você quiser.

Minhas mãos deslizaram pela sua cintura, pelas suas costas, até o
interior da sua calcinha. Toquei a parte superior de sua bunda.

— Não se arrependa disso depois — eu disse.

Ela riu contra meu ombro e continuou me curando — como sempre


fazia.

AGORA

MINHA MANDÍBULA DÓI PELA FORÇA com que a aperto. Um ardor estranho
sobe aos meus olhos. O ardor de quando se quer algo de volta
desesperadamente, mas se tem medo de pedi-lo.

Encosto a testa na parede, o antebraço logo acima. A tela do celular


fica visível para quem quer que esteja às minhas costas.

E é claro que tem alguém aqui neste momento.

— Kim? Esse é o seu nome?

É a esposa dele.
PAPEL DE PAREDE
me culpando por toda a tristeza
eu não sabia sobre vocês dois
não sei por que estou sendo arrastada pra isso
o problema é de vocês
shedontknowbutsheknows — tove lo

IRO E A ENCARO POR um breve momento. Então não consigo encarar mais.
V
Há um brilho ofuscante nela, algo que queima meus olhos. O vestido
branco é longo e cheio de pequenas pedras preciosas. A bolsa de couro cabe
na palma de sua mão. Os brincos são de esmeralda; os lábios,
assustadoramente vermelhos. O delineador deixa seus olhos grandes e
letais. Além disso, algo em sua postura relaxadamente tensa e seu sorriso
ardentemente frio.

Ela toca meu ombro, as unhas longas e rubras amassam o tecido do


terno como se quisessem arrancar um pedaço. Desvio o olhar para o chão,
para seus saltos escuros. Aperto o celular, escondo as mãos nos bolsos.

— Por favor, não fique tão desconfortável. Eu não mordo — diz com
um tom cativante, convidativo, que me faz ter a certeza de que morde.

Ela afasta a mão de mim e a aperta na frente do corpo. Completa:

— Foi uma pergunta simples.

Está perguntando meu nome porque ouviu toda a conversa com


Noah?

— Sim, meu nome é Kim — respondo sem conseguir esconder a


tensão na voz.

— Prazer, Kim. — Estende a mão. — Florence.


Encaro a mão cadavérica, pálida demais para ser saudável. Não
respondo ao cumprimento. Desvio o olhar para o lado, na direção de um
burguês qualquer e sua esposa vestida num casaco de pele carmesim.

— Sei disso — digo com desdém.

Ela apoia a mão na cintura.

— Então já tem uma vantagem sobre mim. — O sorriso se alarga,


feroz.

Duas crianças passam correndo por nós.

— Suponho que sim — resmungo.

— Quem era o garoto em seu papel de parede?

— Desculpa?

— O papel de parede. — Aponta o celular no meu bolso. — Quem é


ele? É seu filho?

Cerro os dentes. Acompanho seu dedo e retiro o aparelho do bolso


lentamente. Aperto-o com mais força.

— Não. É meu irmão mais novo — balbucio entre um sussurro e uma


ralha. Guardo o celular novamente. — É uma foto de quando era moleque.

Florence cruza os braços sobre o busto e transfere todo o peso do


corpo para a perna direita.

— Ele é lindo — comenta numa voz manhosa. Me analisa dos pés à


cabeça. — Assim como o irmão dele. — Empina o queixo.

O desconforto inicial retorna com mais força. Apoio-me na parede às


minhas costas e cruzo os braços sobre o peito, assim como ela. Sem
responder, me fecho completamente.

— Juro que não estou tentando dar em cima de você desta vez — ela
comenta.

— Talvez você o faça sem perceber.

Um sorriso estranho abre-se em seus lábios.


— Não sou oferecida, Kim. Apenas tenho alguns desejos. Assim como
você também tem os seus.

A esposa de Jude abre a pequena bolsa de couro que tem nas mãos e
pega seu celular. Desbloqueia a tela e a vira em minha direção.

— Também tenho Audrey como papel de parede. — Encaro a foto da


criança de costas em um campo aberto. Depois, ela afasta a tela. — As
coisas bregas que fazemos por amor...

— Quando se trata de amor, nada é brega.

— Claro... — Solta uma lufada de ar longa pelo nariz, indo de


contemplativa a entediada em alguns segundos.

Tento esconder meu incômodo. Olho para algo atrás de sua cabeça,
no centro do salão: sua família. Ela guarda o celular na bolsa e vira o
pescoço para trás, acompanhando meu olhar. Percebe que meus olhos estão
presos no seu marido. Um rubor leve queima em meu rosto.

Após alguns segundos contemplando sua família, Florence se apoia


na parede ao meu lado.

— Eles parecem felizes, não parecem? — fala casualmente.

Analiso a cena da garota nos braços do pai. Sim. Parecem felizes.

Florence continua sem me dar atenção, até que diz em tom distante,
perigosamente frágil:

— Audrey idolatra Jude. Às vezes, acho até que ama mais ele do que
a mim, mesmo que eu a crie praticamente sozinha. — Bufa. — Tive que
forçá-lo a vir nesta festa. E não é fácil forçar Jude a fazer qualquer coisa.

Estreito os olhos, tentando discernir suas intenções por trás disso. Ela
está mesmo discutindo questões pessoais comigo? Comigo?

— Deve ser só impressão sua — digo da boca para fora.

— Talvez... — ela finge levar em consideração. Seus lábios se fecham.

Ficamos deste jeito, embargados num silêncio pesado, um cessar-fogo


confuso, observando um pai e uma filha conversando animadamente com os
convidados mais interessados neste salão.
Minha lombar começa a doer. Meu estômago reclama. Minha nuca
pesa. Meus punhos cerram. A exaustão em cada fibra do meu corpo começa
a colher seus frutos. Pisco longamente, apoio a cabeça na parede. Fecho os
olhos e inspiro. Por algum tempo, os únicos sons que ouço são os de
sussurros sufocados, risadinhas asquerosas e taças de vinho tintilando.

Até ela perguntar:

— Como é foder Jude?

E fazer um calafrio atravessar minha espinha.

Abro os olhos e a encaro de relance. É pelo menos vinte centímetros


mais baixa do que eu. Porém, neste momento, sinto como se fosse mais alta,
como se me olhasse de cima e me pisoteasse — da mesma maneira cínica
que Jude adora fazê-lo.

Sobressaltado, fico em silêncio. Tento não prestar atenção demais no


interesse intenso em sua face.

— É só uma pergunta honesta — insiste. — Já deve ter percebido que


meu casamento não é dos mais convencionais.

Florence apoia-se na parede pelos ombros, fica virada para mim. Entro
em defensiva.

— Sabe quantas vezes transei com ele? — sussurra. Passa a ponta da


língua pelo lábio superior. — Uma.

Faço o melhor para esconder a surpresa, mas é impossível.

— E foi o bastante pra isso acontecer — ela completa, indicando a filha


com o queixo.

Acompanho seu gesto e fito a garota nos braços fortes de Jude.


Quando vejo um sorriso largo se abrir no rosto do pai, seguido de uma risada
(que parece) genuína, percebo o que ela acabou de fazer, a parede contra a
qual acabou de me encurralar.

Isso é triste. É uma história triste. A história da esposa de alguém que


prefere dormir com um lutador clandestino do que com ela. É o tipo de
história que abre um buraco de compaixão no peito. O tipo de história que
você não ignora e segue com a vida. O tipo de história que te obriga a dar
algo em troca, na esperança de balancear tamanha desgraça com uma
desgraça um pouco menor.

Merda.

Forço meus lábios a se abrirem.

— É bom. — Forço as palavras a saírem. — Foder ele. É bom.

O rubor acentua-se no meu rosto.

Ela me observa por um longo tempo. Tão longo que minhas entranhas
chegam próximo de explodir. Tão longo que começo a duvidar do que vai
fazer com essa informação. Tão longo que me sinto imoral pelo que disse.

E ela deixa esse tempo se estender, deixa que eu sinta tudo, deixa que
pague o preço por oferecer compaixão. Eu a machuquei, então nada mais
justo que me machuque de volta.

Quando abre a boca, no entanto, suas palavras me surpreendem:

— Realmente não me importo com isso. E não é uma falácia. — Vira o


rosto para o marido, o tom baixo e sóbrio. — Eu e ele temos um acordo
mútuo de não nos intrometermos na vida pessoal um do outro.

— Que tipo de casamento é esse?

Ela não responde de imediato. Pensa por muito, muito tempo. Após o
que parecem milênios, sua voz amargurada ecoa entre nós:

— O tipo que acontece por causa de um acidente. Nem ele nem eu


tivemos escolha.

Suas clavículas proeminentes parecem ainda mais afiadas quando


respira fundo; ela o faz agora, inúmeras vezes. Como Jude, Florence também
está reprimindo as emoções. Quando me fita e percebe que sei o que está
fazendo, se apressa a completar:

— Amo minha filha. Amo Jude. — Encara-os. — Mas nós dois


simplesmente não fomos feitos um pro outro.

A pressa com que diz isso, a voz quebradiça e os ferimentos


porcamente curados no fundo do olhar para a família me despertam uma
fagulha de interesse. Me desencosto da parede e me aproximo dela. Florence
curva a nuca levemente para cima, mantendo o olhar preso no meu.
— Por que não se divorciam então? — pergunto calmamente.

Ela encosta uma das unhas longas e afiadas no meu peito e me


empurra para trás.

— Você descobrirá em breve.

Olho para seu dedo, então para seu rosto.

— Não, acho que não vou.

O indicador navega pelo meu peito, traçando linhas e círculos


invisíveis, até parar no botão mais alto da camisa branca. Com apenas uma
mão, ela o abre. Parte da pele fica exposta. A ponta de seu dedo me toca ali.

— Você é um homem bom, Kim? — questiona num tom abafado,


morno.

Agarro seu pulso fino e o afasto de mim. Me lembro de todos os


homens que derrubei no ringue, de todos os rostos quebrados e ossos
partidos, de todo o sangue que derramei para o entretenimento de outros.

— Não — corto.

Ela inclina o pescoço para o lado, o olhar cético.

— Está mentindo — retruca.

Fico irritado pela petulância da acusação, por me acusar de mentir


com tanta arrogância. Mas, então, percebo que está certa. Eu menti.
Entreabro os lábios, mas nada sai deles.

Ela permanece me fitando. Quando continua, está mais... cautelosa:

— Pelo seu próprio bem, e pelo bem de seu irmão... tome cuidado com
Jude.

— Cuidado?

— Nada do que ele faz é por acaso. Já deve ter percebido isso.

Encaro o chão, vários flashes da última semana passam em minha


mente.

— Percebeu, certo? — ela insiste. Quando nota que estou perdido


demais para entender do que está falando exatamente, completa numa
provocação: — Desconfia ao menos do motivo que levou Jude ao clube dos
Snakes na noite em que se conheceram?

É como levar um soco no estômago — o tipo de soco que te derruba,


que dá a vitória ao seu adversário.

Encaro-a assustado, os olhos levemente arregalados. Não preciso


falar nada para ela entender que não, não tenho a porra da menor ideia.

— Oh, Kim... Você não tem ideia de onde está se metendo, não é
mesmo?

Abro a boca para perguntar o que ele estava fazendo no clube naquela
noite, mas sou interrompido.

— Mami! Mami! — Audrey grita do centro do salão, nos braços do pai,


buscando a mãe com os olhos.

— Estou aqui, bebê. — Florence balança os braços, entregando sua


localização. Ela se afasta e caminha em direção à filha.

Jude se volta para mim pela primeira vez nesta noite. Seu rosto se
fecha. Confusão e fúria reluzem em suas íris; percebe que estive
conversando sobre ele com sua esposa durante esse tempo todo.
festa é mais silenciosa do que a que me levou até lá.
V I A G E M D E V O LTA D A
A
E esse silêncio me incomoda. Chego perto de interrompê-lo várias vezes,
mas sempre que encaro Kim, que dirige, pelo retrovisor, me lembro de
Florence e ele conversando num canto afastado da festa. Isso me faz engolir
qualquer coisa que tenha a dizer.

A cidade também está estranhamente quieta. Não é comum a Nova


York ter faixas vazias nas ruas, mesmo depois da meia-noite. Há sempre
multidões de pessoas indo e vindo, preenchendo as calçadas, em boates
barulhentas, casais em restaurantes, vagabundos drogados por aí. Esta
noite, no entanto, tudo parece vazio e sem vida — assim como eu.

Aperto os punhos sobre os joelhos conforme o carro se aproxima do


meu prédio. Não sei exatamente o que fazer quando chegarmos. Minha
mente me manda fazer uma coisa, minhas entranhas mandam fazer outra
completamente diferente. Não há meio-termo entre elas, não há conversa ou
acordo. Sinto como se tivesse uma guerra dentro de mim. Quando o carro
para no estacionamento escuro do prédio e o silêncio entre nós se aprofunda,
ainda não sei que lado venceu.
AGRESSIVO
queria não ter expectativas
queria simplesmente tirar isso da sua cabeça, sem confrontos
queria que pudéssemos só conversar sobre o que aconteceu
[...]
não quero me intrometer ou brincar com você
tudo o que quero é que se comunique
que respeite meu tempo, meu espaço, a energia que coloquei nisso
porque estive aqui a noite inteira, esperando você me notar
e você não pensou em mim uma vez sequer
expectations — lauren jauregui

IM NÃO RETIRA O CINTO. Em vez disso, mantém as chaves na ignição, os


K
faróis do carro acesos, as mãos sobre o volante. Sei no que está pensando:
cair fora do prédio assim que eu sair, dirigir para tão longe de mim quanto
puder, me xingar e me odiar enquanto deita a cabeça no travesseiro, sonhar
com um aperto em meu pescoço tão forte que eu não acorde mais.

Fito o curativo em minha mão.

Por algum maldito motivo... não posso deixar isso acontecer. Não
posso deixá-lo ir embora.

— Não vai descer? — a voz grave e cansada ecoa pelo espaço


confinado do carro com todas as janelas fechadas. Isso me acorda dos
devaneios, faz meus pelos eriçarem e pequenas descargas de eletricidade
atravessarem minha pele. Engulo em seco. Fito a janela outra vez. — Jude?

— Sobre o que vocês conversaram? — disparo friamente, tentando


esconder a vulnerabilidade em minha voz.

Por sorte, ou ingenuidade, ele não percebe. Seu semblante fica


desconfiado, defensivo, como quando acha que estou ameaçando-o. Se ao
menos soubesse que sou eu que me sinto ameaçado...
— Me diga tudo o que Florence te disse, Kim — insisto.

Ele retira as chaves da ignição. Os faróis se apagam, o carro deixa de


tremer. Kim então retira o cinto. Em resposta, um breve suspiro de alívio
escapa dos meus lábios.

Kim aperta o couro do volante.

— Talvez você devesse perguntar a ela — diz com certo desdém. —


Sou apenas seu chofer, afinal de contas.

Encaro-o fixamente pelo retrovisor.

— Tem ideia do quão insolente está sendo pra um miserável que não
tem onde cair morto? Pra alguém que tem uma dívida milionária a quitar? —
provoco.

Ele se vira para trás de forma calculadamente lenta — bem diferente


do Kim que eu conhecia até agora. Me observa com o rosto fechado. As íris
prepotentes e desdenhosas me fuzilam.

— Então, seu filho da puta, me diga por que realmente você me levou
pra festa de aniversário da sua filha — demanda, baixo e grosso.

Cerro os dentes. Inclino-me à frente, aproximando nossos rostos.

— Diga quem é a pessoa que você enforcava enquanto comia —


rebato.

— Por que estava no clube dos Snakes na noite da minha última luta?
— Agarra o banco, se aproximando mais.

— Gostou de me comer na frente da minha esposa?

Kim me fita por um, talvez dois segundos, então pula sobre mim.
Agarra meus pulsos, prendendo-os sobre minha cabeça; impulsiona o corpo
sobre o meu. Fico curvado no banco, meio deitado, meio sentado. Ele usa um
dos joelhos para abrir minhas pernas, posicionando-se entre elas. Meus pés
batem no banco da frente.

É tudo muito rápido e caótico, não tenho tempo de reagir. E, quando


tento, ele limita mais meus movimentos. Prende meus dois pulsos com
apenas uma mão e usa a outra para curvar meus joelhos para cima, me
fazendo envolver sua cintura. Me debato, me chacoalho, puxo e forço seu
corpo, mas não consigo retirá-lo de cima de mim. Após um tempo,
simplesmente desisto.

O aperto nos meus pulsos me deixa impotente. Sua cintura


pressionando a minha a fazer o que ele quer me enfraquece. As veias
saltadas em sua testa e em seu pescoço enquanto me restringe me fazem
suspirar, inutilizam meus músculos. Todas as forças me escapam. Sinto como
se pudesse me entregar a ele e deixá-lo me guiar; guiar cada pedacinho
obscuro e perigoso da minha vida, todas as minhas faces pútridas, cada
pesadelo terrível que me assombra, cada momento asfixiante que não quero
viver. Fito o braço firme que prende meus pulsos acima da cabeça.

Se pudesse escolher, gostaria que ele me matasse.

Kim agarra o colarinho da minha camisa e a rasga. Seus dedos são


agressivos, descontrolados. Posso ver a euforia em seus olhos; a exaustão e
frustração transformadas em ardor; ódio, mágoa, cansaço, confusão e ira
misturando-se em seu rosto, dominando seu corpo, seus movimentos,
formando essa mistura explosiva.

Os botões arrebentados voam ao nosso redor, batem na janela, nos


bancos da frente, no teto do carro. Me sinto ainda mais impotente com o peito
exposto. Seus olhos percorrem minha pele fria, sobem até a garganta. Sua
mão livre fecha-se ali, apertando e apertando minha traqueia, me deixando
vagarosamente sem ar. Diferente da última vez, o aperto me causa uma
descarga de prazer. Fervo sob seus dedos. A partir do pescoço, esse calor se
espalha pelo resto do corpo, por minhas entranhas.

Me estrangulando, ele me beija — um beijo impulsivo e sufocante, que


me puxa para frente com a sucção e me atira para trás quando se afasta.
Morde meu lábio inferior antes de recuar.

— Que agressivo — provoco. A dor da mordida se espalha em minha


boca. Um sorriso lascivo, também.

Olho ao redor, receoso de que algum dos seguranças do térreo possa


nos ver. Kim afrouxa o aperto na minha garganta até soltá-la, mas meus
pulsos continuam imobilizados.

— É apertado demais aqui. Me leve pra cima — peço.

— Não.
Sua mão desliza pelo meu peito até alcançar os mamilos. Ele os pinça
com o polegar e o indicador, logo antes de se curvar à frente e mordê-los
fortemente. Uma descarga de dor impetuosa — súbita e quente, suave e
delirante —, me atinge, me faz atirar a cabeça contra o banco, fechar os
olhos, suar frio.

— Merda...

Seus dentes mordiscam a pele sensível por vários segundos até se


enjoarem. Quando termina, meu corpo está em frenesi. Kim se aproxima do
meu rosto, pressionando mais o corpo contra o meu, me fazendo sentir cada
um dos músculos poderosos sob o terno que comprei para ele.

— Quero te foder aqui, agora — grunhe baixo, esfregando a ponta do


nariz em minha bochecha. — Não vou demorar muito. — Ele desce até o
pescoço, beija meu pomo de adão. — Além do mais... — o hálito quente
contra minha pele me faz entreabrir os lábios —, achei que era isso que você
queria.

Finalmente solta meus pulsos. Meus braços caem desejosos,


ofegantes sobre os músculos largos de suas costas. Encaixo as pernas
confortavelmente ao redor das suas, me deito mais sobre o banco, esmago-o
mais contra mim.

Puxo os fios escuros e arrepiados de sua nuca para trás, afastando-o


do meu pescoço para encarar seus olhos.

— Além de insolente, você é presunçoso — resmungo. Lambo a


extremidade de seus lábios. — Não presuma coisas sobre mim.

É minha vez de descer o rosto até seu pescoço — saboreando sua


pele, aspirando seu cheiro, me manchando com seu suor. Quando me afasto
para rasgar sua camisa da mesma forma que fez com a minha, ele murmura
num tom dolorido, aflito, que me perturba:

— É tudo o que posso fazer: presumir. Você não me diz nada. — E me


encara com os olhos mais abatidos que já vi na vida.

Engulo em seco. Fujo desse olhar rapidamente. Contraio os lábios. O


que ele quer de mim?

Encaro o estacionamento escuro através da janela do carro. Se eu


mostrar o que ele quer ver, se lhe der o que quer... vai ficar feliz? Ou só vai
fugir de mim mais rápido?

O que fará quando descobrir que não o escolhi por acaso, que sabia
muito bem quem era antes de vê-lo ensanguentado, quebrado, fodido
naquele ringue?

Devo contar a ele que jamais poderia escolher outro? Que armei para
que perdesse a luta? Que seu destino estava selado antes mesmo do
primeiro golpe?

A sala onde guardo todas as evidências do assassinato me invade a


mente. Me vejo abrindo a porta e acendendo a luz, caminhando para seu
interior, investigando os nomes e rostos no mural, as manchetes de jornal nas
paredes. Sinto o cheiro de naftalina e morte que exala. Me imagino levando
Kim para essa sala, mostrando para ele exatamente que merda profunda está
ansiando descobrir e na qual está tentando se meter.

— Seus olhos ficam ainda mais frios quando estão distantes —


sussurra.

Me torno subitamente consciente de minhas próprias íris. Queria poder


vê-las pelos seus olhos, saber exatamente o que ele vê quando me enxerga,
sentir o que sente quando está comigo, saber se posso ou não confiar nele o
suficiente para lhe mostrar aquela maldita sala.

Aperto as pálpebras, escondendo meus olhos dele. O que está


fazendo, Jude? Você não está realmente considerando essa possibilidade,
está?

Afasto a dúvida para longe, muito longe.

— Eu quero falar... — Volto a encará-lo. — Quero te dizer tudo, mas


não posso. Não ainda.

Não posso revelar coisas demais sobre minha vida agora. Mas
também não quero afastá-lo. Preciso achar um meio termo nesse cabo de
guerra: mantê-lo próximo sem expor meus planos. Preciso ganhar tempo
enquanto a revelação inevitável não chega.

Ele pensa na minha resposta por um tempo. Traços de dúvida se


desenham em sua face. Não parece convencido de que estou dizendo a
verdade — o que talvez seja minha culpa, porque não estou.
— Sei que você quer que eu me abra mais — complemento —, mas
não estou preparado agora.

Acaricio a parte de trás de suas orelhas, as laterais da sua cabeça. Os


fios mais curtos dessa região espetam meus dedos.

Sinto-o se afastar lentamente. Sobre mim, seu peso se esvai, deixando


para trás um espaço vazio e frio.

“Para o sobrinho da dona da Goldman Entertainment... você é


estranhamente solitário.”

Seguro-o firme pela cabeça e o beijo, impedindo que se afaste demais,


impedindo que seu silêncio se torne ainda mais incômodo, impedindo que me
deixe.

Abro a boca, deixando o caminho livre para sua língua me explorar. Ela
o faz avidamente. Sua libido não está decadente mesmo depois dessa noite
de merda, mesmo depois de descobrir que sou casado. Sequer há algo que
possa derrubá-la?

Embora seu orgulho seja complexo, o corpo de Kim é simples:


responde com mais estímulos sempre que é provocado. O cérebro é servo de
seu próprio corpo. E eu sou o servo de alguém que morreu seis anos atrás.

Nossas bocas se afastam alguns centímetros.

— Me leva pra cima. — Encaro seus olhos tão de perto que enxergo
cada uma das veias ao redor das íris.

Ele não responde, não se move. Sequer pisca. O pobre cérebro ainda
deve estar mandando-o se afastar o máximo possível de mim.

— Por favor... — sussurro.


L E A I N D A VA I M E S E G U R A R deste jeito quando descobrir que destruí sua
E
vida?
POR VOCÊ
fito seus olhos profundamente
toco em você cada vez mais
quando você vai, eu imploro para que fique
chamo seu nome duas, três vezes em seguida
é engraçado tentar explicar
como eu me sinto, e que meu orgulho é o culpado
porque eu não entendo
como o seu amor consegue fazer o que mais ninguém consegue:
me deixar louco
crazy in love — beyoncé

RINCO COM MEUS DEDOS ENQUANTO espero por Jude sentado na cama.
B
O quarto está escuro, a única iluminação vem dos prédios ao redor e
entra através da sacada aberta; uma brisa fresca balança as cortinas
suavemente. Há um silêncio inquietante me cerceando, interrompido somente
pelo som do chuveiro que passa pela porta fechada do banheiro ao lado e
chega aos meus ouvidos de forma abafada. É um som que perdura por vários
minutos — talvez mais minutos do que seria realmente necessário — e me
enche de ansiedade. É isso o que ele quer? Me deixar ansioso? Me deixar
sozinho no escuro esperando por ele para provar um pouco mais sua
dominância?

Umedeço os lábios. Suspiro fundo. A espera está cobrando seu preço


de mim. O colchão macio é convidativo demais, especialmente diante do
cansaço dos meus músculos. Olho para trás, imaginando o quão gostoso
seria me deitar nestas cobertas, ter o travesseiro sob minha cabeça e a brisa
fresca embalando meu sono.

Não me espere acordado.

Não poderia dormir na cama de Jude nem se eu quisesse. Prometi a


Noah que voltaria para casa hoje. E essa é uma promessa que vou cumprir.
Só tenho que cumprir meu dever aqui e ir embora. Só tenho que relaxar.
O som do chuveiro cessa. Meu peito se afunda e meu coração acelera.
Acho que já posso esquecer essa merda de relaxar.

Ouço alguns passos no chão do banheiro, lentos e lânguidos, até a


porta do cômodo ser aberta. A luz artificial se derrama sobre o quarto,
alcançando exatamente o local na cama sobre o qual estou sentado. Meu
rosto fica iluminado, embora o de Jude, encostado na porta, esteja encoberto
por penumbra.

Ele se apoia na parede com um dos braços e me fita intensamente.


Seu pescoço está inclinado para o lado e posso ver claramente as gotas
d’água que descem pelos seus fios molhados em direção aos ombros, aos
braços, ao tronco. As gotas pingam de seu corpo e formam uma poça no
chão, deixando um rastro por onde anda. Ele está completamente
encharcado e nu. A pele parece macia ao toque mesmo de longe. Seu olhar
parece querer me devorar a qualquer momento.

Após alguns segundos, ele penteia os fios para trás, me dando uma
visão clara de seu rosto. Enquanto se aproxima, murmura:

— Kim... — Inspira e expira alto pela boca, como quem está sem ar.

Isso me faz engolir em seco. Apenas a imagem de seu corpo nu é o


suficiente para fazer minha ereção despertar. Quando Jude está em minha
frente, me olhando de cima, o calor de sua pele chegando até mim e me
embriagando, ordena baixinho:

— Desabotoe a camisa.

Noto um tremor sutil em suas sobrancelhas e vejo os lábios que


simplesmente não conseguem se fechar, os braços mais imóveis junto ao
corpo do que o normal. Decido desobedecê-lo.

— Por que você não faz isso por mim? — rebato num tom rouco.

Apoio as mãos atrás do corpo sobre o colchão, me inclinando para trás


e deixando os botões da camisa à vista e ao alcance dele. Abro as pernas,
convidando-o a se prostar entre elas durante o serviço — e evidenciando a
protuberância em minha calça.

Jude semicerra os olhos em minha direção, uma desconfiança pontual


enquanto toma a decisão de acatar ou não minha contraproposta. Morde o
lábio inferior e se aproxima mais. Suas coxas tocam meus joelhos, as gotas
de água que escorrem por elas e me molham ali. Sem desviar o olhar gélido
do meu, seus dedos alcançam o botão superior da minha camisa. O polegar
o esfrega como se ele ainda não estivesse decidido, como se abri-lo
significasse algo maior do que a simples exposição do meu peito, como se
abri-lo fosse muito mais difícil do que realmente é.

Não preciso conhecer a vida pessoal de Jude para saber que ele não
tem um problema com abrir botões, mas com obedecer. A balança de poder
entre nós dois ficaria perturbada no segundo em que eu ditasse quem abre
ou não minha camisa. Abrindo este botão, ele afrouxaria também a coleira em
meu pescoço. A coleira de seu cão.

Seus dedos desfazem o primeiro botão lentamente, e então o


segundo, o terceiro. Jude parece surpreso consigo mesmo por isso, vide os
vincos sutis que se formam em sua testa e o olhar que se concentra em meu
torso, vide o peito que começa a subir e descer mais rapidamente.

Ele para no terceiro botão.

— Eu tive medo — diz.

— Do quê?

Retesa a mandíbula, as palavras parecem entaladas em sua garganta.

— Medo de você ir embora enquanto eu estava no banheiro.

Quando finalmente consegue me entregar um de seus medos, o


primeiro sinal genuíno de vulnerabilidade deliberada desde que o conheci,
uma sensação fria preenche meu estômago.

Agarro seu pulso parado sobre o botão.

— Por que eu faria isso?

Ele volta a me fitar, certa fragilidade em suas íris azuis.

— Você poderia ter ido se quisesse. Eu não te puniria.

Tomo um segundo para pensar nisso. Essa não foi a primeira


oportunidade que tive de abandoná-lo desde que o contrato foi assinado. Por
que não o fiz? Por que escolhi ficar?

A resposta é simples. Tão simples que não tenho problema algum em


formulá-la:
— Não sou homem de fugir das minhas responsabilidades.

Solto seu pulso. Jude inspira fundo. Minha resposta parece assegurá-
lo de algo sobre o que ainda estava em dúvida. Seus dedos trabalham no
quarto botão.

— Não, não é. — Então no quinto. — Você é melhor do que eu. —


Então no sexto. Há um sussurro triste em sua voz, apesar do brilho de
excitação em seu olhar.

Ele tira minha camisa do interior da calça e a desliza sobre os ombros


em seguida, descobrindo meu torso. Mesmo sem camisa, não consigo mais
sentir a brisa da madrugada. O calor de Jude forma uma redoma ao meu
redor — uma redoma que me sufoca e inebria.

Puxo-o pela cintura bruscamente, aproximando mais nossos corpos.


Jude precisa se apoiar nos meus ombros para se equilibrar, uma pequena
lufada de ar surpresa escapa de sua boca. Colo o rosto em seu peito e fecho
os olhos. Minhas mãos envolvem sua lombar, apertando-o contra mim.

— Você tá tão quente e molhado — murmuro contra sua pele.

Suas mãos passeiam pelas minhas costas, tateando os músculos


contraídos que o prendem. Aproxima o rosto do topo da minha cabeça.

— Por você — sussurra contra meus fios. — Pra você. — Ele me usa
de apoio para colocar as duas pernas sobre a cama, senta no meu colo. Seus
joelhos me cercam. — Tô assim pra você. — Suas mãos afastam meu rosto
de seu peito e me mantêm imóvel enquanto ele encerra a distância entre
nossos lábios. O beijo é curto e suave. Sua saliva aplaca a minha sede. —
Você tá frio e seco.

Esmago os dedos em seus flancos.

— Então por que não resolve isso? — digo contra seu pescoço. Beijo a
parte de baixo de sua mandíbula. Sinto a aspereza de uma barba recém-
aparada na minha língua.

— Fique comigo esta noite — ele diz de volta, baixo e plácido. — Eu


quero acordar e ainda te ter ao meu lado.

Encaro seus olhos. O azul-claro das íris está anormalmente quente,


assim como seu corpo inteiro nos meus braços. Tento achar uma forma de
explicar a ele que não posso, que preciso voltar para casa esta noite, e meu
semblante se fecha em dúvida.

Ele me empurra na cama, não me deixa pensar por muito tempo.


NEVE NA PRAIA
estamos nos apaixonando
como neve na praia?
estranhos, mas bonitos pra caralho
voando num sonho, estrelas enchendo nossos bolsos
você me querer esta noite parece impossível
mas está acontecendo, sem som, ao nosso redor
como neve na praia
snow on the beach — taylor swift, lana del rey

— HM M — O G R U N H I D O M E E S C A PA e reviro os olhos quando meu pau entra


na garganta de Jude.

Ele se força a engolir por alguns segundos, então tosse. Retira meu
pau, úmido por sua saliva, da boca com as mãos e o observa enquanto
recupera o fôlego. Depois disso, beija a lateral e esfrega os lábios
semiabertos da base até a cabeça em um movimento rápido, de novo, e de
novo, e de novo.

Deitado de bruços na cama e entre as minhas pernas, as curvas de


seu corpo estão parcialmente iluminadas pela luz do banheiro, que continua
vazando para dentro do quarto pela porta aberta.

Posso ver um sorrisinho safado em seu rosto quando ele se sente


preparado para engolir de novo. E, quando o faz, me sinto entrar um pouco
mais fundo, o comprimento inteiro do membro em sua boca.

Pressiono minha cabeça contra o travesseiro, meu baixo-ventre


queimando em excitação. De olhos fechados, ouço-o se engasgar e se
afastar, mas não muito. Pela primeira vez, se recupera sem deixar o pau sair
da boca.

Curvo a nuca para baixo para encará-lo.

— Você tá ficando bom nisso — comento com uma risadinha cínica.


Ele ergue os olhos até os meus. Seu rosto levemente corado tem uma
expressão de repreensão que logo se dissolve. Parece tão animado com sua
nova habilidade quanto eu. Reteso a mandíbula e abafo um gemido quando
ele desliza o pau até a garganta outra vez.

Quando o retira da boca, diz:

— Gosta quando eu faço isso, não gosta? — E me masturba enquanto


espera pela resposta.

Meu sorriso se alarga. Meneio um “sim” mudo com a cabeça.

Jude empurra o membro para frente e beija sua base bem no local
onde minhas bolas se conectam. Ele permanece um tempo ali, depois vai
abaixando lentamente, me explorando, analisando minhas reações,
descobrindo onde sinto prazer, onde sinto dor, onde sinto prazer e dor. Não é
de surpresa alguma para mim, mas ele é muito mais perverso do que seu
rosto inexpressivo deixa a entender para alguém que não o conhece bem.

Após algum tempo com ele me explorando, frustração começa a se


acumular em meus ombros.

— Jude — chamo.

Ele me fita em resposta. Pego seu queixo e aproximo sua boca da


cabeça do meu pau outra vez. Ele o engole. Meus dedos passam de seu
queixo aos seus cabelos, agarram os fios com firmeza.

Auxilio seus movimentos de subida e descida por um tempo. Meus


quadris começam a se mover por conta própria então, querendo mais do que
ele é capaz de me dar sozinho, mesmo com ajuda. Mas Jude engasga toda
vez que me elevo da cama. Agarro a lateral de seu rosto quando me retira
inteiro da boca.

— Relaxe a mandíbula — digo. — Me deixa foder sua boca.

Toco seu queixo e o puxo para baixo. Ele faz como indico. Guio sua
boca ao longo do membro, estocando-a, controlando a velocidade, o ritmo e a
força.

Ele é surpreendentemente receptivo aos meus movimentos e faz o


melhor para não engasgar demais ou se afastar. Seus olhos se fecham, no
entanto. Quando abrem, ficam limitados à visão de minha pelve.
— Olhe pra mim — peço rouco, áspero, quase em tom de queixa. —
Olhe pra mim enquanto estiver com meu pau na sua boca.

E ele o faz. Seus olhos lacrimejantes, vermelhos e de pupilas dilatadas


me encaram enquanto entro e saio de sua boca, enquanto meu membro
desliza pelos seus lábios. Esta visão me deixa sem ar, afoito, me faz contrair
os dedos dos pés, faz um ardor dilacerante bagunçar meu estômago. Um
ardor que não sentia desde... Olivia.

— Ah... — suspiro quando sinto meu sangue correr mais rápido, ferver
dentro das veias. Minhas têmporas pulsam, tenho que controlar a força em
meus braços para não machucá-lo. Minhas costas curvam-se sobre a cama,
e uma estocada particularmente forte leva Jude a seu limite.

Sinto o esfíncter de sua garganta se contraindo ao meu redor e


afrouxo o aperto em seu rosto, permitindo que se afaste.

Ele tosse algumas vezes e senta sobre os calcanhares, tentando se


recompor. Esfrega o topo da garganta, onde acabei de penetrá-lo
repetidamente. Seu peito e pescoço estão pintados num tom de vermelho
intenso, assim como a pele ao redor de seus olhos. As lágrimas silenciosas
pelo esforço secam logo depois de escorrerem.

Descanso uma das mãos sob o travesseiro em que apoio a cabeça.


Me masturbo lentamente, aguardando o loiro em minha frente se recuperar.

— Se lembra de quando você disse que não tinha chance de eu entrar


na sua garganta? — pergunto casualmente. — Acho que você estava
subestimando a si mesmo.

Arranco uma risada dele. Jude volta a se aproximar de mim


vagarosamente. Deita sobre o meu peito e me beija. Meu pau fica esmagado
entre nossos abdomes. Sua língua está mais ávida do que o normal, seus
lábios estão mais macios. Sinto o gosto de meu próprio pré-gozo em sua
boca enquanto o beijo se aprofunda. E o sabor é bom.

— Hmmm.... — Jude geme languidamente contra a minha boca


quando aperto suas nádegas. Ele tenta se afastar, mas mantenho-o preso em
meus braços. Só nos afastamos quando estou cansado de sentir o gosto do
meu pau em sua boca.

Sem perder muito tempo, nos viro na cama: fico por cima. Jude se
segura em meus braços. Afasto nossos lábios e encaro suas bochechas
rosadas. Toco o topo delas com o polegar e caminho para baixo, deslizando
para o canto de sua boca, então o queixo, o pescoço, as clavículas, a linha
média do peitoral, o abdome, o umbigo e, finalmente, a pelve.

Ouço um suspiro deixando sua garganta, então paro. Fito seu rosto.
Ele quer que eu continue. Deseja que eu continue. Há um pedido ardente em
seus olhos, um pedido que vela uma arrogância desesperada. Um pedido
que ele não tem coragem de fazer com a boca, que não tem coragem de falar
em voz alta.

Jude é um covarde.

Acatando seu pedido mudo, agarro seu pau. A circunferência é larga,


mas cabe confortavelmente em minha mão direita. Inicio o movimento de vai
e vem rápido e ansioso. Jude aperta meus ombros, transferindo para mim
parte de sua tensão. Seu corpo se curva para frente, seus joelhos mexem e
remexem, seus quadris tentam estocar a minha mão. Apesar de ele ser tão
covarde ao ponto de não conseguir me pedir por isso, seu corpo parece muito
mais do que agradecido.

“Sabe quantas vezes transei com ele?”, a voz de Florence Goldman


ecoa em minha mente. “Uma.”

Será que Jude não fodeu com ninguém além dela? Em quatro anos?

Interrompo a punheta bruscamente e aperto a cabeça do pau de Jude.


Ele treme e enrijece sob mim, me fita com os dentes cerrados, a mandíbula
retesada. Aperto mais. Suas unhas se fincam em meus ombros. Ele grunhe,
os dedos de seus pés se contorcem como se estivessem eletrocutados.
Apenas quando tenho certeza de que ele está prestes a explodir, solto.
Goldman atira sua cabeça para trás, gemendo de alívio.

Encaro minha própria mão, molhada por seu pré-gozo abundante. O


líquido viscoso e transparente escorre entre meus dedos, umedece minha
palma. Tenho vontade de prová-lo e descobrir seu gosto, mas quando me dou
conta de que Jude ainda precisa ser preparado para o que vem em seguida,
me ocorre uma utilidade melhor para o líquido.

Me aproximo mais do corpo ardente de Jude, meu rosto na altura da


linha de seu peitoral. Uso os cotovelos para abrir suas pernas um pouco
mais, apenas o suficiente para que meus dedos possam deslizar para dentro
dele sem muitos problemas. E eles o fazem.
Beijo e chupo a pele imaculada de Jude enquanto introduzo e retiro
meus dois dedos, lenta e repetidamente. Seus músculos se contraem e
relaxam de acordo com minhas investidas; as unhas se cravam mais em
meus ombros quando entro totalmente, e se afastam quando me retiro
completamente.

Sinto sua respiração profunda sob o peito conforme continuo a trilha


de beijos até seus mamilos. Ali, mordisco a pele sensível enquanto meus
dedos continuam preparando-o, ganhando centímetro por centímetro em seu
interior. Abro os dedos em forma de tesoura em alguns momentos; pinço-os
para cima, tocando sua próstata, em outros; tudo enquanto meus dentes não
se desprendem dos mamilos rijos. Após alguns segundos, ele me empurra
para longe — ou tenta seu melhor para fazê-lo.

— O que acha que está fazendo? — pergunta entre as respirações


entrecortadas. Ergo o olhar até o dele sem deslizar meus dedos para fora.

— Te preparando.

Ele morde o interior do lábio.

— Não. Digo, com a boca.

Passo a ponta da língua sobre meus dentes e observo o estrago que


fiz em seu mamilo, a auréola mordiscada e a pele vermelho-vivo ao redor.

— Te machuquei? — sussurro apreensivo.

— Não — ele responde rapidamente. — É só que... — as bochechas


coram um pouco mais — você nunca fez isso antes.

— Você não gosta — chuto ainda sem entender o motivo de sua


tensão súbita.

— Eu gosto.

— Então qual é o problema?

Os lábios dele se fecham. Vejo em seus olhos que está se afastando,


que está me empurrando para longe outra vez.

— Jude. — Meus dedos param em seu interior. — Você pode me


contar. Pode confiar em mim — asseguro em tom sóbrio.

Jude umedece os lábios e suspira longamente antes de murmurar:


— É que isso me traz algumas memórias... — Se interrompe,
engolindo em seco. Seu olhar paira triste sobre o espaço vazio ao lado na
cama. — Memórias com outra pessoa.

Ergo as sobrancelhas.

— Sua esposa?

Uma risada tenta deixar seu peito, mas ele a asfixia, resultando em um
som que mais parece o de uma tosse seca.

— Sim... — murmura com escárnio —, vamos dizer que é Florence.

Sei que está mentindo, que provavelmente deveria insistir até arrancar
a verdade dele, mesmo que à força. Mas também sei que minha insistência
resultaria em Jude se afastando de mim mais uma vez. Para conseguir
qualquer coisa dele, preciso jogar conforme suas regras, me adaptar às suas
condições. Por isso, deixo as palavras de escárnio pairarem entre nós e
continuo meu trabalho como um bom cão.

Meus dedos deslizam mais cuidadosamente para dentro e fora de seu


corpo: o relaxamento de antes foi embora com a breve conversa
desagradável. Me esforço até tê-lo tão aberto quanto antes, entorpecido com
o próprio prazer, calado, lutando contra os próprios gemidos e com a
respiração entrecortada.

Por alguns minutos, me concentro no ponto macio e dilatado em seu


interior, o ponto que envia descargas elétricas por todo seu corpo quanto
tocado da forma certa.

Jude grunhe, treme e se debate sob mim quando não consegue mais
suportar o estímulo. Aperta meus braços.

— Pare. Pare. — Paro imediatamente. Ele contrai os lábios, o rosto


simultaneamente frustrado e aliviado. — Quando você toca nesse lugar... é
demais. Vai com calma.

Aceno sutilmente. Talvez eu tenha mesmo me apressado um pouco.

Volto a estimulá-lo mais lentamente, atento a cada uma de suas


reações. Posso ver quando meus dedos o incomodam, quando o machucam,
quando a dor se torna prazer. Beijo seu baixo-ventre e subo até o umbigo. Os
músculos tensos do abdome se contraem sob meus lábios.
— Meus dedos tão deslizando tranquilamente dentro de você hoje...
Acho que posso até tentar colocar um terceiro — murmuro casualmente.

Introduzo um terceiro dedo em Jude e ele deixa escapar um grunhido


alto. Me encara com fervor, irritado comigo por ter feito isso e consigo mesmo
pela perda de controle. O anelar encontra alguma resistência, alguma
pressão de suas paredes, mas logo está deslizando tão facilmente quanto os
outros dois.

Jude pisca longamente, então curva a nuca para trás, saboreando as


sensações que invadem seu corpo, as sensações que eu provoco em seu
corpo. Quando seus lábios entreabrem outra vez, me impulsiono para cima e
agarro a lateral de seu rosto. Ele me encara sobressaltado.

— Seu corpo é tão honesto — sussurro contra seu rosto. — Por que
sua boca não é do mesmo jeito?

Jude tenta formular alguma coisa, mas tudo o que sai de sua boca é
um suspiro morno. Seus olhos afastam-se dos meus, seu rosto vira para o
lado. Viro-o de volta, obrigando-o a me encarar, obrigando-o a me confrontar
enquanto sua resposta não vem.

Ele engole em seco uma, duas vezes. Seu rosto parece mais e mais
afoito diante da minha pressão.

— Me beije — diz numa tentativa de desviar o assunto.

Meu cenho se franze.

— Não.

Ele empina o queixo sob meu aperto firme.

— É uma ordem.

— E estou desobedecendo.

Sinto meu interior queimar ao dizer isso em voz alta. Queimar por ele.

O coração de Jude acelera sob o meu, sua pele úmida pelo suor do
sexo desliza contra a minha. Calo a resposta cínica que ele estava
preparando quando peço:

— Vire.
Não perco tempo esperando que ele o faça por livre e espontânea
vontade. Saio de dentro dele e aperto seu ombro, fazendo-o virar na cama
uma segunda vez. Jude faz uma careta de confusão, mas fica de bruços,
seguindo minhas orientações. Depois, estica os braços para baixo do
travesseiro.

Toco o centro de suas omoplatas com o indicador e traço o contorno


do osso enquanto exploro as sardas e pintas em suas costas. Sua pele não é
tão lisa nesta região. Sinto até alguns pelos ralos ao redor das escápulas.

Toco cada um de seus músculos. A pele de Jude aquece sob meu


toque. Ele contrai e relaxa os ombros, esfrega o rosto no colchão, move o
quadril de um lado para o outro sob mim.

Toco o topo de sua coluna com os lábios, chupando a pele, deixando


minha marca ali; uma marca sutil, mas que se intensificará com o tempo.
Desço a trilha de beijos pela coluna inteira. Quando chego na lombar, agarro
suas nádegas, sentindo a maciez de sua pele em minhas mãos. Meus dedos
deixam impressões vermelhas onde passam, maculando a tela branca de
antes. Deslizo um pouco mais para baixo, distribuindo beijos pelas
impressões de meus dedos, mordendo sua carne inconscientemente.

Jude grunhe com as mordidas, sua voz é abafada pelo colchão. Mordo
a pele delicada até alcançar seu centro, me movendo cada vez mais para
trás. Pouco depois, meus pés já estão no chão do quarto, meu torso curvado
sobre a cama na altura da cintura dele.

Vejo os punhos de Jude agarrarem os lençóis quando minha língua se


aproxima de seu orifício, deslizando para cima e para baixo, firme e áspera.
Ele grunhe cada vez mais alto em antecipação. Meu coração acelera por
finalmente retirar dele as reações que tanto desejo, por finalmente deixá-lo
sem controle.

Abro suas nádegas com as mãos e tenho uma visão clara de seu
corpo integralmente exposto a mim, sem amarras, sem cinismo, sem
mentiras. Mordo o lábio inferior e, com o olhar firme no rosto de Jude, o toco
ali embaixo com a ponta da língua pela primeira vez. Forço a parede de
músculos, simulando penetrá-lo, e então retraio; uma, duas, três vezes. Me
perco no prazer físico de sentir o gosto suave da pele da região, e no prazer
mental de tê-lo tão vulnerável a mim.
Os quadris de Jude parecem perdidos sob meu toque; ele não
consegue ficar completamente imóvel, mas também não sabe como se
mover. Aperto sua lombar para baixo com uma das mãos, estimulando-o a
erguer a cintura e os quadris levemente do colchão, a se projetar no ângulo
ideal para que meu rosto se encaixe perfeitamente em seu corpo.

Ele ergue a cabeça do colchão e estica o pescoço para me fitar.


Retribuo seu olhar e abro um sorriso safado. Levanto o rosto e umedeço os
lábios com a ponta da língua, caindo no meio de suas nádegas em seguida,
chupando-o, mostrando o quanto aquilo também me dá prazer.

Ouço um gemido rouco de Jude; sua cabeça despenca no colchão


outra vez, seu corpo entra em frenesi sob mim.

Ele é muito sensível para um cara tão insensível.

Passo um braço por baixo de seu ventre, seguro firme e o puxo para
trás. O corpo de Jude está mole, entorpecido, então apenas segue minha
deixa. Seus joelhos se arrastam sobre o colchão, suas coxas dobram, o
quadril se ergue. Me posiciono melhor entre suas pernas, aperto suas
nádegas e volto a me enfiar entre elas, forçando minha língua, sentindo o
interior ardente de seu corpo da forma que — talvez — ninguém antes tenha
sentido. Suave e imoral. Caloroso e indecente. Quente e íntimo.

Depois de vários minutos tremendo sob meu toque, Jude se apoia nos
cotovelos e vira para trás para me encarar outra vez.

— Kim... — chama baixinho. Levanto o rosto, as mãos firmes em sua


bunda. Ele suspira, os lábios úmidos entreabertos, o rosto violentamente
vermelho, os fios amarelos encharcados de suor caindo sobre sua testa e
seus olhos, as íris azuis ferventes. — Você pode só colocar de uma vez.

Impulsiona o quadril para trás em busca do contato com minha virilha.

Diante da atenção completamente centrada nele, acabei esquecendo


de mim mesmo. O resultado está aqui: minha ereção dolorosa, uma mancha
de pré-gozo nos lençóis, minhas bolas duras e tensas.

Agarro meu pau com uma mão e seu quadril com a outra. Deito o
comprimento do membro sobre a parte inferior de suas costas e dou uma
risadinha curta quando percebo quão fundo consigo chegar dentro dele.
Seguro seu quadril com as duas mãos e me movo para frente e para trás
lentamente, sentindo a fricção da minha pele sensível contra suas costas.
— Não — respondo depois de um tempo, e paro os movimentos.

— Eu tô pronto pra você — reclama.

— Não — repito.

Passo um braço ao redor de seu pescoço e o puxo para trás até suas
costas colarem em meu peito. Meu pau se projeta para cima quando sua
bunda esmaga minha pele. Jude agarra meu braço e minha cintura, se
equilibrando, e curva as costas, expandindo o peito.

— Peça — sussurro em seu ouvido. Mordisco o lóbulo, exploro sua


orelha com a ponta da língua. — Peça pra que eu te foda.

— Me fode... — ele obedece sem muita resistência, e ainda completa:


— Por favor.

Agarro sua boca com a minha, mordendo e beijando. Meu braço que
estava ao redor de seu pescoço desce para seu peito. A mão que usava para
se equilibrar em mim sobe da minha cintura até meus fios. O beijo se
aprofunda quando pressiono meu corpo contra o dele. O desejo de penetrá-lo
se torna quase incontrolável.

Assim que nos afastamos, murmuro em tom cínico:

— Quando você pede desse jeito... — E o curvo em direção à cama


outra vez. Jude se apoia nos cotovelos, fica de quatro para mim. Espalmo a
mão no meio de sua coluna e o empurro para baixo. — Arqueie as costas. —
Ele o faz. Pressiono suas costas um pouco mais. Jude resiste e me encara,
ainda que de costas. — Peito no colchão, Jude. — Ele cede à minha força, e
encosta o torso na cama, mantendo o quadril elevado. Seus braços se
esticam à frente, relaxados.

Seu corpo está no ângulo perfeito para me receber.

Aproximo o pau de sua entrada, deixando para trás uma trilha do meu
pré-gozo em suas costas. Brinco com a parte externa de seus músculos,
forçando a penetração, mas me afastando assim que sinto sua resistência
ruindo, o corpo se abrindo para me alojar. Faço isso algumas vezes. Quando
canso, pego um de seus braços esticados sobre o colchão e o puxo para trás.

— O quê? — ele indaga quando descanso sua mão sobre a nádega


esquerda.
— Se abra pra mim — peço num tom grave, rouco de tesão. — Com
uma mão. — Levo sua mão até bem próximo da entrada e a faço afastar a
nádega. Mordo meu lábio inferior, sentindo meu peito queimar. — Agora com
as duas.

Puxo seu braço direito e repito tudo até tê-lo se abrindo para mim, até
deslizar para dentro dele, até sentir suas paredes quentes e úmidas me
esmagando, até curvar a cabeça em direção às suas costas e gemer algo
quando seu corpo relaxa e me permite chegar mais fundo. Gemo quando
minha pelve encontra sua bunda, quando os sons se tornam mais altos —
como o de tapas fortes em um rosto machucado —, quando inesperadamente
me sinto próximo de gozar e preciso diminuir o ritmo.

Jude agarra e morde os lençóis sob si, grunhe e rosna no meu pau
como o puto que jamais imaginei que fosse sob o terno naquele escritório, ou
sob o blazer e sorriso paternal naquela festa. Ele treme enquanto o fodo,
treme e joga os quadris contra os meus, tomando controle das estocadas por
algum tempo. Retiro o pau inteiro e o coloco de volta outra vez. Retiro e
coloco. Retiro e coloco. Seu orifício dilatado me aloja com cada vez mais
facilidade, me envolve com cada vez menos resistência. Seu calor me
queima.

Extasiado, vendo o mundo girar ao redor, puxo seus fios amarelos com
força. Aproximo nossos rostos.

— Gosta quando eu te fodo desse jeito? — Retiro totalmente o pau e


deslizo para dentro em seguida até a raiz.

— Sim. — Ele repete quando o penetro pela segunda vez. — Sim. —


Ele repete quando o faço pela terceira. — S—
FIQUE
isso não é amor, é óbvio
mas você não pode ficar comigo esta noite?
stay with me — sam smith

PERTO A FIVELA DO CINTO e fecho zíper da calça. Passo a camisa pelos


A
ombros e fecho os botões. Busco pelo terno no quarto escuro. Não posso
sair daqui sem ele, é o único terno decente que tenho. Reviro o cômodo
silenciosamente até ver uma parte da manga debaixo da cama. Me agacho e
puxo a peça inteira. Jogo-a sobre os ombros. Pego meu celular esquecido na
mesa de cabeceira e desbloqueio a tela. 4h17. O trânsito deve estar calmo
agora. Chegarei em casa em alguns minutos.

Iluminado pela luz noturna que entra no quarto através da sacada,


Jude está dormindo de bruços na cama, os lençóis bagunçados ao seu redor,
enrolados em suas pernas. Analiso as marcas de mordidas e chupões que
deixei em seu corpo desde a bunda até os ombros. Algumas estão
particularmente ruins — uma ou outra na bunda irá amanhecer roxa.

Ao menos serão mais fáceis de esconder do que as marcas no


pescoço. Um sorriso idiota se estica em meu rosto diante desse pensamento.

Pego minhas chaves e minha carteira de cima da mesa, tentando meu


melhor para não fazer barulho algum. Mantenho o olhar focado em Jude, em
sua respiração lenta e profunda, em seu rosto sereno nesta madrugada. Ele
parece um anjinho enquanto dorme. Se ao menos fosse sempre assim.

Dou meia-volta e caminho para fora do quarto, na direção da abertura


das escadas. Dou alguns passos. Quando tento guardar as mãos nos bolsos,
o molho de chaves escorrega e cai no chão, fazendo um leve tilintar ecoar
pelo quarto. É apenas um estampido baixo, não me preocupo. Me abaixo
para apanhar o molho. Meus dedos encostam no metal frio.
— Kim...? — a voz rouca e sonolenta de Jude faz cada pelo em meu
corpo arrepiar.

Agachado, me volto para trás. Ele está sentado na cama, coçando o


olho; vincos superficiais aparecem em sua testa.

— Falei pra você ficar a noite toda — completa.

Engulo em seco. O sentimento infantil de ser pego no flagra enquanto


faço algo de errado me invade mesmo que eu saiba o quanto é estúpido,
mesmo que eu saiba que tenho o direito de ir e vir daqui, mesmo que ele
tenha me dado esse direito e eu nunca tenha concordado em passar a noite
ao seu lado.

Apanho o molho e me recomponho. Guardo-o no bolso, mantenho


minhas mãos entocadas.

Encaro o rosto questionador do loiro.

— Falei pra Noah não me esperar acordado, mas não avisei que ficaria
a noite inteira fora — explico no tom mais brando que consigo formular tão
tarde da noite. Suspiro. — Preciso voltar.

Ele ignora o que eu disse e repete em tom autoritário:

— Fique aqui a noite toda.

Reviro os olhos. Frustração se acumula em meus ombros. Eu deveria


virar as costas e ir embora. Já cedi demais a Jude em um único dia. Teremos
ao menos mais uma centena de outros como este pela frente.

— Não posso, Jude — reitero, curto e grosso. — Não hoje pelo menos.

Viro de costas.

Não consigo dar outro passo antes de ser puxado pelo braço para trás
bruscamente. Sou atirado em direção à cama. Minhas costas encontram o
colchão macio; minha cabeça, o travesseiro. Tento levantar, mas sou lento
demais. Ainda pelado, Jude monta sobre mim, me prendendo na cama,
imobilizando meus braços sobre a cabeça.

Me debato. Com mais algumas investidas, provavelmente conseguiria


reverter as posições, mas Jude parece mais interessado em outra coisa.
Prende meus pulsos com apenas uma mão por alguns segundos e desliza a
outra sob meu corpo em direção ao cós da minha calça.

Infelizmente, levo tempo demais para perceber o que ele está fazendo.
Infelizmente, quando me dou conta de suas intenções... ele já apanhou a
arma.
ARMA CARREGADA
eu estou aqui
olhe nos meus olhos
e me diga que você está aqui também
[...]
eu me sinto como uma arma carregada
e quando fizer o que quero fazer
serei o seu único
I’m your doll — FKA twigs

depois de pegar a arma debaixo do


O L D M A N S O LTA M E U S B R A Ç O S L O G O
G
meu corpo. Faço menção de me levantar, mas ele aponta o cano para meu
rosto, pressiona o metal frio contra minha bochecha. Não tenho opção além de
ficar imóvel, completamente rígido, tentando afastar o rosto, mas falhando.
Abro as mãos no colchão em sinal de rendição.

— O que está fazendo? — pergunto, tenso.

Meus olhos viajam ora para o revólver em minha cara, ora para a cara
do homem segurando-o sobre mim. Este Jude não se parece em nada com o
cara que acabei de foder.

— Achou que eu não tinha notado que estava carregando uma


dessas? — replica, sombrio e ríspido. Pressiona mais o cano contra meu
rosto, afundando a pele delgada das minhas bochechas.

Devia ter deixado essa porcaria no carro.

— Cuidado. Está carregada. — Minha voz sai arrastada, cautelosa


diante do perigo iminente.

Um sorriso perverso se desenha no rosto de Jude. Seu polegar se


aproxima do cão do revólver e o destrava. O som da trava se abrindo faz um
calafrio atravessar minha espinha. Me empurro mais contra o colchão, mas
me afastar da mira de Jude neste momento parece inviável; tentar algum
movimento brusco, mais ainda.

— Não fode — cicia, estreitando os olhos em minha direção com uma


crueldade viperina. — Onde conseguiu essa merda? Não me lembro de
permitir que usasse uma dessas em serviço.

— Acha que sou uma putinha aguardando as ordens do patrão? Esse


é um país livre e a arma é minha, posso fazer o caralho que quiser com ela —
cuspo, rouco. — Além disso, quer que eu seja seu segurança, mas não quer
que eu tenha uma arma? Como devo te proteger, então?

— Só mencionei a história do segurança hoje, mas notei a arma no


seu coldre muitos dias atrás. Não tente mentir pra mim. — Inspira fundo. —
Onde a conseguiu?

Pigarreio, minha garganta fica seca pela aflição e pelo ódio.


Novamente, ele me encurrala. Novamente, preciso me render.
Estranhamente, acho que já estou acostumado a isso.

— Era do meu pai, guardo ela em casa — respondo lentamente. —


Trago para o trabalho pro caso de algum Snake cruzar meu caminho.

— Desde quando?

— Desde o dia em que assinei o contrato.

— E você pretendia enfiar uma bala em qualquer mafioso que entrasse


em sua frente? — Ergue uma sobrancelha e aperta mais o cano contra minha
bochecha. — Na minha casa? Na festa da minha filha? No prédio da
Goldman? — diz entre os dentes cerrados, furioso.

— Honestamente, pensei que ia ter que usar na rua ou em algum beco


do Bronx. Não sabia que poderia tombar com um desses filhos da puta na
empresa também, e muito menos na sua casa. — Retribuo o olhar de
desconfiança.

Isso parece atingi-lo, mesmo que superficialmente. O revólver pesado


não se afasta do meu rosto, mas vejo uma brecha de vulnerabilidade em seu
olhar gélido.

Quando ele fala, entendo de onde a brecha vem.


— Então você podia mesmo ter me matado quando quisesse. — Seu
tom é baixo, sussurrante, pouco mais alto do que um suspiro.

— Achou que eu estava blefando? — rebato no mesmo tom baixo.

A expressão de Jude se altera de um retesamento furioso a uma


tensão curiosa, quase provocativa. É quando sinto a pressão do revólver
sobre meu rosto se aliviar minimamente.

— Não — responde firme e calmo. Então, em um tom solícito, ansioso,


que em nada combina com seu exterior gélido, pede: — Fique aqui pelo resto
da noite.

— Senão...? — Ergo as sobrancelhas.

Ele volta a pressionar a arma contra meu rosto com tanta força que
sinto o cano deixando uma impressão em minha bochecha. Desta vez, no
entanto, não tenho mais medo.

Semicerro os olhos em direção aos dele.

— Não acho que você vá fazer isso — murmuro, indicando o revólver


com um breve olhar.

Jude se curva sobre mim, aproximando nossos rostos. O cano da arma


desce da minha bochecha até a mandíbula.

— Você é suicida? — pergunta.

— Não.

— Então é só estúpido? — replica com um sorriso sádico nos lábios.

Um sorriso igualmente sádico se arrasta pela minha boca.

— Só acho que você não vai desperdiçar as outras 400 fodas que
ainda estou devendo. Não depois de gozar daquele jeito.

A provocação extrai uma risada abafada de sua garganta.

— Está contando quantas vezes fodemos? — Ele tem uma expressão


de orgulho ao dizer essas palavras, um sorriso perigosamente desafiador.

— Você não? — rebato, sem conseguir desviar o olhar de seu sorriso.


Ele se distrai pelo mais breve dos segundos, talvez pensando em uma
resposta cínica, e tenho minha única chance de virar o jogo. Agarro seus
braços e os empurro para cima. Com o revólver longe da minha cabeça, nos
viro sobre o colchão, de forma parecida à que fiz longo antes de comê-lo mais
cedo. Fico por cima, pressionando as costas de Jude contra o colchão
enquanto suas pernas envolvem minha cintura. Com seus braços presos
sobre a cabeça, removo o revólver de sua mão sem muita resistência e travo
o cão. Me estico o suficiente para alcançar a mesa de cabeceira e abandono
a arma ali.

— Você tem que parar de tomar tanto o controle — Jude reclama


quando se vê sem a única vantagem que tinha sobre mim, o corpo mais uma
vez à mercê do meu, seus músculos poderosos dominados pelos meus, o
ego sempre inflado machucado agora. — Eu devia ter comprado um pet mais
dócil.

Me apoio nos cotovelos e o mantenho preso sob mim. Sorrio quando


encaro seu rosto frustrado de tão perto. Meu peito pesa e minhas entranhas
gelam.

Ele tem formas de me fazer esquecer que não sei porra nenhuma
sobre ele, que pode me destruir com um estalar de dedos, que está apenas
me usando para um objetivo.

Quando olho para o rosto dele, não tenho certeza se o que estou
vendo é o Jude de verdade ou apenas uma máscara criada por ele para me
manipular, me fazer ficar. Desde quando ele sabia sobre a arma? Por que
resolveu usá-la contra mim apenas agora?

Ele quer que eu me esqueça de tudo e pense apenas no que me faz


sentir. Quer me fazer ter a ilusão do controle, quer me distrair para que eu
não perceba a corrente apertada no meu pescoço.

— No que está pensando? — sua voz baixa e grave me afasta dos


pensamentos.

“Tome cuidado com Jude. Nada do que ele faz é por acaso.” A voz de
Florence ressoa em minha mente como o gemido de um fantasma. “Não
desconfia do motivo que levou Jude ao clube dos Snakes na noite em que se
conheceram?”
Pondero questioná-lo diretamente outra vez sobre o que quer de mim,
sobre o que estava fazendo nas Arenas na noite da luta. Mas isso seria
apenas confessar para ele que Florence não me revelou as repostas. Talvez
seja mais útil manter Jude um pouco paranoico.

Então falo a segunda melhor coisa que me vem à mente, a segunda


coisa que mais me abalou naquela festa além da conversa com sua mulher:

— A garota da festa... — minha mente viaja até seus cabelos longos e


dourados, idênticos ao do pai — é mesmo sua filha?

A pergunta parece genuinamente surpreendê-lo — e desagradá-lo. Se


há uma coisa sobre Jude da qual posso ter certeza é que ele odeia a própria
filha.

— Por que você tinha que acabar com o clima? — diz com uma voz
desapontada. Soca meu peito na tentativa me afastar. Fico imóvel, mesmo
quando seus socos se intensificam, até ele se cansar. Por fim, sem ter muito
para onde fugir, ele expira fundo e responde enquanto esfrega a testa com as
costas das mãos. — Sim, claro que é. Não notou como somos parecidos? —
Uma risada sarcástica escapa de sua boca. — Esse tipo de engenharia
genética ainda não tá disponível, caso você não saiba.

Julgando pela sua fortuna, não me surpreenderia se tivesse realmente


feito uma merda dessas.

— Sei no que está pensando agora — diz. Estreito os olhos em sua


direção, me questionando se ele consegue mesmo ler meus pensamentos.
Quando continua, tenho certeza de que não. — Está pensando em como
estou casado com Florence, mas moro em uma casa separada. Em como
não tenho problemas em foder outras pessoas na frente dela, e,
honestamente... ela também não. Em como pareço um pai ausente que não
se importa com a própria filha.

Ele diz tudo isso num tom autodepreciativo que me pega


desprevenido. Imaginei que houvesse uma ferida aberta em sua relação com
a família, mas não imaginei que estivesse sangrando e infeccionada dessa
forma.

— Realmente não me importo — continua com um desdém forçado. A


voz abaixa ainda mais, um mero suspiro. — Isso te incomoda?

— Por que teve a criança, então? Por que não abortar?


— Acha que não tentamos?

Estreito mais os olhos. Quanto mais descubro sobre essa história,


mais confuso fico.

— Então...? — Faço sinal para ele continuar. Em vez disso, os olhos


de Jude esfriam; ele está refletindo sobre algo. Seu silêncio me perturba. —
Você não vai me contar? — insisto, bem próximo de seu rosto.

Ele fecha os olhos e faz uma careta de desconforto.

— Você está passando dos limites por aqui, chofer.

Tenta me afastar com os punhos outra vez, mas tudo o que consegue
é esgotar os próprios músculos.

— Não vou te deixar sair da cama até que me diga o que aconteceu —
declaro. Ele me fita com um semblante preocupado. — Não estou brincando.

Jude estala a língua e suspira fundo. Seus lábios se entreabrem. Meu


interior queima na antecipação de ter mais um pedaço desse quebra-cabeça
nas mãos — um entregue a mim diretamente por ele.

— Minha tia aconteceu — murmura áspero e sem emoção.

— Sua tia?

Ele encara uma parte qualquer do quarto sobre meus ombros.

— Conheci Florence na primeira semana do primeiro semestre da


faculdade. Eu era um bad boy, um verdadeiro quebrador de corações — diz
com uma ironia ácida. — Ela era... — pausa — uma garota inocente. Nos
conhecemos na primeira festa do campus. Fodemos no banheiro. Não durou
nem um minuto. Eu tava bêbado demais pra me lembrar de usar camisinha. E
mesmo que me lembrasse, não sei se conseguiria colocá-la. — Pausa
novamente, desta vez por muito mais tempo, tanto tempo que achei que a
história acabasse aqui. Até que ele completa: — Ela descobriu que estava
grávida algumas semanas depois.

Aperto os lábios, o peso da história pressionando meus ombros para


baixo como um monstro noturno. Tenho que me lembrar de me manter
erguido pelos cotovelos para não esmagar seu peito.
Penso um pouco no que ele acabou de falar, em sua expressão
melancólica, na forma desagradável com que seus lábios tensos perderam a
cor, na voz amargurada. Inclino o pescoço para o lado e pergunto:

— Como você soube que o bebê era seu?

Ele permanece encarando alguma coisa além de mim.

— Teste de DNA. Esses putos nunca mentem. — E uma risada ríspida


escapa de sua garganta, quase um grunhido.

Neste momento, me torno ciente do quão inerte seu corpo está sob
mim, como se invadir seu passado pulverizasse toda e qualquer vontade de
resistir que ele tinha até então.

— Ela queria se livrar do bebê tanto quanto eu. Mais, até — continua,
apático. — Ser mãe durante a faculdade não estava nos seus planos.

— Então por que...? — reitero, ainda sem compreender onde Brianna


Goldman se encaixa em tudo isso. Talvez a exaustão de uma noite longa
tenha me impedido de perceber o óbvio. — Sua tia obrigou ela a ter o bebê?
Por quê? Onde seus pais estavam quando isso aconteceu?

— Meus pais morreram quando eu tinha oito anos, Kim, num acidente
de trânsito. Foram assassinados. Desde então, Brianna é minha guardiã
legal. Tomou conta de todos os aspectos da minha vida até o dia em que
completei 21 anos. — Seus olhos se distanciam mais de mim, fúria queima
sob as íris. — Não importava o que eu e Florence queríamos naquela
situação. Importava apenas o que minha querida tia desejava.

— Por que ela queria te forçar a ter um bebê? — pergunto outra vez,
sentindo os músculos em meu rosto contraídos pela confusão.

Conversar com ele é como estar confinado com uma serpente em um


espaço escuro. Sei que vou acabar picado e morto em algum momento, mas
enquanto isso não acontece, fico na esperança de continuar vivo apenas o
suficiente para emboscar a serpente num momento de vulnerabilidade.

A serpente parece cansada de sua própria vulnerabilidade, no entanto.

Jude fecha o semblante e me empurra para longe de si com força


muito maior do que antes, me pegando de surpresa. Não consigo resistir a
tempo. Ele me derruba para o lado e se arrasta para fora da cama
calmamente.

Ele estava apenas fingindo ser mais fraco do que eu.

— Você faz perguntas demais. Minha cabeça está doendo, preciso de


uma aspirina.

Observo as costas nuas de Jude enquanto ele caminha até o banheiro.


Volta com um roupão encobrindo o corpo.

Sento na cama.

— Jude?

Ele me ignora e desce as escadas em direção à cozinha.

Fico sozinho com um vazio inquietante no peito. Uma voz mórbida em


minha cabeça grita que há algo muito, muito errado com essa história — e
com Jude.
NÃO TENHO MAIS MEDO
eu não tenho mais medo
mesmo estando no olho da tempestade
estou pronto pra encarar isso, morrendo pra provar
o seu calor doentio
not afraid anymore — halsey

LGUNS MINUTOS DEPOIS, PEGOa arma sobre a mesa de cabeceira,


A
guardo-a no cós da calça outra vez e desço as escadas atrás dele.

As luzes do primeiro andar estão acesas. Jude está na cozinha,


apoiado na pia e de costas para mim. Há um frasco amarelo de pílulas
próximo de suas mãos. Ele bebe um copo d’água — provavelmente engole
uma daquelas coisas também. Uma faca está abandonada ao lado do frasco,
algumas lascas de plástico sujam o balcão.

Caminho com calma, um pouco incerto do que quero dizer, do que


quero saber. Talvez eu não deva falar nada. Talvez deva apenas passar reto
por ele e sair da casa. Toda aquela história de me obrigar a ficar ali parece ter
ido pelos ares de qualquer jeito. Além disso, ainda preciso chegar em casa
esta noite.

O problema é que... eu não quero mais ir. Eu preciso, mas não quero.

É o meio da madrugada. O dia parece ter sido tão estressante para ele
quanto foi para mim. Seu corpo está mole depois de gozar nos meus braços
tantas vezes. Sem contar que ele já me disse mais do que eu esperava. Se
pretendo extrair mais de Jude, se pretendo compreender essa história mal
contada, então nenhum outro momento será melhor do que este. Ele está
vulnerável agora, e vai se tornar ainda mais conforme a droga analgésica
descer por sua garganta e entrar em sua corrente sanguínea.

Me encosto no corrimão das escadas com as mãos nos bolsos. Ao


lado do último degrau, pergunto serenamente:
— Por que não fizeram o aborto sem contar a ninguém?

Seus ombros ficam tensos com minha presença. Ele abandona o copo
na pia e guarda o frasco no armário sobre sua cabeça. Se volta para mim,
embora permaneça apoiado na pia. O roupão azul-escuro complementa o
tom de suas íris, permite uma visão limitada de seu peito e nada mais.

Jude cruza os braços sobre o torso e aspira fundo, como se limpasse


as narinas.

— Nós não contamos a ninguém — responde, o tom letárgico, abatido.


O rosto está claramente desgastado pelo estresse trazido pela minha
insistência.

Ele me encara irritado. Não comigo, no entanto. Com outra coisa. Algo
que talvez não esteja neste lugar.

— Não tem como esconder uma merda dessas da minha tia — dispara
em tom de derrota, e reflete sobre isso logo em seguida. Seu semblante se
distancia, se apaga; seus traços se tornam inexpressivos como da primeira
vez em que o vi. — Não tem como esconder merda alguma de Brianna.

Encaro o chão à minha frente. Sua confissão traz o senso de incômodo


de volta aos meus ombros, me deixa terrivelmente ciente de que sou uma
anomalia neste lugar, em sua vida.

Me afasto da escada e caminho lentamente até ele. Jude revira os


olhos e suspira profundamente, frustrado pelo arrastamento da conversa e
pela minha falta de intenção de deixá-lo em paz. Talvez esteja se
arrependendo de não me deixar voltar para casa.

Quando chego próximo o suficiente para me apoiar na pia e prendê-lo


entre meus braços esticados, murmuro incisivo:

— Então como você pretende me manter em segredo? Como pretende


manter isso em segredo? Me levando pra festa de aniversário de sua filha?
Fodendo comigo no seu escritório? — Ergo as sobrancelhas.

Jude não descruza os braços, não desvia os olhos dos meus, não
demonstra um sinal sequer de abalo. Na verdade, a frieza em seu rosto se
aprofunda.
Neste momento, não sei mais se estou conversando com o Jude que
acabou de me implorar para comê-lo ou o que me manteve amarrado em
uma cama por três dias. Então percebo: ele não é um ou outro, é ambos.
Ambos são sua verdadeira face.

Não está sendo descuidado demais pra alguém na sua posição?

Lentamente, muito lentamente, começo a compreender o que está


havendo, o que tudo isso significa.

Você vai subir comigo pra festa, Kim.

— Tá percebendo agora, não tá? — ele diz diante do meu semblante


introspectivo, chocado e confuso. — Te manter em segredo é exatamente o
oposto do que quero.

Meus músculos enrijecem. Suas palavras cortam em meus ouvidos


como lâminas. É pior do que levar um soco. É pior do que ser derrubado e
esmurrado até a inconsciência. É o sentimento de total e completa
impotência.

— Eu te falei quando nos conhecemos. — Ele toca meu rosto, um


olhar de pena me analisa. — Esse tipo de coisa não deveria passar pela sua
cabeça. Você devia se concentrar apenas em—

— Foder — repito o que me disse num tom ríspido, exasperado.

Ele esfrega minhas bochechas com o polegar.

— Exato. — E dá dois pequenos tapas em meu rosto antes de se


afastar. — Você finalmente tá aprendendo como as coisas funcionam.

A conversa inteira me deixa desnorteado, tremendo de fúria e de


mágoa ao mesmo tempo. Quando ele tenta passar por mim e se afastar, não
permito. Agarro seu braço com força, sem me importar se estou machucando-
o ou não.

— O que está fazendo? — Puxa o braço, sem efeito. — Me solte —


rosna, mas finjo não ouvir.

Dou um puxão no braço de Jude e o faço bater de costas na pia.

— Merda. — Um grunhido de dor escapa de seus lábios.


Volto a prendê-lo entre meus braços. Jude não tem opção a não ser se
segurar nos meus ombros para se equilibrar quando curvo meu corpo à
frente, esmagando mais seu tronco contra a pia. Digo em seu ouvido:

— Sabe o que senti quando vi o corpo esfacelado do meu pai naquela


estrada às 2h da manhã? Sabe? — Cerro os dentes. Não espero por uma
resposta, mas preciso de alguns segundos até ter paz comigo mesmo para
confessar: — Alívio.

O corpo de Jude se tensiona sob o meu. Não preciso fitá-lo para saber
que sua expressão está mudando de uma irritação cansada para uma
curiosidade mórbida.

Continuo:

— Uma descarga descontrolada e sufocante de alívio. Meus olhos


tavam fixos naquele monte de carne e ossos, e tudo no que pensava era em
como aquele inferno na vida do meu irmão e na minha tinha finalmente
acabado. Sem mais noites acordado me questionando onde ele estava. Sem
mais ligações pra hospitais durante a madrugada perguntando se ele tinha
dado entrada. Sem mais prostitutas na nossa casa. Sem mais cacos de vidro
de garrafas de bebida no chão. Sem mais brigas. Sem mais ofensas. Sem
mais... ele. Eu orei, agradeci a Deus, pelo maldito motorista que passou com
o carro por cima do meu pai naquela noite.

O toque de Jude em meus ombros se torna menos tenso conforme


revelo o que esteve preso, estrangulado dentro de mim por um ano inteiro. É
o tipo de merda sobre a qual tentei me convencer por muito tempo que era
mentira, que era apenas fruto de todos aqueles anos de estresse. O tipo de
merda que eu jamais poderia dizer a Noah, o tipo que morreria e seria
enterrada comigo.

Porém, ao confessar isso em voz alta... é como se um peso tivesse se


dissipado dos meus ombros. Minha respiração até fica mais leve; meus
músculos, mais relaxados. Nunca imaginei que diria isso a alguém. Mas
agora que falei, não consigo entender como pude segurar isso dentro de mim
por tanto tempo.

Meu hálito deixa os pelos da nuca de Jude arrepiados. Meu olhar é


atraído magneticamente por sua pele. Observo as marcas vermelhas e
circulares que deixei em seu pescoço enquanto me lembro de seu gosto.
Continuo, ainda assim, revivendo aquelas malditas memórias:
— Claro que esse alívio não durou muito. Na verdade, foi até os
Snakes arrombarem nossa porta alguns dias depois, horas antes do enterro
do meu pai. Ameaçarem estuprar meu irmão, retirar seus órgãos um a um
enquanto ainda estivesse vivo, enquanto eu observava... caso eu me
recusasse a me tornar um de seus cães de briga no ringue.

Meu tom se aprofunda, rouco e triste. Jude engole em seco, suas


mãos relaxam sobre meus ombros quase como uma carícia.

— Sabe o que aconteceu com a pessoa que matou meu pai? — Afasto
meu rosto apenas o suficiente para observá-lo. Jude me fita de volta;
lamento, remorso e empatia brigam contra a frieza em seu rosto. Ele nega
com a cabeça sutilmente, enquanto me observa com angústia. — Eu também
não. Os registros dos suspeitos foram apagados. O único advogado público
que consegui achar disse que o caso foi arquivado como um acidente sem
testemunhas ou suspeitos. No final... — Sinto um ardor em meu rosto. Viro
para o lado bruscamente e mordo o interior do lábio até senti-lo se romper. —
No final, o único culpado por sua morte, ao menos oficialmente, foi ele
mesmo.

As mãos de Jude se afastam de mim e se apoiam na pia atrás de si.


Ele encara o chão branco da cozinha.

— Sabe o que é engraçado, Jude? — continuo.

Ele volta a me fitar. Há algo diferente em seu rosto agora, algo


misturado à frieza e ao remorso que não consigo distinguir exatamente, mas
está lá. Consigo ver na forma com que ele tenta se afastar de mim, na forma
como suas sobrancelhas tremem.

Um sorriso triste abre-se em meu rosto quando conto outra coisa que
nunca falei a ninguém:

— Vi um suspeito ser levado pra delegacia na noite em que o corpo foi


achado. Ele estava encapuzado, mas consegui ver que era um homem. Um
garoto. Eles o levaram pra sala de questionamento.

— O que aconteceu com ele? — questiona em um tom controlado de


interesse.

Suspiro fundo e me afasto dele. Apoio-me de costas na pia ao seu


lado e fito o resto do apartamento à minha frente. Cruzo os braços sobre o
peito e sinto um aperto no coração ao relembrar aquela noite miserável em
voz alta.

— Uma mulher entrou na delegacia logo depois. Conversou com o


delegado por um, talvez dois minutos, e então deixou o lugar junto com o
garoto.

Jude assente em silêncio, também cruza os braços sobre o peito. Ele


se mantém alguns centímetros afastado, como se precisasse de algum
espaço para respirar.

— Eu não consigo me lembrar do rosto da minha mãe, Jude —


confesso.

A frase curta me deixa em um suspiro doloroso, arranha minha


garganta e me machuca no caminho. É o suficiente para me fazer
enfraquecer, para me deixar como um garoto doente, para fazer o ardor em
meus olhos voltar tão rápido e tão forte que mal consigo controlá-lo. Tento ao
menos manter a dignidade e não chorar na frente do cara que me tem na
coleira, mas é difícil, muito difícil.

— Ela fugiu há muito tempo, e não tenho nenhuma foto dela. Talvez os
golpes que recebi na cabeça nesses últimos meses tenham piorado a
situação. — Aperto os lábios e estico o queixo como Noah costuma fazer
quando está tentando controlar as próprias lágrimas. — Ela simplesmente
desapareceu da minha mente... como um fantasma, como se nunca tivesse
existido.

Jude me observa de relance. Engulo as lágrimas, engulo meu coração


partido, cerro os punhos com tanta força que sinto as unhas se enterrarem
nas palmas. Deixo meu sangue ferver nas veias enquanto prossigo:

— Mas o rosto daquela mulher... — murmuro rouco e pausado —, da


mulher que entrou na delegacia e saiu depois de dois minutos... Eu me
lembro de cada detalhe do rosto dela. Cada. Maldito. Detalhe. — Mesmo
agora, consigo vê-lo na parede em minha frente. É um fantasma que está
sempre em meu inconsciente, que me atormenta até quando deito no escuro.
— Aquele rosto assombra meus pesadelos todas as noites.

As palavras sombrias pairam sobre nossas cabeças por um tempo. O


clima tenso e mórbido entre nós aprofunda-se com o silêncio, torna-se uma
entidade própria, uma terceira pessoa no apartamento, sentada na penumbra
e nos observando.

Mesmo assim, me sinto leve por tirar isso do peito. Sei que talvez
tenha colocado demais no prato de Jude por apenas uma noite. Talvez ele
sequer se importe com toda essa merda, talvez só veja um cão que precisa
ser melhor adestrado quando olha para mim. Mas eu precisava colocar isso
para fora.

— Por que está me contando isso? — ele finalmente pergunta após


alguns minutos. Se vira para me encarar.

Também viro em sua direção. Seu rosto fechado parece mais tranquilo
depois da minha história — e daquela aspirina.

Me aproximo.

— Acha que é o único que tem um passado fodido aqui? Acha que seu
sofrimento te faz superior?

Ele também se aproxima.

— Isso é uma competição pra descobrir qual dos dois tem a história
mais desgraçada com a família? — Ergue uma sobrancelha. Sua expressão
cínica me causa um alívio indescritível, retira uma risada abafada da minha
garganta. — Você venceu. — Dá de ombros. — Parabéns.

Envolvo sua cintura com um braço, colando nossos corpos. Aperto seu
pescoço com a mão livre, afundando meus dedos em sua carne, sentindo o
pulso galopante de suas jugulares em minhas palmas, sua vida na ponta dos
meus dedos.

— O que está fazendo? — Jude pigarreia, a voz áspera pela garganta


apertada.

Ergo sua cabeça para que ele possa ver o fundo dos meus olhos, para
que possa entender que não estou mais disposto a brincar.

— Me diga o que você estava fazendo no ringue na noite da minha


última luta. — Aumento o aperto em sua garganta. O estrangulamento retira
um grunhido sem ar, agudo e irritante de sua boca. — Só vou perguntar mais
essa vez — sussurro, e continuo apertando.
Ele segura meu pulso e grunhe, geme e treme sob meu aperto até se
convencer de que não vou mesmo largá-lo até que cuspa a maldita resposta.

— Eu tava lá... — balbucia sem ar entre seus grunhidos de dor —


procurando por alguém que pudesse me ajudar.

Solto seu pescoço.

— Ajudar?

Ele se projeta para a frente e espalma meu peito, me mantendo a


alguns centímetros de distância. Esfrega a garganta e tosse até recuperar o
fôlego. Me fita, suas íris geladas queimando de ódio. Pigarreia uma, duas,
três vezes até conseguir formular:

— Ajudar a destruir minha tia de uma vez por todas. — E enfia a mão
sobre a pia, apanhando a faca quiescente no balcão até agora. A lâmina
afiada está no meu pescoço antes que eu possa me afastar, letalmente
posicionada entre o topo da minha garganta e o pomo de adão. Ergo as mãos
instintivamente. O rosto de Jude é animalesco: — Se me estrangular sem
permissão novamente, Kim, será a última coisa que fará na vida — esbraveja
como uma tempestade violenta —, e não pense que estou brincando. Estou
cansado dessa merda.

— É o único jeito que tenho pra fazer você—

— Não disse que você podia falar ainda. — A lâmina se aprofunda em


minha garganta. Paro de respirar. — Dê o fora daqui antes que eu mude de
ideia e te degole como o porco que você é.

Lentamente, mudamos de posição. Como numa dança macabra, Jude


me conduz a ficar de costas para a porta do apartamento, controlando meus
passos com a pressão da lâmina em meu pescoço.

Quando dou o primeiro passo fora da plataforma elevada em que a


cozinha se projeta, Jude dá um passo para trás, mas mantém a faca
apontada em minha direção.

Fico parado, respirando fundo, recuperando o fôlego. Abaixo as mãos


vagarosamente, confuso, pasmo como um vagabundo que acabou de
escapar de uma situação de vida ou morte e, devagar, se dá conta da merda
que acabou de ocorrer. Fito profundamente o rosto do meu agressor, suas íris
álgidas brutais, seus traços finos bestiais, a forma firme e nada misericordiosa
com que segura a lâmina em direção ao meu peito.

— Vá embora, Kim. Não vou me repetir uma terceira vez.

Assinto. Devo sair. O que acabei de fazer é imperdoável. Extraí uma


parte essencial do plano de Jude, sim, mas destruí parte da confiança em
nossa relação no processo, da confiança que tinha em mim. Devo me virar e
dar o fora daqui antes que ele se descontrole outra vez. Mas pensar em fazer
algo é diferente de fazê-lo. Meus pés simplesmente não se movem, meu
corpo ainda está preso no choque de sua reação repentina. E, pior, em minha
própria reação repentina: estou duro.

Ver Jude assim — selvagem, gélido, implacável — me deixa com um


tesão indescritível, tão forte que enevoa tudo ao meu redor.

— O que está esperando, filho da puta? — diz mais alto, a faca


balança em sua mão.

Inspiro profundamente uma última vez, pela boca, e consigo virar de


costas. Arrastada sob a cueca, minha ereção reclama. Quando alcanço a
porta, minha mão pausa sobre o puxador por alguns segundos, curvo a nuca
para baixo, observando o chão vazio. Após alguns segundos, abro a maldita
coisa e deixo o apartamento.

O que este homem está fazendo comigo?


SERPENTES, PT. I
eu não sei o que fazer
mesmo que eu te chute com força
você sorri pra mim
como eu posso te deixar partir?
estamos numa relação linda e triste
[...]
você faz eu me sentir como um psicopata
e as pessoas falam isso quando brigamos como se fosse a última vez
e fazemos as pazes em seguida
eles não nos entendem
é tão engraçado
psycho — red velvet

U TAVA L Á P R O C U R A N D O P O R alguém que pudesse me ajudar a destruir


E
minha tia de uma vez por todas.

Ajudar a destruir minha tia de uma vez por todas.

Ajudar a destruir minha tia de uma vez por todas.

A resposta dele ecoa em minha mente. Ajudá-lo a destruir sua tia?


Destruir? Por quê? Por causa da filha? Como? Ele queria contratar alguém
para assassiná-la e acabou saindo com um cão de briga ao invés disso?
Essa merda não me explica porra nenhuma.

Se eu não tivesse sido tão fodidamente bruto com ele, talvez


conseguisse apertar mais alguma resposta. Mas agora minhas chances estão
perdidas por um longo tempo, até nossa relação retornar ao que era antes.

Porra, Kim. Porra. Porra. Porra. Esse não é você. Esse não é você.

Paro num sinal vermelho e aperto o volante. Expiro fundo. Deveria ter
pedido desculpas? Mas não estou arrependido, no entanto. Se foder nossa
relação é o necessário para fazê-lo cuspir suas explicações, então é o preço
que terei que pagar.
Esfrego o rosto. São mais de 4h30 da manhã. Ao redor, as ruas de
Nova York estão tão vazias e escuras quanto jamais ficarão. Deixei o Upper
East Side duas quadras atrás. Mais dez minutos e estarei no Bronx. Arranco
o carro quando o sinal abre. Atrás de mim e nas laterais, três carros me
seguem de perto pelas avenidas largas.

Estranhamente, sinto um vazio no peito. O que é isso agora, sono?


Não, não é sono. É a ideia de deixar Jude para trás. Mas estou fazendo a
coisa certa, estou voltando para o meu irmão, para a minha casa. O
apartamento de Jude não é a minha casa, Jude não é nada para mim. Abaixo
o vidro da janela, me inclino ligeiramente para o lado, deixo o vento frio da
madrugada embalar meu rosto. Ele não é nada meu, entendeu, coração
maldito? Nada. Ele não é meu. Meus olhos secam, mas mantenho-os bem
abertos, até sentir as lágrimas forçadas escorrendo pelas minhas bochechas.

“Dê o fora daqui antes que eu mude de ideia.”

— Eu deveria fazer isso — grito para a estrada, minha voz se


perdendo pela velocidade do carro e o barulho do vento. — Deveria
simplesmente continuar dirigindo para sempre, em linha reta, pelas entranhas
da América, até despencar de um precipício. — Sorrio, triste. Meu coração
dispara, minha respiração se exaspera. — Você ficaria feliz com isso, não
ficaria? — Faço uma curva arriscada, pisando no acelerador. — Imagino só
seu sorriso quando me visse todo fodido em meio aos escombros, um
amontoado de sangue e ossos, assim como... — o sorriso se desfaz —
como... — engulo em seco, um tanto paralisado quando aquela imagem
retorna à minha mente.

— “Meu pai”. — A pessoa no banco do passageiro no carro ao lado


grita de volta. O susto me faz quase perder o controle do carro de Jude. Viro
em sua direção, sobressaltado. — Vamos lá, cão. Começou então tem que
terminar. “Assim como meu pai”.

É um homem branco, careca e com uma cicatriz feia na sobrancelha.


Não preciso ver o lado esquerdo de sua nuca para saber quem é — ou
melhor, de onde é. Já tombei em dezenas, talvez centenas, desses filhos da
puta enquanto estava no ringue. É um Snake.

Ele sorri quando percebe que não precisei de muito para reconhecê-lo.

O que ele está fazendo? Está me seguindo? Quer me matar? Os


pensamentos cruzam minha mente enquanto retiro a arma do cós da calça e
piso no acelerador para fugir. Os pneus cantam sobre o asfalto. O carro do
Snake filho da puta acelera junto comigo, assim como o carro à minha direita
e aquele colado ao meu porta-malas — é uma emboscada, estão me
cercando. Meu coração dispara.

Giro o volante bruscamente para o lado, fazendo uma curva fechada.


Entro numa avenida com o sinal fechado, a luz vermelha incandescente do
semáforo se derrama à minha frente. Não há uma faísca de hesitação em
mim. Afundo ainda mais o pé no acelerador, furando o sinal. Uma descarga
de adrenalina preenche minhas veias, sinto-me mais vivo do que nunca.

Cercando-me, os mafiosos não desistem. Na verdade, o desgraçado


careca está novamente ao meu lado, o sorriso mais largo e debochado na
face.

— Não pode fugir, cadelinha. Não mais.

Aperto os dentes. É o que veremos.

Afundo o pé no acelerador tanto quanto consigo. As vibrações do


sedan se propagam aos meus ossos — as quatro rodas parecem extensões
do meu corpo.

A avenida se fecha horizontalmente à frente, perde faixa a faixa a cada


nova curva que faço. Em breve, estarei nas ruas sinuosas e fechadas do
Bronx e poderei despistar os filhos da puta — antes de pegar meu irmão e
levá-lo para um lugar seguro.

Pisco os olhos. Noah. Será que foram atrás de Noah também?

O pequeno momento de distração é o suficiente para os predadores ao


meu redor tomarem a vantagem.

O carro à minha direita acelera um pouco mais numa fração de


segundo. Antes que eu possa acompanhá-lo, o veículo é jogado em minha
frente, na transversal. Piso no freio bruscamente para evitar uma colisão e
sou arremessado para frente; o cinto de segurança me impede de ser jogado
pelo para-brisa. Paro a meros centímetros de amassar a lataria do Mercedes
preto que me bloqueou.

Inspiro fundo, rangendo os dentes. Olho para trás: não há nenhum


outro carro na avenida além dos dois que me cercam e aquele que segue
colado ao porta-malas, impedindo que eu fuja de ré. Merda.
“Tô com essa sensação estranha no peito desde que você saiu. Senti
a mesma coisa na noite em que Do-Yun morreu.” É, irmãozinho, parece que
você estava certo mais uma vez.

Empunho a arma e não perco mais muito tempo. Retiro o cinto de


segurança e desço do carro pela porta do passageiro, à direita, na única
direção da avenida não obstruída por um dos carros da gangue. Não há
muito espaço para correr, no entanto. A avenida é cercada por blocos de
prédios enormes e trancados a esta hora da noite. As calçadas estão vazias.
Para conseguirem me emboscar aqui, eles devem ter fechado alguma
avenida secundária algum tempo atrás para impedir o fluxo de veículos. As
câmeras de segurança no raio de pelo menos um quilômetro devem estar
desligadas — ou terão suas gravações deletadas assim que o último suspiro
de vida me deixar. É inútil acreditar que a polícia, ou o prefeito, governam
esta cidade. Como os Scorpions mesmo fizeram questão de esclarecer: estes
filhos da puta a governam.

Encosto-me no poste de luz mais próximo e olho ao redor. O mundo


gira.

Estou fodido. Completa, majestosa e inescapavelmente fodido.


SERPENTES, PT. II
estou acordando
radioactive — imagine dragons

canil, seu pedaço de merda imprestável — o


— VO C Ê P E R D E U O R U M O D O
careca fala ao descer do carro carregando uma semiautomática nas
mãos. — É hora de voltar.

Caminha decisivamente em minha direção, o rosto contraído num


misto de nojo e fúria; move-se como um vulto num pesadelo. O motorista loiro
desce e segue-o logo atrás, uma calibre 22 já empunhada, um cigarro preso
entre os lábios.

Nos outros dois carros — que encurralam o sedan de Jude pela frente
e por trás —, portas são abertas. Dois homens ainda maiores, corpulentos e
empunhando armas letais se juntam ao par. É como um esquadrão da morte
— e eu sou o único alvo.

Os quatro mafiosos vestem ternos escuros e calças de alfaiataria.


Poderiam ser confundidos com meros empresários cuzões, não fosse pelos
óculos escuros encobrindo os olhos mesmo no pico da madrugada. É a
vestimenta tradicional dos Snakes, seu jeito usual de abater presas também.
E se isso não fosse indicação suficiente, posso ver claramente as serpentes
tatuadas em seus pescoços.

“Se os Snakes resolverem voltar atrás no nosso negócio, ou colocarem


a mão na minha propriedade, haverá sangue.”

O que passará pela mente de Jude quando ele souber disso? Será
que vai mesmo cumprir sua promessa e derramará sangue por mim? Eu
pagaria para ver isso. Merda, eu pagaria qualquer coisa só para ver esse
miserável mais uma vez. Pelo menos minha última visão antes de morrer
seria bonita.
Expiro fundo e me concentro. Uso o poste de apoio e empunho a arma
de meu pai. Aponto-a para a barreira da morte que se aproxima. Alterno a
mira entre cada um de seus peitos. Suas expressões permanecem
inalteradas, nenhum traço de desconforto desenha-se em suas faces.
Continuam se aproximando como robôs programados para matar.

— O que vocês querem, seus filhos da puta? — rosno. Fecho a boca


com tanta força que sinto minha mandíbula prestes a se quebrar.

— Te levar para casa — o Snake com a semiautomática responde.

— Foram atrás de Noah também? — minhas entranhas gelam apenas


por imaginar a possibilidade.

— Seu irmãozinho? — ele ri com escárnio. — Ele vai ter tudo o que
merece. Mas não esta noite. Hoje, só quem vai ser punido por fugir de casa é
você.

— Não sei se esqueceram de avisá-los — peso o dedo sobre o gatilho


—, mas agora tenho uma nova casa. Querem mesmo arriscar uma guerra por
causa de um cão?

A alguns metros de distância, finalmente param de se aproximar;


canos e lâminas continuam fixamente dirigidos a mim.

A pergunta paira no silêncio tenso, viscoso, intoxicante entre nós, até


que um deles — o motorista do carro que se jogou em minha frente e no qual
quase colidi — ri copiosamente.

— Guerra? Com Jude Goldman? A putinha que você tem fodido


nessas últimas semanas? — A risada é alta e profunda como a de uma
hiena. E, assim como a de um animal selvagem, contagia seu bando. Os
quatro mafiosos se entreolham e riem, entreolham e riem, entreolham e riem.
Posso até ver seus dentes, os dentes manchados de sangue e sujos com
pedaços de carne de outros miseráveis como eu. — Se ele chegasse perto
de nós, seria comido pela gangue inteira até não ter mais pregas. — Aperta
seu próprio pau. — Eu iria primeiro.

Sua voz grave e debochada desaparece da minha audição até virar


um zumbido alto e ensurdecedor. Aponto a arma para a sua cabeça — deve
ter mais de dois metros de altura —, e meu indicador roça o gatilho.
— Vá em frente, viadinho, puxe o gatilho — o mafioso careca incita
com um sorriso nos lábios. — É a única chance que terá.

Chego muito perto de fazê-lo, mas então mensuro minhas chances de


escapar da mira das outras duas armas apontadas em minha direção:
absolutamente zero. Fito o desgraçado sorridente e estreito os olhos. Nunca,
nunca, desejei tanto matar alguém com minhas próprias mãos.

— Não vai atirar? — Ele ergue uma sobrancelha. — Então deixe a


arma no chão e levante os braços. — Desvia a mira de mim e apoia a
semiautomática no ombro. — Não vamos te matar aqui. — Solta uma lufada
de ar. — Dom quer fazer as honras.

O nome entra em minha mente como um prego enferrujado perfurando


carne. Pisco longamente e me lembro do homem que invadiu minha casa e
quase estuprou meu irmão.

— Ah, e não se preocupe — o filho da puta continua e bate no peito


—: vamos cuidar muito bem do seu irmão. Vou pessoalmente tomá-lo como
uma puta e protegê-lo. Quando os vermes estiverem te comendo debaixo da
terra, ao menos poderá ficar tranquilo quanto a isso. — E finaliza com uma
piscadela.

Meu corpo inteiro queima, das entranhas à pele. O ódio é quase


insuportável, uma dor que implora para ser aliviada, mas preciso me
controlar. Quando abro os olhos, não tremo, não balbucio, sequer pisco
demais. Dentro de mim, uma engrenagem gira. E, mais do que nunca, me
sinto feral.

— Sabe que vocês não são a primeira gangue a me procurar desde


que deixei o ringue, certo? — indago.

— O que quer dizer? — O loiro franze o cenho.

— Os Donovan foram mais rápidos do que vocês, seus merdas. —


Sorrio, desafiador. — Partam pra cima de mim e Jude será o menor de seus
problemas.

Pela primeira vez, vejo uma sombra de hesitação em seus semblantes,


uma troca de olhares incerta, um ou outro lábio fino apertado. Mas dura
pouco, muito pouco.
— Não acha que vamos mesmo acreditar nessa ladainha, não é? Só
está tentando salvar seu rabo — acusa o careca.

Expiro fundo, meu sorriso se alarga.

— Quer pagar pra ver?

Encaro profundamente as lentes pretas dos óculos do Snake com a


semiautomática. Provocado, sua respiração cessa, seu rosto fica vazio por
vários instantes. Está próximo de recuar um passo quando o loiro ao seu lado
intervém:

— Olha pra ele. É só um cachorro assustado. — Dá um passo firme e


largo em minha direção, a arma calibre 22 fica ainda mais agressiva em sua
mão. — Se o que tá dizendo é mesmo verdade, então que se foda. Estamos
em guerra com esses paus no cu há décadas, vencendo há décadas. Não
passam de baratas, insetos tão insignificantes quanto você. — E cospe no
chão entre nós.

— É verdade — o desgraçado de mais de dois metros declara e


também se aproxima. — Se ele é um Scorpion agora, então temos mais uma
razão pra matá-lo. — E leva sua lâmina afiada, reluzente e levemente curva
em direção ao meu pescoço. Um brilho de excitação dança em seu rosto.

Está prestes a pular em cima de mim e tentar me estripar quando o


careca com a cicatriz na sobrancelha intervém:

— Nem pense nisso, Jax. Temos que levar o filho da puta de volta com
todos os órgãos internos pro Dom. Pode se divertir com o que restar do corpo
dele depois.

— E onde estaria a diversão nisso? — ele questiona sem desviar o


olhar de mim. Inclino o pescoço para o lado. Esse aqui é particularmente
doente.

O cara que segura a semiautomática revira os olhos e expira fundo.

— Está em você não acordar com uma bala enfiada no cu. Agora
vamos acabar logo com isso: prendam-no, esmurrem a cara do viadinho até
ele ficar desacordado, joguem-no no carro de Jax e levem-no até a Arena. —
Ele vira de costas e caminha com passos tranquilos em direção ao veículo de
Jude.
Mesmo um tanto contrariado, o fodido de dois metros cede e retrai sua
lâmina. Volta a se aproximar de mim, em direção às minhas costas, no intuito
de me cercar e me imobilizar por trás. Ao seu lado, o loiro segue me
encarando com desconfiança. Minha mira permanece nele, embora eu esteja
vertiginosamente ciente da emboscada que os desgraçados estão armando.

Próximo ao loiro, o quarto Snake do bando — um ruivo de cabelos


curtos e inúmeras tatuagens que se estendem do couro cabeludo ao rosto —
mantém posição um pouco mais defensiva; tem duas AK-47’s em seus
ombros, uma delas religiosamente apontada para o meu peito durante todo
esse confronto de merda.

— Afaste o dedo do gatilho, levante os braços e não tente nada


estúpido — o grandalhão às minhas costas comanda. — Caso contrário, vou
fazer com você coisas que Dom não poderá ver, mas você com certeza
poderá sentir.

As palavras hostis flutuam ao meu redor, mas não chegam realmente a


me incomodar — menos ainda a me amedrontar. Lentamente, faço como o
indicado, observando as costas do filho da puta careca que caminha em
direção ao carro de Jude.

— Vou levar o carro pra desova — ele continua comentando. Assovia


despretensiosamente. — Tô louco pra acabar essa noite e voltar logo pras
minhas putas. Cara, que cu de noite. Da próxima vez que um cão tentar sair
do canil, deveríamos matar ele ali mesmo, sem conversa. Se alguém tentar
comprá-lo, devíamos decepar a cabeça do filho da puta também. Quem viria
atrás de nós? Os broxas da polícia? Ou o corno do prefeito? Sabem que o
Dmitri traçou a mulher dele, não é? Acham que ela tem uma boceta gostosa?
Com uma bunda daquelas... — Assovia novamente. — Eu pagaria muito pra
comer aquela mulher. Só de pensar nela, meu Vladimir fica duro. E esse
sedan aqui? — Alcança o carro e desliza um dedo sobre a lataria,
contornando-a. — 2019, uma belezinha. É uma pena que acabará num ferro-
velho qualquer depois que for—

Um tiro ecoa pela avenida deserta.

O Snake próximo ao carro de Jude se vira a tempo de ver o primeiro


de seus companheiros cair no chão agonizando. É o miserável de mais de
dois metros, uma muralha de ossos, carne e perversão despencando no chão
ao meu lado com um tiro na mandíbula que ele não teve tempo de desviar,
mas que com certeza sentirá, bastante, por muito tempo. Tomo um
milissegundo parar fitar seu rosto descrente, atordoado, desesperado. A boca
está bem aberta, escancarada, mas dela nenhuma palavra escapa, apenas o
som peculiar e delicioso de afogamento. Ele cospe, se engasga, cospe e se
afoga no próprio sangue. Os dentes da hiena agora realmente estão
manchados com o líquido rubro. Não consegue mais ofender Jude, não é
mesmo?

Piso em sua garganta e retiro a lâmina curva de sua calça.

— Seu filho da puta! — o loiro corre e estende a calibre 22 em direção


à minha cabeça.

Desvio numa posição de gancho, um tanto agachado, e puxo seu


braço sobre o ombro. Quando me levanto completamente, seu cotovelo faz
um cleck muito característico — o de osso se quebrando.

— Ah! Ah, ah! — ele grita, e geme, e grita. Mas é tarde demais quando
percebe que isso nunca foi sobre ele, que o Esquadrão da Morte caminhou
direto para dentro da minha enrascada, que sempre estiveram nas palmas
das mãos deste animal que tanto desprezam e que não conseguirão escapar.

Sua arma despenca do braço quebrado — os dedos são inúteis em


segurar qualquer coisa —, e trocamos um rápido olhar de adeus antes da
faca curva penetrar sua garganta. A lâmina cruza o pescoço na horizontal,
entre a traqueia e o esôfago, e, graças ao seu formato, consigo puxá-la para
frente logo em seguida, rasgando seu tubo respiratório, dilacerando carne,
artérias e veias.

Um rio de sangue derrama-se sobre mim.

O ruivo atrás dele já começou a reagir, então não tenho tempo a


perder. Me agarro ao corpo do loiro, fazendo-o de escudo, um segundo antes
da chuva de disparos da AK-47 desabar em minha direção. Através da carne,
dos ossos, das roupas do Snake que me protege, sinto o impacto de todos os
tiros; não fosse pelo pensamento rápido, eu já estaria em retalhos neste
momento.

Corro na direção do filho da puta, usando seu colega de escudo. Ele


percebe minha investida com atraso e, quando tenta se esquivar, me dá a
abertura necessária para atirar o loiro em sua direção e disparar uma, duas,
cinco vezes. Alguns tiros atingem o cadáver, mas a maioria penetra o crânio
do penúltimo Snake ainda vivo nesta rua deserta. Quando o ruivo cai no
chão, já está morto.

Desvio a atenção para o único mafioso restante na minha emboscada,


e respiro fundo, recuperando o fôlego. Ouço a porta de um carro se fechar, e
um pedal ser acionado apressadamente. O careca parece ter tanto apreço e
consideração por seus colegas quanto eu tenho pelos ratos das ruas do
Bronx.

Cerceado pelo meu ódio e pelos cadáveres que estripei com minhas
próprias mãos, fito-o sem me mover do lugar, deixando que sua impulsividade
o leve a trilhar o caminho mais previsível possível. E pensar que eu fiquei um
ano inteiro refém de inúteis como esses. O que exatamente os separa de
bandidos comuns? Os ternos? Olho para os ternos que mais parecem queijos
suíços aos meus pés. Que diferença eles fazem agora?

O Snake com a cicatriz na sobrancelha arranca no mesmo carro que


era dirigido pelo loiro enquanto me perseguiam, logo atinge uma velocidade
altíssima. Está com medo de mim. Está se cagando de medo de mim.
Resolveu ser esperto ao menos uma vez na vida.

“Tô louco pra acabar essa noite e voltar logo pras minhas putas.”

Vai encontrá-las já, já. No inferno.

Estendo a mira do revólver em direção ao carro em alta velocidade e


disparo sem perder muito tempo. O pneu traseiro esquerdo estoura e o
veículo perde o controle. Faz algumas curvas fechadas, vira para a direita,
para a esquerda, antes de finalmente tombar e rolar na avenida.

Suspiro.

Caminho até o Mercedes que bloqueou minha passagem e me


prendeu neste lugar e me apoio no capô. Guardo a arma de volta no cós da
calça, escondo as mãos nos bolsos. De longe, observo o acidente. O
motorista está desacordado, preso de cabeça para baixo numa posição
desconfortável e que com certeza causou alguns danos em sua espinha pela
falta do uso de cinto de segurança.

Aguardo alguns minutos.

Noah cruza minha mente. Se os Snakes não tiverem ido atrás dele,
como me explicarei quando chegar em casa? Ensanguentado deste jeito, não
poderei parar em nenhum lugar antes. Talvez seja melhor dar meia-volta e
retornar ao apartamento de Jude.

A explosão do carro então ocorre. O corpo do careca é engolfado


pelas chamas. Ele finalmente acorda no seu inferno particular enquanto sua
pele se dissolve, sua carne queima e sua vida pútrida o deixa. Ainda tem
forças para se arrastar alguns centímetros para fora do veículo, mas quando
a segunda explosão o envolve em chamas outra vez, não resta muita coisa.

Por que latem tanto se na hora de morder não passam de cadelinhas?


carro de Jude. Despenco sobre o assento macio,
I R O - M E E V O LT O A O
V
manchando-o de sangue, e fecho a porta. Aperto o volante tão forte que os
nós de meus dedos doem e grito, grito e grito contra o vidro. Grito dentro do
carro silencioso, iluminado pelas chamas flamejantes. Grito até minha
garganta arranhar, até meus pulmões cederem. Grito até retirar toda a euforia
de dentro de mim, todo o medo, desespero e fúria que me despedaçam por
dentro.

Escapei com vida agora, mas e na próxima vez? E se os Snakes


resolverem retaliar com tudo o que têm? E se emboscarem meu irmão,
machucá-lo para me atingir? Quantos outros filhos da puta precisarei matar
até me certificar de estarmos realmente seguros? Isso sequer é possível?
Sou capaz de matar uma organização criminosa inteira? Estava condenado
no momento em que me arrastaram para o ringue, sem chance de escolha?
Me matar no final das 365 lutas sempre foi o plano?

Se nem sequer o poder e riqueza de Jude são suficientes para manter


essa maldita gangue longe de mim, então o que será?
Minha voz finalmente falha. Não tenho mais forças para gritar, embora
não ache que tenha tirado tudo de mim ainda. Como conseguirei manter meu
irmão a salvo no meio de toda essa merda?

Quanto tempo demorará até os Snakes, a polícia ou os bombeiros


chegarem aqui? Tenho que cair fora.

Esfrego o rosto e giro a chave na ignição. Coloco o cinto de


segurança. Dou ré no carro, com cuidado para não bater no carro
estacionado logo atrás. Com muita dificuldade, consigo sair pela direita,
dando meia-volta na pista e entrando na via oposta à da minha casa, em
direção ao apartamento de Jude.

Faço a mesma curva fechada de antes, e deixo os três carros dos


Snakes para trás. Piso no acelerador. Preciso retornar a Jude o mais rápido
possível. Precisamos de algum plano, algum curso de ação para caso isso
volte a acontecer. E tenho certeza de que vai.

Deveria avisá-lo sobre o que ocorreu, penso, logo miro o porta-luvas.


Será melhor do que chegar em seu apartamento nesse estado e sem
explicação.

Faço uma nova curva fechada e abro o pequeno compartimento no


painel do carro. Apanho o aparelho que Goldman me deu. Desbloqueio a tela.
Abro a lista de contatos. Encaro o único número presente ali. Aproximo o
dedo da tela, mas me interrompo. Vejo uma nova curva à frente, desta vez
razoavelmente aberta, e resolvo cruzá-la antes de discar ligar para Jude. Giro
o volante para a esquerda.

Neste instante, um veículo me atinge em cheio pela lateral.

O telefone escapa das minhas mãos enquanto mergulho em direção à


escuridão.
E N TA D O N A S A C A D A D O A PA R TA M E N T O ,
sem camisa, observo os prédios e
S
arranha-céus da cidade ao redor com um copo de uísque ao meu lado, sem
uma gota sequer de sono. O que Kim fará agora que sabe que quero destruir
Brianna? Vai insistir no assunto até descobrir toda a verdade, de um jeito ou de
outro? Quão fundo ele está disposto a ir por isso? Quão longe está disposto a
ir por mim? Continuará me desobedecendo?

Essa foi uma noite de merda. Estou rapidamente perdendo o controle


sobre minha própria vida, mais uma vez, por causa dele. Não posso permitir
que isso ocorra. Não posso permitir que Kim interfira tanto nos meus planos,
que desvie meu foco do objetivo principal. Ele é um mero peão no meu
tabuleiro. Tomo um gole do uísque, sentindo-o queimar minha garganta ao
descer. Um peão e nada mais.

Não me importo com o que pensa, com o que faz, com o que sente.

Não posso me dar esse luxo. Não agora.


Talvez seja bom que ele se afaste de mim por um tempo.

Minha perna balança freneticamente. Um calafrio atravessa minha


espinha. Esfrego minha nuca. Aperto bem os olhos. Mas o que ele vai fazer?
Onde está? O que está passando por sua cabeça? O que está pensando
sobre mim?

Um grunhido doloroso deixa minha garganta. Me atiro contra o recosto


da cadeira, tenso. Minha mandíbula retesa. Mordo a língua. Descanso a mão
sobre o bolso da calça, sentindo o relevo do celular. Eu deveria ligar para ele,
não deveria? Para relembrá-lo de seu lugar, de nunca mais me desafiar como
o fez esta noite. Acaricio a rigidez do aparelho. Estou mesmo fazendo isso?
Enfio a mão no bolso. Estou.

Tomo o aparelho em minhas mãos. Encaro o vidro escuro. Antes


mesmo de desbloquear a tela, uma chamada a acende. O nome do contato
me faz atender imediatamente.

— Kim? — murmuro apressado, e me arrependo logo em seguida.


Fecho os olhos e aperto o espaço entre as sobrancelhas com o polegar e o
indicador.

Espero sua voz grossa e profunda soar do outro lado. Espero seus
xingamentos e palavrões. Espero sua fúria e sua incompreensão, sua
confusão, sua mágoa. Espero que diga que me odeia, que outra vez quer
acabar com o contrato, que vai me matar da próxima vez em que me ver.

Espero que fale qualquer coisa, mas ele não diz nada.

Tudo o que recebo do outro lado é um silêncio estranho, incômodo.


Um silêncio quebrado por barulhos de sirenes e sussurros ao fundo. Eu
ficaria calmo diante de qualquer coisa que Kim atirasse em mim, com
palavras ou fisicamente. Mas isso me faz entrar em desespero subitamente.

Após alguns segundos, uma voz finalmente soa na ligação.

— Sr. Jude Goldman?

E não é a voz de Kim.

Cada músculo em meu corpo se tensiona. Minha testa se enruga,


meus olhos se estreitam. A desconfiança se mistura a um temor genuíno que
eu não conseguiria explicar, mas que está aqui, preenchendo meu peito,
correndo em meu sangue.

— Sim — respondo, exasperado. — Quem está falando? Onde está


Kim?

A voz não responde imediatamente. Ouço passos, gritos ao longe e


duas portas se fechando bruscamente, então embalagens plásticas se
abrindo, líquido sendo derramado em um recipiente. E, por fim, um bipe. Não
um, vários. Bipes de um monitor.

Fico nauseado. Minha cabeça começa a girar; minha visão, a


escurecer.

Quando a voz volta a soar do outro lado, me sinto à beira de um


ataque de pânico, descontrolado de uma forma que nunca estive em toda
minha vida.

— Meu nome é Will. Sou um paramédico. Qual sua relação com Kim
Henney? — Embora seu tom seja calmo, noto que ele está um pouco
ofegante, como se fizesse três coisas ao mesmo tempo enquanto mantém a
ligação.

Meu coração dispara, sinto as batidas fortes em minhas costelas.


Minha respiração pesa.

— Paramédico? — balbucio quase como se não quisesse ouvir a


resposta.

Algo de ruim aconteceu. Sei que aconteceu. Mesmo assim, suas


palavras ainda me deixam em um estado de choque.

— O Sr. Henney sofreu um acidente de trânsito e está sendo


transferido pro Parkway Hospital neste momento. Seu estado é grave. O seu
contato era o único neste aparelho.

O celular desliza pelo meu rosto e cai no chão. Pula duas, três vezes,
até parar. O vidro racha, assim como meu peito.

— Sr. Goldman, está na linha? Sr. Goldman?


me afunde nesta escuridão sem fim
me deixe descansar
sinto que os tremores em minhas mãos
têm algo a ver com você
acho que estou sozinho, que serei esquecido
os momentos em que estou acordado
são sempre tão dolorosos
quando estou deprimido, sem notar
passo a odiar os momentos em que sinto sua falta
como um idiota, enquanto choro,
peço que meus sentimentos voem pra longe
com a brisa da primavera
spring — park bom, sandara park
FLOR DO INVERNO
sob o vento congelante do inverno,
debaixo das pegadas profundas, florescendo sozinho
estou vagando enquanto busco o motivo
pelo qual eu nasci e te encontrei
os suspiros são lágrimas congeladas
dos sonhos abandonados nascem outras feridas
quando isso vai acabar?
[...]
vou tirar isso do caminho
antes que você tropece
vou ficar do seu lado
até que você sobreviva
winter flower — younha, RM

uma mão sobre o peito, o coração


N T R O N O PA R K WAY H O S P I TA L C O M
E
acelerado, as batidas violentas contra minhas costelas. Tento respirar, mas
não consigo. Meus pulmões não funcionam direito neste momento; meu
cérebro, muito menos. Caminho pelo lugar de forma mecânica, passando
pelas paredes perturbadoramente brancas com uma náusea intensa. Engulo o
vômito e corro.

Minhas entranhas se retorcem, estou suando frio. Gotículas de suor


ensopam as costas da minha camisa — a primeira peça que apareceu em
minha frente depois da ligação do paramédico. Atrás de mim, três dos meus
seguranças pessoais me seguem — três amigos de Kim.

Quando finalmente alcanço o balcão da recepção, meu coração


parece prestes a pular pela boca. A mulher na recepção, preta, em seus trinta
e poucos anos e com os fios crespos presos atrás da cabeça por uma touca,
me fita com certa desconfiança.

Apoio as mãos trêmulas no balcão.


— Kim Henney — balbucio. As palavras queimam ao deixar minha
garganta. — Onde está Kim Henney? Preciso vê-lo.

Os seguranças me alcançam, e sua aproximação parece deixar a


mulher ainda mais desconfiada.

— Quem é você? — ela questiona com as sobrancelhas erguidas.


Alterna o olhar entre mim e a tela do computador no balcão.

— Jude. Jude Goldman. — Retiro os fios molhados grudados em


minha testa e os penteio para trás.

— Qual sua relação com Kim Henney? — pergunta enquanto digita


algo, os cliques irritantes das teclas me fazem ranger os dentes.

Fico sem resposta. Entreabro os lábios uma, duas vezes, mas fecho-
os logo em seguida. Como posso definir minha relação com Kim? Ele é meu
namorado, penso em dizer, mas desisto imediatamente. É meu... parceiro,
soa mais perto da verdade, mas mesmo assim parece estranho, uma mentira
deslavada. Ele é... Eu sou...

— Ele é meu amigo — é o que respondo por fim. Engulo em seco.

A recepcionista estreita os olhos, me analisa de cima a baixo, mas não


opõe muita resistência. Com a expiração longa de alguém que está fazendo a
mesma tarefa repetitiva há muitas horas seguidas, ela dá de ombros e
imprime uma etiqueta.

— O Sr. Henney está na UTI neste momento, aguardando uma cirurgia


de emergência. Você pode vê-lo por alguns minutos, enquanto a sala é
preparada. — Me entrega a etiqueta. — Cole isso na sua roupa e retire
apenas quando sair do hospital. Venha comigo.

Ela deixa o balcão e caminha até o elevador. Sigo-a prontamente;


meus seguranças, também. Subimos até o terceiro andar num silêncio tenso
e desconfortável. Mordo o interior da bochecha para tentar controlar a
ansiedade, mas não consigo. Na verdade, a cada segundo que passa, a
angústia piora, e piora, e piora.

As portas do elevador se abrem. No corredor à frente, estão uma dúzia


de portas e janelas de vidro de cada lado. A recepcionista é a primeira a sair
e caminha com pressa até a última janela de vidro do local. Sigo-a de perto,
respirando como se meus pulmões estivessem preenchidos por chumbo.
Quando alcanço a janela e fito o corpo inconsciente na cama, meu coração
para.

— Não entre no quarto. A equipe de cirurgia virá buscá-lo em alguns


minutos. Se você pretende permanecer por mais tempo, volte à recepção e
providenciarei um registro de visitante definitivo para vocês... quatro. O que
preparei é temporário e vai expirar em algumas horas.

Ela dá alguns passos para longe, mas se interrompe.

— Ah, e como você é próximo do paciente, há algo que talvez devesse


saber.

— O quê? — questiono sem afastar os olhos de Kim.

A mulher respira fundo. De relance, vejo uma careta de desconforto


deformar seu rosto.

— Os paramédicos o encontraram banhado em sangue, Sr. Goldman.


Isso não é característico do tipo de acidente em que ele se envolveu.
Suspeitamos que o sangue não seja realmente dele.

Meus lábios tremem, pensamentos desconexos cruzam minha mente


sem freio.

— Quer dizer que... — tento balbuciar, mas a recepcionista me


interrompe.

— Tivemos que limpá-lo para a cirurgia, mas as roupas foram


guardadas e enviadas à perícia criminal para investigação. Os arredores do
acidente também serão investigados pela polícia. Se seu amigo esteve
envolvido em algum tipo de atividade ilegal antes do acidente, terá que
responder por seus crimes uma vez que se recuperar.

Vira-se novamente, desta vez caminhando de volta ao elevador sem


interrupções.

Crimes?, quase digo, mas não sou capaz de abrir a boca. A imagem é
muito chocante. O que aconteceu com você depois que deixou a minha casa,
Kim?, penso, encarando o homem enfaixado e com um tubo grosso preso à
boca, ligado a um respirador. Uma tela ao lado da cama mostra seus sinais
vitais e o eletrocardiograma. O que aconteceu?

Uma lágrima fria e solitária escorre por minha bochecha.


— Vocês três ficarão aqui, guardarão este quarto e a sala de cirurgia
com suas vidas.

— Sim, senhor — os seguranças dizem em uníssono.

— Se alguém perder Kim de vista, estará demitido. — enxugo a


lágrima e toco o vidro da janela. — Agora, me deixem.

Os homens obedecem.

Sozinho, tremo e cerro o punho tão forte que minhas unhas machucam
minhas palmas. Angústia e ansiedade começam a ser substituídas por fúria e
violência dentro de mim. Quem foi o filho da puta que fez isso com você?
Foram os Snakes? Os Scorpions? Dom? Foi Brianna?, as possibilidades
cruzam minha mente.

— Você o matou — uma voz familiar, baixa e chorosa, soa às minhas


costas. — Você matou meu irmão.

Meus ombros enrijecem. Lentamente, viro-me para encarar o


estagiário parado logo atrás de mim, o rosto manchado por um vermelho
intenso, os olhos inchados como se tivesse chorado por horas. Um copo
grande de café na mão esquerda, um celular no punho direito. Ele atira o
aparelho em minha direção, e o apanho por reflexo.

— Esse é o celular que Kim sempre usava para falar com você quando
estava em casa. Suponho que queira de volta.

Algo perigoso arde no olhar machucado do garoto, algo que eu


conheço muito bem. Fúria.

Analiso o aparelho durante um tempo. Está fodido. Cheio de


arranhões, a tela trincada, mas ainda funciona. Uma sensação estranha e
latejante preenche minhas entranhas, do estômago ao peito. Um buraco
negro de emoções se abre dentro de mim e luta para chegar até meu rosto,
até meu cérebro. Mas sou muito bom em sufocar este tipo de coisa na frente
de outras pessoas. Engulo tudo e guardo o celular no bolso.

Fito Noah.

— Kim não morreu, e não tive nada a ver com o acidente — rebato,
ácido, mantendo uma distância segura entre nós. — Sugiro que você não
saia por aí disparando acusações que não consegue provar.
Ele dá um passo intimidador em minha direção. Já não parece tão
inofensivo quanto em todas as vezes em que serviu meus cafés matinais.

— Você pode não ter dirigido aquele carro — diz rígido, em tom baixo
—, mas sei que é o responsável por meu irmão estar desacordado numa
cama de hospital agora, lutando por sua vida.

Seu olhar desvia-se por um segundo para o irmão no quarto atrás de


mim.

Inspiro fundo. Sou o responsável por isso? Viro o pescoço em direção


à janela de vidro, encarando Kim sobre os ombros. Sou o desgraçado que
deixou Kim nessa situação?

Talvez sim. Talvez não. Não é realmente relevante.

— Eu sou apenas o... chefe dele — murmuro e volto a fitar o Henney


mais novo. — Assim como sou o seu.

O rosto dele se fecha. Os lábios apertam-se num biquinho.

— Você iria pessoalmente a um hospital checar a saúde de qualquer


um dos seus funcionários?

— Se eles tivessem meu número como contato de emergência, sim —


não hesito em responder.

Noah semicerra os olhos.

— Por que está aqui?

— Porque os paramédicos me ligaram.

— Não brinque comigo. — Seus dedos afundam na embalagem mole


do café.

— Acredite em mim, Noah — replico —: essa conversa é tão agradável


pra você quanto é pra mim.

Ele mira o corredor vazio, o semblante violentamente desconfiado.

— Por que os três seguranças, então? Tem medo que alguém te


ataque aqui, num hospital?

Expiro fundo.
— Os seguranças são para segurança dele. — Aponto Kim com a
cabeça. — Caso não tenha percebido, é bem possível que os Snakes
estejam por trás disso.

Uma lufada de ar escapa de seu nariz.

— Vai tentar se esconder por trás da gangue?

— Não estou tentando esconder nada, muito menos de você.

Ele respira de boca aberta e morde o lábio inferior.

— Acho que você deveria ir embora — dispara.

Rio.

— Não me importo com o que você acha ou não, Noah — declaro com
desdém. — Sou contratualmente ligado a Kim, e vou ficar aqui até vê-lo se
recuperar.

— Se ele se recuperar — me corrige apressadamente, com um erguer


de sobrancelhas debochado.

— Quer que seu irmão morra?

Arregala os olhos.

— Quero que ele fique bem longe de você — confessa. — Não faz
ideia de como me arrependo de ter te contado sobre ele, de ter te contado
qualquer coisa sobre a minha família. Quando eu falei... — Sua respiração se
exaspera, os olhos parecem perder o foco. — Quando eu falei que tinha um
irmão preso em uma gangue, que lutava naqueles ringues todas as noites...
nunca imaginei... nunca imaginei que as coisas fossem acabar assim. Se eu
nunca tivesse te contado sobre ele, nada disso teria acontecido, Kim não
estaria... — Aponta o vidro atrás de mim.

— Tem razão, ele não estaria. Teria morrido no ringue logo depois de
perder aquela última luta. E você... Bem... também não teria vivido muito pra
contar a história.

— Então eu deveria te agradecer por isso?

Aproximo-me dele olhando bem no fundo de seus olhos castanhos. Ele


não recua, permanece firme.
— Deveria agradecer por seu irmão ainda estar respirando —
sussurro. Analiso-o bem. — Você é só um garoto, Noah. Patético, frágil,
presunçoso. Nada mais do que isso. Nunca mais tente me confrontar desta
forma. — Chego bem próximo de seu ouvido: — Já destruí pessoas
poderosas por muito menos.

Ele se afasta subitamente e me encara.

— O que isso quer dizer?

Inspiro fundo e reviro os olhos.

— Você é tão insolente e ignorante quanto seu irmão. Deve ser algo
que corre no sangue.

E, com um último olhar de relance a Kim, dou-lhe as costas, me


perguntando quanto tempo levará até que ele descubra a verdadeira razão
pela qual comprei sua dívida, e quanto tempo tenho até que a peça final do
meu plano se encaixe.

Olivia. Preciso encontrar Olivia.

F I M D O AT O I
 
 
 
 

 
vez. Ouço a sequência de
E FA Ç O A L I G A Ç Ã O P E L A Q U A R TA
R
bipes irritantes do outro lado por um minuto inteiro pela quarta
vez.

O número para o qual você ligou não está disponível no


momento, por favor, deixe um correio de voz depois do—

— Pra quem está ligando? — a voz fria e ríspida assopra


atrás de mim como a brisa da morte em um dos meus
pesadelos.

Minhas entranhas se enroscam sobre si mesmas, e fico


completamente paralisado. Tento da melhor forma esconder
minha tensão e continuar relaxado por fora, embora não consiga
evitar espremer mais o celular em minha mão.

— Um amigo — murmuro quase sem voz, sem emoção,


sem entusiasmo algum em iniciar essa conversa inevitável.
— Ele pode esperar; eu, não. Desligue o celular.

Ouvir sua voz mais claramente me causa um enjoo


fulminante. Mordo fortemente a língua para conseguir controlá-lo
e não vomitar sobre a mesa. Encerro a ligação sem deixar uma
mensagem de voz e afasto o aparelho do ouvido. Deixo-o ainda
ligado sobre a mesa, a tela virada para cima.

Viro-me apenas o suficiente para ver rastejar ao redor da


minha cadeira a mulher loira, alta, magra e de meia-idade —
uma serpente entupida de botox e com as escamas protegidas
por roupas de grife. Ela caminha até a cadeira à minha frente na
mesa redonda. Sob a iluminação parca e os cochichos baixos do
restaurante italiano, seus movimentos parecem ainda mais
obscuros, perigosos, imprevisíveis.

Brianna Goldman descansa sua bolsa prateada com


detalhes dourados sobre a toalha branca da mesa e se acomoda
na cadeira calculadamente, sem retirar os olhos azuis-escuros
de mim por um segundo sequer. Ela parece desconfortável no
vestido branco justo, mas sei que isso é um truque para parecer
mais vulnerável do que realmente é. Os fios presos em um rabo
de cavalo apertado para trás e os litros de produtos
rejuvenescedores na cara disfarçam suas linhas de idade. Sua
carcaça parece vinte, trinta anos mais nova. Sob a luz certa,
parece até mais nova do que eu. A personificação de um lobo
em pele de cordeiro; um ser humano com um exterior belo e um
interior tão podre que poderia intoxicar qualquer um que o
desbravasse.

Minha tia.

Apoia os antebraços na extremidade da mesa. Seus


dedos finos, pálidos e ásperos se entrelaçam sobre a toalha,
deixando expostas as unhas pretas e afiadas. Ela mantém a
postura desconfortavelmente reta o tempo todo, até que se
inclina em minha direção como uma naja. O pescoço longo
carrega um colar pesado de pérolas grudado à pele, tão fina que
é possível ver as veias mais calibrosas sob ela — pequenos
rabiscos verdes e azuis, os únicos indicadores de que seu
coração bate de verdade e de que ela não está mentindo sobre
isso também.

Seu olhar é afiado, corta minhas armaduras e as decapita,


deixando para trás apenas os cadáveres sem cabeça; é
asfixiante, me faz esquecer de como respirar; é intenso, tão
intenso que sinto minhas vísceras expostas sempre que me fita
deste jeito. Mas não sou mais um garoto, e não sou mais uma de
suas marionetes. Não sou mais fraco, e não sou mais indefeso.
Posso retornar o olhar afiado, asfixiante, intenso e gélido. Posso
me mover da mesma maneira fria, calculada e fajuta. Ela me fez
entender que há poder em ser subestimado. É melhor que não
acabe vítima de seus próprios jogos e me subestime agora.

Suas íris tóxicas desviam-se de mim para o aparelho


ligado sobre a mesa, então para mim novamente, de volta para o
aparelho e para mim mais uma vez.

— Vou deixá-lo ligado — rebato a ordem implícita em seu


olhar — para caso algo importante aconteça. Tenho que manter
meus olhos em todos os lugares, tia. — Pego minha taça de
vinho e tomo um gole longo e lento. O primeiro de muitos, tenho
certeza. Ao final, umedeço os lábios e ergo uma sobrancelha. —
Assim como você.

Ela semicerra os olhos em minha direção, um sorriso


cordial se estica em seus lábios finos e rosados. Sua voz, no
entanto, permanece tão ríspida quanto antes:

— Suponho que tenha te ensinado bem.


Ela repete meu gesto com sua taça, tomando um gole que
parece surpreendê-la. Ao afastar a borda de cristal dos lábios,
observa a taça com uma contemplação sobressaltada.

— Como você está, Jude? — murmura, mantendo os


olhos no vinho. Após alguns segundos, deixa a taça ao lado e
volta a se concentrar em mim.

Suspiro alto e desvio o olhar para a vista da cidade.

— Nunca estive melhor. — Batuco levemente com um dos


indicadores sobre a mesa. — E você, tia? — Me viro para ela, a
seu semblante calmo e perverso. — Cansada da viagem
emergencial de volta que fez no meio da noite?

E, com a testa franzida, tomo meu segundo gole de vinho.


O álcool desce mais gelado do que o normal pela minha
garganta seca e sinto gota por gota atingir meu estômago.

É difícil controlar a ansiedade na presença dela, mesmo


depois de tudo.

— Nem um pouco — responde sem hesitar. O sorriso


cordial se alarga. — Como estão sua esposa e filha?

— Não sei. Talvez você mesma devesse perguntar a elas.

— Já fiz isso de manhã.

Enrijeço. Meus dedos dos pés se contraem, meus


tornozelos tremem, minha mandíbula range. Ela, é claro,
percebe tudo.

Brianna apoia o queixo sobre os dedos entrelaçados, seus


olhos percorrem o entorno.
— Florence pareceu muito chateada com sua insistência
em morar em casas separadas.

Engulo em seco, mas não consigo engolir tudo o que


preciso para me recompor. Então uso mais um gole de álcool
para fazê-lo.

— Florence se chateia muito fácil.

— Sério?

— Sim. — Relaxo os ombros. — Não se lembra de como


ela gritava por ajuda sempre que você a arrastava pras consultas
de pré-natal? — Abro um sorriso sugestivo, maldoso, no rosto.
Continuo num tom melódico: — Se ao menos houvesse um
médico que quisesse muito, muito fazer um aborto naquele
hospital.

Ela inspira fundo, o olhar se distanciando como se


farejasse o sarcasmo dentro de mim.

— Não estou com paciência pras suas provocações, Jude


— replica, a voz pausada, rígida e hostil.

Meu sangue ferve.

— Não? — Uma risada de escárnio me escapa. — Então


por que não cortamos a conversa fiada? — Como ela, me inclino
sobre a mesa, aproximando nossos rostos. — O que está
fazendo aqui? — sussurro. — As negociações da Goldman com
a União Europeia ainda estão ocorrendo. Seria péssimo pra
nossa empresa não chegar em um acordo com os governos
europeus por ausência de sua CEO. Pense em todo o trabalho
duro que seria jogado pela janela. — Cerro meu punho e o ergo
até seu olhar. Abro os dedos em seguida, lentamente. — Pffft.
Indo embora como o vento.
Suas íris não pairam sobre meu punho uma única vez,
seguem fixas ao meu rosto. Seus lábios se contraem, perdendo
a cor. É o pouco indício de falta de decoro que Brianna Goldman
se permite expor.

— As negociações com a UE estão sob controle —


grunhe. — Na verdade, esperei até que chegassem no patamar
em que estão pra voar de volta até aqui. E, mesmo assim, ficarei
em Nova York por pouco tempo.

— Que pena — resmungo. — Senti tanta falta da minha


querida tia nas últimas semanas — murmuro sem humor algum.

Brianna abandona a postura rija de antes. Desentrelaça


os dedos, cruza uma perna sobre a outra e se recosta na
cadeira, um dos ombros desnudos voltado parcialmente às
janelas.

Volto o olhar à mesa e termino com o vinho restante na


minha taça. Depois que engulo todo o líquido tinto, encontro o
olhar incomodado da minha tia. Dou de ombros e abro um
sorriso forçado.

— Há algo que você queira me dizer, Jude? — pergunta


num tom suave, mas sutilmente desconfiado. E essa sutileza é
tudo o que preciso para sentir os rumos da conversa se
alterando.

Sinto uma brisa fria em minha nuca, olho ao redor em


busca de sua origem. Não acho nada. Meu cenho se franze.

— Como o quê? — rebato, voltando a atenção a ela.

— Qualquer coisa fora do comum que tenha acontecido


na sua vida enquanto estive fora.
Destampo a garrafa de vinho sobre a mesa e preencho
minha taça até a metade. Seguro-a pelo bojo e a balanço no ar.
Observo o vinho dançar e dançar em seu ambiente limitado, tão
complacente mas tão cheio de ira. Uma gota seria o suficiente
para manchar minha camisa branca. Um pouco mais de força em
meu giro... causaria um desastre.

— Não consigo pensar em nada — respondo com um


biquinho, negando com a cabeça.

Ergo o olhar até o rosto cruel da minha tia e vejo ali a


sombra de algo que nunca vi antes. Algo que me deixa atento.
Aperto os lábios sem sequer perceber.

— Você tem o tom cínico do seu pai quando mente. O


mesmo apertar de lábios quando está tenso, também.

O vinho para de girar em minhas mãos. Sei que o que ela


diz é uma ameaça silenciosa, seu modo de exercer dominância
mesmo numa conversa casual. Não existe trivialidade ou
conversa fiada quando se trata de Brianna, tudo sempre é um
jogo. Um jogo em que seus interesses devem sempre ser os
vencedores.

Deixo a taça na mesa. A menção inesperada ao meu pai


faz um gosto amargo subir à minha boca.

— Isso pode ser considerado uma calúnia — replico.

— Meu próprio sobrinho vai me processar?

Estica um dos braços sobre a mesa. Encaro suas unhas


pretas num contraste terrível contra a toalha de mesa branca.
Imagino qual seria a sensação de arrancá-las uma a uma com
um alicate.

— Talvez você não me conheça tão bem quanto pensa.


 
 
C O N T I N U A N O AT O I I
AGRADECIMENTOS

É surreal acreditar que este livro realmente está no mundo


e que, melhor ainda, você acabou de lê-lo. Escrevê-lo foi uma
experiência emocionalmente demandante, desafiadora e muito
recompensadora. É o meu décimo livro escrito e, ao mesmo
tempo, sinto que ainda tenho uma infinidade de histórias para
contar. Escrever é parte inseparável de quem eu sou, uma parte
sensível e frágil que escolhi compartilhar com você na busca por
conexão, na busca por compreensão, por emoção, por
experiências compartilhadas; e é extasiante saber que você está
aqui, lendo este livro, consumindo esta história tão sensível e
frágil — parte da minha história.

Primeiramente, quero agradecer aos dois heróis que


trabalharam arduamente para que este livro chegasse até suas
mãos da melhor forma possível. Brendon, meu confidente de
surtos e piadinhas de humor duvidoso, a quem confio minhas
obras cegamente, muito obrigado por mais uma vez se dispor a
trabalhar sob meus prazos (quase) humanamente inconcebíveis,
e por todo o conhecimento que compartilha comigo. A história de
Kim e Jude seria radicalmente diferente sem você.

Senara, muito obrigado pelos dois anos maravilhosos


trabalhando juntos, e por também nunca hesitar em se jogar em
mais um dos meus projetos, mesmo que os prazos às vezes
sejam apertados. Sempre serei grato por ter te encontrado por
acaso no instagram em dezembro de 2020. O projeto gráfico da
duologia PAYBACK não seria o mesmo sem o seu toquezinho
especial.

Muitíssimo obrigado a todos os betas que me ajudaram na


construção dos primeiros rascunhos e foram incríveis durante
todo o processo: Beatriz, Breno, Bruna, Daniel, Erick, Giovana,
Ingrid, João, Kevin, Leonardo, Letícia, Lohanna, Lorena, Luís,
Manu, Mateus, Nicoly, Pâmela, Pâmella, Ramona, Rayan,
Thamires, Vitória e Yasmin. Seus comentários, dicas e
impressões sobre a narrativa foram imprescindíveis para o
polimento da jornada de Kim e Jude. Cada um de vocês tem um
espacin reservado no meu coração <3

Agradeço também ao trabalho maravilhoso das


ilustradoras que trabalharam comigo na confecção das artes
deste livro. DANGEROUS é uma obra visualmente impactante, e
muito disso é resultado do trabalho de Arda, Cosmikla e Letícia
Vasconcelos. Seus talentos sem dúvida alguma são
responsáveis pela criação visual dos protagonistas deste livro no
imaginário dos leitores.

Sinceramente, não poderia ter escolhido parceiros


melhores para me ajudarem nesta obra. E, especialmente, devo
um agradecimento profundo e sincero a você, meu querido leitor.
Quem seria eu sem você? Fica aí o questionamento (e graças a
Deus não precisaremos respondê-lo, porque eu te tenho, e você
me tem). Seja você um veterano de minhas obras, ou alguém
que acabou de me descobrir, sou muito, muito grato mesmo pela
sua companhia, pelo seu carinho, e pelo tempo dedicado a esta
leitura. Meus livros sempre serão espaços seguros para que
você possa se alienar, para que possa experienciar coisas que
talvez não consiga experienciar em sua rotina, para que possa
se expressar junto às jornadas dos protagonistas. Eu escrevo
não apenas para você, mas por você. Meus personagens são
seus, minhas palavras são suas. Faça bom uso.

Espero que esteja salivando pelo ato II depois deste


cliffhanger. Preparado para conhecer o temido Dom, a misteriosa
Olivia, e a implacável Brianna? Preparado para ver o
desenvolvimento da guerra entre Snakes e Scorpions?
Preparado para descobrir quem foi o verdadeiro responsável
pelo acidente de Kim? (Dica: pode não ser quem você está
pensando). Tudo isso e muito mais nos esperam ainda no
primeiro semestre de 2023, em DANGEROUS: Ato II. E estou
ansiosíssimo para vivenciar tudo isso com você.

Até muito em breve.

Com um carinho enorme,


MM.
SOBRE O AUTOR
MISTER M É ESCRITOR PELA MANHÃ, leitor pela tarde e
apreciador de filmes de terror e séries de comédia pastelão pela
noite. Nasceu na região norte do Brasil, mas mudou-se para São
Paulo aos 14 anos de idade.

É uma pessoa de hábitos noturnos, o que talvez explique


sua obsessão por café. Não gosta de climas muito quentes, ou
muito frios, adora conhecer a cultura de outros países e ama
gatos.

Escreve pelo simples desejo de ver mais


representatividade em histórias usualmente dominadas pelo
imaginário heteronormativo, buscando leitores que, como ele,
desejam ver mais personagens LGBTQ+ em posições de
protagonismo.

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