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História da Filosofia

do Cardeal Fr. Zeferino Gonzalez, OP

Tomo Primeiro – Volume II


Sumário
Segundo Período da Filosofia Grega ...................................................................................................... 95
§ 53 A Restauração Socrática .................................................................................................................... 95
§ 54 Sócrates ............................................................................................................................................... 97
§ 55 Filosofia de Sócrates .......................................................................................................................... 98
§ 56 Crítica ................................................................................................................................................. 99
§ 57 Os discípulos de Sócrates ................................................................................................................. 101
§ 58 Escola cirenaica ............................................................................................................................... 101
§ 59 Escola cínica ..................................................................................................................................... 102
§ 60 Discípulos de Antístenes ................................................................................................................... 103
§ 61 Crítica ............................................................................................................................................... 104
§ 62 Escola megárica ............................................................................................................................... 105
§ 63 Escolas de Élis e de Eretria .............................................................................................................. 105
§ 64 Desenvolvimento e complemento da Filosofia Socrática ................................................................. 105
§ 65 Platão: vida e escritos ...................................................................................................................... 107
Apêndice 1 – Catálogo das Obras de Platão............................................................................................ 109
§ 66 Teoria das Idéias de Platão .............................................................................................................. 111
Apêndice 2 – Alegoria da Caverna ........................................................................................................... 116
§ 67 Metafísica e psicologia de Platão ..................................................................................................... 118
§ 68 Moral e política de Platão ................................................................................................................ 121
§ 69 Crítica ............................................................................................................................................... 124
§ 70 Discípulos e sucessores de Platão .................................................................................................... 127
§ 71 Aristóteles ......................................................................................................................................... 129
§ 72 Escritos de Aristóteles ...................................................................................................................... 130
Apêndice 3 – Catálogo das Obras de Aristóteles ..................................................................................... 132
Apêndice 4 – Traduções Siríacas de Aristóteles ....................................................................................... 133
§ 73 Lógica e Psicologia de Aristóteles.................................................................................................... 135
§ 74 Cosmologia e Teodicéia de Aristóteles ............................................................................................. 137
§ 75 Ética e Política de Aristóteles ........................................................................................................... 141
§ 76 Crítica ............................................................................................................................................... 145
§ 77 Discípulos e sucessores de Aristóteles.............................................................................................. 148
§ 78 Crítica e vicissitudes posteriores da Escola Peripatética ................................................................ 149
§ 79 O estoicismo ...................................................................................................................................... 151
§ 80. Lógica no estoicismo ....................................................................................................................... 152
§ 81. Física do estoicismo......................................................................................................................... 154
§ 82. Moral do estoicismo......................................................................................................................... 156
§ 83. Crítica .............................................................................................................................................. 157
§ 84. Discípulos e sucessores de Zenão.................................................................................................... 159
§ 85. Epicuro............................................................................................................................................. 160

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§ 86. Moral de Epicuro ............................................................................................................................. 160
§ 87. Filosofia especulativa de Epicuro .................................................................................................... 162
§ 88. Crítica ............................................................................................................................................... 164
§ 89. Discípulos e sucessores de Epicuro ................................................................................................. 165

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Segundo Período da Filosofia Grega
§ 53 A Restauração Socrática

O período (1º) cosmológico que acabamos de descrever foi seguido na Filosofia Grega pelo que
podemos chamar de período (2º) psicológico, ou melhor, antropológico, porque nele são cultivadas com
preferente esmero as ciências relacionadas ao homem considerado como um ser inteligente, moral e social,
as quais mal haviam sido tratadas no período anterior. Este novo e fecundo direcionamento da Filosofia
deveu-se principalmente aos labores, ensinamentos e exemplos de um gênio extraordinário em muitos
aspectos, cujo nome está justamente ligado a essa evolução do pensamento filosófico, e daí os nomes que
geralmente são atribuídos a esse movimento: período socrático e restauração socrática.
Porque, com efeito, as obras, o ensinamento e os exemplos de Sócrates, representam a regeneração dos
elementos sãos e verdadeiramente filosóficos que o período precedente comportava, a restauração da
dignidade e da nobreza da ciência, aviltada e desacreditada pela venalidade, o ceticismo e a impiedade dos
sofistas; a investigação racional e sóbria da verdade em quase todas as suas esferas; a real importância da
idéia ética juntamente com o refinamento e aperfeiçoamento do método científico. Nesse sentido, o
movimento iniciado por Sócrates merece o nome de restauração socrática.
Contudo, se a denominação de socrático corresponde a este período, considerado do ponto de vista
histórico, isto é, pelo seu iniciador, não é menos verdade que o que principalmente distingue este período
em seu conteúdo real, é o seu caráter antropológico. Durante seu (1º) primeiro período, a questão capital e
quase única para a Filosofia Grega era a questão cosmológica; a atividade do espírito se concentra no objeto;
a especulação científica marcha diretamente para a natureza material, para o mundo exterior, mal lembrando
do sujeito que investiga, do espírito que pensa. Durante este (2º) segundo período, a investigação da
essência, atributos e relações deste sujeito, representa e constitui a questão mais importante e frutífera da
Filosofia Grega. Se a Filosofia é o conhecimento de todas as
E não é que esta especulação abandone, por isso, a coisas a partir de seus primeiros princípios e
investigação do problema cosmológico, mas sim que o fins últimos, segundo a luz natural da razão; a
aperfeiçoe e o complete; porque isso equivale e significa a Metafísica é a própria ciência do ser,
criação da metafísica, uma ciência que, como se sabe, constitutivo último das coisas. E como a
ocupa um lugar importante na especulação platônica e Teologia é a ciência do Próprio Ser Subsistente
aristotélica, e uma ciência que representa e significa o – Deus –, Domenico de Flandres, com
fundamento, pode afirmar: “Qui ignorat
desenvolvimento e como que o ápice da cosmologia.
Methaphysicam semper peregrinus in
Assim, pois, no (2º) segundo período e por meio dele,
Theologia”.
a Filosofia Grega, sem abandonar a investigação do
problema físico, e sem negar a importância científica da questão cosmológica, entra em uma nova fase de
sua evolução, dedicando atenção preferencial ao exame e solução do problema antropológico. O homem,
como ser inteligente, como ser político-social e, sobretudo, como ser moral, torna-se objeto e centro das
discussões e sistemas dos filósofos. Aparecem então pela primeira vez, além dos tratados que versam sobre
a metafísica, os Diálogos de Platão, que visam investigar a natureza, os atributos e a imortalidade da alma
humana, os que tratam do bem, da res publica e das leis, bem como os tratados De Anima, a Magna Moralia
e o Politicorum de Aristóteles. Ao mesmo tempo, a dialética adquire proporções notáveis e substitui a
dogmática instintiva do primeiro período; a lógica tem condições rigorosamente científicas; a psicologia
aparece como uma ciência própria e relativamente independente; abundam as teorias político-sociais
específicas e, sobretudo, os estudos e sistemas éticos adquirem extraordinária e geral importância, como se
observa nas escolas cirenaica, cínica, estóica e epicurista, nas quais o pensamento ético domina e se
sobrepõe aos demais problemas filosóficos.
Platão e Aristóteles são os principais e mais genuínos representantes desse período da Filosofia Grega;
porque são eles que – sem abandonar ou esquecer o problema cosmológico, antes desenvolvendo e
completando suas soluções por meio da especulação metafísica – conduziram de frente as outras partes da
Filosofia, deram substância, unidade, conjunto e método científico ao problema filosófico em todos os seus
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aspectos, e sobretudo comunicaram à Filosofia nova vida e direção fecunda através do elemento
antropológico. A partir de então, o homem torna-se o principal centro da especulação filosófica através da
dialética, da psicologia, da moral, da política e da teodicéia.
Nos demais sistemas e filósofos desse período, predomina o aspecto moral do elemento antropológico,
e nesse sentido podem ser chamados de incompletos em relação a Platão e Aristóteles; mas isso não quer
dizer que a idéia principal de todos esses sistemas, a concepção que pulsa no fundo de todos eles, a começar
por Sócrates como iniciador desse período, não seja a idéia antropológica, estudada e desenvolvida, às vezes
em todas os seus aspectos, às vezes em apenas alguns deles. Daí a denominação de período antropológico
que damos ao movimento iniciado por Sócrates na Filosofia Grega.
E não se pode dizer que os sofistas já houvessem dado à Filosofia seu caráter antropológico, pois haviam
desviado a atenção do objeto, da natureza externa, para fixá-la no sujeito. Porque o subjetivismo dos sofistas
é um subjetivismo puramente cético e, digamos, antidogmático, que não tem outra finalidade senão demolir
as afirmações e os sistemas da velha Filosofia física, sem criar nada de novo, sem substituir o edifício
derrubado por nada real e sólido. As obras dos sofistas, segundo a correta observação de Zeller, não podem
ser consideradas como um fundamento positivo da nova direção filosófica que forma o conteúdo do período
que nos interessa, mas sim como uma preparação indireta para ele. É verdade que o sofista tanto o anterior
quanto o contemporâneo de Sócrates, ao negar a cognoscibilidade das coisas, desviava a atividade do
pensamento do mundo externo e a dirigia para o sujeito que sente e pensa; mas fazia isso sem de modo
algum elevar-se ao universal e científico deste mesmo sujeito, seus atributos e relações. E é que os sofistas
consideravam os atos e representações do homem como a medida e a norma das coisas; mas ao falar assim
referiam-se, não ao homem em geral, não à essência ou idéia do homem, objeto da ciência e da investigação
científica, mas ao homem individual, ao ser contingente e sujeito a transmutações perpétuas e infinitas.
Entre o subjetivismo cético dos sofistas e o subjetivismo propriamente antropológico de Sócrates e seus
sucessores, existe toda a distância que medeia entre o fenômeno e a essência, entre a aparência e a realidade,
entre a representação sensível e a idéia racional.

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§ 54 Sócrates

Sócrates (Σωκράτης) nasceu em Atenas pelo ano 470 antes de Cristo, tendo por pais
o escultor Sofronisco (Σωφρονίσκος) e a parteira Fainareta (Φαιναρέτη). Depois de
praticar por alguns anos a arte de seu pai, e depois de ter praticado em silêncio as
virtudes e máximas morais que mais tarde constituiriam o fundo principal e a
autoridade de sua doutrina, ele começou a difundir entre seus concidadãos as idéias
filosóficas – adquiridas mais através da meditação do que pelo estudo – e a ensinar as
virtudes morais e religiosas, que ele teve o cuidado de praticar antes de ensinar em
palavras. Apesar de uma natureza refratária à virtude e de um temperamento inclinado à
violência1, Sócrates praticou constantemente a mansidão, e ao longo de sua vida deu provas
e exemplos de todas as virtudes, não excluindo a doméstica, a guerreira e a político-social. Basta lembrar,
como prova disso, a paciência e a equidade de espírito com que suportou o temperamento violento e as
extravagâncias de sua esposa Xantipa; o valor sereno, beirando o heroísmo, que manifestou nos campos de
batalha de Potidéia e Delium, onde salvou a vida de Xenofonte, e a integridade e coragem com que resistiu
aos trinta tiranos no exercício de suas funções públicas.
Apesar de tantas virtudes, e talvez por causa delas, o frívolo, inconstante e corrupto povo de Atenas,
excitado pelos sofistas e seduzido por poetas e políticos ainda mais corruptos, condenou Sócrates a beber
cicuta, sob o pretexto de que havia corrompido a juventude e desprezado os deuses. A humanidade
indignada sempre execrará a memória dos autores, cúmplices e partidários da morte do justo, condenando
à infâmia eterna os nomes do autor de “As Nuvens” [Aristófanes], do orador sofista Meleto, do poeta Lícon
e do político Anito2.
Do mais, os últimos momentos de Sócrates corresponderam ao restante de sua vida. A sua morte poderia
ser comparada à do mártir cristão, se a obscuridade e a incerteza sobre o destino final da alma, junto com
os conceitos fatalistas, com as superstições
Culto a Sócrates no Renascimento
(Revista, n. 21, p. 28)
e com o fermento politeísta que aparecem
É muito significativa uma exclamação do famoso Erasmo em seus discursos e atos, não o
de Rotterdam, uma das figuras mais salientes do humanismo: desdourassem e o fizessem perder muito de
“Ó São Sócrates, rogai por nós!” sua beleza e sublimidade. Ainda não havia
Sócrates, como sabemos, suicidou-se. Sendo monoteísta, ressoado no mundo a palavra da Verbo de
ocultou durante o processo sua religião, e disse que acreditava Deus, que deveria trazer ao homem da
em todos os deuses de Atenas, para escapar à condenação à ciência e ao homem da ignorância, ao
morte.
homem da academia e ao menino da escola,
Para Erasmo, clérigo católico, esse Sócrates despertava
a solução clara, precisa, filosófica e simples
tanto entusiasmo que ele se referia ao filósofo como a um santo.
Se pelo menos Erasmo tivesse veneração pelos santos do formidável problema da vida e Er
as
mo
católicos! Mas ele era um péssimo clérigo, no qual não se nota da morte, da origem e do des-
traço algum de piedade sincera e profunda. O culto de “são” tino do homem.
Sócrates tinha expulso do coração de Erasmo os outros cultos.

1
Que a natureza e a compleição de Sócrates não se prestavam muito à mansidão, e que não entranhavam uma predisposição e
facilidade para a virtude, é geralmente atestado pelos biógrafos. Por outro lado, para se convencer desta verdade, basta olhar para
o busto clássico e tradicional deste filósofo, com a sua fisionomia rude, os olhos fundos, a barba áspera, os cabelos incultos, o nariz
rombudo e arregaçado, seus lábios grossos, características e indícios de uma natureza vigorosa e inclinada a paixões violentas. Diz-
se que seus compatriotas costumavam compará-lo ao sátiro Marsias.
2
“Dizem também que quando [Sócrates] viu passar a Anito disse: ‘Esse homem vai tão orgulhoso, como se tivesse feito uma grande
e bela ação ao ter votado a favor da minha morte. E por quê? Porque eu o fiz notar que não estava bem para ele, honrado pela Pólis
com os mais altos cargos, rebaixar o filho ao ofício de curtidor. O insensato! Ele não sabe que entre ele e eu o triunfo será sempre
daquele que em todos os tempos executou as coisas mais úteis e belas! Mas Homero concede a alguns dos que estão para morrer o
dom de penetrar o que está por vir, e vou lhes fazer um vaticínio: tratei por um tempo com o filho de Anito e não me parece ser um
espírito desprovido de energia: pois eu lhes digo que ele não permanecerá no ofício servil ao qual seu pai o consagrou. Na falta de
um guia honesto para conduzi-lo, ele sucumbirá a uma paixão vergonhosa e, daí por diante, continuará a progredir no caminho da
depravação’. [N.T.]
“E os fatos corresponderam ao vaticínio: o jovem entregou-se ao vício do vinho e, ébrio em todas as horas, acabou tornando-se um
homem inútil para sua pátria, para seus amigos e para si mesmo. O pai, pela infame educação que dera ao filho, e pela sua torpe
ignorância, logrou ver-se desonrado até hoje, após a sua morte.” (XENOFONTE. A Apologia de Sócrates.)
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§ 55 Filosofia de Sócrates

Entrando agora na exposição da sua doutrina, deve-se dizer que:


nosce teipsum
1º) Em sua opinião, o princípio gerador da ciência e sua própria base é o conhecimento de si mesmo:
para Sócrates, o nosce teipsum do templo de Delfos é o primeiro princípio da Filosofia; e, de fato, é o
primeiro princípio de sua Filosofia, tendo em conta que seu labor filosófico se reduz ao estudo e ao
conhecimento do homem como ser moral. Deste modo, ele ou menospreza ou só concede importância às
ciências físicas, cosmológicas, matemáticas, e mesmo às psicológicas e biológicas, na medida em que se
referem ao aspecto ético e político do homem. O estudo do homem e de seus deveres morais, religiosos e
político-sociais, eis o quase único e verdadeiro objeto da Filosofia3 para o mestre de Platão.
No que diz respeito ao mundo e às ciências físicas que lhe dizem respeito,
Sócrates professava um ceticismo muito semelhante ao dos sofistas seus
contemporâneos: ceticismo4 que costumava expressar naquele aforismo
que repetia com frequência: só sei que não sei nada.
maiêutica socrática
2º) O método de Sócrates estava em relação com o ponto de partida
que assinalava para a Filosofia, fazendo-o consistir na observação dos
fenômenos internos, na reflexão e análise raciocinada dos mesmos.
Daí a variedade e flexibilidade do seu método de ensino, que sabia
adaptar-se maravilhosamente às circunstâncias dos ouvintes.
Freqüentemente fingindo ignorância do objeto em questão, outras vezes
fazendo perguntas pontuais e dialéticas, empregando no tempo certo a
indução e a analogia, propondo dúvidas e perguntas simples na aparência,
fazendo uso frequente do diálogo, Sócrates imperceptivelmente conduzia seus
ouvintes ao conhecimento da verdade, que parecia surgir espontaneamente do fundo de sua consciência.
Não há necessidade de dizer que ele usava destas mesmas armas para expor a superficialidade científica e
as contradições dos sofistas.

3º) Partindo da observação psicológica e da análise do sentido moral da humanidade, Sócrates chega
pelo método indicado às seguintes conclusões: eudaimonia
a) O dever do homem e o emprego mais próprio das suas faculdades, é investigar o bem, e conformar a
sua conduta com este bem moral uma vez conhecido. O autoconhecimento, e o esforço constante para
dominar suas paixões e más inclinações, conformando-as à razão, são os meios para alcançar este resultado,
ou seja, para adquirir a perfeição moral, na qual consiste a verdadeira felicidade do homem na terra.
viver bem
b) A prudência, a justiça, a temperança (ou moderação da concupiscência sensível) e a fortaleza são as
quatro virtudes principais e necessárias para a perfeição moral do homem, que será tanto mais perfeito nessa
ordem, quanto mais se assemelha a Deus em seus atos, porque Deus é o arquétipo da virtude e da perfeição
moral. No julgamento divino e na própria verdade, deve-se buscar a norma dessa perfeição moral, a noção
real e verdadeira da virtude, mas não no julgamento do vulgo e das multidões: Nobis curamdum non est,
quid de nobis multi loquantur, sed quid dicat is unus, qui intelligit justa et injusta, atque ipsa veritas.
O importante – acrescenta Sócrates em um dos Diálogos de Platão5, não é viver, mas viver bem (non
multi faciendum esse vivere, sed bene vivere), ou seja, viver de acordo com as regras da retidão moral e da

3
Aludindo sem dúvida a esta tendência de Sócrates, Aristóteles escreve: «Socratis vero temporibus, usus quidem definiendi increvit,
sed indagatio rerum naturalium desiit; nam omne philosophandi studium ad utilem virtutem civilemque usum translatum est.» De
partib. animal, lib. I, cap. I.
4
“Siquidem – escreve Sexto Empírico – Xenophon in suis de ejus dictis et factis commentariis, disertis verbis dicit, eum abnegasse
naturae contemplationem, ut quae sit supra nos; soli autem morum vacasse inquisitioni, ut quae ad nos pertineat”. Adversus
Mathem., lib. VII.
5
Crito vel de eo quod agendum est.
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justiça. Em harmonia com estas regras ou princípios de moral, não devemos tomar vingança das injúrias,
nem pagar mal com mal; devemos antepor a justiça e o amor da pátria e das leis a todas as outras coisas,
sem excluir os filhos, os pais e a própria vida.
submissão às leis
c) A justiça implica a idéia e o cumprimento dos nossos deveres para com os outros, sendo parte principal
destes deveres a observância e a obediência às leis humanas ou positivas, e também às leis não escritas, ou
seja, à lei natural, anterior e superior a estas e raiz de toda justiça; mas acima de tudo o sacrifício absoluto
de nós e das nossas coisas à pátria, e a submissão incondicional e perfeita aos magistrados.

d) A piedade e a oração são duas virtudes muito importantes, por meio das quais tributamos a Deus
honra e reverência, ao mesmo tempo que buscamos o remédio das nossas necessidades. A melhor oração é
a resignação nas contrariedades, e a submissão à vontade divina.

e) A ordem, a harmonia e a beleza que brilham no mundo e no homem


testemunham e demonstram a existência de um Deus supremo,
primeiro Autor da lei moral e sua sanção suprema. Deus é um
ser inteligente e invisível, que se manifesta e revela em Seus
efeitos: Sua providência abraça todas as coisas, e
particularmente é exercida sobre o homem, pois está em
todos os lugares, vê todas as coisas e penetra os pensamentos
mais secretos do homem.

f) A inconstância e as misérias de todo o gênero que


pesam sobre a vida presente, a tornariam desprezível e
abominável, se não houvesse uma vida futura em que,
desaparecendo estes males, a alma chegasse à posse plena
do bem. O justo deve ter confiança ilimitada em Deus, cuja
providência não o abandonará na morte.
Estas afirmações, juntamente com outras idéias que podem
ser consideradas como premissas lógicas da imortalidade da alma,
demonstram suficientemente a opinião de Sócrates sobre este ponto,
por mais que não se encontrem nele afirmações diretas, precisas e
concretas sobre o estado da alma após a morte.

§ 56 Crítica

Já deixamos indicado que o principal mérito da doutrina de Sócrates consiste em ter tomado como ponto
de partida da Filosofia a observação psicológica, e em ter dirigido a investigação filosófica para a moral e
a teodicéia. O método psicológico e a concepção ético-teológica constituem os dois elementos principais e
o caráter fundamental da Filosofia socrática.
Além do que foi dito, e numa ordem secundária, Sócrates tem também o mérito de ter destruído a
sofística, atacando-a nos seus princípios, nas suas conclusões, e sobretudo nos seus procedimentos; de ter
ensinado teórica e praticamente a sobriedade científica, combatendo ao mesmo tempo os exageros do
dogmatismo e do ceticismo: de ter posto fim à anarquia intelectual e à confusão de idéias introduzida e
aclimatada pelos sofistas, graças ao método rigoroso que seguia nas suas discussões, procedendo do
conhecido ao desconhecido, por gradações lógicas, e procurando, sobretudo, definir as palavras e as coisas;
de ter tirado a Filosofia do terreno puramente individualista e subjetivo em que os sofistas a tinham
colocado, para a colocar e assentar no terreno da universalidade, da imutabilidade, da objetividade. O ego
individual que servia de objeto às especulações da sofística, cede o lugar ao ego universal, ao ego da espécie

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humana, à consciência do gênero humano; mas, acima de tudo, Sócrates não para, como os sofistas, no
conhecimento como fenômeno subjetivo, mas serve-se deste para chegar à realidade objetiva.
Quanto à metodologia filosófica, Sócrates introduziu duas inovações que valorizam e distinguem a sua
Filosofia, as quais se referem ao (1) uso de definições, ora nominais, ora reais, e ao (2) procedimento por
indução: sem serem de todo desconhecidos, esses dois instrumentos foram pouco e imprecisamente usados
para a investigação da verdade; mas Sócrates dedicou atenção preferencial a eles, fazendo uso frequente
deles, especialmente do primeiro, em suas lutas e discussões com os sofistas.
Nessa ordem de idéias, ou seja, do ponto de vista do método, a Filosofia de Sócrates representa e
comporta um progresso real e uma de suas manifestações mais importantes, práticas
e duradouras no movimento histórico-filosófico. O Mestre de Platão combate
incansavelmente, por meio de definições, a falsa ciência dos sofistas: a
possibilidade e a existência de uma ciência real, objetiva e imutável das coisas,
constitui sua afirmação capital contra as teorias negativas dos sofistas, e se ele
alguma vez parece concordar com eles em suas doutrinas, são apenas
coincidências aparentes e argumentos ad absurdum ou ad hominem, para mostrar
a vaidade e petulância de seu conhecimento. Para todo historiador sério da
Filosofia, é inegável que Sócrates tem a honra e o mérito de ter transformado o
ceticismo imoderado dos sofistas em crítica filosófica, ou, digamos melhor, de ter substituído suas
discussões céticas pela crítica racional e científica.
A par de todas estas vantagens e excelências, a Filosofia de Sócrates comporta o grave defeito de ser
uma Filosofia essencialmente incompleta. Para ele, não há outra ciência possível, nem Filosofia mais digna
desse nome, do que a ciência ético-teológica. As ciências naturais e matemáticas ou não existem ou não
têm importância e utilidade próprias. O mundo físico, e mesmo o mundo antropológico e o mundo divino,
se excetuarmos o aspecto moral dos dois últimos, são objetos que não estão ao alcance de nossa ciência.
Nossos conhecimentos físicos, antropológicos, metafísicos e teológicos carecem de valor objetivo e
científico, se forem considerados na ordem especulativa e separados da ordem moral. A natureza, os
atributos e o destino da alma, assim como a natureza, os atributos e até a existência de Deus, só nos são
conhecidos porque e na medida em que envolvem uma relação necessária com a ordem moral; porque e na
medida em que a consciência e a lei moral não poderiam existir se Deus não existisse. Em uma palavra:
para Sócrates, como para Kant nos tempos modernos, a razão prática e a lei moral constituem o único
critério seguro para chegar à realidade objetiva e à existência de Deus. Se o Mestre de Platão tivesse posto
sua Filosofia por escrito, poderia tê-lo feito escrevendo uma Crítica da Razão Pura e uma Crítica da Razão
Prática, que teriam muitos pontos de contato com as do filósofo Koenisberg, especialmente na parte
relacionada à subordinação da verdade especulativa à verdade prática, da realidade metafísica à realidade
moral.
Há, porém, um ponto ou problema de importância transcendental, que entranha uma diferença profunda,
ainda que parcial, entre a Filosofia de Sócrates e a de Kant, e é aquele que se refere à existência e à natureza
das causas finais. O Mestre de Platão não apenas estabelece e afirma a existência das causas finais, mas
também usa o princípio teleológico para provar e explicar a existência e os atributos de Deus, origem, razão
e fim dessa causalidade; serve-lhe igualmente para explicar a existência, a natureza e a ordem do mundo, e
também para investigar e estabelecer a origem, as características e as condições da ordem moral. O filósofo
de Koenisberg rejeita a finalidade transcendente, a existência e os atributos da causalidade final no sentido
socrático, e apenas admite, como se sabe, uma espécie de finalidade imanente, muito próxima da evolução
darwiniana, e que nada tem em comum com a teoria teleológica de Sócrates.

100
§ 57 Os discípulos de Sócrates

Os ensinamentos de Sócrates, sem constituir uma escola no sentido próprio da palavra, deram origem a
escolas múltiplas e muito diferentes entre si, tanto no que diz respeito à forma de apreciar o ensino do
Mestre como em relação às características e às circunstâncias especiais de seus ouvintes. Alguns deles eram
de idade avançada e vieram para sua escola com opiniões e convicções científicas formadas já de antemão,
como Querefonte, Antístenes e Críton. Houve outros, que, se assistiram às aulas de Sócrates, foi apenas por
motivos políticos, e com o desejo de aprender a arte de governar, ou melhor, de dominar os homens, como
Xenofonte, Crítias e Alcibíades. Assim é que seu Mestre, que possuía maravilhosamente a arte de atrair os
homens, ao mesmo tempo em que lhes transmitia ensinamentos úteis, quando entretido com eles, dirigia
seus discursos para seus fins e inclinações pessoais, discutindo sobre o fim e a constituição do Estado, sobre
a democracia e a aristocracia, sobre as leis e a constituição social.
Diferente foi a via que seguiu e diferentes os assuntos de seus discursos quando falou com homens nos
quais descobriu uma verdadeira vocação filosófica, como foi o caso de Fédon, de Teages, de Aristipo, de
Euclides e particularmente de Platão.
Dada a variedade de direções que Sócrates soube dar ao seu ensino, e dados os elementos heterogêneos
que se agrupavam à sua volta, não é difícil dar-se conta das várias escolas que nasceram do seu ensino, e
que se podem dividir em (a) completas e (b) incompletas. Pertence ao (a) primeiro gênero a de Platão, ou
seja, a acadêmica (§65), pois somente esta escola expôs e conservou a concepção socrática em seus diversos
aspectos, desenvolvendo-a e completando-a por sua vez com investigações e idéias novas. As (b) demais
escolas formadas no calor do ensino de Sócrates, limitaram-se a expor, cultivar e, em geral, exagerar algum
aspecto parcial dele. A escola cirenaica (§58), fundada por Aristipo; a cínica (§59), que deve sua origem a
Antístenes; a megárica (§62), fundado por Euclides, e as de Elis e Eretria (§63), representadas por Fédon
e Menedemo. Discorreremos primeiro das (b) escolas incompletas que representam direções parciais da
doutrina socrática, para depois estudar (a) o movimento geral e o desenvolvimento completo da mesma.

§ 58 Escola cirenaica

Esta escola deve o seu nome à cidade de Cirene (Κυρήνη), colônia grega na África, onde nasceu o seu
fundador Aristipo (Αρίστιππος ο Κυρηναίος), 380 anos antes de Cristo. Tendo
ouvido falar da sabedoria e dos discursos de Sócrates, embarcou para Atenas, e
imediatamente ingressou em sua escola, permanecendo um dos discípulos mais
assíduos de Sócrates até sua morte. Após a catástrofe de seu Mestre, Aristipo
percorreu diferentes países, nos quais tradições legendárias lhe atribuem anedotas
e relacionamentos com tiranos, sátrapas e cortesãos. Regressou à sua pátria, onde
passou os últimos anos da sua vida, nela difundindo as doutrinas que aprendera
e praticara noutras localidades e climas.
Sócrates havia ensinado que a felicidade é o objetivo e o fim último das
ações e da vida do homem. A isso, que poderíamos chamar de (P) premissa
maior socrática, Aristipo acrescentou a seguinte premissa menor: e como (p)
a felicidade do homem consiste no gozo ou prazer; (C) o prazer é o fim último e o verdadeiro bem da vida
humana.
É verdade que Aristipo estabeleceu certa ordem hierárquica entre os prazeres, dando
preferência às alegrias do espírito, como a amizade, o amor paterno, a sabedoria e as artes;
mas isso não significa que o fundo de sua teoria não seja essencialmente sensualista e,
daí, a denominação de hedonismo com a qual é geralmente conhecida.
Como costuma acontecer nesses casos, os discípulos e sucessores de Aristipo – dentre
os quais sua filha Arete (Ἀρήτη), mestra de seu filho Aristipo o Jovem, cognominado
Metrodidactos (ensinado pela mãe) por esse motivo – não apenas exageraram o sensualismo
101
primitivo e mais ou menos moderado da escola cirenaica, mas conduziram-na ao ateísmo e à negação de
toda moralidade, consequências últimas e naturais de todo sensualismo. Teodoro, cognominado o Ateu,
Bion de Boristene e Evêmero (natural de Messinia segundo alguns ou de Messina segundo outros), foram
os principais representantes da evolução ateísta da escola cirenaica. Parebates e seus discípulos, Hegesias
(Ἡγησίας) e Anniceris (Ἀννίκερις), também pertenciam a esta escola, na opinião de alguns escritores; mas
as notícias que existem sobre sua vida e doutrinas são muito escassas e confusas. Hegesias é considerado o
apologista do suicídio. Em geral, a vida dos cirenaicos estava relacionada à sua teoria moral e às anedotas
e tradições6 que se referem ao seu fundador Aristipo. (nominalismo avant la lettre)
Na ordem especulativa, os cirenaicos professavam uma espécie de idealismo cético, em total harmonia
com seu hedonismo na ordem moral. O homem, segundo esta escola, percebe e conhece suas modificações
subjetivas, mas não conhece e não pode conhecer as causas externas que as produzem ou causam: O homem
pode afirmar que é afetado desta ou daquela forma; mas não pode afirmar que haja um objeto externo que
seja a causa dessa afecção interna; quanto aos nomes que damos às coisas – ou melhor, às suas aparências
–, significam na realidade nossas sensações, e não os objetos externos. O movimento, a transformação
contínua das coisas, a distância dos lugares, não permitem ao homem perceber e conhecer os objetos
externos em si mesmos, se é que existem. Na realidade, não há nada de comum entre os homens na ordem
cognitiva, mais do que os nomes que dão às coisas. Também não há critério pelo qual o homem possa
discernir a verdade do erro.
A origem do hedonismo cirenaico é ter tomado como objeto da Filosofia um aspecto parcial do ensino
socrático, e ter confundido a idéia abstrata e geral de felicidade com o gozo sensual.
Suas características doutrinais são o sensualismo na ordem prática ou moral, e o subjetivismo sensitivo
e cético na ordem especulativa ou gnosiológica. Dadas estas características, não é de admirar nem o ateísmo
de Teodoro e de Evehemero, nem a apologia do suicídio feita por Hegesias.
Parece desnecessário chamar a atenção para a estreita afinidade que se descobre entre a doutrina de
Aristipo e a de Epicuro. Assim, andando o tempo, o cirenaísmo se refundiu no epicurismo, podendo ser
considerado como um riacho destinado a se perder na grande corrente epicurista.

§ 59 Escola cínica

O fundador desta escola foi Antístenes (Ἀντισθένης), nascido em Atenas por volta do
ano 422 a.C. Depois de ouvir e seguir as lições de Górgias, tornou-se discípulo, amigo e
admirador de Sócrates. Morto este, ensinou publicamente, e os seus discípulos receberam
o nome de cínicos, seja por causa do local em que ensinava Antístenes –
chamado Cynosargo7 – seja por causa da grosseria dos seus costumes sociais [donde
serem comparados a cães: em grego “semelhantes a cães” diz-se κυνικός], ou pelas duas
causas ao mesmo tempo.
A doutrina da escola cínica e de seu fundador é a antítese completa da doutrina
cirenaica, assim como a vida de Antístenes é a antítese da vida de Aristipo. Sócrates
tinha ensinado e dito muitas vezes em seus discursos, que na virtude consiste o real, verdadeiro e único

6
Conta-se, entre outras coisas, que ele respondia aos que o censuravam por seu comércio com Laís (Λαίς, famosa cortesã de
Corinto): “Eu possuo Laís, mas Laís não me possui”; resposta que traz à memória os conhecidos versos de Horácio:
Nunc in Aristippi furtim præcepta relabor, Quanto a Aristipo, os preceitos furtivamente reproduzo,
Et mihi res, non me rebus subjungere conor. E tento que seja para mim a coisa, não esteja eu a ela submisso.
O mordaz Diógenes o chamou de cachorro real, porque vivera algum tempo ao lado de Dionísio, o Tirano: perguntando-lhe este,
um dia, por que as casas dos ricos e poderosos andavam sempre cheias de filósofos, enquanto na dos filósofos não se viam os
grandes. “A razão – respondeu Aristipo – é porque os filósofos sabem o que lhes falta, enquanto os ricos não”. Esta resposta, bem
como a que deu ao referido tirano quando este, num movimento de cólera, cuspiu-lhe na cara, indicam que o referido poeta latino
conhecia bem o filósofo cireneu, quando escreveu: Omnis Aristippum decuit cor, et status, et res (Todo coração, estado e coisa era
devido a Aristipo).
7
Parece que o Cinosargo (ou Kynosarges [Κυνόσαργες], como alguns escrevem) era um ginásio público frequentado pelo povo
de Atenas, ou seja, pelos plebeus. Se isto é verdade, pode-se dizer que até o local escolhido por Antístenes para ensinar a sua
doutrina estava em relação e harmonia com o espírito e as tendências desta.
102
bem do homem: e, exagerando e desfigurando o sentido desta grande verdade, Antístenes começou a ensinar
que a virtude é o bem supremo, o último fim do homem, felicidade suprema e única a que este deve aspirar.
As riquezas, as honras, o poder e os outros bens são coisas indiferentes na ordem moral; são desprezíveis,
e até abomináveis, portanto, para o homem virtuoso. O prazer sensual, longe de constituir o bem, a
verdadeira felicidade do homem, como pretende Aristipo, é, na verdade, um mal8, e um mal dos mais vis,
por causa dos vícios que ele arrasta.
A liberdade e a felicidade suprema do homem consistem na sua independência de todas as coisas por
meio da vida virtuosa, e prova disso é que se Deus é perfeitamente bom e perfeitamente feliz, é por causa
de sua absoluta independência de todas as coisas. Para adquirir a semelhança com Deus, na qual consiste a
perfeição e a felicidade do homem, segundo o ensinamento de Sócrates, é necessário que este se torne
independente de todas as coisas, como é a Divindade. Com este objetivo, além de olhar com indiferença
para as honras, riquezas e outros bens deste gênero, devemos menosprezar as necessidades artificiais da
sociedade, e superar o que são chamados de conveniências sociais e exigências da civilização. O homem
virtuoso deve limitar-se a satisfazer, de uma forma simples e natural, às escassas necessidades que a
natureza lhe impõe.
Embora pareça que Antístenes fizesse pouco caso das ciências especulativas – e particularmente das
ciências físicas e matemáticas – possuía, no entanto, uma idéia muito elevada da Divindade, uma vez que
ensinava aos seus discípulos que Deus é um ser independente e superior a todas as coisas, incluindo as
divindades do culto popular; e que, longe de ser semelhante a qualquer coisa sensível, não deve sequer ser
representado com imagens, pois é um ser puramente espiritual.

§ 60 Discípulos de Antístenes

a) O sucessor imediato de Antístenes foi Diógenes (Διογένης ὁ Σινωπεύς), mais


celebrado por suas extravagâncias e modo de viver do que por sua doutrina. Na verdade,
não consta que ele tenha escrito nenhum livro, nem que tenha professado qualquer teoria
que mereça o nome de filosófica. São-lhe atribuídas, no entanto, algumas máximas ou
sentenças familiares, muito em harmonia com a mordacidade verdadeiramente cínica do
seu carácter: “Os oradores – dizia – colocam grande empenho em
falar bem, mas não em agir bem.”
“O cuidado é tomado em fortalecer o corpo por meio de
exercícios corporais, mas ninguém se cuida de fortalecer a alma por
meio da virtude.”
“Rico ignorante, carneiro com velo de ouro.”
É de se supor, porém, que a este cínico não faltassem talento e educação,
pois Xeníades, nobre e rico cidadão de Corinto, confiou-lhe a educação dos filhos, cuja adesão
soube conquistar, bem como a admiração dos coríntios, que homenagearam sua memória com
estátuas após sua morte.
Nasceu em Sínope, cidade do Ponto, no ano 414 a.C. Seu pai, Hicesias, foi condenado e morreu na
prisão por ser falsário; e como Diógenes teria sido cúmplice de seu pai na falsificação da moeda, ele foi
para Atenas fugindo da justiça. Antístenes, que no início não o quis receber na sua escola, e até empregou
violência e golpes para o afastar de si, admitiu-o finalmente, em vista da sua insistência. Depois de chamar
a atenção dos atenienses com sua vida e costumes verdadeiramente cínicos, e depois de entreter o ócio e a
ludicidade deles com suas extravagâncias9 por um bom período de anos, encontrou-se reduzido à condição

8
Segundo Diógenes Laercio, Antístenes costumava dizer: “Preferiria cair em loucura furiosa, do que experimentar um prazer
sensual”.
9
As muitas anedotas e tradições que correm acerca de Diógenes são demasiado conhecidas para que seja necessário recontá-las
todas. De resto, este filósofo – que não tinha nem lar nem habitação; que não tinha mais posses que seu barril e seu saco; que jogou
fora a tigela em que bebia como coisa supérflua, ao ver um jovem bebendo com a mão; que rasgava com as unhas a carne que
comia crua etc. – ostentava a sua total falta de pudor e fazia publicamente torpezas abomináveis, o que tornava a sua vida
103
de escravo, não se sabe como ou por quê. Vendido ao mencionado Xeníades de Corinto, permaneceu em
sua casa até morrer em idade avançada. Segundo alguns, sua morte foi voluntária, como resultado de ter
retido violentamente a respiração; segundo outros, ocorreu como resultado de ter comido um pé de boi
cru10.

b) Crates (Κράτης ὁ Θηβαῖος), natural de Tebas, foi o discípulo principal de Diógenes, ao mesmo tempo
que o continuador da doutrina e vida dos cínicos, embora seu caráter e suas ações não apresentem o exagero
cínico de Diógenes. Apesar de sua deformidade e pobreza11, a ateniense Hiparchia, notável por sua beleza,
concebeu uma violenta paixão por Crates, com o qual se casou e viveu vida
perfeitamente cínica, e até mesmo ensinando também por palavra e por
escrito a Filosofia de seu marido12. O principal mérito do filósofo de
Tebas é ter sido mestre de Zenão, com o qual e pelo qual o cinismo se
transforma em estoicismo.
Entre os partidários da escola cínica aparecem também os nomes
de Metrocles – irmão de Hiparchia –, Onesícrito, Mônimo de Siracusa,
Menipo e alguns outros menos importantes.

§ 61 Crítica

Assim como a doutrina professada pela escola cirenaica, a professada pela escola cínica constitui e
representa uma Filosofia essencialmente incompleta, não apenas do ponto de vista meramente socrático,
mas também como um sistema de Filosofia moral derivado daquele de Sócrates. Por um lado, limita e
concentra toda moralidade em uma das máximas ou afirmações de Sócrates; por outro, distorce e exagera
esta afirmação. Se é verdade que a virtude é o maior bem do homem na vida presente, não é verdade que
seja o fim último e a perfeição suprema do homem na vida futura; nem é verdade que a virtude carregue
consigo o desprezo absoluto por outros bens e prazeres, mesmo que sejam intelectuais, como afirmava esta
escola.
O fundo e as tendências da doutrina cínica oferecem alguma analogia e afinidade com o fundo e as
tendências da doutrina de Rousseau nos tempos modernos, uma vez que o pensamento dominante nas duas
teorias é reduzir o homem ao estado e condições de pura natureza, rejeitando as vantagens e desacreditando
as conveniências e leis da vida social. Salva as inevitáveis diferenças consequentes à diversidade de épocas,
há também uma certa analogia entre a vida dos antigos cínicos e a vida e aventuras do filósofo de Genebra,
e é provável que nem Antístenes, nem Crates, nem o próprio Diógenes, se recusassem a reconhecer o
espírito e as tendências de sua doutrina nas Confissões de Rousseau.
Pode-se acrescentar, no entanto, em favor da escola cínica – ou, ao menos, em favor da sua importância
histórico-filosófica – que ela serve de ponto de partida para o estoicismo, um sistema que representa um
verdadeiro progresso no âmbito da Filosofia pagã. A preferência concedida pelo estoicismo à noção de
virtude, que é sua idéia matriz, é também o ponto central e como o princípio geral da escola cínica,
considerada em si mesma e em sua origem. Neste sentido, e deste ponto de vista, o estoicismo representa
uma transformação do sistema cínico.

verdadeiramente cínica, como referimos no corpo texto.


10
Antes de morrer, ordenou que seu corpo não fosse coberto com terra; e, ao objetarem que seria comido pelos cães, disse para
colocar um pedaço de pau em sua mão para os afugentar quando se aproximassem. “Mas como poderás saber quando eles se
aproximarem – redarguiram seus interlocutores – se, então, não sentirás nada?” Ao que o Cínico respondeu: “Bem, se, então, não
vou sentir nada, de que me importa se os cães me despedaçarem?” Na vida e na morte, sempre quis ser Diógenes, o Cínico.
11
A pobreza de Crates foi uma pobreza voluntária, se for dado crédito a São Jerônimo e a vários outros escritores, que afirmam que
antes de partir de Tebas para Atenas, Crates vendeu todos os seus bens, distribuindo-os entre seus parentes e amigos. Talvez este
traço extraordinário de desprendimento tenha sido a origem da violenta paixão que Hiparchia concebeu por Crates.
12
Diz-se que Alexandre Magno também visitou Crates, como fizera com Diógenes, e que tendo lhe perguntado se queria que
reedificasse Tebas, sua pátria, respondeu: “Para quê? Depois viria outro Alexandre que a destruiria novamente”.
104
§ 62 Escola megárica

A morte de Sócrates (399 a.C.) foi o sinal para a dispersão de seus discípulos e amigos, a maior parte
dos quais se retirou para sua respectiva pátria. Conta-se entre eles Euclides (Εὐκλείδης ὁ Μεγαρεύς), que
estabeleceu em Mégara, sua pátria, uma escola que se chamaria megárica ou erística, por causa de sua
paixão pelas disputas dialéticas, nas quais se destacaram os discípulos e sucessores de Euclides,
particularmente Eubulides de Mileto (Εὐβουλίδης) e Estilpão de Mégara (Στίλπων).
A idéia fundamental de Euclides e da sua escola é a unidade do bem13, que está fora do alcance dos
sentidos, e só é conhecido pela razão.
Deixa-se ver nesta doutrina a influência da escola eleática, à qual Euclides tinha pertencido antes de
ser discípulo de Sócrates. A unidade absoluta do ser, identificado com o bem, fora do qual nada real existe,
constitui o fundo da escola megárica, a qual se viu necessitada de buscar recursos na dialética e na sofística
para defender tal doutrina, como fizeram já antes os eleáticos.
Os principais representantes e continuadores da escola megárica, além dos já ditos Eubulides e
Estilpão, foram Alexino de Élis (Ἀλεξῖνος) e Diodoro Kronos (Διόδωρος Κρόνος; † 284 a.C.), natural de
Jaso da Cária e discípulo de Apolônio, que o fora de Eubulides. Diodoro teria vivido e ensinado no Egito,
sob o reinado de Ptolomeu Soter.
A escola megárica, conforme inferido do que deixamos indicado, deve ser considerada como um ensaio
de conciliação, ou melhor, de fusão entre a Filosofia Eleática e a Socrática. O ser Uno dos antigos eleáticos
transforma-se no ser Bem para os megáricos, e identifica-se com a razão suprema e com Deus.

§ 63 Escolas de Élis e de Eretria

A escola de Élis deve sua origem a um dos discípulos favoritos de Sócrates, Fédon (Φαίδων), que dá
o nome ao diálogo de Platão sobre a imortalidade da alma. Retirado para sua terra natal após a catástrofe
de seu professor, fundou ali uma escola, cujo dogma fundamental parece ter sido, como no de Mégara, a
unidade e identidade do ser e do bem. Tanto esta escola como a de Eretria – fundada por Menédemo
(Μενέδημος ὁ Ἐρετριεύς), discípulo do mesmo Fédon, e que recebe o nome do local onde foi fundada, ou
melhor, para onde se transladou, depois de Elis, esta escola – limitaram-se a ensinar e desenvolver o aspecto
ético da Filosofia socrática. Dada a escassez e a insegurança de notícias que temos sobre a doutrina dessas
escolas, devemos limitar-nos a atribuir-lhes como pensamento fundamental a identidade da verdade e da
virtude, do verdadeiro e do bem, ao menos quanto à filial de Eretria, da qual diz Cícero: A Menedemo
ereatrici appellati, quorum omne bonum in mente positum et mentis acie, qua verum cerneretur.
Tanto estas duas escolas quanto aquela fundada em Mégara por Euclides prepararam o terreno, com a
sua doutrina e teorias morais, ao estoicismo, no qual vieram a desaguar com o tempo. Assim, por exemplo,
a apatia ou insensibilidade absoluta ensinada por Estilpão e alguns outros representantes da escola
megárica14 tem bastante afinidade com a que os estóicos atribuíam a seu Mestre.

§ 64 Desenvolvimento e complemento da Filosofia Socrática

O que chamamos de restauração socrática não logrou realizar-se realmente até o advento de Platão e
Aristóteles. Sócrates iniciou, é verdade, essa restauração, mas apenas a iniciou. Ele a iniciara, repudiando
o sofisma dos sofistas, reconciliando a Filosofia com o senso comum, criando e praticando o método
indutivo-dedutivo, apontando para a ciência seu verdadeiro caminho, o caminho da observação psicológica

13
É por isso que escreve Cícero: Euclides, a quo iidem illi Megarici dicti, quid id bonum solum esse dicebant, quod esset unum, et
simile, et idem semper.
14
Referindo-se a estes e comparando a sua doutrina sobre este ponto com a dos estóicos, escreve Séneca: «Hoc inter nos et illos
interest; noster sapiens vincit quidem incommodum omne, sed sentit; illorum, nec sentit quidem». Oper., epist. 9.
105
e da razão reflexa e depurando-a dos elementos poéticos, alegóricos e mitológicos que até então a tinham
desfigurado; pois, como Hegel observou apropriadamente, os deuses abdicaram de certa forma de seu
domínio no reino filosófico quando a pitonisa de Delfos declarou que Sócrates era o mais sábio dos homens.
Sócrates, porém, não fez mais do que iniciar a restauração da Filosofia; porque ele nem possuía o gênio
sublime e ousado da metafísica, nem conhecia a fundo as antigas escolas, nem soube descobrir e depurar o
pensamento que pulsava nos sistemas e pensadores anteriores. E, no entanto, tudo isso foi necessário, além
das iniciações socráticas, para realizar a verdadeira restauração, a verdadeira reconstrução e, ao mesmo
tempo, criação da Filosofia; e tudo isso é encontrado em Platão e Aristóteles. A Filosofia de Sócrates era,
como dissemos, uma Filosofia essencialmente incompleta: Foi um ensaio moral, acompanhado de poucas
e leves noções psicológicas, teológicas e político-sociais. As diversas escolas fundadas por seus discípulos
após sua morte são ainda mais incompletas e imperfeitas, podendo-se até dizer que se a doutrina socrática
não tivesse tido mais representantes do que aquelas escolas, é possível que Sócrates tivesse aparecido na
História da Filosofia como mais um dentre tantos sofistas, ainda que superior na doutrina e nos costumes
aos que lhe foram contemporâneos.
Estas reflexões revelam-nos o mérito, a importância e a verdadeira missão de Platão e de Aristóteles,
genuínos representantes da restauração socrática, se por esta se entende a reconstrução perfeita, e, por assim
dizer, criadora da Filosofia.
Com Platão e Aristóteles, a doutrina do impugnador dos sofistas, que até então tinha permanecido
relativamente estéril; a idéia socrática, que só tinha encontrado intérpretes parciais e incompletos nas
escolas de Aristipo, Antístenes, Euclides e outros, adquiriu um grande movimento de expansão, e a
especulação grega chega ao seu auge, e apresenta as características de uma virilidade nunca superada, de
uma fecundidade verdadeiramente espantosa. Como deixamos indicado acima, nos sistemas e com os
sistemas destes dois sucessores de Sócrates, a Filosofia adquire todo o seu organismo interior e exterior.
Ao lado da metafísica, que vem para completar e servir de coroação à antiga física, tomam assento a ética,
a política, a teodicéia, a psicologia, a lógica, a matemática e as ciências naturais. E aparecem também a
afirmação do teísmo transcendente em oposição ao hilozoísmo monista da antiga escola jónica, e a
afirmação do princípio espiritualista, e a concepção da ciência e das idéias, e a distinção precisa entre o
elemento inteligível e o sensível, com outras grandes e fecundas teorias, ou ignoradas ou apenas
pressentidas pela Filosofia do período anterior.
Daí a importância excepcional destes dois nomes na História da Filosofia pagã, e daí a consequente
necessidade de expor com maior atenção e alguma extensão, sua vida, seus escritos e suas idéias.

106
§ 65 Platão: vida e escritos

De família ilustre e aparentado com a de Códro 15 e Sólon, Platão (Πλάτων, γιος του Αριστάν της
Αθήνας) nasceu em Atenas, cerca de 427 a.C.,
Relacionado com o último Rei de Atenas, a
coincidindo o seu nascimento com a morte de Péricles.
família de Platão era ilustre de diversos modos: sua
Alguns dizem que nasceu em Egina e são muitos os que mãe, Perictione, era irmã de Cármides e sobrinha
afirmam que seu nome verdadeiro, que lhe deram seus de Crítias e se regozijava por seu parentesco com
pais, fora Arístocles, sem que se saiba ao certo quando Sólon. De seu esposo Aristão, além de Platão,
e por que recebeu o nome de Platão, o qual conservou tivera Adimanto, Glauco e Potone, que seria mãe
por toda sua vida. Diz-se também que, em seus de Espeusipo (sobrinho e sucessor de Platão à
primeiros anos, dedicou-se à poesia e escreveu vários frente da Academia). Após a viuvez, desposou
poemas épicos e ditirâmbicos. Se isso estiver correto, é Perilampes, que servira muitas vezes de
preciso admitir em todo caso que seus interesses embaixador junto aos persas e gozava da amizade
do famoso Péricles.
poéticos não foram duradouros, pois aos vinte anos já se
Em contraste com a reticência acerca de si
fizera discípulo de Sócrates, sem mais se interessar pela mesmo, Platão muitas vezes introduziria em suas
poesia, dedicando-se inteiramente ao estudo da obras os ilustres parentes: Cármides dá nome a um
Filosofia. Platão seguiu na escola de Sócrates pelo Diálogo, Crítias é interlocutor em mais de um, já
período de oito anos, ou seja, até a morte de seu Mestre, Adimanto e Glauco figuram na famosa República.
após o que se retirou a Mégara. Na expressão de Burnet, “a cena inaugural de
Passado algum tempo ao lado de Euclides para se Cármides é uma glorificação de toda a família” e
aperfeiçoar na dialética, Platão empreendeu desde “seus diálogos servem não apenas de homenagem
Megara, de acordo com tradições mais ou menos a Sócrates, mas também dos melhores dias de sua
autorizadas, diferentes viagens e peregrinações. São estirpe”.
Clemente de Alexandria e Lactâncio admitem que
permaneceu no Egito por um espaço de treze anos,
instruindo-se em suas ciências e até em seus mistérios
hieráticos, atribuindo-lhe também viagens pela Fenícia,
Babilônia, Pérsia e Judéia. No entanto, exceto a viagem
ao Egito – e isso sem determinar o tempo de sua estada
–, é preciso confessar que todas essas tradições carecem
de fundamentos históricos.
As suas viagens à Itália e à Sicília, o seu comércio
com os discípulos de Pitágoras e com os eleáticos, as suas visitas a Dionísio o Tirano e a Dion, merecem
maior e quase completa confiança16, dados os fundamentos em que se apoiam. Rico, e carregado, por assim

15
Códro (Κόδρος), filho de Melanto, foi o último Rei de Atenas, reinando entre 1089 e 1068 a.C. [N.T.]
16
Supõe-se com bastante fundamento que Platão tenha feito três viagens a Siracusa: a primeiro, quando tinha quarenta anos; a
segunda, aos sessenta anos de idade, quando foi chamado por Dion para lhe confiar a educação de Dionísio, o Jovem. A grande
liberdade e energia com que ele falava contra a tirania na presença de Dionísio, o Velho, lhe acarretaram grandes desgostos e
perigos, e até mesmo o de ser vendido como escravo, segundo alguns, que dizem que foi comprado e devolvido à liberdade pelo
filósofo [cirenaico] Aniceres. Em idade avançada, Platão empreendeu sua terceira viagem à Sicília, com o objetivo de restabelecer
a paz entre Dion e seu sobrinho Dionísio, o Jovem.
107
dizer, com os despojos científicos do Oriente e do Ocidente, Platão abriu escola pública em lugar agradável
e frondoso, pertencente ao seu amigo Academo, de onde se deriva para a sua escola o nome de Academia. O
estudo e o ensino da Filosofia ocuparam constantemente o seu espírito, até que faleceu em Atenas, aos
oitenta e um anos de idade.
Platão é talvez o único Filósofo notável da Antiguidade cujos escritos nos chegaram inteiros17, o que
contribuiu para sua celebridade e para que sua doutrina seja mais conhecida. No entanto, o pensamento de
Platão é obscuro e duvidoso com frequência, contribuindo para isso em parte a forma de diálogo, que não
permite reconhecer sempre com certeza qual é a opinião do autor, e, por outro lado, a forma mitológica e
alegórica que ele usa frequentemente em seus escritos. É por isso que não faltam autores que atribuam a
Platão uma doutrina esotérica ou secreta; de nossa parte, acreditamos que o esoterismo platônico pode se
reduzir às precauções que era preciso tomar se
A hereditariedade nas elites tradicionais se pretendesse não entrar em choque ou pôr-se
Pio XII em manifesta contradição com o politeísmo
Discurso ao Patriciado e a Nobreza Romana de 1944 oficial. É verdade, porém, que em seus escritos
Desta grande e misteriosa coisa que é a hereditariedade –
se tropeça frequentemente com passagens cujo
quer dizer, o passar através de uma estirpe, perpetuando-se de sentido é obscuro e ambíguo, com idéias e
geração em geração, um rico acervo de bens materiais e teorias que parecem contraditórias, como se
espirituais, a continuidade de um mesmo tipo físico e moral, vê, entre outros, nos diálogos e textos que se
conservando-se de pai para filho, a tradição que une através referem à origem, natureza e destino ou
dos séculos os membros de uma mesma família – desta existência da alma após a morte, e, sobretudo,
hereditariedade, dizemos, pode-se sem dúvida distorcer a nos que se referem à teoria do conhecimento.
verdadeira natureza com teorias materialistas. Mas pode-se Apresenta-nos algumas vezes a alma como
também, e deve-se, considerar esta realidade de tão grande
substância puramente espiritual, que voa para
importância na plenitude da sua verdade humana e
o seio de Deus após a morte, ou é punida em
sobrenatural.
Por certo, não se negará à transmissão dos caracteres proporção às suas obras; ao passo que em
hereditários um substrato material; considerar tal facto outras passagens parece mesmo negar-lhe
surpreendente, seria esquecer a união íntima da nossa alma verdadeira espiritualidade como que se
com o nosso corpo, e em quão larga medida as nossas próprias aproximando do materialismo, falando-nos do
atividades mais espirituais dependem do nosso temperamento corpo etéreo e sutil que leva consigo ao
físico. Por isso a moral cristã não deixa de lembrar aos pais as separar-se do corpo e até mesmo da
grandes responsabilidades que lhes cabem a esse respeito. transmigração em corpos de animais. No que
Porém o que mais vale é a herança espiritual, transmitida tange à teoria do conhecimento, a obscuridade
não tanto por esses misteriosos liames da geração material,
é ainda maior, sendo difícil por extremo fixar
quanto pela ação permanente daquele ambiente privilegiado
de uma forma precisa o sentido e significado
que constitui a família; com a lenta e profunda formação das
almas, na atmosfera de um lar rico de altas tradições que dá às palavras sentido, imaginação,
intelectuais, morais e sobretudo cristãs; com a mútua pensamento ou cogitatio, opinião, ciência,
influência existente entre os que moram numa mesma casa, razão etc.
influência esta cujos benéficos efeitos se prolongam para Isso tanto é verdade, e o pensamento
muito além dos anos da infância e da juventude, até alcançar filosófico de Platão parece tão ambíguo e
o termo de uma longa vida naquelas almas eleitas que sabem vacilante, que já na antiguidade havia críticos
fundir em si mesmas os tesouros de uma preciosa e historiadores, a darmos crédito a Sexto
hereditariedade com o contributo das suas próprias qualidades Empírico 18 , que o apresentavam entre os
e experiências.
representantes do ceticismo.

17
Aqui está o catálogo ou índice das obras de Platão, de acordo com a ordem e forma que lhes apontou Marsilio Ficino: Hipparchus,
de lucri cupiditate; De Philosophia, seu amatores; Theajes, de sapientia; Menon, de virtute; Alcibiades primus, de natura homini;
Alcibiades secundus, de voto; Minos, de lege; Eutiphro, de sanctitate; Parmenides, de um rerum princípio; Philebus, de summo
hominis bono; Hippias major, de pulchro; Lysis, de amicitia; Theaete; Libri duodecim, de legibus; Epinomis, id est legum appendix,
vel philosophus; Axiochus; Epistolae duodecim Platonis. [N.T. Para maior clareza, veja-se o Apêndice 1, a seguir]
18
“Platonem alii dogmaticum esse dixerunt, alii aporematicum, id est, dubitatorem; alii vero in quibusdam dogamticum, in
quibusdam aporematicum. Nam in gymnasticis libris, id est exercitatoriis, ubi Socrates aut ludens cum aliquibus inducitur, aut
pugnans adversus sophistas, exercitatorium et dubitatorium quemdam dicunt illum habere characterem, dogamticum autem, ubi
serio loquens, sententiam suam aut per Socratem, aut per Timaeum, aut per aliquem ex hujusmodi viris, exponit.” (Hipotiposes
108
A crítica tem disputado muito, e ainda disputa, sobre a autenticidade19 das obras de Platão. As que podem
ser consideradas como de autenticidade inconteste e, ao mesmo tempo, como que suficientes para formar
uma idéia do pensamento filosófico de Platão, são as seguintes: Fedro (de pulchro), Fedão (de
immortalitate), o Banquete (de amore), Górgias (de Rhetorica), Timeu (de generatione mundi), Teeteto (de
scientia), os dez livros da República e o tratado das Leis. Já o Critão (de eo quod est agendum), e a Apologia
de Sócrates possuem autenticidade respeitável, embora não de todo inconcussa.
Sem prejuízo da marca de profunda originalidade que brilha nos escritos e na doutrina de Platão, não é
difícil, nem raro, reconhecer que sobre seu gênio e suas teorias exerceram influência mais ou menos
decisiva, certas teorias, tradições e idéias de outras escolas e outros filósofos. Ao lado das tradições egípcias
e orientais; ao lado das reminiscências mitológicas, a doutrina de Platão apresenta vestígios mais ou menos
sensíveis e numerosos de terem passado por seu espírito idéias provenientes da escola eleática, da pitagórica
e da de Heráclito. Aristóteles, testemunha privilegiada na matéria, confirma o que acabamos de indicar, e
conclui dando a entender que uma das coisas que mais contribuíram para que Platão excogitasse sua famosa
Teoria das Idéias foi a doutrina de Heráclito sobre o fieri ou fluxo perpétuo do mundo sensível20, ou seja,
das substâncias singulares. A contingência e mutabilidade inerentes a estas exigem, segundo Platão, a
existência de realidades distintas, separadas e independentes das naturezas singulares e sensíveis, realidades
ou essências (idéias) imutáveis de suas e eternas: praeter sensibilia et formas mathematicas, res ait medias
esse, a sensibilibus quidem differentes, eo quod perpetuae et immobiles sunt. [Παρὰ τὰ αἰσθητὰ καὶ τὰ
μαθηματικὰ εἴδη, ἔστι μέσα τινὰ γένη τῶν ὄντων, διαφερόντων μὲν τῶν αἰσθητῶν, ὅτι ἀεί ἐστι καὶ
ἀτρέπτως ὑπάρχει.] (Timeu, 50a-51a)

Apêndice 1 – Catálogo das Obras de Platão


segundo a ordem e a forma que lhes impôs Marsílio Ficino

Título em latim Título em português Assunto


Hipparchus, de lucri cupiditate. Hiparco ganância
De Philosophia, seu amatores. Amantes Rivais transmissão do conhecimento
Theajes, de sapientia. Teages δαίμων ou voz interior de
Sócrates; sabedoria
Menon, de virtute. Mênon virtude
Alcibiades primus, de natura Alcibíades I natureza do homem e bem
hominis. comum
Alcibiades secundus, de voto. Alcibíades II conhecimento
Minos, de lege. Minos lei
Eutiphro, de sanctitate. Eutífron piedade

Pirrônicas, l. 1 c. 33)
19
Geralmente são considerados como apócrifos o Hipparchias, o Minos, o Alcibiades secundus e o Axiochus. As cartas de Platão,
o Epinomis, o Theages, o Hippias major e o Alcibiades primus, que são de autenticidade duvidosa para muitos críticos, por mais
que outros tenham escrito a seu favor. O mesmo quase acontece com os diálogos intitulados Parmenides, Cratylus e Philebus.
20
Depois de resumir as opiniões das escolas pré-socráticas acerca do princípio e da constituição das coisas, Aristóteles acrescenta:
“Post dictas vero philosophias, disciplina Platonis supervenit, in plerisque quidem istos secuta; quaedam autem etiam propia, ultra
Italicorum habens philosophiam. Cum Cratillo namque ex recenti conversatus, et Heracliti opinionibus [καὶ ταῖς Ἡρακλειτείοις
δόξαις] assuetus, tanquam omnibus sensibilibus semper defluentibus, et de eis non existente scientia, haec quidem postea ita
arbitratus est.
Cum vero Socrates de moralibus quidem tractaret, de tota vero natura nihil; in is tamen universale quaereret, et primus mentem
ad definitionem applicaret, illum ob hoc laudans, putavit [Plato] de aliis et non de aliquo sensibilium hoc fieri: impossibile enim
putavit definitionem communem cujuspiam sensibilium esse, quae semper mutantur. Et sic talia, entium ideas appellavit, sensibilia
vero praeter haec”. (Metafísica, l. I, c. 6. 987a-b)
109
Parmenides, de uno rerum principio. Parmênides uno
Philebus, de summo hominis bono. Filebo ética
Hippias major, de pulchro. Hípias maior belo
Lysis, de amicitia. Lísis amizade
Theaetetus, de scientia. Teeteto sabedoria
Io, de furore poetico. Íon poesia
Sophista, de ente. Sofista método de investigação filosófica
Civilis, de regno. Peri Basileias política
Protagoras, contra sophistas. Protágoras natureza da virtude
Euthydemus, sive litigiosus. Eutidemo falácias sofistas
Hippias minor, de mendacio. Hípias menor ação correta
Charmides, de temperantia. Cármides ética
Laches, de fortitudine. Laques sobre a fortaleza
Clitophon, exhortatorius. Clitofon exortação à investigação
científica
Cratylus, de recta nominum ratione Crátilo se os nomes são convencionais ou
naturais
Gorgias, de rethorica. Górgias retórica
Convivium Platonis, de amore. Banquete amor
Phoedrus, de pulchro. Fedro amor | arte da retórica
Apologia Socratis. Apologia de Sócrates
Crito, de eo quod agendum. Críton ou Critão dever
Phoedon, de anima. Fédon ou Fedão imortalidade da alma
Menexenus, seu funebris oratio. Menexêno morte no campo de batalha
Libri decem de Republica. A República política

Timaeus, de generatione mundi. Timeu cosmologia


Critias, de atlantico bello. Crítias continuação da República |
Atlântida
Libri duodecim, de legibus. As Leis política
Epinomis, id est legum appendix, Epínomis continuação das Leis
vel philosophus.
Axiochus. Axíoco preparação da morte
Epistolae duodecim Platonis Cartas

110
§ 66 Teoria das Idéias de Platão

O ponto culminante da Filosofia platônica e a chave de sua doutrina é sua famosa teoria das Idéias,
intimamente ligada à teoria do conhecimento humano. A obscuridade, a linguagem confusa, e até certo
ponto contraditória, que se observa em Platão quando fala das idéias, têm dado origem a interpretações
muito diversas sobre esta teoria. Para nós, a teoria platônica das idéias, considerada em si mesma e em suas
relações com a teoria do conhecimento, pode ser reduzida a:
objeto da ciência
a) A ciência [ἐπιστήμη – episteme] tem por objeto o necessário, o imutável, o absoluto: as coisas
temporárias, mutáveis e contingentes não podem ser objeto da ciência. Disso decorre que não pode ser
ciência o conhecimento das coisas singulares, visíveis e materiais que percebemos com os sentidos, pois
estas variam continuamente e estão sujeitas a mudanças perpétuas, como ensina Heráclito.
idéias inatas
b) O objeto, portanto, da ciência são as idéias [ou formas], que contêm e representam o que é necessário,
imutável e absoluto nas coisas. Essas idéias ou formas são independentes, anteriores e superiores ao espaço,
ao tempo, aos indivíduos e ao mundo visível; elas contêm e representam as essências, isto é, a verdadeira
realidade das coisas. Essas realidades superiores, eternas, ingênitas são, ao mesmo tempo, noções universais
das coisas, mas noções inatas que não se originam dos sentidos, nem das abstrações e comparações do
entendimento.
hiper-realismo platônico
c) Essas próprias idéias ou formas são ao mesmo tempo tipos, modelos e exemplares primeiros das
coisas singulares e sensíveis, que vêm a ser como que impressões, imagens, imitações e participações das
idéias ou formas universais, imutáveis, inteligíveis e eternas. Assim é que as idéias são os verdadeiros seres
reais. São objetos mais reais do que objetos sensíveis, pois sua realidade tem sua razão suficiente e tem sua
origem na realidade das idéias. É daqui que se deve considerar o mundo visível e material como mera
imitação e figura, como concreção parcial, como imagem imperfeita do mundo inteligível, que é o mundo
das idéias [υπερκόσμο των ιδεών (supra-mundo das idéias ou o ὑπερουράνιος (hiperurânio)].
hierarquia das idéias
d) Embora todas as idéias ou formas tenham a mesma característica de necessidade, imutabilidade,
independência e superioridade em relação ao mundo sensível – além de serem os tipos e a razão suficiente
para as coisas singulares –, existe entre elas certa ordem hierárquica quanto à sua universalidade. O lugar
supremo entre elas corresponde à Idéia do Bem, que contém abaixo de si todas as outras. A Idéia do Bem
é, aliás, o modelo típico, o exemplo supremo, segundo o qual Deus realizou a criação, ou melhor dito, a
ordenação do mundo.
mundo das idéias
e) Mas qual é o lugar das idéias de Platão? Onde essas idéias existem ou residem? Aqui está um dos
pontos mais obscuros dessa teoria. Platão afirma naturalmente que as idéias não residem no mundo sensível,
e que não precisam de espaço. Em vez disso, afirma, ou ao menos indica, às vezes que elas existem por si
mesmas e em si mesmas, ou que existam no mundo inteligível, pois existem na Idéia absoluta e suprema
do Bem.
opinião e ciência
f) No homem devem distinguir-se duas ordens de conhecimento, uma inferior e imperfeita, a outra
superior e propriamente científica. A primeira abarca as sensações e percepções de objetos singulares e
sensíveis com suas imagens ou representações. Este conhecimento não atinge ou penetra o que é imutável
e permanente, isto é, a essência das coisas, e por isso mesmo não merece o nome de ciência, mas apenas de
opinião [δόξα – doxa], pois carece de necessidade objetiva, clareza. certeza. No entanto, serve para excitar,
dirigir e concentrar a razão (que é a faculdade superior da alma) nas idéias que preexistem no espírito,
embora adormecidas e em estado latente. A intuição dessas idéias, ou digamos, de seu conteúdo, que
representa a essência e a realidade verdadeira, imutável e necessária das coisas, é o que constitui a segunda
ordem do conhecimento, o conhecimento inteligível, a ciência [ἐπιστήμη – episteme]. A partir daqui é que,

111
para Platão, a ciência é uma verdadeira reminiscência das idéias ou formas inteligíveis, pré-existentes e
conhecidas de antemão, e não uma aquisição real de conhecimento ou verdades desconhecidas.

Em conclusão, e resumindo: a grande Teoria das Idéias ou Teoria das Formas de Platão, teoria que
constitui o fundo e a essência da Filosofia do discípulo de Sócrates, pode ser reduzida e condensada nos
seguintes termos: A idéia, em relação a Deus, é a Sua inteligência; em relação ao homem, é o objeto
primeiro e real do entendimento; em relação ao mundo externo e sensível, é o arquétipo, o modelo
exemplar; em relação a si mesma, é a essência das coisas; em relação à matéria, é a sua medida, sua forma,
seu princípio, sua impressão.
Se considerarmos esta Teoria das Idéias por parte de suas aplicações à teoria do conhecimento, à qual
serve de base, princípio e forma, pode ser resumida nos seguintes termos: Há dois mundos, um eterno
inteligível, imutável e insensível; outro material, produzido, mutável, visível e contingente. A estes dois
mundos objetivos correspondem quatro graus de conhecimento da parte do homem, que são:

1) a conjectura [εἰκασία – eikasía] ou imaginação, que percebe espécies ou representações de objetos


sensíveis;

2) a crença [πίστις – pístis], por meio da qual assentimos à realidade objetiva do mundo externo, e
conhecemos as coisas sensíveis, como singulares e contingentes;

3) o entendimento [διάνοια – dianóia] ou inteligência racional, por meio da qual conhecemos as idéias
ou formas na medida em que constituem e representam verdades e objetos de ordem matemática;

4) e, finalmente, a própria inteligência [νόησις – noésis], inteligência superior e intuitiva das idéias ou
formas e, principalmente, do Ser Supremo (intelligentiam quidem ad Supremus ipsum), princípio universal
dos dois mundos, ou seja, da Idéia do Bem, que é para o mundo inteligível o que o sol material é para o
mundo visível. Porque na teoria de Platão, esta Idéia do Bem é o ser dos seres, a essência superior a todas
as essências, o princípio real da verdade, da ciência e até da inteligência; em uma palavra: é o próprio Deus,
princípio e razão suficiente de todas as coisas, mas superior e diferente de todas elas. Por maiores que
sejam, acrescenta Platão, a beleza e excelência da verdade e da ciência, pode assegurar-se, sem perigo de
erro, que a Idéia do Bem é diferente delas e as sobrepõe em beleza; longe de se identificarem realmente
com o Bem, devem ser consideradas como imagens e reflexos Seus, assim como no mundo sensível a visão
e a luz não se identificam com o sol, ainda que tenham alguma analogia21 com ele, e sejam como que
derivações do astro do dia.

21
As seguintes palavras [N.T.: embora o Cardeal as dê em latim, aqui preferimos dar o texto no vernáculo], tiradas da longa
passagem em que Platão expõe e desenvolve este ponto capital da sua teoria do conhecimento humano, poderão servir ao leitor
para julgar a exatidão da nossa exposição, e também para conhecer o passo do filósofo ateniense sobre esta matéria:
“Já me ouviste, em várias ocasiões, dizer que a Idéia do Bem constitui o mais elevado conhecimento, e que na medida em que dela
participam são úteis e vantajosas a justiça e as demais virtudes. Neste momento deves saber que vou dizer-te isso mesmo, com o
acréscimo de que não a conhecemos bem e que sem isso de nada nos servirá o conhecimento de todo o resto, por mais perfeito que
seja, como inútil nos seria possuir tudo, porém, com exclusão do bem. Ou acreditas que tenha algum valor a posse do que quer que
seja, se não adquirirmos o bem? Ou conhecer tudo sem o bem, sem conhecermos nada belo nem bom?” (República, l. VI, 505a)
“Ora, o que comunica a verdade aos objetos conhecidos e ao sujeito cognoscente a faculdade de conhecer, podes afirmar que é a
Idéia do Bem; é a fonte primitiva do conhecimento e da verdade, tanto quanto estes podem ser conhecidos; mas, por mais belos
que sejam ambos, o conhecimento e a verdade, se admitires que muito mais belo é esse outro elemento – a Idéia do Bem – terás
pensado com acerto.” (508e)
“No meu modo de ver, o sol, como dirás, não somente empresta às coisas visíveis a faculdade de serem vistas, como também a
geração, o crescimento e a alimentação, muito embora ele mesmo não seja geração. O mesmo dirás dos objetos conhecidos, que
não recebem do bem apenas a faculdade de serem conhecidos, mas também lhe devem o ser e a essência, conquanto o bem não
seja essência, senão algo que excede de muito a essência, em poder e dignidade.” (509b)
Platão continua expondo e aplicando os quatro modos de conhecimento que mencionamos, e conclui nos seguintes termos: “Agora,
para essas quatro seções, admite outras tantas operações do espírito: [4] inteligência, para a mais elevada; [3] entendimento, para a
que se lhe segue; à terceira atribuirás a [2] crença, e à última a [1] conjectura, e as distribui segundo o critério de que quanto mais
participar cada uma delas da verdade, tanto maior evidência alcançará.” (511e)
112
É digno de nota aqui que, como já Ιδεα
indicamos acima, o pensamento de
Fédon
Platão sobre a teoria do
“Se a alma é imortal, não é verdade que ela existia antes de nascer?
conhecimento, ou pelo menos sua E se a alma existia antes de nascer, não é verdade que ela existia no
maneira de se expressar, oferece certa mundo transcendental das idéias [υπερκόσμο των ιδεών]? E se a
confusão e ambiguidade. Há alma existia no mundo transcendental das ofos, não é verdade que ela
passagens em suas obras em que os conhecia as idéias antes de nascer? E se a alma conhecia as idéias antes
sentidos externos, a memória, o senso de nascer, não é verdade que o conhecimento humano é uma forma de
comum, a reminiscência e a fantasia recordação (reminiscência) das idéias que a alma já conheceu antes de
aparecem como tantos modos e nascer?” (Fedon, 75d-e)
faculdades de conhecimento, e há
também outras em que se apresentam Fedro
de uma forma mais ou menos “O conhecimento que se adquire por meio da razão e da reflexão é
menos perfeito do que o conhecimento das idéias em si mesmas
diferente daquela já indicada as
(intelligibile secundum). O conhecimento das idéias em si mesmas é o
funções, o alcance e o objetos da [1]
conhecimento mais perfeito e mais verdadeiro (intelligibile primum)”
conjectura ou imaginação, da [2] (Fedro, 250d)
crença [que é, no sentido mais
próprio, a] opinião [δόξα], do [3] Timeu
entendimento ou cogitatio22 e do [4] “As idéias são a realidade última e são mais reais do que as coisas
intellectus ou ciência intelectual. que vemos no mundo sensível. As coisas que vemos no mundo sensível
Pode-se também alegar, em são apenas cópias imperfeitas das idéias no mundo transcendental
confirmação do que foi dito, a [υπερκόσμο των ιδεών]. O conhecimento que adquirimos por meio
doutrina que Platão expõe no diálogo da razão e da reflexão (intelligibile secundum) é derivado das idéias no
Teeteto acerca do conhecimento mundo transcendental, mas é menos perfeito do que o conhecimento
das idéias em si mesmas (intelligibile primum)” (Timeu, 51a-b).
humano, doutrina que, embora
coincida no fundo com a teoria acima
República
exposta, não deixa de oferecer alguns
“A inteligência [νοῦς] é a faculdade que apreende o ser [ὄντος
pontos de divergência daquela e ἐπιστήμη], e o ser é composto de duas partes, a que é inteligível
algumas fases especiais do [νοητόν] e a que é visível [αἰσθητόν]. A inteligível é a que é sempre
conhecimento. O discípulo de a mesma, e a visível é a que nunca é a mesma. A inteligível é a que é
Sócrates começa por distinguir duas objeto da ciência [ἐπιστήμης], e a visível é objeto da opinião [δόξης].
ordens ou gêneros de ser objeto A inteligível é a que é sempre verdadeira [ἀληθές], e a visível é a que
possível do conhecimento: um é verdadeira às vezes e falsa [ψευδές] às vezes. A inteligível é a que é
inteligível, imutável e incorpóreo; conhecida pela razão [λόγῳ], e a visível [αἰσθητὸν] é a que é
outro sensível, corpóreo e mutável. A conhecida pelos sentidos. A inteligível é a que é objeto da inteligência
percepção ou conhecimento do [νοήσεως], e a visível é objeto da visão. A inteligível é a que é
conhecida por meio das idéias [ἰδέαις], e a visível é conhecida por
primeiro, considerada essa percepção
meio das coisas sensíveis” (República, 476b-c)
em geral, chama-se inteligência
[ἀληθείας – aletheia], e é função
própria e exclusiva da razão, assim como a percepção do segundo pertence aos sentidos, e é chamada em
geral opinião [δόξα – dóxa; opinio).
No entanto, o ser inteligível e imutável que constitui o objeto próprio da razão é de duas espécies, a
saber: o intelligibile primum, que compreende e abrange as idéias divinas, as inteligências superiores e as
almas humanas; e o intelligibile secundum, que abrange e contém os números e figuras matemáticas, pois
esses objetos, embora incorpóreos – e, nesse sentido, pertencentes à ordem dos seres-objetos inteligíveis –

22
Assim vemos que no Teeteto fala do [3] entendimento (dianóia – cogitatio) e da [2] opinião (dóxa – opinio) em sentido diverso
do indicado no texto, chamando ou definindo o entendimento como “um discurso [λόγον – sermonem] em que a própria alma
volve sobre si mesma acerca das coisas que considera” (189d). E acrescenta em seguida: “Pois parece-me que a alma, por meio do
pensamento [διανοίᾳ – cogitationem], não faz nada além de discutir consigo mesma, perguntando, respondendo, afirmando e
negando. E quando, depois de ter definido e percebido a mesma coisa, afirma, sem vagar, mais lentamente ou mais rapidamente, é
essa mesma opinião [δόξαν] que consideramos. Por isso, chamo de falar ou opinar, e a opinião é um discurso não dirigido a outro,
nem com voz, mas com silêncio e para si mesmo.” (189e)
113
Santo Tomás explica apresentam certa inferioridade em
relação ao conteúdo do intelligibile
O que é idéia?
“Idéia”, em grego, é o que se diz em latim “forma”. Por idéias,
primum, porque estão sujeitos à
portanto, se entendem as formas de todas as coisas que existem fora divisão. A percepção e o
das coisas mesmas. Ora, a forma de uma coisa qualquer, que existe fora conhecimento do intelligibile
dela, pode ter duas funções: (A) ou é o modelo daquilo do qual ela se primum, ou melhor, das essências
diz ser a forma, (B) ou é o princípio de conhecimento de si mesma, no contidas nele, são chamados de
sentido de que as formas dos cognoscíveis estão naquele que conhece. inteligência ou sabedoria intelectual
(S. Th. I q. 15 a.1 co.) (noésis): a percepção das essências
matemáticas que constituem o
Mas, afinal, as idéias existem? intelligibile secundum tem como
Em qualquer dos dois sentidos é necessário afirmar que existem
nome próprio cogitatio intellectualis
idéias. Eis como prová-lo: Em todas as coisas que não são fruto do
(dianóia). A ordem sensível, como
acaso, é necessário que a forma seja o fim de toda geração. Ora, o
agente não agiria em vista da forma, se não tivesse em si a semelhança
objeto-possível de conhecimento,
dessa forma. O que pode acontecer de duas maneiras. Em certos também se divide em dois, que são: o
agentes, a forma da coisa a fazer preexiste segundo seu ser natural; é o sensibile primum e o sensibile
caso dos que agem por natureza, como o homem gera o homem e o secundum. Pertencem ao primeiro
fogo produz o fogo. Em outros casos, essa forma preexiste segundo o todos os corpos com suas
ser inteligível, como nos que agem pelo intelecto; é o caso da propriedades e acidentes, e sua
semelhança da casa na mente do arquiteto. E esta semelhança pode ser percepção ou conhecimento é
chamada a idéia da casa, pois o artista pretende assemelhar a casa à chamado de crença (pístis):
forma que em sua mente concebeu. Mas, como o mundo não é obra do
pertencem ao segundo as
acaso, mas foi feito por Deus que age por seu intelecto, é necessário
representações, aparências e imagens
que na mente divina exista uma forma, a cuja semelhança o mundo foi
feito. E é nisto que consiste a razão de idéia. (S. Th. I q. 15 a.1 co.) dos corpos, e sua percepção recebe o
Platão afirmava as idéias como princípios do conhecimento das nome de imaginação (eikasía).
coisas e de sua geração. (S. Th. I q. 15 a.3 co.) Ao comparar e relacionar esta
[Diz S. Agostinho que] as idéias são como as formas primeiras ou teoria, ou melhor, esta fase da teoria
as razões permanentes e imutáveis das coisas. Elas não são formadas, platônica do conhecimento com a
são eternas e sempre as mesmas, e a inteligência divina as contém. Por anteriormente exposta, é possível
outro lado, embora não comecem nem acabem, é segundo elas que formar uma idéia relativamente exata
dizemos que é formado tudo o que pode começar e terminar e tudo o e completa da concepção do filósofo
que começa e acaba. (S. Th. I q. 15 a.2 sed contra)
ateniense sobre a origem, processo e
[Logo,] as idéias são razões existentes na mente divina, como
natureza do conhecimento humano. E
mostra Agostinho. (S. Th. I q. 15 a.3 sed contra)
Idéias são as formas exemplares existentes na mente divina. (S. Th. também não se deve esquecer, para
I q. 44 a.3 co.) contribuir para reconhecer e fixar o
sentido desta teoria do conhecimento,
que Platão costuma apresentar a razão
como faculdade e percepção
intermediária entre a pura inteligência
(intellectus, sapientia) – enquanto percepção intuitiva e imediata das idéias, das coisas divinas – e a opinião
– enquanto faculdade e conhecimento das coisas inferiores, incluindo nelas não apenas as coisas sensíveis,
mas também as matemáticas. Marsilio Ficino, ao expor e desenvolver esta doutrina de Platão, supõe, não
sem fundamento, que sua verdadeira intenção é ensinar também que a razão, quando se converte e se aplica
às coisas inferiores, participa de sua imperfeição e dos erros que a opinião implica; e que, pelo contrário,
torna-se participante das coisas divinas e de sua percepção cognitiva quando se converte às coisas superiores
e à inteligência ou mente, ou seja, à parte suprema e como que divina da alma, sede da sabedoria ou ciência
propriamente dita, enquanto a razão é a sede da reminiscência: Quoties (ratio) ad inferiora porrigitur,
opinionis repletur erroribus et divina cogitare desistit. Cum vero ad mentem sui ducem convertitur,
divinorum cognitionem haurit. Quam proprio nomine in mente sapientiam, in ratione reminiscentiam Plato
nuncupat.

114
Tudo isso em vista, podemos resumir e simplificar a teoria de Platão nos seguintes termos:

a) o objeto geral próprio do conhecimento humano enquanto conhecimento científico das coisas em si,
conhecimento perfeito, real e possuidor da verdade, é o mundo suprassensível das idéias, um mundo
permanente, eterno e imutável, assim como o são as essências das coisas contidas, ou melhor dito,
identificadas com as idéias.

b) o objeto geral próprio do conhecimento humano enquanto conhecimento


inseguro, mutável e imperfeito, é o mundo sensível, o mundo dos corpos singulares,
um mundo contingente, variável e imperfeito, assim como são os elementos ou seres
que o compõem.

c) ao mundo suprassensível das idéias como objeto cognoscível, corresponde como


faculdade cognoscente no homem a inteligência, e ao mundo sensível como objeto
cognoscível corresponde, por sua vez, a opinião como faculdade cognoscente. Mas em
ambas devem ser distintos dois graus ou manifestações; porque a inteligência, ou é o conhecimento superior
das idéias como tais e como essências das coisas em si mesmas e em suas relações com o mundo sensível
e inferior, e então é chamada, ora mente, ora sabedoria, ora inteligência simplesmente; ou é o conhecimento
das idéias que constituem o mundo e as verdades da ordem matemática, e então é chamada razão, e algumas
vezes pensamento ou ciência (cogitatio, scientia). Por sua vez, a opinião, na medida em que é percepção e
assentimento à existência dos objetos sensíveis singulares, é chamada de fé ou crença; mas na medida em
que é percepção das representações, imagens, sombras ou espécies desses objetos, recebe o nome de
representação, que alguns chamam de imaginação e outros de conjectura.
Em harmonia com essas indicações, pode-se formar o seguinte esquema da teoria platônica:

A) Objetos
Mundo Inteligível Mundo Sensível
Idéias Matemática Corpos Imagens
B) Formas de Conhecimento
Ciência (episteme) Opinião (doxa)
inteligência entendimento crença conjectura
(noésis) (dianóia) (pístis) (eikasía)

Conclui-se, a partir do exposto até aqui, que na teoria de Platão, o conhecimento humano compreende
os seguintes quatro graus ou modos, procedendo de baixo para cima: [1] percepção das imagens dos corpos
singulares (eikasía – representação; conjetura); [2] percepção ou conhecimento dos corpos como coisas ou
existências singulares e contingentes (pístis – fé, crença); [3] conhecimento científico das essências e
verdades matemáticas (dianóia – ratio, cogitatio); [4] conhecimento das idéias como essência das coisas,
de suas relações mútuas entre si e com a Idéia do Bem, princípio e causa das demais, e que é o próprio Deus
ou Ser Supremo (noésis – intelligentia, sapientia).
Para que uma teoria do conhecimento humano seja completa, não basta apenas apontar o objeto e o
sujeito ou as formas do mesmo, mas também é necessário apontar e explicar a origem e o processo ou
geração do mesmo, e principalmente a transição da ordem sensível e contingente para a ordem inteligível
e necessária, que representa o objeto e o terreno próprio da ciência. Colocado diante desta última fase do
problema do conhecimento, Platão não encontra modo de resolvê-lo senão apelando para a hipótese da
preexistência das almas. As coisas sensíveis que constituem o mundo visível, e que são o primeiro termo
ou objeto de nossa atividade, nem contêm a essência das coisas, nem menos ainda as condições de
imutabilidade, certeza, evidência e necessidade que envolve a verdade; são como imagens distantes e
obscuras, meras sombras das idéias, e por isso impotentes e incapazes de nos colocar em posse delas e da
verdade. Mas ainda que impotentes por si só para fornecer a percepção das idéias e da verdade em si, os
objetos sensíveis excitam e provocam a alma a fixar sua atenção nas idéias, o que consegue concentrando-
115
se em si mesma e abstraindo-se ou separando-se do mundo externo. E se a alma, ao se concentrar em si
mesma, descobre e conhece as idéias cuja sombra distante e obscura havia vislumbrado nos objetos
sensíveis, é porque essas idéias existem no fundo da alma, embora obliteradas e como que sepultadas no
esquecimento e nas sombras. Tudo isso só pode ser concebido e explicado admitindo que as almas humanas,
antes de se unirem ao corpo, existiram e fizeram parte do mundo inteligível, e viveram em comunicação
direta e imediata com as idéias; a mesma que levaram consigo ao se unirem ao corpo, e que em virtude
dessa união ficaram como que sepultadas, obscurecidas e esquecidas. Portanto, na realidade, o processo de
geração e de origem imediata da ciência no homem é um processo de reminiscência. A ciência não é
adquirida; é reproduzida e lembrada: Discere est reminisci (η ανθρώπινη γνώση είναι μια μορφή
ανάμνησης των ιδεών: Fédon 75e)

Apêndice 2 – Alegoria da Caverna


A República (514a-517c)23

Agora imagine a nossa natureza, segundo o grau de educação que ela recebeu ou não, de acordo com o
quadro que vou fazer. Imagine, pois, homens que vivem em uma morada subterrânea em forma de caverna.
A entrada se abre para a luz em toda a largura da fachada. Os homens estão no interior desde a infância,
acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, de modo que não podem mudar de lugar nem voltar a cabeça
para ver algo que não esteja diante deles. A luz lhes vem de um fogo que queima por trás deles, ao longe,
no alto. Entre os prisioneiros e o fogo, há um caminho que sobe. Imagine que esse caminho é cortado por
um pequeno muro, semelhante ao tapume que os exibidores de marionetes dispõem entre eles e o público,
acima do qual manobram as marionetes e apresentam o espetáculo.

23
A Republica, 514a-517c. Tradução de Lucy Magalhães. In: MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Filosofia: dos Pré-
socráticos a Wittgenstein. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. [N.T.]
116
Então, ao longo desse pequeno muro, imagine homens que carregam todo o tipo de objetos fabricados,
ultrapassando a altura do muro; estátuas de homens, figuras de animais, de pedra, madeira ou qualquer
outro material. Provavelmente, entre os carregadores que desfilam ao longo do muro, alguns falam, outros
se calam.
Eles são semelhantes a nós. Primeiro, pensas que, na situação deles, eles tenham visto algo mais do que
as sombras de si mesmos e dos vizinhos que o fogo projeta na parede da caverna à sua frente? Não acontece
o mesmo com os objetos que desfilam?
Então, se eles pudessem conversar, não acha que, nomeando as sombras que vêem, pensariam nomear
seres reais? E se, além disso, houvesse um eco vindo da parede diante deles, quando um dos que passam ao
longo do pequeno muro falasse, não acha que eles tomariam essa voz pela da sombra que desfila à sua
frente?
Assim sendo, os homens que estão nessas condições não poderiam considerar nada como verdadeiro, a
não ser as sombras dos objetos fabricados.
Veja agora o que aconteceria se eles fossem libertados de suas correntes e curados de sua desrazão. Tudo
não aconteceria naturalmente como vou dizer? Se um desses homens fosse solto, forçado subitamente a
levantar-se, a virar a cabeça, a andar, a olhar para o lado da luz, todos esses movimentos o fariam sofrer;
ele ficaria ofuscado e não poderia distinguir os objetos, dos quais via apenas as sombras anteriormente. Na
tua opinião, o que ele poderia responder se lhe dissessem que, antes, ele só via coisas sem consistência, que
agora ele está mais perto da realidade, voltado para objetos mais reais, e que está vendo melhor? O que ele
responderia se lhe designassem cada um dos objetos que desfilam, obrigando-o com perguntas, a dizer o
que são? Não acha que ele ficaria embaraçado e que as sombras que ele via antes lhe pareceriam mais
verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora?
E se o forçassem a olhar para a própria luz, não achas que os olhos lhe doeriam, que ele viraria as costas
e voltaria para as coisas que pode olhar e que as consideraria verdadeiramente mais nítidas do que as coisas
que lhe mostram?
E se o tirarem de lá à força, se o fizessem subir o íngreme caminho montanhoso, se não o largassem até
arrastá-lo para a luz do sol, ele não sofreria e se irritaria ao ser assim empurrado para fora? E, chegando à
luz, com os olhos ofuscados pelo brilho, não seria capaz de ver nenhum desses objetos, que nós afirmamos
agora serem verdadeiros.
É preciso que ele se habitue, para que possa ver as coisas do alto. Primeiro, ele distinguirá mais
facilmente as sombras, depois, as imagens dos homens e dos outros objetos refletidas na água, depois os
próprios objetos. Em segundo lugar, durante a noite, ele poderá contemplar as constelações e o próprio céu,
e voltar o olhar para a luz dos astros e da lua mais facilmente que durante o dia para o sol e para a luz do
sol.
Finalmente, ele poderá contemplar o sol, não o seu reflexo nas águas ou em outra superfície lisa, mas o
próprio sol, no lugar do sol, o sol tal como é.
Depois disso, poderá raciocinar a respeito do sol, concluir que é ele que produz as estações e os anos,
que governa tudo no mundo visível, e que é, de algum modo a causa de tudo o que ele e seus companheiros
viam na caverna.
Nesse momento, se ele se lembrar de sua primeira morada, da ciência que ali se possuía e de seus antigos
companheiros, não acha que ficaria feliz com a mudança e teria pena deles?
Quanto às honras e louvores que eles se atribuíam mutuamente outrora, quanto às recompensas
concedidas àquele que fosse dotado de uma visão mais aguda para discernir a passagem das sombras na
parede e de uma memória mais fiel para se lembrar com exatidão daquelas que precedem certas outras ou
que lhes sucedem, as que vêm juntas, e que, por isso mesmo, era o mais hábil para conjeturar a que viria
depois, acha que nosso homem teria inveja dele, que as honras e a confiança assim adquiridas entre os
companheiros lhe dariam inveja? Ele não pensaria antes, como o herói de Homero, que mais vale “viver
como escravo de um lavrador” e suportar qualquer provação do que voltar à visão ilusória da caverna e
viver como se vive lá?
“Concordo contigo” – responde Glauco – “Ele aceitaria qualquer provação para não viver como se vive
lá”.
117
Reflita ainda nisto: suponha que esse homem volte à caverna e retome o seu antigo lugar. Desta vez,
não seria pelas trevas que ele teria os olhos ofuscados, ao vir diretamente do sol?
E se ele tivesse que emitir de novo um juízo sobre as sombras e entrar em competição com os prisioneiros
que continuaram acorrentados, enquanto sua vista ainda está confusa, seus olhos ainda não se
recompuseram, enquanto lhe deram um tempo curto demais para acostumar-se com a escuridão, ele não
ficaria ridículo? Os prisioneiros não diriam que, depois de ter ido até o alto, voltou com a vista perdida, que
não vale mesmo a pena subir até lá? E se alguém tentasse retirar os seus laços, fazê-los subir, você acredita
que, se pudessem agarrá-lo e executá-lo, não o matariam?
“Sem dúvida alguma, eles o matariam” – concorda Glauco.
E agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar exatamente essa alegoria ao que dissemos anteriormente.
Devemos assimilar o mundo que apreendemos pela vista à estada na prisão, a luz do fogo que ilumina a
caverna à ação do sol. Quanto à subida e à contemplação do que há no alto, considera que se trata da
ascensão da alma até o lugar inteligível, e não te enganarás sobre minha esperança, já que desejas conhecê-
la. Deus sabe se há alguma possibilidade de que ela seja fundada sobre a verdade. Em todo o caso eis o que
me aparece tal como me aparece; nos últimos limites do mundo inteligível aparece-me a idéia do Bem, que
se percebe com dificuldade, mas que não se pode ver sem concluir que ela é a causa de tudo o que há de
reto e de belo. No mundo visível, ela gera a luz e o senhor da luz, no mundo inteligível ela própria é a
soberana que dispensa a verdade e a inteligência. Acrescento que é preciso vê-la se quer comportar-se com
sabedoria, seja na vida privada, seja na vida pública.

§ 67 Metafísica e psicologia de Platão

Deus
a) Deus é, para Platão, o ser absoluto, o bem supremo, a idéia criadora das coisas. Assim como o sol é
a origem e a razão suficiente da luz e da vida do mundo sensível, Deus é a origem e a razão suficiente do
mundo inteligível, ou das idéias, e do mundo sensível, da verdade, da razão, do bem, da perfeição que
resplandecem no primeiro, ao mesmo tempo que da ordem, da distinção, da beleza do segundo. Causa
única, suprema e todo-poderosa, Deus é o princípio, o meio e o fim das coisas na ordem física, enquanto
Ser supremo e perfeitíssimo; e na ordem moral, enquanto legislador supremo e suma justiça. No entanto,
há duas coisas que escapam à ação, e mais ainda à causalidade de Deus, e são a matéria e o mal.
matéria eterna
b) Deus é, por sua vez, o sumamente real, e neste sentido, a origem e a causa de todo bem, de toda vida,
de toda realidade, e consequentemente do mundo e dos seres que ele contém. Mas como esses seres são
cópias, imitações e como que impressões das idéias, a ação produtora de Deus pressupõe uma matéria geral,
algo capaz de receber essas impressões das idéias e a própria ação de Deus. Portanto, existe uma matéria
não produzida, eterna e independente da causalidade de Deus. Logo, o mundo é o resultado de três causas,
que são Deus, a idéia e a matéria.
No entanto, qual é a natureza dessa matéria? Neste ponto, existem as mesmas dúvidas e a mesma
obscuridade que na questão relativa à subsistência das idéias. Para alguns, a matéria de Platão é o espaço;
para outros, é o nada; para alguns, é uma entidade imperfeita, informe e puramente potencial, muito análoga
à matéria prima de Aristóteles; e, finalmente, muitos afirmam que ela deve ser concebida como uma massa
caótica, ou como que um corpo que careça de formas distintivas, opinião que é a que melhor corresponde
à teoria cosmológica de Platão, tomada em conjunto. No entanto, a verdade é que em suas obras se
encontram passagens favoráveis a todas e cada uma das opiniões indicadas; o que faz suspeitar que Platão
mesmo vacilava sobre este ponto, sendo bastante provável que não tivesse idéias claras, precisas e
constantes sobre a natureza dessa matéria. Seja como for, em todo caso resulta que:
mundo
c) conforme a cosmologia de Platão, o mundo é eterno da parte da matéria, e sua produção ou formação
por parte de Deus ocorreu em dependência e sujeição à preexistência e condições necessárias da matéria e
com subordinação às idéias como arquétipos das coisas. Essa matéria é a origem e causa do mal, e, portanto,
118
este é independente de Deus, assim como a matéria, sua causa. Logo, o mal é necessário, fatal e inevitável
no mundo: impossibile est mala penitus extirpari; nam bono oppositum aliquid esse semper, necesse est.
anima mundi
d) o mundo é único; sua figura é esférica, e em seu centro reside a alma universal, emanada de Deus,
por meio da qual vivifica, governa e anima o mundo visível, e especialmente os astros, que por essa razão
“Devemos declarar que este podem ser denominados deuses contingentes, deuses menores. Assim,
Cosmos, de fato, veio à existência o mundo é um verdadeiro animal, e um animal dotado de inteligência:
como uma Criatura Viva dotada de quocirca dicendum est hunc mundum animal esse, idque intelligens.
alma e razão, devido à providência
de Deus.” (Timeu 30b) Antes de entrar no terreno próprio da psicologia de Platão, é bom
lembrar que a teoria teológico-cosmológica dele que acabamos de expor representa seu pensamento no que
tem de mais essencial e provável. No entanto, deve-se ter em mente que aqui, como em tantas outras coisas,
o pensamento platônico está longe de ser claro, harmônico, sistemático, muito menos fixo, sendo envolvido
em frases ambíguas, confusas e bastante contraditórias. Essa confusão e ambiguidade não está ausente de
sua celebrada concepção trinitária – quer seja considerada em si mesma, quer em suas relações com a
produção e natureza do mundo. Essa “trindade” platônica, tão elogiada e comentada por aqueles que não
querem ouvir falar da Trindade cristã, às vezes se apresenta como composta do Unum, do Lógos ou razão,
e da Anima Mundi: outras vezes aparece sob a forma de Bonum, do mundo inteligível ou arquétipo, e da
mente ou forma do universo; às vezes o primeiro termo da trindade platônica é a idéia do bem, o segundo
o conjunto das outras idéias inteligíveis que procedem da do bem, e o terceiro as idéias incorporadas na
matéria, ou na medida em que formam e distinguem as essências materiais, ou, melhor dizendo, o mundo
visível como impressão múltipla ou encarnação das idéias inteligíveis. A idéia do bem aparece às vezes
como identificada com a essência divina, enquanto outras vezes aparece como o primeiro efeito ou
emanação desta. Às vezes é dito que Deus é o princípio único, a causa universal de todas as coisas, tanto
das inteligíveis e eternas quanto das sensíveis e temporais, desde a primeira até a última; enquanto outras
vezes é dito que Deus produz apenas a primeira inteligência e a alma universal, que por sua vez produzem
as outras coisas inferiores.
Daí as contradições, disputas e diversidade de sentidos e opiniões que reinaram em todos os tempos
entre os discípulos de Platão e entre os admiradores mais entusiastas de sua concepção “trinitária”. Em todo
caso, essa concepção pouco ou nada pode ter em comum com a concepção precisa, concreta e definida da
Trindade cristã. A Qual, mesmo prescindindo da confusão e multiplicidade de significados ou sentidos que
caracterizam a primeira, encontra-se e sempre estará colocada a uma distância imensa da “trindade”
platônica, na qual nada há que se pareça com a distinção real e hipostática das três Pessoas divinas, e muito
menos nada que se pareça com a igualdade absoluta, consubstancial e essencial das mesmas. Além disso,
que comparação pode ser feita entre a natureza, os atributos e os efeitos do Espírito Santo da Trindade cristã
e a natureza, os atributos e os efeitos da alma universal do mundo (anima mundi)? Mesmo supondo que
Platão concedesse divindade e personalidade a essa alma universal, suposição que carece de certeza e até
de probabilidade, não seria possível estabelecer termos de comparação entre essa alma universal do mundo
que envolve uma concepção panteísta do cosmos e o Espírito Santo, cuja noção própria e cujas funções são
incompatíveis com toda concepção panteísta da realidade.
Deve-se acrescentar ao que foi dito que os dois termos secundários da “trindade” platônica derivam do
primeiro ou por emanação, ou mesmo por produção, mas em nenhum caso por meio da processão puríssima
sui generis que implica a Trindade cristã; se considerarmos que Platão, assim como Fílon e os neoplatônicos
alexandrinos, aplicam nomes mitológicos e alegóricos aos termos de sua respectiva “trindade”, que acabam
sendo como que certas personificações de certas idéias abstratas, será necessário reconhecer que se trata
aqui de concepções trinitárias que oferecem apenas distantes e imperfeitas analogias com a concepção
Trinitária do Cristianismo. Se descartarmos dessas concepções a personificação alegórica de certas idéias
e das relações que naturalmente concebemos entre o ser, a inteligência e a vida, a “trindade” de Platão, a
de Fílon e a dos alexandrinos, ficam reduzidas a nada enquanto concepções de uma “trindade” divina e
pessoal. O que palpita no seio dessas concepções imprópria e erroneamente chamadas “trinitárias”, o que
constitui seu fundo real, é a afirmação de que a existência e a formação do cosmos material pressupõem a
119
existência de idéias arquetípicas, a afirmação da imanência de um mundo inteligível e ideal neste mundo
visível e corpóreo.
alma humana
e) a alma humana é uma derivação ou emanção da alma universal. Nela é preciso distinguir dois
elementos, um divino – ou seja, a alma propriamente racional e inteligente que existia antes de se unir ao
corpo – e outro elemento animal, que resulta e se manifesta na alma ou espírito em virtude de sua união
com o corpo. Em outras palavras: a alma do homem é um espírito que antes de se unir ao corpo vivia na
região pura das idéias, e que ao se unir ao corpo perde parte de sua pureza espiritual para se tornar sensitiva,
terrena e animal24. A parte superior é imortal e recupera sua perfeição ao se separar do corpo, enquanto a
inferior deixa de existir na morte. A parte superior ou racional da alma reside na cabeça: a inferior se divide
em duas partes ou manifestações, das quais a concupiscível tem seu assento no fígado e vísceras
abdominais, e a parte irascível no peito ou coração.
dualismo essencial
f) em conseqüência, a alma racional é uma substância que se move a si mesma, uma essência dotada de
faculdades afetivas e cognitivas inferiores e superiores. Todas elas, e particularmente as cognitivas, perdem
sua força e se obscurecem devido à união, ou melhor, à inserção da alma no corpo – pois não há verdadeira
união substancial entre a alma e o corpo, mas sim uma união acidental, união do motor ao móvel, união da
causa principal ao instrumento. Daí a obscuridade e insuficiência do conhecimento humano, enquanto não
se eleva e passa da sensação e da percepção das coisas sensíveis e singulares para a intuição racional e
superior das idéias. As sensações e as percepções intelectuais determinadas por elas são ou representam as
vozes confusas e as sombras reflexas e fugazes da caverna alegórica25, inventada pelo discípulo de Sócrates
para simbolizar os resultados da união da alma com o corpo na vida presente, especialmente em relação ao
conhecimento da realidade e à aquisição da ciência.
Porque a aquisição da ciência – considerada em seu sentido próprio, ou seja, como conhecimento da
realidade permanente e da essência das coisas – é uma mera reminiscência (disciplinam videlicet, nostram
nihil esse aliud quam reminiscentiam) de idéias e conhecimentos preexistentes na alma antes de sua união
com o corpo; é independente deste e dos sentidos; é como que inata e conatural à nossa alma que existia e
estava em posse da ciência antes de sua união com o corpo: et secundum hoc necesse est nos in superiori
quodam tempore, ea quorum nunc reminiscimur, didicisse.
E aqui é justo insistir no que já apontamos antes; ou seja, que o pensamento psicológico de Platão é
bastante obscuro e às vezes até contraditório. Enquanto às vezes preconiza a nobreza superior e a
espiritualidade perfeita da alma, em outras ocasiões se aproxima demais das concepções mais ou menos
materialistas das antigas escolas pré-socráticas, principalmente a de Empédocles. Depois de indicar a
opinião deste último sobre a substância da alma, que se supunha composta pelos quatro elementos, pelos
quais conhece todas as coisas, compostas por sua vez dos mesmos elementos, Aristóteles acrescenta que a
teoria de Platão coincide com a do filósofo de Agrigento, com o qual ensina que a alma é composta pelos
elementos que são os princípios das coisas, e funda o conhecimento destas por razão da proporção ou
semelhança que resulta entre os elementos da alma e os das coisas conhecidas: Eodem autem modo et Plato
in Timaeo animam facit ex elementis; cognosci enim simile simili, res autem ex principiis esse.
Acrescente-se ao que foi dito que – segundo o testemunho autorizado de Aristóteles e o que aqui
apontamos – Platão, em outros lugares de suas obras, considera a alma, ora como um número que se move,
ora como uma harmonia, ora como mero motor do corpo, sem indicar as condições desse movimento, nem
– menos ainda – a razão suficiente e a natureza da união da alma movente com o corpo movido, como
Aristóteles lhe acusa (Copulant enim et ponunt in corpus animam, nihil ultra determinantes propter quam
causam et quo modo), com razão suficiente. Não é menor a justiça com que repreende a Platão e a seus
discípulos, porque, ao se concentrarem apenas na alma, sem considerar suas verdadeiras relações com o
corpo e as condições de sua união com este, acabaram caindo nas fábulas dos pitagóricos (secundum

24
Tal é o sentido que os modernos costumam atribuir a Platão; no entanto, alguns destes modernos, e quase todos os antigos,
supõem e afirmam – talvez com maior razão e verdade – que o filósofo ateniense admitia no homem uma alma inferior e sensitiva,
e outra superior e racional.
25
[N. T.] Veja-se o texto completo do Apêndice 2, acima.
120
pythagoricas fabulas), em relação à transmigração das almas26 e à indiferença destas em se unir a todo tipo
de corpos.
Sabe-se que Platão admitia não apenas a preexistência das almas, mas também a metempsicose, e que
as vicissitudes e condição da alma nessas transmigrações estavam relacionadas com seu desapego e
elevação sobre as coisas sensíveis, com sua purificação na ordem cognitiva e afetiva, com a aquisição da
ciência e a prática das virtudes morais: voluptates quae in discendo percipiuntur studiose sectatus fuerit,
animumque decoraverit temperantia, justitia, fortitudine, libertate, veritate.

§ 68 Moral e política de Platão

“Sobre os bens e males – escreve Diógenes Laércio27 – Platão dizia que o objetivo do homem é a
semelhança com Deus; que a virtude é suficiente por si só para a felicidade; mas precisa dos bens do corpo
como instrumentos e auxiliares, como a força e a saúde; e que também precisa dos bens externos, como
riquezas, nobreza e glória; mas mesmo que essas coisas faltem, o homem sábio ou virtuoso será feliz.”
Este pensamento de que a perfeição moral do homem consiste em imitar a Deus; a importância que
Platão dava à virtude, considerando-a como o maior bem humano; suas idéias sobre a providência divina
sobre os homens, juntamente com sua teoria sobre as quatro virtudes principais como meios de alcançar a
perfeição moral tanto para o indivíduo quanto para a sociedade, são evidências da excelência da moral
platônica, considerando seus princípios e máximas gerais.
E dizemos “por parte de seus princípios gerais” porque se abandonarmos o terreno desses princípios e
“Que as mulheres devem pertencer em comum máximas gerais da ética platônica e descermos a pontos
a todos os homens, sem que nenhuma venha a particulares e suas aplicações concretas, especialmente no
formar com ninguém um casal particular. Os campo político-social, nos depararemos imediatamente
filhos, também, serão comuns e nem o pai com o homem pagão, com o filósofo que carece das luzes
conhecerá o filho, nem o filho, seu pai… Não e segurança que a moral do Evangelho e a concepção cristã
acho que se possa pôr em dúvida a imensa fornecem nessas questões. Veremos, enfim, o “divino
vantagem da comunidade das mulheres e dos Platão” ensinar que a vida doméstica deve desaparecer;
filhos, na hipótese de ser realizável; a única
que a escravidão é uma instituição baseada e legitimada na
questão capaz de levantar protestos seria a sua
própria natureza e na inferioridade de certos indivíduos;
aplicação na prática.” (República, l. V 457bc)
que as mulheres devem ser comuns; que as crianças
deformadas e doentes devem ser abandonadas, ou seja, entregues à morte; que a um homem doente e
incapacitado não devem ser fornecidos alimentos ou assistência, uma vez que ele não pode ser útil nem a
si mesmo nem aos outros homens28, e que os pais não devem intervir na educação dos filhos.
Felizmente, o valor científico e o alcance prático de máximas tão horríveis e absurdas são desacreditados
e equilibrados por máximas e doutrinas de alta moralidade, e acima de tudo, pela tendência ética geral e
pelo sentido religioso que domina e se destaca em seus escritos. Não é incomum ver que Platão, inspirado
na tradição socrática, dá importância preferencial à perfeição moral do homem, subordinando de certa
forma a perfeição científica e especulativa29, e até mesmo a Filosofia e as artes.

26
“Hi autem solum conantur dicere quale quid sit anima, de susceptivo autem corpore nihil amplius determinant; tanquam
possibile sit, secundum pythagoricas fabulas, quamlibet animam quodlibet hábeas ingredi.” De Anima, lib. I, cap. IV. 408a-412b)
27
Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. cap. VII, sec. 86
28
Quem quiser ver com que serenidade e sangue frio Platão registra essas doutrinas horríveis, só precisa ler seus livros "A
República" e "As Leis", onde tropeçará a cada passo em máximas desse tipo, fruto em parte de sua concepção socialista e comunista
do Estado. Entre outros, é notável o seguinte trecho, que condensa o pensamento de Platão e resume seu ideal político-social:
“Prima igitur civitas est respublica legesque optimae, ubi quam maxime per universam civitatem priscam illud proverbium locum
habet, quo fertur vere, amicorum omnia esse communia. Certe, in hoc praecipue virtutis erit terminus, quo nullus poni rectior
poterit, si alicubi, videlicet, aut fit istud, aut unquam fiet, ut communes mulieres sint, comunes et liberi, communis quoque omnis
pecunia, omnique studio quod proprium dicitur, undique e vita remotum sit; usque adeo ut ea etiam quae propria singulis natura
sunt, communia quodammodo fiant... Talem utique civitatem, sive Dii alicubi, sive Deorum filii una plures habitent, ita viventes
eamque servantes, omni referti gaudio vivunt. Qua propter reipublicae exemplar non alibi considerare oportet, sed hac inspecta,
talem maxime pro viribus quaerere.” (República, l. II 369a-372d)
29
Assim, ele afirma frequentemente que a verdadeira Filosofia consiste na prática da virtude, e em uma de suas cartas, depois de
elogiar Aristodoro por ter buscado e procurado aperfeiçoar em Filosofia seus costumes, acrescenta: “Etenim constantiam, fidem,
121
Platão ensina e afirma igualmente:
a) que a virtude deve ser colocada acima das riquezas e prazeres, que nem mesmo merecem o nome de
bens em comparação com ela30;

b) que não só devemos honrar a Deus e pedir sua ajuda, mas que Ele deve ser o princípio e como o
inspirador de nossas palavras (a Diis enim necesse est omnium et dictorum et consiliorum initia proficisci31),
assim como de nossos conselhos e resoluções;

c) que o homem deve se abster de fazer mal a outro homem, “É melhor sofrer injustiça do que
mesmo no caso de ter recebido injúrias e danos graves (etiam graves cometê-la, mesmo que tenhamos
sido prejudicados por outra pessoa”
injurias et acerbas fraudes32) de seu próximo; e, finalmente,
(Górgias 469c)

d) que Deus tem lugar ou faz vezes de lei para os sábios, ou seja, para os homens virtuosos, enquanto
os tolos ou viciosos não têm outra lei além do prazer: pois Deus é a lei para os sábios, mas a luxúria é a lei
para os tolos: Deus enim sapientibus est lex, stultis autem voluptas33.
Este grande pensamento, mais próprio de um filósofo cristão do que de um filósofo pagão, é um digno
corolário de outro grande pensamento não menos profundo e não menos próprio de um escritor cristão, que
lhe serve de premissa. Esse pensamento afirma que a servidão e a liberdade excessivas são coisas
detestáveis, assim como a servidão e a liberdade moderadas são coisas excelentes. No entanto, a servidão
e a liberdade serão moderadas e legítimas somente quando forem informadas e vivificadas pelo princípio
divino, e não pela vontade humana. Quando a lei que as regula, o motivo que as inspira e o fim e a intenção
do sujeito forem a lei eterna, a vontade santa e justa de Deus, e não a vontade arbitrária do homem. Quando
Deus é o princípio e o fim da servidão, ela será moderada e não degradará o homem. Mas não será o mesmo
se o princípio e o fim dessa servidão for o homem, a vontade humana: Servitus enim ac libertas immoderata
quidem pessima res est, moderata vero res optima. Moderata autem servitus est, cum Deo servitur:
immoderata, cum homibus: Deus enim sapientibus est lex, stultis autem voluptas.
De acordo com a teoria político-social de Platão, a missão do Estado é realizar a justiça, dando a cada
cidadão o que lhe é devido, ou seja, fazendo e procurando que as funções exercidas por cada membro da
sociedade estejam em relação e harmonia com suas condições, habilidades e forças individuais. A partir
daí:

O organismo social e político excogitado por nosso filósofo, segundo o qual o Estado deve conter três
elementos ou classes fundamentais:

1) os filósofos ou sábios, que representam a cabeça e a inteligência do Estado:

2) os guerreiros, que representam o coração do Estado:

3) o povo ou classe inferior, na qual se incluem os artesãos, comerciantes, agricultores e servos ou


escravos, que representam a parte inferior e animal do homem.

Aos [1] primeiros pertencem e se devem confiar o poder legislativo e executivo, ou seja, o governo do
Estado: aos [2] segundos pertence e se deve confiar a defesa do Estado por meio da guerra: aos [3] terceiros
pertence e se deve confiar o cuidado da parte econômica da sociedade, ou seja, a produção das coisas
necessárias para a manutenção dos cidadãos e a consequente conservação do Estado. Todos os bens e males

integritatem, veram philosophiam esse judico; caeteras autem et alio spectantes scientias et artes, elegantiam quandam et
venustatem si dixero, recte me dicere arbitrabor.”
30
cf. República, l. I 334a; Banquete, 204a-212a; entre outros. [N.T.]
31
cf. As Leis, l. IX 903ª. [N.T.]
32
cf. Górgias 469c. [N.T.]
33
cf. As Leis, l. X 899a-903b [N.T.]
122
do cidadão, todos os seus interesses, todas as suas habilidades e afetos, dependem absolutamente do Estado
e desaparecem diante do interesse e da vontade onipotente do Estado. Nascimento e educação, vida e morte,
casamento e família, liberdade e escravidão, artes e ciências, religião e culto, tudo deve se adaptar às
exigências do Estado, tudo deve ceder e mudar diante do império de sua vontade.
No que diz respeito às formas políticas de governo, após enumerar as três ou quatro fundamentais e
depois de indicar a natureza e as condições da tirania em que cada uma delas pode degenerar, Platão, sem
conceder preferência absoluta a nenhuma dessas formas, concede, no entanto, à monarquia e ao governo de
muito poucos (recta illa civitatis administratio vel apud unum, vel apud paucissimos certe est quaerenda)
certa preferência relativa.
A julgar por alguns textos de seus escritos, Platão considera que a legitimidade e bondade do

Fragmento da República de Platão – Ashmoleum Museum, Oxford


governo do Estado consistem na bondade, justiça e retidão dos fins por parte do
governante, de modo que a constituição correta do Estado e
a bondade ou perfeição de um governo se fundem em uma
espécie de absolutismo subjetivo e pessoal. Se o
governante é sábio, justo e prudente, e trabalha
para melhorar a condição de seus súditos, o
governo será bom e correto, sem que importe se
a submissão é voluntária ou involuntária por
parte dos súditos, ou se o governante age de
acordo com as leis escritas ou prescinde delas
(qui arte quadam imperant, volentibus an
nolentibus, secundum scripta an absque scriptis
institutisque et legibus nihil refert) e até mesmo
das instituições pátrias: se os magistrados sabem
governar bem, então diremos apenas que a
república ou Estado é o que deve ser 34 e que seu
governo é verdadeiramente correto e legítimo. Os governantes ou príncipes
não cometem falta ou pecado, qualquer que seja a coisa que façam (quidquid prudentes principes agant,
nunquam delinquunt), desde que atendam ao bem de seus súditos, e será até ridículo censurá-los quando
obrigam seus súditos a executar o que consideram justo e honesto, mesmo que seja contrário às leis e
costumes pátrios: Cum aliqui coguntur praeter patrias leges moresque facere quae justiora, meliora,
honestioraque sunt, ridiculosissimus omnium erit quisquis vim eam vituperabit.
Doutrina esta que abre caminho para que a tirania e a arbitrariedade do governante ocupem o lugar do
direito e da justiça, e parece mais própria do amigo de Dionísio de Siracusa do que do discípulo de Sócrates.
Felizmente, em outras partes de suas obras, Platão condena a tirania e a arbitrariedade; reconhece a
necessidade de leis que sirvam como norma comum e geral para os cidadãos (quod communius est, quodque
et pluribus et plurimumm conducere putant instituendum), e até mesmo confessa e afirma que não apenas
os cidadãos comuns, mas também os reis, devem estar sujeitos ao império das leis: Cum leges imperent non
solum civibus aliis, sed etiam regibus ipsis35.
Como recordação e corolário da importância excepcional que Platão concedia às habilidades e condições
pessoais do governante, pode-se considerar aquela afirmação ou sentença, registrada em vários lugares36,

34
“Necesse est igitur eam maxime a solam rectam existimare rempublicam in qua qui magistratibus funguntur, revera gubernare
sciunt, sive legibus, seu absque legibus dominentur, sive volentibus sive invitis. Quatenus enim scientia et justitia freti ex deteriori
[257] meliorem pro viribus civitatem efficiunt atque servant, eatenus rectam appellari rempublicam volumus, et in eo ipso duntaxat
definitionem rectae gubernationis consistere: caeteras vero omnes, neque legitimas nec veras dici putandum.” (O Político, c. VII
302b)
35
[N. T.] Uma vez que as leis imperam, não apenas sobre os outros cidadãos, mas também sobre os próprios reis.
36
Um dos mais explícitos e terminantes é o seguinte, tomado de uma de suas Cartas: “Qua propter veram synceramque
philosophiam celebrans adductus coactusque sum, ut praedicarem, hominum generi nullum miseriarum modum, malorumque
finem prius futurum, quam aut recte vereque philosophantium hominum genus ad civiles magistratus et publicos accessisset, aut
hi penes quos civitatum principatus essent, singulari aliquo deorum immortalium beneficio vere sancteque philosopharentur.”
123
segundo a qual a Filosofia ou a ciência superior é necessária para que as sociedades políticas sejam bem
governadas.

A República
Descida ao Pireu (327a-328b)
Céfalo: Justiça segundo os mais velhos. (328b-331d)
Prólogo
Polemarco: Justiça segundo a meia idade. (331e-336a)
Trasímaco: Justiça segundo os Sofistas. 336b-354c
Introdução Se a justiça é preferível à corrupção? (Anel de Giges) 357a-369b
Origem da Cidade 369b-376e
Parte I Educação dos Governantes 376e-412b
O Paradigma
da Cidade Constituição da Cidade 412b-427c
Justiça na Cidade 427c-445e
Unidade da Cidade 449a-471c
Parte II Governo dos Filósofos (nau dos insensatos) 471c-502c
A encarnação
do Paradigma A idéia do Bem (analogia da linha dividida) 502c-521c
Educação dos Filósofos 521c-541b
Timocracia (Discurso das Musas) 543a-550c
Parte III Oligarquia 550c-555b
O Declínio da
Cidade Demagogia 555b-562ª
Tirania 562a-576b
Conclusão Conclusão: a Justiça é melhor que a corrupção 576b-592b
Rejeição da arte mimética 595a-608b
Imortalidade da alma 608b-612a
Epílogo
Recompensa dos Justos em vida 612a-613e
Julgamento dos mortos (Mito de Er) 613e-631d

§ 69 Crítica

Do que acabamos de expor sobre a moral e política de Platão, deduz-se imediatamente que ambas
deixam muito a desejar. A primeira, devido a certas máximas detestáveis e doutrinas horríveis, e a segunda,
além de outros defeitos, por seu caráter utópico e, mais do que tudo, por suas tendências socialistas e
comunistas. De fato, a teoria política do discípulo de
No século XX, A República de Platão inspirou
Sócrates, se considerada em relação à concepção que homens como Mussolini – o qual a lia
envolve a família, a propriedade e a educação, é uma teoria frequentemente a procura de inspiração (cf.
comunista, enquanto sua concepção do organismo do Estado MOSELEY, R. Mussolini: the last 600 days of
e da ação avassaladora, onipotente e onipresente do mesmo, Il Duce, p. 39) – e Martin Luther King – o qual,
é uma concepção essencialmente socialista. ao ser perguntado quais livros levaria para
É apenas concebível, portanto, que historiadores e uma ilha deserta, respondeu que levaria A
críticos heterodoxos e ortodoxos tenham querido apresentar República e a Bíblia (certamente com as
a república de Platão como uma pré-formação e como uma censuras que seu homônimo lhe impusera).
Karl Popper, em A Sociedade Aberta e seus
espécie de modelo da República Cristã, isto é, da Igreja.
Inimigos, acusava a obra de Platão de ser
Somente obedecendo a preocupações de escola e de religião,
livremente reeditada nas “sociedades fechadas
ou inspirando-se em concepções sistemáticas, é possível e anti-liberais”.
descobrir ou apontar relações de afinidade e semelhança
entre a Igreja de Cristo, com sua moral puríssima e elevada, e a república de Platão, na qual o filho não
124
conhece a mãe e a mãe não conhece o filho; na qual ele é arrancado da autoridade paterna para ser entregue
ao Estado desde seus primeiros anos; na qual o homem não tem liberdade para seguir sua vocação e escolher
seu estado; na qual a vida familiar é sufocada e corrompida desde o início, graças à comunidade de
mulheres; na qual o infanticídio deixa de ser um crime para se tornar um dever; na qual, para dizer de uma
vez, a propriedade, a família e até a liberdade da consciência humana são anuladas, negadas e violadas.
Porque é preciso não esquecer que a absorção do indivíduo pelo Estado não se limita às relações do
homem com o finito, mas se estende às suas relações com o infinito; não se limita à esfera política, mas
abrange a esfera religiosa; não se limita aos fins e interesses temporais, civis, naturais e transitórios, mas
até mesmo os interesses e fins religiosos, sobrenaturais e eternos, são sacrificados ao Estado. E isso seria e
é suficiente para estabelecer uma distância infinita, uma verdadeira contradição, entre a república de Platão
e a Igreja de Cristo, que desde seus primeiros passos vem afirmando e defendendo com a palavra e o
exemplo a liberdade e a dignidade da consciência do homem na esfera religiosa-divina, a incompetência do
Estado para dirigir o homem a seu fim eterno, a superioridade da ordem sobrenatural e divina sobre a ordem
natural e humana. Na concepção cristã, o momento religioso representa uma esfera superior, eterna,
autônoma e infinita, à qual a esfera civil e política é subordinada; na concepção platônica, acontece
exatamente o contrário; o momento político absorve e se sobrepõe ao momento religioso; o princípio divino
fica subordinado ao princípio humano; o finito e temporal se sobrepõe ao infinito e eterno.
Na sua metafísica, e especialmente na parte que chamamos de teodicéia, Platão alcança uma altura que
nenhum filósofo anterior havia alcançado. No entanto, quando se presta atenção ao fundo das coisas e se
examinam suas doutrinas e afirmações concretas, observa-se que seu conceito divino, embora continue
sendo elevado e até extraordinário para um filósofo gentio, é desfigurado por idéias que diminuem sua
importância científica, como a existência do Demiurgo, ou ser intermediário entre Deus e o mundo, e, acima
de tudo, a eternidade da matéria. Além disso, há confusão e obscuridade na explicação da verdadeira
natureza do Demiurgo e da matéria eterna, assim como do modo de existência das idéias, que às vezes
aparecem como tipos existentes na mente divina e outras vezes como substâncias subsistentes em si mesmas
e por si mesmas; às vezes aparecem superiores a Deus e independentes, enquanto outras vezes aparecem
subordinadas ao seu poder e vontade.
A mesma observação pode ser feita em relação à psicologia platônica. Sublime e verdadeiramente
filosófica quando proclama a espiritualidade da alma, e quando demonstra sua imortalidade, reconhece sua
origem divina e coloca a essência da ciência e a posse da verdade no conhecimento do necessário, do
imutável, do eterno da idéia, essa mesma psicologia decai, degenera e perde sua elevação quando reduz a
ciência a uma mera reminiscência, quando fala da preexistência das almas e da metempsicose, e de sua
união acidental com o corpo, e de suas purificações e ascensões. Assim, com o tempo, os maniqueus, os
gnósticos e os filósofos alexandrinos buscarão e encontrarão o germe de suas respectivas teorias nas teorias
cosmológicas, teológicas e psicológicas de Platão.
Em suma: o caráter dominante, bem como o vício radical da Filosofia platônica, é o dualismo absoluto
e irredutível. Dualismo cosmológico entre o mundo inteligível e o mundo visível: dualismo teológico entre
Deus e a matéria: dualismo psicológico entre a alma e o corpo no homem. Platão, não só não conseguiu
resolver em superior unidade os dois primeiros dualismos por meio do conceito da criação e da teoria das
idéias divinas, no sentido profundo que a Filosofia cristã ensina, mas também não conseguiu resolver o
dualismo psicológico em unidade de essência e de pessoa, como Aristóteles conseguiu por meio de sua
teoria sobre a geração e a forma substancial.
Não é necessário advertir que outro das características principais da Filosofia platônica é seu certo
idealismo; porque isso está presente no fundo de sua teoria das idéias e também em sua teoria do
conhecimento. A falta de importância que é dada aos objetos externos em relação à origem e constituição
da ciência; a influência nula e até mesmo prejudicial dos sentidos e sensações no desenvolvimento e
conhecimento da verdade; a teoria da reminiscência; as idéias inatas e a subsistência das idéias com sua
independência e anterioridade em relação ao mundo, tudo isso gravita e se precipita em direção às correntes
idealistas. Para Platão, a Filosofia é a ciência das idéias, é a ciência das intuições a priori; nela, os fatos
sensíveis, os seres individuais, a observação e a experiência não significam nada. Daí também suas
afinidades matemáticas e sua predileção pela geometria, pois esta, assim como a Filosofia de Platão,
125
constrói seu edifício científico com base nas idéias de linha, triângulo, círculo, etc., idéias abstratas e
independentes da matéria e suas transformações, embora a matéria ofereça como reflexo, cópia e
participação dessas figuras ideais.
No entanto, deve-se ter em mente que o idealismo de Platão é um idealismo sui generis, que se parece
muito pouco com o idealismo da Filosofia moderna; enquanto este é geralmente subjetivo e cético, o
idealismo de Platão é um idealismo que tem muito de objetivo e dogmático. As idéias de Platão não são
resultado nem meras modificações das faculdades de conhecimento sem conteúdo real e objetivo, como
supõem alguns idealistas modernos, mas são essencialmente objetivas e subsistentes. As idéias de Platão
também não são as mônadas originárias e primitivas de Leibnitz, dotadas de representação e pensamento,
mas, pelo contrário, são os objetos do pensamento, que, enquanto é pensamento puro, conhecimento
intelectual, em quanto e porque participa da realidade ou essência das idéias, e entra em contato com elas.
O idealismo, enfim, de Platão, não exclui a realidade objetiva do mundo externo nem sua cognoscibilidade,
por mais que uma e outra sejam inferiores às das idéias, e dista muito, portanto, do idealismo subjetivo de
Fichte, que reduz o mundo externo a um fenômeno da consciência.
Além disso, e com um pouco de reflexão, notáveis analogias e certa afinidade entre Platão e Kant são
descobertas em relação à teoria do conhecimento. Ambos concordam em negar aos sentidos a percepção
ou conhecimento da realidade objetiva dos corpos, limitando sua esfera às transformações e modificações
transitórias dos mesmos. Ambos afirmam que as idéias ou conceitos puros da ordem inteligível não
dependem nem menos têm sua origem nas sensações.
Se Platão reconhece que os sentidos fornecem ao homem apenas o conhecimento dos acidentes externos,
do fluxo e redução dos fenômenos do mundo material, mas não sua realidade e substância, Kant reconhece,
por sua vez, que os sentidos nos fornecem o conhecimento ou intuição fenomênica do mundo externo, mas
não o conhecimento de sua realidade objetiva, de sua substância, do númeno. Se Platão explica a
possibilidade do conhecimento intelectual por meio das idéias inatas, Kant explica essa mesma
possibilidade por meio de formas subjetivas e de noções ou conceitos a priori, que equivalem na realidade
a idéias inatas. Platão e Kant se separam apenas quando se trata de determinar o valor objetivo dessas idéias,
valor que o primeiro reconhece e o segundo nega, derrubando com essa negação a existência e até mesmo
a possibilidade da ciência. Não é necessário advertir que a vantagem aqui está do lado do filósofo ateniense,
que soube deter-se nos umbrais do ceticismo, umbrais que o filósofo de Königsberg atravessou, depois de
percorrer em companhia, ou se quiser, em busca de Platão, o terreno do idealismo. É verdade que o filósofo
alemão é mais consequente neste ponto, porque o ceticismo é consequência natural e lógica do idealismo.
Já deixamos claro que Platão, embora tenha sido discípulo de Sócrates, não foi apenas discípulo de
Sócrates, mas também pode ser considerado discípulo de Heráclito, dos pitagóricos, dos eleatas e até dos
sacerdotes do Egito e do Oriente. A Filosofia de Platão abrange horizontes muito mais amplos do que os
horizontes estreitos e parciais da Filosofia socrática, que se limitava, como vimos, a um ensaio de moral e
algumas noções psicológico-teológicas e políticas, enquanto na Filosofia platônica entram também, e em
proporções mais ou menos notáveis, a ontologia, a teodicéia, a dialética, as ciências político-sociais e as
matemáticas. Para as escolas anteriores a Sócrates, só existia a Filosofia do objeto; para Sócrates, mal existe
mais do que a ciência do sujeito como ente moral; em Platão e com Platão, a Filosofia entra em posse do
objeto e do sujeito simultaneamente, e este último é discutido e estudado em suas diferentes fases e em suas
relações múltiplas e complexas.

126
§ 70 Discípulos e sucessores de Platão

Deixando de lado o fundador da escola peripatética, principal discípulo de Platão, os sucessores deste
na antiga Academia, e antes que nascessem a Academia média e a nova, das quais falaremos mais adiante,
foram os seguintes:

a) Espeusipo (Σπεύσιππος), sobrinho e sucessor imediato de Platão, que dirigiu a Academia desde o
ano 347 a.C. até o ano de 339, que foi o de sua morte.
Segundo Sexto Empírico, ele admitia como critério de verdade, além da razão para as coisas inteligíveis,
os sentidos para as coisas sensíveis, o que o afastava um pouco e moderava a doutrina de seu mestre. No
entanto, o caráter principal da doutrina de Espeusipo é a direção pitagórica que ele deu à Filosofia de seu
mestre, introduzindo nela, ou pelo menos desenvolvendo a idéia pitagórica da emanação, e fazendo
frequentes aplicações da teoria dos números à Filosofia platônica. A julgar por alguns trechos de Aristóteles,
Espeusipo distorce a doutrina de seu mestre em outro ponto de maior importância, opinando que a bondade
e a perfeição são atributos próprios das coisas produzidas, mais do que de Deus ou do princípio supremo
do mundo37, afirmação que está em harmonia com a teoria que lhe atribuem o próprio Aristóteles e outros
autores, segundo a qual, a origem e produção das coisas
se verifica ab imperfecto ad perfectum, e não vice-

Academia de Platão – Mosaico, Pompéia


versa, como ensinava seu mestre Platão.
Por outro lado, é difícil conhecer com precisão as
opiniões específicas de Espeusipo, uma vez que não
temos suas obras, apesar de terem sido muito
numerosas38, e só chegaram até nós algumas anedotas
sobre sua vida.

b) Xenócrates (Ξενοκράτης) foi o sucessor de


Espeusipo na Academia, pois quando este foi atacado
pela paralisia, mandou chamar Xenócrates para
encarregá-lo da direção da escola. Ele havia sido
condiscípulo de Espeusipo e acompanhou Platão em
suas viagens à Sicília. Era natural de Calcedônia,
homem de costumes austeros e de rosto sério, a ponto
de os ociosos e agitadores de Atenas se calarem e abrirem caminho quando ele vinha para a cidade; mas
era um pouco lento de inteligência. Por essa razão, Platão costumava dizer, referindo-se a Xenócrates e
Aristóteles: “Um precisa de óleo e o outro de freio”. Morreu em idade avançada, no ano 314 a.C.39, tendo
ensinado na Academia por vinte e cinco anos.
O que caracteriza principalmente sua doutrina é a predileção pelas fórmulas matemáticas, podendo-se
dizer que sua Filosofia representa um passo adiante nesse caminho iniciado por Espeusipo. Xenócrates
obriga a Filosofia platônica a descer de sua altura, para encerrá-la e comprimi-la em estreitas fórmulas
matemáticas, sem excluir a própria divindade. Assim, vemo-lo falar de um deus masculino e um deus
feminino, o primeiro dos quais é representado e significado pela unidade, e o segundo pela dualidade. O
deus masculino, que é o verdadeiro ou superior, Júpiter, a razão, é o número ímpar: o deus feminino, deus

37
“Dicimus itaque Deum, sempiternum optimunque vivens esse.... Quicumque vero, ut Pythagorici et Speussippus, putant,
optimum et pulcherrimum non esse in principio, eo quod plantarum quoque ac animalium principia causae quidem sunt; bonum
vero et perfectum in his esse quae ex his sunt, non recte putant.” Metafísica., lib. XII, cap. III 1072a
38
“Deixou muitos comentários – escreve Diógenes Laercio – e muitos diálogos, entre os quais um se chama Aristipo Cireneo;
outro Sobre as riquezas; outro Sobre o deleite; outro Sobre a Justiça; outro Sobre a Filosofía; outro Sobre a Amizade; outro Sobre
os Deuses; outro O Filósofo; outro A Cefalio; outro Clinomaco ou Lisias; outro O Político ou Cidadão; outro Sobre a Alma.» De
vitis, dogmat., et apot., &c., lib. IV.
39
Diógenes Laércio relata que Xenócrates foi vendido pelos atenienses por não poder pagar um imposto ou tributo, e que foi
resgatado por Demétrio Falereo. Ele acrescenta depois que “morreu à noite, tendo tropeçado em um balde, aos oitenta e oito anos
de idade”.
127
inferior, é a mãe dos outros deuses, e a alma que vivifica e anima todas as coisas. Nessas idéias, descobre-
se a influência preponderante da doutrina pitagórica, e também se descobrem os germes das emanações,
pleromas, gênios e éons da gnose e da escola de Alexandria, que apareceram séculos depois.

c) Depois de Xenócrates, Polêmon (Πολέμων), natural de Atenas, e Crates (Κράτης), originário de


Triasio, foram escolarcas, isto é, diretores da Academia. Segundo Diógenes Laércio, Polêmon costumava
dizer que “é melhor exercitar-se nas obras do que em especulações dialéticas”. Esses dois filósofos viveram
juntos na mesma casa e foram colocados no mesmo túmulo. Contemporâneo desses dois acadêmicos foi
Crantor (Κράντωρ), natural de Soli, que faleceu antes deles, mas teve como discípulo Arcesilao, fundador
da Academia Média, da qual falaremos depois.
Embora sejam poucos os historiadores de Filosofia que os mencionem, devem ser enumerados entre os
discípulos de Platão, Hermódoro e Heráclidas, este último natural de Heracléia, no Ponto; assim como
Eudoxo, natural de Gnido, e Filipo, de Opuncio, que sobressaíram em matemática e astronomia.

128
§ 71 Aristóteles

Corria o ano 384 a.C., quando, em uma colônia grega na Trácia, nasceu um dos gênios mais poderosos
que já apareceram na Terra, cujo nome brilhou e brilhará sempre na História da Filosofia. É quase
impossível falar de Filosofia e ciências sem que venha à mente e aos
lábios o nome de Aristóteles, natural de Estagira, colônia de origem
grega. Ele era filho de Nicômaco, médico e amigo de Amintas II da
Macedônia, e pertencia à ilustre família dos Asclepíades, que
remontava sua origem a Esculápio, e na qual a profissão de medicina
parecia ser hereditária e vinculada. Após a morte de seu pai, que lhe
inspirou a paixão pelas ciências naturais, Aristóteles (Ἀριστοτέλης)
foi para Atenas40, entrou na Academia e se juntou aos discípulos
de Platão, cujo ensinamento e lições ouviu por vinte anos.
Seu mestre, que logo descobriu o gênio superior e o valor
extraordinário do novo discípulo, costumava chamá-lo de
“o pensamento e a alma de sua escola”, o que não impedia
Aristóteles de adotar tendências e direções doutrinárias
diferentes das de seu mestre, meditando e preparando desde
então seus grandes trabalhos filosóficos e científicos. Talvez
baseado na oposição de doutrinas mais do que em documentos
históricos, diz-se que já na própria Academia houve certa rivalidade entre
o mestre e o discípulo. Segundo a tradição, embora não muito autorizada, diz-se que Aristóteles colocava
seu mestre em apuros por meio de questões capciosas e sutis, e que, por sua vez, Platão costumava comparar
seu discípulo com os pintinhos que lutam contra sua mãe quando se sentem fortes.
Após a morte de Platão, Aristóteles permaneceu por três anos ao lado de Hérmias, tirano ou rei de
Atarneu na Mísia, com quem teve uma amizade muito próxima, casando-se com sua irmã Pítia, de quem
teve uma filha de mesmo nome. Após a morte de Hérmias, retirou-se para Mitilene, onde logo recebeu o
convite de Filipe da Macedônia para assumir a educação de seu filho Alexandre, um convite que não honra
menos o rei da Macedônia do que o Filósofo de Estagira, e que demonstra ao mesmo tempo a justa
celebridade que o último já desfrutava em toda a Grécia e regiões adjacentes. As grandes empresas militares,
políticas e científicas realizadas ou favorecidas por seu discípulo demonstram suficientemente que
Aristóteles soube corresponder à confiança de Filipe na educação e preparação Ar
istó
tele
daquele que em poucos anos seria chamado de Alexandre Magno (isto é, se
Pla
o Grande), e que marcaria época nos anais da História. É sabido que t ão
o grande conquistador se preocupou especialmente em adquirir,
colecionar e enviar a seu antigo mestre todo tipo de
documentos, notícias, livros e objetos capazes de contribuir
para o progresso das ciências, que sem dúvida devem muito ao
amor que Aristóteles soube inspirar em seu discípulo régio.
Não lhe deveu menos sua cidade natal, Estagira, que havia
sido destruída e devastada nas guerras de Filipe, pois ele
conseguiu com o rei sua reconstrução, privilégios e distinções,
entre as quais se destaca a fundação ou estabelecimento de um
ginásio filosófico, chamado Ninfeu (Νυμφαῖον, Nymphaeum), a
enç
onde o futuro conquistador da Pérsia e da Índia ouviu as lições de Flor
-
ral
ted
Ca

40
Alguns autores supõem que, após a morte de seu pai, Aristóteles se entregou em sua juventude a uma vida de excessos e que,
tendo dissipado sua fortuna nesses excessos, foi obrigado a estabelecer um comércio de fármacos em Atenas. No entanto, não há
nenhum testemunho autêntico que confirme essa informação, que, aliás, não está em harmonia com o que sabemos sobre sua vida
e costumes.
129
Aristóteles, junto com Calístenes, Teofrasto e alguns outros, até que ele foi viver nos acampamentos para
completar sua educação militar41.
Enquanto Alexandre realizava suas grandes conquistas asiáticas, Aristóteles voltou sua atenção
novamente para Atenas, e o Liceu viu reunir-se em torno do grande Filósofo uma multidão de discípulos e
ouvintes de todos os tipos. Diz-se que sua escola recebeu a denominação de peripatética, devido ao hábito
de Aristóteles de ensinar enquanto caminhava pelas ruas arborizadas do Liceu. Não é preciso acrescentar
que o brilho e o nome do Liceu logo ofuscaram o brilho e o nome da Academia platônica e das outras
escolas filosóficas contemporâneas.
Após a morte do vencedor de Dario, o partido macedônico foi alvo de perseguição e vingança pelo
partido oposto em toda a Grécia, especialmente em Atenas. Aristóteles não conseguiu escapar dessa
perseguição. Tendo sido acusado de ateísmo por Curimedon e Demófilo, retirou-se para Cálcis, na ilha de
Eubeia, para evitar aos atenienses um segundo crime e a repetição da tragédia socrática. Pouco tempo depois,
e neste lugar de exílio voluntário, ele morreu aos sessenta e dois anos de idade, de morte natural, embora
alguns autores suponham que ele tenha sido envenenado42. Segundo a tradição, Aristóteles tinha voz fraca,
olhos pequenos, pernas finas, usava anel e tinha uma certa elegância em sua aparência. Diz-se que seu amor
pelo estudo o levou a ter a idéia de dormir com uma bola de cobre na mão, que serviria como despertador
ao cair em um copo de metal.

§ 72 Escritos de Aristóteles

Aulo Gélio escreve que Aristóteles ensinava duas espécies de doutrina, uma exotérica ou geral para todo
tipo de ouvintes, e a outra esotérica ou especial e reservada. Segundo este autor e muitos outros, nosso
Filósofo comunicava de manhã a certos discípulos privilegiados a doutrina reservada e superior; mas à tarde
as portas do Liceu eram abertas a todas as pessoas, e as explicações do mestre eram adaptadas a tal audiência.
Daí também a distribuição de seus escritos em exotéricos e esotéricos ou acroamáticos. No entanto, embora
os autores geralmente admitam essa divisão, estão longe de concordar quando se trata de aplicar essas
denominações a este ou aquele escrito, e até mesmo quando se trata de apontar o fundamento e a origem
dessa classificação. Alguns fundamentam a classificação na diferença de método: outros na natureza ou
condição da matéria que é exposta ou tratada na obra, dependendo se é mais ou menos elevada e metafísica,
mais ou menos simples e prática. Para outros, a classificação se refere ao estilo, chamando de exotéricas as
obras escritas em estilo mais claro e abundante, e acroamáticas as que oferecem um estilo mais conciso e
obscuro. Segundo alguns, ainda, todos os livros de Aristóteles são esotéricos, exceto os escritos em forma
de diálogo.
Além disso, as obras de Aristóteles são a melhor demonstração não apenas da prodigiosa atividade de
seu gênio, mas também e especialmente da admirável fecundidade e flexibilidade de seu talento
verdadeiramente enciclopédico. A lógica e a gramática, a poética e a dialética, a física e a história natural,
a astronomia e a meteorologia, a moral e a política, a sociologia e a história, a antropologia e a cosmologia,
a metafísica e a teodicéia, tudo é tratado em suas obras, e tratado profundamente e de maneira sólida, apesar
de algumas dessas ciências serem desconhecidas até seu tempo. Para qualquer um que conheça o catálogo
e a importância de suas obras43 , é inquestionável que elas são a expressão mais elevada e completa da
Filosofia e da ciência, dada a época em que floresceu.

41
Diz-se que os estagiritas, gratos pelos muitos benefícios e favores que receberam de seu conterrâneo, instituíram em sua honra
festas e jogos sob o nome de Aristotélica, que eram celebrados anualmente.
42
Não vale a pena discutir, nem mesmo mencionar, a tradição, ou melhor, a fábula, segundo a qual Aristóteles se jogou no fundo
do Euripo, desesperado por não conseguir entender e dar uma explicação para seu fluxo e refluxo.
43
As principais obras de Aristóteles que chegaram até nós são as seguintes: Perihermenias seu de interpretatione; Categoriae ou
Praedicamenta; Analytica priora; Analytica posteriora; Topicorum, oito livros; Elenchorum, dois livros: Todos esses tratados
reunidos formam o Organon de Aristóteles. Physicorum, oito livros; De Coelo, quatro livros; De generatione et corruptione, dois
livros; Meteorologicorum, quatro livros; De anima, três livros; De sensu et sensibilibus; De memoria et reminiscentia; De somno
et vigilia; De longitudine et brevitate vitae; De juventute et senectute; Metaphycorum, quatorze livros; De Xenophane, Zenone et
Gorgia; Ethica ad Nichomacum; Magna moralia; Ethica ad Eudemum; Politicorum, oito livros; Rhetoricorum ad Theodectem,
três livros; De Poetica; De Historia animalium, nove livros; De animalium incessu; De Partibus animalium, quatro livros; De
130
Infelizmente, nem todas as suas obras chegaram até nós, e a autenticidade daquelas que possuímos não
está livre de dúvidas quanto à integridade e disposição do texto. Como observa com razão De Gerando, o
texto de suas obras sofreu muitas alterações, e a ordem das idéias experimentou notáveis e evidentes
transtornos. Daí a dificuldade de penetrar seu verdadeiro pensamento sobre muitas questões, dificuldade
que aumenta devido à obscuridade de sua linguagem em algumas ocasiões e à excessiva concisão de seu
estilo. Além disso, as novas pesquisas que ele realizou e as novas ciências que criou de certa forma o
obrigaram a inventar e usar novas palavras; pois, como diz Cícero, imponenda nova, novis rebus nomina;
e é claro que nem sempre é fácil determinar e fixar o verdadeiro sentido dessas novas palavras e das
vicissitudes que sofreram ao longo de vinte e tantos séculos.
A desigualdade, lacunas e alterações observadas nos escritos do filósofo de Estagira teriam uma
explicação histórica fácil, se for completamente verdadeiro o que Estrabão e outros autores antigos relatam
sobre as vicissitudes de seus escritos. Conta-se, de fato, que Teofrasto, que herdou esses escritos de seu
mestre, os transmitiu por herança a seu sobrinho Neleu de Scepsis, que os escondeu em um subterrâneo,
temendo que os reis de Pérgamo tentassem apoderar-se deles sem pagar seu justo valor. Depois de muitos
anos, eles foram desenterrados e vendidos. Apelicon, seu comprador, sem possuir os conhecimentos
necessários, substituiu por outros aqueles trechos que haviam se tornado ilegíveis, adicionando ao mesmo
tempo outros novos em lugar dos que faltavam, devido à grande avaria que as obras de Aristóteles sofreram
enquanto estavam enterradas. Quando Syla levou a biblioteca de Apelicon para Roma, as obras de
Aristóteles foram confiadas ao gramático Tirânio, que as corrigiu e modificou, preenchendo as lacunas que
existiam; correções e modificações que também foram feitas à sua maneira por Andrônico de Rodes44.
Poucos escritores haverá cujas obras tenham sido objeto de tantos comentários, glossas, interpretações
e exposições como Aristóteles. Os nomes de Simplicio, Alexandre de Afrodisia, Porfírio, Amônio, Temístio,
Filopono, Averróis, Alfarabi, Alberto Magno, Santo Tomás, São Boaventura, Caetano, Toledo, Domingo
Soto e muitos outros antigos e modernos demonstram a importância e consideração que as obras do filósofo
de Estagira sempre mereceram dos filósofos e sábios. Nos dias de hoje, as versões e traduções em várias
línguas das obras de Aristóteles, acompanhadas de prólogos, notas, advertências e
esclarecimentos, substituíram os antigos comentários e exposições. Entre estes últimos,
merece especial menção a realizada em Berlim, sob a direção de Bekker e Brandis,
edição das mais corretas em relação ao texto, preparada e corrigida
pelo primeiro, e não menos apreciável por parte de alguns
comentários antigos, corrigidos e
revisados pelo segundo, que
também enriqueceu esta
grande edição das obras de
Aristóteles com excelentes
escolios45.

“Sine Thoma mutus esset Aristoteles.” (Pico della Mirandola)

generatione animalium, cinco livros. E deve-se acrescentar que ignoramos vários escritos que circulam entre suas obras, mas que
são apócrifos ou de autenticidade muito duvidosa, como os seguintes: Physiognomica; De motu animalium; De mundo; De
coloribus; De spiritu; De lineis insecabilibus; De causis; De re mechanica; De insomniis; De divinatione per somnium; Rhetorica
ad Alexandrum; Parva naturalia.
Além disso, deve-se acrescentar que algumas de suas obras não chegaram até nós, sendo muito de se lamentar esta desgraça no que
diz respeito à História de 158 constituições de Estados ou repúblicas, obra curiosíssima sem dúvida e de grande importância para
conhecer e julgar o caminhar da idéia política na Antiguidade. [N.T.: Para a listagem completa das obras de Aristóteles, veja-se o
Apêndice 3.]
44
É digno de nota o silêncio que Aristóteles mantém em seus escritos acerca de seu discípulo Alexandre Magno. Em suas numerosas
obras, ele nunca o menciona, apesar de sua amizade e da ajuda e materiais que Alexandre forneceu para que Aristóteles escrevesse
seus livros. É muito possível e provável que esse silêncio obstinado seja uma resposta aos sentimentos de vingança de Aristóteles
contra seu régio discípulo, devido à morte violenta e injusta que Alexandre infligiu a seu parente e discípulo Calístenes. Se for esse
o caso, o filósofo de Estagira escolheu bem sua arma de vingança, dada a ânsia de glória e celebridade que dominava o grande
conquistador, que teria trocado parte de seus tesouros e conquistas por alguns elogios na boca e nos escritos de Aristóteles.
45
Escolio é um termo que se refere a um comentário ou nota marginal adicionada a um texto, geralmente para explicar ou esclarecer
um ponto específico. É uma observação ou explicação que é adicionada ao texto principal para fornecer mais informações ou
contexto. [N.T.]
131
Apêndice 3 – Catálogo das Obras de Aristóteles
Corpus Aristotelicum com a numeração de Bekker46

Título em português Título original grego Título em latim


Lógica – o Órganon (Όργανον)
(1a) Categorias Κατηγοριαι Categoriae
(16a) Da interpretação Περὶ ερμηνειας De Interpretatione
(24a) Primeiros Analíticos ou
Analíticos anteriores Αναλυτικων προτέρων Analytica priora
(71a) Analíticos posteriores ou
Segundos Analíticos Αναλυτικων υστερων Analytica posteriora
(100b) Tópicos Τοπικων Topica
(164a) Elencos sofísticos ou
Refutações aos sofistas Περὶ σοφιστικων ελέγχων Sophistici elenchi
Física – Filosofia da Natureza
(184a) Física Φυσικη Physica
(268a) Do céu Περὶ ουρανου De caelo
De generatione et
(314a) Da geração e da corrupção Περὶ γενεσεως και φθορας corruptione
(338a) Meteorologia Μετεωρολογικα Meteorologica
(391a) Do universo (considerada espúria) Περὶ κοσμου De mundo
(402a) Da alma Περὶ ψυχης De anima
Parva naturalia – pequenos tratados de ciências naturais
Περὶ αισθησεως και
(436a) Da sensação e do sensível αισθητων De sensu et sensibilibus
De memoria et
(449b) Da memória e reminiscência Περὶ μνημς και αναμνησεως reminiscentia
(453b) Do sono e da vigília Περὶ υπνου και εγρηγορσεως De somno et vigilia
(458b) Dos sonhos Περὶ ενυπνιων De insomniis
De divinatione per
(462b12) Da adivinhação pelo sonho Περὶ τῆς καθ'ὕπνον μαντικῆς somnum
(464b) Da longevidade e brevidade Περὶ μακροβιοτητος και De longitudine et brevitate
da vida βραχυβιοτητος vitae
Περὶ νεοτητος και γηρος. De juventute et senectute.
(467b) Da juventude e da velhice. Da Περὶ ζωης και θανατου. Περὶ De vita et morte. De
vida e da morte. Do fôlego αναπνοη respiratione
(481a) Do alento (considerada espúria) Περὶ πνευματος De spiritu
(486a) Da história dos animais Περὶ τα ζωα ιστοριαι Historia animalium
(639a) Das partes dos animais Περὶ ζωων μοριων De partibus animalium
(698a) Do movimento dos animais Περὶ ζωων κινησεως De motu animalium
(704a) Da marcha dos animais Περὶ πορειας ζωων De incessu animalium
(715a) Da geração dos animais Περὶ ζωων γενεσεως De generatione animalium
(791a) Das cores (considerada espúria) Περὶ χρωματων De coloribus
(800a) Das coisas ouvidas (considerada
espúria) Περὶ ακουστων De audibilibus
(805a) Fisiognomonia (considerada espúria) Φυσιογνωμονικα

46
[N.T] A numeração de Bekker é a forma padrão de citação do corpus aristotelicum e consiste de três coordenadas, a saber,
número da página, letra da coluna (‘a’ para a primeira coluna e ‘b’ para a segunda) e a linha (quando não é a linha inicial da coluna)
respectivamente. Assim, a título de exemplo, o Tratado “Da adivinhação pelo sonho” (462b12) encontra-se na página 462, segunda
coluna, linha 12 da edição de Bekker.
132
Das plantas (considerada espúria)
(815a) Περὶ φυτων De plantis
Das maravilhosas coisas
(830a)
ouvidas Περι θαυμασιων Mirabilibus
(considerada espúria) ακουσματων auscultationibus
(847a) Mecânica (considerada espúria) Μηχανικα Mechanica
(859a) Problemas (autenticidade disputada) Προβληματα Problemata
(968a) Das linhas indivisíveis (considerada
espúria) Περὶ ατομων γραμμων De lineis insecabilibus
(973a) Situações e nomes dos ventos Ανεμων θεσεις και Ventorum situs et
(considerada espúria) προσηγοριαι cognomina
Sobre Melisso, Xenófanes e
(974a)
Górgias Περὶ Μελισσου, Περὶ De Melisso, Xenophane,
(considerada espúria) Ξενοφανους, Περὶ Γοργιου Gorgia
Metafísica
(980a) Metafísica Τὰ μετὰ τὰ φυσικά Metaphysica
Ética
(1094a) Ética a Nicômaco Ηθικα Νικομαχεια Ethica Nicomachea
(1181a) Magna moralia (autenticidade
disputada) Ηθικα μεγαλα Magna Moralia
(1214a) Ética a Eudemo Ηθικα Ευδημεια Ethica Eudemia
(1249a) Das virtudes e vícios (considerada De virtutibus et vitiis
espúria) Περὶ αρετων και κακιων libellus
(1252a) Política Πολιτικα Politica
(1343a) Economia (autenticidade disputada) Οικονομικα Oeconomica
Retórica
Retórica ou Arte retórica
(1354a) Τέχνη ρητορική Ars Rhetorica
Retórica a Alexandre (autoria disputada –
Anaxímenes?) Ρητορική προς Αλεξανδρον Rhetorica ad Alexandrum
Poética
(1447a) Περὶ ποιητικης Poetica
Outros
Constituição de Atenas (perdida até 1890) Αθηναιων πολιτεια Atheniensium Respublica

Apêndice 4 – Traduções Siríacas de Aristóteles47


É de todos sabido que o grande Guilherme de Entre os filósofos gregos, escolheram de
Moerbecke, O.P., Arcebispo de Corinto, traduziu as
obras de Aristóteles do grego para o latim. É igualmente preferência a Aristóteles, sem dúvida porque o seu
sabido que o fez a instâncias do Doutor Comum (Fr método empírico concordava melhor com a
Wilhelmus Brabaninus Corinthiensis transtulit omnes tendência científica e positiva dos árabes do que o
libros naturalis et moralis philosophiae de graeco in
idealismo de Platão, e porque sua lógica era
latinum ad instantiam fratris Thomae: Catalogus
Stamsensis p. 62, n. 33), o qual desejava que a verdade considerada uma arma útil nas lutas diárias das
aristotélica reluzisse com clareza (procuravit quod fieret diferentes escolas teológicas.
nova translatio que sententie Aristotelis continet clarius As traduções para o árabe das obras de
veritatem: Ystoria 18, p. 252). De fato, os textos latinos
estavam eivados de gnosticismo árabe, o qual germinava,
Aristóteles, bem como das obras gregas em geral,
então, nas escolas da Cristandade. devem-se, em sua maior parte, aos estudiosos
Que eram traduzidas do árabe as obras de Aristóteles cristãos siríacos ou caldeus, especialmente os
no tempo de Santo Tomás é conhecimento comum; a nestorianos, que viveram em grande número
questão que quase nunca se põe é esta: “como chegaram
ao árabe esses textos”? como médicos na corte dos califas e que,

47
Extrato de MUNK, Mélanges de philosophie juive et arabe. p. 313-317. Tradução do aluno Songod Waoga Wilfried Konkobo e
revisada pelo professor para a matéria de História da Filosofia Antiga II, de 2019.2 [N.T.]
133
familiarizados com a literatura grega, indicaram aos árabes os
livros que lhes poderiam oferecer maior interesse. As traduções
das obras aristotélicas foram feitas, em grande parte, a partir das
traduções siríacas, uma vez que, desde o tempo do imperador
Justiniano, começaram-se a traduzir os livros gregos para o
siríaco e a se espalhar pelo Oriente a literatura helênica. Entre os
manuscritos siríacos da biblioteca imperial, há um volume (nº
161), que contém a Isagoge de Porfírio e três obras de Aristóteles,
a saber, as Categorias, Da interpretação e uma parte dos
Primeiros Analíticos. A tradução da Isagoge é atribuída a
Atanásio, monge do mosteiro de Beth-Malca, que a completou
no ano 956 dos selêucidas, ou 645 d.C. e as Categorias, ao
Metropolita Tiago de Edessa (falecido em 768 d.C.). Um
manuscrito árabe (nº 882A), que remonta ao início do século
XIII, contém todo o Órganon de Aristóteles, bem como a
Retórica, a Poética e a Isagoge de Porfírio. O trabalho deve-se a
diversos tradutores e algumas das obras trazem no título
“traduzido do siríaco”, de sorte que não pode haver qualquer
dúvida acerca da origem dessas traduções. Vê-se, de resto, pelas numerosas notas interlineares e marginais
que traz o manuscrito, que havia, desde o século X, muitas traduções diferentes das obras de Aristóteles, e
que as obras feitas às pressas sob os califas Al-Mamoun e Al-Motawackel foram posteriormente revistas,
corrigidas a partir do texto siríaco ou grego, ou até mesmo inteiramente refeitas. O livro Refutações dos
Sofistas é apresentado em nosso manuscrito em quatro traduções diferentes. Já uma breve olhada sobre o
aparato crítico deste precioso manuscrito pode nos convencer que os árabes possuíam traduções feitas com
a mais escrupulosa exatidão; e que os autores que, sem conhecer tais traduções, as chama de bárbaras e de
absurdas (cf. Vey Brucker, Hist. crit. Philos., t. III, pag. 106, 107, 149, 150) encontram-se em profundo
erro. Esses autores basearam o seu julgamento em versões latinas ruins
derivadas não do árabe, mas das versões hebraicas.
Os mais célebres dentre os primeiros tradutores árabes de Aristóteles foram
’Honéin ben-Is’hâk – médico nestoriano que viveu em Bagdá e faleceu em 873
– e seu filho Is’hâk; as traduções deste último foram mais estimadas. No século
X, Ya’hya ben-‘Adi e Isa ben-Zara fizeram novas traduções ou corrigiram as
antigas. Traduziram também os principais comentadores de Aristóteles, tais como
Porfírio, Alexandre de Afrodísia, Temisto e João Filopono. Foi por meio desses
comentadores que os árabes também se familiarizaram com a Filosofia de
Platão, cujas obras não foram todas traduzidas para o árabe ou pelo menos não
foram muito difundidas, com exceção da República, que foi comentada mais
tarde por Averróis. Talvez não tenham conseguido obter logo a Política de
Aristóteles e a substituíram pela República de Platão. É, ao menos certo, que a
Política não chegou à Espanha; mas ela existia, contudo, no Oriente, como se pode ver no post-scriptum
feito por Averróis ao fim de seu comentário à Ética e que Jourdain citou a partir de Hermann da Alemanha.
(Um autor árabe do século XIII, Djemal-Eddin al-Kafti, que escreveu um dicionário dos filósofos,
apresenta, no artigo sobre Platão, como tendo sido traduzidos para o árabe, o livro da República, as Leis e
o Timeu e, no artigo de Sócrates, o mesmo autor cita longas passagens tiradas do Críton e do Fédon.) De
qualquer forma, pode-se dizer com certeza que eles não tinham noções exatas, extraídas das fontes a não
ser da Filosofia de Aristóteles. O conhecimento das obras de Aristóteles e seus comentários logo se
espalharam por todas as escolas; todas as seitas os estudaram avidamente. “A doutrina dos filósofos – diz
o historiador Makrizi – trouxe à religião, entre os muçulmanos, os males mais funestos. A Filosofia não
servia a não ser para aumentar os erros dos heréticos e acrescentar à impiedade um excesso de impiedade”.
Vêem-se levantar entre os árabes homens de espírito superior que, nutridos pelo estudo de Aristóteles,
interpretam eles mesmos os escritos do Estagirita e desenvolvem sua doutrina. Aristóteles foi considerado
134
por eles como o filósofo por excelência; e, se é errado sustentar que todos os filósofos árabes não fizeram
mais do que seguir servilmente seus ensinamentos, ao menos é verdadeiro que ele sempre exerceu sobre
eles uma verdadeira ditadura no que concerne às formas de raciocínio e de método.
Um dos mais antigos e mais célebres comentadores árabes de Aristóteles é Abou-Yousouf-Ya’koub que
floresceu pelo século IX. ’Hasan ben-Sawar, cristão do século X, discípulo de Ya’hya ben-‘Adi escreveu
comentários onde se encontram numerosos extratos à margem do Órganon do qual falamos. Abou-Naçr al-
Farâbi, no século X, tornou-se célebre sobretudo pelos seus escritos sobre a lógica. Abou-‘Ali ibn-Sinâ, ou
Avicena, no século XI, compôs uma série de obras com o mesmo título e o mesmo plano de Aristóteles, a
quem prodigaliza louvores. O que Avicena foi para os árabes do Oriente, Averróis foi, no século XII, para
os árabes do Ocidente. Seus comentários lhe renderam uma enorme reputação e quase fizeram esquecer
seus predecessores. Nós não podemos deixar de citar uma passagem do prefácio de Averróis ao comentário
sobre a Física a fim de mostrar sua profunda veneração aos filósofos e, mais propriamente dito, aos escritos
de Aristóteles: “O autor desse livro – diz Averróis – era Aristóteles, filho de Nicômaco, o célebre filósofo
dos gregos, que compôs também outras obras que nós encontramos sobre esta ciência (a física), bem como
livros sobre a lógica e tratados sobre a metafísica. Foi ele quem renovou essas três ciências, a saber, a
lógica, a física e metafísica e é ele quem as completou. Dizemos que as renovou, porque, como outros
falaram desses assuntos, ele não deve ser considerado como iniciador dessas ciências...; E quando as obras
deste homem apareceram, os homens descartaram os livros daqueles que o precederam. Entre os livros
compostos antes dele, aqueles, quanto a essas matérias, que se encontram mais perto do método científico
são as obras de Platão, nas quais se encontra muito pouca coisa em comparação com o que se encontra nos
livros de nosso filósofo, e que são mais ou menos imperfeitas acerca desta ciência. Dizemos em seguida
que ele completou (as três ciências), porque nenhum dos que o seguiram até nosso tempo, isto é, por quase
1500 anos, conseguiu acrescentar ao que ele disse algo digno de atenção. É, pois, coisa extremamente
extraordinária e verdadeiramente maravilhosa que tudo isso esteja reunido em um único homem. Quando,
no entanto, essas coisas estão em um indivíduo, nós lhe devemos atribuir mais à existência divina que à
humana, razão pela qual os antigos a chamam de Divino” (cf. Brucker, l.c., t. III, pag. 105).

§ 73 Lógica e Psicologia de Aristóteles

É de todos sabido que a Lógica – considerada como uma ciência específica, como uma parte especial
da Filosofia, como uma ciência independente – deve, se não sua origem, sua essência, seu ser científico,
sua perfeição, a Aristóteles; porque foi ele quem, fundindo, comparando e desenvolvendo os elementos
dispersos e os ensaios parciais anteriores, criou na realidade a lógica como organismo científico.
Expor ou resumir sequer os pontos principais da doutrina aristotélica sobre a lógica seria o mesmo que
expor e resumir o conteúdo de qualquer tratado de lógica elementar, uma vez que qualquer um deles contém
e reflete necessariamente os pontos principais da lógica de Aristóteles. Permitimo-nos observar apenas:
1º O ponto culminante e chave da lógica aristotélica é a teoria do silogismo demonstrativo; pois, na
realidade, essa teoria do silogismo demonstrativo é o objeto final, o centro comum e o termo geral de relação
dos diferentes tratados que compõem o Órganon de Aristóteles, como as Categorias, o livro De
Interpretatione, os Analytica priora e posteriora, o livro Topicorum etc.
2º Esta teoria silogística do fundador da escola peripatética é tão completa, tão filosófica e tão acabada
que nada substancial pôde ser adicionado ou mudado nela pelos escritores de lógica que vieram depois dele,
apesar da marcada predileção que alguns filósofos de primeira linha manifestaram em diferentes épocas em
relação a esse tipo de estudos.
Trendelenburg observa com razão que o nome de Aristóteles em relação à lógica é como o nome de
Euclides em relação à geometria. Assim como os geômetras não podem prescindir da doutrina do último
nos problemas que ocuparam sua atenção, tanto antigos quanto modernos, contemporâneos e sucessores,
são obrigados a buscar modelos e inspirações nos escritos de Aristóteles, sempre que se trate de lógica; a
teoria lógica do Estagirita aparece e se manifesta superior a todas as vicissitudes dos séculos: Ut in

135
geometria Euclides, sic in logicis Aristoteles saeculorum vicissitudines ita superant, ut uterque exemplar
sit in quod intueantur et aequales, et posteri.

O Órganon de Aristóteles compreende: As Dez Categorias


Aristóteles, Categorias
a) as Categorias ou predicamentos
As categorias são as classes fundamentais de seres ou
(praedicamenta), como alguns tradutores e
coisas que existem no mundo, e são as seguintes: substância,
intérpretes latinos os chamaram. Neste livro,
quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição, estado,
Aristóteles reduz, primeiramente, a dez o ação e paixão (1a25-1a30).
número de conceitos (ou melhor, [1] Substância: “aquilo que é em si” (“τὸ ὑποκείμενον
predicados/predicamentos) possíveis mais καθ' αὑτό καὶ οὐ καθ' ὑποκείμενον λεγόμενον”: 5, 2a11-
gerais de um sujeito, quais sejam: [1] 2a14).
9 acidentes: “aquilo que é dito de um sujeito e pode ser
substância, [2] quantidade, [3] qualidade, [4]
afirmado e negado sem o sujeito” (“τὸ καθ' ὑποκείμενον
relação, [5] lugar, [6] tempo, [7] posição, [8] λεγόμενον καὶ ἀφαιρετικὸν καὶ ἀντικείμενον τῷ καθ'
hábito (situação) ou modo de ser por parte da αὑτό”: 7, 3a1-3a3).
vestimenta e armas, [9] ação e [10] paixão, e [2] Quantidade: “aquilo que pode ser contado” (“τὸ ποσόν,
ὃ μετρεῖσθαι δύναται”: 6, 2a19-2a20).
depois entra em explicações sobre o [3] Qualidade: “aquilo que é dito de algo, considerando-se
significado, sentido, importância e divisões de a sua natureza” (“τὸ ποιόν, ὃ λέγεται περὶ τὸ τί ἦν εἶναι”:
cada um. 8, 3a6-3a7).
[4] Relação: “aquilo que é dito de algo em relação a algo”
(“τὸ πρός τι, ὃ λέγεται περὶ τὸ πρός τι εἶναι”: 9, 3a9-3a10).
b) o Perihermeneias (ou De [5] Lugar: “o limite que contém as coisas” ("τὸ
Interpretatione, entre os latinos), no qual, περιβάλλον, ὃ ἐν τῷ ὑποκειμένῳ τὸ περικείμενον ἔχει”:
após algumas considerações sobre o nome, o 11, 4a20-4a21).
verbo e a oração enunciativa ou proposição [6] Tempo: “o número do movimento em relação ao antes e
ao depois” (“ὁ τοῦ κινεῖσθαι ἀριθμός κατὰ τὸ πρότερον
em geral, trata das diferentes espécies, formas καὶ ὕστερον”: 12, 5a25-5a26).
e propriedades da proposição. [7] Posição: “o lugar em que algo está em relação a outro”
(“τὸ ποῦ, ἐν ᾧ τι ἐστὶ πρὸς ἕτερον”: 10, 4a10-4a11).
[8] Situação (ποίον): “a disposição na qual algo se
c) os Primeiros Analíticos (Priora
encontra” (“τὸ ποῖον, ἐν ᾧ τι ἔχει”: 10, 4a11-4a12).
Analytica ou, mais geralmente, Priorum [9] Ação: “passagem do não-ser ao ser” (“τὸ ἐξ ἀδύνατου
Analyticorum libri duo), no qual se trata com εἰς τὸ ὂν γίνεσθαι”: 11, 6a1-6a2).
detalhe e profundidade verdadeiramente [10] Paixão: “aquilo que é sofrido” (“τὸ παθόν, ὃ πάσχει”:
11, 6a2-6a3).
analítica dos elementos ou princípios,
essência, propriedades, figuras, espécies e efeitos do silogismo48, e com este motivo também se trata da
indução49, analogia, entimema50 e outras espécies de argumentação.

48
O silogismo é um argumento lógico composto por três proposições: duas premissas e uma conclusão. Cada premissa contém um
termo médio que é compartilhado com a conclusão, permitindo que a conclusão seja inferida a partir das premissas. O silogismo é
uma forma de raciocínio dedutivo que é considerada a base da lógica aristotélica. [N.T.]
49
“A indução é o processo de raciocínio pelo qual, a partir de casos particulares, se chega a uma conclusão geral. É um tipo de
generalização a partir de exemplos específicos.” (Aristóteles, Analíticos Posteriores, l. II, c. 19, 100a).
Como explica Aristóteles, a indução parte de casos particulares para chegar a uma conclusão geral. Baseia-se, portanto, na
observação de exemplos específicos para inferir uma regra ou padrão mais amplo. Ao contrário do silogismo, que é um método
dedutivo (do geral para o particular), a indução chega a conclusões por generalização (dos particulares para o geral), de modo que
o produto da indução pode ser apenas provável, mas não necessariamente verdadeira. Ao observar, por exemplo, um grande número
de cisnes, vendo-os todos brancos, alguém poderia induzir que todos os cisnes o sejam. No entanto, essa conclusão não é
necessariamente verdadeira, pois pode haver cisnes de outras cores que ainda não foram observados. A partir de Francis Bacon e
seu método científico – apresentado na obra sugestivamente chamada o Novum Organum (1620) –, a ciência moderna
hipervalorizou a indução; saindo, assim, do campo do conhecimento certo (método dedutivo) para o do conhecimento provável
(método indutivo). Curiosamente, quando as ciências empíricas trocam a certeza aristotélica pela probabilidade de Bacon, neste
mesmo momento os novos dogmas “científicos” se rebelam contra as certezas filosóficas e teológicas. [N.T.]
50
“O entimema é um silogismo que contém apenas duas premissas, em vez das três premissas completas de um silogismo padrão,
porque uma das premissas é omitida, geralmente a premissa maior, que é considerada óbvia ou implícita.” (Analíticos Posteriores,
l. II, c. 27, 71b) “O entimema é um silogismo em que uma das premissas é omitida, porque é bem conhecida ou porque é evidente
por si mesma.” (Tópicos, l. VIII, c. 6, 157a) [N.T.]
136
d) os dois livros chamados Analíticos Posteriores, no qual se trata da demonstração considerada em
seus princípios, em sua essência, em suas espécies, em seus efeitos, etc., e também da definição.

e) os oito livros dos Tópicos, nos quais Aristóteles expõe o conceito da dialética como arte de disputar
ou discutir e as diferenças que a separam da ciência lógica; investiga e expõe a natureza e as condições do
silogismo provável, em contraposição ao demonstrativo, e termina apontando e discutindo os lugares
(“lugar” em grego é τόπος) de onde se podem obter argumentos prováveis, razões e provas mais ou menos
fortes e convincentes, seja para afirmar ou negar uma tese, seja para resolver algum problema.

f) finalmente, o tratado ou os dois livros Refutações Sofísticas, destinados a expor os sofismas, ou seja,
a natureza, espécies, origem e remédios das argumentações sofísticas.

Depois de enumerar as categorias e fixar seu significado por meio de exemplos, Aristóteles adverte que
essas categorias são representações simples, ou respondem a conceitos incompletos em si mesmos, de modo
que, enquanto tais, carecem de verdade e falsidade; porque a verdade e a falsidade não existem enquanto
não houver complexão de idéias por meio de afirmação e negação. As categorias são elementos possíveis
para a afirmação e a negação (horum autem complexione affirmatio vel negatio fit), que são o resultado da
complexão (quer dizer, comparação) das categorias; mas consideradas em seu estado incompleto, em seu
estado natural de representação simples de um objeto, não possuem nem verdade, nem falsidade: eorum
autem, quae secundum nullam complexionem dicuntur, nullum neque verum, neque falsum est.

§ 74 Cosmologia e Teodicéia de Aristóteles

a) O universo é dividido em (1) mundo celeste e (2) mundo sublunar. O (1) primeiro não está sujeito a
mudanças substanciais que afetem sua essência, e, portanto, não pode ser gerado, é incorruptível e conserva
perfeitamente a forma substancial que recebeu em sua origem, ou melhor dito, desde a eternidade. Embora
seja composto de matéria e forma como todos os corpos, o céu não está sujeito a geração substancial,
corrupção, diminuição, aumento ou alteração. Essa incorruptibilidade e imutabilidade dos corpos celestes,
principalmente do primeiro céu, fazem dele o lugar próprio e como que
conatural de Deus, o que é confirmado e está em harmonia com a
opinião geral dos homens que consideram o céu como o lugar
próprio da Divindade. É notável que essa convicção é
observada tanto entre os gregos quanto entre os bárbaros51,
ou povos não civilizados.
Não acontece o mesmo com (2) os corpos sublunares,
que, além de suas mutações acidentais, estão sujeitos a
transformações substanciais, que afetam a própria essência
e substância específica das coisas.

b) Para que ocorra essa mutação essencial, ou seja, a


geração e corrupção substancial, é necessário: (1º) alguma
coisa que sirva de substratum ou sujeito geral dessas mutações,
uma vez que a mutação pressupõe um sujeito que se transforma, uma
matéria prima na qual possam ocorrer sucessivamente essas variações
substanciais; (2º) alguma forma que, agindo e determinando essa matéria, constitua em união com ela um
ser determinado, uma substância específica, o corpo A ou B; (3º) um agente ou força ativa que, agindo
sobre o corpo A e alterando suas propriedades e condições de ser, determine nele a perda da forma

51
“Omnes enim homines de Diis habent existimationem, et omnes eum qui sursum est locum, Deo tribuunt, et Barbari, et Graeci,
quicumque putant esse Deos, tamquam videlicet, immortali immortale coaptatum sit.” De Coelo, lib. I, cap. IV. 268a.
137
preexistente e a introdução de outra nova. Portanto, a matéria prima, que faz parte e é parte essencial de
todo corpo, deve ser concebida como uma realidade substancial, mas incompleta e potencial em si mesma,
capaz de receber diferentes formas substanciais, mas que em si mesma não tem nenhuma. A forma
substancial também é uma realidade incompleta, mas essencialmente determinante e atuante, a atualidade
primitiva da matéria. Da união imediata e íntima dessas duas entidades resulta o composto substancial e a
essência específica única, com unidade de essência e substância. A forma substancial, pelo fato de ser o
primeiro ato da matéria e por ser atualidade e determinação por sua própria essência, é a raiz e a razão
suficiente originária de todas as formas acidentais, de todas as perfeições e atos que se manifestam na
substância da qual é a forma e, em geral, de toda a atualidade e perfeição do composto.

c) Todo agente, ao agir, age ou de uma maneira consciente ou inconsciente para produzir algum efeito
e alcançar algum fim. Portanto, todo efeito ou mutação leva consigo o concurso de quatro causas, a saber:
(i) causa final, (ii) causa eficiente, (iii) causa formal e (iv) causa material; e a essas quatro causas todos os
gêneros de causas podem ser reduzidos.

Matéria e Forma – Ato e Potência d) O mundo é eterno e, portanto, a série de


Aristóteles, Metafísica gerações substanciais é infinita. Mas como essa
geração exige e pressupõe a ação do agente que une
a forma à matéria, e como não é possível proceder
in infinitum na série de causas eficientes, é
necessário reconhecer a existência de um Primeiro
Motor imóvel, de um agente imutável, de uma
primeira causa eficiente em relação ao mundo.
e) A causalidade desta Primeira Causa eficiente
“Chamamos o ser de potência [δυνάμει] e de ato se estende à matéria prima na mente e opinião de
[ἐντελέχειᾳ], sendo que o que é em potência é aquilo
Aristóteles, ou se limita apenas à sua transformação
que se torna em ato, e o que é em ato é aquilo que
substancial, ou seja, à extração da forma substancial
tem o ato em si mesmo.” (Metafísica. l. IX. 1048a)
da potencialidade da matéria? Este é um problema
“A matéria [υλη] é potencialidade [δυναμις],
obscuro e duvidoso que não pode ser resolvido com
enquanto a forma [ειδος] é atualidade [εντελεχεια], e
a substância [ουσια] é a união desses dois segurança. No primeiro caso, o filósofo de Estagira
princípios”. (Metafísica. l. VII. 1032a) teria se elevado, ou pelo menos teria vislumbrado a
* idéia de criação; no segundo, sua teoria sobre a
Os termos gregos que o Filósofo utiliza são: origem do mundo diferiria muito pouco do
dualismo platônico.
[a] para matéria: υλη [hylé]
f) No entanto, seja o que isso signifique, é certo
[b] para forma: ειδος (eidos), μορφη (morphe) ou
εντελεχεια (entelecheia) que para Aristóteles Deus é um ser necessário, que
existe por si mesmo, a primeira causa do
[c] para ato: ενεργεια (energeia) e εντελεχεια movimento e do mundo, substância eterna,
(entelecheia), de onde a confusão de ato e forma, só imaterial, superior a tudo o que é sensível,
distinta em Santo Tomás
inextensível, indivisível, imutável, dotado de poder
[d] para potência: δυναμις (dynamis) infinito (nam infinito tempore movet; nihil vero
finitum infinitam potentiam habet), inteligência
perfeita e ato puro, sem mistura alguma de potencialidade ou composição, a ponto de serem a mesma coisa
em Deus o entendimento e o inteligível (seipsum vero intellectus [primus] intelligit... ita ut idem sit
intellectus et intelligibile), a intelecção, o sujeito inteligente e o objeto entendido. A vida divina consiste
precisamente no pensamento atual de Deus, na intelecção intuitiva da substância divina essencialmente

138
inteligente e inteligível52, como atualidade puríssima, e tão pura, mesmo no âmbito inteligível, que a noção
mais própria de Deus, o conceito mais essencial da Divindade, é a intelecção, o pensamento atual de Sua
própria essência como ato puro, de tal forma que Deus é a intelecção da intelecção, o pensamento do
pensamento: Seipsam ergo intelligit... et est intellectionis intellectio.
Em conformidade e como consequência da idéia tão pura e elevada que Aristóteles possuía sobre a
Divindade, ele rejeitou a concepção antropomórfica, tão generalizada na época, apesar do apoio que
encontrava no politeísmo da época53.

g) Também não se deve perder de vista que, para Aristóteles, Deus, embora tenha a razão de fim ou de
bem amado, de termo da ordem que resplandece no mundo, e embora seja princípio e causa dessa ordem,
assim como de todos os seres que constituem o universo (a tali ergo principio tum coelum, tum natura
dependet) ou natureza54, não deve ser concebido nem como termo ou produto da evolução do universo, nem
menos ainda como forma imanente do mesmo, mas sim como uma substância atualíssima e inteligente,
como quid prius com prioridade de natureza em relação ao universo mundo e a todas as suas perfeições;
como um ser pessoal e consciente que existe em si e para si, à maneira que o general de um exército – sem
prejuízo de ser o termo, o bem e o princípio da ordem do exército – é, no entanto, independente deste e
superior a ele, dono de seus atos e de sua própria personalidade.
A julgar pelas indicações de Diógenes Laércio, Plutarco e alguns outros, e principalmente pelo trecho
que Cícero cita e atribui a Aristóteles55, este demonstrou a existência de Deus com toda sorte de razões e
argumentos.

h) É verdadeiramente surpreendente que, após uma concepção tão elevada, pura e profundamente
filosófica da Divindade, Aristóteles faça de Deus um ser solitário, sem relação de providência e sem
causalidade eficiente em relação ao governo do mundo. No entanto, é isso que acontece. Nosso filósofo,
que reconhece e afirma Deus como ser inteligente e perfeitíssimo, e como causa primeira do mundo, vida
perpétua e princípio eterno e infinito do movimento, nega a Providência divina, ou seja, a intervenção de
Deus no governo do mundo e dos seres que o compõem. O filósofo grego acredita que o conhecimento do

52
“Caeterum – escreve – vita quomque profecto inexistit (in Deo); siquidem intellectus operatio vita est; ille vero est actus, actus
vero per se illius vita optima et perpetua est. Dicimus itaque Deum, sempiternum, optimumque vivens esse. Quare vita et aevum
continuum et aeternum Deo inest, hoc enim est Deus.” Metafísica. lib. XII, capítulo VII. 1072b
53
Para se convencer disso, basta ler o seguinte trecho, no qual, ao refutar a teoria platônica das idéias, ele rejeita de passagem e
zomba de certa forma dos defensores do antropomorfismo: “Idealem namque hominem, et idealem equum, et sanitatem ajunt,
simile quid illis facientes, qui dicunt quidem esse Deos, sed formae similis hominibus; nec enim isti aliud faciebant nisi homines
sempiternos.” Metafísica., lib. III, cap. III. 998b
54
Comentando Santo Tomás este texto de Aristóteles, escreve, entre outras coisas, o seguinte: “Ex hoc igitur principio, quod est
primum movens sicut finis, dependet caelum, et quantum ad perpetuitatem substantiae suae, et quantum ad perpetuitatem sui
motus; et per consequens dependet a tali principio tota natura, eo quod omnia naturalia dependent a caelo, et a tali motu eius.”
Sententia Metaphysicae, lib. 12 l. 7 n. 16
55
Aqui está este notável trecho, que merece ser conhecido, não apenas pelo conteúdo ou doutrina que contém, mas também como
uma amostra do estilo elegante e animado que o discípulo de Platão sabia usar em algumas ocasiões: “Se pessoas houvesse – disse
Aristóteles – que sempre vivessem debaixo da terra, em casas boas e ilustres, decoradas com sinais e pinturas, e equipadas com
todas as coisas com as quais aqueles que são considerados felizes são abençoados, mas nunca saíssem acima da terra, e ouvissem
apenas rumores e histórias sobre a existência de uma divindade e do poder dos deuses. Então, depois de algum tempo, se as fendas
da terra fossem abertas e eles pudessem sair desses lugares escondidos para os lugares onde vivemos, e de repente vissem a terra e
o mar, e conhecessem a grandeza das nuvens e a força dos ventos, e vissem o sol e sua grandeza, beleza e eficácia em iluminar
todo o céu com luz difusa durante o dia, e quando a noite escurecesse a terra, vissem todo o céu cheio de estrelas e a lua com sua
variedade de luz, tanto crescente quanto minguante, e o nascer e o pôr de todos eles, e seus cursos eternos e imutáveis: quando
vissem tudo isso, certamente acreditariam que existem deuses e que todas essas grandes obras são feitas pelos deuses”. (“Si essent
inquit [Aristoteles], qui sub terra semper habitavissent, bonis et illustribus domiciliis, quae essent ornata signis atque picturis,
instructaque rebus iis omnibus, quibus abundant hi qui beati putantur, nec tamen exissent unquam supra terram, accepissent autem
fama et auditione esse quoddam numen et vim Deorum. Deinde, aliquo tempore, patefactis terrae faucibus, ex illis abditis sedibus
evadere in haec loca quae nos incolimus atque exire potuissent; cum repente terram et maria, coelumque vidissent, nubium
magnitudinem ventorumque vim cognovissent, adspexissentque solem ejusque tum magnitudinem pulchritudinemque, tum etiam
efficientiam cognovissent quod is diem efficeret, toto coelo luce diffusa; cum autem terras nox opacasset, tum totum coelum
cernerent astris distinctum et ornatum, lunaeque luminum varietatem tum crescentis tum senescentis, eorumque omnium ortus et
occasus, atque in omnis aeternitate ratos immutabilesque cursus: haec cum viderent, profecto et esse Deos, et haec tanta opera
Deorum esse arbitrarentur.”) Apud Cicer., De nat. Deorum, lib. II, 37.
139
mundo e de suas partes é incompatível com a pureza e elevação da inteligência divina, cujo único objeto
deve ser a substância, a essência puríssima e atualíssima de Deus.

i) Deus não é apenas o Primeiro Princípio e a Causa Primeira eficiente das substâncias sublunares e de
suas gerações e corrupções substanciais, mas também dos corpos celestes, que não estão sujeitos a geração
ou corrupção. O movimento das esferas celestes e dos astros é circular, e devido à ação imediata de certas
substâncias imateriais e inteligentes (intellectus, intelligentia), muito análogas aos Anjos da Teologia cristã,
que são motores dos astros, mas não formas substanciais dos mesmos.

“Encalhados” na idolatria
(Revista, n. 65, p. 14-15)
Inúmeras almas “encalham” na vida espiritual, em qualquer estágio dela, às vezes de um modo completo, e até
aparentemente irremediável. O mais prodigioso exemplo de encalhe espiritual verificou-se com a idolatria nos
povos antigos. O célebre pregador francês Bossuet, ao se referir à situação do mundo naquele período, invectiva
a crença idólatra como um defeito grosseiro e um erro evidente praticado por aquelas populações. Os antigos
estavam profundamente aferrados a esse erro, não obstante possuírem muitos deles uma inteligência privilegiada,
como os gregos e os romanos.
Não que a razão humana não fosse bastante forte para perceber o erro da idolatria. Prova-o as diversas vozes
discordantes dela, entre as quais Sócrates, Aristóteles e Platão. Contudo, esses três homens, dos mais inteligentes
de todos os tempos, falando para um povo também dos mais sábios do mundo, renunciaram a abolir esse mal, por
considerar que o povo estava “encalhado” na idolatria.
Isso é o que notamos no encalhe da vida espiritual: há todas as possibilidades para se ver o erro em que se
caiu, mas as pessoas estão arraigadas no apego a ele. Não existem argumentos nem recursos que obtenham
resultados, por causa de um ponto “encalhado”.
Em contrapartida, o cristianismo é o exemplo do maior desencalhe da História. Depois da vinda de Nosso
Senhor, homens menos inteligentes, dirigindo-se a povos por vezes menos favorecidos no tocante à inteligência,
lograram vencer com facilidade a idolatria. De modo repentino, porque entrou um fator novo diferente de todos
os anteriores, eles “desencalharam”.
Temos então, na idolatria e no cristianismo, casos coletivos de encalhe e desencalhe.

j) Embora o mundo seja eterno ou infinito em termos de duração, não o é em termos de extensão ou
magnitude; o espaço é finito e fora do mundo não há nem vazio nem cheio. A figura do Universo, assim
como a da Terra, é esférica. Os céus e os astros estão sujeitos apenas ao movimento local, ou seja, a mudança
secundum locum; enquanto os corpos sublunares experimentam, além desse movimento local, a geração e
a corrupção, ou seja, a passagem do não-ser para o ser e vice-versa, e no âmbito substancial, a alteração,
que é a passagem de um acidente para outro, ou da falta de uma forma acidental para sua aquisição, ou
vice-versa.

k) A terra, a água, o ar e o fogo são os quatro elementos que constituem a massa geral dos corpos
sublunares, cuja diferença de forças e propriedades reside no predomínio relativo de um ou outro desses
elementos. Mas não se entenda que esses elementos conservam sua própria essência ao fazerem parte dos
corpos mistos, como pretendem os atomistas (Leucipo, Demócrito), mas, pelo contrário, ao ocorrer a
geração substancial do corpo A, os quatro elementos mencionados perdem sua própria forma substancial e
recebem a forma específica daquele corpo, pela qual são atuados e informados.

140
§ 75 Ética e Política de Aristóteles

A) O homem é capaz de moralidade porque e na medida em que é dotado de liberdade e razão. Ao


contrário dos animais, que agem propter finem de maneira instintiva e inconsciente, o homem conhece,
delibera e age propter finem de maneira consciente e reflexiva. O fim ou bem que o homem se propõe a
alcançar por meio de sua ação é o primeiro motor e a primeira causa dessa ação, embora sua realização real
e efetiva seja posterior às outras causas: primum in intentione, est ultimum in executione.
Não sendo possível proceder in infinitum no número e ordem dos bens que servem como fim para nossas
ações deliberadas, é preciso que haja algo que seja considerado como o fim último e o bem supremo
alcançável por meio dessas ações e, portanto, como a última perfeição do indivíduo.
Para o homem, esta perfeição consiste na prática mais perfeita das faculdades que são próprias do
homem como ser racional e, portanto, na prática da virtude, e acima de tudo na contemplação da verdade,
a operação mais sublime e como a parte mais divina (eorum, quae sunt in nobis divinissimum) que há no
homem. Assim, a última perfeição do homem e sua felicidade na vida presente consistem na operação
própria da razão, como a coisa mais divina no homem, e a vida que emana dessa operação é vida divina em
relação à vida humana56. Riquezas, honras, saúde e demais bens da vida não constituem a felicidade e
perfeição do homem; mas podem contribuir para ela e são necessários para essa felicidade, na medida em
que podem facilitar a posse da virtude e a contemplação perfeita da verdade.
É certo que Aristóteles parece se concentrar na vida presente ao expor a teoria sobre a felicidade como
o fim último do homem; mas se reconhece facilmente que sua teoria é igualmente aplicável à felicidade do
homem na vida futura, na hipótese da imortalidade da alma e, acima de tudo, dada a concepção elevada e
sublime que ele havia formado de Deus. Pois é claro que, uma vez admitida a imortalidade da alma, sua
felicidade após a morte deve consistir no conhecimento perfeito e na contemplação intelectual de Deus, que
é infinito em sua essência e atributos. A aplicação dessa teoria à felicidade do homem após a morte não é
apenas uma exigência lógica, mas também é indicada, se não explicitamente declarada, em alguns trechos
de suas obras57.
Sócrates e Platão haviam ensinado que a virtude consiste na assimilação com Deus. Aristóteles, sem
negar isso, antes pelo contrário, assumindo-o, define e determina de maneira mais filosófica o conceito de
virtude moral, chamando-a de um hábito que inclina o homem a agir de acordo com a razão correta,
rejeitando ao mesmo tempo a opinião de Sócrates, que confundia a virtude com a sabedoria; pois as ciências
residem e aperfeiçoam a parte intelectual do homem, enquanto as virtudes residem na parte afetiva e
aperfeiçoam suas operações. Até a prudência, que reside na compreensão, é uma virtude na medida em que
facilita e dirige as ações humanas do ponto de vista da moralidade. A justiça reside na vontade,
determinando sua operação correta em relação ao seu objeto próprio, que é dar a cada um o que é seu. A
temperança e a coragem corrigem e moderam as paixões da parte afetiva sensível, fazendo com que suas
manifestações estejam subordinadas à razão, a norma imediata da moralidade.

56
“Talis autem vita superat hominis naturam; non enim hoc ipso quo homo est, ita vivet; sed quo est quid in ipso divinuum... Quod
si mens divinum ad ipsum hominem est, et vita quae ab hac manat, divina est respectu ipsius vitae humanae.” Ética., lib. X, cap.
VII. 1177a.
57
Merecem citar-se, entre outros, os seguintes: “Oportet autem, non quemadmodum monent quidam, humana nos sapere sum simus
homines, aut mortalia cum simus mortales, sed quoad fieri potest, immortales nos ipsos facere, cunctaque efficere, ut ea vita
vivamus, quae ab eo manat, quod est eorum, quae nobis insunt praestabilissimum.” Ética. lib. X, cap. VII. 1177b
“Quosque igitur contemplatio sese extendit, eousque sese extendit et felicitas ipsa; et quibus contemplatio magis inest, iis et felicitas
magis inest, non per accidens quidem, sed per ipsam utique contemplationem. At vero, qui mente operatur et eam colit, disponitur
optime, is et amicissimus diis immortalibus esse videtur. Quare sapiens hoc quoque modo, maxime fuerit felix.” Ibid., cap. VIII.
1178a.
O florentino Acaiajuoli (Niccolò Acciaiuoli – 1310-1365), um dos comentadores mais sensatos de Aristóteles, deduz desta última
passagem que o Filósofo fazia consistir a felicidade suprema do homem na união com Deus, seu Autor supremo, por meio da
contemplação intelectual: “Concluditur autem quod ultiman, et supremam felicitatem humanam collocavit philosophus Aristoteles
in operatione secundum sapientiam, qua virum sapientem conjungi cum causa sua quoquo modo velle videtur, id est, cum Summo
Deo, auctore suo, ut ei per contemplationem eo pacto... per quamdam amicitiam, si dicere licet, ei conjungatur, quoad fieri potest...
Etiam indicare videtur Metaphys., XII, nostram felicitatem humanam consistere in contemplatione substantiarum separatarum, et
praecipue et maxime ipsius Dei.”
141
A virtude moral, segundo Aristóteles, é um hábito ou facilidade adquirida pela repetição de atos para
escolher e executar o bem honesto, consistindo no meio que se afasta dos extremos viciosos, sendo próprio
da razão, informada e aperfeiçoada pela prudência, conhecer e fixar o meio em que consiste a virtude,
servindo como princípio e norma geral para reconhecer e preestabelecer a natureza e condições da ação
moralmente boa ou virtuosa. Isso e nada mais é o que o Filósofo de Estagira quer significar quando escreve
que a virtude est habitus electivus in mediocritate consistens, quae quidem mediocritas ratione praefinita
sit, atque ita ut prudens praefiniret.
Das três partes que abrangem a alma As Virtudes Cardeais
humana – (1ª) vegetativa, (2ª) sensitiva e (3ª) Aristóteles, Ética a Nicômaco
racional –, esta última é o sujeito per se, Virtude [ἀρετή – areté], então, é uma disposição adquirida
conatural e próprio da virtude moral, e em voluntariamente, que consiste em um meio termo relativo a
suas potências específicas residem as nós, determinado pela razão e pelo discernimento, pelo qual
principais delas, que são a prudência e a um homem prudente determinaria. Esse meio termo é uma
justiça. Embora de maneira secundária e disposição escolhida, que está em um meio relativo a nós, e é
indireta, a (2ª) segunda é capaz de virtude determinado pela razão e pelo discernimento, como o homem
moral por parte de algumas de suas prudente o determinaria. (Ética. l. II, c. 6. 1106b)
Prudência [Σοφία ou, mais comumente, Φρόνησις –
faculdades ou potências, como o apetite
phronesis] é uma virtude intelectual que permite a uma pessoa
concupiscível e o irascível, porque embora
discernir o que é bom e o que é mau em situações particulares
irracionais em si mesmos, participam de e agir de acordo com essa compreensão. (Ética. l. VI c. 5. 1140a)
certa forma e até certo grau da razão A Justiça [Δικαιοσύνη – dikaiosyne] consiste em dar a cada
(concupiscibilis autem particeps rationis um o que lhe é devido. (Ética. l. V c. 4. 1131b)
quodammodo est, quatenus ipsi obedit, Fortaleza [Ἀνδρεία – Andréia] é a coragem diante do medo.
imperioque ejus obtemperat), à qual estão (Ética. l. III c. 6 1117b)
subordinados e obedecem com maior ou Temperança [Σωφροσύνη – sophrosyne] é a moderação no
menor perfeição. A (1ª) parte vegetativa da prazer. (Ética. l. III c. 10. 1107b)
alma é incapaz de virtude moral, porque não inteligência prudência
participa de forma alguma da razão (nam racional
vegetalis nullo modo cum ratione vontade justiça
homem
communicat), à qual não obedece nem está irascível fortaleza
sujeita em suas potências e atos. animal
concupiscível temperança
E observe-se aqui que, qualquer que seja
a opinião que se atribua ou suponha em
Aristóteles sobre a felicidade última, perfeita e ultra-terrena do homem, é indubitável que este Filósofo faz
consistir a felicidade da vida presente na prática da virtude, nas ações da alma provenientes da perfeita
virtude moral: Felicitas animae per virtutem perfectam operatio quaedam est.

B) A teoria político-social de Aristóteles começa afirmando que o homem está destinado pela própria
natureza a viver em sociedade, não apenas porque a sociabilidade é uma inclinação e até um atributo da
natureza humana, mas também por causa das grandes vantagens que o homem obtém da sociedade, tanto
no âmbito intelectual quanto no moral, econômico e físico. A sociedade não pode subsistir sem um poder
público e sem leis. O poder público e seus depositários são comparados à sociedade como a alma ao corpo
e como a razão às faculdades inferiores. A lei é, ou natural, ou puramente humana. Esta última, ou seja, o
direito legal, determina e prescreve o que é indiferente em si mesmo ou originariamente; mas deixa de ser
assim para o cidadão, uma vez promulgada a lei, como as leis relativas aos pesos e medidas. A lei ou direito
natural obriga sempre e em todos os lugares, mesmo quando não está escrita ou sancionada pelo legislador
humano.

142
O governo (i) régio, (ii) aristocrático e (iii) democrático são três formas de governo boas em si mesmas,
desde que não degenerem em (i) tirania o primeiro, em (ii) oligarquia o segundo e o (iii) terceiro em
demagogia. A condição fundamental de sua bondade e legitimidade é que procurem e realizem o bem
comum, e não o particular dos governantes. Em princípio, e como ponto geral, o governo de um é preferível
ao de muitos; mas concretamente, deve-se
atender ao estado, hábitos, caráter e condição O Animal Político
social de cada povo, para determinar a forma Aristóteles, Política
de governo que mais lhe convém.
Isso porque Aristóteles – que se destaca por O homem é por natureza um animal político [πολιτικὸν
ζῷον]. (Política. l. I c. 2. 1253a)
seu senso de realidade, especialmente em
questões político-sociais – ensina e afirma [i] Monarquia [Μοναρχία] é o governo de um só homem,
que, quando se trata de estabelecer ou cujo poder é absoluto e ilimitado. (Política. l. III c. 7. 1284a)
organizar o regime político de uma sociedade, [ii] Aristocracia [Ἀριστοκρατία] é o governo dos melhores,
em que os governantes são escolhidos com base em sua
não se deve considerar o que é melhor em si virtude e excelência. (Política. l. III c. 7. 1284b)
mesmo e em princípio, mas sim o que é [iii] Democracia [Δημοκρατία] é o governo da maioria, em
possível (non solum respublica quae optima que a vontade da maioria é soberana e a minoria é
subordinada. (Política. l. III c. 6 1279b)
sit considerari debet, sed etiam quae constitui
possit 1288b), sem perder de vista ao mesmo A [i] monarquia bem constituída é, por natureza, a melhor
tempo as condições que podem influenciar das formas de governo, e a monarquia mal constituída é a pior
para tornar mais fácil e aceitável para a de todas, pois o monarca é o mais autocrático de todos os
governantes. (Política. l III c. 7. 1278b)
maioria dos cidadãos esta ou aquela forma de
governo: Praeterea, quae facilior et cunctis civibus communior habeatur.
Em todo caso, e qualquer que seja a forma política de governo adotada, deve-se prestar atenção
principalmente em evitar a tirania, e quem quer que seja o depositário do poder, deve agir como um
verdadeiro rei e pai de família, e não como um tirano; deve administrar e governar como procurador do
bem comum, e não como dono absoluto de bens e pessoas58, vivendo com moderação em tudo.
O objetivo do governante e legislador deve ser, antes de tudo, tornar os cidadãos virtuosos (propositum
enim ejus est ut cives bonos legibusque obtemperantes efficiat). O Estado deve realizar a justiça na
sociedade (jus ordinatio est civilis societatis), e assim a justiça é de certa forma a virtude específica e
característica da comunidade político-social. Nada é mais detestável e prejudicial do que a injustiça
acompanhada de poder (saevissima est enim injustitia tenens arma), seja no poder público ou no poder
privado. O estado social, que é inerente ao homem, eleva e aperfeiçoa-o quando o Estado realiza e aplica a
justiça59; mas fora dessas condições, quando o homem não está sujeito à lei e ao julgamento como derivação
e aplicação da justiça, o homem se torna o pior de todos os animais (pessimum est omnium animalium).
Entre as excelentes máximas de conduta que Aristóteles propõe e inculca aos governantes, merece
especial menção aquela que se refere à ambição de dominar por meio de guerras e conquistas. O discípulo
de Platão, sem negar a conveniência e até a necessidade de estar preparado para a guerra, e sem negar a
legitimidade desta e sua utilidade em alguns casos, adverte e afirma que o legislador, o político e o
governante não devem propor isso como um fim próprio, nem mesmo como o fim principal ou preferencial
do Estado; que é absurdo e contrário ao próprio Estado empreender guerras e conquistas quando elas não
são legítimas e justas, e que erram grandemente aqueles que fazem consistir a arte política em dominar os
outros, sem reparar na justiça ou injustiça de tal dominação60, não se envergonhando de fazer contra os
outros o que não querem que lhes seja feito.

58
“Huc enim sunt omnia reducenda, ut iis qui sub imperio sunt, non tyrannum, sed patrem familias aut regem agere videatur, et
rem non quasi dominus, sed quasi procurator et praefectus administrare ac moderate vivere, nec quod nimium est sectari.” Política.
l. V c. XI. 1311a.
59
“Natura igitur omnibus ad hujusmodi societatem est appetitus. Qui autem primus instituit, maximorum bonorum causa fuit, ut
enim perfectione suscepta, optimum cunctorum animalium est homo, ita si alienus fiat a lege et a judiciis, pessimum est omnium
animalium. Itaque impiissimum et immanissimum est sine virtute… justitia vero civile quiddam est, nam jus ordinatio est civilis
societatis; judicatio autem justi judicium.” Política. l. I, c. II. 1253a.
60
O trecho em que Aristóteles expõe essas idéias é digno de ser lido, não apenas pela verdade, precisão e elevação das idéias que
contém, mas também pela energia e vivacidade com que as expressa: “Videretur nimis absurdum esse, si quis considerare velit, an
143
Ao examinar seus tratados ou livros políticos, é evidente que Aristóteles possuía um forte senso de
justiça e sua necessidade para a constituição e preservação dos Estados ou sociedades políticas. Quando
essas sociedades perecem e se dissolvem, é principalmente devido à violação da justiça.
A propriedade e a família são duas
“Os dez mandamentos, que resumem a Lei de Deus,
condições e elementos essenciais da
exprimem o que é moralmente necessário, e, por isso,
indicam-nos o que é preciso fazer ou evitar. Os mandamentos sociedade; a comunidade de bens e mulheres é
são também preceitos fundamentais gravados por Deus na absurda, imoral e incompatível com a boa
consciência de todo homem” (Catecismo da Igreja Católica, ordem e até mesmo com a existência da
2070).
A propriedade privada é assegurada por dois sociedade. No entanto, o Estado tem o direito
Mandamentos da Lei de Deus – “Não roubarás” e “Não e o dever de proibir os pais de manterem filhos
cobiçarás as coisas alheias” – e a família, por três – “Honrar que nascem com deficiências e também de
pai e mãe”, “Não pecar contra a castidade” e “Não cobiçar a
terem mais filhos do que os permitidos por lei.
mulher do próximo”. Não é de se estranhar, pois, que
encontremos no Filósofo estes elementos essenciais da No entanto, o sistema de educação
sociedade. Deve-se acrescentar que, para o Estagirita, além da proposto por Aristóteles para crianças e jovens
família e da propriedade, não se pode constituir uma é muito mais moral e rígido do que o de Platão.
sociedade sem a tradição:
A tradição [παράδοσις] é uma fonte de sabedoria e Entre outras coisas, ele ordena e adverte que
conhecimento, pois os antepassados acumularam se deve evitar com todo cuidado que vejam ou
experiência ao longo do tempo e transmitiram esse ouçam algo desonroso, proibindo, para esse
conhecimento para as gerações futuras. Por isso, devemos fim, estátuas e pinturas menos decentes nas
respeitar a tradição e aprender com ela. (Ética. l. I c. 2.
1094b) ruas e praças, e também não permitindo que
A tradição é “a fonte da lei” (Política. l. III, c. 1. 1253a); “é
assistam a comédias e outras representações
uma espécie de memória coletiva que preserva a sabedoria e a teatrais.
experiência dos nossos antepassados” (Ética. l. II, c. 1. 1103a); Além disso, o pai de família (o
“é uma forma de educação que nos ensina a viver de acordo οἰκοδεσπότης ou paterfamilias) tem o direito
com os valores e costumes da nossa comunidade” (Política. l.
II, c. 1, 1260a); “é uma fonte de autoridade que nos ajuda a de mandar em sua esposa e filhos, mas não
resolver conflitos e a tomar decisões justas” (Retórica, l. I, c. como escravos, e sim como pessoas livres, e,
15. 1375b); “é uma parte essencial da cultura de um povo e portanto, com certas restrições, que
deve ser preservada para garantir a continuidade da sua desaparecem quase completamente em relação
identidade” (Política, l. VIII, c. 4, 1337a).
aos escravos. Pois o Filósofo de Estagira,
assim como seus antecessores, considera os escravos como seres naturalmente inferiores, e a escravidão
como uma instituição fundada na própria natureza, fazendo do escravo uma espécie de ser intermediário
entre o animal e o homem livre. No entanto, a doutrina de Aristóteles em relação ao tratamento e conduta
com os escravos é mais racional e humanitária do que a de Platão; pois ensina que é conveniente e justo
fixar um limite para a escravidão, oferecendo e concedendo a liberdade ao escravo em um prazo
determinado.
Deve-se observar também que quando Aristóteles diz que alguns homens são naturalmente escravos,
isso não deve ser entendido no sentido de que a própria natureza, ou a lei natural, os faça assim, mas sim
no sentido de que, assim como há homens dotados de engenho e disposições felizes para a virtude, o
conhecimento e o comando, há outros com os quais a natureza não foi tão benevolente, que possuem uma
alma naturalmente servil, inclinações baixas e certo grau de estupidez nativa, de tudo o que resulta que
nesta classe de homens a escravidão e a sujeição são como conaturais. Quem ler com reflexão os trechos
do Estagirita que se referem a este assunto, facilmente se convencerá de que este é o sentido em que ensina
que a escravidão é natural para certos homens, pelo menos na maior parte dos trechos aludidos, embora
devamos confessar que alguns deles não se compadecem facilmente à primeira vista com esta interpretação.

hoc propositum esse debeat ejus qui legibus instituit civitatem, providere, scilicet, ut illa dominetur finitimis, et volentibus, et
invitis. Quomodo enim id civile, aut lege, sanciendum quod nec legitimum quidem est? neque enim legitimum, non solum juste,
verum etiam injuste dominari. Sed plerique videntur existimare civilem disciplinam esse dominari, et quod in seipsos fieri nollent,
hoc in alios facere non erubescunt: ipsi pro se justitiam quaerunt, pro aliis vero nulla eis justitiae cura est... Patet igitur quod rei
bellicae studia bona sunt existimanda, sed non ut finis supremus, sed gratia illius.” Política., l. VII, c. II. 1326a.
144
§ 76 Crítica

Quando se trata de formar um julgamento crítico sobre a Filosofia de Aristóteles, considerada em


conjunto e em suas linhas gerais, o primeiro pensamento que vem à mente é comparar sua doutrina com a
de seu mestre Platão, estabelecendo uma espécie de paralelo entre os dois grandes filósofos da Grécia, para
fixar a missão respectiva de cada um no terreno histórico-filosófico.
Já vimos que Platão, além de cultivar e desenvolver o elemento ético-teológico que havia herdado de
Sócrates, completou esse elemento socrático ligando-o à dialética e a uma psicologia e física mais ou menos
incompletas, e sobretudo criando de certa forma a metafísica, parte fundamental e essencial das ciências
filosóficas. Aristóteles fez mais do que isso. Aristóteles, depois de cultivar e desenvolver, como Platão, o
elemento ético-teológico, ou seja, o pensamento socrático em toda a sua amplitude, e depois de criar
também uma metafísica, rival digna da de Platão, deu vida, ser e organismo científico à psicologia, física,
astronomia e história natural, com seus livros De Anima, Physicorum, De Coelo, De Generatione, De
Historia Animalium, e com outros vários que tratam desses assuntos. Mas acima de tudo, Aristóteles criou
a lógica com seu Organon, levando-a à sua última perfeição de uma só vez, sem contar seus trabalhos e
escritos sobre retórica, poética e gramática geral. Dele, como de Leibnitz em tempos posteriores, poder-se-
ia dizer que conduzia de frente todas as ciências.
As diferenças entre Platão e Aristóteles em relação ao método e às tendências gerais da doutrina são
igualmente notáveis e profundas. O (a) diálogo e as (b) especulações a priori são, respectivamente, o (a)
método externo e (b) interno de Platão, enquanto o (a’) raciocínio lógico, a indução e a observação são o
(a’) método aristotélico. O (c) idealismo61 é o caráter dominante da doutrina platônica, enquanto o (c’)
realismo concreto é o caráter dominante da doutrina de Aristóteles. (d) Platão gosta de extrair, por assim
dizer, de si mesmo e de sua razão, sistemas, idéias, teorias utópicas e até mesmo objetos da ciência,
enquanto (d’) Aristóteles busca na realidade externa o objeto da ciência, a base dos sistemas filosóficos e a
razão suficiente das teorias científicas. O (e) ponto de vista de Platão é mais elevado, mais indefinido e
abrange horizontes mais vastos, mas, por isso mesmo, (f) seu pensamento é mais vago, mais obscuro e mais
flutuante. O (e’) ponto de vista de Aristóteles, embora não seja tão elevado e não abranja horizontes tão
vastos quanto o de Platão, é mais filosófico, mais real e prático, mais objetivo e (f’) seu pensamento é mais
preciso, mais conforme à realidade e mais científico. Platão (g) concebe, contempla e cria os objetos do
pensamento, enquanto (g’) Aristóteles observa, classifica e raciocina sobre os objetos do pensamento.
Platão (h) se move e se agita na região altíssima e misteriosa do ideal, enquanto Aristóteles (h’) caminha
com passo seguro pelo caminho da realidade e sempre se move na região das existências e dos fatos. Os
sentidos e a experiência, que, segundo Platão, (i) não significam nada na ordem científica e são elementos,
se não prejudiciais, estranhos à ciência, são, pelo contrário, (i’) elementos muito importantes e
indispensáveis, segundo Aristóteles, em relação à origem e constituição das ciências. Em resumo, em Platão
(j) há mais elevação intuitiva, mais originalidade utópica, mais gênio criador e mais espontaneidade de
imaginação, enquanto em Aristóteles (j’) há mais segurança de julgamento, mais profundidade de engenho,
mais conhecimento da realidade e, acima de tudo, mais ciência e mais verdade.
Ao nos concentrarmos em Aristóteles, vimos que sua teoria do conhecimento está longe de merecer o
epíteto de sensualista que alguns filósofos e historiadores da Filosofia lhe atribuem. Para dissipar essa idéia
tão imprecisa, quisemos citar e apresentar textos, contra nossa costumeira exposição, e, ao prestar atenção
neles, reconhece-se facilmente que a teoria aristotélica sobre o conhecimento pouco ou nada tem em comum
com as teorias sensualistas, embora haja lacunas e pontos obscuros e duvidosos. O mesmo pode ser dito em
relação à sua psicologia: a união da alma com o corpo sob razão de forma substancial exclui o estreito
dualismo platônico, assim como suas utopias sobre preexistência e metempsicose; enquanto a teoria
aristotélica sobre o intelecto agente destrona as idéias inatas e a reminiscência platônicas, fechando ao
mesmo tempo a porta para as teorias do sensismo e do materialismo.

61
Entenda-se o “idealismo sui generis” (cf. § 69), que caracteriza o hiper-realismo platônico, em que as idéias não são só entes
reais, mas hiper-reais, existentes no hiper-urânio. Não há correspondência do “idealismo” platônico com o “idealismo” moderno.
[N.T.]
145
Assim como (k) a teoria das idéias ou das formas é a chave, o ponto central e o centro da Filosofia de
Platão, a teoria da (k’) matéria prima e da forma substancial é a chave, o ponto culminante e o centro da
Filosofia de Aristóteles. E essa teoria leva o filósofo estagirita a vislumbrar a grande idéia da criação, e por
meio dela evita, em todo caso, o escolho do dualismo absoluto de Platão na ordem cosmológica, dualismo
incompatível com a edução da forma substancial da potencialidade da matéria por meio do agente ou causa
eficiente, sobretudo quando se trata de uma causalidade infinita, como é a de Deus, em conceito de
Aristóteles.
No que diz respeito ao problema teológico, pode-se dizer que Aristóteles, embora não fale de Deus com
tanta frequência como Platão, possui uma idéia mais precisa e concreta, uma concepção verdadeiramente
metafísica e filosófica de Deus e de seus atributos. Até mesmo na parte errônea que inclui essa concepção,
que é a negação da providência em relação a uma parte do mundo, descobre-se certo fundo de verdade e de
elevação filosófica; porque há certo fundo de verdade e como uma aspiração teológica em afirmar que o
único objeto digno da inteligência divina é sua própria substância, seu ser infinito, seu próprio pensamento
(seipsam ergo intelligit, et est intellectio intellectionis), seu ato mais puro. Apenas faltou a Aristóteles a
iluminação cristã, que ensina a conciliar a elevação, pureza e simplicidade do pensamento divino com a
extensão e universalidade de seu objeto. Por outro lado, a negação ou dúvidas de Aristóteles em relação à
providência não se estendem à humanidade, objeto principal da providência divina, uma vez que em alguns
lugares de suas obras 62 reconhece a existência e manifestações da providência divina em relação aos
homens.
A teoria político-social de Aristóteles é a antítese direta da teoria de Rousseau e do socialismo
contemporâneo, e também é em grande parte da teoria platônica, cujas tendências utópicas ele exclui. A
sociedade, ou seja, o estado social, longe de se opor à natureza e longe de ser a origem dos males para o
homem, é, pelo contrário, conatural a este, e origem e condição necessária de bem-estar e perfeição em
todas as esferas da vida humana. O organismo social proposto por Platão, e sobretudo sua doutrina acerca
da comunidade de bens, de mulheres e de filhos, são coisas, não apenas utópicas, mas essencialmente
imorais e contrárias à ordem e existência mesma da sociedade. Já foi indicado também que o pensamento
de Aristóteles com relação à escravidão, embora ainda errôneo e irracional, é mais humanitário em suas
aplicações do que o pensamento dos outros
A Virtude da Continência
filósofos, seus predecessores e Aristóteles, Ética
contemporâneos.
O mesmo pode ser dito em relação à A continência é uma virtude, pois é uma disposição
existência e educação dos filhos; pois as voluntária que escolhe o meio-termo em relação aos
idéias de Aristóteles sobre este assunto, prazeres e dores (Ética. l. III c. 10. 1117b).
embora não sejam o que deveriam ser, não A continência é uma virtude que se aplica aos prazeres
sendo ajustadas à razão correta e menos ainda e dores do corpo, e consiste em resistir aos prazeres
à consciência cristã, são menos irracionais e excessivos e às dores excessivas (Ética. l. VII c. 1. 1145a).
repulsivas do que as de Platão e seus O continente é capaz de resistir aos prazeres, mas não
contemporâneos. O sistema de educação os deseja, enquanto o incontinente os deseja, mas não é
proposto por Aristóteles é mais prático e capaz de resistir a eles (Ética. l. VII c. 3. 1147a).
A continência é uma virtude difícil de alcançar, pois
moral do que o deles, e no que diz respeito à
exige que a pessoa controle seus desejos e impulsos
multiplicação dos filhos e sua exposição e
sexuais, que são muito fortes (Ética. l. VII c. 5. 1148b).
abandono em certos casos, embora incorra
A continência é uma virtude que se opõe à
em aberrações análogas às de seus
incontinência, que é a falta de controle sobre os desejos
antecessores e contemporâneos, ainda assim
sexuais. A pessoa continente é capaz de resistir aos
procede aqui com certas reservas e prazeres sexuais, enquanto a pessoa incontinente não é
limitações, que revelam em seu autor um (Ética. l. VII c. 6. 1149a).
senso moral mais correto e seguro. Assim,

62
Veja-se, entre outros trechos, o que ele escreve na Ética a Nicômaco: “rerum, ut existimatur, aliquam habent, rationi sane
consentaneum fuerit ipsos eo gaudere quod est optimam, maximeque sibi cognatum et in eos qui maxime hoc amant (mentem) et
honorant, beneficia vicissim conferre, tamquam curam iis quae sibi sunt chara, ac diligentiam adhibentes, in recte beneque agent.”
l. X, c. VIII. 1179a
146
por exemplo, embora conceda ao Estado a faculdade de fixar o número de filhos que devem ser procriados
para evitar a excessiva multiplicação destes, aconselha que se tomem medidas oportunas para conseguir
isso antes que ocorra a concepção, porque é ilícito atentar contra o feto animado ou que já tem vida:
antevenire oportet ut non concipiantur, nam postquam concepti sunt, et sensum aut vitam acceperint, nefas
est attingere eos. (Política. l. VII c. 16. 1335a)
A grande obra do discípulo de Platão, além de sua teoria sobre a geração substancial, é a lógica, que lhe
deve, se não sua origem, pelo menos sua cientificidade, seu desenvolvimento e sua perfeição; porque a
verdade é que o Organon de Aristóteles contém a exposição analítica mais completa e acabada das leis do
pensamento humano. A dialética de Platão, a de Sócrates e a dos eleatas, se convertem e transformam com
o Organon na ciência do pensamento e da investigação da verdade. O mesmo deve ser dito de Zenão, a
quem alguns chamam sem razão “fundador e criador da lógica”. A lógica rudimentar do eleata é a lógica
puramente dialética e disputadora; não é a lógica científica que ensina a buscar a verdade por meios e
métodos racionais. A lógica de Zenão – se merece tal nome seu ensaio dialético – é a arte de disputar, é a
que ensina a combater e demolir, sem edificar nada: a lógica de Aristóteles é a arte que ensina o modo de
investigar a verdade e levantar o edifício da ciência; é a que ensina a pensar e discorrer corretamente para
chegar ao descobrimento da realidade, para entrar em posse da verdade de uma maneira reflexa e realmente
científica. Se Zenão de Eléia, os sofistas, Sócrates, e o próprio Platão, haviam feito uso da dialética e haviam
empregado a demonstração e o silogismo, fizeram-no sem se dar conta da natureza íntima e das condições
científicas da demonstração. Aristóteles não se limitou a demonstrar e fazer uso de raciocínios evidentes,
segundo haviam feito seus predecessores, mas descobriu e fixou seus preceitos e seu método, demonstrou
a demonstração, se é lícito falar assim, descobrindo e formulando sua teoria, segundo já havia observado
seu comentarista Filopono63 séculos atrás.
Assim, o mundo dos sábios não poupou elogios a Aristóteles por esta grande obra, nem jamais negou o
tributo de sua admiração ao legislador do pensamento. Um defeito se nota no Organon, que é a ausência de
um tratado sobre os universais; mas essa culpa é uma injustiça dos tempos, não de Aristóteles, já que ele
escreveu um tratado Sobre o Gênero e Espécie, segundo Laércio, e realmente faz referência a este escrito
no primeiro livro dos Tópicos. A introdução ou Isagoge de Porfírio torna menos sensível essa perda.
A par dessas excelências e vantagens, a doutrina de Aristóteles sofre de graves defeitos, como indicado.
Tais são a falta de afirmações precisas sobre a imortalidade da alma, a negação da providência divina sobre
todas as partes do universo, as afirmações referentes à eternidade do mundo, à solidez e incorruptibilidade
dos céus, às inteligências ou anjos que movem as esferas64, e às causas que ele aponta para explicar muitos
fenômenos físicos, meteorológicos e astronômicos, explicações que sofrem com o atraso das ciências físicas
e naturais naquela época. Mesmo assim, elas lhe devem muito, por terem sido enriquecidas com novas
observações, e por terem chamado a atenção dos sábios para esses assuntos e para a maneira de tratá-los.
Um defeito grave da Filosofia de Aristóteles é a separação que ele estabelece entre a idéia teológica e a
idéia ética. A idéia de Deus – base metafísica e sanção real e última da ordem moral – mal se deixa ver na
Filosofia ética de Aristóteles, cuja teoria moral oferece um aspecto puramente racionalista e implica uma
sanção quase exclusivamente humana e empírica, que tem grande afinidade com a moral independente de
nossos dias.
Não é fácil encontrar, de fato, entre todos os Filósofos da Antiguidade, uma concepção tão vasta, tão
profunda, tão científica, tão lógica como a concepção ética de Aristóteles. O conceito, a essência e as
propriedades da virtude moral, suas condições essenciais, a divisão ou classificação das virtudes morais
com suas relações mútuas, a liberdade, as paixões, a lei natural e civil, os princípios racionais imediatos da
virtude, bem como suas relações e aplicações à ordem política e à ordem econômica, à família, à
propriedade, à justiça, à educação: todas essas coisas e outras igualmente importantes são investigadas,

63
Eis como se exprime ele na biografia que escreveu de Aristóteles: “Magnam item accessionem fecit ad artem disserendi,
quandoquidem ab ipsis rebus normas praeceptaque secrevit, et demonstrandi rationem cum via instituit. Nam superioris memoriae
Philosophi demonstrare quidem ac evidentibus rationibus uti, sciebant, sed demonstrandi modum ac evidentes probationes
conficere, ignorabant: atque idem ipsis usu veniebat, quod sutoribus, qui coria secare non queunt, calceis autem uti probe queunt.”
Aristotelis vita ex monum. Joan. grammat. Philopo alexandrini. Tom. I de las obras de Aristóteles, edic. De Lyon, 1566.
64
Aqui, obsequiosamente, há-que se discordar do purpurado autor. [N.T.]
147
discutidas e analisadas profundamente nos livros morais e políticos de Aristóteles; mas ao terminar a leitura,
experimenta-se um certo vazio, um certo desconforto vago, porque se percebe que falta ali a idéia de Deus
e da vida futura iluminando, afirmando e dando sanção suprema e metafísica a essa concepção gigantesca,
mas incompleta. A teoria moral de Aristóteles é um belo e grande edifício, mas que carece de coroamento;
é uma estátua de Fídias, à qual falta a cabeça.
Afora isso, a doutrina e os escritos de Aristóteles representam um dos elementos mais fecundos e
universais da cultura intelectual do espírito humano ao longo das épocas históricas, e isso não apenas por
causa de seu valor interno, mas também devido aos muitos livros que deram origem 65 e ocasião, e
principalmente devido aos muitos comentários e discussões que foram objeto.

§ 77 Discípulos e sucessores de Aristóteles

Conta-se que, pouco antes de morrer, perguntaram a Aristóteles qual de seus discípulos considerava
mais digno de o suceder na direção do Liceu. Ele respondeu dizendo que o vinho de Lesbos e o de Rodes
são excelentes, mas o primeiro é mais agradável. Com isso, quis dizer que Eudêmo de Rodes e Teofrasto
de Lesbos eram os mais dignos e capazes de liderar a escola peripatética, mas que entre os dois, Teofrasto
tinha alguma vantagem sobre seu colega de Rodes. Independentemente da veracidade histórica desse fato,
narrado por Aulo Gelio, é certo que

a) Teofrasto (Θεόφραστος) foi o sucessor imediato de Aristóteles. Foi nomeado por Aristóteles devido
à doçura e elegância de sua linguagem, já que seu nome original era Tirtamo. Era natural de Ereso, filho de
Melanto, lavador de panos; fora discípulo de Leucipo e Platão antes de entrar e
permanecer na escola de Aristóteles. Morreu em idade avançada, deixando um número
incrível de obras, como indicado no catálogo de Diógenes Laércio. Infelizmente, a
maioria dessas obras desapareceu e restam apenas fragmentos, alguns tratados de
História Natural e a obra intitulada Caracteres. Teofrasto e seu colega e rival
Eudêmo se dedicaram a interpretar e expor a doutrina de seu mestre,
completando-a em alguns pontos. Eles trataram, entre outras coisas, dos
silogismos hipotéticos, segundo Boécio. Teofrasto seguiu principalmente a
direção científica e empírica do mestre, cultivando as ciências naturais e a
parte de observação nas ciências filosóficas. Eudêmo deu preferência ao
elemento filosófico-teológico, tendendo a harmonizar a doutrina de Aristóteles
com a de Platão, enquanto Teofrasto estabeleceu as premissas e preparou o caminho
para seu discípulo e sucessor na liderança da escola peripatética.

b) Estratão (Στράτων) de Lampsaco, com o qual a doutrina de Aristóteles degenera e se transforma em


um naturalismo, tão favorável ao materialismo quanto contrário à verdadeira doutrina do fundador da escola
peripatética. De fato, Estratão – cognomeado Físico, devido à sua predileção exclusivista pelas ciências
físicas – ensinava que a Natureza não precisa nem pressupõe a existência de uma inteligência, causa
eficiente primitiva e ordenadora do mundo, mas que este deve sua origem, seu governo, seus seres e suas
transformações a forças inerentes e imanentes na natureza. Daí a negação lógica de um Deus transcendente
e a consequente identificação da Divindade e da Natureza66. Em harmonia com esta doutrina, este filósofo
mal reconhecia distinção real e efetiva entre o entendimento e os sentidos.

65
Um dos livros mais curiosos e interessantes já publicados sobre as obras de Aristóteles é aquele escrito no século XVI pelo
monge beneditino espanhol P. Fr. Francisco Ruíz, natural de Valladolid. Este livro contém um índice muito completo da doutrina
de Aristóteles, organizado em ordem alfabética. Este trabalho, que com o modesto título de Índice é um verdadeiro compêndio ou
resumo da doutrina de Aristóteles, é composto por dois volumes em formato menor e foi impresso em 1540. O autor conhecia
profundamente não apenas as obras de Aristóteles, mas também as de seus principais comentadores.
66
“Strato – escreve Cícero – is qui physicus appellatur, omnem vim divinam in natura sitam esse censet, quae causas gignendi,
augendi et minuedi habeat, sed careat omni sensu.” De Nat. Deo., lib. I, cap. XIII.
148
c) Após a morte de Estratão, a direção e ensino da escola passou para as mãos de Licão (Λύκων) de
Trôade, cuja fecundidade e elegância na fala é elogiada por Diógenes Laércio, fecundidade que é
reconhecida por Cícero, mas indicando que era de palavras e não de coisas: oratione locuples, rebus ipsis
jejunior.
Tanto Licão como seus discípulos e sucessores Aristão de Ceos 67 (Ἀρίστων ὁ Κεῖος), Critolau
(Κριτόλαος) e Jerônimo (Ἱερώνυμος ὁ Ῥόδιος) não oferecem nada especial em sua doutrina, pelo menos
no que chegou até nós. Se em algo se distinguem, é em terem cultivado com preferência a parte ética da
Filosofia de Aristóteles, embora sem seguir com muita fidelidade as tradições de seu mestre, o qual
certamente não fazia consistir a felicidade suprema do homem na ausência de dor, vacuitem doloris, nem
nos prazeres e satisfação de uma vida passada segundo a inclinação natural (vitae recte fluentis secundum
naturam), como ensinavam Jerônimo e Critolau.

d) Enquanto esses peripatéticos desnaturalizavam a teoria ética de Aristóteles, Dicearco (Δικαίαρχος)


de Messina, Aristóxenes (Ἀριστόξενος), natural de Tarento, e alguns outros, faziam o mesmo em relação
à sua teoria psicológica. Para o primeiro, a alma humana, como entidade distinta e separável do corpo, é
uma entidade quimérica, uma palavra vazia de sentido, nomen inane totum, na expressão de Cícero, que
acrescenta que, para Dicearco, as funções vitais e sensitivas são o resultado da figura e complexão do corpo:
nec sit quidquam nisi corpus unum et simplex, ita figuratum ut temperatione naturae vigeat et sentiat.
Por sua vez, o músico Aristóxenes não via na alma mais do que uma espécie de harmonia68, resultante
das vibrações e movimentos do corpo.

Entre os partidários da escola aristotélica, conta-se também Demétrio Falereu (Δημήτριος Φαληρεύς),
discípulo de Teofrasto, mais conhecido por suas empresas políticas e guerreiras do que por suas doutrinas
filosóficas; pois enquanto nada de especial é relatado sobre estas, consta pela História que governou Atenas
por dez anos como arconte; que os atenienses ergueram em sua honra tantas estátuas de bronze quantos
dias tem o ano, as mesmas que derrubaram depois, levados por sua habitual suspeita e volubilidade,
condenando à morte seu ídolo anterior Demétrio, que se retirou para a corte de Ptolomeu Lagos, no Egito.
Embora Diógenes Laércio suponha que foi exilado do Egito por intrigas políticas e que se suicidou por
meio de uma áspide, outros autores afirmam, com mais verossimilhança, que continuou a gozar de crédito
e honras na corte de Ptolomeu Filadelfo, cuja biblioteca alexandrina enriqueceu com muitos volumes. Não
faltam autores que afirmem que foi ele quem sugeriu a Ptolomeu Filadelfo a idéia de traduzir para o grego
os livros da Lei dos Judeus, e que a ele se deve, portanto, a famosa Versão dos Setenta, a Septuaginta.

§ 78 Crítica e vicissitudes posteriores da Escola Peripatética

Da breve revisão contida no parágrafo anterior, é evidente que: (1º) os discípulos e sucessores de
Aristóteles não conseguiram ou não souberam manter o brilho e o nome da escola fundada por seu mestre,
que decaiu de maneira tão lamentável e rápida; (2º) eles também não conseguiram manter a direção
enciclopédica de Aristóteles, fazendo a Filosofia e as ciências naturais avançarem juntas e em harmonia,
nem cultivando simultaneamente as diferentes ramificações da Filosofia aristotélica: alguns se dedicavam
à ética, outros à psicologia, outros ainda à física e mais alguns à parte teológica, sem se preocupar muito
com as outras partes da Filosofia.
Daí a profunda degeneração e rápida decadência da escola fundada por Aristóteles, ou melhor, de sua
Filosofia, que só recuperou parte de sua importância e esplendor, primeiramente com os trabalhos de
Andrônico de Rodes69, que organizou, compilou e preencheu algumas lacunas em suas obras, como também

67
Não confundir Aristão de Ceos (225 a.C.), que é peripatérico, com Aristão de Quios (260 a.C.), que é estóico. [N.T.]
68
Diz-se que, ressentido pela preferência que Aristóteles deu a Teofrasto para sucedê-lo na escola, honra que o filósofo tarentino
aspirava, ele se vingou desse desdém caluniando seu mestre em suas obras, entre as quais, a que se intitula Elementos Harmônicos,
foi publicada por Meibonio no século XVII.
69
Andrônico de Rodes (Ἀνδρόνικος ὁ Ῥόδιος - 60 a.C.) foi o último escolarca do Liceu. Seu principal feito foi a organização
149
fizeram Boeto de Sidon70, discípulo de Andrônico, e Xenarco71, que ensinou em Atenas e Roma. Depois
vieram os escritos e comentários de Nicolau Damasceno72
(quase contemporâneo da origem do Cristianismo), os de
Alexandre de Ega (que foi mestre de Nero) e os de Adrasto73.
Os trabalhos de todos esses foram de certa forma
obscurecidos e superados pelos de Alexandre de Afrodisia
(Ἀλέξανδρος ὁ Ἀφροδισιεύς), que floresceu no final do
século II d.C. e é sem dúvida o comentador74 mais notável de
Aristóteles entre os antigos 75 . Alguns neoplatônicos,
principalmente Porfírio, também reabilitaram e comentaram
diferentes partes da Filosofia de Aristóteles, e é sabido que o
Isagoge do discípulo e biógrafo de Plotino sobre os
universais supriu em parte a perda de certos escritos do
Estagirita sobre o assunto, servindo ao mesmo tempo como
base e ponto de partida para as grandes controvérsias dos
escolásticos sobre o realismo e o nominalismo, como
veremos oportunamente. Temístio de Paflagônia 76 , que
floresceu no século IV da Igreja; Asclépio de Trales77, que
viveu no quinto; Filopono, gramático de Alexandria 78 , e

dos escritos tanto de Aristóteles quanto de Teofrasto.


70
Boeto (Βόηθος) de Sidón (75-10 a. C.) confundiu substância e matéria. [N.T.]
71
Xenarco (Ξέναρχος) de Seleucia na Cilicia, foi filósofo e gramático, que ensinou primeiro em Alexandria, depois
em Atenas e, por último, em Roma. Disfrutou da amizade de Augusto. Discordava de Aristóteles em diversos
pontos e negava a existência do éter, compondo mesmo uma obra sob o título Contra o Quinto Elemento. [N.T.]
72
Nicolau de Damasco ou Damasceno (Νικόλαος Δαμασκηνός) foi historiador e filósofo. Sua História, composta de 144 livros,
serviu de fonte para As Antiguidades Judaicas de Josefo. [N.T]
73
Adrasto (Ἄδραστος) de Afrodísia (sec. II d.C.) foi filósofo e matemático. Comentou não só Aristóteles, mas, certamente, o
Timeu de Platão. [N.T.]
74
Alexandre de Afrodísia (Ἀλέξανδρος ὁ Ἀφροδισιεύς), cognomeado “o Comentador” (ὁ ἐξηγητής) e “Segundo Aristóteles”,
natural de Afrodísia na Cária, teve como mestres Sosígenes, Hermino e, possivelmente, Aristóteles de Mitilene. Foi nomeado
professor público de Filosofia aristotélica em Atenas pelos imperadores Sétimo Severo e Caracalla entre 198 e 209 d.C.
Suas obras se dividem em [a] Comentários e [b] Tratados.
Entre os primeiros [a] encontram-se os Comentários às [1] Categorias, [2] ao De Interpretação, [3] aos Analíticos Anteriores (no
qual defende que a lógica é instrumento (órgão) e não parte da Filosofia), [4] aos Analíticos Posteriores, aos [5] Tópicos, [6] às
Refutações Sofísticas, [7] à Física, [8] aos Meteorológicos, [9] ao Do sentido e sensível, [10] ao De Coelo, [11] ao Da Geração e
Corrupção, [12] ao De Anima e [13] à Metafísica. No século XIX, só em Berlim, foram publicadas sete (7) edições críticas de seus
Comentários.
Entre os segundos [b], econtram-se [14] Sobre a Alma, [15] Problemas e Soluções, [16] Problemas Éticos, [17] O Destino e [18]
Sobre Mistura e Crescimento. Preservam-se em árabe, ainda, [19] Sobre os Princípios do Universo, [20] Da Providência e [21]
Do Movimento contra Galeno. [N.T.]
75
Seus comentários mereceram ser reimpressos em nossos dias em Berlim, e já no século XVI aqueles que se referem à metafísica
foram traduzidos para o latim por nosso compatriota Sepúlveda e publicados em Veneza com a seguinte capa: Commentaria in
duodecim Aristotelis libros de prima philosophia, interprete Joanne Genesio Sepulveda Cordubensi. Essa versão de Sepúlveda é
uma das mais precisas e muito estimada.
76
Temístio (Θεμίστιος) de Paflagónia (317-387 d.C.) seguia principalmente a Filosofia de Aristóteles, em contraposição com seus
contemporâneos neoplatônicos, que o tomavam como um apêndice do pensamento de seu mestre Platão. Filho ele mesmo de
Professor de Filosofia, ensinou a maior parte de sua vida em Constantinopla, tendo sido apontado por Constantino II como
representante dessa cidade no Senado, aos 355 d.C. Comentou [1] o De Anima, [2] De Coelo e [3] a Física de Aristóteles. [N.T.]
77
Asclépio (Ἀσκληπιός) de Trales (570 d.C.), condiscípulo de Simplicio, tentou conciliar a doutrina de Platão com a
de Aristóteles, sendo, por isso, considerado um filósofo eclético. [N.T.]
78
João Filopono (Ἰωάννης ὁ Φιλόπονος) de Alexandria (490-570 d.C.), pertencente à Escola Neoplatônica de Alexandria, no
período pós-niceno, foi Professor na Academia de Alexandria. Distinguiu-se na Física – tendo estudado o impetus, o astrolábio, a
incércia e rejeitando várias teses aristotélicas nesta matéria – e na Gramática (de onde o seu epíteto Grammaticus). Teve forte
influência sobre o mulçumano Alfarábi, o nestoriano Ihoannitius (Hunain) ibn-Isaac e outros; além de ter influenciado, no sec. XIII
a Santo Tomás de Aquino. Terminou a vida convertido ao cristianismo.
Suas obras são, [1] De opificio mundi (sobre o astrolábio), [2] De aeternitate mundi contra Proclum e os Comentários [3] às
Categorias, [4] In Analítica priora; , [5] In Analitica posterior, [6] In primos quatuor Aristotelis de naturali auscultatione, [7] In
librum primum Metereorum, [8] In libros tres De anima, [9] In libros duos De Generatione et interitu, [10] In libros XIV
Metaphysicorum, e [11]In Physicorum libros. [N.T.]
Os comentários de Filopono sobre a metafísica, traduzidos por Patrizzi, foram impressos em 1583 com o seguinte título: Joannis
Philoponi breves, sed apprime doctae et utiles expositiones, in omnes 14 Aristotelis libros eos qui vocantur Metaphysici, quas Fr.
Patricius de graecis latinas feceral. Ferrariae 1583. [N.A.]
150
Simplício79, que floresceram no século VI, preservaram e propagaram as tradições e ensinamentos da escola
peripatética, principalmente nas regiões orientais.
Interrompida essa educação e obstruída sua comunicação com o Ocidente pelo fechamento da escola
filosófica neoplatônica de Atenas, pela invasão dos bárbaros com as guerras e distúrbios consequentes, e
agravada essa situação antifilosófica no Oriente em si devido ao fanatismo muçulmano contra as ciências
no primeiro período de suas conquistas, a Filosofia aristotélica reapareceu de maneira gradual e trabalhosa
na Europa cristã, quando esta se encontrou em estado de retomar a tradução interrompida, recolhendo e
desenvolvendo de um lado as idéias aristotélicas comentadas por Boécio, Cassiodoro e Santo Isidoro de
Sevilha, e de outro lado ampliando e desenvolvendo essas mesmas idéias com a ajuda dos livros, notícias
e tradições doutrinárias que foram introduzidos gradualmente na Europa pelos primeiros Cruzados; mas
ainda mais a comunicação entre a Igreja Oriental e a Ocidental por meio dos Concílios e das controvérsias
eclesiásticas.
Uma vez iniciado o movimento de restauração da Filosofia aristotélica pelos meios e causas indicados,
bastou o gênio da Europa, preparado e fecundado pelas idéias cristãs, para organizar o movimento científico
conhecido pelo nome de Filosofia escolástica, sem necessidade de buscar sua origem ou razão suficiente
na Filosofia dos árabes. Estes também comentaram, é verdade, os escritos de Aristóteles, como veremos
em seu lugar, e nesse conceito contribuíram mais ou menos, não para a origem ou o primeiro
desenvolvimento da Filosofia escolástica, mas para seu maior desenvolvimento, influenciando em algumas
de suas direções e em determinadas controvérsias. Certamente, entre essas direções e controvérsias
provocadas pelos comentários dos árabes, houve algumas opostas diretamente às conclusões fundamentais
da Filosofia cristã, conclusões e doutrinas que serviram de base e ponto de partida para certos filósofos da
época do Renascimento adotarem teorias essencialmente heterodoxas e racionalistas. Isso aconteceu, entre
outras coisas, com a afirmação de que uma coisa pode ser falsa em Filosofia e verdadeira em teologia ou
no terreno religioso, tese essencialmente racionalista, derivada de uma asserção análoga de Averróis, e isso
aconteceu principalmente com a famosa teoria deste sobre a unidade do entendimento, ou, digamos melhor,
da alma inteligente, unidade incompatível com a imortalidade das almas humanas singulares, mas tese
reproduzida por não poucos filósofos renascentistas das escolas italianas: porque é sabido que, durante a
época do Renascimento, os que na Itália faziam profissão de seguir a doutrina aristotélica, negavam a
imortalidade da alma, de uma maneira explícita e direta alguns deles, e outros, ou seja, os averroistas, de
uma maneira indireta; pois, como observa com razão Marsilio Ficino – testemunha excepcional na matéria
–, quase todos os peripatéticos de seu tempo estavam divididos em duas seitas, seguindo uns ao Comentador
Alexandre de Afrodisia, e outros a Averróis, mas concordando todos em jogar por terra a imortalidade da
alma80, e negando ao mesmo tempo outras verdades fundamentais do Cristianismo.

§ 79 O estoicismo

Zenão (Ζήνων ὁ Κιτιεύς), fundador do estoicismo, nasceu em Cítio, cidade de Chipre, por volta do
meio do século IV a.C. Seu pai, que era comerciante, trouxe-lhe de Atenas alguns livros contendo o
pensamento de Sócrates e de outros filósofos; e, com a leitura destes, ele começou a se interessar pelo
estudo das ciências. Tendo perdido toda a sua fortuna em um naufrágio que sofreu navegando para Atenas,
ao chegar nesta cidade encontrou casualmente o cínico Crates, cuja escola e ensinamentos seguiu por alguns
anos. Depois frequentou as escolas megárica e acadêmica ou platônica, ouvindo sucessivamente Estilpão

79
Simplício (Σιμπλίκιος) da Cilícia (490-560) foi filósofo e matemático e é um dos últimos neoplatônicos, desterrado por
Justiniano – período em que busca refúgio na corte sassânida – e retornando sob Cosroes I. Comentou [1] De Anima, [2] De Coelo
e [3] as Categorias de Aristóteles e [4] o Encheirídion de Epiteto. [N.T.]
80
Eis como se expressa Marsilio Ficino sobre este ponto: “Totus enim ferme terrarum orbis a peripateticis occupatus, in duas
plurimum sectas divisus est, alexandrinam et averroicam. Illi quidem intellectum nostrum esse mortalem existimant; hi vero unicum
esse contendunt. Utrique religionem omem funditus aeque tollunt, praesertim quia divinam circa homines providentiam negare
videntur, et utrobique a suo Aristotele defecise, cujus mentem hodie pauci, praeter Picum complatonicum nostrum, ea pietate qua
Theophrastus olim et Themistius, Porphyrius, Simplicius, Avicenna, et nuper Plethon interpretantur.” Op Plotini Mars. Fic. interp.,
prólogo.
151
de Megara e Xenócrates. Após vinte anos de estudos e meditações, Zenão havia formado um sistema
próprio de Filosofia, que começou a explicar publicamente em um pórtico de Atenas, denominado Stoa,
razão pela qual sua Filosofia recebeu os nomes de Estoicismo e escola do Pórtico. Em idade muito
avançada, reduzindo à prática sua teoria acerca da legitimidade do suicídio, o fundador do estoicismo pôs
fim aos seus dias, deixando em seu lugar um nome muito respeitado pelos habitantes de Atenas
na vida e na morte 81 , uma escola florescente e numerosos discípulos, os quais não se
limitaram a conservar sua doutrina, mas a precisaram, desenvolveram e modificaram em
muitos pontos. Assim, a exposição da doutrina estoica que vamos fazer compreende a de
seu fundador juntamente com as adições e esclarecimentos principais de seus discípulos e
sucessores, e em particular as de Cleantes e Crisipo. Isso, limitando-nos aos estóicos
gregos e greco-asiáticos, e prescindindo dos estóicos romanos, que modificaram e
purificaram algumas partes do sistema.
O estoicismo, considerado em Zenão e em seus sucessores imediatos,
“A natureza deu-nos somente
representa uma restauração do ponto de vista socrático. À semelhança do mestre uma boca, mas duas orelhas, de
de Platão, o filósofo de Cítio e sua escola cultivam e desenvolvem o elemento modo que nós devemos falar
menos e escutar mais”. (Zenão)
ético com preferência a todos os outros. Física e metafísica, cosmologia,
teodicéia e dialética, e até mesmo a religião, são subordinadas à moral, e todas recebem uma direção prática
sob a influência do pensamento estóico.
Outra das características mais marcantes e transcendentes do estoicismo consiste em ter separado a
moral da política, e em ter dado à primeira uma direção essencialmente subjetiva, independente e
individualista. Nos sistemas filosóficos anteriores, sem excluir Platão e Aristóteles, vemos que a ética está
de certa forma confundida e identificada com a política, intimamente ligada e como absorvida por esta,
resultando daí que o homem como indivíduo, a personalidade humana, não vive nem age senão pela
comunidade e para a comunidade, que se torna a fonte e como a norma principal da moralidade dos atos
humanos. Com o estoicismo desaparece essa antiga confusão da moral com a política, e a primeira adquire
certo caráter individualista e independente. Em vez dessa comunidade absorvente, diante da qual
desaparecia a vida moral e a ação própria do indivíduo, aparece no estoicismo e com o estoicismo o sábio,
o homem da virtude, que se concentra em si mesmo; que se basta a si mesmo; que se sobrepõe a tudo o que
não é sua própria razão, sua personalidade; que se declara, enfim, independente e superior à natureza, à
sociedade, à divindade mesma, a tudo o que não é ele mesmo.
Esta direção essencialmente prática, independente e individualista do estoicismo, é evidente em todas
as suas teorias, mesmo naquelas que são mais abstratas, como se observa em sua antipatia pelas idéias de
Platão, em sua solução para o problema dos universais, em sua negação da transcendência divina e em
outras várias afirmações que indicaremos ao expor sua Filosofia.

§ 80. Lógica no estoicismo

Como já foi indicado, a lógica – bem como a física e todas as outras ciências, incluindo a Teologia –
tem uma importância apenas secundária, para o estoicismo. Quer dizer, tais ciências devem ser cultivadas
apenas na medida em que são úteis como preparação e introdução à ética, ciência única e suprema, bem
como a verdadeira perfeição do homem, à qual todas as demais coisas, ciências e bens devem ser
subordinados.
A essência e a substância da lógica dos estóicos – na qual geralmente incluíam a retórica e a poética – é
a teoria do conhecimento; pois, em relação ao restante, coincide geralmente com a lógica aristotélica.
Sua teoria do conhecimento reconhece as sensações como fonte comum de todas as idéias intelectuais,
as quais se reduzem a quatro categorias: [1] substância, [2] modalidade ou modo de ser, [3] qualidade e [4]

81
Conta-se que os atenienses depositaram nas mãos de Zenão as chaves da cidade para que as entregasse ao cidadão que
considerasse mais digno de governá-los, que lhe ofereceram uma coroa de ouro, e que votaram em sua honra estátuas e sepultura
no Cerâmico.
152
relação. A alma humana é uma tabula rasa (à Tabula Rasa
direita), na qual nada está escrito, e suas A expressão tem origem na
concepções (os conceitos) ou idéias, longe de tabuleta romana utilizada para

stylus
serem inatas como afirma Platão, têm sua origem anotações: uma estrutura de
madeira com uma lâmina de
na sensação e devem seu ser ao próprio ato da cera, que era apagada aquecen- tabula
intelecção. A impressão sensível que dá origem à do-a e nivelan-
sensação é uma impressão material, assim como a do-a ou alisan-
que o selo produz na cera. As idéias universais e do em seguida.
Era nessa cera
subsistentes de Platão são absurdas e quiméricas: que os antigos
as essências representadas nos conceitos universais escreviam, fazi-
não têm realidade, nem nas Idéias de Platão, nem am cálculos, es-
nos singulares, como supõe Aristóteles; são apenas tudavam etc.
A cera podia ser
conceitos subjetivos e abstrações da compreensão amarela ou preta.
(nominalismo), que não correspondem a qualquer E cada uma destas tábuas funcionava como uma pequena
realidade objetiva. Em outras palavras, o universal, folha onde se escrevia com um stylus ou estilete (de onde
vem o uso de se marcar o círio pascal com um estilete)
objeto da ciência, não existe nem fora das coisas,
que tinha uma ponta fina para escrever e outra redonda
como quer Platão, nem nas coisas, como quer ou chata para raspar e alisar, para “apagar”.
Aristóteles, mas apenas como abstração do Daqui as expressões até hoje usadas para a Filosofia do
pensamento. conhecimento: a inteligência é como a tábula que é
informada pelo conteúdo (de fato, a cera toma a forma do
A verdade de uma idéia ou concepção consiste conteúdo); as idéias, que em latim se dizem formas,
na fidelidade e exatidão com que reproduz e informam a inteligência.
representa o objeto; a clareza objetiva, a Tabula rasa significa literalmente pequena tábua
inteligibilidade perspicaz do objeto, constitui o nivelada ou alisada, isto é, sem nenhum conteúdo prévio.
único critério de verdade, ou melhor, de certeza, que pode ser distinguido em quatro graus: [a]
[a] imaginação ou percepção, [b] crença ou assentimento, [c] entendimento ou
compreensão (κατάληψις) e [d] ciência ou sabedoria. A [a] mão aberta representa a
imaginação ou percepção; a [b] mão meio cerrada representa o assentimento ou crença em
[b]
algo; a [c] completamente fechada representa a compreensão; entrelaçada com a outra mão,
representa a ciência, ou seja, a ciência universal e sistemática, a sabedoria.
Zenão procurou ilustrar isso com uma atitude: esticando os dedos e mostrando a palma da [c]
mão, disse: “A percepção é como isto”. Depois, fechando um pouco os dedos, disse: “O
assentimento é assim”. Em seguida, fechando completamente a mão e mostrando o punho,
[d]
disse que isso era a compreensão. A partir dessa comparação, deu um nome novo para este
estado que não havia antes, e o chamou “katalepsis”. Pondo, porém, a mão esquerda sobre
a direita e segurando firmemente o punho, disse que a ciência tinha essa característica; e
isso era algo que apenas o sábio possuía82.

A evidência é o único e geral critério de verdade, a norma do julgamento: perspicuis cedere, rem
perspicuam approbare, como diz Cícero.
De acordo com sua teoria essencialmente sensualista e empírica, os estóicos não consideravam a
memória, a experiência e as idéias primeiras como nada mais do que modificações e associações
espontâneas das sensações, bem como representações ou antecipações da espontaneidade sensível.
Os estóicos – escreve Plutarco a esse respeito – ensinam que quando o homem nasce, a parte principal
de sua alma é para ele como um pergaminho, como uma espécie de tabuinha (tabula) na qual ele anota
e inscreve os conhecimentos adquiridos sucessivamente. Em primeiro lugar, ele anota ali as percepções
dos sentidos. Se ele experimentou qualquer sensação, por exemplo, a sensação do branco, quando esta
desaparece, ele conserva a memória dela. Quando muitas sensações semelhantes se associam, resulta e
constitui a experiência, em força e devido a essa associação, segundo os estóicos; pois a experiência
nada mais é do que o resultado de um certo número de sensações homogêneas. Já explicamos como a

82
Cícero, Academica, lib. II, 47.
153
percepção das noções naturais (sensações, representações sensíveis) se realiza sem ajuda externa. As
outras são fruto de instrução e do próprio trabalho, razão pela qual são as únicas que merecem ser
chamadas de noções (conhecimento racional), pois as primeiras são meras prenoções ou antecipações.83

§ 81. Física do estoicismo

A física do estoicismo compreende a psicologia e a Teologia, porque para o estoicismo, ou pelo menos
para a maioria de seus adeptos, todos os seres são corporais e, portanto, objetos da física. Embora às vezes
falem de coisas incorpóreas, como espaço, lugar, vazio, tempo, trata-se de uma incorporeidade relativa e
de nome, sendo muito provável que eles chamassem essas coisas de incorpóreas, porque elas não têm
realidade distinta das coisas sujeitas ao tempo, espaço etc. Porque a verdade é que, para o estoicismo, corpo
é todo ser real, tudo o que é capaz de ação ou paixão. Assim, na realidade, tudo o que existe é corpo, ou
seja, coisa corpórea e material, sem que haja nada que seja espírito puro, nem mesmo Deus, diga Aristóteles
o que quiser. O que é chamado de espírito é apenas o princípio ou elemento ativo em oposição ao elemento
passivo.
Em conformidade com esses princípios fundamentais, os estóicos concebiam o mundo como resultado
e efeito da união de Deus, princípio ativo universal, com a matéria inerte e grosseira84 que serve como
princípio passivo. Na realidade, no entanto, tanto o princípio ativo quanto o passivo são materiais e se
distinguem apenas pelo fato de o primeiro, Deus, a substância etérea, o fogo divino, ser um ser inteligente
e dotado de razão, por meio da qual razão age sobre a matéria inferior e mais grosseira. Mas ele age
tornando-se parte das substâncias produzidas com operação ou produção imanente, de modo que o animal,
por exemplo, enquanto animal e vivo, carrega dentro de si uma parte do calor ou fogo divino: Omne quod
vivit, sive animal, sive terra editum, id vivit propter inclusum in eo calorem.
Daqui se infere que a união do princípio ativo com o princípio passivo, a união do Deus-éter com a
matéria inferior e mais grosseira, não é a união do motor com o móvel, nem da causa eficiente em relação
ao seu efeito; é a união de um princípio informante e plástico, que informa, penetra e vivifica todas as partes
do universo, assim como a alma humana informa e vivifica o corpo humano. Deus é, portanto, a alma
universal do mundo, e este é o corpo da Divindade, que, embora como força imanente, esteja intimamente
ligado ao mundo, o supera pela razão. Deus é a razão suficiente da beleza do mundo, a origem de sua
finalidade e do governo providencial a que os seres do universo estão submetidos, embora esta
“providência” se realize de maneira fatal e necessária, porque a Providência divina dos estóicos se identifica
com o fatum ou destino da antiga mitologia, de modo que, na realidade, a razão divina que governa o mundo
e a lei necessária da natureza são a mesma coisa.
O Deus do estoicismo é um ser corporal, assim como todos os seres reais. Com frequência, ele é chamado
de fogo, éter primitivo, e suas transformações contêm a origem e a razão suficiente para a variedade de
seres que povoam o mundo, que, por essa razão, está sujeito a perecer e renascer periodicamente. O
universo, que saiu de Deus, ou seja, do éter divino, entra novamente nele depois de um determinado tempo,
por meio da combustão. Isso significa que a realidade, o ser, para os estóicos, é uno e único, é o fogo
primitivo, é Deus, que se transforma em universo por meio de evoluções e involuções periódicas e fatais,
que trazem consigo a destruição dos seres individuais, permanecendo apenas eternamente o ser divino, o
germe e o fundo essencial, o princípio, o meio e o fim real de todas as coisas.
Além disso, é preciso ter em mente que as idéias do estoicismo, incluindo seus principais representantes
e seu próprio fundador, sofrem de certa vaguidade, confusão e inconsistência, o que não permite formar um
conceito exato e seguro de sua teoria físico-teológica. Às vezes em Zenão, às vezes em seus discípulos, a
divindade é o mundo ou universo, é a razão que se espalha por todas as partes dele, é um ser sem forma e
sentido, é uma força fatal que agita a natureza e determina suas manifestações, é fogo ou éter que informa

83
De placit. philosoph., lib. IV, cap. XI.
84
“Stoici nostri – escreve Sêneca – duo esse in rerum natura (dicunt), ex quibus omnia fiant, causam et materiam. Materia jacet
iners res ad omnia parata, cessatura, si nemo moveat; causa autem, id est, ratio, materiam format, et quocumque vult versat; ex illa
varia opera producit.” Opera, epist. 65.
154
e vivifica as partes do mundo, é o sol com as outras estrelas, é o éter que cerca e contém dentro de si o
mundo85, sem contar as aplicações e interpretações mitológicas. De qualquer forma, a idéia mais constante
e mais de acordo com os princípios do estoicismo que parece se desprender de suas afirmações sobre a
matéria é que Deus deve ser concebido como uma realidade una e toda sujeita a uma lei fatal e necessária,
em virtude da qual, e também graças à força viva e inteligente que contém em si essa realidade toda e una,
assume diferentes formas, estados e graus de evolução, que constituem o mundo, ou melhor, os mundos,
que aparecem e desaparecem alternadamente com suas diferentes existências particulares. Quando os
estóicos afirmam que Deus é a razão ou a mente do mundo, eles dão esse nome à mente na medida em que
é a principal parte de Deus, mas não Deus em si, pois rigorosamente essa denominação só pode ser atribuída
ao próprio mundo em sua totalidade e unidade, uma vez que, para o estoicismo, o mundo não é apenas o
melhor e mais perfeito de todos, mas nada pode ser pensado como mais perfeito: Certe nihil omnium rerum
melius est mundo... nec solum nihil est, sed nec cogitari quidem quidquam melius potest.
Dada essa concepção da divindade, é óbvio que, embora o estoicismo fale de providência divina e
liberdade humana, ambas devem ser consideradas meras palavras e fórmulas sem realidade objetiva no
sentido próprio da palavra. Os movimentos e ações do homem, assim como as transformações produtivas
e evolutivas de Deus, estão sujeitos à lei inflexível do fatum universal, de modo que nem Deus nem o
homem podem deixar de colocar seus atos na forma como o fazem. A liberdade, tanto para Deus quanto
para o homem, só pode significar espontaneidade natural, mas necessária, que, embora excluindo a coerção
externa, não exclui a necessidade interna, incompatível com a verdadeira liberdade e domínio de seus atos,
incompatível com o que se chama livre-arbítrio.
Portanto, para o estoicismo, o mal é necessário e inevitável no mundo. Não apenas os males físicos,
como a guerra, as doenças, a morte, mas também o mal moral, são manifestações ou, se preferirmos,
evoluções necessárias e fatais da divindade. Embora não se diga que Deus queira o mal, ele é inevitável e
até necessário para que o bem exista, tanto no sentido físico como no moral. Para provar essa doutrina, os
estóicos, apropriando-se do pensamento de Heráclito e prenunciando a escola hegeliana, ensinavam que
nada pode existir sem que seu oposto exista, razão pela qual a justiça não pode existir sem a injustiça, e em
geral o bem não pode existir sem o mal.
Os estóicos admitiam uma espécie de Teologia natural, baseada na relação e subordinação de fins entre
os diferentes seres do mundo, mas não em relação ao próprio mundo, ao qual não está ordenado (praeter
mundum, caetera omnia aliorum causa esse generata) a nada além de si mesmo, sendo, como é, o ser
perfeitíssimo. Nessa cadeia teológica, o homem ocupa um lugar importante e preferencial, pois tem como
objetivo a contemplação e imitação do mundo, ou seja, de Deus, do ser mais perfeito e supremo: ipse autem
homo ortus est ad mundum contemplandum et imitandum.
A alma humana é uma emanção da alma universal do mundo, um sopro, uma participação do fogo divino
primordial. Embora corporal em sua essência, é superior ao corpo humano e pode sobreviver à sua
destruição. No entanto, essa imortalidade ou incorruptibilidade da alma é apenas relativa e temporária, já
que perece e cessa de existir quando o mundo é consumido pelo fogo, para que outro universo comece a
existir. A imortalidade absoluta corresponde somente a Deus.

85
Todas estas opiniões, e algumas mais, encontram-se indicadas na seguinte passagem de Cícero: “Zenon autem naturalem legem
divinam esse censet... quam legem quomodo efficiat animantem, intelligere non possumus: Deus autem animantem certe volumus
esse. Atque hic idem alio loco aethera Deum dicit. Aliis autem libris rationem quandam, per omnium naturam rerum pertinentem,
ut divinam esse affectam putat. Idem astris hoc idem tribuit, tunc annis mensibus annorumque mutationibus. Cujus discipuli
Aristonis non minus magno in errore sententia est; qui neque formam Dei intelligi posse censeat, neque in diis sensum esse dicat,
dubitatque omnino, Deus animans, necne sit.
“Cleanthes autem, qui Zenonem audivit una cum eo, quem proxime nominavi, tum ipsum mundum Deum dicit esse; tum totius
naturae menti atque animo tribuit hoc nomem; tum ultimum, et altissimum atque undique circumfusum, et extremum omnia
cingentem atque complexum ardorem, qui aether nominetur, certissimum Deum judicat, tum divinitatem omnem tribuit astris.
“Jam vero Chrysippus, qui stoicorum somniorum vaferrinus habetur interpres, magnam turbam congregat ignotorum Deorum...
“Ait enim vim divinam in ratione esse positam, et universae naturae anima atque mente; ipsumque mundum Deum esse dicit et
ejus animi fusionem universam: tum ejus ipsius principatum qui in mente et ratione versetur; tum fatalem vim et necessitatem
rerum futurarum; ignem praeterea, et eum, quem antea dixi, aethera; tum ea quae natura fluerent atque manarent, ut et aquam, et
terram et aera, solem, lunam, sidera universitatemque rerum, qua omnia continerentur.” De nat. Deorum, lib. I. n. 14-15.
155
§ 82. Moral do estoicismo

A moral do estoicismo está resumida e condensada na seguinte máxima: viver e agir de acordo com a
razão e a natureza. Como para os estóicos o fundamento da natureza é a razão divina, agir de acordo com
a natureza é agir de acordo com a razão, e daí surge o fato de alguns deles explicarem e definirem a virtude
como conformidade com a natureza e outros como conformidade com a razão. Essa maneira de viver e agir
constitui a virtude, e a virtude é o bem supremo e único do homem: a fortuna, as honras, a saúde, a dor, o
prazer, junto com todas as outras coisas que são chamadas de boas ou más, são indiferentes por si mesmas,
e até mesmo podem ser consideradas más quando são objeto direto de nossas ações e desejos. Somente a
virtude, a virtude praticada por si mesma e de forma absolutamente desinteressada, constitui o bem, a
perfeição e a felicidade do homem. A apatia perfeita, a indiferença absoluta, por meio das quais o homem
se torna superior e indiferente a todas as dores e prazeres, a todas as paixões com seus objetos, a todas as
preocupações individuais e sociais, são as características do sábio verdadeiro, do homem da virtude. As
paixões devem ser erradicadas porque são naturalmente más; a virtude é necessariamente boa, porque
ninguém pode adquirir ou perder uma virtude sem adquirir ou perder simultaneamente todas as outras.
Diante de máximas e princípios de moralidade tão elevados, qualquer um pensaria que a moral do
estoicismo estaria isenta das grandes aberrações que observamos em outras escolas filosóficas; no entanto,
ocorre exatamente o oposto. A mentira proveitosa, o suicídio, a sodomia, as uniões incestuosas e outras
abominações semelhantes autorizadas na moral dos estóicos demonstram que a superioridade desta é mais
aparente do que real, e que o orgulho só pode produzir doutrinas corruptoras, e que a razão humana por si
só é impotente para descobrir e formular um sistema completo de moral 86 , ou que não contenha nada
contrário à reta razão.
A [1] prudência ou sabedoria, [2] a justiça, [3] a coragem ou fortaleza e [4] a temperança são as quatro
virtudes cardeais. O homem que possui com perfeição essas quatro virtudes não tem nada a pedir nem a
invejar à divindade; ele se torna igual a Deus, do qual só difere na duração maior ou menor de sua existência
(bonus ipse tempore tantum a Deo differt, na expressão de um dos principais representantes do estoicismo,
quer dizer, porque não é absolutamente imortal, como Deus).
A virtude é a verdadeira e única felicidade possível para o homem: somente ela pode ser chamada de
bem, no sentido próprio da palavra, assim como, pelo contrário, o único mal verdadeiro é o vício. Todas as

86
A dar-se crédito a Diógenes Laercio, para os estóicos “os pais e os filhos são inimigos entre si, quando uns e outros não são
sábios”. O mesmo autor acrescenta que Zenão “estabelecia por dogma que as mulheres fossem comuns a todos”.
Ademais, são tantas e tão grandes as aberrações de ordem moral que encontramos nos estóicos, e isto após terem assentado
princípios e máximas gerais de indubitável retidão ética, que bem se podem considerar semelhantes aberrações como castigo
exemplar do orgulho da razão humana. E para que não se creia que exageramos neste ponto, vamos transcrever algumas passagens
de Sexto Empírico, que resumem, não todas, mas algumas destas aberrações, devendo advertir que nos vemos na necessidade de
indicar com muita brevidade, e a omitir por completo palavras e sentenças que se referem a certas abominações, que nem sequer
em latim devemos publicar.
“Apud nos turpe, non vero nefarium habetur, mascula Venere uti, apud Germanos autem, ut fertur turpe non est. Quod cur mirum
ulli videatur, cum etiam Cynici philosophi, et Zenon Citticus, et Cleanthes, et Chrysippus indiferens hoc esse dicant? Stoicos etiam
audimus dicentes a ratione non abhorrere cum meretrice congredi, aut quaestu a meretrice facto aliquem sustentare vitam.
“Quin etiam Citticus Zenon ait a ratione alienum et abhorrens non esse, matris naturam suae era. Atque adeo Chrysippus in Politia
sua dogma hoc ponit, patrem ex filia et matrem ex filio, et fratrem ex sorore liberos procreare. Cum praeterea detestabile sit apud
nos Zeno approbat.” Hypot. pyrrhon., lib. III, cap XXIV.
Não é menos explícita a seguinte passagem, que nos mostra aos estóicos aprovando as abominações mais repugnantes, inclusa a
antropofagia: “Ipse ergo princeps sectae eorum, Zeno de puerorum institutione, cum alia similia, tum vero haec dicit: dividere
nihilo magis nec minus paed... nec foeminas quam mares; non enim sunt alia quae paed... nec foeminas aut mares deceant, sed
eadem illos decent. De pietate autem erga parentes idem ait, de Jocastae et aedipodis facto loquens, non fuisse mirum si matrem
nihil in eo erat turpitudinis si alias partes ex matre liberos procreavit.
“His autem Chrysippus adstipulans in Politia scribit. Quim etiam in iisdem libris humanarum carnium esum inducit; ait enim: Quod
si ex vivis abscindatur aliqua pars ad esum utilis, neque defodere illam, neque temere projicere, sed eam consumere, ut ex nostris
alia pars fiat.
“In libris autem De officio, de parentum sepultura scribens, haec nominatim dicit: Mortuis autem parentibus, sepulturis utendum
simplicissimis, quipped cum corpus (quemadmodum ungues, aut dentes, aut pili), nihil ad nos pertineat. Ideoque si quidem utiles
sunt carnes, illas in suum alimentum convertent (quemdmodum et si aliquod ex propriis membris abscissum fuisset, verbi gratia,
si pes, uti ipso conveniens fuisset); sin autem sint inutiles (ad esum) aut defossas relinquent, aut longius projicient, nullam earum
rationem habentes, tanquam unguium aut pilorum.” Ibid., cap. XXV.
Seria muito bom que meditassem nessas passagens e se olhassem no espelho aqueles que sustentam que a moral cristão tenha no
estoicismo o seu modelo tipo e a sua origem.
156
outras coisas são realmente indiferentes. A constância, a fixidez e a imutabilidade da vontade representam
o caráter mais nobre da virtude.
O sábio estóico, o homem da virtude, vive e age em total submissão à natureza, à divindade, à lei
imutável e fatal das coisas, e não com interesses egoístas e em busca de sua própria felicidade. Assim, a
virtude se basta a si mesma e não aspira nem precisa de outra vida, nem da imortalidade da alma, para ser
feliz: virtus seipsa contenta est, et propter se expetenda.
Tese fundamental do estoicismo, também, é a igualdade dos erros morais: para os estóicos, assim como
uma verdade não é maior do que outra, nem um erro é mais erro do que outro, um pecado ou erro moral
não é maior do que outro. Daí também a correlação íntima, a conexão necessária das virtudes, já que não é
possível possuir uma delas sem possuir todas as outras.
Já foi mencionado que os estóicos consideravam as paixões como movimentos contrários à razão e,
consequentemente, como maus na ordem moral. Além disso, o estoicismo costumava reduzir todas as
paixões a quatro, quais sejam [a] a concupiscência (libidinem na expressão de Cícero), [b] a alegria, [c] o
medo e [d] a tristeza. As duas primeiras se referem ao bem como seu objeto próprio; as últimas são relativas
ao mal.
Além dos muitos e graves defeitos que a moral do estoicismo apresenta e que acabamos de mencionar,
ela entranha ainda um outro princípio que a corrompe em sua origem e essência: como vimos, a liberdade
humana, o livre-arbítrio individual no sentido próprio da palavra, é incompatível com a teoria metafísica e
teológica do estoicismo, segundo a qual a natureza humana é determinada em sua natureza e em seus atos
pela natureza universal, e a razão individual pela razão divina. A lei universal de Deus, do homem e do
mundo é a fatalidade absoluta, significada pelo Destino no estoicismo e para o estoicismo. Daqui se segue
que viver e agir de acordo com a natureza e a razão, não pode significar, no estoicismo, outra coisa senão
viver e agir se conformando ao movimento irresistível da natureza universal, abandonando-se ao destino e
à corrente fatalista das coisas, e seguindo atraído pelas correntes da vida, que o arrastam em direção ao seu
fim, ou seja, em direção ao fim geral do universo.
Daqui se depreende que, apesar das aparências em contrário e apesar de suas pretensões, a moral do
estoicismo não seja apenas extremamente imperfeita e viciada, mas que mal mereça o nome de moral, uma
vez que lhe falta um dos fundamentos e condições essenciais para a moralidade. Porque onde não há livre-
arbítrio, onde não há verdadeira liberdade humana, não há e nem pode haver verdadeira moralidade para o
homem, e os nomes de bem e mal, virtude e vício, perdem sentido. O resultado e a aplicação lógica desse
princípio fatalista é essa indiferença ou imperturbabilidade que constitui a virtude, a suprema perfeição do
homem para o estoicismo, a real superioridade do sábio estóico, superioridade e perfeição que o tornam
capaz de considerar como indiferentes e lícitos as maiores abominações, os atos mais repugnantes e imorais
aos quais nos referimos anteriormente.

§ 83. Crítica

A doutrina exposta no parágrafo anterior quase nos isenta de emitir um julgamento crítico sobre a moral
do estoicismo. Elevada, pura e até sublime em algumas de suas máximas fundamentais, ela, no entanto,
incorre em frequentes aberrações, descendo ao absurdo, à abominação e à imoralidade mais repugnantes
quando se trata de deduções e aplicações concretas. A ética do estoicismo merece crédito da razão, da
sociedade e da Filosofia ao estabelecer e afirmar que a virtude implica conformidade com a natureza e com
a razão divina. Mas essa concepção, considerada em si mesma e prout jacet, tem algo de elevado e superior,
que deteriora não apenas quando focamos em suas aplicações errôneas e exageradas, mas principalmente
quando nos deparamos com sua essência materialista e panteísta. Pois já foi observado que, para os estóicos,
Deus e a natureza material são a mesma coisa, uma única substância. Não é surpresa que a moral estoica,
mesmo com sua aparente e parcial elevação, decaia rapidamente em suas aplicações, porque elas derivam
de uma árvore danificada em sua essência, isto é, seu panteísmo materialista. Já vimos que a moral do
estoicismo é moral radicalmente viciosa e sem valor ético real, uma vez que nega a liberdade humana e
parte do princípio fatalista, que é uma das teses fundamentais da metafísica dos estóicos.
157
Por outro lado, os dois preceitos célebres do estoicismo, sustine et abstine, bons e até excelentes como
expressões do domínio e direção que a razão deve ter sobre as paixões, deixam de ser assim quando se
convertem em preceitos de extermínio dessas mesmas paixões: uma coisa é a moderação das paixões e sua
subordinação à parte superior, outra coisa é sua aniquilação e a apatia estoica.
A suposta pureza do motivo da ação, o preceito de agir virtuosamente por força própria, com o
consequente desprezo e indiferença em relação a todas as outras coisas e, acima de tudo, a autonomia
independente atribuída a sua razão individual, única norma, medida e fonte de virtude, têm uma grande
afinidade, para não dizer identidade, com os imperativos categóricos de Kant e com as recentes teorias
racionalistas do krausismo87, que apregoam o fazer o bem pelo bem. E não é preciso dizer que todas essas
teorias morais, apesar de seu aparente desinteresse e de suas fórmulas rigoristas, se resumem a um refinado
egoísmo; a um egoísmo que substitui a razão divina pela razão própria; ao egoísmo do homem que se coloca
no lugar de Deus para receber as adorações de sua própria vaidade e dos outros homens. Victor Cousin88
observou oportunamente que o egoísmo, que é a última palavra do epicurismo, é também a última conclusão
lógica do estoicismo.
A física e Teologia dos estóicos se reduzem a um panteísmo psicológico-materialista mais ou menos
informe, que, depois de classificar Deus entre os corpos, faz da divindade a alma do mundo, ou seja, uma
força que informa e penetra todas as coisas, que as gera e destrói por meio de evoluções e involuções
periódicas, e das quais as almas humanas são derivadas ou participações passageiras. No entanto, essa
divindade, embora unida e ligada ao mundo e constituindo seu fundamento essencial, é superior ao mundo,
é a causa ou fundamento do mesmo, e governa-o por meio de sua razão e de leis providenciais. Não é difícil
reconhecer que isso tem muitas semelhanças com a doutrina cosmológico-teológica do krausismo. Por outro
lado, o éter primitivo, Deus, que se transforma em variedade e multiplicidade de mundos e seres sujeitos à
lei necessária do destino ou fatum, lembra as evoluções e transformações da Idéia hegeliana, submetidas à
lei dialética, tão necessária e imutável quanto a do fatum estóico.
Considerada em conjunto, a Filosofia do estoicismo pode ser considerada uma síntese mais ou menos
completa da Filosofia cínica e da doutrina de Heráclito. Na teoria moral de Zenão encontramos vestígios
do ensinamento do cínico Crates, seu primeiro mestre, e sua teoria físico-teológica tem muitos pontos de
contato com a Filosofia de Heráclito. Assim, a escola cínica perde sua importância e, por assim dizer, sua
autonomia, desde que surge e se consolida o estoicismo, que absorve e transforma a moral dos antigos
cínicos. Além de suas contradições, ou melhor, de suas quedas, tão opostas a seu puritanismo, como quando
justifica a mentira, o suicídio etc., a moral estoica tem o grave defeito de condenar absolutamente o prazer
e as paixões, confundindo e identificando a energia natural dessas paixões com a imoralidade. Uma coisa é
que as paixões devam ser moderadas e subordinadas à razão e ao cumprimento do dever moral, outra coisa
é que sejam imorais e más por sua própria natureza, observação que pode ser igualmente aplicada aos
prazeres e satisfações sensíveis.
Outro grave defeito da moral estoica é a separação, ou melhor, a oposição que estabelece entre a virtude
e a felicidade, como consequência, efeito e complemento da mesma, especialmente na vida futura. Uma
coisa é que o homem, ao agir, não deva se propor como fim principal e único da ação virtuosa a felicidade
pessoal, outra coisa é que o direito a essa felicidade não seja uma consequência natural e legítima da ação

87
Krausismo (de seu fundador Karl Christian Friedrich Krause), no âmbito das idéias, é uma doutrina idealista que tenta conciliar
o teísmo com o panteísmo. Sua doutrina, o panenteísmo defende que a divindade – intuitivamente conhecida pela consciência –
não seja pessoal (uma vez que a personalidade implicaria limites), mas uma “essência de todo inclusiva” ou wesen, que contém em
si o universo.
No âmbito das ações, lutava pela tolerância acadêmica e a liberdade de cátedra. Na América, o krausismo encontra seus principais
representantes em Martí e Hostos, próceres da independência e da luta anticolonial de Cuba e de Porto Rico contra Espanha. Valiam-
se das relações com a franco-maçonaria para promover uma rede de apoio à imigração de educadores liberais krausianos para
trabalharem na formação acadêmica das novas repúblicas independentes, especialmente em Costa Rica. [N.T.]
88
Victor Cousin (1792-1867) foi o fundador do ecletismo filosófico, combinando elementos do idealismo alemão com o realismo
do senso comum escocês. Manteve-se influente na educação da sociedade francesa, sendo elevado a Ministro da Instrução Pública
por seu apoio à Revolução de Julho, que pôs fim à Restauração Francesa, com o exílio do Rei legítimo Carlos X e a entronização
do “Rei Burguês”, Luís Filipe de Orléans. Editou as obras de Descartes, traduziu Platão e Proclo e, de sua própria lavra, distingue-
se pela sua Histoire de la philosophie au XVIIIe siècle (1829) e Du Vrai, du Beau et du Bien (1853). Chamou, ainda, a atenção para
a inteligência feminina, com uma série de artigos biográficos, entre os quais Jacqueline Pascal (1845), Madame de
Longueville (1852), Madame de Sablé (1854), Madame de Chevreuse e Madame de Hautefort (1856). [N.T.]
158
virtuosa, ou que esta deva prescindir e rejeitar a esperança e o desejo dessa felicidade, que, afinal, pode ser
considerada uma extensão, uma manifestação da virtude.
Resumindo: se considerarmos o estoicismo como um todo, podemos dizer que, ao lado de certa elevação
parcial do ponto de vista ético, ele contém graves erros como sistema filosófico; porque a verdade é que
sua psicologia é uma psicologia sensualista; sua teodicéia é uma teodicéia panteísta; sua metafísica e
cosmologia têm um fundo materialista e até sua moral degenera em idealismo exagerado em seus princípios,
contraditório e empírico em suas aplicações e máximas.

§ 84. Discípulos e sucessores de Zenão

O estoicismo é uma das escolas filosóficas de vida mais longas e brilhantes entre as antigas. Além da
elevação e superioridade relativa de seus princípios morais, contribuíram para essa longevidade as lutas
que foram obrigadas a travar contra escolas rivais, especialmente o epicurismo e a nova Academia.
Os discípulos e representantes do estoicismo podem ser divididos em estóicos greco-asiáticos e estóicos
romanos. Deixando estes últimos para quando falarmos sobre a Filosofia entre os romanos, limitaremos a
mencionar aqui os principais nomes que representam as tradições e o ensinamento do estoicismo na Grécia
e Ásia. Foram:
a) Cleantes (Κλέανθης), natural de Assos, na Tróade, que sucedeu Zenão na direção da escola e a quem
Laércio atribui uma longa lista de escritos que não chegaram até nós. Discípulos também de Zenão e
contemporâneos de Cleantes foram Perseu, conterrâneo do fundador do estoicismo; Ariston, natural de
Quios, de quem se diz que fundou uma escola separada e que em sua doutrina se aproximou da escola
cética, e Herilo de Cartago, que tendia a realçar a importância das ciências especulativas e tentou corrigir e
moderar o exclusivismo ético da escola estoica.
b) Crisipo (Χρύσιππος), que nasceu em Sólis, segundo uns, e segundo outros em Tarso da Cilícia,
sucedeu Cleantes na regência da escola estoica e foi considerado na antiguidade como o segundo fundador
do estoicismo, provavelmente devido ao grande desenvolvimento e propaganda que exerceu a favor de suas
doutrinas. Segundo Diógenes Laércio, ele frequentemente travou controvérsias e lutas contra os filósofos
contemporâneos em defesa das doutrinas do Pórtico e escreveu mais de 700 livros com esse propósito,
sendo apelidado de a Coluna do Pórtico.
c) Sucessores de Crisipo na escola estoica foram Zenão (Ζήνων) de Tarso, na Cilícia, e Antípatro
(Ἀντίπατρος), conterrâneo deste, embora alguns o considerem natural de Sidon. Por fim, entre os
principais representantes do estoicismo também estão Diógenes da Babilônia, que foi a Roma como
embaixador um século e meio antes de Jesus Cristo, junto com o acadêmico Carneades e o peripatético
Crítola; Paneceuticon de Rodes, discípulo de Diógenes, que procurou moderar o rigor excessivo da moral
estoica, esforçou-se para aproximar e conciliar as doutrinas do Pórtico com as de Platão e Aristóteles, e
combateu a astrologia judiciária, e, por último, Posidônio de Apameia, na Síria, que ensinou em Rodes e
teve Pompeu e Cícero como discípulos. Diógenes, Paneceuticon e Posidônio despertaram e enraizaram
entre os romanos a afeição pelas doutrinas do estoicismo.
Para propagar e consolidar essa doutrina entre os romanos, também contribuíram poderosamente
Antípatro de Tiro e Atenodoro de Tarso, mestre o primeiro e companheiro e amigo de Catão de Útica.

159
§ 85. Epicuro

Pelos anos de 337 a 340 a.C., nasceu Epicuro (Ἐπίκουρος) em Gargetos ou Gargesia,
uma aldeia da Ática, não muito longe de Atenas, sendo seus pais Neocles e Querestrata,
da qual se dizia ser adivinha por profissão. Alguns autores supõem, não sem
fundamentos, que Epicuro nasceu em Samos. Depois de frequentar por algum tempo
as escolas do platônico Xenócrates e do peripatético Teofrasto, abriu sua própria escola
aos trinta e dois anos, e após ensinar seu sistema e suas doutrinas por um período de
cinco anos em Mitilene e Lampsaco, transferiu sua escola para Atenas, onde morreu em
idade avançada, cercado por seus discípulos, que o tinham em grande veneração. Além
de ouvir as lições dos mencionados mestres, Epicuro se entregou com paixão e
fervor ao estudo dos escritos de Demócrito, nos quais se inspirou principalmente
para conceber e formular seu sistema.
Existem poucos filósofos cuja vida e doutrina tenham dado origem a debates tão acalorados e
interpretações tão diferentes como a vida e a doutrina de Epicuro. Segundo alguns, sua vida foi um exemplo
de moderação, retidão e honestidade, e sua teoria moral está longe de ser a teoria do sensualismo grosseiro
e do materialismo que geralmente lhe é atribuído por outros autores, que, por outro lado, também não dão
crédito nem aceitam a moderação e moralidade de sua vida.
Por nossa parte, acreditamos que ambos exageram o bem e o mal no que diz respeito à vida e à doutrina
de Epicuro, e neste conceito procuraremos evitar os dois extremos na exposição de sua doutrina, exposição
que iniciaremos pela moral; porque esta é a parte essencial e como a chave e a substância de toda a sua
Filosofia, na qual, se ocupa de física, de psicologia e de dialética ou canônica, como ele a chama, é apenas
com o objetivo de relacionar essas partes da Filosofia com seu sistema ético.

§ 86. Moral de Epicuro

A essência da Filosofia consiste em conhecer o propósito fim da vida e das ações humanas, em
determinar aquilo que constitui o maior bem do homem e que é sua felicidade. Desconsiderando a felicidade
perfeita e absoluta, que só pode ser encontrada nos deuses, se existem, a felicidade relativa, imperfeita e
limitada que o homem é capaz de alcançar consiste essencialmente no prazer, já que o prazer é aquilo que
desejamos e buscamos por si só e ao qual subordinamos todas as outras coisas. Todos os nossos atos e
aspirações devem ter como objetivo a obtenção dessa felicidade, ou seja, do prazer possível ao homem
nesta vida; porque, perdida essa felicidade, nada nos resta a não ser a esperança ilusória e quimérica da
felicidade dos deuses.
Esse prazer, que constitui a felicidade do homem, tem duas manifestações, que são o movimento e o
repouso. O prazer resultante da satisfação de uma necessidade ou apetite sensível que se experimenta,
aquele que provém de emoções agradáveis, como a alegria, a amizade e outras semelhantes, representa o
primeiro aspecto da felicidade, enquanto o segundo, ou seja, o prazer do repouso e pelo repouso, consiste
em estar livre ou isento da dor e da perturbação. Embora a felicidade humana englobe as duas manifestações
do prazer, a segunda, no entanto, é superior à primeira e constitui de certo modo a verdadeira felicidade do
homem, uma vez que esta, em última instância, consiste em estar livre de dores por parte do corpo e em ter
a tranquilidade do espírito, ou seja, estar livre de perturbações e inquietações por parte da alma. Nos autem
– escreveu Cícero em pessoa dos partidários de Epicuro – beatam vitam in animi securitate, et in omni
vacatione munerum ponimus.
Epicuro também ensinava que o prazer que constitui a felicidade e o supremo bem do homem é o que
resulta do conjunto de todos aqueles os atos e estados do corpo e da alma que representam a maior soma
possível de prazer e bem-estar para o homem, e isto não precisamente com relação ao instante ou ao
momento presente, mas abrangendo mesmo o passado e o futuro. E acrescentava também que, nesse

160
conjunto de bens e prazeres que compõem a felicidade humana, entram em grande medida, e até como parte
principal e superior, os prazeres e satisfações morais e intelectuais, os prazeres da alma, que são superiores
aos do corpo, porque estes são por natureza momentâneos e passageiros, enquanto os da alma se estendem
ao que já passou e ao porvir.
Fundamentado nesse aspecto relativamente louvável da moral de Epicuro, alguns pretendiam e até
pretendem elogiar sua concepção e apresentá-la como uma concepção racional e digna de respeito. Mas os
que tentaram isso, sem dúvida, agiram sem pensar, como justamente afirma Ritter; porque a verdade é que,
diante desse aspecto parcial e relativamente admirável da ética de Epicuro, existem outras opiniões suas e
de seus discípulos imediatos que desvirtuam completamente o valor real dessa afirmação. Segundo o
testemunho de Diógenes Laércio, Epicuro afirmava categoricamente que não podia conceber o bem ou a
felicidade do homem senão por meio “dos prazeres do paladar, dos gozos do amor carnal, da audição e da
vista das belas formas”; e Metrodoro, amigo e discípulo de Epicuro, costumava dizer que a pessoa que
segue a doutrina naturalista e epicurista não deve se preocupar com mais nada além do ventre. “Esta elogio
do prazer sensual – escreve o citado Ritter89 – não se encontra contradito nem pelo que Epicuro diz em
outros lugares sobre o prazer da alma, nem pela desaprovação que em outros lugares ele lança sobre os
prazeres sensuais. Para se convencer da verdade do que dizemos aqui, basta examinar aquilo que Epicuro
e sua escola entendiam por prazer da alma. Metrodoro, em um escrito destinado a demonstrar que o
princípio da felicidade está em nós mesmos, mais do que nos bens exteriores, ensina que pelo bem da alma
não se deve entender nada além do estado sadio e tranquilo da carne, acompanhado pela certeza de que tal
estado continuará no futuro. O próprio Epicuro completa esse pensamento, afirmando que todo prazer da
alma resulta e existe na medida e porque a carne goza antecipadamente do deleite de que se trata, porque o
que distingue o prazer intelectual do prazer ou deleite corporal é justamente, como já indicamos acima, que
no primeiro, a experiência de prazer não se limita ao momento atual, mas se estende ao passado e ao futuro;
o que, provavelmente, não quer dizer outra coisa para Epicuro, além de que o prazer do espírito consiste na
memória do prazer passado e na certeza de que o sábio desfrutará do mesmo prazer no futuro... Depois
disso, Epicuro pôde afirmar que o sábio não deixa de ser feliz, mesmo quando sofre terríveis tormentos,
porque, atormentada com dores corporais, a alma do sábio ainda será suficientemente forte para elevar-se
acima da dor do momento e encontrar prazer na lembrança e na esperança. No entanto, o prazer que Epicuro
elogia não consiste na tendência da alma à virtude perfeita, mas apenas no prazer corporal que desfrutamos
no momento presente, e ao qual associamos a lembrança do prazer corporal passado e a esperança do prazer
corporal futuro”.
Ao lado desta teoria moral, essencialmente terrena, utilitária e sensualista, e apesar de sua psicologia
essencialmente materialista, por uma feliz inconsequência, Epicuro admite a existência do livre-arbítrio e
da responsabilidade moral. Gassendi90, em seu Syntagma philosophiae Epicuri, expõe nos seguintes termos
a doutrina deste filósofo em relação ao livre-arbítrio: “A virtude repousa sobre a razão e o livre-arbítrio,
duas coisas inseparáveis e que se correspondem; pois sem o livre-arbítrio, a razão seria inativa, e sem a
razão o livre-arbítrio seria cego... Este livre-arbítrio é a faculdade de buscar o que a razão julga bom e
rejeitar o que esta julga ruim. A experiência atesta a existência em nós desta faculdade: o bom senso
confirma o mesmo, mostrando que somente merece louvor ou censura aquilo que foi feito livremente, o
que foi feito voluntariamente e por escolha reflexiva. Por esta razão, as leis instituíram justamente prêmios
e castigos; pois nada seria menos justo do que essa instituição, se o homem estivesse sujeito àquela
necessidade que alguns supõem como soberana absoluta de todas as coisas”.
Desnecessário dizer que a virtude, para Epicuro, consiste na investigação e prática dos meios que
conduzem à aquisição e conservação da posse da maior soma de prazer, como a real felicidade do homem,

89
Histoire de la Philos. ancien., tomo III, lib. X, cap. II.
90
Pierre Gassendi (1592-1655) foi sacerdote francês e doutor em Teologia. Adepto de uma moral oriunda do epicurismo e baseada
no prazer da serenidade, Gassendi tentou conciliar a teoria atomista da antiguidade com a crença cristã na imortalidade da alma,
no livre arbítrio e num Deus infinito. Sua obra principal, Syntagma philosophiae Epicuri, só foi publicada postumamente. Seguiu
a tríplice divisão da Filosofia proposta por Epicuro em [1] Lógica, [2] Física e [3] Ética. Quanto à lógica, opõe-se a Descartes;
quanto à física, segue os atomistas, numa explicação mecânica da natureza e dos sentidos; e, quanto à ética, considera a felicidade
– a que faz consistir na paz de espírito e ausência de dor corpórea – como o fim do homem, que, durante a vida, só o atinge
imperfeitamente. Influenciou os filósofos do século XVIII, especialmente Denis Diderot, precursor do anarquismo. [N.T.]
161
no sentido antes indicado. Assim, a virtude principal e como que o tronco das demais, é a prudência, cujo
objeto é o interesse pessoal bem entendido, e cujo ofício é reconhecer e procurar para o indivíduo, levando
em conta suas condições pessoais e as circunstâncias que o rodeiam, o caminho que deve seguir, o estilo de
vida que deve adotar para obter e perseverar na posse da maior soma possível de prazer ou deleite.
Não é menor a contradição que se observa em sua doutrina, ou, se quiser, em suas palavras, em relação
à existência e atributos da divindade, a qual considera, às vezes, como mero resultado de vãos terrores do
vulgo, enquanto em outras vezes recomenda o culto e veneração aos deuses, considerando isso como um
dever e uma virtude. Apesar do dito, Epicuro nega que Deus tenha cuidado e providência sobre as coisas
do mundo, que conceda benefícios aos homens, que descuide de recompensar ou punir as obras do homem,
nem nesta vida nem após a morte. Na realidade, o cerne de sua Teologia é um ateísmo mais ou menos
dissimulado, o mesmo que seu fiel discípulo Lucrécio se encarregou de evidenciar. Isto sem mencionar que
os deuses de Epicuro são deuses nominais, visto que não passam de agregados de átomos os mais sutis;
seus corpos são análogos aos corpos humanos, embora mais sutis e nobres; sua figura é a figura humana,
que é a mais perfeita de todas. Assim, não é surpreendente que, entre os antigos, a opinião de que Epicuro,
apenas em palavras e não na realidade, admitisse a existência de Deus fosse muito válida, não faltando
quem o suponha influenciado neste ponto pelo temor do povo ateniense: Nonnullis videri Epicurum, ne in
offensionem Atheniensium caderet, verbis reliquisse Deos, re sustulisse.

§ 87. Filosofia especulativa de Epicuro

A física de Epicuro é a teoria de Demócrito, com poucas modificações. O universo, o Cosmos, é infinito,
eterno e indestrutível; mas é finito, temporal e corruptível pelos seres particulares que o compõem. O
Universo, assim como as partes ou seres que o compõem, são o resultado dos átomos primitivos, os quais,
movendo-se e colidindo eternamente no vazio, deram, dão e darão origem a todos os seres reais. A
variedade de átomos e combinações produzidas pelo seu movimento contém a razão suficiente da
diversidade de substâncias que povoam o mundo, bem como de seus atributos e propriedades. A
imperfeição, os defeitos e males de todo tipo que se observam no Universo provam que este não é obra de
uma inteligência, mas sim do acaso: aquilo que alguns chamam de causas finais são nomes vazios de
sentido; pois o que é atribuído a elas é o resultado do movimento e colisões fortuitas dos átomos. Em
resumo: os átomos, o movimento e o vazio são as causas eternas e únicas do Universo, ou melhor, são o
Universo, o Ser: todas as coisas, todas as substâncias, qualquer seja sua natureza e propriedades, são
formadas por átomos primitivos e se resolvem em átomos.
A [1] extensão ou quantidade, a [2] forma e o [3] peso são as três propriedades dos átomos, os quais,
postos em movimento por causa de seu peso ou gravidade91, formam todos os seres e o mundo, ou melhor,
os infinitos mundos que devem preencher o vazio infinito, pois dizer que neste há apenas um mundo seria
como representar um campo com uma única espiga. Nada se produz ex nihilo, do nada (de nihilo quoniam
fieri nil posse videmus), antes tudo é feito a partir dos átomos primitivos. Tudo o que existe é corpo, e não
há nada incorpóreo, exceto o vazio.
Até aqui, a concepção cosmológica de Epicuro pode ser considerada uma mera reprodução da antiga
atomística professada por Demócrito. No entanto, é justo mencionar aqui que Epicuro parece ter introduzido
nessa atomística um novo princípio que modifica e altera significativamente o valor e a importância da
concepção atomística. Demócrito tentou explicar a origem e a formação do mundo por meio do movimento
dos átomos no vazio, decorrente ou resultante do peso dos mesmos, resultando daí os seres e o mundo
subordinados, e sujeitos em sua origem e constituição ao destino ou necessidade absoluta. Epicuro propôs-
se a libertar os homens do terror e influência dos deuses, e o mundo ou a natureza da ação e influência da
necessidade fatalista ou destino que os estóicos usavam em sua teoria cosmológica. E, para isso, ele
introduziu ou supôs nos átomos, além do movimento necessário resultante do peso ou gravidade dos

91
Literalmente, “gravidade” (gravitas) é “peso” em latim; e “grave” (gravis) é “pesado”. [N.T.]
162
mesmos, outro movimento espontâneo e livre, pelo qual eles podem se desviar da linha reta, produzindo
pequenos desvios (exiguum clinamen, como diz Lucrécio), os quais possibilitam e facilitam múltiplas
colisões e as subsequentes variadas combinações dos átomos. Esse é o novo princípio ou elemento que
Epicuro introduziu na cosmologia atomística, se damos crédito às indicações repetidas e aos trechos
terminantes de Diógenes Laércio, Plutarco, Cícero e Lucrécio. Ao duplo movimento produzido pela colisão
e pelo peso dos átomos, Epicuro acrescenta um terceiro movimento de mínimo desvio (tertius quidam motus
oritur extra pondus et plagam, cum declinat atomus intervallo minimo), com o qual se torna possível a
diversidade de seres por meio da multiplicidade e variedade de combinações atômicas: Ita effici
complexiones et copulationes, et adhaesiones atomorum inter se.
Segundo todas as aparências, a indução e a analogia forneceram a Epicuro o argumento principal para
estabelecer a existência desse terceiro movimento atômico, desse movimento interno e espontâneo de
desvio que constitui a parte original da cosmologia do filósofo de Gargeto ou Samos, e que lhe serviu muito
bem para excluir e negar a causalidade cósmica do destino ou necessidade fatalista, após ter negado e
excluído a causalidade cósmica de Deus. Epicuro, de fato, apenas transferiu e aplicou aos átomos, os
princípios ou germes primordiais das coisas, o movimento voluntário e variável que observamos no homem,
além do movimento mecânico e necessário de seu corpo e de seus membros92, depois do qual, e por uma
espécie de reversão lógica, buscou no movimento primitivo de desvio dos átomos a origem e a razão
suficiente dos atos voluntários e livres dos animais e do homem, atos que devem ser considerados como
aplicações e transformações da força interna que produz o movimento de desvio primitivo que ele supõe
nos átomos. Esse desvio primitivo, que constitui e representa a parte original – se é que há – da doutrina de
Epicuro, serviu-lhe não apenas para explicar a existência da liberdade no homem, como indicado
anteriormente, mas também para negar o processo infinito nas causas e para dar uma razão para a parte
contingente que observamos no mundo, em oposição à necessidade absoluta e universal, ensinada pelos
estóicos e por alguns outros filósofos: Principium quoddam quod fati foedera rumpat. – Ex infinito ne
causam causa sequatur.
A psicologia de Epicuro é a aplicação dessa doutrina e a dedução espontânea de premissas cosmológicas
semelhantes. A alma humana é uma agregação de átomos arredondados, uma substância composta de fogo
ou éter, ar e outro elemento inominado e sutil que reside no peito. A alma está estendida e unida a todo o
corpo humano, como uma substância sutil e delicada a outra mais grosseira. A sensação, assim como a
intelecção, ocorre por meio de imagens ou simulacros materiais que se desprendem dos objetos, flutuam
no ar, entram pelos órgãos dos sentidos, fixam-se e sucedem-se na alma. Todos os conhecimentos se
reduzem a sensações e antecipações. As primeiras são o resultado imediato da impressão produzida na alma
pelas imagens atômicas e sutis que se desprendem dos corpos. As segundas são o resultado das sensações
e uma espécie de generalização das mesmas, ou melhor, uma coleção de sensações, já que, de acordo com
Diógenes Laércio, Epicuro definia a antecipação como “uma memória daquilo que se nos tem representado
externamente com frequência”. Os discípulos de Epicuro costumavam dar a essas antecipações os nomes
de compreensão, pensamento, idéia racional; mas qualquer que seja a denominação dessas mesmas, é certo
que não são nada além do resultado ou produto quase mecânico da sensação, à qual estão essencialmente
ligadas.
A crença na imortalidade da alma humana é uma apreensão vã. “Para se libertar de tais apreensões – diz
ele –, acostume-se a considerar que a morte é o nada para nós. O mal ou o bem só surgem dos sentimentos,
e todo sentimento se encerra com a vida. Enquanto vivemos, a morte não existe para nós: quando ela já
ocorreu, nós já não somos nada”.
A sensação, o pensamento, com as demais faculdades da alma, são resultado da força inerente aos
átomos e da combinação destes, ou melhor, da força motriz essencial aos átomos dos quais ela é composta.
Que a alma consiste de átomos, ainda que mais sutis do que aqueles que compõem o corpo, e que suas

92
Isso é o que se depreende claramente de algumas passagens de Lucrécio, o qual conhecia a fundo o pensamento de Epicuro, entre
as quais podem citar-se as seguintes: Ut videns initium motus a corde creari / Ex animique voluntate id procedere primum (...) /
Quare in seminibus quoque idem fateare necesse est/ Esse aliam, praeter plagas et pondera, causam / Motibus, unde haec est nobis
innata potestas. (De natura rer., 2º, v. 260ss.)

163
faculdades e ações são meras manifestações da força interna da matéria atômica, é comprovado pela relação
e dependência entre as mutações do corpo e as vicissitudes da alma e suas faculdades. A alma se desenvolve
e se aperfeiçoa à medida que o corpo se desenvolve e se aperfeiçoa. Suas faculdades e funções, fracas na
infância, vigorosas na virilidade, declinam e atrofiam na velhice, e nós também observamos que elas
aumentam e diminuem, mudam, se modificam, surgem e desaparecem com as mudanças, vicissitudes e
doenças do corpo.

§ 88. Crítica
(materialismo)
O primeiro aspecto que chama a atenção na Filosofia de Epicuro é a sua perfeita conformidade com o
positivismo e materialismo contemporâneos, nos pontos fundamentais, e até mesmo nas provas
apresentadas para negar a criação, a causalidade final e a imortalidade da alma humana. Além disso, o
sistema de Epicuro contém não apenas o germe, mas a substância da concepção transformista do
movimento, única parte do materialismo contemporâneo que se apresenta com certo aspecto de
originalidade. Pois é indubitável que para Epicuro o movimento, como força interna e essencial aos átomos,
é a origem, o fundo e a causa primeira de todas as outras forças e manifestações ativas que aparecem e
desaparecem nos corpos, da mesma maneira que para os positivistas de nosso século, todas as manifestações
de força e atividade, desde a simples atração até o pensamento, são transformações do movimento, o qual
se encontra no fundo de todas elas, não apenas como sua condição sine qua non, mas como germe e essência
comum das mesmas. (sensualismo)
No campo da psicologia, a doutrina de Epicuro é essencialmente sensualista. Sua teoria do conhecimento
é muito semelhante à de Condillac93 ; na realidade, todas as faculdades e conhecimentos do homem se
reduzem à sensação. Sensações puras ou primitivas, sensações generalizadas pela memória, sensações
transformadas e combinadas de diferentes maneiras: isso é o que constitui e representa o conteúdo interno
e real do conhecimento humano em todas as suas esferas. Não existe em nosso espírito qualquer atividade
intelectual, nativa, livre e superior às sensações: o que chamamos de reflexão racional e científica não passa
de recordação e combinação de sensações passadas e presentes. A sensação dá origem à memória, e a
memória torna possíveis os juízos, generalizando as sensações, não por via de abstração, mas por meio de
coleta, combinação e analogia. (síntese de materialismo e hedonismo)
Além disso, a Filosofia de Epicuro é uma síntese, ou melhor, uma amalgama mais ou menos incoerente
da física materialista de Demócrito e do hedonismo cirenaico, cujas correntes enfraquecidas foram
finalmente absorvidas na grande corrente epicurista. É justo notar, no entanto, que a teoria moral de Epicuro
é superior à dos cirenaicos, seja porque Epicuro parece subordinar os prazeres sensuais do corpo aos
prazeres da alma, como a amizade, a alegria, o elogio etc., enquanto os cirenaicos davam a primazia aos
prazeres do corpo, seja também porque o primeiro considerava como parte principal e essência fundamental
da felicidade a ausência de coisas penosas para o corpo e a mente, enquanto os segundos faziam consistir a
felicidade nas emoções agradáveis, nas sensações voluptuosas. (princípios contraditórios)
A verdade é que a moral de Epicuro encerra dois elementos relativamente opostos: um é representado
por seus princípios gerais sobre o prazer como fim último e única felicidade do homem, juntamente com a
negação da vida futura; o outro consiste em seu ensinamento sobre a primazia dos prazeres da alma sobre
os do corpo, e sobre os inconvenientes e perigos do abuso dos prazeres sensuais. Como geralmente acontece
nesses casos, seus discípulos e seguidores deixaram de lado o segundo elemento e dedicaram seus esforços

93
Discípulo de John Locke, Étienne Bonnot de Condillac (1714-1780), Abade de Mureau, é o pai do sensualismo, doutrina radical
do empirismo, segundo a qual a experiência é só a fonte material das idéias, mas o próprio método de conhecimento. Tendo sido
ordenado em 1733, renunciou ao sacerdócio e orgulhava-se de ter celebrado Missa somente uma vez na vida, como dizia a Rousseau.
Foi membro da Academia Real de Ciências da Prússia (1749) e da Academia Francesa (1768), mesmo tendo se recusado a educar
os filhos do Delfim, os futuros Reis Luís XVI, Luís XVIII e Carlos X. Autor de Essai sur l’origine des connaissances humaines,
cobre as origens do conhecimento; Traité des systèmes; Traité des sensations; Traité des animaux, (que escreve como uma crítica
à Histoire naturelle de Buffon, o qual influenciou fortemente Lamarck e Darwin); Cours d’études, em 13 volumes e colocado no
Index Librorum Prohibitorum; Le Commerce et le gouvernement considérés relativement l’un à l’autre; La Logique ou l’art de
penser, comissionado pelo governo da Polônia para a educação da juventude do país; e a obra póstuma Langue des calculs. [N.T]
164
a cultivar e desenvolver o primeiro, exagerando e distorcendo suas aplicações no campo teórico e prático.
Daí o desprezo e a aversão com que os representantes dessa escola chegaram a ser geralmente vistos, e daí
também as perseguições que sofreram, sendo expulsos das cidades e proibido, em mais de uma ocasião, o
ensino de sua doutrina nas escolas públicas.
Apesar dos esforços que Gassendi e outros fizeram em diferentes épocas para reabilitar a memória e a
doutrina de Epicuro, é preciso reconhecer que ele, como homem de ciência, significa pouca coisa ao lado
de Platão e Aristóteles. Além disso, suas opiniões pueris sobre o sistema do mundo, principalmente sobre
o tamanho do sol e da lua, justificam esse julgamento. Epicuro afirmava seriamente que o sol não é maior
do que parece aos nossos olhos, afirmação que seu fiel discípulo e intérprete Lucrécio repete e segue quando
escreve: “Nec major, esse potest nostris quam sensibus esse videtur.”
Apesar disso, a concepção cosmológica de Epicuro, tomada como um todo, é relativamente superior e
mais verdadeira do que a de Demócrito. É certo que a concepção cosmológica de ambos é essencialmente
mecânica; mas enquanto o filósofo de Abdera, seguindo uma lógica mais precisa e severa, estabelece e
afirma o fatalismo ou necessidade absoluta no processo de causas e efeitos94, Epicuro, negligenciando, se
assim se quiser, as exigências da lógica, estabelece e admite certa contingência causal, fundamentada em
uma certa inclinação dos átomos (Epicurus declinatione atomi, vitari fati necessitatem putat), pela qual
eles se desviam mais ou menos da linha reta e fixa que deveriam seguir, em virtude do peso ou força
mecânica interna 95 . Vê-se, pelo exposto, que a concepção cosmológica de Epicuro, sem deixar de ser
mecânica no fundo, como a de Demócrito, envolve um certo desvio dinâmico, que constitui sua
originalidade e, se assim se quiser, seu avanço sobre a concepção de Demócrito, mesmo que, como observa
com justiça Cícero, o movimento desviador dos átomos seja apenas uma hipótese gratuita, uma invenção
de Epicuro para se livrar do destino universal do estoicismo e da necessidade absoluta e fatalista de seu
mestre Demócrito: Qui aliter obsistere fato fatetur se non potuisse, nisi ad has commentitias declinationes
confugisset.

§ 89. Discípulos e sucessores de Epicuro

A corrupção generalizada que, após a morte de Epicuro, se apoderou da Grécia e da Ásia, a decadência
nos costumes, a irreligião e o descrédito que reinavam nesses países, ao mesmo tempo em que os epicuristas
começavam a se propagar em Roma e nas províncias sob seu domínio, contribuíram poderosamente para o
desenvolvimento, a expansão e a permanência, ao longo de séculos, da escola epicurista entre os gregos e
os romanos. Se bem seja verdade que a importância e o mérito de seus discípulos e seguidores não
corresponda ao seu número; pois, exceto por Lucrécio, famoso autor do poema De rerum natura,
dificilmente há alguém digno de especial menção.

a) Diógenes Laércio, que revela certa predileção por Epicuro e certo prazer bastante significativo na
exposição de sua doutrina, fala de seus discípulos e sucessores mais próximos nos seguintes termos: “Teve
muitos e mui sábios discípulos, como Metrodoro de Lâmpsaco (Μητρόδωρος Λαμψακηνός), que, desde
que o conheceu, nunca o abandonou, exceto pelos seis meses em que esteve em casa, e logo voltou... Era
de uma constância de ânimo admirável diante das adversidades e até diante da própria morte, como diz
Epicuro no Primeiro Metrodoro. Dizem que morreu sete anos antes de seu mestre, aos cinquenta e três anos
de idade; foi também discípulo de Epicuro”

94
“Democritus – escreve Cícero – auctor atomorum accipere maluit, necessitate omnia fieri, quam a corporibus individuis
naturales motus avellere.” De Fato, cap. X.
95
O já citado Cícero escreve acerca disto: “Epicurus, cum videret, si atomi ferrentur in locum inferiorem suopte pondere, nihil fore
in nostra potestate, quod esset earum motus certus et necessarius, invenit quomodo necessitatem effugeret. Ait atomum, cum
pondere et gravitate directe deorsus feratur, declinare paullulum.” De natura Deor., lib. I, cap. XXV.
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b) “Polieno de Lâmpsaco (Πoλύαινoς Λαμψακηνός), filho de Atenodoro, homem benevolente e
amável, como o chamou Filodemo. Também foi seu sucessor na escola Hermaco de Mitilene (Ἕρμαρχoς),
que no início seguia a oratória. Dele restam excelentes obras, que são vinte e duas Cartas sobre Empédocles
e Sobre as Matemáticas, contra Platão e Aristóteles. Morreu na casa de Lísias este ilustre indivíduo.
Também foram seus discípulos Leôncio (Λεοντεύς) e sua esposa Temístia (Θεμίστη), a quem Epicuro
escreveu, assim como Colotes (Κολώτης) e Idomeneu (Ἰδομενεύς), todos naturais de Lâmpsaco.”

c) Polistrato (Πολύστρατος) sucedeu Hermaco na direção da escola; depois dele, veio Dionísio
(Διονύσιος), cuja morte deu lugar ao controle da escola epicurista por Basilides e, em seguida, Apolodoro,
autor de mais de quatrocentas obras. Seu discípulo Zenão, oriundo de Sídon, também escreveu várias obras,
segundo o já mencionado Diógenes Laércio. Filodemo (Φιλόδημος ὁ Γαδαρεύς), discípulo de Zenão,
assim como os dois Ptolomeus de Alexandria, Demétrio de Lacônia e Diógenes de Tarso, preservaram as
tradições e o ensinamento da doutrina de Epicuro, sem introduzir modificações notáveis ou
desenvolvimentos científicos. Geralmente, eles se limitaram a reproduzir e popularizar a doutrina de seu
mestre, embora alguns tenham enfatizado as tendências materialistas e ateístas do mesmo. Os adeptos
gregos do epicurismo foram superados nessa área pelo entusiasta admirador do Grajus homo, ou seja, pelo
autor do poema De rerum natura, como veremos adiante.

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