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História da Filosofia

do Cardeal Fr. Zeferino Gonzalez, OP

Tomo Primeiro
História da Filosofia
do Cardeal Fr. Zeferino Gonzalez, OP

A História da Filosofia de Zeferino González (1831-1894) foi publicada em Madrid em 1878 e 1879,
em três tomos, sendo seu autor Bispo de Córdoba. Depois, publicou-se uma segunda edição ampliada em
1886, em quatro tomos, sendo ele já Arcebispo de Toledo e Cardeal da Santa Igreja. O interesse pela obra
foi imediato e logo se publicou em francês uma tradução do Pe. Georges de Pascal (Lethielleux, París 1890-
1891, 4 tomos).
Trata-se da primeira grande História da Filosofia escrita em espanhol e a primeira grande exposição
católica de uma História da Filosofia que buscava manter-se no horizonte filosófico, com pretensões
sistemáticas e críticas, em plena restauração tomista, processo no qual interveio decisivamente seu autor.
As primeiras edições desta obra são:
Historia de la Filosofía, por el P. Zeferino González, Obispo de Córdoba. Tomo primero, Imprenta de
Policarpo López (Cava Baja 19), Madrid 1878, XXXIX+485 págs. [Filosofía de los pueblos orientales y
Filosofía griega]. Tomo segundo, Imprenta a cargo de D. B. M. Araque (Cava Baja 19), Madrid 1878, 561
págs. [Filosofía cristiana, Crisis escolástico moderna]. Tomo tercero, Imprenta a cargo de D. B. M. Araque
(Balmes 3), Madrid 1879, 519 págs. [Filosofía moderna, Filosofía novísima].
Historia de la Filosofía, por el P. Zeferino González, de la Orden de Santo Domingo, Cardenal
Arzobispo de Toledo. Segunda edición. Tomo primero, Agustín Jubera (Calle de Campomanes 10), Madrid
1886, LI+535 págs. [Filosofía de los pueblos orientales y Filosofía griega]. Tomo segundo, 516 págs.
[Filosofía cristiana]. Tomo tercero, 504 págs. [Crisis escolástico moderna, Filosofía moderna]. Tomo
cuarto [segunda edición considerablemente aumentada], 482 págs. [Filosofía novísima].

1
Sumário
Prólogo ......................................................................................................................................................... 6
Prólogo da Primeira Edição ......................................................................................................................... 6
História da Filosofia ............................................................................................................................... 19
§ 1 Conceito de História da Filosofia......................................................................................................... 19
§ 2 Limites e auxiliares da História da Filosofia ....................................................................................... 21
§ 3 Matéria e Forma da História da Filosofia ........................................................................................... 22
§ 4 Importância e utilidade da História da Filosofia ................................................................................. 23
Filosofia nos Povos Orientais ................................................................................................................. 25
§ 5 Filosofia na Índia .................................................................................................................................. 25
§ 6 Filosofia especulativo-religiosa na Índia ............................................................................................. 26
§ 7 Filosofia prático-religiosa da Índia ...................................................................................................... 28
§ 8 Filosofia especulativa na Índia. Escolas ortodoxas ............................................................................. 29
§ 9 Filosofia independente e separatista da Índia ...................................................................................... 29
§10 Budismo e seu autor ............................................................................................................................. 31
§ 11 Bibliografia búdica ............................................................................................................................. 33
§ 12 Filosofia búdica .................................................................................................................................. 34
§ 13 Moral do budismo ............................................................................................................................... 35
§ 14 Crítica ao Budismo ............................................................................................................................. 37
§ 15 A Filosofia na China ........................................................................................................................... 39
§ 16 Filosofia de Lao-Tze ........................................................................................................................... 40
§ 17 Confúcio e sua Filosofia ..................................................................................................................... 41
§ 18 Zhu Xi e o Neo-Confucionismo ........................................................................................................... 43
§ 19 Crítica ................................................................................................................................................. 44
§ 20 A Filosofia na Pérsia .......................................................................................................................... 45
§ 21 Filosofia ou Doutrina Mazdeísta ........................................................................................................ 47
§ 22 A Filosofia no Egito ............................................................................................................................ 49
§ 23 A Filosofia ética ou moral no Egito .................................................................................................... 51
§ 24 A Filosofia entre os Hebreus .............................................................................................................. 53
§ 25 Doutrina moral e político-social dos Hebreus ................................................................................... 54
Filosofia Grega ....................................................................................................................................... 56
§ 26 Origem e características gerais da Filosofia Grega .......................................................................... 56
§ 27 Divisão Geral de Filosofia Grega ...................................................................................................... 57
Primeiro Período da Filosofia Grega ...................................................................................................... 59
§ 28 Escola Jônica ...................................................................................................................................... 59
§ 29 Tales de Mileto .................................................................................................................................... 60
§ 30 Anaximandro ....................................................................................................................................... 61
§ 31 Anaxímenes e Diógenes de Apolônia .................................................................................................. 63
§ 32 Heráclito ............................................................................................................................................. 64

2
§ 33 Crítica a Heráclito .............................................................................................................................. 65
§ 34 Anaxágoras e seus discípulos .............................................................................................................. 66
§ 35 Escola itálica ou pitagórica ................................................................................................................ 70
§ 36 Pitágoras ............................................................................................................................................. 71
§ 37 Discípulos de Pitágoras ...................................................................................................................... 73
§ 38 Doutrina dos Pitagóricos .................................................................................................................... 75
§ 39 Psicologia e Moral dos Pitagóricos .................................................................................................... 78
§ 40 A Escola Eleática ................................................................................................................................ 79
§ 41 Crítica à Escola Eleática..................................................................................................................... 81
§ 42 A escola atomista................................................................................................................................. 82
§ 43 Demócrito ............................................................................................................................................ 83
§ 44 Crítica ao Atomismo ............................................................................................................................ 85
§ 45 Empédocles .......................................................................................................................................... 86
§ 46 Os sofistas............................................................................................................................................ 89
§47 Protágoras ............................................................................................................................................ 90
§ 48 Górgias ................................................................................................................................................ 91
§ 49 Crítica .................................................................................................................................................. 92
§ 50 Outros sofistas ..................................................................................................................................... 93
§ 51 Crítica geral do Primeiro Período ...................................................................................................... 94
§52 Olhar retrospectivo .............................................................................................................................. 95
Segundo Período da Filosofia Grega ...................................................................................................... 98
§ 53 A Restauração Socrática ..................................................................................................................... 98
§ 54 Sócrates ............................................................................................................................................. 100
§ 55 Filosofia de Sócrates ......................................................................................................................... 101
§ 56 Crítica ................................................................................................................................................ 102
§ 57 Os discípulos de Sócrates .................................................................................................................. 104
§ 58 Escola cirenaica ................................................................................................................................ 104
§ 59 Escola cínica ..................................................................................................................................... 105
§ 60 Discípulos de Antístenes .................................................................................................................... 106
§ 61 Crítica ................................................................................................................................................ 107
§ 62 Escola megárica ................................................................................................................................ 108
§ 63 Escolas de Élis e de Eretria............................................................................................................... 108
§ 64 Desenvolvimento e complemento da Filosofia Socrática.................................................................. 108
§ 65 Platão: vida e escritos ....................................................................................................................... 110
Apêndice 1 – Catálogo das Obras de Platão ............................................................................................ 112
§ 66 Teoria das Idéias de Platão............................................................................................................... 114
Apêndice 2 – Alegoria da Caverna ........................................................................................................... 119
§ 67 Metafísica e psicologia de Platão ..................................................................................................... 121
§ 68 Moral e política de Platão................................................................................................................. 124
§ 69 Crítica ................................................................................................................................................ 127
3
§ 70 Discípulos e sucessores de Platão .................................................................................................... 130
§ 71 Aristóteles ......................................................................................................................................... 132
§ 72 Escritos de Aristóteles....................................................................................................................... 133
Apêndice 3 – Catálogo das Obras de Aristóteles ..................................................................................... 135
Apêndice 4 – Traduções Siríacas de Aristóteles ....................................................................................... 136
§ 73 Lógica e Psicologia de Aristóteles .................................................................................................... 138
§ 74 Cosmologia e Teodicéia de Aristóteles ............................................................................................. 140
§ 75 Ética e Política de Aristóteles ........................................................................................................... 144
§ 76 Crítica ............................................................................................................................................... 148
§ 77 Discípulos e sucessores de Aristóteles .............................................................................................. 151
§ 78 Crítica e vicissitudes posteriores da Escola Peripatética ................................................................ 153
§ 79 O estoicismo ...................................................................................................................................... 155
§ 80. Lógica no estoicismo........................................................................................................................ 156
§ 81. Física do estoicismo ......................................................................................................................... 157
§ 82. Moral do estoicismo ......................................................................................................................... 159
§ 83. Crítica .............................................................................................................................................. 161
§ 84. Discípulos e sucessores de Zenão .................................................................................................... 162
§ 85. Epicuro ............................................................................................................................................. 163
§ 86. Moral de Epicuro ............................................................................................................................. 163
§ 87. Filosofia especulativa de Epicuro.................................................................................................... 165
§ 88. Crítica .............................................................................................................................................. 167
§ 89. Discípulos e sucessores de Epicuro ................................................................................................. 168
Terceiro Período da Filosofia Grega .................................................................................................... 170
§ 90. Crise e decadência na Filosofia Helênica ....................................................................................... 170
§ 91. Ceticismo pirrônico ......................................................................................................................... 172
§ 92. Ceticismo acadêmico ....................................................................................................................... 173
§ 93. Ceticismo positivista. Enesidemo..................................................................................................... 174
§ 94. Sexto Empírico ................................................................................................................................. 176
§ 95. A Filosofia entre os romanos ........................................................................................................... 178
§ 96. A escola peripatética entre os romanos ........................................................................................... 179
§ 97. A escola epicurista entre os romanos .............................................................................................. 181
§ 98. A escola acadêmica entre os romanos. Cícero ................................................................................ 183
§ 99. O estoicismo entre os romanos. Sêneca ........................................................................................... 186
§ 100. Epiteto e Marco Aurélio................................................................................................................. 190
§ 101. Movimento de transição ................................................................................................................. 191
§ 102. Os neo-pitagóricos ......................................................................................................................... 193
§ 103. Movimento intelectual em Alexandria ........................................................................................... 194
§ 104. Origem da escola greco-judaica .................................................................................................... 197
§ 105. Fílon ............................................................................................................................................... 198
§ 106. Crítica ............................................................................................................................................ 200
4
§ 107. Gnosticismo .................................................................................................................................... 202
§ 108. Gnosticismo panteísta .................................................................................................................... 203
§ 109. Crítica ............................................................................................................................................. 205
§ 110. Gnosticismo dualista ...................................................................................................................... 207
§ 111. Gnosticismo antijudaico ................................................................................................................. 208
§ 112. Gnosticismo semipagão .................................................................................................................. 209
§ 113. Gnosticismo e Idealismo Alemão ................................................................................................... 210
§ 114. A escola neoplatônica..................................................................................................................... 212
§ 115. Plotino ............................................................................................................................................ 213
§ 116. Crítica ............................................................................................................................................. 217
§ 117. Porfírio ........................................................................................................................................... 220
§ 118. Neoplatonismo místico ................................................................................................................... 222
§ 119. Escola filosófico-teosófica do neoplatonismo ................................................................................ 224
§ 120. Crítica geral do neoplatonismo e da Filosofia pagã...................................................................... 227

5
Prólogo

No prólogo da primeira edição desta obra dizíamos, entre outras coisas, o seguinte: “os defeitos desta
obra – sem contar a parte principal que corresponde à insuficiência do autor – encontrarão atenuantes e
alguma desculpa nas circunstâncias de lugar e tempo em que foi escrita. Foi escrita, é verdade, na pátria de
Sêneca1; mas foi escrita em meio às múltiplas e gravíssimas a tensões próprias do encargo episcopal, o que
vale tanto quanto dizer que foi escrita sem espaço e vagar convenientes e, sobretudo, sem a tranquilidade
de espírito tão necessária para empreender e levar a cabo esta classe de trabalhos”.
A fim de corrigir, em parte, estes defeitos se encaminha esta segunda edição da História da Filosofia,
pois ainda que haja tempo desde que se esgotou a primeira edição, não temos querido dar a segunda até
poder introduzir nela algumas adições e melhoras que reclamava e que não nos era possível realizar antes,
por falta de elementos e de tranquilidade de espírito e, até, de espaço material por causa de nossa
transladação a Dioceses diferentes e das múltiplas e graves atenções próprias do encargo episcopal,
sobretudo durante os primeiros meses e anos do governo de uma Diocese.
Segundo o verão os leitores, as adições e modificações feitas alcançam as diferentes épocas da História
da Filosofia. As adições, contudo, se referem principalmente à filosofia moderna e mais, todavia, à época
da filosofia novíssima porque assim o exige o movimento filosófico, verificado em diferentes direções em
ações várias, durante a precipitada época. A transcendência do movimento realizado nestes últimos anos
no terreno positivista e no campo da psicologia fisiológica e sociológica reclamava de nós maior
desenvolvimento histórico, indicações mais extensas e precisas acerca destas questões.

Prólogo da Primeira Edição

Corria último terço do século XV; vislumbravam-se no horizonte os albores turbulentos e turbados do
XVI e, em meio às lutas apaixonadas do Renascimento, no meio do batalhar incessante das escolas em meio
do tumulto produzido pelo choque violento das idéias cabalísticas e das idéias arábico-judaicas, de sistemas
antigos e de sistemas novos, de correntes pagãs e de correntes cristãs, Pico della Mirandola escreveu as
seguintes palavras: Philophia quaerit, Theologia invenit, Religio possidet veritatem.
Palavras são essas que revestem as características de um verdadeiro apoftegma filosófico que encerra
um fundo incontestável de verdade e que traçam as grandes características, o objeto real, o resultado mais
legítimo e fecundo destas três grandes manifestações do espírito humano.
De fato: se a missão própria da Filosofia é marchar e mover-se em busca da verdade, toda vez que Deus
entrega o mundo às disputas dos homens; se a investigação perseverante, profunda, consciente da realidade
objetiva e da verdade absoluta constitui a função essencial e característica da Filosofia – Philosophia
quaerit veritatem –, não é menos certo que pertence à Teologia descobrir e afirmar essa realidade em seu
sentido mais amplo, por o homem em comunicação íntima e perfeita com essa Verdade Absoluta; porque
a fé divina que lhe serve de ponto de partida – fides quaerens intellectum –, a palavra de Deus que lhe serve
de norma e de luz, derramam vivos esplendores sobre os problemas mais transcendentais que discute a
Filosofia, em atenção a que essa fé divina representa e entranha uma derivação imediata da razão infinita,
que é, ao mesmo tempo, a realidade completa ou ser infinitamente real, ens realissimum, e a verdade
absoluta, a norma primitiva de toda a verdade: Theologia invenit veritatem.
Que a Religião de Jesus Cristo, à qual alude indisputavelmente o autor do apoftegma supracitado, e só
a Religião de Jesus Cristo é a que dá ao homem a posse plena e perfeita da verdade, provam-no juntamente
a razão e a experiência; porque são elas que nos revelam que os homens colocados fora da corrente cristã,

1
“Lúcio Aneu Sêneca (Lucius Annaeus Seneca) de Córdoba, discípulo do estóico Sócion e tio do poeta Lucano, foi um homem de
vida muito continente, o qual eu não colocaria na categoria dos santos se não fossem as epístolas de Paulo a Sêneca e de Sêneca a
Paulo, ‘que são lidas por muitos e me provocam’. Nessas cartas, escritas quando ele era tutor de Nero e o mais poderoso homem
de seu tempo, ele dizia querer ter entre seus concidadãos o mesmo lugar que Paulo tinha entre os cristãos. Ele foi morto por Nero
dois anos antes de Pedro e Paulo serem coroados com o martírio.” (SÃO JERÔNIMO. Vida dos homens ilustres, capítulo 12). [N.T.]
6
ainda que se autonomeiem filósofos e sábios afamados, vivem e morrem agitados pela incerteza e
atormentados pelas dúvidas desgarradoras acerca dos grandes problemas metafísicos, morais e religiosos
e, especialmente, acerca dos problemas formidáveis que se referem às relações do homem com Deus, em
sua origem, em sua vida e, sobretudo, em sua morte, em seu destino final; enquanto o homem da fé divina
e da convicção religiosa marcha com passo firme e seguro até seu final destino, porque a fé e a palavra de
Deus iluminam, com esplendente luz, o grande mistério da realidade divina, da realidade humana e da
realidade cósmica, como iluminam também o mistério obscuro e formidável da vida e da morte do homem:
Religio possidet veritatem.
Além do mais, diga-se de passagem, Pico della Mirandola não fez mais que reapresentar e consignar em
uma fórmula precisa, ou digamos artística, um pensamento que constitui e representa o fundo da idéia cristã
e que, por esta razão, já havia sido apontado e formulado de uma maneira mais ou menos explícita e
compreensiva por alguns Padres e Doutores antigos da Igreja, enquanto primeiros representantes da
Filosofia cristã. Assim, por exemplo, não poucos séculos antes, Lactâncio havia escrito que o sumo do saber
humano consiste e deve buscar-se na reunião da Religião e da ciência, porque a Religião sem ciência é
pouco digna do homem, enquanto a ciência sem Religião é insuficiente e não merece grande estima:
Scientiae summam breviter circumscribo: ut neque Religio ulla sine sapientia suscipienda sit, nec ulla sine
Religione probanda sapientia.
Deveríamos, com isso, pensar que a Filosofia esteja condenada a buscar – quaerit – incessantemente a
verdade sem chegar jamais à sua descoberta e posse real e efetiva? Questão essa que a História da Filosofia
parece resolver e resolve, à primeira vista, em sentido afirmativo.
Opiniões contrárias, com igual vigor e com igual aparência de
verdade, defendidas e atacadas, hipóteses e teorias que se
levantam hoje briosas e prepotentes para desaparecer
amanhã como uma folha levada pelo vento, lutas, vitórias e
derrotas alternadas entre o monismo hilozoísta e o
dualismo cósmico, entre o panteísmo imanente e o teísmo
transcedente, entre a concepção idealista e a concepção
positivista, entre a moral histórica e a moral epicurista,
entre o dogmatismo e o ceticismo, entre a tese materialista e
a tese espiritualista; épocas históricas informadas e dominadas
ora por uma ora por outra destas tendências e teorias tão opostas e
diferentes; escolas que nascem, se desenvolvem, imperam, decaem e
morrem em sucessão monótona e desesperante, sistemas que se levantam, se chocam e se precipitam uns
sobre os outros com rapidez vertiginosa e, de vez em quando, com imponente estrondo: qual é o espetáculo
que oferece à nossa vista a História da Filosofia. Disso vem esta impressão, mais ou menos acentuada, de
ceticismo que se experimenta de primeira ao terminar a leitura da História da Filosofia. Porque, de fato,
nada mais propício a produzir na mente impressões e correntes céticas, que o espetáculo da luta constante,
periódica e não poucas vezes estéril da Filosofia consigo mesma, a consideração da impotência para
descobrir, arraigar e estabelecer, de uma maneira permanente, no seio da humanidade, algum dos sistemas
alguma de suas soluções doutrinais.
Quando se penetra, contudo, no fundo das coisas; quando, através das lutas e contradições internas dos
sistemas filosóficos, observam-se seus efeitos e resultados com olhar escrutinador e penetrante, não é difícil
persuadir-se de que, se é verdade que alguém poderia dizer que a História da Filosofia é a história dos erros
do espírito humano, é também verdade que se deveria dizer que a História da Filosofia é, ao mesmo tempo,
a história dos progressos e desenvolvimentos do espírito humano.
Sem afirmar ou supor – como afirma e supõe a Filosofia racionalista da História – que cada sistema
filosófico representa um momento necessário, lógico e, contudo, legítimo da inteligência da humanidade

7
ou, se se preferir, do Absoluto de Schelling, da Idéia hegeliana; sem pretender que
todos os sistemas filosóficos que se sucederam na História sejam igualmente
verdadeiros e progressivos por sua natureza; sem afirmar que a evolução
ascendente e progressiva do espírito humano, para qual contribuíram em
maior ou menor escala os diferentes sistemas filosóficos, possa ser
representada por uma linha reta e não por uma espiral ou, até, por
desvios e retrocessos mais ou menos consideráveis e pronunciados; bem
se pode afirmar e crer que a mutabilidade, a inconstância e a esterilidade da
Filosofia e seus sistemas não são tão completos e efetivos como se poderia supor à Schelling
primeira vista. Bem refletido, os sistemas filosóficos, pelo menos os que
entranham certo grau superior de importância histórica e científica, deixam
quase sempre vestígios mais ou menos profundos de seu passo pelo espírito
humano e pela sociedade, e quando, depois de reinar por algum tempo sobre
ela, decaem e morrem,
Povo e Massa ao que parece, deixam Hegel
Pio XII sempre atrás de si idéias,
Radiomensagem de Natal de 1944 direções e tendências determinadas, o que poderíamos
chamar sedimentos intelectuais, forças latentes, mas
Povo e multidão amorfa ou, como se
vivas e reais que representam outros tantos fatores
costuma dizer, massa, são dois conceitos
diversos. O povo vive e move-se por vida mais ou menos importantes da evolução progressiva da
própria; a massa é em si mesma inerte e não ciência, da sociedade e do espírito humano em geral.
pode mover-se senão por um elemento Para compreender isso melhor, deve-se ter em
extrínseco. conta que o movimento de progresso da humanidade
O povo vive da plenitude da vida dos deve ser representado e concebido não como uma linha
homens que o compõem, cada um dos quais – resultante do empuxe vigoroso e do caminhar firme
na sua própria situação e do modo que lhe é
para a frente, por assim dizer, da Filosofia e da ciência,
próprio – é uma pessoa cônscia de suas próprias
responsabilidades e de suas próprias convic- em combinação com a inércia própria das massas2 e
ções. A massa, pelo contrário, espera o com a força resistente da humanidade coletiva (sic). Os
impulso que lhe vem de fora, fácil joguete nas homens da Filosofia e da ciência avançam e marcham
mãos de quem quer que lhe explore os instintos adiante descobrindo e afirmando novos princípios,
e as impressões, pronta a seguir, sucessiva- novas máximas, novas direções, novos ideais e novos
mente, hoje esta, amanhã aquela bandeira. cursos; mas as massas, cujo critério único e geral é o
senso comum completado pela experiência,
necessitam, antes do mais, dar-se conta elas mesmas
das novas doutrinas, às quais opõem a resistência
natural do costume e a desconfiança instintiva do
desconhecido e inexperimentado; necessitam
reconhecer a conformidade ou oposição das novas
idéias com o que constitui o critério inato geral da
humanidade, ou seja, com o senso comum 3 e
necessitam sobretudo períodos de tempo mais ou
menos longos para que essas novas idéias, doutrinas e direções penetrem, se infiltrem e se difundam por
todas as camadas sociais até as colocarem em condições para entrar nas novas sendas, para marchar
decididamente atrás dos ideais descobertos e assinalados de antemão pela Filosofia e a ciência. Assim, pois,

2
O Cardeal Zeferino Gonzalez, aqui, não faz a salutar diferença entre povo e massa. Talvez por ter escrito sua História da Filosofia
décadas antes do reinado de Pio XII, a sua compreensão, nesse ponto, carece da amplitude de vistas que lhe permitiriam penetrar
melhor as nuanças de sentido entre os dois termos e os dois conceitos. Se é verdade que muitos se comportam como uma massa, é
verdade que, por sua natureza racional, o homem tende a constituir um povo e não um conglomerado. [N.T.]
3
Aqui o Cardeal Zeferino Gonzalez usa a expressão “senso comum” lato sensu, como uma série de idéias ou posturas mentais
latentes na generalidade dos homens. Tal compreensão entranha algo de depreciativo e não cientificamente bem definido. Nisto ele
não difere dos homens de seu século. [N.T.]
8
os filósofos, sem serem os autores exclusivos do progresso humano, são e merecem ser chamados seus
precursores naturais e contribuem para acelerar seu movimento4.
É certo que, sem os filósofos e seus sistemas, a humanidade continuaria avançando e poderia caminhar
pelos caminhos múltiplos do bem e da perfeição, porque a razão humana, como participação que é da razão
divina, como impressão das idéias eternas – “impressio quaedam rationum aeternarum” –, como derivação
e semelhança da verdade incriada que se reflete e brilha em nós – “participatio luminis increati”, “similitudo
increatae Veritatis in nobis resultantes” – segundo a palavra e o pensamento de Santo Tomás, contém e
entranha uma virtualidade infinita – “intellectus est infinitus in intelligendo”, “potentia quodammodo
infinita”, “potentia ad omnia intelligibilia” – e, por conseguinte, representa um princípio inato de progresso,
é uma força essencialmente progressiva; mas é certo também que com o auxílio da Filosofia e da ciência,
impulsionado e dirigida pelos filósofos, a humanidade caminha ou pode caminhar pelas sendas do progresso
com maior velocidade, ainda que nem sempre com a maior segurança e acerto.
Historia vero testis temporum, lux veritatis, Depreende-se disso que no fundo da Filosofia e de sua
vita memoriae, magistra vitae, nuntia história palpita um dogmatismo real e que, apesar do
vetustatis, qua voce alia nisi oratoris aparente ceticismo e da aparência de esterilidade que
immortalitati commendatur? causa uma primeira impressão da ciência filosófica com os
seus sistemas múltiplos e com suas lutas incessantes,
resolve-se em verdadeira e fecunda vitalidade.
E isso demonstra, ao mesmo tempo, a importância e
utilidade do estudo da História da Filosofia: ora, se é útil e
proveitoso o conhecimento dos estados e nações, se a
História externa dos povos é a luz da verdade e a mestra
A que outra voz senão a do orador é a da vida – conforme o Orador Romano –, será
História confiada à imortalidade? Ela, que é a sobremaneira importante e proveitoso o conhecimento da
verdadeira testemunha dos tempos, a luz da História da Filosofia, como sempre é proveitoso conhecer
verdade, a vida da memória, a mestra da do efeito a causa e do fenômeno externo a lei interna. As
vida, a mensageira do passado? ações do homem nascem de suas convicções; os fatos são
(Cícero, De Oratore, II, 36)
expressão e resultados das idéias, e a História dos povos e
das nações e dos estados e dos indivíduos representa a
História e evoluções do pensamento humano, tanto para as grandes coletividades quanto para os indivíduos.
Obreiras silenciosas mas infatigáveis e ativas, as idéias são as que preparam e afirmam, dirigem e
constituem o movimento dos homens e dos povos; são elas que determinam (sic) e explicam os progressos,
os desvios, os retrocessos parciais, os autos e baixos que se observam nesse grande fato histórico social que
chamamos Civilização. E a Civilização, como forma a mais ampla e compreensiva do progresso humano,
procede, antes de tudo e sobretudo, das idéias. A perfeição, verdade e realidade de uma Civilização se
encontram necessariamente em harmonia e relação com a natureza, importância e verdade das idéias
fundamentais que lhe dão forma e vida, e a diversidade destas idéias fundamentais origina e contém a razão
suficiente (sic) da diversidade de civilizações. A idéia constitui a trama viva e fecunda da História dos
homens e dos povos: a História do fato é e permanece letra morta se não é vivificada e interpretada pela
História da idéia.
Segue-se daí que a História da Filosofia – que, em última instância, não é outra coisa senão a própria
História do pensamento humano, a História das idéias – tem grande importância toda vez que representa
um elemento principalíssimo da Filosofia da História e da Filosofia da Civilização. E não só porque encerra
a razão suficiente primordial do movimento de avanço que se verifica na humanidade de uma maneira lenta
e gradual ou, digamos melhor, solene e compassada; mas também porque representa e explica os
movimentos extraordinários e bruscos que, de vez em quando, manifestam-se no percurso da História e da
Civilização. A ação paulatina e latente, mas perseverante e irresistível das idéias origina e explica o

4
Este parágrafo entranha o mesmo princípio que anima os chamados “filósofos” das “sociedades de pensamento” (sociétés de
pensée) que fizeram a Revolução Francesa: primeiro a idéia é concebida por poucos “iluminados”, que depois a difundem em
peças, artes e panfletos, retirando os demais da obscuridade e do “obscurantismo”. [N.T.]
9
movimento progressivo do primeiro gênero; já a ação extraordinária das idéias – consequência natural ou
da aparição súbita de concepções grandiosas e originais que se chocam vigorosamente contra outras
concepções ou de pensadores dotados de grande atividade e prestígio – origina e explica a segunda espécie
de movimentos. Porque não se pode esquecer que a História da Filosofia, como a História dos povos, tem
suas grandes guerras e suas grandes conquistas, tem seus grandes homens e seus grandes legisladores, tem
seus destronamentos ou mudanças de dinastias filosóficas, como tem, também, suas revoluções e
restaurações.
Não se creia, pelo que escrevi, que, em meu sentir, a Filosofia represente sozinha a origem e a razão
suficiente do que há de perfeição e progresso na História da humanidade e em sua Civilização: longe disso!
Opino, ao contrário, que no Cristianismo está a parte preferencial, a influência transcendental e decisiva da
origem e desenvolvimento da Civilização e do progresso. A História, a razão e a experiência revelam
conjuntamente o que seria esta Civilização de que tanto se envaidece a Europa se ela não tivesse sido
preparada, dirigida e vivificada pelo princípio cristão: a História da Grécia e da Roma Antigas – bem como
da Índia, da China e da África muçulmana – demonstram, com a evidência dos fatos, que a Civilização
produzida e informada só pela Filosofia – ainda quando ela é muito admirável, muito elevada e muito
profunda, como a de Sócrates, Platão, Aristóteles, Zenão e Plotino – é uma Civilização colocada a uma
imensa distância de nossa Civilização europeia. Que toda a civilização que careça da idéia cristã é uma
civilização essencialmente infecunda, estéril e incompleta – como acontece na Índia e na China –, ainda
que esteja informada por determinadas idéias religiosas além das filosóficas. Toda a civilização, enfim,
que, tendo arrancado de seu seio o princípio evangélico e se colocado fora da corrente cristã, fenece e perece
irremediavelmente, como pereceu e feneceu a Civilização na pátria dos Orígenes, Tertuliano e Agostinhos.
O Cristianismo, que foi o primeiro a proclamar em alta voz a igualdade e a fraternidade de todos os
homens perante Deus e a natureza – verdades estas fundamentais e constitutivas de toda Civilização digna
deste nome, mas verdades que nem sequer tinham chegado a vislumbrar o gênio intuitivo de Platão, ou o
talento analítico e enciclopédico de Aristóteles, ou o instinto jurídico de Roma –; o Cristianismo vivo, que,
com seu in principio creavit Deus coelum et terram, resolveu de maneira tão simples quanto filosófica o
grande problema cosmológico que tanto havia atormentado a Filosofia helênica; o Cristianismo que
apresenta soluções completas, fecundas, firmes e precisas para todos os grandes problemas que se impõem
à inteligência e à vontade do homem e, especialmente, para os que se referem à sua origem, ao seu destino
final e eterno, a seu porvir na vida presente e na vida futura, às suas relações com seus semelhantes e com
Deus; este Cristianismo contribuiu antes que a Filosofia – e muito mais que a Filosofia – com a Civilização
europeia no que contém de mais grandioso, elevado e fecundo, no que ela tem de verdadeira Civilização,
no que causa e constitui sua superioridade real sobre as civilizações estranhas à ação e influência do
Evangelho. A Revolução, que parece ter assentado o seu trono no centro desta Civilização, bem pode
imprimir nela tendências anticristãs, socialistas e comunistas, costumes pagãos e sensualistas; bem pode
trabalhar e se esforçar para a retirar das águas salutares do Cristianismo e afoga-la nas águas do antigo
paganismo (Renascimento); bem pode suscitar iras poderosas e acumular ódios profundos contra Cristo e
Sua Igreja, mas jamais poderá persuadir o homem de razão serena e de boa vontade que a origem histórica,
a razão suficiente primordial e os elementos mais importantes e fecundos da Civilização europeia não se
devem ao cristianismo. Como pôr em dúvida que as grandes instituições, as grandes idéias, as grandes
aspirações que caracterizam a Civilização moderna e que lhe dão uma marcada superioridade sobre as
civilizações antigas devem seus princípios, seu desenvolvimento e sua força nativa ao Cristianismo? Cabe
pôr em dúvida que a cultura europeia deve sua incubação, seus primeiros passos e desenvolvimento a este
Cristianismo que semeou a Europa de escolas públicas e gratuitas para o povo e ao mesmo tempo de escolas
superiores ou Universidades para os escolhidos da ciência? Será necessário recordar que o Cristianismo
primeiro enfraqueceu, depois limou e, por último, rompeu as cadeias materiais da escravidão, e isto depois
de limar e romper suas cadeias morais, dando-lhe consciência de sua própria dignidade?
E foi também o Cristianismo que reformou os costumes públicos e privados, que suavizou os costumes
da paz e os costumes da guerra, que transformou paulatinamente a vida civil e a vida pública, as leis, a
gente e as instituições, como foi também o que introduziu e afirmou no seio da sociedade das nações a idéia
de fraternidade e amor universal dos homens, a idéia de liberdade e a idéia de justiça, das quais são
10
corolários legítimos a abolição da escravatura, a reabilitação da mulher, a liberdade da pessoa e do trabalho,
a independência e dignidade da consciência religiosa ante os poderes humanos, a inviolabilidade do direito
e da propriedade. E não é que eu negue a participação real da Filosofia nem na origem nem no
desenvolvimento e aplicações destas grandes idéias: antes o contrário! Reconheço grandíssima importância
e influência decisiva à espontaneidade natural do espírito humano, às configurações luminosas da razão, às
antecipações intuitivas do gênio. Quisera Deus que a razão, a Filosofia e a ciência não tivessem abusado de
suas forças, das forças preparadas e acumuladas pelo princípio cristão, da força recebida e herdada do
cristianismo, para se rebelar contra este e para a blasfemar de seu Fundador divino, para falsear, distorcer
e destruir o movimento da Civilização cristã da antiga Europa e para a colocar nas águas do ateísmo
socialista.
Tenha-se em conta que até ao próprio conceito de progresso humano, até essa idéia que a Filosofia
moderna ou novíssima – e poderíamos dizer a Filosofia revolucionária – reivindica para si de uma maneira
exclusiva, deve ao cristianismo sua germinação inicial e seu primeiro desenvolvimento. Para quem sabe ler
a História e a doutrina cristã, é verdade inconcussa que a teoria ética cristã entranha a idéia do verdadeiro
– e, até, poderíamos dizer, ilimitado – progresso do homem sempre que a sua perfectibilidade ético-
intelectual abrace uma escala ilimitada, cujo termo final e cujo ideal é o próprio Infinito e cuja medida é a
aproximação e a configuração a Deus, Verdade Absoluta, Bondade e Santidade Suprema. Nem é menos
inconteste que a Cidade de Deus de Santo Agostinho, a História de Paulo Orósio 5 e os livros De
Gubernatione Dei de Salviano6 entranham uma idéia mais ou menos explícita do progresso humano social
e histórico, assim como é coisa averiguada que esta lei geral do progresso humano, principalmente no que
se refere à ordem intelectual e científica, foi apontada e defendida por Roger Bacon7 e Durando8 na Idade
Média, foi aplicada em parte depois pelo autor do Novum Organum9 e foi afirmada e desenvolvida mais
tarde por Pascal. É claro que o progresso reconhecido e proclamado por Pascal e pela Filosofia cristã não é
o progresso da perfectibilidade indefinida e palingenésica de Condorcet10; nem o progresso sensualista
libertino de Saint-Simon 11 e de Fourier 12 ; nem tampouco o progresso humanitário de Leroux 13 e

5
Paulo Orósio (sec. IV-V), sacerdote contemporâneo de Santo Agostinho e São Jerônimo, com quem manteve contatos, é originário
de Bracara Augusta (atual Braga, em Portugal). Além de auxiliar S. Agostinho na elaboração da Cidade de Deus (cf. MARTÍNEZ
CAVERO, P. El pensamiento histórico y antropológico de Orosio. Murcia: Universidade. Área de Historia Antigua, 2002. p. 35),
escreveu 3 importantes obras, dentre as quais a citada História contra Pagãos, que exerceu enorme influência sobre a historiografia
medieval. [N.T.]
6
Salviano de Massília (sec. V), originário da Colônia Agripinense (atual Colônia, na Alemanha), foi amigo de São Vicente de
Lérins e autor dos livros De Gubernatione Dei, em que trata da Queda do Império Romano na Gália e das invasões bárbaras. [N.T.]
7
Roger Bacon (1214-1294), frade franciscano e doutor escolástico inglês, conhecido como Doctor Mirabilis, é o autor do Opus
Majus e pai do método científico. [N.T.]
8
Guilherme Durando ou Durandus (1230-1296), Bispo de Mende, na França, téologo, conhecido como Speculateur, por causa de
sua famosa obra Speculum judiciale (Espelho judicial). Compôs importantes comentários sobre as leis civis e canônicas e sobre as
rubricas e participou na elaboração das constituições do II Concílio Ecumênico de Lião (1274). [N.T.]
9
Francis Bacon (1561-1626), cognominado “fundador da ciência moderna”, ocupou-se especialmente da metodologia científica e
do empirismo. Sua principal obra filosófica é o Novum Organum, cujo nome remete às obras de lógica de Aristóteles. [N.T.]
10
Marquês de Condorcet (1743-1794), considerado o último dos iluministas, consignou a idéia do progresso do saber em sua obra
Esquisse d'un tableau historique des progres de l'esprit humain (“Ensaio de um quadro histórico do progresso humano”), na qual
imputa à Religião o entrave do progresso, apresentando o teólogo e o sacerdote como detentores exclusivos do saber, como meio
de manutenção de poder. [N.T.]
11
Conde de Saint-Simon (1760-1825), iluminista e precursor do socialismo (considerado “socialista utópico” por Karl Marx),
defendia a idéia de que a ciência e a técnica conseguiriam regenerar a sociedade, levando-a à “verdadeira igualdade” entre os
homens numa sociedade produtiva baseada na “união dos homens engajados em trabalho útil”. [N.T.]
12
Jean-Baptiste Joseph Fourier (1768-1830), matemático e político, caracterizado por defender o ideal republicano, foi membro do
Comité Revolucionário de Auxerre até a condenação de Robespierre à guilhotina. Tendo iniciado a vida religiosa na abadia
beneditina de St. Benoit-sur-Loire em 1787, abandonou tal ideal antes de fazer os votos, animado pela “esperança sublime de
estabelecer entre nós um governo livre, isento de reis e padres e libertar deste duplo jugo o solo usurpado da Europa. Eu apaixonei-
me por esta causa, que é na minha opinião a maior e a mais bela que uma nação pode empreender”. Acompanhou Napoleão em sua
expedição ao Egito. [N.T.]
13
Pierre Leroux (1798-1871) é o criador do termo “socialismo” e foi apoiador da Comuna de Paris até a sua morte. Propunha que
as famílias não tivessem chefe, que os estados fossem governados pelo povo e que as propriedades não estivessem limitadas ao
direito de posse. Para substituir a Religião Cristã, propunha um deísmo nacional. [N.T.]
11
Proudhon14; e muito menos o progresso positivista de Comte15 e Littré16 ou o progresso evolucionista e
transformista de Darwin e Häckel17; nem também o progresso físico fatalista da novíssima escola filosófica
sociológica; mas o progresso da razão e da História, o progresso que compõe e harmoniza a contingência
do fato e a liberdade individual com a causalidade universal e a infalibilidade da Providência divina.
Uma vez indicadas e reconhecidas a importância e a superioridade da História da Filosofia frente à
História externa dos povos e nações – haja vista a importância e superioridade do pensamento sobre a ação
externa, da idéia sobre o fato –, é necessário, agora, determinar as condições científicas e metodológicas
que devem presidir sua apresentação e desenvolvimento, a fim de ser frutífera em resultados e adequada
para seus próprios fins. Em outras palavras, deve-se agora definir o objeto específico da História da
Filosofia – objeto este que é o que propriamente constitui e distingue as diferentes ciências (scientia
specificatur per objeto, os antigos escolásticos afirmaram não sem razão). É necessário fixar o método que
deve ser seguido na exposição e desenvolvimento de seu objeto.
De acordo com Hegel e seus discípulos, a História da Filosofia – bem como as demais ciências históricas
e todas as de natureza positiva – deve ser escrita em submissão ao princípio de identidade radical e real do
fato e da idéia e, portanto, subordinando, ou falando com mais propriedade filosófica, absorvendo o
fenômeno no numeno, a experiência sensível à razão pura, o fato à idéia. Dada essa concepção de História,
concepção esta que, diga-se de passagem, não é mais que uma das muitas aplicações do princípio
fundamental dos hegelianos, a saber, que tudo o que é racional é real, de modo a haver identidade perfeita
ou, pelo menos, paralelismo exato entre a ordem cronológica e a ordem lógica, de modo que os fatos
correspondam aos conceitos da razão pura, nos quais radicam o seu ser e com os quais se identificam de
fundo. E como pretendem que os conceitos da razão pura sejam mais facilmente conhecidos e que os
possuamos de uma maneira mais imediata que os fatos históricos e fenômenos externos, que residem e têm
sua razão de ser no primeiro, concluem daí que a História da Filosofia não seja, nem represente para o
filósofo historiador, mais do que a sucessão dialética de certos momentos da Idéia. Em outras palavras: a
contingência aparente e externa dos sistemas filosóficos é resolvida em uma evolução interna necessária da
razão universal imanente, ou da Idéia, e a História da Filosofia será portanto – e não pode ser outra coisa –
nada mais do que uma síntese a priori da razão pura, uma síntese abrangente, mas arbitrária, como uma
concepção pré-histórica da Filosofia.
Apesar de sua clássica grandeza e unidade fascinante, essa concepção hegeliana é absolutamente
inaceitável, porque equivale a substituir o conteúdo real e a significação histórica dos sistemas filosóficos
pelo conteúdo abstrato de categorias puramente ideais e dialéticas. Além do que, se na ordem lógica do
hegelianismo, são as relações internas e dialéticas dos conceitos racionais que determinam e concretizam a
sucessão cronológica e objetiva dos diferentes sistemas filosóficos, a verdade é que, na ordem histórica e
real, essa sucessão entranha necessariamente um aspecto subjetivo e é determinada, pelo menos em parte,
por influências psicológicas e por influências do meio em que surgem e se desenvolvem. Uma vez admitida
a existência da Idéia Hegeliana, a razão e a experiência demonstram juntas que, se o processo dialético
dessa Idéia puder encontrar e determinar a ordem lógica dos conceitos da razão pura e suas relações internas
ideais, ela nunca será capaz de nos dar com isso a realidade contingente das coisas, nem a ordem
cronológica dos eventos. A História, assim como a natureza física, pede para ser observada, quer ser
questionada e estudada em sua realidade concreta e em suas ações; ela não pede e não deve ser adivinhada
com antecedência, nem construída a priori.

14
Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), político e pensador francês, foi o primeiro ideólogo anarquista, sendo considerado um
socialista utópico por Karl Marx. Sustentava que a propriedade privada constituía o roubo: “La propriété, c’est le vol!”
(PROUDHON, O Que É a Propriedade? cap. 1) [N.T.]
15
Auguste Comte (1798-1857) é o autor do positivismo e fundador da sociologia moderna. [N.T.]
16
Émile Littré (1801-1881) foi um lexicógrafo autor do Dictionnaire de la langue française (conhecido como o Littré), instrumento
para a difusão de seu positivismo e ateísmo. Participou da insurreição contra Carlos X, em 1830). [N.T.]
17
Ernst Haeckel (1834-1919) foi um artista, zoologista e eugenista alemão que contribuiu com a divulgação do trabalho de Charles
Darwin. Autor do termo “ecologia”, propôs a teoria da recapitulação, segundo a qual os estados de desenvolvimento embrionário
revelariam os estágios da evolução das espécies. A fraude de sua teoria foi exposta em 1874, quando foi condenado em um tribunal
universitário, em que confessou a falsificação de apenas alguns dos desenhos, forjados para dar maior credibilidade à sua teoria.
[N.T.]
12
Agora é justo acrescentar que, se não se quiser cair no extremo oposto, essa concepção hegeliana de
História não deve ser rejeitada em todos os seus aspectos, nem muito menos sua aplicação à História da
Filosofia. Pois, se ela nunca pode ser uma construção sistemática e apriorística da razão pura que absorva
e anule a realidade histórica dos fatos, também não pode ser uma narrativa puramente empírica dos sistemas
filosóficos, mas deve estudar, discernir e determinar o vínculo entre eles, sua ação e reação recíprocas, a
influência do meio ambiente, a filiação de doutrinas, investigar e apontar a lei que preside o fato e a sucessão
racional por trás da sucessão histórica. Em nossa opinião, a História da Filosofia deve simultaneamente
abraçar e envolver o elemento empírico e contingente, e o outro elemento racional e necessário. Não é nem
um sistema dialético de conceitos puros, nem uma mera justaposição de doutrinas, ou, como disse o próprio
Hegel, “não é uma série de aventuras de cavaleiros errantes que lutam por uma beleza que nunca viram e
que só deixam em busca de si mesmos a narração divertida de seus empreendimentos ridículos”. Em suma:
a História da Filosofia, sem prejuízo de expor com a devida precisão os sistemas filosóficos, considerados
como produtos contingentes da liberdade e inteligência do indivíduo juntamente com as condições do
ambiente, deve, ao mesmo tempo, investigar e apontar a razão suficiente para esses sistemas, sua lei
geradora, a idéia racional, necessária e única, que existe e se oculta sob a aparente desordem dos fatos, as
relações doutrinárias e genéticas dos sistemas, consideradas como fatores específicos na História da
Filosofia, e a abstração feita da unidade primitiva, remota e indireta, que corresponde à Filosofia por parte
do que é chamado de Filosofia do senso comum.
Porque deve-se notar que a sucessão de sistemas filosóficos, considerada como constituindo o
movimento gerador da Filosofia, e sua História propriamente dito, isto é, como manifestação parcial e
determinada do pensamento refletido, ocorre fora da ação direta do senso comum; mas sem que seja dado
prescindir completamente de sua influência espontânea e latente em relação às aplicações práticas de tais
sistemas. É que essa Filosofia do senso comum representa e constitui o fundo essencial e uno da razão
humana em suas relações inatas com a verdade, que é seu objeto necessário. Em outros termos: a História
da Filosofia, como evolução sistemática e reflexiva da razão humana, caminha e encontra seu movimento
próprio, muitas vezes apartando a vista dessa Filosofia do senso comum que lhe serve de base primitiva,
indireta e, até certo ponto estranha, se preferir; mas que nem por isso deixa de impedir, com sua força nativa
e essencialmente conservadora, que certas idéias tomem conta das multidões ou se enraízem nas diferentes
camadas sociais – como não tomaram por esse motivo, pelo menos na ordem prática, nem a doutrina
nirvânica do budismo, nem as teorias comunistas de Platão, nem os exageros éticos do estoicismo, nem
tantas outras idéias e teorias perigosas e incompatíveis com o bem-estar da humanidade, com as quais nos
deparamos a cada passo da História da Filosofia. Como um conjunto orgânico de sistemas e como uma
evolução histórica especial e concreta, a Filosofia representa e constitui uma esfera relativamente
independente e separada da Filosofia do senso comum, mas sempre mantendo certos e essenciais pontos de
contato com ela, e sujeita à sua força de atração; representa uma construção arquitetônica estabelecida em
uma rocha de granito; é uma concepção refletida do pensamento individual, que pressupõe uma concepção
espontânea da razão universal.
O advento de Jesus Cristo, que é o centro da História universal do gênero humano, também representa
o ponto central da História da Filosofia. Porque o advento do cristianismo naturalmente carrega consigo a
divisão da Filosofia em Filosofia pagã e Filosofia cristã, em Filosofia anterior, ou pelo menos estranha e
independente do cristianismo, e na Filosofia posterior a ele, e mais ou menos influenciada pela idéia cristã.
Mas como, a contar desde os primeiros anos do século XVI, se iniciou um movimento separatista no seio
dessa Filosofia até então quase exclusivamente cristã, que vem se desenvolvendo e crescendo até hoje, um
movimento que é representado por não poucos filósofos racionalistas ou defensores de doutrinas e teorias
incompatíveis com o cristianismo, daí a necessidade de dividir a Filosofia posterior ao advento do
cristianismo propriamente em Filosofia Cristã e Filosofia Moderna, que, a par de autores, princípios,
sistemas e elementos cristãos, contém simultaneamente autores, princípios, sistemas e elementos mais ou
menos heterodoxos e anticristãos.
Nesse sentido, e com essas reservas, aceito e adotei neste trabalho a classificação, geralmente aceita, de
(1) Filosofia Pagã ou Antiga, (2) Filosofia Cristã e (3) Filosofia Moderna. Cada uma delas contém seções
ou subdivisões relacionadas à sua evolução peculiar. Assim, por exemplo, a (2) Filosofia Cristã pode ser
13
subdividida em Filosofia Patrística e Filosofia Escolástica, que, por sua vez, é suscetível a outras
subdivisões, bem como na (3) Filosofia Moderna podemos apontar ou distinguir a primeira era, que abrange
de Bacon, ou se preferir, do Renascimento a Kant, em quem e com o qual o segundo período começa, isto
é, a Filosofia Novíssima. Divisões semelhantes podem ser aplicadas à (1) Filosofia Antiga ou pagã, que
contém e abarca, além da Filosofia dos povos orientais, a Filosofia pré-socrática, a Filosofia pós-socrática
e a Filosofia greco-romana.
No quadro da Filosofia Pagã, achei conveniente e justo trazer a Filosofia dos povos antigos e das
civilizações orientais, uma Filosofia anterior à da Grécia, ou ao menos fora de sua órbita. Tenho para mim
que uma História da Filosofia em que se omita esta parte deve ser considerada como incompleta; porque
essa Filosofia dos povos antigos, embora sem dúvida inferior à grega, não é isenta de importância histórica
e científica; significa algo na evolução progressiva e nas vicissitudes da idéia filosófica, e pode contribuir
para esclarecer os primeiros passos da História e da Civilização. Certamente não seria razoável, nem muito
oportuno, permanecer em silêncio hoje sobre as especulações filosóficas que tinham as margens do Ganges
como teatro, e que deram origem, ou pelo menos serviram como ocasião e ponto de partida, para o
movimento budista, que dominou e domina as vastas e povoadas regiões da Ásia Central e do Sul. E isso é
ainda mais oportuno, se não necessário, já que esse tipo de renascimento budista que testemunhamos hoje,
e a importância intelectual intencional atribuída por alguns ao budismo, tornam essencial expor e discutir a
idéia filosófica doutrinária contida nessa concepção asiática.
Quanto ao que poderia ser chamado de parte externa do método, principalmente no que diz respeito à
natureza e ao uso das fontes, achei apropriado adotar um meio termo, evitando assim dois extremos que
não são incomuns de observar em prejuízo da erudição e da História, e que considero igualmente
condenáveis. Sem sair de nosso assunto, vemos Histórias da Filosofia desprovidas, não apenas de citações,
mas também de todos os tipos de indicações bibliográficas e fontes históricas. Por outro lado, existem
outros livros desse gênero nos quais citações, indicações bibliográficas e fontes preenchem páginas inteiras
e absorvem uma parte muito considerável do trabalho. Essa abundância ou luxo de citações e fontes, que
podem ser justificadas, ou pelo menos toleráveis em uma extensa e volumosa História da Filosofia, podem
muito bem ser descritas como inoportunas e parecem pouco justificadas, quando se trata de uma História
elementar e compendiosa da Filosofia. Por esta e algumas outras considerações, e depois de hesitar por um
tempo, achei apropriado adotar um meio termo neste assunto. Consiste em indicar no início da obra as
principais fontes, ou seja, os escritos e obras mais importantes consultados como fontes, seja para toda a
História da Filosofia, seja para alguns de seus períodos, ou para um ou alguns dos Filósofos mais notáveis.
Tudo isso sem prejuízo de apresentar algumas citações e inserir palavras e frases dos respectivos autores
no corpo do texto, para que o leitor possa julgar por si mesmo a fidelidade e a precisão envolvidas na
exposição de certas idéias e teorias. Como ponto geral, tentei citar essas citações e passagens quando se
tratam de Filósofos e sistemas de grande importância na História da Filosofia, ou obras especiais e
geralmente pouco conhecidas, ou pontos controversos entre historiadores e críticos, ou quando se trata,
finalmente, de opiniões e idéias, ou não mencionadas, ou expostas e julgadas de maneira imprecisa por
historiadores da Filosofia. Em obras históricas elementares, o uso de estudos excessivos, além de comunicar
ao livro um certo caráter pedante, geralmente leva à confusão de idéias e julgamentos. Mas banir deles hoje
todos os tipos de estudos bibliográficos, e não invocar textos e citações, é ignorar a condição e a natureza
adequadas dos livros históricos, nos quais ninguém tem o direito de ser crido só por sua palavra, e é ignorar,
acima de tudo, as demandas da era crítica que estamos atravessando.
Devo acrescentar agora que as principais fontes que usei para conhecer e expor a doutrina dos Filósofos
que têm especial importância histórica e científica foram, de um modo geral e com poucas exceções, seus
próprios escritos. Ainda no que diz respeito a não poucos Filósofos de segunda ordem, acreditei ser o caso
de consultar e ler suas obras no todo ou em parte, porque só assim é possível expor com a fidelidade
necessária e julgar com alguma correção a doutrina e as idéias de certos autores, doutrinas e idéias que
muitos historiadores da Filosofia geralmente expõem e julgam de maneira rotineira e imprecisa, ou cuja
exposição eles omitem completamente, apesar de sua importância relativa, como é o caso de alguns
representantes da Filosofia Escolástica.

14
A indicação de nomes e a exposição de doutrinas pertencentes a filósofos espanhóis ocupam mais espaço
do que numa História Geral da Filosofia corresponde a eles; mas isso não será atribuído a mim como um
grande defeito por parte dos leitores espanhóis, não importa o quanto o seja, e certamente o será pelos
estrangeiros, caso alguns deles leiam este livro.
Os defeitos deste último, sem contar a parte principal que corresponde à insuficiência do autor,
encontrarão mitigação e algum pedido de desculpas nas circunstâncias do lugar e do tempo em que foi
escrito. Foi escrito, é verdade, na terra natal de Sêneca; mas foi escrito em meio às múltiplas e muito sérias
atenções do ofício episcopal, o que vale tanto quanto dizer que foi escrito sem espaço e vagar adequados e,
acima de tudo, sem a tranquilidade de espírito tão necessária para empreender e realizar esse tipo de
trabalho.
Que a História da Filosofia seja talvez o ramo do saber mais negligenciado entre nós, é manifesto. Como
também o é a conveniência de incentivar aqueles meus compatriotas que estejam em melhores condições
do que as minhas para esse fim, a preencher esse grande vazio de nossa literatura. Algo e até muito pesou
esta última consideração em minha mente ao decidir pegar a pena e escrever este ensaio de História da
Filosofia.

15
Bibliografia
Em conformidade com o que no Prólogo deixamos indicado, vamos indicar parte dos livros de que
nos temos servido como fontes bibliográficas para escrever esta História da Filosofia, já que citá-las
todas seria impossível ou, ao menos, alargaria demasiadamente esta resenha bibliográfica.
Indicaremos primeiro, sob o título de Fontes Gerais as que se referem a toda ou à maior parte da
História da Filosofia, passando depois a citar as fontes bibliográficas particulares correspondentes aos
diversos períodos parciais da mesma.

Fontes Gerais
¨ Brucker, Historia critica Philosopiae a mundi incunabulis ad nostram usque aetatem
deducta, 1741.
¨ Tennemann, Manuel de l’Histoire de la Philosophie, trad. V. Cousin, 1839.
¨ De Gerando, Histoire comparée des systèmes de Philosophie relativement aux principes des
connaissances humaines, 1823-1847.
¨ Ritter, Histoire de la Philosophie ancienne, trad. Tissot, 1835.
— Histoire de la Philosophie chrétienne, trad. M. Trullard, 1844.
— Histoire de la Philosophie moderne, trad. Challemet-Lacour, 1861.
¨ Cousin, Histoire générale de la Philosophie, 1867.
— Introduction à l´Histoire de la Philosophie. [XXXVIII]
¨ Scholten, Histoire comparée de la Philosophie et de la religion, trad. M. Reville, 1861.
¨ Weber, Histoire de la Philosophie européenne, 1872.
¨ Nourrisson, Tableau des progrès de la pensée humaine depuis Thales jusqu´à Hegel, 1874.
¨ Michelis, Geschichte der Philosophie von Thales bis auf unsere Zeit, 1865.
¨ Uebeerweg, Grundriss der Geschichte der Philosophie, 1870.

Foram consultadas, ademais, Histórias Gerais de certas doutrinas e de sistemas determinados


referentes à Filosofia, dentre as quais, a Historia de las doctrinas morales y políticas, por Janet (1858);
e a mais recente Historia del materialismo, por Lange, publicada em 1865.

Fontes
para a Filosofia anterior à grega, ou dos povos orientais
¨ Encyclopédie du XIX siècle, nos artigos que tratam das religiões dos povos antigos, da Filosofia
e dos sistemas da Índia, do Budismo, do Zend-Avesta, da doutrina filosófica e moral dos
chineses, egípcios e outros povos orientais.
¨ Welte y Wetzer, Dictionnaire encyclopédique de la théologie catholique, trad. Goschler, nos
artigos que tratam da doutrina filosófico-religiosa dos judeus e demais povos antigos, 1858-65.
¨ Gobineau, Les religions et les philosophies dan l´Asie Centrale, 1865.
¨ Colebrooke, Essai sur la philosophie des Indous, trad. Pauthier, 1833.
¨ Burnouf, Introduction à l´Histoire du Boudhisme indien, 1844.
¨ Barthélémy Saint-Hilaire, Le Bouddha et sa religion, 1860.
¨ Regnaud, Études de philosophie indienne, 1876.
¨ Bunsen, Dieu dans l´Histoire, trad. A. Dietz, 1868.
¨ Max Müller, La science de la religion, trad. H. Dietz, 1873. [XXXIX]
¨ Anónimo, De ritibus sinensium erga Confucium philosophum et progenitores mortuos, 1700.
Parece escrito por algún misionero Jesuita, a juzgar por sus ideas acerca de los ritos sinenses.
¨ Navarrete (P. Fr. Domingo), Historia de China, en la cual este célebre misionero expone y
discute la doctrina de los literatos chinos, con motivo de las controversias sobre los ritos
sinenses.
¨ Noel (P. Francisco), Sinensis imperii libri classici sex e sinico idiomate in lat. vers, 1771.
16
¨ Meiners, De Zoroastris vita, institutis, doctrina et libris, 1780.
¨ Harlez, Le Zend-Avesta, ensayo crítico publicado en la Revue catholique de Louvain, 1874.
¨ Wiseman, Discursos sobre las relaciones que existen entre la ciencia y la religión
revelada, 1844.
¨ Lenormant, Manuel d´Histoire ancienne de l’Orient, 1868.
¨ Ruchet, La science et le Christianisme, 1874.
¨ Biblia sacra seu Vetus Testamentum.
¨ Flavii Josephi, Opera, 1726.
¨ Herodoto, Historiarum libri IX: recognovit Guilielmus Dindorfius, 1862.
¨ Ctesiae Cnidii Fragmenta, dissertartione et notis illustrata a Carolo Müller, 1862.

Fontes
para a Filosofia Grega
¨ Aurea Carmina Pythagorae, cum commentariis Stephani nigri, edic. de Basilea, sin fecha.
¨ Diógenes Laertius, De vitis, dogmatibus, et apophtegmatibus clarorum philosophorum, 1759.
¨ Ritter y Preller, Historia Philosophiae graeco-romanae ex fontium locis contexta, 1838.
¨ Zeller, Die Philosophie der Griechen, 1856.
¨ Laforet, Histoire de la Philosophie ancienne, 1867. [XL]
¨ Jenofonte, Memorabilia Socratis, trad. Schneider, 1863.
¨ Platón, Opera, Marsilio Ficino interprete, 1556.
¨ Aristóteles, Opera, 1608

As obras de Platão e de Aristóteles, além de serem fontes primárias e diretas de sua própria doutrina,
servem também de fontes as mais autorizadas e seguras a respeito da doutrina e opiniões
correspondentes à Filosofia socrática e às escolas anteriores a Sócrates. Neste conceito, são de muito
valor alguns dos Diálogos de Platão, mas são de maior importância, ainda, os escritos de Aristóteles,
principalmente os três livros De Anima, o Tratado De generatione et corruptione e, sobretudo, o livro
primeiro Metaphysicorum, que contem um verdadeiro resumo da História da Filosofia desde Tales até
Platão e Aristóteles.
O que são as obras destes últimos para a Filosofia socrática e pré-socrática, são as obras de Cícero
para a Filosofia posterior a Sócrates. Além das questões tusculanas e as académicas, são importantes,
nesta matéria, os Tratados De divinatione et de fato, De natura deorum, e o De officiis, os quais contêm
uma espécie de resumo das opiniões e teorias professadas pelos principais filósofos e escolas que
floresceram depois de Sócrates.
Para conhecer e julgar estas mesmas escolas e, por sua vez, as opiniões e doutrinas dos sistemas e
filósofos posteriores a Cícero, são também fontes autorizadas e muito dignas de estudo os escritos de
Clemente de Alexandria, Orígenes e Eusébio de Cesaria, nos quais se encontram muitas notícias e
indicações curiosas e úteis acerca da matéria. Os Stromata de S. Clemente, o tratado De principiis e o
que escreveu Contra Celsum de Orígenes, e a Praeparatio evangelica de Eusébio, assim como
sua História eclesiástica, são os mais importantes neste sentido.
¨ Soury, L’Ecole d’Athènes, estudo crítico sobre as relações da escola socrática com o
materialismo, publicado na Revue philosophique, 1876. [XLI]
¨ Marsilio Ficino, Theologia platónica de immortalitate animorum, 1559.
¨ Justo Lipsio, Manudictio ad stoicam Philosophiam, 1604.
¨ Séneca, Opera quae extant omnia, a Justo Lipsio emendata, 1605.
¨ Epitecto, Enchiridiom et Cebetis tabula, 1570.
¨ Guyeau, La contingence dans la nature et la liberté dans l’homme selon Epicure, 1877.
¨ Gassendi, Animadversiones in decimum librum Diogenis Laertii, qui est de vita, moribus,
placitisque Epicuri, 1675.
¨ Lucrecio, De rerum natura, 1850.
¨ Filón, Opera omnia, 1613.
¨ Plotini libri in sex Enneades distributi a Marsilio Ficino translati et comment. illustrati, 1559.
17
¨ Porfirio, De diis atque daemonibus.
¨ ______ De abstinentia ab esu animalium.
¨ ______ De anima, Marsilio Ficino interprete, 1552.
¨ Introductio ad universalia, Severino Boetio interprete, 1552.
¨ Jámblico, De mysteriis aegyptiorum, chaldaeorum et assyriorum, 1554.
¨ Proclo, Commentaria in Alcibiadem Platonis primum de Anima et daemone, Marsilio Ficino
interprete, 1552.
¨ Julio Simón, Histoire de l’Ecole de Alexandrie, 1845.

18
História da Filosofia
§ 1 Conceito de História da Filosofia

Aristóteles começa os seus 14 livros da Metafísica com aquela afirmação de todos conhecida, a saber:
“que todos os homens desejam naturalmente saber” (omnes homines natura scire desiderant), ou possuem
natural inclinação à ciência. Afirmação esta que, ainda que pareça simples à primeira vista, encerra
profundo sentido filosófico, segundo se depreende das reflexões luminosas que faz Santo Tomás18 ao expor
e comentar com sua costumeira penetração e segurança esta sentença do Estagirita. E é digno de nota que
o Doutor Angélico supõe e afirma que este desejo natural de saber se refere ao saber em si mesmo, abstração
feita de suas aplicações ulteriores e de sua utilidade possível: quaerere scientiam non propter aliud utilem,
qualis est haec scientia, non est vanum.
A nossa intenção, contudo, na presente ocasião, é só de recordar que esse desejo de saber, espontâneo e
universal no homem, de que nos fala o discípulo de Platão, é o grão de mostarda que cresceu e cresce, se
desenvolveu e se desenvolve, até constituir a ciência filosófica, cuja história tratamos de escrever. Mas o
que se entende por esta ciência filosófica? Que matérias e questões constituem a essência e o ser da
Filosofia, e representa, por conseguinte, o domínio e os limites de sua História?
Essas são perguntas que entranham um problema nada fácil de resolver, pelo menos com segurança e
precisão exata. Isso porque, se nos voltamos para atrás e damos uma breve olhada sobre o sentido e
significado que se deu ao termo “Filosofia” (philosophia - φιλοσοφία) nas diversas épocas e por diferentes
autores, será sumamente difícil para nós determinar, circunscrever e fixar o sentido e a compreensão, e, por
conseguinte, a natureza e o domínio da filosofia e de sua História.
Zeller observa com razão que a palavra “Filosofia” recebeu entre os gregos sentidos e significados muito
diferentes. De fato, se recorremos aos escritos de Heródoto, Xenofonte Platão e Sócrates e alguns outros,
veremos que o nome de filósofo se tomava com frequência como sinônimo de sábio, de sofista, de físico
ou naturalista, e, por vezes, aplicava-se até a poetas e artistas em geral. Em geral, pode-se dizer que, de
princípio, toda cultivação do espírito humano, aplicação ou exercício de sua atividade em qualquer de suas
etapas, a manifestação, enfim, da potência e força nativa da razão humana numa esfera superior à do vulgo
ou generalidade dos homens recebeu tanto o nome de “Filosofia” (φιλοσοφία) quanto de “sabedoria”
(σοφία). Porque é sabido que, de início, estes dois nomes andaram juntos, de modo geral confundidos e
como que identificados e se pode acrescentar ainda que esteve em uso mais o segundo (sábio) que o
primeiro (filósofo) até a época de Pitágoras19 e até o ensinamento de Platão, cujos escritos contribuíram
muito não só para generalizar o uso do termo filósofo, mas também para precisar e fixar seu verdadeiro
sentido.

18
Sem contar outras várias considerações muito filosóficas acerca das aplicações e efeito desse natural desejo de saber que existe
no homem, Santo Tomás busca e aponta a razão suficiente desse fenômeno ou, digamos melhor, deste fato: a) na tendência
espontânea e natural do imperfeito à perfeição, do entendimento em estado de potência ao entendimento em estado de ato, da
inteligência potencial e informe à inteligência atualizada e informada pelas idéias; b) na natural inclinação de toda substância ou
natureza à sua própria operação, à ação correspondente à sua própria essência, que no homem e para o homem não é outra que a
ação do entender, inteligir ou saber – posto que essa é a ação mais própria do homem enquanto homem e que o distingue e separa
dos demais entes – e, por conseguinte, nada mais natural que a inclinação do homem à ciência, o desejo de saber e conhecer as
coisas e suas razões e princípios. «Cujs ratio potest esse triplex: primo quidem quia unaquaeque res naturaliter appetit perfectionem
sui, unde et materia dicitur appetere formam, sicut imperfectum appetit suam perfectionem. Cum igitur intellectus a quo homo est
id quod est, in se consideratus, sit in potentia omnia, nec in actum eorum reducatur nisi per scientiam, quia nihil est eorum quae
sunt, ante intelligere, sic naturaliter unusquisque desiderat scientiam, sicut materia formam. Secundo, quia quaelibet res naturalem
inclinationem habet ad suam propriam operationem; propria autem operatio hominis in quantum homo est intelligere, per hoc enim
ab omnibus aliis differt: unde naturaliter desiderium hominis inclinatur ad intelligendum et per consequens ad
sciendum.» Comment. in 12 lib. Metaphys., lib 1º, lecc.1ª.
Não é menos bela a terceira razão, provando que o homem deseja naturalmente a ciência, ato e perfeição própria do entendimento
humano, porque por meio dela se verifica a união do homem com a Inteligência Suprema e a posse da perfeita felicidade: Non
conjungitur homo nisi per intellectum, unde et in hoc ultima hominis felicitas consistit.
19
Qualquer que seja a exatidão histórica da anedota que atribui a Pitágoras a origem do nome filósofo – exatidão que nem todos
reconhecem –, é certo que esta palavra tomou carta de cidadania, por assim dizer, entre os escritores e homens de letras a partir da
época em que floresceu o fundador da escola itálica.
19
Para o mesmo resultado contribuíram igualmente os escritos e ensinamentos de Aristóteles, pois se bem
seja certo que tanto este como o seu mestre empregam vez ou outra a palavra Filosofia em seu sentido
primitivo e vago, geralmente lhe atribuem uma significação precisa, diferenciada e científica. Se, para
Platão, a Filosofia é o esforço por meio do qual o espírito humano se eleva ao conhecimento objetivo do
ser e da perfeição moral, e distingue o que é do que aparece, o inteligível do sensível e fenomênico; para
seu discípulo, a Filosofia é o conhecimento refletivo e sistemático dos princípios do ser e do conhecer, a
investigação científica do mundo e de suas primeiras causas, e do homem com suas potências, sua origem
e seus fins.
Nas escolas que posteriormente se formaram no calor da restauração socrática, e sob a influência mais
direta e imediata de Platão e Aristóteles, o nome e noção de Filosofia voltam a perder a precisão e o sentido
racional, preciso e científico que haviam recebido da boca e nos escritos daqueles dois grandes filósofos.
Em muitas destas escolas, a Filosofia fica reduzida à investigação ética, ou melhor, à investigação dos bens
nos quais consiste a felicidade do homem e os meios de chegaram a possuí-la. Noutras, a ciência filosófica
é amalgamada e confundida com a erudição histórica, a crítica, a música, a gramática e outras semelhantes.
Em algumas, finalmente, o elemento mitológico, a simbólica, a teurgia e a magia absorvem, se não
dissermos afogam, a filosofia, no sentido próprio do termo.
Em resumo: desde os primeiros tempos históricos até Pitágoras, a denominação de Filósofo e a de sábio
(então equivalente à primeira), dava-se aos que se sobressaiam ou se distinguiam do vulgo por alguma
cultura superior do espírito ou porque possuíam conhecimentos especiais em qualquer ramo, ciências, artes,
literatura governo etc. e também aos que se distinguiam da generalidade pela prática da virtude ou
exercícios das boas obras. A esta primeira época podemos aplicar as palavras de Cícero quando escreve:
Omnis rerum optimarum cognitio atque in his exercitatio Philosophia nominata est20.
De Pitágoras a Aristóteles inclusive, o nome e significado de Filosofia se determinam, especificam e se
fixam paulatinamente até adquirir um significado próprio e diferenciado e, por último, se apresenta – ainda
que de maneira mais ou menos vaga, entre vacilações passageiras e com alguma obscuridade – como a
ciência do mundo, de Deus e do homem, como a investigação científica, consciente e refletida da essência,
das leis e das relações da realidade objetiva. E aqui deve-se destacar que alguns destes filósofos, e
principalmente Sócrates e Platão, reconhecem e confessam que a ciência que o homem pode alcançar destes
objetos é muito imperfeita e como que nada em comparação da ciência de Deus, o único verdadeiro Sábio21
e o único que possui a ciência verdadeira e digna de tal nome.
Nas escolas posteriores, o conceito de Filosofia ou se circunscreve à investigação da felicidade da vida
humana e de suas condições (como nas escolas cínica, cirenaica, epicurista etc.) ou amalgama e confunde
toda a sorte de conhecimentos, desde a retórica e poética até a magia e simbologia (como nos diferentes
ramos e fases do neoplatonismo) ou, enfim, subordina todos estes conhecimentos (e até a especulação
metafísica!) à idéia ética (como aconteceu na escola estoica, para qual não havia mais Filosofia nem mais
investigações metafísicas além do estudo e da prática da virtude, à qual se deveria subordinar todo o
restante, como escrevia Sêneca: Philosophia studium virtutis est, sed per ipsam virtutem).
Disso se depreende que a História da Filosofia nem deve abraçar tudo o que algumas escolas e filósofos
chamaram de Filosofia nem tampouco deve limitar-se àquilo que outras escolas e outros filósofos
designaram com este nome. Deve, contudo, caminhar e se mover em relação e harmonia com a noção ou
conceito própria de Filosofia, que, como fica indicado, abarca ou compreende o conhecimento racional –
ou, ao menos, a investigação científica – da essência leis e relações gerais da realidade. O conceito de
Filosofia e, consequentemente, sua História não descem ao objeto e ao terreno próprios às ciências

20
“Chama-se Filosofia todo o conhecimento das coisas mais excelentes e a exercitação nestas mesmas coisas.” [N.T.]
21
Não uma mas várias vezes insiste Platão neste pensamento que poderíamos chamar filosófico-cristão ora colocando-o na boca
de Sócrates ora o expressando por sua própria conta, como se pode constatar na Apologia de Sócrates, no Banquete, no Fedro , em
Lísias, e até em algumas de suas cartas. Assim por exemplo, na Apologia, Platão, depois de recordar a pergunta feita ao oráculo de
Delfos acerca da sabedoria de Sócrates, põe em sua boca as seguintes palavras: “Interrogavit utique (Cherephon) an esset ullus me
sapientior: respondit Pythia, sapientiorem esse neminem... Quidnam Deus est? aut quid hoc sibi voluit? Ego enim mihi conscius
sum, neque in magnis nec in parvis esse me sapientem. Quid igitur sibi vult cum me asserit sapientissimum?... Videtur autem, o
viri Athenienses revera solus Deus sapiens esse, atque in hoc oraculo id sibi velle, humanam sapientiam parvi, imo nihili
pendendam esse.” Opera plat. Mars. Fic. interp., p. 470.
20
particulares consideradas como tais, mas se mantém nas investigações, conhecimentos e sistemas que, de
uma maneira mais direta e geral, relacionam-se com (1) Deus, (2) o mundo e (3) o homem, que são os três
grandes objetos que integram a realidade objetiva, cuja essência, leis gerais e relações constituem e
representam a matéria e como que o objeto específico da Filosofia.

§ 2 Limites e auxiliares da História da Filosofia

Daquilo que foi dito no parágrafo anterior, vê-se que a História da Filosofia exclui de seu seio as artes
e ciências da erudição, empíricas, históricas, matemáticas e físicas. E até no que diz respeito às ciências
que participam da natureza da Filosofia – como as psicológicas, jurídicas e sociais –, a História da Filosofia
deve se limitar a certos pontos de vista gerais e às suas relações mais íntimas e fundamentais com a Filosofia
propriamente dita.
Por sua própria natureza, estes limites entre a Filosofia e as demais ciências são relativamente vagos.
Por esta razão, não é possível assinalar uma linha precisa, imutável e fixa, seja para separar a Filosofia e
sua História das demais ciências seja para reconhecer e escolher, entre as múltiplas opiniões e idéias dos
filósofos, aquelas que merecem figurar na História da Filosofia. De maneira que o critério objetivo necessita
ser completado e desenvolvido pelo critério subjetivo do autor, o qual, se possui senso filosófico, saberá
discernir as idéias, opiniões e teorias as quais deva conceder lugar mais ou menos preferentes na História
da Filosofia, em vista de seu valor real, de sua influência sobre os espíritos, de sua originalidade e
importância efetivas.
O acerto e segurança do critério, tanto objetivo quanto subjetivo, depende também, em grande parte, dos
materiais de que se lança mão ao escrever uma História da Filosofia. Escusado parece dizer que se deve dar
preferência às obras gerais dos filósofos cuja doutrina se trata de expor, quando conste, ao menos, a
autenticidade dessas obras que chegaram até nós. Faltando estas, devemos recorrer ao testemunho de outros
autores e as notícias subministradas por eles, principalmente quando lhes são contemporâneos ou pouco
posteriores, naquilo que diz respeito à vida, doutrina, discípulos ou influência destes filósofos.
Daqui a utilidade, ou digamos melhor, a necessidade relativa recorrer às ciências histórica, crítica e
filológica para proceder com acerto ao discutir, afirmar e discernir tanto a autenticidade das obras atribuídas
a determinados filósofos quanto a autenticidade ou valor real das notícias de segunda mão e dos dados
subministrados por outros autores. Podem e devem, portanto, considerar-se como auxiliares da História da
Filosofia, a crítica, a filologia, a História dos povos e de sua civilização; como também, ainda que em grau
inferior e de uma maneira menos direta, a gramática, a História das artes e ciências, a biologia, a Religião
e a cronologia.
Ao falar aqui dos limites da História da Filosofia, claro está que nos referimos
aos limites internos da mesma, aos limites inerentes e essenciais ao seu objeto
específico e à sua matéria própria. Acerca dos limites que podemos chamar
externos e cronológicos, já deixamos indicado no prólogo, que os alargamos
até compreender na História da Filosofia os povos orientais, sem que com
isso seja nossa intenção pré-julgar a questão referente à origem da Filosofia.
De outro lado, a resolução deste problema depende em grande parte do
sentido ou significado que se atribua ao termo filosofia: é muito possível que,
uma vez fixado seu sentido, os que buscam e apontam a origem da História da
Filosofia na Índia, se aproximem muito – se é que não coincidam plenamente –
com a opinião de Tennemann22 (imagem ao lado) quando nos diz que “o verdadeiro
princípio da Filosofia se encontra entre os gregos”.

22
Wilhelm (Guilherme) Gottlieb Tennemann (1761-1819), famoso historiador da Filosofia alemão. Tendo estudado em Erfurt, foi
professor de História da Filosofia na Universidade de Jena de 1788 a 1804. Sua obra principal é uma História da Filosofia
(Geschichte der Philosophie) em 11 volumes, completada na Universidade Marburgo, onde foi professor de 1804 até sua morte.
Em 1812, publicou uma breve História da Filosofia (Grundriss der Geschichte der Philosophie für den akademischen Unterricht).
Da escola kantiana, interpretava a História da Filosofia a partir das opiniões de Kant. [N.T.]
Cf. Tennemann, Manuel de l´Histoire de la Philosophie, trad. V. Cousin, 1839.
21
A julgar por esta afirmação, seria preciso supor que, para Tennemann, a Filosofia da Índia e seus
sistemas não representam esforço algum da razão humana para realizar o conceito de Filosofia, ou seja,
para constituir uma concepção mais ou menos sistemática da realidade. Porque é de saber que para o
filósofo alemão, a História da Filosofia “é a ciência que representa os esforços da razão humana para
realizar o conceito de Filosofia, narrando-os ordenadamente”. De fato, ele acrescenta que a História da
Filosofia é “a representação, por meio dos fatos, do desenvolvimento sempre progressivo (sic) da Filosofia
como ciência”. Parece-nos que o espírito hegeliano que informa estas duas definições – espírito que
transparece ainda mais evidentemente na segunda – contém a explicação e a verdadeira razão suficiente do
privilégio que Tennemann concede aos gregos em ordem à origem da Filosofia e da sua História.

§ 3 Matéria e Forma da História da Filosofia

A matéria da História da Filosofia é de duas naturezas ou espécies: (1) interna e (2) externa.
(1) A matéria interna é a própria Filosofia considerada como esforço consciente, sistemático e
progressivo da razão para o conhecimento da realidade concebida desde um ponto de vista geral, em sua
essência, suas leis e suas relações fundamentais. O que foi dito no primeiro parágrafo (§ 1) acerca do
conceito de Filosofia e de sua História, fixa de antemão qual a sua matéria interna. Pode-se dizer, em outras
palavras, que a (1) matéria interna da História da Filosofia são os vários sistemas filosóficos que aparecem
em diferentes pontos do espaço e do tempo, como produtos do esforço da razão, ou melhor, como produtos
e manifestações do trabalho metódico e consciente da inteligência em ordem ao conhecimento geral e
científico da realidade.
A razão, a experiência e ciências históricas demonstram unanimemente que a inteligência do homem se
encontra submetida a certas condições exteriores que influenciam de uma maneira mais ou menos direta e
eficaz em seu desenvolvimento, ora o favorecendo e acelerando, ora contrariando sua energia, ora
comunicando-lhe determinada direção. E isto é o que constitui e representa a (2) matéria externa da História
da Filosofia; porque a verdade é que a História não seria completa nem preencheria seu objeto se, ao ocupar-
se da (1) matéria interna e dos sistemas filosóficos, não fizesse cargo eu não tomasse em consideração os
(2) acontecimentos, circunstâncias e condições que exerceram influência mais ou menos eficaz e decisiva
no desenvolvimento da razão filosófica, na origem, natureza, direções e efeitos dos sistemas.
Pertencem a este género e formam parte da (2) matéria externa da História da Filosofia: a) a pessoa dos
filósofos, com os dados referentes à sua vida e costumes, ao seu caráter moral, à força ou intensidade de
sua inteligência, aos seus estudos, mestres etc.; b) o grau e características da Civilização do povo em que
nasceu ou viveu o filósofo, a religião e a língua do país e a educação recebida; c) o espírito geral da época
e a constituição e idéias políticas reinantes; e, finalmente e em menor escala, o clima, as condições
geográficas e geológicas do país, os desconsertos históricos contemporâneos ou imediatos, as revoluções
etc.
Assim como a combinação oportuna e racional dos termos e proposições constitui a forma do silogismo
segundo os lógicos, assim também a forma da História da Filosofia deve consistir na coordenação metódica,
racional e oportuna do que constitui a sua (1) matéria interna e (2) externa. O elemento principal, a condição
mais indispensável para alcançar esta coordenação metódica que constitui a forma da História da Filosofia,
consiste em não perder de vista que nesta História deve entrar em muito o estudo e conhecimento das causas
e efeitos (i.e. as relações de causalidade) que determinaram o processo dos múltiplos sistemas filosóficos
que nela se apresentam. Em outros termos: pode-se dizer então que a História da Filosofia possui sua
verdadeira e própria forma quando a (1) matéria interna e (2) externa está adequadamente disposta ou
combinada para representar com a possível clareza e exatidão o desenvolvimento sucessivo da razão
filosófica, juntamente com as causas e razões de ordem, alternativas e vicissitudes deste desenvolvimento.
Nisto está pressuposto que não se trata aqui do que poderíamos chamar a forma externa e acidental da
História da Filosofia, ou seja, a forma resultante das qualidades do estilo, divisão por capítulos, livros ou
parágrafos, colocação de textos etc. (mera crítica histórica), mas que se trata da forma interna e substancial,
por assim dizer, por meio da qual a História da Filosofia não somente se distingue essencialmente de todas

22
as demais Histórias e ciências, mas, além disso, que em razão dessa forma ela constitui um verdadeiro
conjunto histórico-científico, com unidade própria e verdadeira.
A forma da História da Filosofia será imperfeita se a disposição oportuna e a combinação adequada dos
materiais não estiver formada e vivificada por um critério fixo, amplo e compreensivo, capaz de perceber
o sentido íntimo e real dos sistemas e doutrinas, comunicando ao mesmo tempo à sua História certa unidade,
certa uniformidade doutrinal, baseada na convicção real no critério filosófico do historiador. Porque não
somos daqueles que creem que o historiador da Filosofia deva carecer de sistema filosófico, nem sequer
que deva ocultar suas idéias. Longe disso, opinamos ao contrário, que o historiador da Filosofia necessita
ter um sistema, uma concepção sistemática, um critério geral, que possa servir-lhe de guia, de norma e
como que medida para compreender as doutrinas dos filósofos, julgar de sua importância e relações mútuas,
discernir seu valor real e a natureza de seus resultados e influências na História e na Civilização. É óbvio
que o historiador da Filosofia deve ter empenhado cuidado em não se deixar levar por suas afecções ou
convicções pessoais ao julgar e criticar as doutrinas dos filósofos; é óbvio que deve, antes de tudo, expor
com fidelidade e exatidão as opiniões dos sistemas que se sucedem no campo da Filosofia; mas daqui não
se infira que deva carecer de sistema próprio. Para expor com imparcialidade e verdade as opiniões dos
outros, não se necessita ser cético ou carecer de convicções nessa matéria. E é absurdo afirmar ou supor
que o melhor historiador da Filosofia será aquele que carecer de sistema próprio e de convicções fixas em
matéria de Filosofia, como seria absurdo pretender que o melhor historiador do Direito seria um homem
que não professasse opinião alguma determinada e fosse completamente cético nessa matéria. De maneira
geral, nesta matéria, como em tantas outras, os que fazem maior alarde da liberdade de juízo, da amplitude
de vistas e de imparcialidade são os que, na prática, as observam menos e os que mais se apressam em
julgar das doutrinas e sistemas filosóficos não somente a partir de seus critérios pessoais, mas submissos
às suas paixões racionalistas e anticristã antes.

§ 4 Importância e utilidade da História da Filosofia

A importância e a utilidade da História da Filosofia se inferem e resultam da natureza mesma da


Filosofia. Porque, se esta representa a evolução superior da razão humana como faculdade do conhecimento
na ordem natural; se a Filosofia é a maior entre as ciências humanas; se é a base e o coroamento de todas
as demais ciências23 e, até, das artes24; se leva em seu seio íntimas e múltiplas relações com a Religião e o
destino final do homem; se a Filosofia representa e contém um dos elementos mais poderosos, eficazes e
permanentes do movimento histórico e civilizador do gênero humano, evidente será que é muito grande e
incontestável a importância e utilidade de sua História, segundo fica indicado no prólogo. Assim, pois, a
História da Filosofia é uma espécie de complemento da própria Filosofia e, por isso, sua importância e
utilidade vêm a confundir-se e identificar-se com a utilidade e a importância da própria Filosofia. Neste
entendimento, a História da Filosofia se encontra em contato com todos os grandes objetos da atividade
humana e influi de uma maneira direta ou indireta em quase todas as ciências e artes, no conhecimento do
processo e vicissitudes da História humana e facilita o caminho para conhecer, julgar e medir a natureza
das diferentes Civilizações e a das diferentes fases ou manifestações religiosas que predominaram e
predominam entre os homens.

23
Ciência é o conhecimento da coisa pela causa [N.T.]
24
Arte é a reta razão aplicada ao fazer [N.T.]
23
Por outra parte, com o estudo da História da Filosofia, o espírito adquire insensivelmente certa
independência e superioridade para julgar e criticar as doutrinas; põe-se em estado de conhecer e aplicar as
regras mais convenientes para a investigação científica da verdade; descobre novos caminhos e direções
possíveis no desenvolvimento da razão e da ciência, ampliando os seus horizontes. A isto se acrescenta que
A Ditadura do Relativismo no Novo Milênio é auxiliar muito eficaz e
poderoso para caminhar
Homilia do Cardeal Ratzinger, na Missa pro eligendo Romano Pontifice,
segunda-feira, 18 de abril de 2005 com relativa segurança
pelos caminhos da verdade
Em que consiste ser crianças na Fé? Responde São Paulo: significa e da ciência e para conhecer
ser “batidos pelas ondas e levados por qualquer vento da doutrina...” (Ef 4, as aberrações da razão
14). Uma descrição muito actual! humana, suas causas e
Quantos ventos de doutrina conhecemos nestes últimos decénios, efeitos, conhecimento que é
quantas correntes ideológicas, quantas modas do pensamento... A pequena resultado natural e lógico
barca do pensamento de muitos cristãos foi muitas vezes agitada por estas do estudo da História da
ondas, lançada de um extremo ao outro: do marxismo ao liberalismo, até Filosofia. E este estudo
à libertinagem, ao colectivismo radical; do ateísmo a um vago misticismo contribui também, e não
religioso; do agnosticismo ao sincretismo e por aí adiante. Cada dia pouco, a desterrar as
surgem novas seitas e realiza-se quanto diz São Paulo acerca do engano preocupações ou
dos homens, da astúcia que tende a levar ao erro (cf. Ef 4, 14). Ter uma fé preconceitos; a imprimir no
clara, segundo o Credo da Igreja, muitas vezes é classificado como espírito elevação de vistas,
fundamentalismo. Enquanto o relativismo, isto é, deixar-se levar “aqui e a comunicar-lhe certa
e além por qualquer vento de doutrina”, aparece como a única atitude modéstia e sobriedade de
à altura dos tempos hodiernos. Vai-se constituindo uma ditadura do juízo, muito em harmonia
relativismo que nada reconhece como definitivo e que deixa como com as prescrições do
última medida apenas o próprio eu e as suas vontades. Catolicismo e muito em
Ao contrário, nós, temos outra medida: o Filho de Deus, o harmonia também com a
verdadeiro homem. É ele a medida do verdadeiro humanismo. “Adulta” dignidade do homem e da
não é uma fé que segue as ondas da moda e a última novidade; adulta e ciência.
madura é uma fé profundamente radicada na amizade com Cristo. É esta Tenha-se, porém,
amizade que nos abre a tudo o que é bom e nos dá o critério para discernir presente e nunca se esqueça
entre verdadeiro e falso, entre engano e verdade. Devemos amadurecer que a modesta sobriedade
esta fé, para esta fé devemos guiar o rebanho de Cristo. E é esta fé – só
do juízo, que prepara e
esta fé – que gera unidade e se realiza na caridade. São Paulo oferece-nos
a este propósito em contraste com as contínuas peripécias dos que são inspira o estudo reto da
como crianças batidas pelas ondas uma bela palavra: praticar a verdade na História da Filosofia, não
caridade, como fórmula fundamental da existência cristã. Em Cristo, deve se confundir nem com
coincidem verdade e caridade. Na medida em que nos aproximamos de a falsa sobriedade do
Cristo, também na nossa vida, verdade e caridade fundem-se. A caridade ecleticismo – que envolve a
sem verdade seria cega; a verdade sem caridade seria como “um címbalo negação da verdade real e
que retine” (1 Cor 13, 1).
absoluta – nem, muito
menos, com essa
indiferença que alguns
alardeiam e que concede
iguais direitos à verdade e
ao erro, ao bem e ao mal;
indiferença absurda e
imoral que coincide e se
identifica com o ceticismo
absoluto.

24
Filosofia nos Povos Orientais
§ 5 Filosofia na Índia

As províncias meridionais e ocidentais da Ásia – que, segundo as tradições bíblicas presenciaram a


primeira criação do homem e a segunda criação ou dispersão pós-diluviana do gênero humano – foram
também testemunhas das primeiras evoluções filosóficas e
Como animal racional, todo
palco das primeiras Civilizações. Porque toda a Civilização
comportamento exige uma doutrina que o
entranha uma Filosofia, assim como toda a concepção
sustente: “É preciso viver como se pensa, sob
religiosa engendra uma civilização em harmonia com a a pena de acabar por pensar como se viveu”
Religião que lhe serve de base e norma fundamental. Daqui (BOURGET, P. Le Demon de Midi)
a existência, desenvolvimento e características do que
poderíamos chamar Filosofia oriental, e também Filosofia pré-histórico grega, em relação e em harmonia
com a existência, desenvolvimento e características das diversas Religiões que apareceram de maneira tanto
sucessiva quanto simultânea em diferentes regiões da Ásia e da África.
A Índia, o Irã [Pérsia], a China, o Egito, a Palestina, que foram palco e sítio das várias Religiões e
Civilizações, foram-no também de diferentes conceitos e sistemas filosóficos que constituem os
antecedentes históricos da Filosofia Grega.
O bramanismo e o mazdeísmo representam as duas concepções religiosas conhecidas como mais antigas,
abstração feita da Revelação de Deus ao primeiro homem. Entre os modernos orientalistas, acha-se bastante
generalizada a opinião de que o mazdeísmo não só é posterior ao bramanismo, mas que deve sua origem e
sua existência a uma reação contra este e representa o movimento de propagação da raça ariana até o
Ocidente enquanto as tribos bramânicas se dirigiam às províncias meridionais da Ásia e se estacionavam
na Índia. Seja como
for, certo é que a Índia
serviu de palco aos Á o
primeiros sistemas e
trabalhos
propriamente filosó-
Á

ficos temas e trabalhos


formados e desenvol-
vidos primeiro sobre
o

as inspirações e o calor
de seus livros sagrados
A
e que mais adiante se
emanciparam mais ou
ˆ

menos desta direção.


A Filosofia da Índia
pode dividir-se, por-
tanto, em (1) Filosofia
religiosa, que é a Á
contida nos livros tidos
por sagrados na Índia,
e (2) Filosofia racional, que é a que deve sua origem à especulação científica, independente de ser ortodoxa
ou heterodoxo, conforme ou não ao conteúdo dos livros indicados.
Os livros tidos por sagrados, e que contêm a Filosofia que chamamos (1) religiosa, são os seguintes:
a) Os quatro Vedas (conhecimento em sânscrito), a saber: o Rig-Veda (ऋग्वेदः hinário védico), o Yadjur-
Veda (यजुवेर्दः rubricas sacrificais védicas), o Sama-Veda (सामवेदः liber cantualis védico) e o Atharva-Veda
(अथवर्वेदः). Contêm, entre outras coisas, certos poemas metafísicos, chamados upanichadas (उपिनषद्). Os

25
partidários do bramanismo supõem que o conteúdo original de ditos livros foi revelado por Brahmâ,
conservando-se por tradição até que foram compilados e ordenados por Vyasa, nome que, segundo
Colebrooke25, quer dizer compilador, ainda que alguns o tomem por nome próprio.
b) Atribui-se ao mesmo autor a coleção, ou, melhor dito, a composição dos Puranas ou poemas, em
número de dezoito, destinados a narrar os diferentes fatos, transformações e encarnações da teogonia índica.
A coleção ou conjunto destes dezoito Puranas ou poemas (Vichnu-purana, o poema de Vichna, Bhagavatha-
purana, poema de Krichna etc.), forma um quinto Veda.
c) Atribui-se ao mesmo autor o Mahabaratha, espécie de poema épico em que se narram as guerras que
tiveram lugar entre os Pandos e os Kurus, e no qual se encontra também o famoso episódio conhecido como
Bhag avat-gita, quer dizer, canto de Bhagavan ou Krichna, uma das “encarnações” [avatares] de Vichnu.
O outro grande poema épico, intitulado Ramayana, atribui-se a Valmiki.
d) A coleção das leis de Manú, ou seja Mana-vadharma-sastra, forma a quarta classe ou série de livros
considerados como sagrados pelos povos da Índia, e constituem o que se poderia chamar “a bíblia” do
Bramanismo.

§ 6 Filosofia especulativo-religiosa na Índia

A doutrina metafísica e cosmológica contida nos livros canônicos do bramanismo pode resumir-se e
condensar-se nos seguintes pontos: (panteísmo emanacionista)
1º No princípio e desde a eternidade, antes de todo o tempo, de todo o mundo e de toda a criação, não
havia nem ser nem não-ser nas coisas: “Tudo era abismo e trevas e a morte não existia nem a vida
tampouco” 26 . Só existia Brahm, o Ser absoluto, infinito, único existente em si e por si, que nas
profundidades de seu ser encerra a inteligência (Brahmâ), o espírito divino, e a matéria (Mâyâ) os quais
dão origem ao mundo. Brahmâ e Mâyâ, i.e. espírito e matéria, ainda que identificados com Brahm
substancialmente, iniciam e representam nele o desejo de sair de sua profundeza tenebrosa e manifestar-se
por meio da criação do mundo, ou diga-se melhor, por meio da emanação e evolução de sua própria
substância. Em. outros termos: Brahmâ é Brahm como inteligência ou espírito, e Mâyâ é o mesmo Brahm
como matéria ou fundo substancial comum das coisas. (evolucionismo)
2º Acerca do processo primitivo destas manifestações de Brahm (ou ser absoluto 27 ), eis como se
apresenta no livro das leis de Manú: “Este mundo estava submerso na escuridão, imperceptível, privado de
todo atributo, não podendo nem ser reconhecido pelo raciocínio nem se revelar; parecia entregue
completamente ao sono. Então, apareceu o Senhor que existe por si mesmo e dissipou a escuridão, quer
dizer, desenvolveu a Natureza. Tendo decidido, em seu espírito ou pensamento, tirar de sua própria
substância as criaturas, produziu antes de tudo as águas, nas quais depositou uma semente. Esta semente se
converteu em um ovo brilhante como ouro, e dele nasceu o próprio Ser Supremo sob a forma de Brahmâ,
o avô de todos os seres. As águas foram chamadas Nârâs porque foram a produção de Nara (o espírito
divino) e, como estas águas foram o primeiro lugar do movimento de Nara (ou seja do espírito divino), por
isso mesmo este espírito foi chamado Nârayâna, isto é, o que se move sobre as águas. Pelo que é, pela causa
imperceptível, eterna, que existe realmente, mas que não existe para os órgãos, foi produzido este varão
divino, célebre no mundo sob o nome de Brahmâ. Depois de permanecer dentro deste ovo por espaço de
um ano divino, o Senhor, por meio de seu pensamento somente, dividiu este ovo em duas partes com as
quais formou o céu e a terra”. (dualismo aparente)
3º Desse modo, Brahmâ e Mâyâ – primeiras manifestações ou, melhor dizendo, dupla fase de Brahm (o
ser único e absoluto) – constituem a realidade do Universo com todos os seus seres, cuja substância e
realidade são de fundo idênticas com a substância e a realidade de Brahm, o Ser Supremos, o espírito divino,

25
Henry Thomas Colebrooke (1765-1837) foi um orientalista e matemático britânico, estudioso do sânscrito. Fundador da Royal
Asiatic Society e da Royal Astronomic Society. [N.T.]
Todas as citações de Colebrooke são retiradas de COLEBROOKE, H.T., Essai sur la philosophie des Hindous, trad. Pauthier, 1833.
26
Palavras do Rig-Veda, segundo Colebrooke.
27
O nome Brahmâ, em sânscrito ब्रह्म, significa literalmente “absoluto”. [N.T.]
26
a alma universal, fora da qual não existe nada a não ser ilusão e aparente pluralidade28. A distribuição e
pluralidade dos seres são “meras transformações das qualidade de Mâyâ, que se apresenta como múltiple”,
ou seja, são fases da grade ilusão, porque “o universo inteiro é o próprio Bhagavat (ou espírito supremo)
multiplicado por Mâyâ”, segundo se expressa o Bhagavata-purana (ou poema de Krishna).
4º Como se vê pelo que foi dito, a Filosofia Bramânica se reduz a um panteísmo, que se apresenta
algumas vezes como emanacionista outras como idealista. A “criação” que esta Filosofia ensina é uma
verdadeira evolução da substância única, que nada tem em comum com a criação da Bíblia e do
Cristianismo. O mesmo se pode dizer da famosa “trindade” ou Trimurti do Bramanismo,
porque Brahma, Vishnu e Shiva (o Deus criador,
Quam laudabiliter o Deus conservador e o Deus destruidor do
Carta de S. Leão Magno a Torríbio, Bispo de universo) são três aspectos, formas ou potências
Astorga, 21 de julho de 447 (DH 284)
do mesmo Deus. Aqui não existem três
No primeiro capítulo, portanto, é demonstrado hipóstases ou Pessoas iguais em natureza e
quão ímpio é o conceito que têm da divina Trindade distintas entre se, como na Trindade cristã, mas
os que afirmam que a pessoa do Pai e do Filho e do três formas ou manifestações (modalidades) de
Espírito Santo seja única e a mesma, como se Deus um mesmo ser. O Bhagavata-purana põe na
ora fosse chamado Pai, ora Filho, ora Espírito Santo, boca deste Trimurti as seguintes palavras: “Sabei
e que não seja um o que gerou, outro o que foi gerado que não existe distinção real entre nós (Brahma,
e outro ainda o que procede de ambos, mas que Vishnu e Shiva); o que se afigura como tal é só
afirmam que a singular unidade deva na verdade ser aparente. O Ser único aparece sob três formas,
aceita em três vocábulos, mas não em três pessoas. mediante as ações de criação, conservação e
Eles tiraram este gênero de blasfêmia do conceito de destruição; mas é um só. Dirigir seu culto a uma
Sabélio, cujos discípulos justamente são chamados destas formas, é dirigi-lo às três, ou seja, a um só
patripassionistas, pois se o Filho é o mesmo que o Deus supremo”. Esta concepção trinitária admite
Pai, a Cruz do Filho é a Paixão do Pai, e tudo quanto termo de comparação com a “trindade”
o Filho, na condição de servo, obedecendo ao Pai, sabeliana29, mas não com a do Concílio de Nicéia
suportou, tudo isso o próprio Pai suportou em si. e menos ainda com a do Símbolo de Santo
Isso é, sem dúvida, contrário à fé católica, que Atanásio.
professa a Trindade da divindade de tal modo igual 5º O mundo, que, como se viu, não é mais do
na essência (homousion) que crê que o Pai e o Filho
que uma emanação do ser absoluto (Brahm)
e o Espírito Santo são indivisos sem confusão,
retorna a Brahm ao término de ciclos maiores ou
sempiternos sem tempo, iguais sem diferença, já que
menores. O universo e seus seres, que
não a unicidade de pessoas, mas a da essência realiza
começaram a existir por evolução, deixam de
a unidade na Trindade.
existir como tais por uma espécie de involução
ou reversão a Brahm, para depois evoluir
novamente; de maneira que a série de mundos que nascem e morrem sucessivamente corresponde à série
de evoluções e involuções do ser absoluto e único, representam a vigília e o sono de Brahm, o despertar e
o dormir de Deus. “Quando Deus desperta – está escrito no livro de Manú – este universo realiza seus atos;
se dorme, submerso o espírito em profundo repouso, então o mundo se dissolve. De sorte que o ser imutável
faz reviver ou morrer alternativamente este conjunto ou coleção de criaturas por meio do despertar e do
repouso”.

28
“O universo – está escrito no livro de Manú – descansa na Alma suprema: esta alma produz a série dos atos que se realizam nos
seres animados”. No Bhagavat-gita, Krishna diz: “Eu existo desde sempre, como você e tudo o que existe: eu sou tudo o que existe,
e fora de mim não há mais que ilusão”. E, por fim, numa passagem do Yadjur-Veda, ensina-se terminantemente que conhece a
verdade quem sabe e afirma que todos os seres são esta Alma universal, e, sobretudo, quem descobre e afirma a identidade de
todas as coisas.
29
“Sabélio era de Ptolemais, na Líbia, e morreu no ano de 257. Ele explicou melhor a heresia do seu mestre [Noeto]; assim, daí em
diante, a seita ímpia foi chamada dos sabelianos. Negava a distinção das três Pessoas divinas na Santíssima Trindade, dizendo
serem três nomes num só Deus, inventados para declarar os efeitos diversos da divindade.” (SANTO ANFOSO. História das
Heresias e suas refutações. Campinas: CEDET, 2020. p. 38) Acerca da heresia sabeliana, cf. Denzinger (DH), n. 41, 112, 150, 151,
154, 284, 451, 519 e 1332. [N.T.]
27
§ 7 Filosofia prático-religiosa da Índia

1º O fim último e perfeição suprema da alma humana consiste em sua deificação, quer dizer, em sua
união íntima e identificativa com Brahm. A via para chegar a esta absorção em Deus é separar-se cada vez
mais das condições e exigências do corpo e dos sentidos, apagando e destruindo seus ardores, matando a
atividade da vida em todas as suas manifestações até despojar-se de si e perder o sentimento do “eu” e do
mundo. As práticas morais, a mortificação absoluta e o ascetismo mais rígido são os meios para merecer e
alcançar esta identificação e absorção em Deus depois da morte.
2º Este é também o meio e o único caminho para livrar-se não só das vicissitudes da vida presente e das
ilusões do erro, mas também das transmigrações sucessivas da alma através de diferentes corpos em
proporção à bondade ou maldade de suas ações na incorporação (ou encarnação) anterior. A cessação destas
transmigrações por meio da reunião íntima com Brahm (ou ser absoluto) constitui o fim último, a perfeição
suprema; e o destino final do homem consiste em livrar-se da necessidade fatal da transmigração por meio
da absorção ou união identificativa com Deus.
3º As almas dos que morrem sem estar suficientemente preparados para a absorção em Deus, caem sob
o domínio de Yama (यम), o deus dos mortos e dos espíritos infernais, o qual, depois de os castigar em
proporção às suas culpas, entrega-as ao deus dos destinos futuros (Sani – शिन), cuja missão é preparar para
tais almas os instrumentos ou corpos de sua nova transmigração.
4º Ainda que os homens sejam iguais na aparência exterior do corpo (materialiter), não são iguais em
sua origem, dignidade e natureza (formaliter), pois se dividem em quatro classes ou castas30: (a) casta
sacerdotal ou dos brâmanes, originados da cabeça de Brahmâ; (b) militar ou dos xátrias, nascidos do peito
de Brahmâ; (c) comerciante ou dos vaixás, oriundos do ventre de Brahmâ; e por fim, (d) os servos ou
sudras, que se originam dos pés da divindade bramânica. Os direitos e os deveres destas quatro castas são
proporcionais à sua nobreza e dignidade. Segundo o código de Manú, pertence aos brâmanes “o estudo e o
ensinamento dos Vedas, a execução dos próprios sacrifícios e o direcionamento das oferendas dos outros,
o direito de dar e o de receber”; o dever da segunda casta, a militar, é “proteger o povo, exercer a caridade,
sacrificar, ler os livros sagrados e não se entregar aos prazeres dos sentidos; cuidar dos animais, dar esmola,
estudar os livros sagrados, trabalhar a terra são as funções que correspondem aos vaixás. Mas o Senhor
Supremo assinalou ao sudras uma só função, que é de servir às três castas anteriores”.

30
Há-que se notar que as castas são somente quatro, originalmente; e que os famosos dalits ou intocáveis não têm casta. [N.T.]
28
§ 8 Filosofia especulativa na Índia. Escolas ortodoxas

Ao lado e depois da Filosofia religiosa e puramente tradicional da Índia, apareceu, como era natural, um
movimento mais ou menos racional e científico relacionado com as idéias contidas nos livros tidos por
sagrados. Este movimento, que deu origem a toda a classe de sistemas, teorias e tendências doutrinais
caracteriza-se por duas direções fundamentais; pois, enquanto alguns desses sistemas filosóficos procedem
com inteira independência da idéia tradicional e se atêm unicamente à razão individual, outros entranham
e conservam conformidade e harmonia com a doutrina e ensinamentos dos livros canônicos ou sagrados.
Pertencem a esta última classe e constituem, por conseguinte, as escolas ortodoxas da Filosofia indiana,
as que levam o nome de Mimansa e de Vedanta.
A escola de Mimansa (sânscrito मीमांसा, “investigação”), cuja fundação e origem se atribuem a Djaimini
(que viveu entre os séculos IV e II a.C.), tem por objeto preferencial a exposição e ensinamento dos deveres
morais do homem em conformidade com o que se prescreve e ensina nos Vedas, podendo dizer-se que
ordena e dirige a este fim sua doutrina e especulações lógicas e dialéticas. Colebrooke observa com razão
que a escola Mimansa ensina a arte do raciocínio com a intenção explícita de facilitar a interpretação dos
Vedas.
A escola de Vedanta concorda com a primeira quanto à ortodoxia védica e se em algo se distingue
daquela é que, enquanto Mimansa se ocupa preferencialmente das questões e teorias dialéticas, a escola
Vedanta concede maior importância e atenção às questões psicológicas. Diz-se que seu fundador foi Vyasa
e o citado Colebrooke escreve sobre ela que “deduz do texto das escrituras indianas uma psicologia refinada
que chega até a negar a existência do mundo material”.
Não se creia, por isso, que a escola Vedanta exclua nem sequer atenue o horror panteísta que constitui
o fundo e a essência da doutrina védica. Para a Filosofia Vedanta, “não existe nada além de Deus mesmo”.
Nesta, como em outras passagens, se descobre a idéia fundamental desta escola, que não é outra senão a de
conservar e até levar ao extremo o conteúdo do ensinamento religioso. Convém advertir aqui que, ainda
que Vyasa, o compilador dos Vedas, seja chamado ou considerado geralmente como autor da Filosofia
Vedanta, esta opinião não parece muito fundamentada, uma vez que nos livros e aforismos desta Filosofia
Vedanta se encontra a refutação da maior parte das doutrinas heterodoxas contidas nos sistemas
independentes de que vamos nos ocupar. [Como Vyasa pode ser o autor, se refuta teses que surgiram após
e em contraposição aos Vedas, dos quais é compilador?]

§ 9 Filosofia independente e separatista da Índia

Além da Filosofia Mimansa e de Vedanta, surgiram na Índia outros sistemas filosóficos que, ao contrário
de tentar harmonizar suas conclusões e teorias com a doutrina e as tradições védicas, que se notabilizaram
por dar origem a um movimento independente mais ou menos separatista. Todos eles podem reduzir-se a
quatro direções ou escolas principais que são as seguintes:

A) A escola Nyaya, cujo autor ou fundador foi Akṣapāda Gautama. A característica principal da
Filosofia Nyaya, é a importância que dá à lógica e a sua teoria psicológica. Gautama pode ser considerado
como o Aristóteles da Índia, em atenção a seus trabalhos e especulações sobre os termos, as idéias, as
categorias e as argumentações ou modos de demostrar. A exemplo de Aristóteles, reduz os conceitos a
certas idéias ou categorias fundamentais, que são para o filósofo indiano 1substância, 2qualidade, 3relação,
4
geral, 5própio ou específico e a 6ação. A indução e uma espécie de silogismo, se não idêntico, ao menos
parecido ao de Aristóteles, representam os principais meios de investigação e demonstração da verdade.
A teoria psicológica contida no sistema Nyaya é espiritualista e muito superior a que encontramos
noutros sistemas da Índia. Assim se depreende ao menos dos termos em que se expressa o já citado
Colebrooke ao expor e resumir a psicologia de Gautama. Segundo este, “a alma é inteiramente distinta do
corpo: ainda que seja infinita em seu princípio é ao mesmo tempo uma substância especial diferente em
29
cada indivíduo”. Possui esta alma atributos especiais como são o conhecimento, a vontade, o desejo,
atributos que não convêm a todas as substâncias e que constituem uma existência especial para os seres que
as possuem.
Tenha-se presente, contudo, que esse espiritualismo psicológico da escola Nyaya entranha em seu seio
o princípio panteísta que está no fundo da Filosofia indiana. Para esta escola, a alma humana, a alma
pequena (djivatma), no fundo e na realidade é idêntica à alma divina universal, princípio cósmico de todas
as coisas.

B) A escola Vaisheshika (वैशॆिषक), cuja origem e desenvolvimento se atribuem a Kanada (literalmente,


“comedor de átomos”). Esta é uma escola essencialmente atomística mais parecido com o de Demócrito do
que com o de Epicuro e de Lucrécio. Kanada, longe de negar a existência de Deus como estes últimos,
afirma que de Deus emanam os átomos que constituem as coisas. Além disso, os átomos do filósofo indiano
não possuem somente movimento e solidez, como o de Epicuro, mas alguns deles são átomos dotados de
vida e pensamento.

C) A escola de Yoga, cujo fundador e principal representante é Patandjali, é uma escola essencialmente
mística, e entranha, por isso, as tendências e afirmações que caracterizam geralmente os misticismos
pagãos. A Yoga, de fato, não somente prefere e antepõe a contemplação à ciência, a inação extática às
obras, mas ainda pretende alcançar – e se gaba de o fazer – por estes meios, um poder prodigioso e mágico
sobre a natureza. “Este poder – escreve Colebrooke – consiste na faculdade de tomar todo tipo de formas:
umas tão pequenas e sutis que podem atravessar todo o tipo de corpos, outras de magnitude tão gigantesca
que podem chegar até ao disco solar e tocar a lua com a ponta do dedo. Por meio desta força, pode-se ver
no interior da Terra e da água, mudar o curso da natureza e obrar sobre as coisas inanimadas bem como
sobre as coisas animadas”. Fácil é reconhecer, por estas indicações, que a doutrina da Yoga pode considerar-
se como antecedente histórico doutrinal dos misticismos pagãos e especialmente do alexandrino ou
neoplatônico, sem excluir as operações mágicas e as pretensões teúrgicas31 tão preconizadas por Jâmblico.
No âmbito metafísico ou especulativo a escola de Yoga caracteriza-se por uma espécie de panteísmo
idealista que tem pontos de contato e de analogia com o panteísmo neoplatônico e com o de Schelling.
Para o yogue (ou partidário da Yoga), Deus é o ser único e absoluto que constitui a substância e essência
de todas as coisas sem ser nenhuma delas nem possuir nenhum atributo determinado: não é nem matéria
nem espírito, nem vida nem inanimado, nem pensamento nem inconsciente, é o ser puro, a abstração do
ser, a substância ou essência sem nenhum atributo; algo parecido, enfim, ao Unum dos neoplatônicos de
Alexandria e ao Absoluto neutro e indiferente de Schelling e também, até certo ponto, à Idéia pura e abstrata
de Hegel.

D) A quarta e talvez mais expandida das escolas filosóficas da Índia é a que se chama Sânquia (सांख्य),
cujo autor, Kapila, pode ser considerado como o pai dos sistemas e teorias sensualistas, materialistas e
ateístas que se vêm sucedendo na História da Filosofia. Segundo Kapila – escreve Cousin32 e, a partir dele,
Colebrooke e Burnouf33 – “há dois meios de conhecer: o primeiro é a sensação ou percepção dos objetos
externos; o segundo é a indução ou procedimento que conduz de uma coisa à outra, do efeito à causa, ou
da causa ao efeito(...) O primeiro princípio das coisas, do qual se derivam todos os demais princípios, é
prakriti (प्रकृित) ou mulaprakriti, a natureza, a matéria eterna, sem formas, sem partes, a causa material
universal à qual se chega por indução de seus efeitos, que produz e não é produzida”. Nestes termos se
expressa Colebrooke. O segundo princípio é budhi (बुिद्ध), a inteligência, “a primeira produção da natureza,
que, por sua vez, produz outros princípios”. Logo, o primeiro princípio de Kapala não é a inteligência: esta
ocupa o segundo lugar e procede da matéria e é obra desta.

31
Teurgia é a arte de operar prodígios. [N.T.]
32
Cf. Cousin, Histoire générale de la Philosophie, 1867.
33
Cf. Burnouf, Introduction à l´Histoire du Boudhisme indien, 1844.
30
Em relação a esta cosmologia essencialmente materialista, o fundador da escola Sânquia ensina que a
alma é o resultado atômico da combinação de outros princípios anteriores, que ela reside no cérebro e que
“se estende abaixo do crânio ao modo de uma chama que se eleva sobre a mecha”. Colebrooke acrescenta
que alguns partidários da escola Sânquia negam explicitamente toda a distinção entre alma e corpo. Em
todo caso, é certo que, para dita escola, a alma e o pensamento são resultado da combinação de outros
elementos ou princípios das coisas e que desaparecem com a morte ou dissolução do corpo.
Por fim Kapila – que, se não se distingue pela verdade e nobreza de doutrinas, sói ser lógico em suas
deduções aplicações – nega a existência de Deus e professa ateísmo. Não se pode alegar contra isso que ele
fale da inteligência como um dos princípios das coisas, porque, como vimos esta inteligência não é o
primeiro princípio e nem é sequer espiritual, posto que procede da prakriti ou natureza material. Além do
que, tal inteligência mal poderá ser Deus no conceito de Kapila, uma vez que ele ensina terminantemente
que ela é finita, que é contemporânea dos demais corpos e que se desenvolve e perecerá com o mundo de
que forma parte.

§10 Budismo e seu autor

Sidarta Gautama (em sânscrito, िसद्धाथर् गौतम), o


fundador do budismo, nasceu cerca do século VI a.C. em
Bengala do Norte, na província de Behar. Filho de
Suddhodana, rei de Kapilavistu, viveu os primeiros anos
de sua vida nos exercendo as funções de seu estado e da
casta xátria ou militar, à qual pertencia, e quando já tinha
vários filhos de três mulheres34, deixou a corte aos vinte e
nove anos, “desagradado com o mundo – segundo a Assim como o termo grego “Cristo” (em
legenda – pela visão de um velho, de um doente e de um hebraico “Messias”, em português “Ungido”)
cadáver”. não é originalmente um nome próprio, mas um
Após passar alguns anos na companhia e sob a direção título; a palavra “Buda” significa “iluminado”
dos brâmanes, devotado à contemplação e às práticas da ou “desperto” em sânscrito e não é o nome
vida ascética – o que lhe valeu o nome de Sakyamuni ou próprio do fundador do budismo, mas um
Solitário dos Sakyas –, passou a ensinar e pregar por toda título atribuído aos que “despertaram”
parte uma doutrina religiosa-moral, doutrina a qual, sem plenamente para a verdadeira natureza dos
combater diretamente o bramanismo, minou seus fenômenos.
fundamentos e dele se afastou em pontos fundamentais. À diferença do cristianismo, no qual só
Um dos foi a igualdade dos direitos e deveres dos homens existe um Cristo, Jesus nascido de Maria; no
– ao menos do ponto de vista moral – e a consequente budismo, existem vários Budas, sendo o mais
anulação da superioridade e distinção das castas. Buda famoso Sidarta Gautama ou o “Buda
ensinava sua lei, admitia em sua companhia e concedia histórico”. Mencionam-se, pelo menos, 24
todos os graus de vida ascética tanto ao brâmane e ao xátria
Budas anteriores a este, mas só 4 do mundo
quanto ao sudra e ao candala, as castas mais baixas e
atual. O famoso gorducho sentado sempre
vilipendiadas da época em sua sociedade. Sem ser a única,
sorrindo não é nenhum desses.
esta foi uma das causas que mais efetivamente contribuiu
para a propagação e rápido progresso do budismo, bem
como para a guerra e perseguição que os brâmanes lhe
fizeram, guerra e perseguição que o obrigaram a buscar
asilo e proteção nos reinos e impérios circundantes,
contribuindo assim para a propagação da nova religião na
maior parte da Ásia.
Enquanto os brâmanes faziam segredo de sua doutrina,
comunicando-a apenas a certas castas e aos iniciados ou
escolhidos, Sidarta, já cognominado de Buda (o iluminado, o sábio), comunicava toda a sua doutrina a

34
Além dessas três mulheres, que parecem históricas, as lendas budistas nos falam do aposento e lugar em que Buda, antes de sua
conversão, “era cercado por cem mil divindades, e se entregava aos prazeres com suas sessenta mil mulheres”. Esse é um dos
muitos pontos que os racionalistas filo-búdicos podem aproveitar para seus propósitos, já que insistem em apresentar Jesus Cristo
como uma espécie de discípulo oculto e imitador do Sakyamuni da Índia.
31
todos que quisessem ouvi-la, e servia-se da pregação popular para que chegasse ao conhecimento de todos.
Esse modo de propaganda, empregado por seus discípulos e sucessores, também contribuiu para o rápido
crescimento do budismo.
Embora o ano certo de sua morte seja desconhecido, assim como o ano de seu nascimento, sabe-se que
ele tinha mais de cinquenta e cinco anos de idade e que morreu nas proximidades da cidade de Cussínara,
na Índia.
Algumas das causas do proselitismo búdico já foram apontadas, às quais se pode acrescentar sua
adaptabilidade doutrinal e religiosa; porque o budismo, como se propagou e se espalhou pelas regiões do
Nepal, Ceilão, China e especialmente Tibete e Mongólia, facilmente se acomodou ao culto e às
divindades nacionais de cada região. Assim o vemos assumir diferentes formas nos diferentes países, e se
amalgamar com todos os cultos e todos os deuses, sem excluir as divindades femininas e o culto obsceno
dos xivaístas. De resto, é necessário reconhecer que os discípulos e sucessores de Buda seguiram nesta
parte as tradições e o exemplo de seu mestre, que permitia que todo o Olimpo de deuses bramânicos que
ele encontrou em sua terra natal subsistisse. Esta é mais uma prova da alucinação, se não da má fé, de
quem busca no Budismo a origem e o modelo do Cristianismo, com o qual não há nada que se assemelhe,
não só às abominações do xivaísmo, mas à idolatria do culto que acompanha o budismo desde sua
origem, em todas as suas manifestações e em todos os países em que domina35. Sob este ponto de vista,
como sob vários outros, longe de existir harmonia e semelhança, pode-se dizer que o budismo e o
cristianismo são essencialmente antitéticos.

35
Entre os argumentos que os racionalistas que tentam provar a todo custo a origem humana do cristianismo costumam apresentar
em favor de suas teses, está a analogia e semelhança que certos ritos e cerimônias dos lamas do Tibete oferecem com algumas
práticas cristãs. Para reconhecer a grande força demonstrativa de tal argumento, basta ter em mente: 1º, que essa analogia se limita
a certas cerimônias e práticas de pouca importância relativa, como o uso por monges ou bonzos de roupas mais ou menos
semelhantes às episcopais e sacerdotais, a oração em comunidade, o uso de incenso, sinos, genuflexões e reverências, com outras
práticas semelhantes, que não afetam a substância ou a essência do cristianismo; 2º, que o budismo lamaísta do Tibete em sua
forma atual teve sua origem no final do século XIV e, conseqüentemente, quando as tradições cristãs mais ou menos desfiguradas
poderiam e deveriam ter chegado até lá, seja pelos missionários franciscanos e dominicanos que percorreram grande parte da Ásia
no século XIII, seja especialmente pelas frequentes relações comerciais e religiosas que os nestorianos mantinham com os povos
da Ásia Central e do Norte.
Confirmando isso, as tradições tibetanas dizem que Dsong'khaba, autor do Lamaísmo atual e mestre do primeiro Dalai Lama nos
últimos anos do século XIV, foi discípulo em sua juventude de um mestre vindo do Ocidente, que possuía grande sabedoria, e tinha
um nariz comprido, ao contrário dos mongóis. Esses detalhes indicam claramente que se trata de um cristão de países ocidentais e
pertencente à raça caucasiana.
32
§ 11 Bibliografia búdica

A bibliografia búdica é uma das mais abundantes e extraordinárias conhecidas. Os budistas afirmam que
sua literatura sagrada compreende nada menos que oitenta mil livros; mas por essas obras ou livros devem
ser entendidos capítulos ou artigos, segundo a opinião de Burnouf. De qualquer forma, não há dúvida de
que sua bibliografia é bastante extensa, pois Brian Hodgson enviou para a Europa 84 volumes em sânscrito,
que contêm a maior parte da literatura sagrada budista e constituem grande parte da coleção nepalesa36, que
é a de maior autoridade e que provavelmente serviu de base para as traduções e coleções que existem em
outras regiões, como China e Tibete.
A coleção sagrada escriturística do budismo compreende três classes de livros e, tomada coletivamente,
é chamada de Tripitaka, ou cesta tripla: [1] o Sutra pitaka ou discursos do Buda constituem a primeira
cesta; já [2] a segunda é chamada de Vinaya pitaka e abrange a parte disciplinar e ascética; por fim, [3] a
terceira, que leva o nome de Abhidharma pitaka, contém a parte filosófica, ou o que poderíamos chamar de
metafísica do budismo. Os Sutras são geralmente considerados pelos budistas e escritores indianistas como
o resumo e a essência da pregação e doutrina do Buda. Esses discursos foram coletados e registrados por
escrito por seu fiel e principal discípulo Ananda, razão pela qual são justamente considerados como a
expressão autêntica do pensamento do Buda. Os livros do Vinaya foram escritos por Upali, e a escrita do
Abhidharma é atribuída a Kaxyapa. Isso, contudo, deve-se entender da escrita inicial ou compilação desses
livros, que se deu logo após a morte de Buda, em um concílio de quinhentos ascetas. Esta compilação inicial
foi modificada e acrescentada em dois concílios ou assembleias posteriores, o primeiro dos quais foi
realizado cento e dez anos após a morte de Buda, e o outro quatrocentos anos após esse evento. Nâgârdjuna,
defensor do niilismo absoluto, participou deste terceiro concílio e foi seu principal autor.
Deve-se notar que, além dos livros mencionados, que compõem a literatura autorizada e canônica do
budismo, existe também outra classe de tratados ou livros chamados Tantras, que não são parte integrante
do Tripitaka, mas são uma espécie de rituais, que contêm uma estranha mistura das fórmulas ascéticas do
budismo e as práticas obscenas e idólatras do xivaísmo.
Sabe-se que o inglês Hodgson encontrou no vale do Nepal, no ano de 1822, um exemplar da Tripitaka
em sânscrito, achado que contribuiu poderosamente para facilitar o conhecimento da doutrina búdica. Na
opinião de Burnouf, um juiz muito competente no assunto, as verdadeiras fontes para o conhecimento do
budismo, as fontes originais e mais puras, são os textos sânscritos do Nepal e os livros páli do Ceilão.

36
Observe-se que, além desta coleção do Nepal, existem várias outras, pertencentes às principais regiões em que o budismo domina,
como as coleções tibetanas, chinesas, do Ceilão, etc., que têm menos autoridade canônica do que as nepalesas, seja porque são
posteriores, seja porque estão amalgamados e mais ou menos desfigurados pela literatura e ideias dos respectivos países.
33
§ 12 Filosofia búdica

A idéia fundamental do budismo e do bramanismo é a mesma: o problema que serve de ponto de partida,
de substância e de culminação para um e outro, é fundamentalmente idêntico. O bramanismo e o budismo
colocam o seguinte problema: “a existência humana é sofrimento; este sofrimento é o resultado e a
consequência de transmigrações passadas, e o antecedente e causa de outras transmigrações subsequentes
da alma através de todos os tipos de corpos, lugares e condições. A suprema perfeição e felicidade do
homem consiste em livrar-se dessas transmigrações ou mudanças no modo de ser”. Até este ponto,
Bramanismo e Budismo concordam, e sua oposição aparece apenas quando se trata da solução final do
problema. Enquanto o primeiro diz que “a cessação da transmigração e dos sofrimentos que a acompanham,
e consequentemente a suprema perfeição ou felicidade do homem, verifica-se pela absorção em Brahma,
pela reversão ou reentrada do homem no Ser Absoluto, único e supremo”; o segunda diz que “essa cessação
ou libertação da transmigração e do sofrimento é verificada por meio do Nirvana, isto é, através da extinção
ou aniquilação da existência individual.
Por mais que nossa consciência cristã resista instintivamente a tal conclusão, e por mais que alguns
budófilos se esforcem para provar o contrário, não há dúvida de que este e nenhum outro é o real significado
do Nirvana, por parte do budismo original e primitivo, segundo todas as indicações internas e segundo o
testemunho dos indianistas mais autorizados. “Como [Buda] nunca fala de Deus, o Nirvana não pode ser
para ele a absorção da alma individual no seio de um Deus universal, como acreditavam os brâmanes
ortodoxos: como ele também não fala de matéria, seu Nirvana não pode ser nem a dissolução da alma
humana dentro dos elementos físicos. A palavra vazio, que já aparece nos monumentos que, segundo todos
os tipos de indícios de peso, são os mais antigos do budismo, leva-me a pensar que Sakya viu o bem maior
na completa aniquilação do princípio pensante. Foi representado, segundo uma comparação freqüentemente
usada pelo próprio Buda, como o escurecimento ou desaparecimento da luz de uma lâmpada que se
apaga”37.
Por outro lado, este significado e significado do Nirvana estão em perfeita harmonia com o ateísmo, que
constitui uma das características fundamentais do budismo primitivo. E dizemos do budismo primitivo,
porque se sabe que, com o passar do tempo, e por uma espécie de reação natural do espírito humano contra
a negação de Deus, surgiu dentro do budismo uma escola teísta, que proclamava a existência de Adibudha
ou Deus supremo. Mas quando essa concepção apareceu, mil e quinhentos anos haviam se passado sobre o
budismo, posto que o famoso indianista húngaro Csoma de Cörös demonstrou, com a autoridade e os textos
dos livros budistas da coleção tibetana, que a crença em um Adibudha foi introduzida na Índia Central após
o século X da era cristã.
Apesar das negações e atenuações de A. Remusat, Bunsen e alguns outros, o testemunho quase unânime
dos orientalistas mais credenciados não nos permite duvidar do ateísmo búdico. Schmidt, assim como
Hodgson, Csoma de Cörös e Burnouf, concordam que nos monumentos mais autênticos do budismo
primitivo não há nada que se assemelhe à concepção ou afirmação de um Deus supremo, muito menos um
Deus pessoal e transcendente. Os sutras, ou discursos de Buda, a expressão mais genuína de suas idéias e
pregações, dispensam completamente todo o teísmo, e se contentam em deixar o caminho livre às diferentes
divindades bramânicas, inferiores ao Ser primitivo ou Brahm, sem prejuízo de rebaixá-las de forma gradual
e insensível ao papel de gênios e manifestações humanas.
Burnouf observa corretamente que a doutrina de Buda é uma doutrina que se opõe ao bramanismo, como
moral sem Deus e como ateísmo sem natureza; isto é, o budismo nega e exclui ou, pelo menos, prescinde
do mundo externo. Buda admite, de fato, a pluralidade e a individualidade das almas humanas como
ensinado pelos sânquias; admite também a transmigração das almas, como ensinado pelos brâmanes; mas,
ao mesmo tempo, rejeita e nega o Deus eterno deste último, e também rejeita a natureza eterna da escola
sânquia. Todos os seus desejos e esforços são direcionados para buscar e apontar os meios propícios para
libertar a alma humana dos sofrimentos inerentes à existência, que é o problema fundamental e geral para
todas as escolas e religiões da Índia. Buda não apela, para resolver o grande problema, nem para a doutrina

37
Burnouf, Introduction a l'hist. du Budhisme indien, p. 520.
34
dos sânquias, que buscava a redenção final da alma em sua completa separação da natureza, ou se se
preferir, de toda realidade objetiva; nem para a perfeita absorção de si mesmo no seio e substância de
Brahma, que constituía a solução dos brâmanes, mas busca a solução do problema, a redenção da alma, sua
verdadeira e absoluta libertação do mal, na aniquilação de sua existência relativa, que ela se extingue e
desaparece no Vazio absoluto e infinito. Essa observação de Burnouf, além de outros motivos que a
sustentam e confirmam, está em perfeita harmonia com o sistema niilista que representa uma das mais
importantes escolas do budismo, como veremos.
Agora acrescente-se que, se é verdade que entre as várias seitas ou escolas que nasceram e se
desenvolveram em tempos posteriores dentro do budismo existe algum teísta, não é menos incontestável
do que a escola dos Svabhavikas, considerada por Hodgson, Burnouf e os indianistas de maior autoridade,
como a mais antiga escola filosófica do budismo, e como expressão genuína de seu pensamento metafísico,
seja completamente ateia e materialista. Para os Svabhavikas não há outro Deus além da Natureza, com
suas energias ou forças inatas (a Força e a Matéria de Büchner ou do positivismo contemporâneo), uma das
quais é o que chamamos de inteligência, sem nenhum princípio ou ser espiritual.
O que dissemos até agora sobre o Nirvana e o ateísmo, como características fundamentais e primitivas
do Budismo, recebe confirmação e está de acordo com sua ideia metafísica, com as afirmações mais
importantes e explícitas da Filosofia Búdica. Aqueles que trataram desses assuntos sabem que o Pradjñâ
paramita contém o mais autorizado – canônico, por assim dizer – fundo doutrinário da metafísica budista,
e eles também sabem que nas quatro seções e nos vários compêndios desta obra tropeçamos a cada passo
com passagens nas quais o niilismo mais absoluto é terminantemente ensinado. “A sensação – lê-se em
uma dessas passagens –, a idéia e os próprios conceitos, ó Bhagavat!, são ilusão. Não, Bhagavat, a ilusão
não é uma coisa e o conhecimento outra coisa: o próprio conhecimento, ó Bhagavat!, é a ilusão, e a própria
ilusão é o conhecimento”38. E mais tarde acrescenta-se: “Não há criaturas que possam ser conduzidas ao
Nirvana, nem criaturas que conduzam ao Nirvana”. Burnouf sustenta com razão, após citar várias passagens
do Pradjñâ pâramita, que o conteúdo real e o fim apropriado desses livros não é outro senão “estabelecer
que o objeto cognoscível ou a perfeição da sabedoria não tem existência real, como não o tem nem o objeto
que se trata de conhecer nem o sujeito que o conhece, quer dizer o Buda. Essa é, de fato, a tendência comum
de todas as redações do Pradjñâ. Qualquer que seja a diferença de desenvolvimentos e circunlóquios em
que o pensamento fundamental esteja envolvido, todos eles terminam na igual negação do sujeito e do
objeto”39.
Também é ensinado no Pradjñâ paramita que a existência dos seres se deve à ignorância, que não sabe
que não tem existência real. Se a isso se acrescentar que a escola Madhyamika professa o vazio ou o nada
absoluto como seu dogma principal, teremos que o ateísmo e o niilismo representam os sistemas
fundamentais e mais genuínos do budismo primitivo, e que podem ser considerados, por sua vez, como
premissa e consequência do Nirvana, no sentido de aniquilação ou extinção da existência. E é de se pontuar
que a essa escola Madhyamika – a qual tem como dogma fundamental o nada ou a negação de toda realidade
– pertenceu o famoso Nâyârdjuna, autor ou compilador do Tripitaka, que faz as vezes de escritura búdica.
Como o materialismo sempre acompanha o ateísmo, é desnecessário salientar que também entre os
budistas encontrou muitos adeptos, a ponto de Hodgson poder dizer com verdade que “na opinião da
maioria dos budistas, e principalmente dos naturalistas, o espírito não é nada mais do que uma modificação
da matéria”.

§ 13 Moral do budismo

Apresentadas as doutrinas ou teorias metafísicas que, como se viu, o budismo comporta, pelo menos em
seus primórdios, e que formam o fundo de seus principais sistemas filosóficos, parecia natural e lógico que
sua moral se assemelhasse mais à dos cirenaicos e epicuristas do que com a dos estoicos. Mas não é assim

38
Em outro parte, aludindo a Bhagavat ou o sábio e bem-aventurado, é dito: “Ele ensinará a Lei para destruir essas grandes doutrinas
e outras, a saber, a doutrina do eu, a das criaturas, a da vida, a da individualidade, a do nascimento... a da eternidade do corpo”.
39
Introduc. à l’hist. du Bud, p. 483.
35
que se dá, porque, na verdade, a doutrina moral do budismo primitivo – pois não estamos falando aqui de
suas formas posteriores e de sua fusão com outras idéias em vários países – é pelo menos tão perfeita quanto
a dos antigos estoicos, e talvez seja a que mais se aproxime da cristã. Não obstante, acreditamos, de nossa
parte, que a contradição entre a teoria metafísica ou especulativa e a doutrina moral do budismo não é tão
radical e completa como parece à primeira vista.
Sabe-se que a chave do budismo, sua concepção fundamental, sua tese mais essencial e abrangente, é a
necessidade de acabar com a transmigração da alma para acabar com seu sofrimento ou com o mal
inseparável de sua existência, através do Nirvana absoluto ou cessação de ser. Ora, se a transmigração, o
movimento e a ação que acompanham a alma são a causa e a razão do mal e do seu sofrimento, é claro que
a única maneira de atenuar, diminuir e acabar com o mal e os sofrimentos da alma , bem como chegar ao
Nirvana, verdadeiro desideratum e destino fatal do mesmo, é, e não pode ser outro, senão atenuar, diminuir
e aniquilar, tanto quanto possível, as manifestações da atitude individual. Daí a ideia principal que palpita
no fundo da moral búdica, e que lhe serve de base e ponto de partida: a negação ou extinção da atividade
até chegar à mais absoluta impassibilidade.
A moralidade primitiva do budismo é reduzida aos seguintes cinco preceitos:
1º Não matar nenhum ser vivo.
2º Não roubar.
3º Não cometer impureza.
4º Não mentir
5º Não beber nada capaz de intoxicar.
Esses são os únicos preceitos, pelo menos negativos, que Buda deu a seus discípulos. Na opinião de
alguns autores, ele também ensinou e promulgou seis preceitos positivos, ou melhor, apontou como meios
e manifestações da perfeição moral do homem:
a) a esmola, ou a prática de beneficência em favor dos seus pares;
b) a virtude, isto é, o cumprimento e observância da lei;
c) a paciência, que é a abstenção das paixões perturbadoras, como ambição, vingança ou, melhor dito,
a insensibilidade e indiferença de espírito;
d) a aplicação, ou cuidado em promover e desenvolver os germes da virtude e do bem inatos ao
homem;
e) a contemplação ou quietismo ascético da alma, mesmo considerado a partir de sua atividade
superior e intelectual; e
f) a sabedoria, que representa a ausência ou isenção de qualquer erro, qualquer imperfeição moral,
qualquer ignorância, qualquer defeito ou pecado, e, portanto, o último grau que o homem pode alcançar por
seus esforços, o mesmo que serve de disposição próxima entrar no Nirvana, termo e aspiração final da
existência.
Esses preceitos e máximas morais do budismo primitivo sofreram, ao longo do tempo, acréscimos e
alterações mais ou menos importantes, que também revelam a fragilidade inerente a todo trabalho religioso
puramente humano. Além dos preceitos relacionados ao culto idolátrico, que tomou grandes proporções no
budismo desde seus primeiros passos; além das regras e práticas relacionadas ao culto obsceno e
vergonhoso de Shiva, a moral pregada e ensinada por Buda logo foi desfigurada com preceitos mais ou
menos estranhos e até ridículos, como não beber leite após as refeições, não manter o sal em casa por mais
de dez dias, e outros similares. É verdade que o germe dessas alterações, acréscimos e deformações já se
encontra na doutrina e nos exemplos do próprio Buda, tanto quanto pesem seus panegiristas indianos;
porque é de se ressaltar que ele, em seu primeiro preceito negativo, proibia não apenas matar homens, mas
também matar ou destruir qualquer tipo de animal; e, no que diz respeito aos preceitos e práticas idolátricos
dos budistas posteriores, eles são justificados pelo exemplo de seu fundador e mestre, que, como indicado,
conformou-se ao Olimpo dos deuses bramânicos, e permitiu subsistir e praticar seu culto costumeiro.

36
§ 14 Crítica ao Budismo

Tem-se dito e repetido muitas vezes que a moral búdica é tão pura e perfeita quanto a moral cristã, e até
se aventou a idéia de que a Religião de Jesus Cristo tem sua origem e deriva do budismo por caminhos
ocultos e desconhecidos. Aqueles que, em seu ódio inconcebível ao cristianismo, estão dispostos a ver
perfeições, belezas e verdades em todos os lugares e em todas as religiões, exceto na Religião cristã, exaltam
persistentemente as perfeições e belezas da moral búdica, apresentando-a ao mesmo tempo como
demonstração seja da possibilidade da origem humana do cristianismo seja do poder e força da razão
humana para formular e constituir um sistema moral tão perfeito e acabado como aquele que a Religião
católica comporta.
Que essas afirmações dos budófilos – ou melhor, dos inimigos do Cristianismo –, além de exageradas,
são desprovidas de um fundamento sólido é provado muito claramente pela exposição sumária das doutrinas
búdicas que fizemos nos parágrafos anteriores. Sem dúvida, a doutrina moral do budismo, pelo menos
durante seus primeiros anos, é impressionante por sua relativa pureza e elevação, quando comparada com
a professada pelos Filósofos de primeira linha; mas isso não dá nenhum direito de igualá-la à moral cristã,
nem em seu fundo ou essência, nem em seus meios, nem em seu princípio racional, nem em seu termo ou
destino.
Em seu fundo ou essência, porque, afinal, a moral búdica nada mais é do que a reprodução ou expressão
incompleta da lei natural. Os dez preceitos da lei natural são reduzidos a cinco, eliminando justamente o
principal de todos, aquele que serve de base aos demais, que é o amor de Deus sobre todas as coisas.
Acrescente a isso primeiro, que o preceito búdico de não matar entranha um sentido irracional e até ridículo,
muito estranho e contrário ao sentido cristão; e segundo, que a moral católica inclui preceitos e máximas
não só gerais e fundamentais, mas específicos e superiores, como a Confissão auricular, recepção da
Eucaristia, Missa, guardar os dias santos, entre outros, que são completamente estranhos à moral do
budismo.
Em seus meios, segundo se colige do que acaba de ser dito da Eucaristia, Confissão e outros
Sacramentos, concluindo-se também que entre estes meios de moral e santificação ocupam um lugar
preferencial, não a contemplação apática e estúpida do budista que a toma e usa como meio de diminuir e
matar sua atividade, seu pensamento e até sua consciência; mas a contemplação que tem por objeto Deus
como Suprema Bondade e infinita Santidade a imitar. Se a isso se somar que o budista é incapaz mesmo de
usar a oração e a graça divina como meio de moralidade, uma vez que não reconhece a existência de um
Deus a quem possa orar, em cuja ajuda ou graça possa confiar, cuja santidade deva imitar, pode-se constatar
claramente que só sob este aspecto a moral do Catolicismo, cujas principais asas são a oração e a graça, é
posta a uma imensa distância da moral budista
Em seu princípio racional, porque o princípio racional de toda moral é antes de tudo a idéia de Deus, e
depois a idéia metafísica do bem, e já vimos que a moralidade própria, primitiva e genuína do budismo ou
nega a existência de Deus ou dela prescinde, enquanto, de outra parte – isto é, na ordem metafísica –
encontra-se em íntimas relações com o niilismo e o materialismo, sistemas professados, defendidos e, mais
ainda, postos em prática pelas principais escolas do budismo.
Em seu termo, porque o Nirvana absoluto, a aniquilação do ser pessoal, a extinção da existência relativa
da alma, destino final e aspiração suprema da moralidade búdica, nem sequer merece ser posto ao lado do
que constitui o prêmio, a aspiração e o destino final da moral cristã, a posse do Deus vivo e pessoal pela
visão de Sua essência infinita, Verdade transcendental na qual todas as verdades se encontram, e pelo amor
fruitivo da Bondade infinita, essência e fonte de todos os bens possíveis. Que comparação cabe entre uma
moral essencialmente teísta em seu princípio, em seus meios e em seu fim, que é aquela ensinada por Jesus
Cristo, e a moral búdica que não apenas ignora Deus, mas ensina a fazer o bem por amor do nada final?
E tenha-se em mente que estamos aqui comparando a moral cristã com o budismo, tomando este último
em seu sentido mais favorável e em sua manifestação mais pura; porque já foi dito que em diferentes países
e em épocas posteriores, recebeu acréscimos e alterações que rebaixam muito seu valor original, o que

37
destaca também a superioridade da moral cristã, que foi preservada e permanece idêntica no espaço, no
tempo e em todas as vicissitudes da História.
Finalmente: a doutrina do budismo sobre o suicídio bastaria, na ausência de outras evidências, para
demonstrar a inferioridade de sua moral em relação à do cristianismo. De acordo com numerosos e
explícitos textos apresentados por Burnouf, é claro – e o indianista francês reconhece isso – que o budismo
admite não apenas a legalidade, mas também a santidade do suicídio em certos casos e por motivos
religiosos.
E o que acontecerá se ao que foi dito for acrescida o que poderíamos chamar de demonstração a
posteriori, a superioridade da civilização cristã sobre a civilização budista? Não há necessidade de lembrar
que em cada civilização e para cada civilização, a moral representa e entranha um de seus elementos mais
poderosos e importantes. Compare agora a civilização produzida, informada e vivificada pela moralidade
do Evangelho, pelo princípio ético do cristianismo, e pergunte-se se esta civilização não oferece
características de inegável superioridade em relação à civilização produzida, informada e vivificada pela
moral do budismo. Se a árvore é conhecida antes de tudo por seus frutos, certamente os produzidos pela
árvore búdica, mesmo se concretizando no campo moral e prático, são muito inferiores aos produzidos pela
árvore cristã, e não abonam de forma alguma as pretensões do racionalismo ou dos interessados budófilos.
A constância do pagão brota do orgulho
(“Catolicismo” Nº 152 - Agosto de 1963)

Em Saigon, no dia 11 de junho de 1963, ocorreu um fato que alcançou rapidamente repercussão mundial.
No momento em que se celebrava na Catedral uma Missa solene por alma de João XXIII, os sacerdotes budistas saíram
indignados de um pagode onde haviam realizado uma cerimônia religiosa. Um dos bonzos que descera do carro, o
setuagenário Tchich Quang-duc, sentou-se com as pernas cruzadas e as mãos postas. Seus dois companheiros derramaram
gasolina sobre ele. Quang-duc então ateou tranqüilamente fogo a seus próprios trajes, e o bonzo suicida se converteu assim
em tocha viva, permanecendo imóvel até que seu corpo ficasse inteiramente carbonizado, quando então caiu para trás.
Terminada a queima do cadáver, oito monges desfraldaram uma bandeira budista, que levaram em passeata pelas ruas.
Abstemo-nos de comentar aqui o furor contra a Santa Igreja de Deus, que levou o bonzo a matar-se. Consideramos o
simples fato do suicídio. Quem quer que conserve algum senso moral não pode deixar de ter horror ao assassínio. E isto
máxime quando o assassino, numa verdadeira aberração, volta contra si mesmo a arma mortífera.
Ora, esse crime foi praticado pelo bonzo Quang-duc em um ato plenamente aprovado pela sua seita. Com efeito, foi
como que em um desdobramento da cerimônia realizada no pagode, que a lúgubre ação foi efetuada. O suicida era bonzo,
bonzos eram os dois cúmplices incumbidos de embeber de gasolina as vestes do ancião. Budista foi a bandeira que em sinal
de triunfo se desfraldou, consumada a incineração. E era a alma do budismo que se manifestava nas canções das monjas e
demais mulheres que depois exaltaram o feito ignóbil.
É boa uma religião que faz do suicídio um uso destes? Mas, dirá alguém, esse bonzo não revelou real heroísmo? Não
tinha razão a mídia que o qualificou de mártir? Para demonstrar quanto é errado este modo de entender, apelamos para a
autoridade do grande Doutor da Igreja, São Bernardo. Eis a resposta do Santo: “Alguns fiéis ficaram espantados de ver esses
hereges irem para a morte com júbilo e alegria. Mas esse espanto torna manifesto que eles não se compenetraram
suficientemente de quão grande é a força de Satanás tanto sobre os espíritos e corações quanto sobre os corpos daqueles
que já se entregaram a ele. Não é mais estranho para um homem lançar mãos violentas em si mesmo, do que voluntariamente
submeter-se à violência de outrem? E, no entanto, o demônio pode prevalecer sobre muitos para que façam isto. Pois muito
freqüentemente ouvimos de pessoas que miseravelmente se afogaram ou se enforcaram por sugestão sua. Foi sem dúvida o
demônio que persuadiu o infeliz Judas a pôr fim à vida. Parece-me, todavia, maior e mais espantosa manifestação de força
que ele pudesse colocar no coração do Apóstolo infiel o desígnio de trair seu Mestre, do que induzi-lo depois a se enforcar.
Não há conseqüentemente comparação entre a constância dos santos mártires e a obstinação demonstrada por esses
hereges. No caso dos primeiros, o desprezo pela morte foi um efeito da piedade; nos últimos, procedeu esse desprezo da
dureza do coração. O sofrimento foi o mesmo para todos, mas as disposições variaram largamente” ("Life and Teaching of St. Bernard",
Aibe J. Luddy O.Cist. - Dublin, 1927 - p. 492 )
. A tal propósito, o autor da obra aqui citada acrescenta: “Santo Agostinho explica do mesmo
modo a diferença entre a fortaleza revelada pelos mártires cristãos e a dos infiéis: “A constância do pagão brota do
orgulho; a do cristão, da caridade” (Contra Juliano, I, I). “Não é o sofrimento, mas a causa que faz o mártir” (In Ps. LXXXIV). E
daqueles que morreram pelo erro diz ele: “Correram bem, mas fora da pista – Bene cucurrerunt sed extra viam”.
38
§ 15 A Filosofia na China

Entre os fenômenos mais notáveis que distinguem e caracterizam o povo chinês, ocupa lugar
A China Moderna preferencial o seu completo, tenaz e perseverante
(Catolicismo n° 92, agosto de 1958) isolamento, em relação a outros povos e nações.
O nacionalismo chinês, em suas relações com a Um povo de trezentos milhões de almas, que
Religião, foi estudado pelo «Osservatore Romano» em através de guerras, conquistas, revoluções e
30 de janeiro de 1955 e, mais recentemente, em 14 de
março deste ano [1958], em artigos longos e bem mudanças de dinastias, se preservou depois de
documentados. muitos séculos de existência em completo
Foi em 1920 que o marxismo-leninismo se isolamento das raças e povos que o cercam,
introduziu na China, por meio de agentes pagos pela constitui um dos mais extraordinários fenômenos
Rússia. Em trinta anos conseguiu ele impor sua ditadura
a meio bilhão de almas, aproveitando-se da situação históricos. Nossa civilização e nossas raças, cujas
caótica da política interna do país e das perturbações primeiras raízes buscamos na região dos Ários e na
internacionais que desde antes da última guerra mundial Índia, tão perto da China, nada devem a esta.
têm ocorrido no Extremo Oriente. Excetuando-se a invasão búdica, que apenas se fez
Fundado em Xangai, em 1921, sob a chefia de Mao
Tsé-Tung, o Partido Comunista Chinês recebeu um sentir nas camadas sociais inferiores, limitando
auxílio valioso da missão de técnicos e militares russos também a sua ação sobre elas à introdução de certas
que se encontrava no país havia um ano. Desde logo, o fórmulas e práticas religiosas, o povo chinês
espantalho da guerra sino-japonesa foi um instrumento
manteve-se desde a mais remota antiguidade em
precioso nas mãos dos bolchevistas indígenas, ansiosos
por dominar inteiramente sua pátria. Sob pretexto de completo isolamento, sem conseguir tirá-lo desse
combater o inimigo externo, fundaram um Estado estado nem seu contato com os filhos de Ormuzd e
independente, o Yenan, ao norte da China. Divulgando Brahma, nem mesmo suas relações religiosas e
o «slogan»: «Um chinês não combate outro chinês,
comerciais com os povos europeus, a partir do
quando japoneses estão dentro de suas muralhas»,
conseguiram que o chefe do governo legal, Chang Kai- século XVI. Sem alianças com estrangeiros, sem
Chek, fosse preso pelos seus próprios generais, sob exercer atração ou expansão sobre seus vizinhos,
acusação de entendimentos com o inimigo. Como preço vivendo sua própria vida e concentrando-se em sua
de seu resgate, obtiveram plena liberdade de ação para
o Partido, e o compromisso de Chang de responder
própria ação, esse vasto e antigo Império forma ou
pelas armas ao primeiro ataque japonês que houvesse. representa uma espécie de episódio no quadro vivo
Os japoneses atacaram em 1937, obrigando, por e harmonioso da História Universal. [Tal
força desse acordo, o governo nacionalista a entrar imutabilidade chinesa viria a ser totalmente
em uma guerra longa e dura, para a qual a China
não estava preparada e que a debilitou material e abalada em menos de meio século após a análise
moralmente. Os comunistas, ao contrário, graças a um do Cardeal Zeferíno, como se pode constatar no
plano bem concebido, pelo qual suas forças nunca quadro ao lado.]
enfrentavam abertamente o inimigo, conseguiram Podia-se dizer que sua Filosofia é
consolidar seu regime nas regiões do norte. Suas
guerrilhas lhes permitiram, sem muito esforço, manter proporcionada a esse isolamento nacional; pois,
em reserva tropas descansadas e sovietizar, sem longe de corresponder à antiguidade e grandeza da
maiores perigos, o território por eles ocupado. Por outro nação, é de pouco valor intrínseco. O próprio
lado, durante a segunda guerra mundial, os aliados Confúcio, “o filósofo e sábio por excelência”,
fizeram pressão sobre Chang Kai-Chek para que
aceitasse a colaboração dos comunistas no alto como lhe chamam os seus compatriotas; “o maior
comando, o que conferiu ao movimento vermelho um tutor dos povos que já viram os séculos”, na
caráter legal em toda a China. expressão deles, que também costumam chamá-lo
O fim das hostilidades em 1945, com a ocupação de auge da santidade e pináculo da raça humana,
russa da Manchúria e da Coréia do Norte, trouxe novo
e poderoso auxílio para os planos revolucionários de não passa de um moralista mediano, e dificilmente
Mao Tsé-Tung: seus dois milhões de soldados merece o nome de Filósofo no sentido próprio da
beneficiaram-se com o armamento japonês e com palavra. Hegel observa, com razão, que a tão
intensa ajuda russa.
louvada Filosofia de Confúcio se reduz a uma
O exército nacionalista, esgotado e desfalcado, entrou
então em luta com os comunistas pela posse do moralidade que não comporta méritos especiais, e
território chinês. Em outubro de 1949, depois de que não passa de um conjunto de máximas
quatro anos de guerra civil, os bolchevistas, senhores de vulgares. Os deístas e incrédulos do século de
toda a China continental, proclamaram em Pequim a
República Popular Chinesa.
Rousseau e Voltaire exaltavam a moral confuciana
aos céus, assim como os racionalistas de nossos
39
dias advogam a moralidade búdica, movidos pelo desejo ávido de equiparar e mesmo sobrepor aquelas
teorias à moralidade de Jesus Cristo. Tais exageros hoje só encontram eco entre pessoas que desconhecem
completamente o conteúdo dos livros atribuídos ao Filósofo chinês, ou melhor, escritos por seus discípulos;
porque a verdade é que quem tem conhecimento destes livros não pode negar que a moral ensinada por
Confúcio está a uma distância imensa, não só da moral cristã, mas também daquela ensinada por algumas
escolas filosóficas do paganismo. A moralidade contida no De Officiis de Cícero é mais pura e mais
completa do que a contida nos Sse-chou, ou livros clássicos de moralidade confuciana. Parece desnecessário
acrescentar que a teoria ética do Pórtico e as máximas morais de Epiteto e Sêneca valiam muito mais do
que a moral professada e ensinada pelos Filósofos da China.

§ 16 Filosofia de Lao-Tze

Para que tudo seja original na China, os dois únicos filósofos dignos
desse nome são quase contemporâneos. Com exceção de Zhu Xi40, que
no século XII da era cristã tentou uma espécie de reconciliação entre a
doutrina de Lao-Tze e a de K'ung-fu-tzŭ (vulgo Confúcio, como veremos
adiante), nenhum nome de Filósofo ou Escola importante aparece na
História sina.
Lao-Tze 41 , nascido no século VI a.C., pode ser chamado de
representante da metafísica chinesa, assim como Confúcio é o
representante da direção moral. De acordo com Lao-Tze, Tao
(literalmente, o grande caminho) é o começo, o fundo e a essência de
todas as coisas. Esse Tao, ou ser primitivo, também chamado pelo
Filósofo chinês de razão primeira, é tanto o não-ser quanto o ser, porque
é o ser virtual, latente e potencial, e é ao mesmo tempo o atual, explícito
e manifesto (Hegel, Schelling); é ideal e fenomênico, indistinto e distinto,
ilimitado e finito, em uma palavra, o Tao de Lao-Tze é a Substância
única, o Todo, a Essência absoluta de todo panteísmo.
Este Ser absoluto, indistinto e inominável na sua origem, torna-se
contingente e material, diferenciado e nomeável, à medida que produz ou
tira do fundo de si a coisas, isto é, à medida que se divide e se manifesta, assumindo diferentes formas. “O
Tao ou a razão suprema – lê-se no Tao Te Ching (a obra capital ou livro principal de Lao-Tze) – considerado
no seu estado de imobilidade, carece de nome... Só quando começou a dividir e vestir as formas corpóreas
teve nome... O Tao ou Razão Suprema existe em todo o universo, e nele penetra com toda a sua existência,
da mesma forma que os rios e torrentes dos vales se estendem aos rios e aos mares”.
Quanto ao processo das coisas do Tao ou Ser Absoluto, a doutrina deste Filósofo apresenta bastante
analogia com a dos neoplatônicos de Alexandria, dos quais se distingue, porém, pela importância ou papel
especial que neste processo, atribui-se ao princípio feminino yin, e ao princípio masculino, denominado
yang. Segundo o testemunho dos próprios discípulos e intérpretes chineses de Lao-Tze, a sua teoria sobre
este ponto pode ser condensada nos seguintes termos: “O Tao ou a primeira Razão produziu o Uno, isto é,
passou do estado de não-ser ao estado de ser. O Uno (1) produziu a Díade (2), dividindo-se no princípio
feminino (yin) e no princípio masculino (yang). Esta Díade produziu a Tríade (3), quer dizer, os princípios
feminino e masculino, unindo-se, produziram a harmonia. A Tríade produziu a universalidade dos seres”.
Daí a importância que Lao-Tze, e a Filosofia Chinesa em geral, atribuem ao número, aproximando-se
com isso em algo da doutrina dos pitagóricos. Para Lao-Tze e seus compatriotas, a ordem, o processo e as
relações do universo e suas partes correspondem à ordem, ao processo e às relações dos números. Como

40
Zhu Xi (ou, na referência francesa tomada pelo Cardeal, Tchou-hi) também pode ser encontrado como Chu
Hsi, Zhuzi ou Zhufuzi (朱熹). [N.T.]
41
Lao-Tze (ou, na grafia espanhola do Cardeal, Lao-Tseu) também pode ser encontrado como Lao Zi ou Laozi (老子: Lǎozǐ), Lao-
Tzu e Lao-Tze. [N.T.]
40
estes são divididos em pares e ímpares, assim as substâncias cósmicas são divididas em celestiais e
terrenais: o número ímpar (como mais perfeito) corresponde ao celestial; o número par (porque é menos
perfeito que o ímpar) corresponde ao terreno. A Década (10) é um dos números mais importantes, por causa
de suas aplicações aritméticas.
A teoria da vida e da morte de Lao-Tze está de acordo com sua concepção panteísta da origem e do
processo das coisas. “Todos os seres – reza o citado livro Tao-te-king – aparecem na vida em um movimento
contínuo. Vemos que eles seguem um ao outro, aparecendo e desaparecendo alternadamente. Esses seres
corpóreos, em seu movimento contínuo, assumem diferentes formas externas; mas cada um volta à sua raiz
e ao seu começo. Voltar à sua raiz e ao seu início significa entrar novamente na imobilidade absoluta”.
A moral de Lao-Tze – de que versou muito pouco, como indicado – consiste na negação e desapego de
toda atividade, de toda mudança, de toda paixão ou alteração; consiste, em uma palavra, na indiferença
absoluta e no não agir, como meio de alcançar a absorção e a identificação bramânica com o Tao ou Ser
imutável, indistinto e sem nome. “O último termo da perfeição – escreve o Filósofo chinês – é a inação e o
cúmulo do vazio”.
Parece que Lao-Tze, querendo sancionar essa teoria moral com sua própria conduta, abandonou suas
honras, seu lar e sua riqueza, e morreu levando uma vida solitária nas selvas. Após sua morte, sua memória
foi muito venerada e elogiada por seus discípulos e admiradores, que fizeram dele uma encarnação do Tao
ou Razão suprema, e até lhe atribuíram uma existência anterior. Porém, seu nome não alcançou a
celebridade popular nem as honras divinas que foram e são prestadas ao seu compatriota Confúcio.

§ 17 Confúcio e sua Filosofia

Nasceu cinquenta anos depois de Lao-Tze, e em seus escritos – ou melhor,


em seus discursos filosófico-populares – seguiu uma orientação
essencialmente prática e moral, oposta à especulativa e metafísica de Lao-
Tze. Parece que Confúcio usou conversas familiares para ensinar e propagar
sua doutrina, que foi coletada e compilada por seus discípulos em Quatro
Livros, que são (1) o Dà Xué (大學) ou Grande Estudo; (2) o Zhōng Yóng
(中庸) ou A Doutrina do Meio; (3) o Lu-Yun ou Diálogos de Confúcio; e (4)
o Mêncio ( 孟 子 ), assim chamado pelo nome do discípulo compilador
(Mèngzǐ ou Meng Tzŭ, que significa literalmente “Mestre Meng” é o
pseudônimo de Ji Mèngkē). Em um desses livros, põe-se na boca de
Confúcio o seguinte discurso, que resume e sintetiza sua teoria moral no que
há de mais racional e sólido:
“Os nossos antigos sábios – disse K'ung-fu-tzŭ (Confúcio) – praticaram
perante nós o que acabei de vos explicar: e esta prática, geralmente adoptada
nos tempos antigos, reduz-se à observância das três leis fundamentais do
relacionamento, [1º] entre os soberanos e súditos, [2º] entre pais e filhos, [3º] entre marido e mulher, e à
prática exata das cinco virtudes capitais, que basta nomeá-las para fazer compreender sua excelência e
necessidade. Estas são as virtudes, [I] a humanidade, ou seja, o amor universal entre todos os de nossa
espécie sem distinção; [II] a justiça, que dá a cada indivíduo o que lhe é devido, sem favorecer um sobre o
outro; [III] a conformidade com os ritos prescritos e com os usos estabelecidos, para que os membros da
sociedade tenham o mesmo modo de vida e igual participação nas vantagens e desvantagens do mesmo;
[IV] a honestidade, isto é, aquela retidão de espírito e de coração que nos leva a buscar a verdade em tudo
e a desejá-la sem querer enganar a nós mesmos ou aos outros; e, finalmente, [V] a sinceridade ou boa fé,
ou seja, aquela franqueza de coração misturada com confiança que exclui todo fingimento e disfarce, tanto
na conduta quanto nas palavras. Aqui está o que tornou nossos primeiros mestres respeitáveis durante suas
vidas e o que imortalizou seu nome após a morte. Tomemo-los como modelos; usemos todos os nossos
esforços para imitá-los.”

41
A julgar apenas por essa passagem, pode-se Confúcio e o PC Chinês
dizer que a moral confuciana está mais próxima da (Folha de São Paulo, 1º julho de 2021)
moral evangélica do que qualquer outra. É verdade No auge da Revolução Cultural, em 1966, o túmulo
que, mesmo deste ponto de vista, seria sempre do Filósofo chinês Confúcio foi vandalizado, os restos
muito inferior à moral de Jesus Cristo, porque a mortais de seus descendentes, exumados e pendurados
estas virtudes confucionistas falta a eficácia, a em forcas, e a estátua em homenagem ao sábio acabou
incinerada por jovens da Guarda Vermelha.
elevação e o aroma inerentes ao amor de Deus,
Na época, adolescentes imbuídos de fúria
fundamento e condição da perfeição moral, seja
revolucionária se empenhavam para destruir os
porque a exposição e o ensino puramente humano chamados “quatro velhos”: as velhas ideias, a velha
dessas virtudes naturais e racionais não entranham cultura, os velhos costumes e os velhos hábitos.
em si nem seu amor eficaz nem sua prática, amor e Confúcio, na visão do líder comunista Mao Tse-Tung,
prática que só podem ser alcançados sob o influxo era um dos maiores símbolos do entulho feudal que
da Fé divina e da graça que fortalece. Testemunha impedia a China de ser verdadeiramente revolucionária.
desta verdade é a terrível corrupção dos costumes Cinquenta e cinco anos depois, o Filósofo não foi
que se observa entre os chineses, apesar da pureza apenas resgatado: suas ideias foram alçadas a doutrina
da moral e das virtudes ensinadas por Confúcio; e de Estado e têm sido usadas para legitimar o governo,
cujo poder é mais concentrado na figura do principal
que a veneração à pessoa e doutrina deste, longe de
dirigente, Xi Jinping, do que em gestões anteriores.
diminuir, aumentou até receber honras divinas por
Xi foi o primeiro líder a participar formalmente de
parte de todos os habitantes daquelas regiões, uma comemoração do aniversário de Confúcio, em
desde o Imperador e os literatos até as últimas 2014, quando foi celebrado o 2.565° ano de nascimento
classes da sociedade. do sábio.
Mas à parte disto, e desconsiderando esta ordem Naquele ano, o Partido Comunista Chinês
de considerações, basta atentar para os outros determinou que seus filiados assistissem a aulas sobre
pontos da doutrina, tanto moral como especulativa, o Filósofo e outros pensadores clássicos.
de Confúcio, para se convencer de que a razão Assim, livros didáticos também passaram a
incorporar textos tradicionais, e Confúcio ganhou
humana, entregue a seus próprios artifícios, põe e grande destaque nos currículos escolares. O dirigente
porá sempre erros e distorções a par das verdades chinês, que frequentemente cita pensamentos
e belezas. confucionistas, afirma que a cultura tradicional é a alma
Bunsen resume alguns dos principais pontos da da nação.
doutrina de Confúcio nos seguintes termos:
1966
“O céu (tiān) é, para Confúcio, sinônimo de
divindade, da qual a expressão mais sublime é o
mundo das estrelas. A palavra Deus não é para ele
um som vazio, oco, desprovido de significado real,
mas exprime o conjunto dos corpos.
“O espírito (shén) não tem realidade para o
filósofo chinês, senão no sentido de gênio, de
sombra dos ancestrais, em homenagem aos quais
este excelente homem instituiu um culto de
reconhecimento. Mas o que é o espírito? A força
que reside na matéria. E o que é a matéria? O
produto de duas substâncias primitivas. Eis aqui,
em substância, com mais alguns preceitos morais,
o que constitui a religião popular que Confúcio
ensinou aos chineses”.
Essas apreciações de Bunsen são corroboradas
pela História e pela experiência atual, sendo bem
sabido que as classes esclarecidas e os literatos da
China, ou seja, aqueles que representam as
2014
tradições e os ensinamentos de Confúcio, a quem

42
reconhecem e reverenciam como legislador e mestre, professam o ateísmo e o materialismo.
As respostas evasivas que o Filósofo chinês costumava dar aos que o questionavam de forma direta e
concreta sobre a imortalidade da alma são mais uma prova de seu pensamento materialista42, talvez até
mesmo o medo de confrontar e ferir as crenças do povo lhe tenham imposto certa reserva.
Outro dos pontos de sua moral que revela sua imperfeição, assim como a fraqueza da razão humana
entregue a si mesma – mesmo em homens dotados de inteligência superior e aptidões especiais na ordem
moral! – é sua doutrina acerca dos vaticínios, augúrios e sorte por meios pueris e supersticiosos. O Padre
Vudelou, na sua “Notícia acerca do Y-king”, que é precisamente o livro que trata das fortunas, da
quiromancia e dos auspícios Sínicos, escreve: “Confúcio não só aprova estas fortunas, mas também ensina
em termos formais, no seu comentário sobre o Y-king, a arte de usá-los. É certo que a técnica a que se
dedica este livro é deduzida do que o próprio Confúcio disse sobre ela”.

§ 18 Zhu Xi e o Neo-Confucionismo

Após a morte e sucessiva apoteose de Lao-Tze e Confúcio, a Filosofia na China seguiu as suas vias, e
sobretudo deste último, sem produzir escolas ou Filósofos que merecessem menção especial. Somente no
século XII d.C., quando já haviam passado dezessete séculos sobre o túmulo de Confúcio, surgiu uma nova
escola, cujo fundador foi Zhu-lien-Ki ou Zhu-Tze, mas cujo principal representante é Zhu Xi.
Já foi indicado acima que a Filosofia de Confúcio prevaleceu sobre a de Lao-Tze. Mas a Filosofia de
Confúcio, mais do que Filosofia é um sistema político-moral, é uma Filosofia essencialmente incompleta e
parcial, porque carece de uma base metafísica e mesmo psicológica, enquanto a Filosofia de Lao-Tze é
metafísica e quase puramente especulativa. Diante disso, nada mais natural do que as pôr em contato
recíproco e se completarem. Essa foi a empreitada dos citados Filósofos, cuja escola, portanto, vem a ser
uma espécie de ensaio ou sistema eclético, que poderia ser chamado de neo-confucionismo, tendo em vista
que a doutrina político-moral de Confúcio, universalmente recebida e praticada pela nação, constitui o pano
de fundo e o enredo principal de sua concepção filosófica.
As principais modificações introduzidas por esta escola na doutrina de Confúcio, combinando-a com
alguns dos elementos metafísicos de Lao-Tze, podem ser condensadas e resumidas nos seguintes termos:

a) O Ser Supremo, chamado de Taï-ki pelos discípulos de Confúcio, é o Ser latente e inominável de
Lao-Tze, é o grande Todo deste filósofo, céu e terra ao mesmo tempo, espírito e matéria, etc., pois embora
“cada um desses seres – diz o fundador do neo-confucionismo, Zhu-Tze – tenha sua própria natureza
individual, no entanto, todos os seres do universo juntos são o Taï-ki”.

b) O Tao ou Razão suprema de Confúcio, é para a nova escola o próprio Taï-ki, considerado enquanto
substratum e razão eficiente de suas evoluções e ações, ou seja, dos seres dos quais procede por emanação
da sua própria e único substância. “Embora existam dois nomes – diz o principal representante desta escola,
Zhu Xi, originalmente não existem duas substâncias”.

c) O Taï-ki ou Substância absoluta – que, como já foi dito, possui em si o Tao ou Razão
suprema e eficiente – manifesta-se no espaço e no tempo sob as duas formas de ying e yang, isto é, como
matéria (ying) e como espírito (yang). Mas não se pense que matéria e espírito têm neste contexto o mesmo
significado que entre os europeus. Para a Filosofia neo-confucionista – e, em geral, para a Filosofia Chinesa

42
Quando questionado sobre sua opinião sobre a morte, costumava responder: “Como vou saber o que é a morte, se ainda não
conheço a vida?” Noutra ocasião, quando os seus ouvintes lhe perguntaram se os antepassados venerados o sabiam, respondeu-lhes
nos seguintes termos: “Não me convém exprimir claramente a minha opinião sobre este ponto. Se eu dissesse que os pais são
sensíveis às homenagens que lhes são prestadas, que veem, ouvem e sabem o que se passa aqui na terra, seria temeroso que seus
descendentes, levados por uma piedade filial muito viva, negligenciassem a própria vive para cuidar da de seus antepassados. Se,
pelo contrário, dissesse que os mortos não sabem o que fazem os vivos, seria de se temer que os deveres de piedade filial fossem
negligenciados, que cada qual se fechasse em um egoísmo estreito e que seriam quebrantados, dessa maneira, os laços mais sagrados
que unem as famílias entre si”.
43
–, o espírito é uma matéria mais sutil do que o corpo grosseiro e visível. Às vezes recebe o nome de matéria
celeste, masculino celeste, em contraposição ao feminino terrestre ou matéria inferior.

d) Da união e combinação destes dois modos ou formas de ser, o yang e o ying, resultam cinco
elementos, que são [1] a madeira, [2] a terra, [3] o metal, [4] a água e [5] o fogo, que engendram e
constituem todos os outros seres do universo, incluindo o homem com suas faculdades físicas, intelectuais
e morais. Assim é que [1] o amor ou a benevolência vem da madeira, [2] a fidelidade vem da terra, [3] a
justiça do metal, [4] a prudência da água e [5] a civilização do fogo.
Esses mesmos elementos são representados no céu por cinco gênios (ch’an-ting), que dirigem a marcha
geral das causas naturais, sem prejuízo de outros espíritos (aeriformes) e gênios inferiores, que presidem
os diversos fenômenos da natureza, como o trovão, a chuva, ventos.

e) No homem, há três coisas, a saber: [I] a inteligência, que é uma derivação ou manifestação do Tao ou
Razão suprema, na qual deve reentrar quando separada do corpo – muito embora o neo-confucionismo não
explique este ponto –; [II] o princípio sutil do elemento material ou corpóreo; e [III] a parte mais grosseira
deste mesmo elemento, isto é, o corpo humano. Quando ocorre a morte, o princípio sutil (höen) retorna ao
céu e torna-se espírito (shén, ou espírito aeriforme, corpo sutil); a parte inferior e mais grosseira do corpo,
chamada phe, retorna à terra e torna-se koueï, ou gênio, que é um grau inferior ao shén (o que se chama
espírito), embora nem um nem o outros sejam verdadeiramente espíritos, mas graus e modos de ser mais
ou menos sutis da matéria.

Como se depreende dessas indicações, o neo-confucionismo ou Filosofia de Zhu Xi reduz-se a um


amálgama informe e às vezes até contraditório da concepção panteísta de Lao-Tze, com as tendências
cético-ateístas e com as idéias materialistas confucianas. Esta Filosofia neo-confucionista de Zhu Xi, é hoje
[antes da Revolução] a Filosofia oficial e nacional da China, e são bem conhecidas as opiniões negativas
dos literatos chineses quanto à existência de um Deus pessoal, vivo e providente, bem como quanto à
imortalidade de a alma

§ 19 Crítica

Se desconsiderarmos a doutrina filosófica de Zhu Xi – que acabamos de expor e que, como já foi dito,
nada mais é do que uma fusão ou amálgama de certas idéias de Lao-Tze e Confúcio –, se abstrairmos desse
sistema sincrético para voltar aos elementos que constituem seu conteúdo substancial, se olharmos,
finalmente, para a doutrina dos já citados Lao-Tze e Confúcio – doutrina que representa, por assim dizer, a
Filosofia primitiva, nacional, característica dos chineses –, vemos claramente que essa Filosofia,
considerada a ética, que é o seu aspecto mais importante, é resolvido, de fato, em um conjunto de máximas
morais, algumas boas, outras medíocres e outras ainda execráveis.
Porque, de fato, as máximas morais ensinadas por Confúcio carecem de base metafísica e, portanto, não
constituem e não têm como constituir um todo sistemático, um organismo científico. Daí o desacordo e
mesmo as contradições que se verificam nas referidas máximas; pois enquanto algumas parecem entranhar
certas idéias espiritualistas e um certo assentimento ao teísmo transcendente, outras implicam tendências
ateístas e materialistas. Daqui também as grandes aberrações e as muitas falhas que se encontram na moral
confuciana, tais como, além das que deixamos assinaladas ao expor sua Filosofia, as práticas e evocações
supersticiosas; porque Confúcio ensina, por exemplo, a forma de investigar e conhecer a opinião dos
espíritos ou gênios e obter sua por meio da inspeção de uma tartaruga queimada (Zhou) e das figuras que
resultam da combinação das folhas e filamentos da mil-folhas (I-Ching).
Estas não são as únicas falhas da moral de Confúcio, tão decantadas e analisadas pelos deístas e
incrédulos do século XIX. Esta moral, longe de reabilitar a mulher, nem de a constituir na sua própria
dignidade, deixa-a submersa num estado de servidão perpétua; pois ela não está apenas inteiramente sujeita
ao pai e ao marido, mas também ao filho quando o marido está ausente. A isto se soma a poligamia, admitida

44
na moral confuciana, e o repúdio, permitido por muitos motivos fáceis, bastando, entre outros, a suspeita
de infidelidade conjugal, ou o furto de algo da casa por qualquer motivo.
Na ordem especulativa, a filosofia primitiva dos chineses se resolve, como se viu, numa espécie de
panteísmo emanacionista, com acentuadas tendências ao materialismo na psicologia.
Do que foi dito, pode-se deduzir que as relações e analogias que alguns historiadores da Filosofia
quiseram ver entre o sistema filosófico da China antiga e alguns sistemas filosóficos da Grécia antiga
carecem de um fundamento sólido. O historiador Gladisch, sobretudo, fez questão de levar tão longe as
relações sino-gregas no campo da Filosofia que não tem medo de afirmar e tenta mesmo demonstrar que a
doutrina dos pitagóricos é uma reprodução completa e exata da doutrina filosófica do chinês. A verdade,
porém, é que há poucos pontos de contato entre uma doutrina e outra, que as analogias entre as duas são
externas e superficiais, e que a concepção chinesa e a concepção pitagórica estão separadas por pontos
muito importantes, por ideias e afirmações da maior importância. Em vão buscaremos na doutrina chinesa
a idéia e a afirmação de que os números constituem a própria substância das coisas, seus elementos
essenciais e internos; e, no entanto, veremos mais adiante que esta informação constitui a tese fundamental,
a ideia mãe da doutrina pitagórica. Os antigos Filósofos da China consideram o número ímpar como perfeito
ou celestial, e o número par como imperfeito e terrestre, e se ocupam da natureza e das proporções
aritméticas de certos números; mas pode-se dizer que aqui termina a analogia ou semelhança entre sua
doutrina e a dos pitagóricos. Em vão se buscará naqueles Filósofos seja a tese fundamental do sistema
pitagórico seja sua teoria astronômica, muito superior à dos chineses, nem sua moral relativamente
sistemática e racional, nem sua doutrina das categorias. Mesmo no terreno político-social e doméstico, a
concepção pitagórica e suas ideias e práticas de associação estão longe da organização estreita e da
regularidade mecânica que regem a vida doméstica e política entre os chineses. Por outro lado, os
pitagóricos nunca ensinaram ou professaram a identificação da Divindade com o céu material, e sabe-se
que esta identificação constitui uma concepção fundamental, uma das bases da doutrina chinesa.
Parece desnecessário sublinhar que a Filosofia dos chineses participou e participa da imobilidade
inerente a seus costumes, suas leis, suas instituições e suas artes, e que, a partir de Zhu Xi, ou melhor, de
Lao-Tze e Confúcio, permaneceu e permanece em completo estado de petrificação.

§ 20 A Filosofia na Pérsia

Quando falamos de Filosofia na Pérsia, não nos referimos apenas à persa, mas também
à sogdiana43, margiana44, susiana45, com várias outras províncias ocupadas pelos iranianos,
Frâda, Rei da Margiana

e sobretudo à Báctria46, pátria de Zoroastro e foco primitivo do


mazdeísmo (ciência universal), isto é, da religião que ele
iniciou, ou pelo menos difundiu e afirmou.
A julgar por algumas indicações históricas e afinidades
védico-doutrinárias, o mazdeísmo e o bramanismo tiveram
contato nas planícies da Báctria, e o primeiro representaria uma
espécie de reforma religiosa e uma progressiva regeneração do
segundo.

43
Soguediana ou Sogdiana foi uma civilização que floresceu no vale do Zarafexã, no atual Usbequistão. [N.T.]
44
Margiana (Μαργιανή ou Marguš) é uma região histórica centrada no oásis de Merv e foi uma satrapia menor dentro da satrapia
aquemênida da Báctria, localizada no vale do rio Murghab, que tem suas nascentes nas montanhas do atual Afeganistão. Margiana
fazia fronteira com a Pártia a sudoeste, Aria ao sul, Báctria a leste e Sogdia ao norte. [N.T.]
45
Susiana ou Elão (Elam, ‫ )اﯾﻼم‬foi uma civilização localizada no território que corresponde ao atual sudoeste do Irã, estendendo-se
desde as terras baixas do Cuzestão à atual província de Ilam, bem como uma pequena parte do sul do Iraque. Sua capital, Susa, é
mencionada no Livro de Ester. [N.T.]
46
Báctria ou Bactriana(grego: Βακτριανή; latim: Bactria; persa: Bākhtar) fazia parte da região persa do Coração e hoje integra o
Afeganistão, Tajiquistão, Uzbequistão, Paquistão e China. Foi lar dos povos indo-iranianos que se deslocaram para o Irã e para a
Índia por volta de 2500–2000 a.C. Posteriormente, tornou-se província norte do Império Aquemênida. Nesta região nasceu
Zoroastro. A língua avéstica, na qual foram escritos os trechos mais antigos do Avestá zoroastriano, foi uma das velhas línguas
iranianas, e tida como a mais velha das línguas iranianas do leste. [N.T.]
45
A oposição de princípios e tendências
observada entre o mazdeísmo e o bramanismo
confirma e explica a violenta ruptura entre essas
duas concepções. Em oposição ao panteísmo
ensinado nos Vedas, os Naçkas ou livros
sagrados do mazdeísmo proclamam o dualismo.
Enquanto Brahma é a essência única e, portanto,
o princípio do bem e do mal; para o mazdeísmo,
Deus – o Ormuzd dos escritores gregos e latinos
– é o princípio do bem, mas não do mal, que é
apenas um acidente, uma coisa completamente
estranha com relação a Ahoura-mazda ou
Ormuzd, que é o verdadeiro Deus da teologia Diz Santo Epifânio que “os quatro Anjos situados no
mazdeísta. Em oposição ao panteísmo Eufrates de que fala São João no capítulo nono do
emanacionista da Índia, Ormuzd aparece no Apocalipse são tantos quanto as nações situadas nas
mazdeísmo, como o primeiro criador de todas as margens deste rio, a saber, os assírios, os babilônios, os
outras coisas, que, assim como tiveram todas um medos e os persas”. Daniel lista, nesta ordem, esses quatro
impérios. Os assírios reinaram primeiro, seguidos pelos
começo, terão todas um fim, inclusive o próprio
babilônios; os medos vieram depois e, finalmente, os
Ahriman, apesar de não proceder ou receber o
persas, dos quais Ciro foi o primeiro rei. Ora, segundo o
ser de Ormuzd, como os demais. testemunho de Moisés citado acima, as nações estão
Parece desnecessário salientar que isso se sujeitas aos Anjos. É com razão, então, que a “voz dos
refere ao mazdaísmo, considerado em sua pureza quatro chifres do grande altar, que está diante dos olhos de
primitiva e antes de ser adulterado, como o foi Deus, diz ao sexto Anjo, que tinha a trombeta: ‘Solte os
em tempos posteriores, com a concepção quatro Anjos, que estão presos no grande rio Eufrates’ (Ap
panteísta de Zervân-Akéréné (o tempo eterno) 9,13-14). Eles foram retidos lá para que estas nações lutem
como princípio e substrato comum de Ormuzd e entre si até o momento em que Deus quiser usá-los para
de Ahriman. Nos fragmentos autênticos e vingar as injustiças feitas aos Seus santos”. (SOYER, E.
Saint Michel e les Saints Anges considerés dans leurs
antigos do Zend-Avesta não há vestígios dessa
relations avec le monde visible. Imprimatur: + Jean-Pierre
concepção verdadeiramente monstruosa, e está
Bravard)
em óbvia contradição com o papel de criador que
ali é atribuído ao mencionado Ahoura-mazda.
Assim é que a ciência moderna suspeita, com
razão, que o Zervân-Akéréné ou tempo
ilimitado, como um ser anterior e superior a
Ormuzd e Ahriman, é uma concepção estranha
ao primitivo mazdeísmo iraniano. Spiegel,
Lenormant, Oppert, juntamente com outros
historiadores e orientalistas, também acreditam
que esta ideia é uma infiltração do panteísmo
materialista caldeu e como uma verdadeira
infiltração na concepção religiosa mazdeísta.

46
§ 21 Filosofia ou Doutrina Mazdeísta

O mazdeísmo ou reforma religiosa de que acabamos de falar deve sua origem – ou, pelo menos, seu
nome e consolidação – ao Zoroastro dos gregos, que é o Zaratustra dos persas e dos naçkas. Quase todos
os historiadores concordam que esse famoso legislador religioso nasceu e viveu na Báctria; mas o mesmo
não acontece quando se trata de fixar seu caráter social e a época de seu nascimento; pois enquanto alguns
supõem que ele não teve nenhuma representação política, considerando-o um simples reformador religioso,
outros acrescentam a essa característica a de chefe e até rei da Báctria, tornando-o uma espécie de Moisés
da raça iraniana. Não falta quem diga que ele morreu de morte violenta numa invasão das tribos tourânicas,
inimigas do mazdeísmo. Não é menor a discordância de opiniões acerca da época em que floresceu. Muito
remota é a antiguidade que lhe atribui São Justino, que fala de suas guerras com Nino. Eusébio de Cesárea
e Santo Agostinho supõem que ele seja contemporâneo de Abraão. De acordo com Aristóteles, Hermipo,
Plutarco e alguns outros, ela floresceu cinco mil anos antes da Guerra de Tróia. A opinião mais provável, e
a seguida por Burnouf, Spiegel, Oppert e outros críticos modernos dos mais credenciados, é que Zoroastro
viveu dois mil e quinhentos anos antes de Jesus Cristo, com pequena margem de erro47.
Já foi indicado que o ponto culminante e capital
da doutrina de Zoroastro é a negação do panteísmo
brâmane. O Ormuzd do legislador bactriano tem
muita analogia com o IHWH dos hebreus, a julgar
por várias passagens dos Naçkas ou livros
canônicos do mazdeísmo que conhecemos, nos
quais Ahoura-Mazda (o Ormuzd dos gregos e
latinos) é chamado luminoso, resplandecente,
eminente em grandeza e bondade, perfeitíssimo,
mui poderoso e mui inteligente, e acima de tudo é
chamado o espírito santíssimo, criador dos mundos
existentes. Assim é que a doutrina zoroastriana sobre a origem das coisas é a que mais se aproxima da
criação do Gênesis mosaico.
Outra das analogias – e, poderíamos dizer, reminiscências que o mazdeísmo apresenta a respeito da
revelação primitiva registrada no Pentateuco Mosaico – é a afirmação da queda original do homem. No
Boundehesch (um dos livros canônico-religiosos ou fragmentos do mazdaísmo), depois de narrar a tentação
e a queda do primeiro homem e da primeira mulher, em termos bastante semelhantes basicamente à narração
de Moisés, é dito: “Dev (o gênio ou espírito maligno) que fala a mentira, tornado mais ousado, apareceu
uma segunda vez, e trouxe-lhes frutas que comeram, e para isso, de uma centena de vantagens que tinham
antes, só lhes restou uma”.
Num cântico ou hino, considerado pelos orientalistas como um dos fragmentos mais autênticos de
Zoroastro, as principais ideias deste último são sintetizadas nos seguintes termos:
“Há ou existem dois gênios, o bom e mau, os quais são igualmente livres e reinam sobre o pensamento,
a palavra e a ação. É preciso escolher entre os dois: escolha, então, o Gênio Bom. Por meio e por causa
de sua oposição, esses dois gênios produzem todas as ações humanas: ser e não ser, o primeiro e o
último, são os efeitos que correspondem a esses dois gênios ou Deuses.”
“Os homens mentirosos serão miseráveis; os verazes serão salvos. Faz a tua escolha: seguindo o Gênio
mentiroso e mau, preparas para ti um destino infeliz: os que seguem o partido e a direção de Ahura-
Mazda, o Deus santo e verdadeiro, devem honrá-lo através da verdade e das ações santas...”
“Ó Mazda, quando é desgraçada a virtude na terra, sois vós que vindes em seu auxílio; vós dais ao
piedoso o governo da terra e punis por suas palavras o homem cuja promessa é mentirosa. Procuremos
merecer essa vida feliz por meio de esforços contínuos. Pratiqueis as máximas que saem da própria boca
de Mazda (o Deus bom, criador e onisciente), máximas mortais para os mentirosos, mas favoráveis ao
homem sincero: nessas máximas deves buscar tua salvação.”

47
Meio milênio antes de Abraão, portanto. [N.T.]
47
O mazdeísmo fazia consistir a moral na pureza de pensamento, palavra e ação; admitia a existência de
penalidades e recompensas na vida após a morte e rejeitava a idolatria e o antropomorfismo. Assim, de
acordo com o testemunho de Heródoto, seus seguidores não tinham templos, nem altares, nem estátuas dos
deuses. O culto que prestavam ao fogo era apenas um culto simbólico, dirigido a Ormuzd como o deus do
bem e da luz, ou seja, como o verdadeiro e único deus. Único, pois é bem sabido que Ahriman não possui
todos os atributos da divindade propriamente dita, uma vez que lhe falta a eternidade.
Tudo isso, no entanto, deve ser entendido a partir do
zoroastrismo propriamente dito ou do mazdeísmo primitivo, Questões Hebraicas
como já indicamos; porque, com o passar do tempo, e depois de São Jerônimo
das guerras entre os medos e os persas e, sobretudo, graças
“Aran morreu enquanto seu pai estava vivo
ao contato com as tribos assírio-caldeias, o mazdeísmo na terra onde ele nasceu, na região dos
sofreu grandes mudanças na parte filosófica ou caldeus” (Gn 11, 27). Ao invés do que lemos
especulativa, e mais ainda na parte prática, através do “na região dos caldeus”, em hebraico aparece
recurso à magia e do culto às divindades assírias e caldeias. em “Ur Chesdim”, ou seja, no fogo dos
A dificuldade de entender e explicar a origem e a caldeus. Aproveitando a oportunidade
existência do mal foi o que levou Zoroastro a abandonar oferecida pelo versículo, os hebreus
suas tendências e, por assim dizer, suas sugestões transmitem, ao modo de fábula, que Abraão foi
monoteístas, que aparecem claramente em seus livros e em lançado ao fogo, porque não quis adorar o fogo
suas concepções, para abraçar o dualismo, erro fundamental que os caldeus veneram e, liberto pela ajuda de
Deus, escapou do fogo da idolatria. (…)
de sua doutrina. Ao lado de Ormuzd (princípio do bem),
Assim, é verdadeira aquela tradição hebraica
aparece independente e frente ao deus bom, Ahriman
que apontamos antes, segundo a qual Taré saiu
(princípio e causa do mal). A luta entre esses dois seres com seus filhos do fogo dos caldeus e que
representa e causa as vicissitudes dos seres e o movimento Abraão, cercado pelo fogo da Babilônia –
da História, até que no final dos tempos o deus do mal é porque não queria adorá-lo – foi libertado com
derrotado e anulado pelo deus do bem e eterno. a ajuda de Deus. (Traduzido de: SAN
Mesmo assim, e tomada em seu conjunto, a concepção JERÓNIMO. Obras Completas. t. IV BAC:
de Zaratustra pode muito bem ser considerada como uma Madrid, 2004. p. 32-35)
das mais nobres e perfeitas que a razão humana produziu,
abandonada à própria força, ou, pelo menos, sem o auxílio da Revelação divina conservada em toda a sua
pureza. Isto, porque no mazdaísmo se descobrem traços evidentes, embora obscuros, dessa mesma
Revelação divina. As seguintes palavras de Lenormant contêm, em nossa opinião e em resumo, a crítica
geral mais exata do zoroastrismo ou mazdeísmo primitivo:
“A doutrina de Zoroastro é, sem contradição, o esforço mais poderoso do espírito humano em direção
ao espiritualismo e à verdade metafísica, sobre o qual se tentou fundar uma religião, desconsiderando
toda Revelação e apenas pelas forças da razão natural: é a doutrina mais pura, nobre e próxima da
verdade entre todas as da Ásia e de todo o mundo antigo, com exceção da dos hebreus, baseada na
palavra divina. É a reação dos mais nobres instintos da raça jafética, raça espiritualista e filosófica por
excelência entre os descendentes de Noé, contra o panteísmo e o politeísmo naturalistas, sua
consequência inevitável, que gradualmente penetraram nas crenças dos ários, adulterando as
reminiscências da primitiva Revelação. Em sua indignação contra o politeísmo e a idolatria, Zoroastro
transmite por um procedimento semelhante ao dos Profetas de Israel e dos Padres da Igreja, os nomes
dos personagens divinos da religião védica aos espíritos malignos. Os deuses desta religião, Devas,
tornam-se demônios; dois dos mais importantes, Indra e Shiva, são transformados em ministros do
princípio do mal. Zoroastro em sua doutrina religiosa tende ao monoteísmo puro; levanta-se com grande
voo em direção a este dogma da verdade eterna; mas apelando apenas para as forças da sua razão,
privado da ajuda sobrenatural da Revelação, Zoroastro tropeça no formidável problema da origem do
mal: esta é a pedra de tropeço que impede seu vôo; incapaz de salvá-lo, ele cai na concepção funesta do
dualismo.”

A doutrina mazdeísta, de fato, considerada na sua pureza primitiva e anterior à sua fusão com o magismo
e com as teorias e práticas assírias e caldeus, corresponde à elevação e profundidade das ideias e, sobretudo,
48
à tendência espiritualista que caracteriza e distingue a raça ária. No fundo da concepção zoroastra dominam
e superam, por assim dizer, a consciência moral e a razão, a ideia do verdadeiro e do bem, a tendência ético-
espiritualista e a especulação metafísica. É provável que essa elevação e pureza da doutrina mazdeísta se
devam em parte à Revelação primitiva, quer dizer, a uma reação e restauração dela. Mas nem por isso se
deve rejeitar ou negar a parte legítima da influência que corresponde à força nativa do gênio dos ários.
Ademais, a obra de Zaratustra, como todas as obras humanas, padece de graves defeitos, principalmente
do ponto de vista religioso. Além de sua monstruosa concepção dos dois princípios, isto é, do princípio
divino do mal, Zoroastro ou não sabia ou não ousava romper com o politeísmo naturalista de seus
concidadãos, contentando-se em modificar e moderar sua cultura popular, suas práticas e superstições.
Assim é que, com o passar do tempo, a religião de Zoroastro, relativamente pura e elevada em sua origem,
degenerou facilmente até se reduzir ao culto do fogo e às ridículas e supersticiosas fórmulas de magia.

§ 22 A Filosofia no Egito

Na realidade, nem no Egito, nem na Báctria, Pérsia e outras regiões dominadas pelo mazdeísmo, havia
Filosofia no sentido próprio da palavra. A Filosofia lá não era conhecida como uma ciência ou investigação
racional e sistemática das coisas e suas causas, nem havia uma variedade de escolas, nem as diferentes
partes da Filosofia especulativa eram conhecidas ou cultivadas separadamente. Nas províncias do Irã, como
no Egito, pode-se dizer que não há Filosofia senão a Filosofia religiosa, as concepções que servem de base
à religião e ao culto, e as consequências ou aplicações que delas derivam.
Daí a extrema dificuldade de separar a ideia filosófica da ideia religiosa, dificuldade que adquire maiores
proporções quando esta ideia assume duas formas muito diferentes e até contraditórias, como acontece
precisamente no Egito, onde a ideia religiosa apresenta a forma popular e rude ao lado da forma esotérica
e hierática.
Porque, com efeito, a julgar pelo testemunho de Heródoto e Diodoro com vários outros autores, inclusive
alguns escritores eclesiásticos; a julgar por algumas inscrições interpretadas por Champollion e outros
egiptólogos, e a julgar, sobretudo, por algumas passagens dos livros herméticos, a concepção religiosa
primitiva e real do país dos faraós comporta um teísmo espiritualista, embora um tanto distorcido por
desvios panteístas.
“Para o pensamento é difícil – lê-se nestes livros – conceber a Deus, e para a língua, falar dele. Uma
coisa imaterial não pode ser descrita com meios materiais, e o que é eterno dificilmente pode se aliar ao
que está sujeito ao tempo... O que não pode ser conhecido pelos olhos e pelos sentidos, como os corpos
visíveis, pode ser expresso através da linguagem; o que é incorpóreo, invisível, imaterial, sem forma,
não pode ser conhecido pelos nossos sentidos. Entendo, então, ó Thoth!, entendo que Deus é inefável...
Ele não é limitado ou finito; não tem cor nem figura; é a bondade eterna e imutável, o princípio do
Universo, razão, natureza, ato, necessidade, número, renovação: é mais forte que toda força, mais
excelente que toda excelência, superior a todo louvor, e somente ela deve ser adorada com adoração
silenciosa. Está oculto, porque para existir não precisa aparecer. O tempo se manifesta, mas a eternidade
está escondida. Considere a ordem do universo; deve ter um autor, um único autor, porque no meio de
inúmeros corpos e movimentos variados, há uma só ordem. Se houvesse muitos criadores, o mais fraco
teria inveja do mais forte e a discórdia teria trazido o caos. Existe apenas um mundo, um sol, uma lua,
um Deus. Esta é a vida de cada um, sua origem, seu poder, sua luz, sua inteligência, seu espírito e sua
respiração. Tudo existe nele, através dele, sob ele, e fora dele não há nada, nem deus, nem anjo, nem
demônio, nem substância; pois um só é Tudo, e Tudo é apenas um.”

Em harmonia com essas passagens dos livros herméticos ou sagrados dos egípcios, eles supunham ou
afirmavam que o Deus supremo, isto é, Amon-Rá, é anterior e superior a todas as coisas, e que essas e todas
as existências são emanações dele:
“Permanece imutável em sua unidade – diz o famoso livro De mysteriis Aegyptiorum, atribuído ao
neoplatônico Jâmblico – ele é o primeiro, o maior e a fonte de todas as coisas (major, et primus, et fons
49
omnium). Ele é o pai do primeiro Deus e o Deus dos deuses (pater est primi Dei... Deus deorum), o
mesmo que em sua unidade primitiva e solitária é anterior e superior a todos os seres, é o princípio e o
pai de toda essência, de toda existência, de toda inteligência; e, finalmente, é o primeiro inteligível, cujo
culto próprio é apenas o silêncio: Intelligibile primum quod solo silentio colitur”.

Embora seja bem possível que Jâmblico, ou quem quer que seja o autor do tratado De mysteriis
Aegyptiorum, possa ter distorcido a concepção teológica do Egito um pouco sob a influência de suas
próprias idéias neoplatônicas, não se pode duvidar do pano de fundo monoteísta dessa concepção. Esta
concepção unitária da divindade, seguramente um resto e reminiscência da Revelação primitiva, conservou-
se na classe sacerdotal mais ou menos pura durante vários séculos, sendo também muito provável que este
ensinamento constituísse o pano de fundo principal dos mistérios egípcios e da sabedoria de seus sacerdotes,
tão elogiado e utilizado pelos filósofos gregos, e principalmente por Pitágoras e Platão. No entanto, o
costume de expressar por meio de certos símbolos as ações, propriedades e diferentes atributos da divindade
e, por outro lado, as necessidades e exigências ou condições do culto público, foram a causa da introdução
e adoção de muitos e mui diversos símbolos, mais ou menos adequados, para representar e distinguir os
atributos, propriedades e efeitos atribuídos à Divindade. Sob a influência da imaginação grosseira do vulgo,
graças também à ignorância das classes populares e suas tendências antropomórficas, esses símbolos não
tardaram a se tornar divindades e objeto de cultos idolátricos de todos os tipos. Daí essa multidão de deuses,
essa extravagância de cultos e adorações, que fizeram do Egito o país clássico da superstição; esse acúmulo
monstruoso de divindades e práticas antropomórficas e fetichistas.
Assim vemos que a mitologia egípcia, que começa com a tríade primordial Amon
(o ser supremo, o fundo divino), Nesth (natureza) e Kneph ou Knouphis
(inteligência), desce por um processo sem fim e de múltiplas tríades até animais,
plantas e os elementos mais inanimados. O carneiro, símbolo hierático de Amon,
tornou-se mais tarde um ídolo ou encarnação divino-idólatra do mesmo [a título de
ilustração, a sequência de imagens ao lado mostra o hieróglifo, depois as esfinges em Keneth e, por fim, um

busto de Zeus-Amon do período alexandrino];


o touro, símbolo de Osíris,
tornou-se uma divindade para o povo, que também
adorava e prestava culto divino ao chacal e ao cão,
símbolos de Anúbis; ao gato, símbolo da lua; ao
crocodilo, símbolo do tempo; ao íbis, símbolo de
Hermes; ao besouro, símbolo do princípio ativo na
geração; à serpente, símbolo de Kneph; à palmeira,
símbolo do ano; à cebola, símbolo do universo, por
suas películas concêntricas e esféricas. Essa estranha
divindade, que tinha um templo em Pelusa, é quem motivou
a conhecida e célebre apóstrofe do poeta latino. O sol, a lua, o
zodíaco, o Nilo, juntamente com vários outros corpos, também foram objeto do
culto idolátrico do povo egípcio.
É muito possível e bastante provável, porém, que esses diferentes símbolos, que a
ignorância e a superstição popular transformaram em divindades e em culto idolátrico,
continham originalmente certas verdades doutrinárias que a Filosofia grega mais tarde apresentou como
fruto de suas próprias especulações, tendo-os recebido das tradições hieráticas e herméticas do Egito.
Descobriremos vestígios evidentes e múltiplos disso em Tales, Pitágoras, Platão e muitos outros
representantes da filosofia helênica. Até o éter ou fogo divino e animado dos estoicos parece partir do Egito,
a julgar pelo que nos diz ou indica Heródoto a esse respeito.

50
§ 23 A Filosofia ética ou moral no Egito

Se alguma parte da antiga doutrina egípcia merece o nome de filosófica, é sua parte ética. Sem constituir
um todo sistemático ou uma ciência racional, a moral egípcia é uma das mais puras e completas que o
paganismo apresenta, podendo-se dizer que nela, como na concepção unitária da divindade, não é possível
ignorar certos vestígios da Revelação adâmica ou paradisíaca.
Pelo conteúdo do Ritual Fúnebre [ou Livro dos Mortos], um dos livros sagrados do Egito, e do qual
foram encontrados vários exemplares ao lado das múmias, sabemos com certeza que a moral egípcia proibia
blasfemar, enganar outro homem, roubar, matar traiçoeiramente, provocar tumultos ou turbulências, tratar
alguém com crueldade, mesmo que fosse seu próprio escravo. Embriaguez, preguiça, curiosidade
indiscreta, inveja, maltratar os outros com atos ou palavras, falar mal ou fofocar sobre os outros; acusar
falsamente, fazer aborto, falar mal do rei ou dos pais também eram proibidos. A proibição destas coisas
como más, foi acompanhada de vários preceitos sobre o bom trabalho, entre os quais se destacam os de
fazer as devidas oferendas a Deus, alimentar os famintos, vestir os nus e alguns outros semelhantes.
Como base e sanção dessas prescrições morais, os egípcios admitiam a imortalidade da alma e o
julgamento divino após a morte, com as recompensas ou penalidades correspondentes às ações praticadas
em vida. Segundo Heródoto, os egípcios foram os primeiros a professar o dogma da imortalidade da alma,
pois afirmavam que quando o corpo se decompõe ou morre, a alma passa sucessivamente a outros corpos
através de nascimentos ou encarnações, viajando e animando os corpos de quase todos os animais da terra,
do ar e do mar, até entrarem novamente em um corpo humano em um determinado tempo ou momento.
Essa evolução ou transmigração da alma ocorre no espaço de três mil anos, doutrina que, como é sabido e
o próprio Heródoto aponta, foi adotada e até apresentada como original e própria por alguns filósofos
gregos.
É verdade que nesta doutrina, bem como naquela que se refere ao teísmo unitário, se detectam desvios
panteístas, e que ela também é adulterada ou desfigurada pela hipótese da metempsicose, hipótese que por
sua vez pode ser considerada como uma reminiscência adulterada do dogma da ressurreição final dos
corpos.
Aqui está o resumo de toda esta doutrina apresentada pelo citado Lenormant, resumo que acreditamos
ser o mais fiel à verdade e às conclusões da crítica histórico-egípcia:
“A crença na imortalidade nunca se separou da ideia de uma futura remuneração das ações humanas,
algo que se observa particularmente no antigo Egito. Embora todos os corpos tenham descido ao mundo
infernal, o Neter-khertet, como o chamavam, nem todos tinham certeza de alcançar a ressurreição. Para
consegui-la, era preciso não ter cometido nenhuma falta grave, nem na ação nem no pensamento, como
se depreende da cena da psicostasia, ou ação de pesagem da alma [vide o Papiro de Hunefer (c. 1275 a.C.) abaixo], cena
representada no Ritual Fúnebre e em muitos túmulos de múmias. O falecido seria julgado por Osíris,
acompanhado por seus quarenta e dois conselheiros: seu coração foi colocado em uma das balanças
seguradas em sua mão por Hórus e Anúbis; no outro é vista a imagem da justiça; o deus Thoth anotou
o resultado. O destino irrevogável da alma dependia desse julgamento, que ocorreu no “salão da dupla
justiça”. Se o defunto fosse encontrado com faltas irremissíveis, era presa de um monstro infernal com

51
cabeça de hipopótamo, era decapitado por Hórus ou por Smow, uma das formas de Set, no cadafalso
infernal. A aniquilação do ser era considerada pelos egípcios como o castigo reservado aos ímpios.
Quanto ao justo, purificado de seus pecados veniais por um fogo guardado por quatro gênios com cara
de macaco, entrava no pleroma ou bem-aventurança, e, agora companheiro de Osíris, ser bom por
excelência, era por ele alimentado e recriado com deliciosos manjares”.
“No entanto, o próprio justo, visto que, como homem, tinha sido necessariamente um pecador, não
chega à posse da bem-aventurança final, a não ser por meio de várias provações: falecido, descendo e
entrando no Neter-khertet, é forçado a cruzar quinze portões guardados por gênios armados com
espadas; não lhe é permitido passar antes de ter provado suas boas ações e seu conhecimento das coisas
divinas, isto é, sua iniciação. Ele, ainda, é submetido a um trabalho duro antes de chegar ao julgamento
final; tem que cultivar os vastos campos da região infernal, considerada uma espécie de Egito
subterrâneo, cortado por rios e canais. É obrigado a travar terríveis combates contra monstros e animais
fantásticos, dos quais só triunfa munindo-se de fórmulas sacramentais e de certos exorcismos que
“Do Egito chamei Meu Filho”

São João Crisóstomo crê que, com sua ida para o Egito, “o Senhor anunciava a toda a terra uma espécie de prelúdio
de bons esperanças. Como na Babilônia e no Egito ardia o incêndio da impiedade, mais que em outras partes, ao
mostrar o Senhor, desde o princípio, que os haverá de corrigir e melhorar, persuade a terra inteira a ter boa esperança.
Por isso manda os Magos para as terras da Babilônia e Ele mesmo, com sua Mãe, vai para o Egito” (SÃO JOÃO
CRISÓSTOMO, Obras, n.2, p.149).
Considero o Egito como a mais gloriosa das nações antigas. Dele os gregos tiraram grande parte de sua cultura, e
os romanos, por sua vez, foram colher na Grécia muito de sua civilização. De outro lado, a moral do povo egípcio
era superior em vários pontos à de outros povos da antiguidade. Por exemplo, ao contrário de outros povos
contemporâneos seus, recomendava ele a benignidade, o respeito do filho ao pai, da mulher ao marido e vice-versa,
do inferior para o superior etc.
No entanto, como no restante do mundo antigo, reinava na sociedade egípcia uma desigualdade desproporcionada
entre os homens. Assim, o faraó e as duas primeiras classes sociais – a sacerdotal e a guerreira – possuíam a
totalidade do território nacional, na razão de um terço para cada. Já os elementos da classe popular, embora
considerados livres (isto é, podiam mudar de emprego, de casa, etc.), não tinham qualquer possibilidade de manter
uma propriedade. Além disso, eram muito mal remunerados e viviam miseravelmente. (...) Abaixo desta última,
havia ainda um quarto grupo, que não era considerado classe social: o dos escravos. Viviam em situação pior que a
dos animais. Não usufruíam de direito algum, podiam ser maltratados à vontade pelo se- nhor, separados da família,
e votados a trabalhos penosos. (CORRÊA DE OLIVEIRA, P. Revista. n. 38 p. 16-17)
O Egito sempre se distinguiu como uma nação muito carismática, capaz de atrair e quase hipnotizar aqueles que a
analisam detidamente, quer ao contemplar suas qualidades naturais e paisagens, quer ao se deparar com os arcanos
de seu passado.
Não por acaso Deus quis que Abraão morasse durante algum tempo no Egito (cf. Gn 12, 10-20) e que José, o filho
predileto de Jacó, para lá fosse levado pelos ismaelitas e vendido como escravo a um alto funcionário real (cf. Gn
37, 1-36). O próprio Jacó se dirigiu àquelas terras com os seus a convite de José, que se tornara ministro
plenipotenciário do faraó (cf. Gn 46, 1-30). Ao longo dos quatrocentos e trinta anos de permanência no país (cf. Ex
12, 40), sua família cresceu a ponto de transformar-se numa grande nação, em condições de receber das mãos de
Moisés as Leis Divinas pelas quais deveria se reger. (…)
A nação egípcia era, pois, a mais chamada depois da nação judaica. A esse povo competia a missão de ser para a
Sagrada Família, exilada em seu território, o que a Betânia dos irmãos Lázaro, Marta e Maria seria para o Mestre
em sua vida pública, ou seja, um lugar de refúgio e descanso. E sua capacidade de atração e acolhida carismática
explica-se em função de tal desígnio divino. (CLÁ DIAS, J. S. Maria Santíssima: o Paraíso de Deus revelado aos
homens. vol. II. p.341-342)
Cada nação da Antiguidade possuía uma vocação específica com vistas a reparar o plano primeiro de Deus rompido
com o pecado original. Se os gregos reluziam por um chamado peculiar para a filosofia, os romanos para o direito,
e os hebreus eram o povo depositário da Revelação, aos egípcios, por particular dileção divina, coube receber a
herança de determinados conhecimentos científicos do Paraíso, transmitidos por Adão e Eva a seus descendentes.
Testemunha a favor dessa hipótese de Dr. Plinio o fato de ser “um povo que nunca é considerado em estado de pré-
história. Não se descobriu um estado intermediário entre o homem da caverna e o Egito organizado”. Eles, portanto,
deveriam “guardar tudo quanto sabiam de sapiencial sobre a ordem do universo, vindo do tempo do Paraíso, e partir
disso para construírem uma ordem temporal perfeita”.
Não é preciso ressaltar o quanto as fantásticas realizações dos egípcios, até hoje enigmáticas para a ciência em
seus pormenores, ganham sentido com essas afirmações. Por sua vez, a inegável atração exercida pelos mistérios do
Egito provinha do encanto natural desse povo, mais tarde, infelizmente, muitíssimo aproveitado pelo demônio para
conduzir certo filão de almas para o ocultismo. (CLÁ DIAS, J. S. São José: Quem o conhece? p. 285-286)

52
preenchem onze capítulos do referido Livro dos Mortos. Por sua vez, os ímpios, antes de serem
aniquilados, eram condenados a sofrer mil tipos de tormentos, e voltavam à terra na forma de espíritos
malignos, para perturbar e destruir os homens: eles também entravam no corpo de animais impuros”.

A relativa pureza e perfeição da moral entre os egípcios não fora forte o suficiente para impedir a
introdução, se não de castas propriamente ditas, como as da Índia, mas de classes tão privilegiadas que se
igualavam ou se assemelhavam a castas. Sabemos, pelo testemunho de Heródoto, Diodoro e outros
historiadores antigos, confirmados por descobertas modernas, que a influência política e social, os
empregos, o governo e até a propriedade são monopolizados pelas classes sacerdotal e militar. Os pastores,
artesãos e lavradores, que compunham o povoado, e, digamos, o terceiro Estado, dificilmente tinham
participação em funções públicas, nem na titularidade de terras ou imóveis, sendo sua condição bastante
semelhante àquela dos vaixás e sudras da Índia.
O grande princípio da igualdade dos homens, assim como o grande princípio da dignidade individual e
da independência, eram desconhecidos das sociedades pagãs, ainda que algumas delas vislumbrassem algo
dessas grandes verdades. Movendo-se fora da órbita da Revelação divina, eles ignoraram o que ela ensina
sobre a unidade da origem e destino final da espécie humana. É por isso que vemos que em todas as
sociedades antigas ou pagãs, seja qual for o seu grau de civilização, ou domina a instituição anti-humana e
antissocial das castas, ou domina a concepção político-socialista, ou seja, a absorção do indivíduo e até da
família pelo Estado. O duplo princípio da dignidade e independência pessoal e da igualdade dos homens,
princípio que constitui o fundamento da civilização cristã, e que é uma das razões suficientes para a sua
fecundidade indefinida e a sua poderosa força de expansão, só encontrou aceitação na antiguidade no povo
depositário da revelação divina, no povo de Abraão, de Moisés e dos Profetas.

§ 24 A Filosofia entre os Hebreus

Filosofia racional e científica, Filosofia propriamente dita ou sistematizada, não existia entre os hebreus,
nem entre os egípcios, nem entre os seguidores do mazdeísmo, exceto nos últimos séculos de sua História
nacional, em que aparecem alguns ensaios mais ou menos sistemáticos. Contudo, e graças à Revelação
divina, o povo hebreu conhecia e possuía um conjunto de verdades teológicas, metafísicas, morais e
político-sociais, que constituem uma Filosofia e uma ciência muito superiores, em termos de verdade e
pureza de doutrina, a todas as ciências e a todos os sistemas filosóficos das antigas nações e civilizações,
sem excluir as da Grécia e de Roma. Para se convencer disto, bastará expor sumariamente este conjunto de
verdades, comparando-as à medida com as ideias, máximas e práticas de outras nações e povos.

a) Frente ao panteísmo indiano, ao dualismo iraniano, ao ateísmo búdico e chinês e do politeísmo egípcio
e greco-romano, o povo hebreu, ensinado pela palavra divina, afirma a existência de um Deus único,
pessoal, vivo, eterno, transcendente, distinto e superior ao mundo, inteligente, livre, onipotente,
infinitamente santo, justo e misericordioso para com o homem.

b) O deus do bramanismo produz o homem de sua própria substância, ou melhor, o mundo e os entes
são fenômenos e evoluções da substância divina. O deus de Zoroastro e da Filosofia grega ou substitui a
unidade pelo dualismo, ou degenera em naturalismo, e, em todo caso, ou apenas vislumbra ou ignora
completamente e nega a criação ex nihilo. Somente o povo hebreu, iluminado por Deus, sabe e afirma que
o mundo e os seres que o constituem foram produzidos e tirados do nada em toda a sua substância, pela
ação onipotente, livre e infinita de Deus.

c) Deus é, pois, o Princípio e Causa do mundo e de todos os seres, não apenas em termos de sua forma,
distinção e ordem, mas também em termos de matéria, e, portanto, é causa, princípio e razão suficiente para
tudo o que constitui o mundo-universo, sem que por isso o mundo faça parte de Sua substância, nem Deus
dependa em nada ou para nada do mundo, sem o qual Ele é desde a eternidade. Até os próprios nomes e as
53
definições que as Escrituras atribuem a Deus – Qui est – Ego sum qui sum – incorporam e revelam um
conceito muito elevado e superior da divindade sobre todos os outros povos, mesmo os mais civilizados.

d) Deus é o autor, criador e pai comum de todos os homens, que, sem distinção de raça, povo ou pessoa,
são iguais entre si, porque feitos à imagem e semelhança de Deus (faciamus hominem ad imaginem et
similitudem nostram – Ad imaginem quippe Dei factus est homo); são irmãos e iguais, porque são filhos do
mesmo pai terreno e celestial, trazem o selo divino e estão todos destinados à vida eterna em Deus. É
desnecessário chamar a atenção para a imensa superioridade desta doutrina, sobre a doutrina, teorias e
máximas dos outros povos contemporâneos aos hebreus, nos quais, além da escravidão, o sistema de castas
dominava de uma forma ou de outra.

e) A imortalidade da alma e sua recompensa ou punição após a morte, e mesmo a ressurreição do corpo,
são verdades que, além de destacadas e logicamente inferidas de outros dogmas, princípios e sentenças da
Bíblia Hebraica, são consignadas explicitamente em várias de suas passagens: basta recordar e citar para o
efeito, o que se lê no Eclesiástico, no livro de Jó e no dos Macabeus, principalmente ao narrar neste último
o martírio dos sete irmãos.

f) Para Manu, e em geral para o panteísmo, o mal se origina de Deus; Zoroastro busca sua origem em
um segundo deus oposto ao Deus do bem. Moisés ensina que o mal se origina da vontade finita e criada,
ou seja, do abuso da liberdade concedida aos Anjos e ao homem, única teoria que pode ser conciliada com
a bondade infinita e criativa de Deus, a existência e origem do mal moral.

§ 25 Doutrina moral e político-social dos Hebreus

A moral dos outros povos antigos, salvo alguns preceitos puros e elevados, contém sempre máximas e
regras ora imorais ora ridículas ora tendentes à idolatria. A moral do povo judeu, resumida nos dez preceitos
do Decálogo, é a expressão mais filosófica e prática da lei natural; exclui toda imoralidade e todas as
tendências idólatras ou politeístas, e se coloca a uma distância imensa de todos os códigos morais dos outros
povos, estabelecendo como primeiro preceito e base de todos os outros, o amor de Deus acima de todas as
coisas e a regra geral do amor ao próximo
Na Índia, no Egito e mesmo em Roma, a propriedade e o domínio da terra tornaram-se direitos quase
exclusivos de certas castas ou classes. Na nação de Judá foi dividido entre todas as tribos e famílias com
perfeita igualdade: “O país – diz Deus a Moisés e ele ao povo – será dividido e distribuído por sortes entre
todos os filhos de Israel, por famílias e tribos, de modo que uma porção maior será dada aos que estiverem
em maior número, e uma porção menor para aqueles que estão em menor número”. E para que essa
igualdade não desaparecesse com o tempo, foi instituído o ano sabático ou quinquagésimo, em que as
propriedades alienadas voltavam aos seus primeiros proprietários.
É muito comum dizer que o governo do povo israelita era teocrático: esta é certamente uma afirmação
muito imprecisa, a menos que por teocracia se entenda o reconhecimento do domínio supremo de Deus
sobre todos os reinos, como Ele tem sobre o mundo inteiro. Com mais propriedade e verdade do que no
povo de Israel, a teocracia deve ser buscada no Egito, na Assíria, na Caldéia e em outras nações, cujos reis
receberam apoteose em vida e receberam culto divino, com estátuas, templos e outras manifestações
idólatras-teístas. Isso não aconteceu com os chefes e reis do povo de Judá.
“É muito estranho – escreve o pastor protestante Brunel – que o mosaísmo seja chamado de teocracia,
já que é a única verdadeira democracia da Antiguidade. É verdade que somente Deus reina em Israel;
mas Seu representante humano, Seu oráculo, por assim dizer, não é o sacerdócio, mas o povo; não é o
sacerdote, mas o cidadão... Quem governa é o povo, ou por si mesmo, ou por meio de delegados leigos,
ora com o nome de Juízes, ora com o caráter de Reis... Enquanto o sacerdote egípcio tudo possui, o
sacerdote judeu, – coisa notável! – nada possui, e, longe de alimentar os outros homens, espera e recebe
deles a sua subsistência”.
54
Parece desnecessário acrescentar, porque é
Ecclesia ex Circumcisione
bem sabido, que a condição da mulher, da criança
e mesmo do escravo entre os judeus era muito Os povos dispersos constituíram a gentilidade. Em
superior e muito diferente daquela que tinham vez de se corrigirem, tais povos resultaram nessas
entre as nações que careciam da luz da Revelação nações pagãs que conhecemos. Então Deus constitui
mosaica, e que tanto nesta parte como em muitos um povo para Si, a fim de, por meio dele, construir
outros pontos, o mosaísmo foi a preparação do uma ordem reta. Suscita então o povo hebraico, e logo
cristianismo e o prólogo do Evangelho. opera uma maravilha maior do que a anterior: nesse
povo nascerá o Messias.
Note-se bem que esta moral, tão pura e superior
Em tal povo também nascerá Nossa Senhora. A
à de outras nações, e sobretudo, que esta grande
história do Antigo Testamento é a de um povo na
ideia monoteísta, assim como as elevadas ideias Terra que, pelo menos ele, conhecia a Lei divina,
religiosas que a acompanham no povo judeu, prestava culto ao verdadeiro Deus e conhecia uma
partem do terreno histórico de um homem que ordem de coisas bem constituída. Entretanto, tal povo
nasceu, foi educado e criado no meio de um povo várias vezes viola essa ordem. Revolta-se contra
cuja moral e costumes eram a antítese do Deus, verificando-se uma decadência contínua do
Decálogo, assim como suas idéias e práticas povo eleito até o momento do nascimento do Messias.
religiosas eram a antítese do monoteísmo judaico. Portanto, outra vez um plano que não se realiza. E
As descrições que encontramos em Heródoto e em Deus aplica sua justiça. Dispersa o povo hebraico,
castiga-o, mas serve-se dos restos fiéis do povo
outros historiadores antigos sobre a moral e a
hebraico para fundar a verdadeira Igreja. E surge
religião dos povos caldeus demonstram
então a obra-prima das obras-primas da criação –
claramente que quando o ilustre emigrante de Ur excetuando a natureza humana de Nosso Senhor
Chaldaeorum abandonou sua pátria e se separou Jesus Cristo e Nossa Senhora – a Santa Igreja
de seus concidadãos, eles não estavam lá incutindo Católica, Apostólica, Romana.
nele as idéias morais e religiosas que ensinou a
seus filhos e descendentes.
A verdade é que este fenômeno histórico, a vocação de Abraão, constitui a prova mais convincente da
realidade e existência da Revelação divina. É preciso que aqui interviesse uma iluminação divina e superior,
uma influência sobrenatural; porque só assim é possível compreender como o homem vindo do ambiente
do fetichismo, o homem nascido e educado em meio à mais grosseira idolatria, de repente se torne o Pai
dos crentes, progenitor de um povo que afirma, defende e pratica a ideia monoteísta, cercado, perseguido e
acoçado por povos e nações politeístas.
A moral pura e o culto monoteísta do povo de Abraão só decaem e degeneram de forma permanente,
ostensiva, doutrinária, por assim dizer, como resultado do longo contato com nações estrangeiras durante
o cativeiro babilônico. A partir de então, germes visíveis de decomposição aparecem no seio do povo judeu,
encarnados permanentemente no culto da letra e no formalismo externo dos fariseus; no ascetismo ultra
místico dos essênios, e ainda mais na seita dos saduceus com suas doutrinas negativas e sua indiferença
religiosa.
A Religião e a moral do povo de Abraão, de Moisés e dos Profetas foram seriamente ameaçadas em sua
existência, quando o Verbo de Deus Se fez carne e habitou entre nós, para restaurá-los à sua pureza
primitiva e, sobretudo, para desenvolvê-los e completá-los, para colocar a humanidade no caminho da
verdade e da vida eterna, para ensinar o homem a adorar a Deus em espírito e em verdade. Do céu à terra
desceram então no Verbo e com o Verbo novas ideias, grandes e férteis, a cujo contato a humanidade
estremeceu, abatida na hora e prostrada no leito de dor e morte. Mas a augusta voz do Salvador ressoou em
seus ouvidos, dizendo-lhe: Surge et ambula, levanta-te e anda. E a humanidade caminhou desde então,
marcha hoje e marchará sempre, para a vitória contra o mal na vida presente, para a conquista do bem
supremo na vida futura.

55
Filosofia Grega
§ 26 Origem e características gerais da Filosofia Grega

Dotada raça grega de aptidão incontestável para a especulação filosófica, e possuindo um gênio original
independente, não tardou em dar claras mostras de sua energia intelectual e de suas tendências e aspirações
a uma civilização superior a quantas a tinham precedido na História. Assim é que, mal se tinham instalado
em sua nova pátria – depois das migrações por outros países e do contato com outras raças, como se
depreende da História –, as tradições religiosas e místicas que de outros povos herdaram os gregos
transformam-se em sistemas cosmogônicos que, junto aos mistérios religiosos, podem considerar-se
verdadeiras iniciações científicas. Aparecem, também, sentenças morais que revelam certa inspiração ao
sistema ético social, que a seu tempo receberá oportunos desenvolvimentos.
Além dos poemas homéricos, que contribuíram indubitavelmente com o movimento civilizador dos
gregos, os hinos religiosos, as sentenças morais e as concepções cosmogônicas de Orfeu, demonstram que
1200 anos antes da era cristã já existia na Grécia um corpo de doutrinas, que pode ser considerado como
uma pré-formação mais ou menos sistemática, ainda que rudimentar, da Filosofia. Quatrocentos anos
depois, esta Filosofia dava um passo a mais, graças às idéias cosmogônicas e teogônicas de Hesíodo (800
a.C.), cujas sentenças morais, bem como as sentenças ético-sociais e políticas de Epimênides48, de Ferécides
de Siro e dos sete sábios da Grécia robusteciam a
originalidade do pensamento helênico e alargavam os
horizontes da especulação filosófica.
Este período de incubação e preparação da
Filosofia Grega, contém duas manifestações ou fases
parciais: a (1) manifestação teogônica, envolta em
mitos e lendas poéticas, que alguns chamam por
essa razão Filosofia mítica, e (2) a manifestação
ético-política, chamada, não sem fundamento, por
alguns, Filosofia Sentenciária ou Filosofia
gnômica, devido à forma de seu ensino por meio
de versos e sentenças aforísticas.
Era uma opinião bem aceita entre os neoplatônicos,
entre muitos Padres da Igreja e, em geral, entre os antigos cristãos,
que o movimento inicial da Filosofia Grega – e não poucos de seus elementos – deve sua origem às religiões
e literaturas de outros povos mais antigos, e principalmente às que floresceram na Índia, Pérsia e Egito.
Alguns deles, sem dúvida, exageraram a influência das religiões asiáticas sobre a Filosofia Grega e,
também, as semelhanças entre o pensamento grego e o pensamento oriental; e, ao contrário, não poucos
historiadores e críticos modernos, defensores da originalidade absoluta da Filosofia Grega, caíram no
extremo oposto. As opiniões conflitantes de Roeth e Zeller, e os fundamentos respeitáveis nos quais ambos
se baseiam, demostram que a questão não está definida. É verdade que, de acordo com Ueberweg, este é
um problema cuja solução plena e segura depende das investigações e trabalhos relacionados ao Oriente e
ao Egito, investigações e trabalhos que ainda deixam muito a desejar.
Enquanto isso – e dadas as evidências apresentadas pelos antigos e os resultados da crítica moderna ao
assunto –, não devemos admitir uma influência imediata e direta entre o pensamento oriental e o
pensamento grego, afirmando absolutamente, como fazem alguns, que a doutrina filosófica de Pitágoras se
origina da Filosofia chinesa, como uma mera derivação desta ou que os representantes da escola eleática
são meros repetidores das escolas panteístas da Índia. Não obstante isso, pode-se muito bem pensar e
afirmar que as tradições religiosas do Oriente, as especulações astronômicas dos caldeus, os mitos e
doutrinas zoroastristas e as iniciações hieráticas do Egito, entraram muito nos sistemas da Filosofia Grega

48
Epimênides (Ἐπιμενίδης), poeta, filósofo e místico grego, viveu cerca de 600 a.C. É citado por S. Paulo em sua Epístola a Tito
(1,12), chamando-o de “profeta”. [N.T.]
56
durante seu primeiro desenvolvimento. E pode-se, até, suspeitar que eles influenciaram de maneira mais ou
menos direta e sensível na variedade das escolas e sistemas que apareceram neste período.
É muito provável, de fato, que a comunicação de Tales com os assírios e persas, bem como suas viagens
ao Egito, tenham influenciado não pouco a origem, as tendências e características da escola jônica, iniciada
pelo filósofo de Mileto.
Por outro lado, as opiniões, costumes e práticas da escola pitagórica apresentam uma afinidade notável
com certas opiniões, frases e práticas dos egípcios: o que é muito natural, dadas as relações de Pitágoras
com os sacerdotes do Egito, verdadeiros repositórios de ciência naquela época. Esta conjectura é
corroborada pela afinidade que existe entre o pitagorismo e o platonismo, cujos fundadores foram os que
mais cultivaram e frequentaram a comunicação com os sacerdotes egípcios. É conhecida a importância que
naquele país se dava à iniciação em certos mistérios religiosos, uma iniciação que provavelmente tinha
como objetivo principal, se não único, comunicar aos adeptos o significado filosófico e científico de certos
mitos populares e cultos religiosos. Isso porque, como observa M. Cousin, “é impossível que nos mistérios
não se fizesse nada mais que repetir a lenda; uma vez que repugna à lógica que se faça uma espécie de
sociedade secreta, com severas condições de admissão, para dizer lá as mesmas coisas que se dizem de
público. É necessário, portanto, que os mistérios contenham alguma coisa a mais, seja uma exposição mais
regular, seja quiçá alguma explicação, física ou moral, dos mitos populares”.
Em suma: se Zeller parece se afastar do caminho certo e da realidade histórica, negando, ou pelo menos
restringindo demais, a influência das idéias orientais na origem e no desenvolvimento da Filosofia Grega,
Roeth e, mais ainda Gladisch, evidentemente exageram essa influência. Para Zeller, a Filosofia dos gregos,
considerada em sua origem, em sua marcha e em suas evoluções, é um produto imediato e espontâneo do
espírito helênico, uma manifestação cuja razão suficiente e verdadeira deve ser buscada na reflexão
independente e pessoal dos filósofos gregos, com exclusão de qualquer influência oriental que mereça ser
levada em consideração. Não há dúvida de que esta tese do autor de “A Filosofia dos Gregos” é contestável
e relativamente exclusivista e exagerada. Mas é ainda mais exagerada a tese do Gladisch acima mencionado,
quando, depois de afirmar e provar a seu modo a influência decisiva e predominante da Filosofia Oriental
na origem e desenvolvimento da Filosofia Grega, ele a considera, especialmente em seu período pré-
socrático, como uma espécie de reprodução dos sistemas orientais. Porque, para Gladisch, a Filosofia
eleática nada mais é do que a renovação da Filosofia do Hindustão; a doutrina de Anaxágoras foi tomada
dos judeus; Heráclito reproduz o sistema zoroastrista; a teoria cosmológica de Empédocles traz sua origem
no Egito e reproduz o sistema hierático e, finalmente, a doutrina pitagórica é uma segunda edição corrigida
e aumentada da doutrina filosófica e moral dos chineses.
Os argumentos alegados por Zeller contra a tese de Gladisch demostram que está é uma tese
evidentemente exagerada e imprecisa, assim como a de Roeth, que basicamente coincide com Gladisch, se
bem que sem admitir o paralelismo greco-oriental defendido por ele, e conceder às idéias e à literatura do
Egito influência predominante na origem e desenvolvimento da Filosofia helênica.

§ 27 Divisão Geral de Filosofia Grega

Quase todos os historiadores dividem a Filosofia Grega em três períodos, mas nem todos concordam
quando se trata de indicar o tempo que abrange cada um desses períodos e as características que
correspondem a cada um. De acordo com Tennemann, (1º) o primeiro período vai de Tales de Mileto a
Sócrates, e abrange a Filosofia pré-socrática, como a chama Ritter; (2º) o segundo compreende de Sócrates
à comunicação e disseminação da Filosofia Grega entre os romanos, ou seja, todas as escolas originadas e
representadas no movimento socrático, incluindo os estoicos e epicuristas; (3º) o terceiro abrange o estado
e as vicissitudes da Filosofia Grega sob o domínio romano até seu fim no século VIII d.C., ou seja, até São
João Damasceno. Com esta classificação e idéia geral da Filosofia Grega, concordam no fundo, e com
pouca variação, Ritter e Schleiermacher.
A classificação e divisão propostas e seguidas por Hegel, contudo, se afastam um pouco mais da de
Tennemann; porque, de acordo com esse filósofo, (1º) o primeiro período vai de Tales a Aristóteles; (2º) o
57
segundo é caracterizado pela propagação e estado da Filosofia Grega no mundo romano; e (3º) o terceiro
compreende apenas a Filosofia Neoplatônica.
Sem entrar em discussão acerca do fundamento dessas opiniões, nem tampouco das de Brandis, Zeller
e outros, que se distanciam ora mais ora menos dos indicados acima, achamos a divisão adotada por
Tennemann e Ritter muito razoável e fundamentada, mas limitando a duração ou o período de tempo
indicado para (3º) o terceiro período, que, em nossa opinião, deve terminar com a escola neoplatônica de
Atenas até meados do século VI d.C.
Assim, dividiremos a Filosofia Grega em três períodos, dos quais (1º) o primeiro abrange as escolas pré-
Sócrates a partir de Tales; (2º) o segundo, as escolas desde Sócrates até sua disseminação e propagação
entre os romanos; (3º) o terceiro, o estado e as vicissitudes dessas escolas e da Filosofia Grega até o
fechamento da escola filosófica de Atenas no tempo de Justiniano. O primeiro período abrange dois séculos,
ou seja, de 600 a 400 a.C.; o segundo termina com a união ou fusão do Pórtico e da Academia, dando início
ao sincretismo alexandrino, precedido e acompanhado pelo movimento cético; sincretismo este que
representa e constitui o terceiro período da Filosofia Grega, que coexiste com a Filosofia cristã pelo período
de alguns séculos. O conjunto desses três períodos da Filosofia Grega, portanto, compõe um período total
de mil e duzentos anos aproximadamente.
Do ponto de vista doutrinário, (1º) o primeiro período da filosofia grega pode ser chamado de período
cosmológico, uma vez que as escolas de então se ocupam preferencialmente na solução do problema
cosmológico. Durante (2º) o segundo período, os filósofos, sem negligenciar a cosmologia, que também
adquire um certo tom metafísico, direcionam suas pesquisas para a lógica, a psicologia e a moralidade, ou
seja, as ciências que estão mais diretamente relacionadas ao homem; portanto, um período antropológico
pode ser chamado. (3º) Além do ceticismo e do movimento sincrético observados no terceiro período, ele
é caracterizado pela investigação do problema de Deus ou do Absoluto, ou seja, pela tendência teosófica,
representada principalmente pela escola neoplatônica. Com isso, não se trata de afirmar características
exclusivas, mas de apontar a tendência predominante e mais notável em cada um dos três períodos,
podendo-se dizer que em todos eles pulularam todos os problemas fundamentais da Filosofia, e que em
todos eles apareceram representantes mais ou menos explícitos da maior parte dos diversos sistemas
filosóficos que vemos surgindo ao longo dos séculos, se bem que mudando de fisionomia ou de roupagens
e adornos externos.
Sob outro ponto de vista, (1º) o primeiro período da Filosofia Grega pode ser chamado de período de
formação e juventude; (2º) o segundo, um período de perfeição e virilidade; (3º) o terceiro, um período
de decadência ou senilidade.
A (1º) natureza [em grego, Φύσις (physis)], ou mundo exterior, constitui o principal objeto da Filosofia
Grega durante seu primeiro período; já (2º) durante o segundo período, o principal objeto da Filosofia é o
homem [em grego, ἄνθρωπος (anthropos)] em todas as suas relações; e (3º) durante o terceiro período, a
escola mais importante e a única que apresenta uma certa originalidade, tem por objeto a Deus [em grego,
θεός (Theos)]. Portanto, pode-se dizer que os três períodos da Filosofia Grega correspondem aos três
objetos fundamentais da Filosofia.
A forma e o método científicos também estão em relação e em harmonia com os três períodos expressos.
Durante (1º) o primeiro período, predomina a observação sensível e externa; durante (2º) o segundo,
predomina a reflexão psicológica e racional; e (3º) no terceiro, ou pelo menos em sua escola principal,
predomina a intuição intelectual do misticismo panteísta.

Filosofia Grega
1º período Tales- 600a.C.- formação e natureza cosmológico observação sensível e
Sócrates 400 a.C juventude externa
2º período Sócrates- 400a.C.- perfeição e homem antropológico reflexão psicológica e
Roma 200 a.C. virilidade racional
3º período Roma- 200a.C.- decadência e Deus teosófico intuição intelectual
Justiniano 529 d.C. senilidade
58
Primeiro Período da Filosofia Grega
§ 28 Escola Jônica

Sem contar a escola ou seita dos sofistas, que pode ser considerada como a transição para o segundo
período helênico iniciado por Sócrates, o primeiro período da Filosofia Grega abrange quatro escolas
principais, que são (1) a jônica, (2) a itálica ou pitagórica, (3) a eleática e (4) a atomista, embora esta
última seja considerada por alguns, não sem fundamento, como um prolongamento e extensão da (1) escola
jônica.
De todo modo, não se pode ignorar que durante este primeiro período da Filosofia Helênica, apareceram
alguns filósofos que, sem pertencer de maneira exclusiva e sistemática a nenhuma das escolas acima
mencionadas, contribuíram para o movimento geral da Filosofia durante esse período, seja iniciando uma
nova evolução em qualquer uma das escolas acima mencionadas (Heráclito, Anaxágoras), ou inspirados
por várias delas (Empédocles), e formulando uma espécie de concepção sincrética e conciliatória.
Já indicamos acima que o caráter geral e comum a todas essas escolas e suas derivações parciais é a
predominância do pensamento cosmológico ou, se preferir, do problema físico. Os jônios e atomistas, bem
como os eleáticos e pitagóricos, não menos que Heráclito, Anaxágoras e Empédocles, se empenham,
primeiramente e sobretudo, em conhecer e determinar a matéria, a essência, a realidade que constitui o ser
ou substância das coisas particulares e, consequentemente, do Mundo-Universo. Porque é de se notar que,
para todas essas escolas e filósofos do primeiro período – exceção feita a Anaxágoras –, as substâncias
materiais e sensíveis abrangem a universalidade do ser: a realidade se identificada, no fundo, com a natureza
ou mundo visível. Nem o número dos pitagóricos, nem o ser abstrato dos eleáticos, nem o fogo de Heráclito,
representam e significam uma realidade ou substância espiritual distinta da realidade material. E essa
negação, ou melhor, essa ausência da concepção de um ser espiritual, constitui outra das características
gerais da especulação helênica em seu primeiro período.
Concentrando, agora, especificamente na escola jônica, ela se distingue pelo modo essencialmente
materialista com que planteia e resolve o problema cosmológico. O ser substancial, a essência de todas as
coisas, consiste em uma primeira matéria, água, ar, fogo, terra, ora sós ora unidas. Mas como a matéria é
de si inerte e imóvel, e as coisas variam, se transformam e se distinguem umas das outras, é necessário que
essa matéria entranhe ou um princípio interno de vida (hilozoísmo) ou, pelo menos, de movimentos
(mecanismo) vários e, portanto, as nuances e variantes que aparecem nos apoiadores e representantes desta
escola.

59
Mas, além dessas características e diferenças, a escola jônica, ainda que prescindido da escola atomística
como um ramo ou prolongamento seu, pode e deve ser dividida em duas seções, (1ª) a primeira das quais é
representada pelos três primeiros filósofos jônicos, Tales, Anaximandro, Anaxímenes e (2ª) a segunda por
Heráclito, Anaxágoras e seus sucessores. Porque se é verdade que ambos pertencem de fundo à escola
jônica por causa da matéria que reconhecem como princípio essencial e substância real do mundo, não é
menos verdade que eles colocaram o problema cosmológico em um terreno relativamente novo e especial.
Até então, só se havia tentado saber em que consiste a essência e a substância das coisas, assumindo que é
uma coisa permanente e fixa. Heráclito questiona essa segunda tese e se esforça para provar que a essência,
o ser e a substância das coisas, longe de ser uma coisa permanente, consiste precisamente na mutação, no
fieri; essa variação é a única lei invariável, movimento contínuo e incessante, a real essência das coisas.
Por sua vez, Anaxágoras inicia e resolve, embora de maneira vaga e confusa, o problema espiritualista.
Com o filósofo de Clazomene, o mundo deixa de ser uma combinação fatal de força e matéria, para se
converter em produto de uma inteligência, o resultado e a manifestação da idéia, o efeito e simultaneamente
a evidência de um ser imaterial, metafísico e transcendente ao mundo.
Ao hilozoísmo primitivo da escola jônica em seus primeiros passos, Heráclito substitui o princípio
dinâmico e a lei universal do fieri; os atomistas e Empédocles substituem o princípio mecânico; Anaxágoras
tende a desenvolver e coroar os princípios anteriores e a concepção geral da escola jônica por meio de um
princípio espiritualista.

§ 29 Tales de Mileto
ÁGUA
Tales (Θαλῆς ὁ Μιλήσιος), chamado de Príncipe da Filosofia por
Aristóteles (hujus philosophiae princeps) ou fundador da escola
jônica, nasceu em Mileto na década de 640 a.C. Se dermos crédito
a Aristóteles, sustentava que a água é o princípio, a causa e o
substrato primário de todas as coisas. Fundamentava sua opinião
no fato de que a água é a que fornece alimento e nutrição a todos
os entes. Mesmo o calor vital dos animais depende, para sua
produção e conservação, da umidade produzida pela água. No
sangue, com os demais humores e líquidos que são observados na
economia animal, bem como nos sucos e seiva das plantas, a umidade
ou o princípio aquoso predominam em
todos eles.
Aristóteles também atribui as seguintes opiniões a ele:
a) Que a terra flutua na água ou está imersa nesse elemento.
b) Que o ímã é um ser animado, já que atrai o ferro.
Cícero afirma que, além da água como um princípio material
das coisas e como um substrato geral da natureza, Tales admitiu
a existência de uma inteligência ou mente 49 , como uma força
organizadora dos entes formados ou compostos de água. Mas
nesta parte, Aristóteles merece mais crédito, ao atribuir essa
doutrina a Anaxágoras, posterior a Tales, opinião essa que tem a seu
favor o sufrágio dos críticos e historiadores mais autorizados da Filosofia.
O filósofo de Mileto também cultivou a matemática e a astronomia, um
estudo muito em harmonia e muito propício ao progresso e consolidação de sua doutrina filosófica, levando
em conta seu caráter físico-cosmológico. A ele se atribui a descoberta e primeira solução de alguns
problemas geométricos dos mais importantes, e não faltam autores a sustentar que ele previu o eclipse solar

49
Thales Milesius aquam dixit esse initium rerum, Deum autem eam mentem, quae ex aqua cuncta fingeret". De Nat. Deor, lib. I,
cap. 10.
60
que ocorreria em 585 a.C. Isso mostra que nosso filósofo possuía conhecimento astronômico nada vulgar
para o tempo e explica por que ele era geralmente considerado nos tempos antigos, não apenas como o
primeiro filósofo, mas como o primeiro geômetra e o primeiro astrônomo. Heródoto e Diógenes Laércio
falam dele como um notável homem político e, entre outros, invocam como evidência o conselho que dera
aos seus concidadãos, dissuadindo-os de formar uma aliança com Creso contra Ciro.
Tales, como quase todos os representantes da escola jônica durante seus primeiros passos, considerava
a natureza ou matéria [em grego, ὕλη (hile)] como tendo vida [em grego, ζωή (zoe)] ou animadas
(hilozoísmo) por uma força intrínseca e essencial; e povoava o mundo-universo de divindades, as quais
provavelmente não passavam para ele de manifestações mais ou menos perfeitas, mais ou menos sutis dessa
força viva, intrínseca é essencial de toda matéria, a qual constituiria para o Milésio o substrato ou realidade
de fundo de todas as coisas. Em outras palavras, os deuses de Tales são os deuses do politeísmo helênico;
diversas personificações das forças e fenômenos da natureza, o que é compatível com a teoria hilozoísta.
Além disso, seu conhecimento astronômico e meteorológico, que deve ter sido bastante notável para aqueles
tempos, a julgar pelo testemunho de alguns autores antigos 50 , se prestam à concepção naturalista do
politeísmo grego.
A teoria concreta de Tales sobre a água como princípio e substrato das coisas foi mais tarde seguida por
Hípon – natural de Samos, segundo alguns, ou de Régio, segundo outros, o qual morava em Atenas na
época de Péricles. A julgar por certas passagens de Aristóteles51, Hípon era um homem de pouco mérito
como filósofo.

§ 30 Anaximandro
ÁPEIRON
Compatriota, amigo e – segundo alguns, mas sem suficiente
fundamento – discípulo de Tales, foi Anaximandro
(Ἀναξίμανδρος) quem deu uma certa forma unitária e
panteísta à teoria cosmológica da escola jônica, afirmando
que o princípio das coisas não é a água, como Tales queria,
mas o infinito, isto é, a natureza material considerada
como unidade primitiva, potencial e indiferente em
relação aos vários entes que saem dela como de seu fundo
ou substrato comum à maneira de desenvolvimentos
parciais. Graças à antítese e oposição do calor e do frio,
umidade e secura, do fundo desse infinito, vão surgindo os
diferentes seres que aparecem no Universo sucessivamente,
para depois reentrarem nesse infinita-matéria, que vem a ser,
assim, como um substratum geral da circulação do ser e da vida, que
aparecem, desaparecem e reaparecem sob novas formas, ora similares ora diferentes. Em suma: o infinito-
princípio de Anaximandro, carrega consigo a explicação do mundo e da natureza por meio de uma espécie
de emanação e re-emanação panteísta-materialista, e apresenta alguma analogia com o Unum dos
neoplatônicos; mas mais ainda com o éter divino dos estoicos e com o fogo de Heráclito.
Deve-se ter presente que o infinito, ou melhor, o indefinido [em grego ἄπειρον (ápeiron)] de
Anaximandro, embora seja propriamente infinito por parte da quantidade ou extensão, por parte da
qualidade é apenas indefinido ou indeterminado e indiferente. As coisas têm sua origem no indefinido como
de seu primeiro e único princípio [causa material]; e isto não por uma produção, mas por uma evolução, de
modo que o mundo-universo, considerado em sua totalidade, representa um conjunto de desenvolvimentos

50
Apuleio, entre outros, diz que Tales conhecia temporum ambitus, ventorum flatus, stellarum meatus, tonitruum sonora miracula,
siderum obliqua curricula, solis annua reverticula, palavras que revelam a alta opinião que se tinha sobre o conhecimento e o
conhecimento especial do fundador da escola jônica.
51
Depois de mencionar a teoria de Tales e outros sobre o princípio das coisas, ele acrescenta: “Hipponem etenim nemo dignabitur
cum istis connumerase, propter intellectus ejus simplicitatem”. Metaphys, lib. I, cap. II
61
e reversões, – uma série indefinida de evoluções e involuções, – à essência concreta e íntima do indefinido
ou ápeiron52, do qual procedem todas as coisas.
De acordo com Anaximandro, a terra, com sua atmosfera, está
situada no centro do mundo, à igual distância dos pontos da
esfera celeste, e cercada por todos os lados e como que
imersa em uma substância sutil ou etérea. As estrelas e
as divindades celestes seriam formadas de fogo e de
ar; já a terra, em seu estado original e formação,
encontrar-se-ia em um estado líquido. A alma
humana seria uma substância aérea ou etérea
(materialismo), e todos os animais teriam sua
origem na água, de onde teriam surgido as
primeiras espécies animadas, a partir das quais
as espécies superiores – incluindo o homem –
surgiriam por sucessivas transformações
(darwinismo, transformismo), tendo origem do
peixe. Só é permanente o infinito ou ápeiron, isto é, o princípio material, que possui a vitalidade perpétua:
tanto os indivíduos quanto as espécies que saem de seu seio variam incessantemente.
Por essas indicações, pode-se ver que a escola jônica já contém germes panteístas e materialistas desde
seus primeiros passos, e germes também bastante explícitos do darwinismo contemporâneo, apesar de suas
reivindicações de novidade e originalidade.
Se dermos crédito a Cícero, Anaximandro identificava os deuses com as estrelas ou céus, e vislumbrava
uma série infinita de mundos53, muito embora críticos e historiadores da filosofia ignorem e disputem acerca
do sentido em que Anaximandro admitia a pluralidade ou série infinita de mundos. Alguns assumem, não
sem algum fundamento, que o filósofo jônico entendia por pluralidade de mundos, a pluralidade de céus.
Santo Agostinho, contudo, era da opinião – embora sua autoridade esteja longe de ser irrefragável nesta
matéria – que Anaximandro estivesse falando de mundos verdadeiros e que se referisse a uma pluralidade
sucessiva e não simultânea: Innumerabiles mundos gignere et quaecumque in eis oriuntur, eosque mundos
modo dissolvi, modo iterum gigni existimavit.
A concepção de Anaximandro é essencialmente hilozoísta, como a de Tales, já que sua matéria universal
e indefinida carrega em suas entranhas um princípio vital, uma
força motriz. Suas idéias sobre o estado primitivo, isto é,
sobre o estado líquido e úmido da terra, parecem apoiar a
opinião daqueles que fazem de Anaximandro um
discípulo de Tales, ou, no mínimo, demonstram que
as idéias do Príncipe dos Filósofos exerceram
alguma influência na teoria de seu compatriota.
Além de filósofo, Anaximandro era astrônomo e
geógrafo. Conta-se que ele construiu uma esfera para
explicar os movimentos das estrelas, e também um
mapa descritivo da terra. Não falta quem que lhe
atribua a invenção dos relógios de sol, embora seja
mais provável que o que ele fez tenha sido introduzir
entre os gregos o uso de tais relógios, conhecidos e usados
desde os tempos antigos pelos babilônios.

52
Os filósofos e historiadores não estão de acordo sobre este ponto. Alguns acreditam que o indefinido, apontado por Anaximandro
como o princípio das coisas, era um tipo de matéria caótica que contém em si os diferentes elementos da natureza material. Outros
acreditam que, na mente de Anaximandro, era um corpo intermediário entre a água e o ar.
53
“Anaximandri autem opinio est nativos esse deos, longis intervallis orientes occidentesque eos innumerabiles esse mundos”. De
Nat. Deor, lib. I, cap. X.
62
§ 31 Anaxímenes e Diógenes de Apolônia
AR
Ainda que alguns tomem Anaxímenes (Άναξιμένης) por discípulo de Anaximandro, Aristóteles – a
quem devemos supor estar mais bem informado – o apresenta como discípulo de Tales. A verdade é que
sua doutrina, se bem que tenha certa analogia com a de Anaximandro, também oferece pontos de contato e
semelhança com a de Tales.
Para Anaxímenes, o ar é a primeira causa e o substrato primeiro de todas as coisas, que nada mais são
do que modificações e transformações dessa substância, seja ela uma substância aérea sui
generis, seja o ar comum ou atmosférico, o que é difícil de precisar com certeza. Nessas
transformações, ou seja, na origem, constituição e distinção das coisas, a condensação
e a dilatação do ar desempenham um papel importante, uma vez que a formação, as
mudanças e as diferentes fases dos corpos devem sua origem a esse movimento perpétuo
de condensação e dilatação. Assim, por exemplo, o fogo nada mais é do que ar rarefeito
ou dilatado; a água e seus vários estados e derivações, como neve, nuvens, gelo, etc., são
ar em diferentes graus de condensação; e essa mesma condensação, levada a certos graus, dá origem e
explica à formação da terra, pedras e metais.
Parece que não há necessidade de dizer que, para Anaxímenes, a alma humana nada mais é do que uma
modificação ou transformação do ar, como substrato e causa primeira de todas as coisas; porque uma das
características da escola jônica em sua primeira época é o materialismo psicológico, consequência
inevitável de seu monismo material e hilozoísta.
Em conformidade com essas idéias e, acima de tudo, em relação com o princípio fundamental de sua
teoria cosmológica, a divindade se identifica com o ar imenso, infinito e em perpétuo movimento –
“immensum, et infinitum, et semper in motu”, na expressão de Cícero –, que dá origem, existência e
propriedades ou atributos a todas as coisas, e que constitui seu fundo essencial é real. Assim, conforme o
supracitado Cícero, para Anaxímenes, o princípio-ar é o Sumo Deus. Cremos, contudo, que quando Santo
Agostinho diz que, para Anaxímenes, os deuses procedem ou são feitos de ar 54 , tenha expressado o
pensamento do filósofo jônico com mais precisão e exatidão.
Alguns escritores antigos atribuíram a Anaxímenes a descoberta da obliquidade da elíptica. O certo é
que ele considerava a terra como um corpo de figura plana, colocado no centro do mundo, cercado e
transportado pelo ar, assim como os astros.
O cretense Diógenes de Apolônia (Διογένης ὁ Ἀπολλωνιάτης) floresceu depois
de Anaxímenes, reconhecendo ou afirmando, como este, que o ar é a causa primeira
e universal e substrato de todas as coisas. Foi contemporâneo de Anaxágoras e,
enquanto este comunicava à escola jônica uma direção espiritualista com
tendências ao verdadeiro teísmo, Diógenes se esforçava para preservar a
tradição essencialmente hilozoísta e materialista que predominava naquela
escola desde a sua origem.
Diógenes, como Anaxímenes, apontava o ar como a origem e essência de todas
as coisas, sem excluir a alma humana, que ele considerava como uma derivação muito sutil desse primeiro
princípio. A julgar pelas indicações de Aristóteles, o filósofo de Apolônia era da opinião de que nossa alma,
só conheça as outras coisas, na medida em que e porque contenha em si o ar, primeiro princípio e substrato
de tudo55, o qual, em razão de sua própria sutileza, é a causa dos movimentos vitais.
Simplício e alguns outros comentadores de Aristóteles supõem que Diógenes considerasse a razão ou
pensamento como uma propriedade ou força inerente ao princípio-ar das coisas. Esse fato provaria que a
concepção espiritualista de Anaxágoras teria exercido alguma influência sobre Diógenes, e que este teria
tentado conciliar as idéias do filósofo de Clazomene com a doutrina geral da escola jônica.

54
“Omnes rerum causas (Anaximenes) infinito aeri dedit; nec Deos negavit aut tacuit; non tamen ab ipsis aerem factum, sed ipsos
ex aere factos credidit.” De Civit. Dei, lib. VIII, cap. II.
55
“Diogenes autem, sicut et alii quidem, aerem hunc opinatur omnium subtilissimarum partium esse et principium, et propter hoc
cognoscere et movere animam; secundum quidem quod primum est, et ex hoc reliqua cognoscere; secundum quod vero
subtilissimum est, motivum esse”. De Anima, lib. I, cap. III
63
Sexto Empírico e alguns outros mencionam um tal Ideo de Himera, do qual pouco mais se sabe além de
que sua doutrina coincidia com a de Anaxímenes, acerca da solução do problema fundamental da Filosofia
naquela época. Ideo, como Anaxímenes, considerava o ar como o princípio essencial e primitivo das coisas,
embora não se saiba se ele se referisse ao ar comum, ou mais precisamente, a um fluido intermédio entre o
ar atmosférico e o fogo.

§ 32 Heráclito
FOGO
Este notável filósofo, que floresceu em Éfeso nos anos 500 a.C., pertence à escola jônica tanto por sua
terra natal quanto pela essência de sua doutrina; embora tenha semeado nela sementes que seus sucessores
desenvolveram, e pensamentos novos e superiores àqueles que até então haviam predominado nesta escola.
E, de fato, segundo Heráclito:
1º. A substância comum e o elemento primordial de todas as coisas é o fogo, ou uma substância etérea,
LÁGRIMAS DE HERÁCLITO ardente e sutil, uma substância que, a julgar pelas
defendidas em Roma pelo Pe. Antonio Vieira propriedades e efeitos que atribui a ela, é o começo, meio
contra o riso de Demócrito e fim das coisas. Deste ponto de vista, a doutrina do
filósofo de Éfeso coincide com a da escola jônica.

2º. Todos os seres deveriam ser considerados, e o


seriam de fato, meras transformações e derivações desse
fogo primordial; e, a seu tempo, esses mesmos seres ou
substâncias converter-se-iam em fogo etéreo, por meio de
várias combinações e transformações, ora depurativas ora
descendentes.

3º. Essas transformações são fatais e universais: fatais,


porque estão sujeitas ao Destino, isto é, a uma lei fatal e
indeclinável, que é independente dos deuses e dos
homens; elas são universais, porque se estendem a todos
os seres sem exceção. O universo pode, portanto, ser
considerado como o resultado de duas grandes correntes;
uma cujo processo é de cima para baixo (transformação
do fogo primevo em ar, vapor, água, terra etc.), e outra
cujo processo é de baixo para cima (transformação de
“Entrando, pois, na questão, se o mundo é pedras e metais em água, disso em vapor, disso em ar,
mais digno de riso ou de pranto, e se à vista do disso em fogo etc.); de maneira que todas as coisas
mesmo mundo tem mais razão quem ri, como surgiriam do fogo ou éter primevo e retornariam a ele em
ria Demócrito, ou quem chora, como chorava períodos determinados.
Heráclito, eu, para defender, como sou
obrigado, a parte do pranto, confessarei uma
coisa e direi outra. Confesso que a primeira 4º. O éter ou fogo, que é o próprio Deus, e que constitui
propriedade do racional é o risível, e digo que o fundo essencial e a substância primeira do mundo,
a maior impropriedade da razão é o riso. O permanece eternamente, mas a coleção ou conjunto dos
riso é o sinal do racional, o pranto é o uso da seres que compõem o universo periodicamente aparece e
razão. Para confirmação desta, que julgo
desaparece: deste ponto de vista, o mundo nasce e morre,
evidência, não quero mais prova que o mesmo
mundo, nem menor prova que o mundo todo. começa e termina a intervalos predeterminados e
Quem conhece verdadeiramente o mundo, periódicos.
precisamente há de chorar, e quem ri, ou não
chora, não o conhece”. 5º. Assim como naquele instante que pensamos pro
priori como a primeira derivação, isto é, o
desenvolvimento do primeiro mundo, havia apenas fogo primevo, eterno e divino (Deus), assim também
64
toda vez que um mundo desaparece pela combustão, uma vez que sua evolução periódica é concluída
(Estoicos), apenas Deus permanece, isto é, o fogo divino e eterno em seu estado primevo, no qual e por
meio do qual surge o segundo mundo, ao qual sucederá um terceiro e assim por diante desde toda eternidade
para toda eternidade. Disso se infere que a essência das coisas – não do fogo primevo, mas o ser do
Universo, enquanto conjunto de naturezas finitas, determinadas e especiais – consiste no fluxo e refluxo
perpétuos, no movimento contínuo delas; é um ser-movimento, fluens semper, como escreve Aristóteles.
O mundo, como um ser permanente, é uma mera ilusão dos sentidos. A essência das coisas consiste na
mudança contínua, no devir (fieri), no trânsito perene do não-ser para o ser e do ser para o não-ser, ou
melhor, na amálgama passageira e a cada instante variada do ser e do não-ser.

6º. A vida vegetal, a vida animal e a intelectual, são diferentes manifestações de fogo celestial ou
primevo, resultantes do choque e da combinação das duas correntes (de cima para baixo e vice-versa) que
se desenvolvem dentro dessa substância primordial e que constituem sua lei geral. O bem e o mal, a vida e
a morte, o ser e o não-ser, são confundidos e identificados em harmonia universal (hegelianismo, a idéia =
fogo primevo; a lei dialética = destino), que resulta da luta e contradição das duas correntes contrárias já
indicadas, das quais uma tende a transformar o éter em matéria terrena, e a outra tende a transformar a
matéria em fogo etéreo, em ser divino.

7º. A alma humana é uma emanação superior do fogo celestial e primevo; é mais perfeita, pois é mais
seca, etérea e sutil, e se renova, desenvolve e conserva junto a esse fogo primevo através da sensação e da
respiração. O mesmo, em proporção, deve ser dito dos deuses, gênios e demônios que povoam o mundo.

8º. Além dos sentidos, a alma humana possui a razão, que é como uma semelhança e derivação imediata
da razão divina (o fogo primevo) e um órgão perceptivo superior aos sentidos.

9º. Por meio da razão, o homem pode perceber o verdadeiro, o que é eterno e permanente no fluxo
perpétuo das coisas, isto é, o fogo primevo e a lei fatal do Destino, as únicas coisas que podem ser chamadas
de permanentes na teoria de Heráclito.

10º. Como os sentidos percebem apenas as coisas que acontecem ou variam sem cessar, eles são
incapazes de perceber a verdade, e todo conhecimento que se baseia no testemunho e na percepção dos
sentidos é falso e enganoso em si mesmo.

§ 33 Crítica a Heráclito

A doutrina de Heráclito coincide no fundo e substancialmente com a que caracteriza a escola jônica. O
fogo ou éter primevo está para o filósofo de Éfeso, como a água para Tales e o ar para Anaxímenes. No
entanto, sua doutrina sobre o fluxo perpétuo ou fieri das coisas, sobre a inadequação e impotência dos
sentidos para perceber a verdade acerca da verdadeira unidade do ser ou substância primitiva, em meio e
apesar da pluralidade de fenômenos do mundo, denota e revela que a escola eleática exerceu alguma
influência em seu espírito e na elaboração de suas teorias. Mas essa influência parcial não exclui a
predominância do pensamento cosmológico da escola jônica, e é por isso que nos parece pouco fundada a
opinião de alguns autores, entre os quais Hegel, que só veem na Filosofia de Heráclito um ensaio de
conciliação ou harmonia entre o ser e o não-ser, tão brutalmente opostos na teoria eleática.
Já está indicado que a doutrina de Heráclito contém o germe de vários sistemas filosóficos posteriores
e apresenta afinidades e analogias notáveis com o estoicismo e o hegelianismo. Basta lembrar, para esse
fim, a doutrina dos estoicos sobre a origem e o fim do mundo pelo fogo, sobre o destino e sobre a alma do
universo e das almas particulares. No que diz respeito ao hegelianismo, basta olhar para a doutrina de
Heráclito acerca da formação dos seres por meio da oposição, luta e mistura de ser e não-ser; sobre a lei ou
destino fatal que governa essa luta, e sobre a transformação evolutiva e progressiva, através da qual as
65
substâncias terrestres chegam por gradações sucessivas e ascendentes até se converterem em éter ou fogo
primevo, que é o deus do Filósofo de Éfeso.
Heráclito fecundou, também, o pensamento grego, depositando nele as sementes, ainda que
rudimentares e muito incompletas, da psicologia e da fisiologia. O que, juntamente com a nova fase e o
notável desenvolvimento que ele comunicou à escola jônica, levantando ao mesmo tempo o problema da
pluralidade e da distinção dos seres, demonstra a relativa originalidade de seu gênio, e que não sem razão
ocupa um lugar de destaque entre os filósofos do período pré-socrático.
É necessário reconhecer, no entanto, que o que distingue e caracteriza a doutrina de Heráclito, o que
constitui e representa a idéia central de sua concepção filosófica, é o fieri das coisas, é a luta e a contradição
perpétua do ser e do não-ser, como a lei necessária da existência de seres cósmicos e medida de sua
realidade. Por outro lado, esse movimento perpétuo dos entes, em meio à permanência, imutabilidade e
eternidade do Ser; essa percepção de objetos fugazes e ilusórios por parte dos sentidos, entranha o
pleiteamento implícito e inicial do problema crítico, por causa da profunda distinção que ele supõe e
estabelece entre a percepção sensível e a racional, entre os sentidos e a razão e, consequentemente, entre a
aparência e a realidade, entre o fenômeno e o númeno. Os sofistas, que mais tarde deram trabalho a Sócrates,
aproveitaram essa doutrina de Heráclito para estabelecer e propagar suas conclusões céticas.
Além disso, a teoria de Heráclito tem, por assim dizer, o mérito de ter servido de pretexto e de ponto de
partida para Platão formular sua grande teoria das idéias. Porque – como Aristóteles56 indica com suficiente
clareza – o que principalmente induziu Platão a excogitar sua teoria das idéias foi a consideração da
mobilidade e do fluxo perpétuo de coisas sensíveis, e a consequente impossibilidade do sensível servir
como objeto e matéria para a ciência.

§ 34 Anaxágoras e seus discípulos

A partir de Heráclito, e graças em parte às suas teorias e aos novos problemas que planteou de maneira
mais ou menos explícita no campo da Filosofia, aparecem duas direções diferentes na
escola jônica, a saber: [1] uma teísta-espiritualista, representada por
Anaxágoras, e [2] outra atomista-materialista, representado por Leucipo e
Demócrito.
O fundador da [1] primeira escola foi Anaxágoras (Ἀναξαγόρας),
natural de Clazomene, nascido cerca de 494 a.C. Manifestou ao longo de
sua vida um zelo extraordinário pela ciência, a ponto de fazer consistir o
destino e a perfeição suprema do homem na contemplação das coisas
celestiais e no conhecimento da natureza. Depois de ter filosofado em sua
terra natal, estabeleceu residência em Atenas, centro da civilização helênica em
sua época. Supõe-se que ele tenha sido o primeiro filósofo a ensinar publicamente na cidade de Minerva,
tornando-se, por esse motivo, o fundador das grandes escolas filosóficas que mais tarde brilharam na terra
natal de Platão. Pode-se até mesmo afirmar que foi Anaxágoras quem transplantou a Filosofia Grega para
Atenas, que até então tinha sua sede principal nas cidades da Jônia. Todos esses méritos não foram
suficientes para evitar perseguições e calúnias causadas pela inveja, ignorância e superstição. Acusado de
favorecer os persas e acusado, principalmente, de impiedade – porque não reconhecia a divindade do sol,
nem aprovava as populares crenças e práticas politeístas e supersticiosas – chegou a ser preso, apesar dos
esforços de seu amigo Péricles57 em salvá-lo, e mal conseguiu escapar para Lampsaco, onde morreria cerca

56
Acerca deste ponto, eis como expõe o Estagirita: “Post dictas philosophias, disciplina Platonis supervenit. Cum Cratillo namque
ex recenti adolescentia conversatus, et Heracliti opinionibus assuetus, tanquam omnibus sensibilitus semper defluentibus, et de eis
nonexistent scientia, haec quidem postea ita arbitratus est... Impossibile enim (putavit), definitionem communem cujuspiam
sensibilium esse, quae semper mutantur; et sic talia entium ideas appellavit”. Metaphys, lib. I, cap. V.
57
O mais célebre estadista ateniense, Péricles (495-429 a.C.) foi um dos principais partidários da politéia em Atenas e a maior
personalidade política do século V a.C. [N.T.]
66
de 428 a.C. Diógenes Laércio afirma que sua memória era celebrada com feriados religiosos pelos
habitantes de Lampsaco.
Embora, como veremos mais adiante, Anaxágoras não pertença em rigor à escola jônica, sobre a qual e
fora da qual paira sua teoria cosmogônica e teológica; ele, no entanto, recebe esse apelativo e entra na série
dos representantes dessa escola, não apenas por causa de sua terra natal e professores, mas também porque,
a exemplo dos característicos representantes dessa escola, ocupa-se quase exclusivamente das coisas físicas
e dá soluções análogas às dos demais jônicos aos problemas referentes à origem intrínseca imediata e à
constituição substancial dos corpos.

Para o Filósofo de Clazomene:

a) os corpos seriam compostos de elementos primitivos, simples e indivisíveis [N. T. note-se já que
indivisível em grego é átomo], os quais difeririam entre si em essência e qualidade (ainda que alguns
historiadores da Filosofia, suponham que sejam semelhantes entre si). Anaxágoras vero – afirma Aristóteles
– infinitatem similium partium. De todo modo, parece verdade – a julgar por algumas passagens do próprio
Aristóteles, entre as quais se destaca a encontrada no primeiro livro De Generatione et Corruptione – que
para Anaxágoras e seus discípulos, os elementos ou primeiros princípios das substâncias, são mais simples
e primitivos, menos compostos do que a terra, a água, o ar e o fogo, os quais Empédocles e outros jônicos
consideravam como princípios simples58 e primeiros elementos dos corpos: Illi autem [anaxagorici], hæc
quidem simplicia et elementa esse; terram autem, aquam, et ignem, et āerem, composita. Seja o que for que
isso signifique, é muito provável que, na opinião de Anaxágoras, a variedade das substâncias materiais, não
menos do que as diferenças e a diversidade de suas propriedades e atributos, resulta da variada combinação
desses elementos primitivos, dotados de diferentes qualidades: a predominância de certos elementos e as
qualidades que são inatas a eles, determine a existência e manifestação dessas ou daquelas propriedades no
corpo. Portanto, de acordo com Anaxágoras, a composição e a decomposição são a origem imediata da
existência e destruição de todas as substâncias e representam as duas grandes leis gerais da natureza. Em
seu estado original, os elementos primitivos das coisas eram confusamente misturados e como que
constituindo uma massa ou substância caótica, até serem ordenados por Deus, isto é, pela Inteligência
Suprema59.

b) o pensamento psicológico de Anaxágoras é bastante obscuro e duvidoso. De acordo com alguns, ele
ensinou que a Inteligência Suprema é o princípio comum e formal da vida, sensibilidade e razão, de modo
que a razão do homem, o conhecimento sensível dos animais e a vida das plantas, são coisas idênticas em
essência, e só se diferenciam e distinguem em seus modos de manifestação, por causa da organização
diferente das substâncias. Em nosso sentir, contudo, é mais verdadeira, porque mais conforme ao espírito
geral de sua Filosofia teístico-espiritualista, a opinião daqueles que afirmam que, para Anaxágoras: (1º), a
Inteligência Suprema é o princípio, não formal, mas eficiente60 da vida nas plantas, do conhecimento nos
animais e da razão no homem; (2º), que quando ele diz que a organização é o que determina as diferentes
manifestações dessas substâncias, significa apenas que elas convêm ou se assemelham em possuir um
princípio vital, isto é, em serem substâncias animadas. Isso é ainda mais provável, já que nosso filósofo
distingue entre alma, que ele reconhece e chama de princípio de vida, e razão propriamente dita, a qual
considera como um atributo do espírito. Além do que,

58
Simples significa aquilo que não é composto. [N.T.]
59
Note-se a distinção do conceito revelado de criação, segundo o qual Deus não ordena o que estava em caos; mas imprime ordem
às coisas na medida em que as cria ex nihilo i.e. do nada. O conceito de criação não aparecerá propriamente na Filosofia sem o
influxo da Revelação; o que dá uma originalidade à Filosofia Cristã ou mesmo vetero-testamentária na medida em que a há. [N.T.]
60
Note-se que somente em Aristóteles serão distintamente explicitados os quatro modos de causar, a saber, formal, material,
eficiente e final. De modo que a confusão das causas se explica pela carência de explicitação. [N.T.]
67
c) sua doutrina sobre a verdade e seu critério, torna esta segunda opinião mais fundamentada, já que, de
acordo com Anaxágoras, pertence apenas à razão e não aos sentidos julgar das coisas, reconhecendo a razão
como critério de verdade61.

No entanto, o verdadeiro mérito de Anaxágoras, sua especial glória como Filósofo, é ter arrancado a
escola jônica das correntes panteísta-materialistas, em cujo fundo vinha-se agitando de uma maneira mais
ou menos inconsciente, para colocá-la nas correntes mais puras do teísmo-espiritualista. Até então, a escola
jônica não conhecia outra divindade além de uma força cósmica inerente à matéria e nela inata, princípio
seu necessário de movimento e de vida, assim como de suas combinações e transformações, uma espécie
de alma universal que, em união com a matéria, constitui o mundo, ser único informado, movido, vivificado
e animado exclusivamente por essa força imanente que se assemelha à Força de Büchner 62 e dos
materialistas nossos contemporâneos. A esta lei que determinaria os movimentos da matéria e suas várias
transformações operadas por essa força imanente, foi chamada por uns causalidade e por outros destino, o
qual, seja dito, como lei de transformação cósmica, tem muita analogia com a lei dialética hegeliana.
Anaxágoras, depois de demonstrar que o acaso e o destino representam uma hipótese absurda que carece
de significado, estabelece e demonstra que a ordem e a harmonia que reinam no mundo exigem a existência
de uma Inteligência Superior ao mundo e independente dele em Seu ser e essência. Essa inteligência não
tem nada em comum com outros seres; é eterna, possui poder infinito, e é a ordenadora do mundo com
todos os seus seres por meio dos elementos primitivos, eternos e indivisíveis, e que rege e governa esses
mesmos seres. Não é preciso dizer que, sem o conceito de criação, o filósofo de Clazomenes foi capaz de
deixar o terreno panteísta-materialista da escola jônica, elevando-se ao conceito de um Deus pessoal e
inteligente, ordenador do mundo, superior a ele e a causa primeira de seu movimento, ordem e conservação,
mas não pôde sair do terreno dualista, admitindo a existência de uma matéria eterna em estado de caos, à
qual Deus teria comunicado movimento, ordem e vida.
É justo acrescentar, no entanto, que o pensamento do filósofo de Clazomenes sobre este ponto-chave de
sua doutrina não é tão explícito e completo quanto seria de se desejar, ao menos se tomarmos por base o
testemunho tão autorizado e competente de Aristóteles. Este supõe e indica às vezes que a Inteligência
Suprema admitida por Anaxágoras seria o primeiro princípio de movimento (dicens intellectum movisse
omnia), o primeiro motor ou agente, o verdadeiro princípio de todas as coisas (principium maxime omnium)
e, além disso, o princípio mais simples entre todos, princípio transcendente e puro63; mas, ao mesmo tempo,
vemo-lo outras vezes levantando dúvidas acerca do pensamento genuíno de Anaxágoras, e até mesmo
censurando-o por fazer um uso ex machina da Inteligência divina para explicar a origem e a constituição
do mundo: Nam et Anaxagoras, tanquam machina utitur intellectu ad mundi generationem.
Quanto à origem imediata e à constituição interna dos seres, Anaxágoras professava opiniões que
revelam um estado imperfeito das ciências físicas e que não se elevam muito acima das opiniões comuns à
escola jônica. Assim vemo-lo afirmar que:
a) a lua seria habitada da mesma forma que a terra;
b) o sol seria uma massa de pedra incandescente;
c) o céu estaria cheio de pedras, algumas das quais às vezes cairiam sobre a terra, explicando, assim,
a existência e a queda dos aerólitos;
d) as plantas nasceriam espontaneamente de germes e sementes contidos na atmosfera que rodeia a
terra; e
e) os animais, de modo análogo, teriam sua origem de germes ou princípios vitais, que, em vez de
estarem contidos no ar, teriam caído do céu.
Sobre esse assunto, o testemunho de Diógenes Laércio e de outros historiadores da Filosofia é
confirmado pelo de Santo Ireneu, quando ele escreve: Anaxágoras dogmatizavit, facta animalia

61
Já entramos, com Heráclito, no problema dos sentidos como critério de verdade. [N.T.]
62
Ludwig Büchner (1824-1899) propunha um materialismo radical em que a evolução, aos moldes darwinianos, seria condicionada
por processos mecânicos, excluindo toda causa final. [N.T.]
63
“Verutamem, intellectum ponit (Anxágoras) principium maxime omnium; solum enim dicit ipsum, eorum quæ sunt, simplicem
esse, et immixtum et purum”. De Anima, lib. I, cap. III.
68
decidentibus e coelo in terram seminibus. Contudo, mesmo nisso, Anaxágoras sabia como se elevar acima
da generalidade de seus predecessores e contemporâneos; porque, enquanto estes confundiam e
identificavam a alma sensível dos animais com a intelectual, Anaxágoras distinguia as duas, a julgar por
várias passagens de Aristóteles64.
Os discípulos e sucessores de Anaxágoras, Arquelau de Mileto e Metrodoro de Lampsaco, não quiseram
ou não souberam preservar pura a tradição de sua doutrina teísta-espiritualista, formando uma espécie de
sincretismo e fusão entre a doutrina de seu mestre Anaxágoras e a panteísta-materialista da escola jônica.
Essa degeneração e afastamento das doutrinas e tendências de seu mestre é manifesta especialmente em
Arquelau, cuja doutrina sobre a moral e o direito resume Diógenes Laércio na seguinte proposição: “Os
homens nasceram espontaneamente da terra; eles imediatamente fundaram cidades, criaram as artes e
estabeleceram as leis: a diferença entre o justo e o injusto não está fundada na natureza das coisas, mas
unicamente nas leis positivas”. Como se pode constatar, essa proposição tira o mérito de originalidade do
famoso Hobbes e dos ateus e materialistas de nossos dias.
De todo modo, a escassa influência que o princípio espiritualista exerceu sobre seus discípulos de escola
é vantajosamente compensada pela influência poderosa e eficaz que exerceu sobre Péricles, Eurípides e,
mais ainda, sobre Sócrates, cujo principal mérito é de ter se apropriado e desdobrado o princípio teísta-
espiritualista de Anaxágoras, aplicando-o, não apenas à ordem física, mas à metafísica e à moral.

64
Entre as quais, merece ser citada a seguinte: “Anaxagoras autem videtur quidem aliud dicere animam et intellectum... Solum
enim ipsum (intellectum) dicit, eorum, quae sunt, simplicem, esse, et immixtum, et purum”. De Anima, lib. I, cap. II.
69
§ 35 Escola itálica ou pitagórica

Esta escola chama-se itálica por ter tido sua sede na Itália, ou seja, naquela parte da península italiana
que nos tempos antigos era chamada de Magna Grécia, por causa das muitas cidades que os gregos
fundaram lá. A denominação de pitagórica vem de seu fundador Pitágoras, Filósofo mui célebre
antiguidade, sobre o qual muito se escreveu tanto nos tempos antigos quanto nos modernos, sem que esses
escritos tenham conseguido dissipar a obscuridade e as dúvidas que existem sobre seus feitos e doutrinas.
Funda-se a dúvida sobre o fato de não existirem escritos que tragam um selo de indubitável autenticidade
em relação a Pitágoras e nem sequer a seus primeiros discípulos. Mesmo que admitamos a autenticidade
dos Fragramentos de Filolau – autenticidade que não poucos críticos rechaçam ou põem em cheque – deve-
se recordar que ele floresceu quase um século depois de Pitágoras. Nem os famosos Versos Áureos, nem os
escritos atribuídos a Timeu de Lócrida65, a Arquitas66 e a Ocelo Lucano67 têm a autenticidade suficiente
para servirem de guia seguro nessa matéria.
Por isso – como observa oportunamente Nourrison – “não existe, na primeira Antiguidade, uma
personagem menos conhecida e, ao mesmo tempo, mais popular do que Pitágoras. Seu nome recorda em
todos os espíritos a ideia de metempsicose, ao mesmo tempo em que nos lembra o preceito que proíbe
comer carne animal. Todos os séculos prestaram homenagens brilhantes à sua memória. Platão e Aristóteles
acatam sua grande sabedoria. Ao declinar o paganismo, Porfírio e Jâmblico68 tomam seu nome para contra-
arrestar as novas crenças que tomam tudo. O cardeal Nicolau de Cusa69, no século XV, e Jordano Bruno70
no próximo, adotam e propagam seus ensinamentos. Leibnitz descobre em sua doutrina a substância mais
pura e sólida da Filosofia dos antigos”.
A Franco-maçonaria – acrescenta Nourrison – e, no século XVIII as Sociedades de
Harmonia, anunciavam a restauração do pitagorismo. Finalmente, entre nossos
contemporâneos há sonhadores que se apresentam com esta doutrina duvidosa e oculta,
mas, uma vez que ela não se encontra consignada em nenhum escrito autêntico, e nem
sequer nos Versos áureos, atribuídos ordinariamente a Filolau, não conseguem
fundamentar-se com certeza neste discípulo de Pitágoras. Ao falarem, pois, de Pitágoras,
65
Filósofo pitagórico do século V a.C., natural de Lócrida, é a personagem título de um dos Diálogos de Platão.
66
Arquitas de Taranto foi um pitagórico do século V a.C., discípulo de Filolau e amigo de Platão. É considerado o pai da mecânica.
67
Um dos 218 pitagóricos listados por Jâmblico. Floresceu no século VI a.C.
68
Jâmblico da Calcedônia (245-325 d.C.) é famoso por seu compêndio da filosofia pitagórica; e Porfírio de Tiro (234-304 d.C.) foi
discípulo e sucessor de Plotino na direção do neoplatonismo. São contemporâneos e se associaram em Roma, dado o interesse de
Jâmblico nos trabalhos de Porfírio.
69
Cardeal alemão grande propulsor do humanismo renascentista.
70
Ocultista hermético, foi religioso dominicano. Condenado por heresia pelo Santo Ofício, foi executado no Campo de’Fiori no
ano de 1600. Sua fama deve-se mais à sua condenação do que a seu pensamento.
70
seguem a tradição filosófica, o dito comum, quase a fábula, mais propriamente que os
testemunhos autênticos e os textos irrecusáveis71.

De todo modo – e concedendo, desde já, que a escola pitagórica entranha obscuridade, dúvidas e
incertezas acerca do significado concreto de suas doutrinas e teorias –, o pitagorismo indubitavelmente
representa e manifesta certo progresso em relação à escola jônica e já traz em si uma nova fase na
abordagem do problema filosófico durante este primeiro período da Filosofia Grega. A escola jônica
levantou e resolveu o problema cosmológico – o qual problema coincide com o problema filosófico durante
o período pré-socrático – no campo material, sensível e contingente e suas especulações foram limitadas e
circunscritas ao mundo externo, sem que o homem e Deus, sem que a psicologia, a moralidade e a teodiceia
atraíssem sua atenção. A escola itálica eleva o problema cosmológico do terreno puramente material e
sensível ao campo matemático, dando-lhe um aspecto mais racional e profundo, um modo de ser mais
universal e científico.
Como resultado e consequência dessa maneira superior de colocar e resolver o problema filosófico da
época, a escola itálica também se distingue e se sobressai à jônica pela universalidade de suas soluções,
formulando uma espécie de sistema relativamente filosófico, geral e complexo, no qual, ao lado das noções
cosmogônicas, aparecem idéias e noções relacionadas com a psicología, a moral e a teodicéia, por mais que
essas idéias sejam em extremo
confusas, incompletas e, sobretudo,
pouco científicas. Porque a verdade
é que essas idéias, em sua maior
parte, trazem sua origem não da
especulação filosófica, mas das
tradições religiosas e do ensino
hierático nos quais o fundador desta
escola provavelmente se inspirou,
graças às suas viagens pelo Egito.
Assim, alguns consideraram a
doutrina ou Filosofia da escola
itálica como uma concepção
sincrética resultante da amálgama e
da combinação do elemento grego
com o elemento oriental. Apreciação
esta que não é sem fundamento,
como veremos mais adiante, se se
levam em conta certas opiniões e
teorias dos pitagóricos. Esta
amálgama de tradições hieráticas e
idéias filosóficas, a exposição destas
últimas por meio de reminiscências
mitológicas e, sobretudo, o abuso de
fórmulas matemáticas, representam
os defeitos capitais, ou, pelo menos,
os mais generalizados e
característicos da escola fundada por
Pitágoras.

§ 36 Pitágoras

71
NOURISSON. Tableau des progrès de la Pensée humaine depuis Thales juqu’à Hegel, pag. 24.
71
Descartando, na medida do possível, as fábulas das quais ele foi objeto, depurando a tradição histórico-
filosófica, e aderindo principalmente aos dados e notícias que encontramos nas obras de Platão e Aristóteles,
podemos afirmar e estabelecer com bastante segurança o que se segue.
Pitágoras nasceu em Samos, pelo ano de 582 a.C., e, depois de
ter escutado as lições de Tales de Mileto ou, mais
provavelmente, de Ferécides e Anaximandro, viajou pelo
Egito, a Pérsia e até pela Índia ou a China (como alguns
autores pretendem), estudando a Filosofia e as ciências
desses povos, e sendo iniciado em seus mistérios
religiosos; após o que, não querendo ou não podendo
fundar escola em sua terra natal, tiranizada por
Polícrates, foi para a Itália e se estabeleceu em Crotona.
Fundou e organizou nesta cidade uma escola, ou
melhor, uma sociedade, que, sendo filosófica, política e
religiosa, adquiriu uma grande celebridade e até parece
ter exercido uma influência notável e decisiva nas
vicissitudes políticas das principais cidades da Grande
Grécia.
Não há dúvida de que, na escola de Pitágoras, além da doutrina
exotérica ou pública e geral, havia outra doutrina esotérica, cuja
iniciação foi concedida apenas aos privilegiados, depois de passar por vários testes e purificações
estabelecidos para esse fim. O que não se sabe, nem é fácil de descobrir, é o que constituía o objeto próprio
da iniciação, duvidando se se abraçavam adequadamente verdades e doutrinas filosóficas, ou se seu objeto
era puramente político-moral e até religioso. Este último parece mais provável, se se levar em conta as
práticas que os historiadores antigos e modernos geralmente atribuem aos pitagóricos iniciados no segredo
da escola, práticas entre as quais estão listadas, além de um regulamento minucioso de ocupações diárias,
a comunidade de bens, vestir-se de linho, não comer carne, abster-se de qualquer sacrifício sangrento, não
faltando que lhes atribua mesmo a observância do celibato. Krische, que tratou ex professo essa questão em
seu tratado De societate a Pythagora condita, opina com bastante fundamento que o objetivo ou fim
principal de Pitágoras, ao estabelecer e organizar sua sociedade, era político (societatis scopus fuit mere
politicus), sem prejuízo de se propor a moral e o cultivo das letras, como fins secundários e meios que
conduzissem ao logro do objetivo principal ou político: Cum summo hoc scopo duo conjuncti fuerunt,
moralis alter, alter ad litteras spectans.
Conta-se que Pitágoras, antes de receber um discípulo em sua escola, examinava cuidadosamente seus
traços fisionômicas; que este devia permanecer em silêncio por um longo tempo; que era submetido à
perfeita obediência entre outros testes mais ou menos rigorosos. O que parece inquestionável é que na
escola pitagórica havia uma variedade de graus e classificações correspondentes para os discípulos. Nem
tão certa é a proibição de comer favas e carne que, em lendas e tradições, é atribuída ao filósofo de Samos,
como observado. Aristóxeno72 afirma que Pitágoras, em vez de proibir, recomendava que se comessem
favas e, no que diz respeito a comer carne, Aristóteles assume que a proibição se referia apenas a certas
partes dos animais.

72
Aristóxeno de Tarento (354-300 a.C.) foi um filósofo, músico e teórico da música pertencente à escola peripatética, i.e.,
aristotélica. [N.T.]
72
A escola ou associação fundada e governada por Pitágoras em Crotona participou ativamente das
questões políticas, e parece que chegou mesmo a adquirir uma notável influência sobre as colônias gregas
do país. Isso fez com que a associação fosse perseguida e dispersa, levando, ao que se supõe, à morte de
Pitágoras. Atesta-se, de fato, que os habitantes de Crotona, influenciados pelos pitagóricos e comandados
por um deles, chamado Milón, guerrearam contra os sibaritas, ou melhor, contra o partido democrático de
Síbaris73, em favor do partido aristocrático, perseguido pelo tirano Thelis. Vencidos os sibaritas e destruída
a cidade pelos de Crotona, surgiram rixas e intrigas entre os vencedores por causa da repartição dos
despojos. O partido popular ou democrático, liderado por Cílon, inimigo dos pitagóricos, atacou-os,
reunindo-os na casa de Milón, e, degolando muitos deles, forçou os demais a fugirem e se refugiarem em
várias cidades. Entre estes, conta-se Pitágoras, que se refugiou em Metaponte e lá morreu, não se sabe se
de causa natural ou violenta, sendo esta mais provável, uma vez que a perseguição a sua escola estendeu-
se desde Crotona a outras cidades na Itália. Cícero relata que, quando esteve em Metaponte, apresentaram-
lhe o lugar onde Pitágoras sucumbiu. Como costuma nesses casos, sua memória foi altamente venerada nas
colônias gregas da Itália pelos descendentes dos mesmos que causaram sua morte e maltrataram seus
discípulos.

§ 37 Discípulos de Pitágoras

A obscuridade e as dúvidas que pairam sobre Pitágoras pairam igualmente sobre seus discípulos.
Primeiramente, deve-se advertir que há muitos que, ainda que levem o nome de pitagóricos, não devem e
não podem ser contados entre os discípulos de Pitágoras como Filósofo. Nos últimos séculos do paganismo
greco-romano e nos primeiros séculos do cristianismo, apareceram em cena não poucos dos chamados
filósofos pitagóricos, que de tal não tinham mais do que o nome. Amalgamando algumas idéias vagas e
algumas tradições mais ou menos lendárias de sua escola e das antigas associações pitagóricas com mitos
orientais, com os mistérios e iniciações das divindades pagãs, com operações mágicas e cabalísticas, eles
se apresentavam ao povo, cuja credulidade e superstição exploraram, como possuidores de uma ciência
oculta, misteriosa e divina, que tinha de tudo menos de filosófica, já que, em vez de especulações e máximas
científicas, eles só possuíam e ostentavam fórmulas cabalísticas, operações mágicas e comunicações
teúrgicas. Além de outros nomes menos conhecidos, basta mencionar, como tipos desta classe de
“pitagóricos”, Sótion de Alexandria, Euxeno de Heracleia, Apolônio de Tiana e Anaxilau de Larissa.

73
Cidade da Lucânia, na Magna Grécia, na confluência dos rios Crátis e Síbaris. [N.T.]
73
Deixando de lado esses discípulos espúrios de Pitágoras, e nos concentrando naqueles que disseminaram
e preservaram com maior ou menor pureza o espírito e as tradições científicas do filósofo de Samos,
diremos, com Ritter, que a tradição relacionada aos filósofos pitagóricos somente na época de Sócrates
adquire algum grau de certeza histórica. “Essa certeza – acrescenta ele74 – refere-se particularmente a quatro
ou cinco homens, que são Filolau, Lísias, Clínias, Eurites e Arquitas. Aristóteles fala de três deles, quais
sejam Filolau, Eurites e Arquitas: a existência do primeiro e da do terceiro é atestada pela História de
maneira indubitável. Quanto a Lísias, sabemos que viveu em Tebas e que foi mestre de Epaminondas75; e
se o que se conta de Clínias não é muito certo, é ao menos bastante plausível.
Acerca da época em que esses filósofos viveram, pode-se afirmar que Filolau em Tebas foi
mestre de Sinmias e Cebes, antes que fossem para Atenas ouvir as lições de Sócrates; que
Lísias, pouco tempo depois, foi mestre de Epaminondas; e que Arquitas foi contemporâneo
de Dionísio, o Jovem, e de Platão. A época em que viveram os demais se determina por
estes dados, já que todos eles tinham relações uns com os outros. Inclino, mesmo, a dar
algum crédito à tradição segundo a qual Filolau, Clínias, Eurites e ainda outros foram
discípulos de Aresas, o qual aprendera a Filosofia pitagórica na Itália. Em harmonia com
essa opinião, é necessário afirmar que o cultivo da doutrina que chamamos de pitagórica
entranha maior antiguidade, sem que seja negado que os primeiros rudimentos dessa
Filosofia existiam já antes de Aresas no instituto pitagórico. De todo modo, essa Filosofia
não nos é conhecida a não ser no estado em que Filolau, Eurites e Arquitas no-la
transmitiram, porque, ainda que haja um fragmento com o nome de Aresas, seu conteúdo
não deve ser considerado autêntico.
Por outro lado – acrescenta Ritter – também não se conta que Aresas tenha escrito alguma
coisa, antes o contrário: há uma tradição antiga, que parece bastante fundamentada,
segundo a qual os primeiros a publicar escritos referentes à Filosofia Pitagórica foram
Filolau e seus contemporâneos. Dos cinco filósofos mencionados acima, parece que Lísias
e Clínias não escreveram nada para o público... Pelo contrário, de Filolau temos alguns
fragmentos cuja autenticidade Boeckh demonstrou. Também não se pode pôr em dúvida
que Arquitas deixou muitas obras, ainda que muitas que ele não escreveu lhe sejam
atribuídas76.

Após esses cinco pitagóricos aqui citados por Ritter, floresceram ainda Xenófilo da Trácia, Fanto
(Φάντων) de Flio, Diocles e Polimnasto, cuja terra natal parece ter sido Fliunte. Embora Ritter pareça
excluir Ocelo da Lucânia e Timeu de Lócrida do número de discípulos de Pitágoras e sua escola, outros
historiadores respeitáveis, e entre eles Ueberweg, os listam entre os apoiadores e representantes da escola
pitagórica77, acrescentando ainda os nomes de Hipaso, Hipodamo, Epicarmo e alguns outros adeptos mais
ou menos fiéis da doutrina pitagórica.
Pelo que foi dito até aqui, conclui-se que os dados acerca dos discípulos e representantes genuínos da
escola pitagórica não são menos obscuros e incertos do que os referentes à vida do próprio Pitágoras e à
autenticidade de sua doutrina. Também se pode concluir que a escola pitagórica, considerada como um
todo, apresenta três etapas ou fases históricas: (1ª) a primeira corresponde à vida e à doutrina do próprio
Pitágoras; (2ª) a segunda, não aos discípulos imediatos de Pitágoras, mas aos mediatos ou que floresceram
muitos anos depois, como Filolau e Arquitas; (3ª) na terceira fase estão todos os neopitagóricos que
floresceram antes ou depois de Cristo.

74
Ritter, Histoire de la Philos. anc., I. IV, cap. I.
75
Epaminondas (418-362 a.C.), general e político grego, considerado “o primeiro entre os gregos” por Cícero, foi o responsável
por redesenhar o mapa geopolítico da Grécia Antiga, libertando Tebas do domínio espartano e iniciando uma série de hegemonias
que culminaria no Império Alexandrino. [N.T.]
76
Ritter, Histoire de la Philos. anc., I. IV, cap. I.
77
É curioso e digno de nota escreve A. Gelio, contando com o testemunho de Timão, a saber, que Platão, para escrever seu Timeu,
valeu-se de um livro pelo qual deu muito dinheiro, o qual se supõe escrito por um dos filósofos pitagóricos. Hermipo afirma também
que Filolau escreveu um livro que Platão adquiriu por grande preço, e do qual copiou seu diálogo intitulado Timeu.
74
Quanto à (1ª) primeira fase, pode-se dizer que carece de dados e documentos perfeitamente autênticos.
Aristóteles, apesar de sua precisão, ou melhor, por causa de sua precisão em citar as opiniões dos outros,
muitas vezes expõe as dos pitagóricos, mas em nenhum lugar afirma que elas realmente pertençam a
Pitágoras, nem sequer expõe a doutrina própria dele; o que parece indicar que o Estagirita não tinha certeza
de que as opiniões e teorias pitagóricas correntes em seu tempo realmente pertencessem ao fundador da
escola.
Quanto à (2ª) segunda e à (3ª) terceira fases da escola pitagórica, abundam documentos mais ou menos
autênticos que nos permitem conhecer as opiniões de seus respectivos representantes, mas sobrecarregados
e misturados com uma infinidade de lendas e tradições fabulosas referentes a Pitágoras e sua doutrina.
Assim, como observa Zeller, a tradição acerca do sistema pitagórico e de seu fundador cresce em detalhes
à medida que se distancia no tempo ao que se refere; e, ao contrário, à medida que nos aproximamos do
tempo de origem do pitagorismo, a tradição e os detalhes se tornam cada vez mais escassos 78 até
desaparecerem quase por completo.

§ 38 Doutrina dos Pitagóricos

“Os que levavam e ainda levam – escreve Aristóteles79 – o nome dos pitagóricos, sendo por sua vez os
primeiros a cultivar a matemática, deram-lhe a preferência sobre todas as coisas e, embebidos nessas
especulações, pensavam que os princípios matemáticos eram também os princípios de todas as coisas”.
Estas palavras do Filósofo de Estagira, cujo testemunho é de grande peso nesta matéria, como sempre
que se trata de conhecer a doutrina dos Filósofos antigos, descobrem e expressam ao mesmo tempo a
carcaterística fundamental da escola pitagórica, a qual consiste precisamente no exagero da importância
das ciências matemáticas e na aplicação forçada e irracional de princípios e fórmulas matemáticas a todas
as ordens do ser e do conhecer. Daí o princípio fundamental desta escola, segundo o qual os números são
os princípios e a essência das coisas; e, consequentemente, a tendência e o empenho em explicar a origem,
a essência e as propriedades das coisas, pela origem, essência e propriedades do número e da quantidade.
Veja-se, para esclarecer, o seguinte resumo da doutrina pitagórica:

Noções gerais

1ª O número, o princípio geral das coisas, é dividido em ímpar e par. Os primeiros são mais perfeitos
do que os segundos, porque eles têm um começo, um meio e um fim, enquanto os números pares são
indeterminados e incompletos. O número par representa e contém o finito, o determinado; o número ímpar
representa e contém o ilimitado, o indefinido.

2ª Os números, além de constituir a essência real, o princípio imanente das coisas, também são seus
modelos ou arquétipos, tendo em vista que a ordem hierárquica dos seres corresponde à ordem e proporções
dos números, cujas propriedades, harmonia e relações estão encarnadas nas substâncias e entes que
constituem o mundo-universo.

78
“Com a extensão dos documentos – acrescenta o mencionado Zeller – muda também sua natureza. Correram desde o início
lendas maravilhosas acerca de Pitágoras; mas, com o passar do tempo, toda a sua história é transformada em uma série ininterrupta
de eventos extraordinários. Em sua origem, o sistema pitagórico apresentava o caráter de simplicidade e antiguidade, e estava em
harmonia com a carcaterística ou direção geral da Filosofia pré-socrática. Nas exposições posteriores, aproxima-se cada vez mais
das teorias platônicas e aristotélicas, a tal ponto que os pitagóricos da era cristã passaram a argumentar que Platão e Aristóteles
haviam recebido suas idéias de Pitágoras e lhe deviam suas descobertas... Portanto, essas exposições (dos filósofos pitagóricos, e
principalmente as dos neoplatônicos), não podem ser tomadas como fontes históricas dignas de fé, mesmo quanto ao fundo das
coisas. Devemos rejeitar as indicações que contêm, mesmo quando, consideradas em si mesmas, não careçam de plausibilidade...
E, no fundo, como podemos confiar, para circunstâncias acessórias, em escritores que nos enganam grosseiramente acerca do
essencial?” Die Philos. der Griechen, per. I, cap. II, § 1º.
79
“Qui appellati Pythagorici primi mathematicis operam dederunt, haec praeponebant, et in eis nutriti, eorum principia, entium
quoque cunctorum esse putarunt principia”. Metaphys., l. I, cap. III.
75
Em conformidade e como aplicação desta doutrina, os pitagóricos
a) estabeleceram uma espécie de correspondência matemática entre os entes do cosmos e os números.
O ponto [1], a linha [2], a superfície [3] e o sólido [4] correspondem e se referem aos quatro
primeiros números respectivamente; a natureza física ou puramente material corresponde ao número
cinco [5]; a alma, ao número seis [6]; a razão, a saúde e a luz, ao número sete [7]; o amor, a amizade,
a prudência e a imaginação, correspondem ao número oito [8]; a justiça responde ao número nove
[9]. Sabe-se também que os pitagóricos, aplicando essa relação cósmico-matemática ao mundo
astronômico, assumem que este consista em dez esferas celestes ou corpos que se movem em torno
de um fogo central (in medio enim ignem esse inquiunt), sendo um deles a terra, cujo movimento dá
origem à sucessão ordenada de días e noites, como diz Aristóteles: circulariter latam circa medium,
noctem et diem facere.
b) consideravam a harmonia como um dos atributos gerais dos seres; pois, assim como os números
implicam harmonia, isto é, unidade no múltiplo, a concordância de elementos diversos, também as
substâncias entranham ou contêm em si mesmas a pluralidade de elementos reduzidos à unidade.
Nesse sentido, pode-se dizer, e diziam os pitagóricos, que tudo é harmonia no mundo; que a
harmonia é uma propriedade de todas as coisas, tanto terrestres quanto celestiais.

3ª A unidade, princípio essencial e primitivo do número, também é o princípio essencial e primitivo das
coisas ou do Universo. É, portanto, imutável, semelhante a si mesmo, a causa universal de todas as coisas,
a origem e a razão suficiente para a perfeição delas. Esta unidade primitiva ou mônada [1], respirando o
vazio, produz a díade [2], a qual, por ser produzida e composta, é imperfeita e origem da imperfeição
inerente aos números pares e seres compostos. A díade representa ou simboliza para a Filosofia Pitagórica,
a matéria, o caos, o princípio passivo das coisas. É muito provável, no entanto, que essa doutrina não
pertencesse a Pitágoras, nem mesmo a seus discípulos antigos, como Filolau e Arquitas, mas seja uma
adição dos neopitagóricos, que amalgamaram as idéias e tradições de sua escola com as platônicas e
orientais.

4ª A tríade [3], a tétrade [4] e a década [10] representam também, para os pitagóricos, essências e
atributos das coisas. Mas entre esses, a década [10] constitui um dos símbolos pitagóricos mais importantes,
seja porque é a soma dos quatro primeiros números [1+2+3+4=10], seja porque expressa o conjunto de
todos os seres, ou do que poderíamos chamar de categorias da escola pitagórica, que são:
finito – infinito (ou, melhor, indefinido)
ímpar – par
uno – múltiplo
direita – esquerda
masculino – feminino
em repouso – em movimento
luz – trevas
bom – mau
quadrado (de mesma medida – não-quadrado (não perfeito, irregular)
Essas categorias põem em destaque a tendência dos pitagóricos de subordinar os seres e sua classificação
aos números e fórmulas matemáticas, aplicando-as a todos os tipos de seres e objetos, sejam morais ou
físicos, sensíveis ou puramente inteligíveis.

FOGO TERRA AR ÁGUA

76
5ª A unidade está para o número como o ponto está para a quantidade contínua: um ponto somado a
outro constitui a linha; um terceiro gera a superfície; e se a esses se acrescenta e sobrepõe um outro, têm-
se o sólido. As afixações matemáticas dos pitagóricos levaram-nos também a atribuir diferentes figuras
geométricas aos quatro elementos: assim, vemos que Filolau atribui ao fogo a forma tetraédrica, à terra a
forma cúbica, ao ar a forma octaédrica, à água a forma icosaédrica. Nesse sentido e desse ponto de vista,
os pitagóricos podem ser considerados precursores da escola atomística de Leucipo e Demócrito.

Deus e o mundo.

1º Nada há de mais sombrio e duvidoso do que a opinião dos pitagóricos acerca de Deus. A julgar por
algumas indicações e passagens, parece que eles admitiam a existência de um Deus pessoal, superior ao
mundo e independente dele; mas a julgar por outras passagens e testemunhos – certamente mais autênticos
e numerosos – é mais provável que eles não soubessem se elevar a essa noção de um Deus espiritual e
transcendente. Suas doutrinas sobre a alma universal do mundo, sobre a mônada (elemento essencial e
interno dos seres), sobre o mundo ou cosmos (que eles representam e explicam como um deus engendrado),
sobre o sol ou fogo central como o lugar ou residência da divindade (conforme o testemunho de Aristóteles),
tudo isso revela e nos faz suspeitar que a concepção pitagórica de Deus seja essencialmente panteísta, e que
o fundo dessa concepção seria a idéia emanatista que Pitágoras deve ter recolhido de suas viagens e
expedições ao Egito e ao Oriente. Confirma também esta opinião a idéia ou conceito de Deus que Cícero
atribui a Pitágoras80, a mesma que devemos presumir em seus discípulos mais antigos, ainda que os mais
modernos, isto é, os neopitagóricos dos primeiros séculos da Igreja, tenham se expressado com mais
precisão sobre esse ponto.

2º Para os pitagóricos, o mundo forma um conjunto


ordenado e um todo bonito e harmonioso, como já
sugerimos acima, sendo os primeiros a aplicarem
ao mundo-universo o belo e adequado nome de
cosmos (κόσμος), se se der crédito a Plutarco.
No centro deste mundo estaria o chamado
fogo central, em torno do qual se moveriam
dez grandes corpos celestes, dentre os
quais a Terra (em grego χθών) e outro
que eles chamam de contra-Terra81 (em
grego ἀντίχθων), contra a opinião geral
que faz da terra o centro imóvel do
mundo. Tenha em mente que, para os pitagóricos, o fogo central, e não o sol, como alguns acreditam
erroneamente, representavam o centro do mundo, o centro real do movimento da terra e do próprio sol.
A perfeição que eles atribuíram ao número dez e ao movimento circular determinou que os pitagóricos
atribuíssem esse número e esse movimento aos corpos e esferas celestes. O movimento regular e
compassado dessas esferas também produziria um som harmônico ou musical, que não é percebido e do
qual não se toma consciência, porque nosso ouvido seria acostumado a ele desde o nascimento, e também
porque o som, quando continuado, precisa de interrupção para ser percebido.

80
Assim se expressa Cícero: “Pythagoras, qui censuit (Deum) animum esse per naturam rerum omnem intentum, et commeantem,
ex quo nostri animi carperentur”. De Nat. Deor, lib. I, cap. XI.
81
Aristóteles, depois de citar a opinião daqueles que colocam a terra no centro do mundo, acrescenta: “Contra dicunt qui circa
Italiam incolunt, vocanturque Pythagorei: in medio enim, ignem esse inquiunt; terram autem astrorum unum existentem, circulariter
latam circa medium, noctem et diem facere. Amplius autem, oppositam aliam huic conficiunt terram, quam antichthona nomine
vocant, non ad apparentia rationes et causas quarentes, sed ad quasdam opiniones et rationes suas, apparentia attrahentes et tentantes
adornare...” De coelo, lib. IX, cap. XIII.
Pode-se ver por essas últimas palavras de Aristóteles que os pitagóricos de seu tempo tentaram preencher com hipóteses gratuitas
a lacuna que havia entre os fatos ou fenômenos da astronomia real e as teorias a priori de sua escola.
77
O mundo não é apenas um todo harmonioso e ordenado, mas também um todo animado, ou pelo menos
animado através da alma universal, que emana, por sua vez, do fogo central. Portanto, todos os seres
participam da vida em qualquer um de seus graus. É verdade que as notícias que temos sobre a autêntica
doutrina de Pitágoras e seus primeiros discípulos sobre a vitalidade de todos os seres, e até mesmo sobre a
existência e natureza da alma universal, são muito escassas e não menos confusas e inseguras.

§ 39 Psicologia e Moral dos Pitagóricos

1º A alma humana, que é uma emanação da alma universal, de acordo com a teoria da escola de
Pitágoras, não é engendrada ou produzida com o corpo, mas vem de fora; pode animar sucessivamente
corpos diferentes e também existir nas regiões etéreas por algum tempo sem estar ligada a nenhum corpo
humano ou animal, já que se sabe que os pitagóricos admitiam a mentepsicósis. Essa teoria, apesar da
natureza estranha e não científica de sua forma, contém e carrega dentro de si duas grandes idéias: a idéia
da imortalidade da alma humana e a de penalidades e recompensas após a morte.
Por outro lado, é muito possível que para a escola pitagórica, ou pelo menos para alguns de seus
representantes, não tenha sido nada mais do que a forma exotérica e como o símbolo de uma concepção
psicologicamente moral, a saber: que grande parte dos homens, em vez de subir para as regiões superiores,
inteligíveis e divinas através do exercício da razão, da livre vontade e da prática das virtudes, desce às
regiões inferiores, sensíveis e animais, mercê ao abuso de sua liberdade e, arrastados por seus vícios e
paixões , fazendo-se semelhantes a certos animais e assumindo, por assim dizer, a natureza destes, em
relação aos vícios e paixões predominantes. Neste conceito, a alma do homem que se distingue por sua
rapacidade, é a alma de um lobo; de um homem notável por seus instintos e atos de crueldade, dizemos que
é de um tigre e, portanto, das qualidades, vícios e paixões que carregam consigo a degeneração do homem
como um ser inteligente e livre, e sua assimilação moral com os animais.

2º É bem provável que os pitagóricos tenham distinguido duas partes da alma humana: uma superior,
pertencente à ordem inteligível, origem e sede da inteligência e vontade; outra inferior, pertencente à ordem
sensível, origem e razão dos sentidos e paixões. A primeira, isto é, a parte racional da alma, tem seu assento
na cabeça; a inferior reside em certas vísceras, mas principalmente no coração, ao qual atribuíram as
manifestações do apetite irascível, e no fígado, onde colocaram as paixões da parte concupiscível.

3º De acordo com o testemunho de Aristóteles, os pitagóricos definiram a alma como um número que
se move. É provável que, com essa definição, eles quisessem significar que a alma humana é uma essência
simples que tem em si o princípio de seus atos, ou seja, uma unidade dotada de atividade espontânea.

4º Em relação às suas preocupações constantes e afixações matemáticos, os pitagóricos costumavam


dizer que a virtude é uma harmonia que deve ser preservada através da música e da ginástica. A justiça é
um número perfeitamente igual, ou um número quadrado, dependendo da versão dos outros. Na ordem
político-social, o homem é a mônada ou a unidade [1], a família é a díade [2], a aldeia é representada pela
tríade [3] e à cidade corresponde a tétrade [4]. No entanto, através dessas fórmulas mais ou menos obscuras,
parece muito verdade que a escola pitagórica professava máximas morais bastante dignas e elevadas,
ensinando, entre outras coisas, que o bem consiste na unidade e harmonia das operações do homem e o mal
na falta dessa unidade; que o fim da vida é assimilação com Deus através da virtude; que o suicídio é
essencialmente mau; que o homem deve frequentemente examinar suas ações e que ele não deve se render
ao sono82, sem ter examinado suas ações durante o dia.

82
Na Carmina aurea Pythagorae, traduzida e comentada por Esteban ou Estefano Níger, diz-se: Nec somnum mollibus oculis jusus
inducas quam ter operum diurnorum singula animo percurras: quo profectus? libra, egi? quid imperfectum reliqui?
78
Jâmblico atribui também a Pitágoras a frase de que o amor à verdade e o zelo do bem são o maior
benefício que Deus foi capaz de conceder ao homem; mas é muito possível que esse belo pensamento se
deva, em vez de a Pitágoras, à atmosfera cristã que cercundava o discípulo que a põe em sua boca.
Parece, no entanto, que nem Pitágoras nem seus discípulos deveriam ter tido ideias muito precisas e
racionais sobre a liberdade humana, já que, se nos atermos aos monumentos pitagóricos mais ou menos
autênticos e, principalmente, ao conteúdo dos Versos de Ouro, devemos atribuir ao destino inexorável, não
apenas à morte (omnibus mortem fatu statutam cognosce), mas os demais acontecimentos da vida: ex
calamitatibus quas mortales fato patiuntur.

§ 40 A Escola Eleática

Xenófanes, contemporâneo de Pitágoras e natural de Cólofon na Lídia (atual Turquia), estabeleceu-


se na cidade de Velia ou Eleia cerca do ano 536 a.C., e daí a denominação de escola eleática à que ele
fundou e que foi continuada e desenvolvida por Parmênides e Zenão de Elea (460 a.C.), e depois por Meliso
de Samos (445 a.C), os principais discípulos de Xenófanes e os representantes mais notáveis desta escola.
Enquanto os filósofos da escola jônica tinham se proposto a investigar e resolver o como da existência
das coisas; os eleáticos tentaram investigar e resolver o porquê dessa existência, sua razão. Os primeiros,
dando por suposta a multiplicidade dos seres e a As Vinte e Quatro Teses Tomistas
realidade dos fenômenos, investigaram a razão
Decreto da Sagrada Congregação dos Estudos,
suficiente dessa multiplicidade e tentaran explicar 27 de julho de 1914 (DH 3601-3604)
sua geração e transformações; já os segundos se
propuseram a investigar a própria existência da 1ª Tese
multiplicidade real dos seres e a razão suficiente O ato e a potência dividem o ente de tal modo que
do devir (fieri) das coisas, se houver. tudo o que é, ou será Ato Puro ou necessariamente
A solução dada pela escola eleática para o composto de potência e ato como princípios
problema filosófico posto dessa maneira é uma primeiros e intrínsecos.
solução essencialmente panteísta e idealista, se
nos ativermos sobretudo à doutrina de 2ª Tese
Parmênides, que é, sem dúvida, o representante O ato, porque é perfeição, não é limitado senão
mais genuíno, lógico e completa da escola pela potência (que é uma capacidade de perfeição).
Por isso, na ordem onde o ato é puro, ele não pode
eleática, como escola metafísica.
ser senão ilimitado e único; onde o ato é finito e
O ser, se existe, dizia Parmênides, é
múltiplo, ele entra em verdadeira composição com a
necessariamente uno, eterno, absolutamente
potência.
imutável e o próprio conceito de ser excluiria e
negaria a possibilidade de toda geração, de toda novidade no ser ou na substância, de toda pluralidade real83.
A razão é a que se segue: o ser, que se supõe ter começado a existir, ou surgiu do ser ou do não-ser. No
primeiro caso, o ser geraria a si mesmo, o ser surgiria de si mesmo, o que é impossível. No segundo caso,
o ser sairia do não-ser, o que é igualmente absurdo. Se o ser é mudado ou transformado em ser, é equivalente
a dizer que, na realidade, não muda, mas permanece sendo. Assim, só pode haver um Ser eterno e
absolutamente imutável, e as mudanças, transformações e multiplicação de seres são meras aparências às
quais nenhuma realidade responde. Nada pode recomeçar ou perecer. O ser (o mundo-universo) é um todo
contínuo, eterno, indivisível e incapaz de se mover no todo ou em parte; porque repugna o vazio, sem o
qual o movimento não é possível.

83
A essa teoria de Parmênides e sua escola, alude provavelmente Aristóteles quando diz: “Quaerentes enim philosophi primi
veritatem et naturam entium... dicuntque neque fieri eorum quae sunt, ullum, neque corrumpi, propterea quod necessarium est fieri
quod fit, aut ex eo quod est, aut ex eo quod non est: his autem utrisque impossibile esse; neque enim quod est fieri (est possibile),
st enim jam; et ex eo quod non est, nihil utique fieri, subjici enim quidpiam oportet. Et sic, neque esse multa dicunt, sed tantum
ipsum quod est”. Physic., lib. I, cap. X.
79
Este Ser único (o universo, o cosmos), assim como é eterno e único, é também absoluto, sem ter nada
que desejar ou receber fora de si mesmo84. Uma vez que a existência de dois seres realmente distintos seria
impossível, segue-se daí que o pensamento e a realidade são a mesma coisa, que pensar e ser são idênticos
(Fichte), e que a razão ou pensamento é a medida, ou melhor, a essência das coisas.
“O pensamento e o objeto do pensamento – escreve Parmênides em seu famoso poema – são a mesma
coisa... São, portanto, palavras vazias de sentido as que emprega a preocupação humana, quando fala de
nascimento e fim, de mudança de lugar, de transformação. A forma do Todo é perfeita: assemelha-se à
esfera em que o centro está igualmente distante de todos os pontos da circunferência85. Não há nada que
possa interromper a continuidade do real: não há vazio algum: não é possível tirar nenhuma parte do Todo,
porque em todas as partes é semelhante a si mesmo e sempre ao Todo.”
A teoria do conhecimento da escola elíática, e particularmente a de Parmênides, está perfeitamente
de acordo com sua teoria metafísica. Somente a razão conhece a verdade e a realidade: os sentidos nos
fornecem uma representação falsa e aparente das coisas. O que se conhece pela razão constitui a ciência
(episteme), isto é, o pensamento verdadeiro e real das coisas: já o conhecimento aparente dos sentidos é a
opinião (doxa), que comunica às percepções sensíveis certa unidade e vínculo. Para os sentidos, o Universo
consta de dois elementos opostos representados pela luz e pelas trevas, pelo calor e pelo frio; mas, para a
razão, esse mesmo Universo é um ser único, uma unidade indivisível. Para os sentidos, há produções,
transformações e gerações de coisas através da combinação dos dois elementos mencionados, por causa da
vitória sucessiva da luz sobre as trevas: para a razão, e na realidade, essas transformações são meras
aparências e ilusões, porque o Universo, que é o único ser, não tem começo nem fim.
Zenão, amigo, discípulo e compatriota de Parmênides, encarregou-se de consolidar e desenvolver o
caráter idealista do panteísmo eleático, um trabalho que ele realizou maravilhosamente, graças às armas
fornecidas por sua tão temida quanto sutil dialética. Usando às vezes o diálogo, às vezes a forma silogística
e, mais frequentemente, a redução ad absurdum, ele assumiu a tarefa de afirmar e defender a doutrina da
unidade absoluta do ser contra todos os tipos de objeções e inimigos. Passando da defesa ao ataque,
comprazia-se em reduzir seus adversários ao silêncio por meio de procedimentos dialéticos, que, por
sofísticos que fossem em parte, não deixavam de colocar os defensores da multiplicidade de seres em sérios
problemas.
Com base na hipótese de que a linha e o espaço são compostos de pontos, ele negou a existência ou
a realidade deste último, uma vez que deveria ser infinitamente grande e infinitamente pequeno; seria
infinitamente grande, porque é composto de partes infinitas, uma vez que é divisível in infinitum; também
seria infinitamente pequeno, porque deveria ser composto de pontos, que, sendo indivisíveis, não poderiam
formar nenhuma extensão. Essa mesma divisibilidade infinita do espaço também lhe serviu como ponto de
partida para negar a existência e até mesmo a possibilidade de movimento, fazendo uso, entre outros, do
argumento de Aquiles86 . Não há necessidade de acrescentar que o terrível polemista atacou com igual
energia a realidade objetiva dos fenômenos sensíveis, bem como a autoridade e o valor dos sentidos em
termos de conhecimento.
Parmênides é o representante mais genuíno e completo da escola elíática, como dissemos acima,
porque ele desenvolveu e sistematizou sua doutrina, comunicando a ele ao mesmo tempo a forma
metafísico-panteísta que constitui o traço característico e o fundo essencial dessa escola. Mas nem por isso

84
No que se aplica ao Próprio Ser Subsistente, a tese eleática é perfeitamente lógica e acabada e se encontra confirmada no Decreto
da Sagrada Congregação dos Estudos, como se pode constatar no quadro acima. Como carecia das noções aristotélicas de ato e
potência, Parmênides e sua escola não concebiam a possibilidade do movimento e estão certos: o movimento é, propriamente, a
passagem da potência (capacidade de perfeição) ao ato (perfeição); e onde não há potência não pode haver, igualmente, movimento.
[N.T.]
85
Talvez por esta comparação, Aristóteles, ao falar dos eleáticos, afirma que atribuíam a Deus a figura esférica.
86
Esse argumento consistia em afirmar que, apesar de toda a sua ligeireza e de sua velocidade na corrida, o herói da Ilíada, não
conseguiria alcançar uma tartaruga colocada a curta distância de si e que começasse a se mover ao mesmo tempo. Suponha-se que
a distância que separa Aquiles da tartaruga seja de duas varas: ele não poderá alcançar a tartaruga, sem primeiro percorrer a primeira
vara; e não poderá percorrer esta, sem ter percorrido primeiro a metade dela, nem poderá percorrer essa metade sem ter percorrido,
antes, a metade desta última metade. Então, como a linha que representa a suposta distância entre Aquiles e a tartaruga consiste em
partes infinitas, uma vez que é divisível por metades in infinitum, verifica-se que, apesar de toda a sua velocidade, Aquiles nunca
poderia alcançar a tartaruga.
80
se deve esquecer que ao fundador, Xenófanes, cabe o
O ARGUMENTO DE AQUILES mérito de ter feito sérios esforços para purificar a idéia de
(Simplício. Comentário à Física de Deus. É verdade que tais esforços foram relativamente
Aristóteles, 1014.10) estéreis, por causa do princípio panteísta que informava o
pensamento de Xenófanes; mas não é menos verdade que
O argumento é chamado de “Aquiles”, pelo
fato de que Aquiles foi nele proposto, e o o Filósofo de Colofonte descarregou golpes duros e
argumento diz que é impossível para ele acertados contra o politeísmo e o antropomorfismo que o
ultrapassar a tartaruga ao persegui-la. Pois, de rodeavam.
fato, é necessário que o que deve ultrapassar A verdade é que, de fato, Xenófanes parece ter
algo, antes de ultrapassá-lo, chegue primeiro
confundido a divindade com o céu (ad totum coelum
ao limite do qual o que está fugindo partira.
Mas quando o que está perseguindo chegar a respiciens ipsum unum ait esse Deum), se dermos crédito
esse ponto, o que está fugindo terá avançado ao testemunho de Aristóteles; a verdade é que ele também
um certo intervalo, ainda que seja menor do ensinou que Deus não está nem em movimento nem em
que o que está perseguindo avançou... E no repouso, que não é finito nem infinito; mas qual seja o
momento, novamente, em que o perseguidor
tiver atravessado este [intervalo] que o significado dessas afirmações – que parecem obedecer às
perseguido avançou, neste momento, exigências do princípio panteísta – é indubitável que o
novamente, o perseguido terá atravessado fundador da escola eleática ensinava explicitamente que
outro intervalo... E assim, cada vez que o Deus não é nem pode ser mais que um só, entre outras
perseguidor tiver atravessado o [intervalo] razões, porque Deus é o mais perfeito e o melhor entre
que o perseguido, por mais lento que seja, já
avançou, este também já terá avançado mais todos os possíveis, e se houvesse muitos, não seria mais o
um pouco. mais perfeito; que Deus é eterno e imutável, incapaz de
começo e de término; que Deus é, por sua própria
essência, razão e conhecimento, e também onipotente; e,
por fim, ele não apenas rejeitava, mas zombava, tanto
daqueles que admitiram muitos deuses quanto daqueles
que atribuíram a eles a forma ou figura humana e,
sobretudo, as paixões e os vícios dos homens. Daí sua
zombaria e sarcasmo contra poetas e não poetas que desonravam os deuses, atribuindo-lhes roubo, traições
e adultérios.

§ 41 Crítica à Escola Eleática

Já indicamos anteriormente a diferença de modo pelo qual a escola eleática levantou e resolveu o
problema filosófico em relação à escola jônica. Agora devemos acrescentar que o método científico também
é diferente e relativamente oposto nas duas escolas; porque enquanto o jônico é baseado principalmente na
observação e emprega o raciocínio a posteriori, o eleático procede a priori e é guiado por especulações
dialéticas da mais pura abstração. Naturalmente, a solução eleática, em harmonia com esse método e com
essa maneira de colocar o problema, é uma solução panteísta-idealista, que tem pouco em comum com a
solução jônica. A concepção da escola de Eléia é, de fato, um panteísmo idealista, cuja base fundamental,
cujo princípio gerador, é o mesmo de todos os sistemas panteístas, ou seja, a negação da multiplicidade de
um ser produzindo ou gerando outro ser.
A escola eleática, com sua absoluta unidade do Ser e a consequente negação da pluralidade real e das
gerações ou transformações substanciais, representa a antítese mais ou menos completa da escola jônica,
mas é principalmente antitética à Filosofia de Heráclito, cuja tese fundamental é a negação do ser e a
afirmação exclusiva do fieri, a afirmação do fluxo ou transformação perpétua da existência.
A concepção fundamental e a ideia mãe da Filosofia eleática é a unidade absoluta do Ser, embora
quando se trate de fixar a natureza e os atributos desse Ser único, o pensamento da escola pareça vago e
incerto; porque enquanto alguns a chamam e a explicam como divindade, outros dispensam esse aspecto e
tendem a identificá-lo com o mundo ou cosmos. Deste ponto de vista, a teoria eleática tem grande afinidade
e semelhança com a teoria de Vacherot. Em nossa opinião, o Ser único da escola eleática é o ser puro e
81
abstrato, concebido como real ou objetivado, mas sem atributos ou determinações de qualquer tipo: não é
nem matéria, nem espírito, nem inteligência, nem sentidos, nem corpo, nem alma; é Ser e nada mais do que
Ser, e neste conceito oferece bastante analogia com o Absoluto indiferente de Schelling.
Entre os principais representantes desta escola, Xenófanes se dedicou a combater o antropomorfismo
que os gregos atribuíram à divindade, ao mesmo tempo em que atacava seu politeísmo através da afirmação
do ser divino como uno; Parmênides desenvolveu e sistematizou, se bem que em um sentido idealista, a
concepção da unidade absoluta do ser; Meliso aplicou essa idéia ao mundo físico ou material, e Zenão a
defendeu contra os adversários e impugnadores. Xenófanes era o teólogo da escola eleática, Parmênides, o
metafísico, Meliso, o naturalista, e Zenão, o dialético.
Já vimos que este último adquiriu grande celebridade entre os antigos, por causa de seus famosos
argumentos contra a pluralidade dos seres, contra a veracidade dos sentidos, contra a realidade do espaço
e, sobretudo, contra a existência do movimento. Agora devemos acrescentar que as contradições que o
dialético de Eléia descobriu nessas coisas têm muita analogia com as famosas antinomias cosmológicas de
Kant nos tempos modernos. Assim como Zenão é o representante mais genuíno da escola eleática na ordem
dialética, Parmênides o é na ordem metafísica, como já foi dito, já que, como indicado pelo próprio
Aristóteles87, ele foi o único que se elevou à concepção racional e superior da unidade do ser, enquanto
Meliso buscava unidade na matéria, e Xenófanes se agitava em uma concepção vaga e confusa da mesma.

§ 42 A escola atomista

Já dissemos antes que, desde Heráclito, e em parte devido às suas doutrinas, ao lado da direção
espiritualista, representada por Anaxágoras, manifestou-se outra direção materialista representada por
Leucipo e Demócrito.
Leucipo (cujo nascimento e pátria são duvidosos88) iniciou, de fato, ou pelo menos impulsionou uma
verdadeira reação contra o idealismo eleático, acontecendo aqui o que geralmente acontece em casos
semelhantes: para combater e atacar o idealismo da escola eleática, Leucipo se colocou em um terreno
materialista, pretendendo explicar todas as coisas, sem exceção, através de átomos e movimentos. Em vez
de simplesmente restabelecer os privilégios da experiência contra as pretensões exclusivas das especulações
metafísicas e a priori, restaurando ao mesmo tempo ou preservando a pluralidade dos seres afirmada pela
escola jônica, Leucipo vê no mundo nada mais do que vazio e movimento, átomos indivisíveis e invisíveis
(sem prejuízo de possuírem diferentes formas ou figuras) e, por fim, substâncias materiais produzidas pela
composição e decomposição, união e separação desses átomos. A alma humana, como os outros seres, nada
mais seria do que uma substância composta de átomos brilhantes, esféricos e sutis, dos quais o calor, a vida
e o pensamento resultam no homem, fenômenos que são apenas diferentes manifestações do movimento, o
qual é inerente e como que essencial aos átomos de figura esférica.
De acordo com Diógenes Laércio, concedia Leucipo a todos os átomos um movimento essencial, e
as combinações que dão origem aos diferentes corpos se verificariam por meio de redemoinhos. Assim,
Bayle e Huet apontaram, não sem fundamento, que o sistema físico de Descartes tem sua origem na doutrina
de Leucipo. Este último, esquecendo que os átomos e seu movimento supõem e exigem uma causa primeira,
prescindia dela por completo, contentando-se em afirmar que o movimento dos átomos está sujeito a leis
necessárias e imutáveis. É bem sabido que, apesar de suas pretensões e alardes científicos, os positivistas e
materialistas nossos contemporâneos repetem a lição a deste antigo mestre, sem nenhum progresso neste
campo. A propósito, Aristóteles já chamava a atenção, em seu tempo, sobre essa hipótese arbitrária e
essencialmente não científica de um movimento que existe sem saber como, nem porquê (De motu vero
unde vel quomodo existentibus inest, omisserunt); sobre uma hipótese na qual não se levou em conta que,

87
“Parmenides etenim, Unum secundum rationem attigisse videtur; Melissus vero, secundum materiam; Xenophanes autem,
quamquam prior istis (nam Parmenides ejus auditor fuisse dicitur), unum posuerat, nihil tamen clarunt dixit, et neutrius horum
naturam attigisse videtur, sed ad totum coelum respiciens, ipsum unum ait et esse Deum.” Metaphys, lib. I, cap. IV.
88
A opinião mais provável situa seu nascimento nos anos 500 a.C. E Mileto parece ser a cidade que com mais direito pretende ser
sua pátria.
82
para explicar a origem, constituição e transformação do mundo, não bastam o cheio e o vazio89, nem os
átomos com suas diferenças de ordem, figura e lugar, que é o que afirmava e supunha a escola atomista,
seguindo a seu fundador, Leucipo.
Em conformidade com essa teoria, Leucipo explicou a geração substancial e a corrupção – ou seja, a
formação e destruição de novas substâncias – por meio da união e separação de certos átomos: se houvesse
somente mudança de posição entre eles, resultariam alterações e mutações acidentais, segundo o
testemunho do supracitado Aristóteles: segregatione quidem et congregetione, generationem et
corruptionem; ordine autem et positione, alterationem.

§ 43 Demócrito

Demócrito se encarregou de completar e desenvolver a doutrina de Leucipo, fazendo aplicações à


psicologia e à moral. Abdera, uma colônia jônica, parece ter sido a pátria deste Filósofo, nascido cerca 460
a.C. Pondo de lado tradições e lendas sobre sua vida e vicissitudes, cuja veracidade histórica é difícil de
discernir90, o que parece indubitável é que seu amor pela ciência o levou a realizar longas e dolorosas
peregrinações a países distantes e climas muito diferentes. São Clemente de Alexandria e outros autores
respeitáveis colocaram na boca deste Filósofo uma passagem na qual ele se congratula e orgulha de ter
viajado por mais países do que qualquer um de seus contemporâneos: “Eu vi – di-lo na tal passagem – a
maioria dos climas e nações. Eu ouvi os homens mais sábios, e ninguém me superou na demonstração da
composição das linhas, nem mesmo os egípcios, que se chamam arpedonaptas, entre os quais residi por
espaço de oito anos”. Graças a essas viagens científicas, à sua vocação determinada para a ciência e à
constância de seus estudos, Demócrito adquiriu uma grande riqueza de conhecimento, do qual é também
evidente indício o número prodigioso de escritos atribuídos a ele e citados por Diógenes Laércio.
Infelizmente, a elevação, pureza e verdade desse conhecimento não estão relacionadas à sua
quantidade. Sua teoria cosmológica coincide com a de Leucipo: átomos e vazio são os princípios de todas
as coisas; o primeiro como um princípio positivo; o segundo como um princípio privativo e condição do
movimento atomístico, o qual contém a razão imediata suficiente para a existência, diversidade, atributos
e qualidades dos seres. Para não se ver na necessidade de apontar uma causa para o movimento, dizia que
o tempo é infinito e o movimento eterno, independentemente do absurdo e contraditório desses conceitos.
Certamente para que houvesse proporção e harmonia entre espaço e tempo, como havia entre o átomo e o
movimento, um e outro eternos para Demócrito, ele teria afirmado – se dermos crédito a Cícero – que o
espaço em que o movimento dos átomos ocorre também é infinito91 ou absolutamente ilimitado.
De acordo com esses princípios – e se dermos crédito ao testemunho e às diversas passagens de
Aristóteles, Sexto Empírico, Cícero e Plutarco –, Demócrito também ensinou:
a) que a realidade primitiva, o verdadeiro e único ser, é o átomo;
b) que todos os seres e substâncias visíveis são corpos ou agregados de átomos;

89
“Leucippus vero ac ejus socius Democritus, elementa (rerum) quidem plenum et vacuum esse ajunt, dicentes hoc quidem ens,
hoc vero non ens; et rursus, ens quidem plenum et solidum, non ens autem vacuum Quare nihilo magis ipsum ens, quam ipsum
non ens esse ajunt; quia nec vácuo quam corpus. Haec autem causas entium esse, ut materiam. Et quemadmodum qui unum faciunt
subjectam substantiam, caetera passionibus ejus generant, rarum et densum, passionum (proprietatum) statuentes principia, simili
modo hi quoque differentias, causas caeterorum ajunt esse. Tem autem tres esse ajunt, figuram, ordinem, et situm.” Metaphys, lib.
I, cap. III
90
Entre outras, são dignas de nota as seguintes, às quais diversos historiadores e escritores antigos fazem alusão: O pai de Demócrito
era tão rico que hospedou em casa e obsequiou a Xerxes quando de seu retorno da expedição contra os gregos. Alguns supõem que,
para recompensar sua hospitalidade, o Rei da Pérsia lhe deixou alguns magos para servir de mestres a seu filho Demócrito. Diz-se
também que quando esse Filósofo retornou à sua terra natal, depois de longas peregrinações e viagens em busca da ciência, seus
compatriotas quiseram declará-lo louco, por ter dissipado sua grande fortuna em tais viagens; mas que, tendo lido publicamente
um de seus escritos, os que tentavam declará-lo louco e insensato ficaram possuídos de tanta admiração ao ouvir a leitura de sua
obra, que devotaram pensões e estátuas em sua honra. É possível que essa tradição seja a que deu origem à lenda, segundo a qual
os de Abdera imploraram a Hipócrates que curasse a loucura de seu concidadão Demócrito. De acordo com outra lenda, esse
Filósofo arrancou seus olhos para evitar melhor as distrações.
91
Eis aqui suas palavras, referindo-se a Demócrito: “Ille atomos quas appellat, id est, corpora individua propter soliditatem, censet
in infinitio inani, in quo nihil summum, nec infimum, nec medium, nec ultimum, nec extremum sit, ita ferri, ut concursionibus inter
se cohaerescant.” De finib., lib. I, cap. VI
83
c) que a constituição, origem e desaparecimento ou morte dessas substâncias depende
exclusivamente da união, várias combinações e separação de átomos e, portanto, que o que é
chamado de geração e corrupção de substâncias não existe no sentido próprio da palavra;
d) que o que é chamado de nascimento e morte em animais e no homem, não tem mais fundamento
ou significado mais real do que a reunião e separação de átomos sob certas condições de número,
relacionamento e movimento.
À dupla hipótese do tempo infinito e do movimento eterno, Demócrito acrescentou a do número
infinito de átomos e suas figuras. E confiando ou partindo dessa tripla hipótese, o Filósofo de Abdera
afirmou que existem muitos mundos, entre os quais alguns eram semelhantes entre si e outros
dessemelhantes, que alguns não tinham sol para iluminá-los, enquanto outros tinham muitos sóis. Também
supunha que esses mundos estariam sujeitos a vicissitudes análogas às experimentadas pelos animais e pelo
homem, de modo que, em um determinado momento no tempo, alguns desses mundos estariam em seu
período de crescimento, outros no auge de sua grandeza e perfeição, outros em um estado de declínio e em
processo de dissolução.
Embora alguns críticos e historiadores da Filosofia, tanto antigos quanto modernos, tenham
acreditado que Demócrito considerava o vazio como uma entidade real e positiva, é muito mais provável,
se não verdade, que ele só quisesse sugerir que o vazio realmente existe, ou seja, que a existência do vazio
absoluto é uma verdade.
Na ordem psicológica, Demócrito ensina que a alma do homem é uma substância composta de átomos
sutis e de figura esférica, como aqueles que constituem o fogo (infinitis enim existentibus figuris et atomis,
quae speciei rotundae, ignem et animam dicit), segundo afirma Aristóteles. A alma deve ser concebida
como um corpo sutil que existe dentro de um corpo mais grosseiro, isto é, dentro do corpo humano,
espalhando e penetrando em todas as partes dele, sem prejuízo de produzir diferentes funções vitais em
seus diferentes órgãos e membros. O calor vital e a mobilidade perpétua que acompanham a alma são
devidos à figura esférica dos átomos que entram em sua composição92, porque esta é a figura que mais se
presta ao calor e ao movimento.
O pensamento, a consciência e a sensação são o resultado da agregação ou combinação diversificada
dos átomos que constituem a substância da alma, e também são a razão e a origem suficientes de suas
variações, de modo que os diferentes fenômenos psíquicos estão relacionados a essas combinações
atômicas. Assim, por exemplo, quando alguns dos átomos que compõem a substância da alma deixam o
corpo, sobrevêm os sonhos e os estados morbosos, que carregam consigo a falta de consciência. Enquanto
os átomos de alma residem dentro do corpo, o homem tem perfeita consciência de si mesmo;
consequentemente, quando todos esses átomos se separam e fogem do corpo, o que chamamos de morte
acontece. Como o pensamento, a consciência e a sensação não pertencem aos átomos por si mesmos e em
si mesmos, mas são o resultado de sua combinação e agregação, quando os átomos das almas se separam
uns dos outros e do corpo em que residiam anteriormente e para o qual viviam, esses poderes e atributos
desaparecem e, com eles, a personalidade humana. Porque não é sem fundamento que Ueberweg afirma
que o movimento circulatório da alma e dos átomos luminosos sustentados pela inspiração e expiração,
representa e constitui o processo e a duração da vida e suas manifestações93, segundo a teoria de Demócrito.
Em boca de Demócrito, a palavra espírito não significa nem uma força suprema e criadora do mundo,
nem mesmo um princípio da natureza superior ao movimento mecânico, essencialmente diferente dele, mas
como que uma matéria mais sutil e brilhante, a par de outras mais grosseiras, ou, se preferir, um fenômeno
que resulta das propriedades matemáticas de certos átomos, considerados em suas relações com outros de
diferentes naturezas e figuras.
Os deuses são para o Filósofo de Abdera, seres análogos à alma em sua origem e composição, sem
outra diferença a não ser serem organizados de forma mais sólida e ter uma vida útil mais longa, sem

92
Referindo-se a este ponto da teoria de Demócrito, o já mencionado Aristóteles escreve: “Harum atomorum autem sphaerica,
animam (constituunt), propterea quod maxime possunt per totum penetrare hujusmodi figurae, et movere reliqua, cum moventur et
ipsa.” De Anima, lib. I, cap. III.
93
“Durch das Einathmen schöpfen wir Seelenatome aus der Luft, durch das Ausathmen geben wir welche an sie ab, und das Leben
besteht so lange, als dieser Process andauert.” Grundriss der Geschich. der Phil., Tomo I, p. 74.
84
estarem livres de decomposição e morte. Esses deuses, embora sejam superiores ao homem e às vezes se
comuniquem com ele através de sonhos, não devem inspirar nenhum medo, já que, além de serem mortais
como nós, estariam sujeitos, como os demais seres, à lei suprema e fatal do destino (fatum), isto é, à lei
imutável do movimento atomístico eterno, necessário e universal ao qual todas as coisas estão sujeitas.
Aristóteles afirma que Demócrito identificava o entendimento com os sentidos: afirmação que está
em perfeito acordo com a doutrina exposta até agora, não menos que com sua teoria do conhecimento.
Verifica-se isso, na opinião de Demócrito, por meio de imagens sutis que passam dos objetos para nossos
sentidos e destes para a alma, determinando no primeiro as sensações ou percepção sensível dos corpos e,
no segundo, o que chamamos de conhecimento intelectual. Não sabemos nada sobre a verdadeira essência
das coisas; pois, através da compreensão, conhecemos apenas a existência dos átomos e do vazio. As
percepções dos sentidos são meras modificações ou afeições subjetivas, e nada nos ensinam acerca da
realidade objetiva das propriedades que atribuímos aos corpos. Calor, frio, amargo, doce, etc. não são nada
mais do que nomes que damos às modificações de nossos sentidos (Locke - Descartes - Kant), mas não
qualidades reais dos corpos. Perceber ou conhecer as próprias coisas, conhecer a realidade objetiva pertence
exclusivamente à razão, a única capaz de perceber e demonstrar a essência e a existência dos átomos, do
movimento e do vazio.
A moral deste Filósofo está toda em uma tranquilidade mental egoísta, isto é, no amor bem
compreendido e no prazer dos prazeres. Evitar e apartar de si tudo o que possa perturbar o ânimo, ou que
possa levar a algum trabalho, algum desgosto, alguma tristeza, alguma comoção violenta, é isso que
constitui o bem para o homem: aqui está em que consiste a virtude. A intemperança e os prazeres sensuais
são vituperáveis, mas é porque e na medida em que produzem satisfação temporária, seguida de desgosto e
saciedade, que excluem a tranquilidade e a plena satisfação do espírito. Daí também que, se ações injustas
devem ser evitadas, é por causa do medo da punição e do sentimento de tristeza interna que eles deixam
para trás. Deve-se dizer que Demócrito também rejeitou o casamento e o amor à pátria, tendo em vista os
desgostos, empregos, cuidados e ansiedade que essas coisas carregam consigo. É sabido que as escolas
revolucionárias e os ateus do nosso século, defensores do amor livre e da pátria universal, sem fronteiras
ou separação de nações e estados, fizeram tanto progresso a ponto de não fazer mais que reproduzir as
doutrinas do Filósofo ateu e materialista, sobre cujo túmulo mais de vinte séculos já se passaram.

§ 44 Crítica ao Atomismo

A escola atomista representa, como indicado, uma reação natural contra os exageros idealistas,
dialéticos e panteístas da escola eleática. Ela poderia ter ocupado um lugar mais honroso na História da
Filosofia, se depois de rejeitar o panteísmo e o abuso do método puramente idealista e apriorístico dos
eleatas, tivesse se dedicado a concluir a Filosofia e as ciências em harmonia com o impulso e as correntes
de Anaxágoras. Em vez de adotar a marcha e a direção teísta-espiritualista do Filósofo de Clazomenes,
Demócrito apenas abandonou a concepção hilozoísta dos antigos jônios e rejeitou a concepção monista e
idealista de Eléia, para a substituir por uma concepção essencialmente materialista e atéia.
Embora a teoria do conhecimento ensinada por esta escola, e principalmente por Demócrito, encerre
germes e tendências de ceticismo, o Filósofo de Abdera não pode ser contado de forma justa entre os céticos
absolutos, já que seu ceticismo se refere apenas à objetividade de certas qualidades94, enquanto percebidas
pelos sentidos. Cícero ou modificou ou entendeu mal o pensamento de Demócrito, quando escreveu a seu
respeito: Ille, verum esse plane negat.

94
O próprio Sexto Empírico, apesar de seu ceticismo e do interesse natural que deveria ter em autorizar seu sistema com nomes
respeitáveis, reconhece que Demócrito não pertence propriamente à escola cética. “Parece a alguns – escreve ele – que Demócrito
raciocina como os céticos, porque ele diz que o mel parece doce para alguns e amargo para outros; mas a escola de Demócrito dá
a essas expressões um significado muito diferente do dos céticos: isso significa apenas que nenhuma qualidade reside no próprio
mel, enquanto nós [os céticos] entendemos que o homem ignora se essas mesmas qualidades ou algunas delas pertençam às coisas
aparentes. Há ainda outra diferença ainda maior entre esta escola e a nossa, já que esta escola, embora comece por apontar a
contradição e a incerteza que reinam no testemunho dos sentidos, afirma, no entanto, de maneira explícita, que os átomos e o vazio
realmente existem."” Hipot. Pyrrhon, lib. I, cap. XXX.
85
Se é pouco exato o juízo daqueles que fizeram de Demócrito um defensor do ceticismo, a opinião
daqueles que assumem que a sua teoria do conhecimento seja essencialmente sensualista é ainda menos
precisa e mais arriscada. Pelo que apontamos acima acerca desse assunto, é fácil reconhecer que a
concepção de Demócrito sobre esse ponto é mais apriorística e racional ou inteligível do que sensual e
empírica. Para ele, os sentidos só percebem impressões subjetivas e, no máximo, fenômenos e efeitos dos
corpos, mas não conhecem a essência e os atributos destes, muito menos os elementos primitivos da
realidade cósmica; porque essa realidade consiste em átomos e movimentos condicionados pelo vazio, e só
a razão é capaz de conhecer a existência, a essência e os atributos desses três princípios cósmicos.
Acrescente a isso que não é crível que Demócrito, que rebaixava o alcance dos sentidos e das faculdades
do conhecimento, tenha atribuído a eles força suficiente para perceber a eternidade do movimento e a
infinitude do vazio.
Não é necessário explicar que o vício capital da escola atomística de Leucipo e Demócrito é o mesmo
que sempre palpita e palpitará no fundo de toda escola materialista e atéia, ou seja, a hipótese gratuita de
um movimento sem começo, sem causa e sem qualquer razão suficiente95, unida a outras hipóteses não
menos gratuitas nem menos racionais. De fato, a base geral, a essência da Filosofia de Leucipo e Demócrito
– como geralmente é o caso de toda a Filosofia materialista – reduz-se a uma dupla hipótese arbitrária: a
existência do átomo com tais ou quais propriedades e atributos – propriedades e atributos que ninguém viu
ou pôde ver – e a existência do vazio absoluto como elemento ou, ao menos, como condição essencial dos
seres – hipótese tão contrária à razão e à experiência como a dos átomos – e, por conseguinte, a existência
de um movimento que entra repentinamente em cena sem se saber por que e sem que se lhe assinale uma
origem ou razão suficiente. De resto, esta escola é lógica em suas deduções e na aplicação de seus
princípios, negando a existência de Deus, a providência, a espiritualidade e a imortalidade da alma humana,
assim como reduzindo a moral a uma questão de cálculo, e ao confundir e identificar a vida e o pensamento
com o movimento dos átomos.
A teoria psicológica de Demócrito apresenta, além de seu materialismo, o sério defeito de tornar a
alma meramente passiva na formação do conhecimento, que vem até nós e nos é imposto por natureza
externa, sem a intervenção da espontaneidade do nosso espírito.
Embora Laércio afirme que Demócrito tenha tido muitos discípulos e seqüazes de sua doutrina,
nenhum homem notável aparece entre eles até o advento de Epicuro, que já pertence a outra época
filosófica. Metrodoro de Quio e Diágoras de Melos, que são os mais famosos discípulos e partidários de
Demócrito, só se fizeram notar por terem desenvolvido os germes do ateísmo e do ceticismo contidos na
doutrina de seu mestre.

§ 45 Empédocles

Empédocles, que, além de Filósofo, foi médico e poeta, nasceu em Agrigento, na Sicília, e buscou a
morte precipitando-se no Etna, desejando ser tido por uma divindade, conforme a tradição popular, apoiada
pelo testemunho de alguns escritores, uma tradição aparentemente aceita por Horácio, o poeta de Venúsia,
quando escreve:
Deus immortalis haberi
Dum cupit Empedocles, ardentem frigidus Aetnam
Insiluit.

95
Ao talento perspicaz de Aristóteles não poderia passar despercebido esse vício radical das escolas materialistas. Assim, ele
chamava a atenção de seus contemporâneos para a gratuidade das afirmações da escola atomista quanto à existência fortuita e sem
origem do movimento cósmico, enquanto, por outro lado – e por uma óbvia inconsistência – pretendia explicar certas mutações
particulares por meio de movimentos fixos e até mesmo através da influência ou ação da inteligência. “Sunt autem quidam, qui et
coeli hujus, et mundanorum omnium causam esse ponunt Casum; a casu enim fieri dicunt revolutionem et motum qui discrevit et
constituit in hunc ordinem Universum. Et valde hoc ipsum admiratione dignum est, quod dicant ipsa quidem animalia ac plantas a
fortuna nec esse, nec fieri, sed aut naturam, aut intellectum, aut quidpiam tale aliud esse causam; non enim quodvis ex semine
unoquoque fit, sed ex tali quidem olea, ex tali autem homo: coelum autem et diviniora sensibilium a casu fieri.” Physic., lib. I, cap.
II.
86
Alguns o tomam por discípulo de Pitágoras e outros de Parmênides; mas seja como for, certo é que
sua Filosofia representa uma espécie de fusão sincrética entre o elemento pitagórico, o eleático e o jônico,
interpretado este último no sentido e com as modificações que recebeu de Heráclito. Aproxima-se dos
eleáticos, negando o fluxo perpétuo de Heráclito; rejeitando, como Xenófanes, o antropomorfismo da
divindade, negando todo valor e importância ao conhecimento sensível e até concebendo o mundo como
um ser universal, esférico, único e imóvel em si mesmo, embora ao mesmo tempo dando origem às
transformações mais ou menos reais das coisas através do amor e da discórdia, que produzem e determinam
as transformações sensíveis e a pluralidade física do único Mundo.
Com os pitagóricos, admitia uma inteligência divina e uma alma universal espalhada por todo o
cosmos e origem das almas humanas, bem como a transmigração das almas e a existência de diferentes
tipos de gênios ou demônios. Ele também concorda com Pitágoras e sua escola por causa da importância
que atribuiu à unidade, considerada por Empédocles como o primeiro princípio das coisas e como o
continente dos quatro elementos, princípios secundários e materiais das coisas, e também por causa de suas
afixações pelo simbólico. Como os pitagóricos, o Filósofo de Agrigento gosta de formas simbólicas e
geralmente faz uso de expressões mitológicas na ciência, dando, por exemplo, o nome de Juno à Terra, o
de Nestis à água, chamando Plutão ao ar e Júpiter ao fogo.
Finalmente, em harmonia com a direção e as tendências da escola jônica, ele admitiu a existência de
quatro elementos primitivos das coisas, terra, água, ar e fogo; e, seguindo o exemplo de Heráclito, deu a
este último um papel muito importante e preferencial na produção das coisas. De resto, a linguagem
simbólica e a maneira poética com que o Filósofo de Agrigento registrou suas ideias, não permitem discernir
com total certeza suas verdadeiras opiniões sobre certas questões, que parecem resolvidas mesmo em um
sentido contraditório96, ou pelo menos de difícil conciliação. Assim, nós o vemos, por um lado, falando
sobre os quatro elementos e até mesmo dando-lhes nomes divinos (Júpiter, Juno etc.), atribuindo a eles, em
união com o amor e o ódio, a produção e a pluralidade de substâncias; e, por outro lado, o vemos se referir
e como que absorver e identificar todas as coisas em uma unidade superior.
De resto, não é de surpreender que encontremos contradições na doutrina de Empédocles, já que
Aristóteles97 também as encontrou, apesar de estar em condições mais favoráveis do que nós para conhecer
seu pensamento.
Mesmo no que diz respeito às ideias e afirmações que constituem, por assim dizer, a base e o fundo
essencial de sua teoria cosmológica, o pensamento de Empédocles não era constante, muito menos lógico,
a julgar pelo que relata o Estagirita, excepcional testemunha na matéria. Este, depois de afirmar que, para
Empédocles, os quatro elementos são a matéria ou substância das coisas, assim como que a amizade e a
inimizade, ou concórdia e discórdia, representam a causa eficiente de suas mutações e diferenças, e depois
de assumir que a função da amizade é unir, e a da inimizade ou discórdia é separar e dissolver, ainda assim,
em outros lugares de seus escritos, vem a dizer que a amizade separa e a inimizade ou discórdia une: Multis
enim in locis apud eum(Empedocles), amicitia quidem disjungit, contentio vero conjungit.

Parece mais provável, contudo, que – deixando de lado certas idéias sobre a origem, queda e
transmigração das almas, idéias que pertencem mais às tradições místico-religiosas que Pitágoras trouxe do
Oriente do que a seu sistema filosófico – a tese doutrinal e filosófica de Empédocles seja resolvida em um
mecanismo materialista. Segundo ele, não é apenas o conjunto dos corpos que é composto e resulta dos
quatro elementos, mas também o dos espíritos, ou, pelo menos, a alma humana, que conhece na medida em

96
É sabido que Empédocles expôs seu sistema em um ou mais poemas, dos quais conhecemos apenas alguns fragmentos,
preservados por escritores antigos. Supõe-se geralmente que o que temos hoje com o título de Expiações faça parte de um grande
poema sobre a Natureza. Alguns críticos atribuíram a ele os famosos Versos Áureos, relacionados à doutrina pitagórica; mas essa
opinião carece de uma base sólida.
97
Veja-se como prova uma das várias passagens em que ele destaca as contradições do filósofo siciliano: “Empedocles igitur ipse,
videtur contraria dicere, et ad apparentia, et ad seipsum. Simul enim dicit alterum ex altero non fieri elementorum ullum, sed alia
omnia ex his: simul autem, in unum cum junxerit naturam omnem, praeter litem, ex uno fieri rursus unumquodque.” De Gener. et
Corrupt., lib. I, cap. I.
87
que contém em si os quatro elementos (dos quais consistem as coisas conhecidas) e as duas causas
motoras98, ou seja, amizade e discórdia.
Acreditamos, portanto, que não é muito fundamentada nem muito exata a opinião de Lange quando
escreve:
Empédocles de Agrigento não deve ser considerado como materialista, porque em sua teoria
a força e a matéria ainda estão sistematicamente separadas. Ele foi provavelmente o primeiro,
entre os gregos, a dividir a matéria em quatro elementos, teoria que deve a Aristóteles
vitalidade tão tenaz, que até hoje se encontram vestígios dela na ciência. Além desses
elementos, Empédocles admitiu duas forças fundamentais, o amor e o ódio, encarregadas, na
formação e destruição do mundo, uma delas de atração e outra de repulsa. Se Empédocles
tivesse considerado essas forças como qualidades dos elementos, poderíamos facilmente
colocá-lo entre os materialistas... mas essas forças fundamentais são independentes da matéria,
que triunfam alternadamente em grandes intervalos. Quando o amor reina como mestre
absoluto, todos os elementos reunidos desfrutam de paz harmoniosa e formam uma imensa
esfera: se o ódio prevalecer, tudo é separado e disperso99.
Parece-nos muito duvidoso que Empédocles tenha considerado essas duas forças separadas e
independentes da matéria, como Lange supõe, sendo muito mais natural e mais conforme ao conjunto e às
aplicações do sistema deste Filósofo supor que ele só designou com os nomes de amor e ódio – em harmonia
com seu estilo poético e figurativo – as forças de atração e repulsa inerentes à matéria e não separadas dela.
De outra parte, e com maior abundância, nosso modo de ver neste ponto é confirmado pelas ideias
cosmogônicas do Filósofo de Agrigento, idênticas em substância às que as várias escolas materialistas
professaram. Na teoria de Empédocles, o amor e o ódio, quer dizer as forças que produzem a união e a
separação dos elementos e seres, a formação e destruição dos mundos, funcionam cegamente e sem sujeição
a um determinado plano ou propósitos preconcebidos. A formação dos corpos se deve à colisão acidental
dos elementos produzidos e determinados pelas duas forças mencionadas. Os organismos representam
ensaios casuais e combinações da natureza, que alternadamente formam e destroem suas partes e órgãos,
até que se unam acidentalmente da maneira apropriada a constituir um organismo capaz de se reproduzir,
em cujo caso se conserva, perecendo e desaparecendo os seres que representam como que suas tentativas e
ensaios (Lamarck - Darwin), os organismos anteriores e imperfeitos.
A julgar pelo que Aristóteles indica em seu tratado De sensu et sensato, Empédocles cria que a visão
se verifica por meio da luz, que, saindo do olho, ilumina os corpos externos – opinião que S. Alberto Magno
também atribui a Empédocles100 em termos ainda mais explícitos, quando afirma que, para ele, a luz que
sai da nossa vista preencheria todo o hemisfério que está acima do horizonte do espectador: Concessit quod
a visu egreditur pyramis luminis, quae implet totum haemispherium et sufficit ad omnia visibilia contuenda.

98
Este ponto não deixa dúvidas, segundo o testemunho terminante de Aristóteles, que cita as próprias palavras do Filósofo de
Agrigento: “Empedocles quidem ex elementis omnibus esse autem et unumquodque horum animam, sic dicens: Terra quidem
terram cognoscimus, aqua autem aquam, aethere vero aethera Divuum, sed igne ignem lucidum: concordiam autem concordia,
discordiam vero discordia tristi.” De Anima, lib. I, cap. III.
99
Histoire du Material., trad. Pommerol, Tomo I, cap. I.
100
“Et opinio quidem, escribe este, Empedoclis fuit haec, quod dixit visum (organum visus) esse ignis naturae, a quo continuo
emittitur lumen sufficiens ad omnium visibilium discretionem. Cum autem, ab omni luminoso egrediatur lumen ad modum
pyramidis formatum, dicebat quos ab oculis egrediuntur tot pyramides, quot visibilia videntur; basis autem illius pyramidis, ut
dixit, est res visa, et conus est in puncto oculi.” Opera omn., tomo V, trat. I, cap.V.
88
§ 46 Os sofistas

Originalmente, o nome de sofista não trazia consigo a ideia desfavorável que hoje lhe atribuímos,
pois esta denominação era dada àqueles que faziam profissão de ensinar a sabedoria ou a eloqüência.
Contando apenas a partir do tempo de Sócrates e Platão, o sofista tornou-se um homem que faz ostentação
e profissão de enganar os outros por meio de malandragem e sofisma; que considera e pratica a eloqüência
como meio de lucro; que se gaba de defender todas as causas, e que procede em seus discursos e em suas
ações como se a verdade e o erro, o bem e o mal, a virtude e o vício fossem coisas, ou inatingíveis, ou
convencionais, ou indiferentes. Tais eram os que na era socrática apareciam em Atenas, depois de percorrer
vilas e cidades, ostentando sua profissão e sua habilidade sofística.
Por uma combinação de circunstâncias especiais, Atenas tornou-se o ponto de encontro e o lar adotivo
dos sofistas: a maneira solene, pública e ruidosa com que expunham suas teorias, o brilho de sua eloqüência,
os aplausos que os seguiam de todos os lados, as máximas morais – ou melhor, imorais – que
professavam, tudo estava em perfeita harmonia e relação. O estado social, religioso e
moral da cidade de Minerva; a heróica luta que travara em defesa da liberdade dos
gregos; os nomes de Miltíades e Temístocles; os dias de Maratona e de Platéia; o
triunfo de Salamina excitaram maravilhosamente o entusiasmo dos atenienses,
desenvolvendo a sua atividade em todos os sentidos, despertando e animando o
gênio da ciência, da indústria e das artes, fizeram da pátria de Sólon101 (imagem ao lado)
a pátria comum e a capital intelectual e moral de toda a Grécia. As riquezas e
tesouros da Ásia e da Pérsia, do continente helênico, das ilhas confederadas afluíram
para ela, derramando em seu seio a opulência e, com isso, o luxo, a facilidade e o
relaxamento dos costumes públicos e privados. Os últimos representantes da escola fundada por Tales
também acorreram a ela, deixando a Jônia, ameaçada tanto pelo despotismo persa quanto pelas extorsões
dos próprios gregos. Os sucessores de Demócrito, os de Parmênides e os últimos resquícios do pitagorismo
também se aglomeraram em Atenas, alguns atraídos pelo brilho e cultura da metrópole intelectual da Grécia,
e outros forçados pela discórdia civil em sua terra natal. Acrescente-se a isso a supremacia política exercida
por Atenas, o prestígio da vitória que acompanhou suas armas por toda parte e o esplendor com que ungiram
sua fronte historiadores como Heródoto e Tucídides, poetas como Sófocles e Eurípides, artistas como Fídias
e Praxíteles. Acima de tudo, tenha-se em mente que foi o foco de todas as intrigas políticas, e reconhecer-
se-á que aquela cidade estava nas condições mais favoráveis para ser visitada e explorada pelos sofistas, e
para servir de palco aos seus empreendimentos.
Entre as principais causas que contribuíram para o surgimento dos sofistas nesta época, pode-se
contar também o estado da Filosofia então: a luta entre as escolas jônica e pitagórica, entre a eleática e a
atomística; a contradição e oposição de suas doutrinas, direções e tendências; as fórmulas matemáticas, o
esoterismo e as doutrinas simbólicas da escola de Pitágoras; as especulações abstratas e apriorísticas dos
eleatas, bem como sua negação radical da experiência e dos sentidos; a doutrina diametralmente oposta dos
atomistas e de Heráclito, juntamente com as sutilezas dialéticas de Zenão, não tinha como não conduzir –
e, de fato, conduziu – ao ceticismo em uma sociedade predisposta a prescindir da verdade e da virtude,
pelas diversas causas que existem. Assim sucedeu na realidade, e o estrondo das lutas entre pitagóricos e
jônios, entre eleatas e atomistas ainda não havia cessado, quando já ressoava a voz de Protágoras, Górgias
e diversos outros sofistas que andavam pelas ruas da cidade de Sólon, seguidos por numerosos e brilhantes
jovens, ansiosos por ouvir seus discursos pomposos, e mais ainda por ouvir e aplaudir suas máximas
morais102, que estavam em perfeita harmonia com os gostos e costumes da sociedade ateniense da época.

101
Alcunhado de “árbitro da constituição” por Aristóteles, Sólon (Σόλων, 638 a.C. – 558 a.C.) é um dos Sete Sábios e configurou,
como estadista, a estrutura da democracia ateniense com a criação da Eclésia (Εκκλησία). [N.T.]
102
Em um de seus diálogos, Platão nos apresenta o sofista Protágoras, comovendo toda a pólis com sua chegada. Cálias, um dos
principais cidadãos de Atenas, o recebe e o apresenta em sua casa, que se mostra repleta de convidados que acompanham o
renomado sofista. Ele é cercado e seguido o tempo todo e por todos os lados por vários outros sofistas, entre eles Hípias de Eléia e
Pródico de Chios; não poucos estrangeiros vieram com ele ou atraídos pela fama; multidão de cidadãos, os mais ilustres de Atenas,
entre os quais dois filhos de Péricles e o jovem Alcibíades: “Atrás deles – acrescenta Platão – marchava uma multidão de pessoas,
a maioria estrangeiras que Protágoras sempre carrega consigo e que, como outro Orfeu, arrasta com o encanto de sua voz ao passar
89
Sabe-se que, desde Platão, o nome sofista representa para todos os escritores em todas as épocas e
escolas filosóficas, a imoralidade sistemática, o caráter venal, o charlatanismo filosófico, a dialética e as
teorias falaciosas. Em nosso século, Hegel, que não sem razão foi chamado por alguns de o grande sofista
de nosso tempo, tentou reabilitar o nome e a memória dos
antigos sofistas, tarefa na qual foi imitado e
seguido por muitos de seus seguidores,
apoiadores e também por alguns outros
críticos e historiadores, entre os quais se
destacam Grote em sua História da Grécia e
Lewes em sua História da Filosofia. É possível
que a gravidade austera de Platão, superexcitada
pela morte injusta de seu mestre, tenha
sobrecarregado um pouco as cores ao falar dos
sofistas em seus diálogos, e principalmente ao tratar
das lutas de Sócrates contra eles; mas disso não se
segue de forma alguma que devam ser considerados
quase como modelos e genuínos representantes da
Filosofia, de seu método e de seus princípios morais,
como afirmavam Hegel, Lewes e Grote.
Além disso, mesmo assumindo algum exagero contra
os sofistas na pintura que deles fez o discípulo de Sócrates, não é crível que esse
exagero tenha degenerado em calúnia, especialmente quando ele os apresenta como corruptores dos
costumes públicos e privados, já que quando Platão publicou seus diálogos, ainda viviam muitas pessoas
que conheceram e trataram com os sofistas acusados.

§47 Protágoras
“O homem é a medida de todas as coisas”
O mais famoso, e talvez o mais filosófico dos sofistas, foi Protágoras, nascido em Abdera e
contemporâneo de Sócrates. Depois de percorrer várias cidades da Itália e da Grécia,
ele se estabeleceu em Atenas, provavelmente por volta de 450 a.C. Depois de alguns
anos, pereceu em um naufrágio, fugindo de Atenas, onde havia sido condenado à
morte por causa de suas visões semiateístas.
A doutrina de Protágoras está suficientemente exposta, ou pelo menos
indicada, na seguinte passagem de Sexto Empírico: “O homem é a medida de
todas as coisas. Protágoras faz do homem o critério, que aprecia a realidade
dos seres, enquanto existem, e do nada, enquanto não existe. Protágoras não
admite mais do que aquilo que se manifesta aos olhos de cada um. Tal é, em
sua teoria, o princípio geral do conhecimento... A matéria, de acordo com
Protágoras, está em fluxo ou mudança contínua; enquanto ela experimenta
acréscimos e perdas, os sentidos também mudam em relação à idade e outras
modificações do corpo. O fundamento de tudo o que aparece aos sentidos reside na matéria; de modo que
ela, considerada em si, seja tudo o que a cada qual se apresenta. Por outro lado, os homens, em diferentes
momentos, possuem diferentes percepções, em relação às transformações que as coisas percebidas
experimentam. O que se encontra em estado natural percebe na matéria as coisas como elas podem aparecer
aos que se encontram em tal estado; aqueles que se encontram em um estado contrário à natureza, percebem
as coisas que podem aparecer nesta outra condição. O mesmo fenômeno ocorre em diferentes idades, no

pelas cidades. Ao ver aquela multidão, experimentei um prazer especial, observando com que discrição e respeito ele andava
sempre de costas: quando Protágoras se virava no passeio, eu os via espalhados em silêncio religioso, esperando que ele passasse
para segui-lo. » Opera Plat. Protag. seu de Soph.
90
sono, na vigília e em outras disposições. Portanto, segundo este filósofo, o homem é o critério daquilo que
ele é, e tudo o que aparece como tal ao homem existe: o que não aparece ou se apresenta aos homens não
existe”103: Est Est ergo, secundum ipsum, homo criterium rerum quae sunt; omnia enim quae apparent
hominibus, etiam sunt, quae autem nulli hominum apparent, nec sunt quidem.
Desta passagem e do que Platão, Aristóteles e alguns outros escreveram sobre Protágoras, fica
bastante claro que o sistema deste sofista era uma espécie de subjetivismo sensualista, que se resolve nas
seguintes afirmações: 1º não há verdade absoluta, mas verdade relativa; 2º a percepção sensível é para o
homem a medida e mesmo a razão ou causa da realidade objetiva das coisas: o que o homem percebe pelos
sentidos é tudo verdadeiro.
Quanto à existência de Deus, é natural que Protágoras a negue ou questione, já que não é objeto dos
sentidos. Por isso dizia que a obscuridade da matéria e a brevidade da vida não lhe permitiam afirmar se
os Deuses existem ou não, e qual é a sua natureza, se é que existem. Não é estranho, em vista disso, que
alguns autores o tenham contado entre os partidários do ateísmo e que os atenienses o perseguissem104 e o
acusassem por causa disso.
Apesar das aparências em contrário, o sistema de Protágoras se resolve no puro ceticismo: afirmar
que todas as percepções dos sentidos são verdadeiras, embora reconheça que muitas vezes são opostas e
contraditórias, não apenas em diferentes sujeitos, mas no mesmo em relação ao que é diverso, ou às
mudanças de idade, de influências externas e disposição do corpo, equivale a dizer que são todas igualmente
falsas, pois não há verdade na contradição; equivale a reconhecer que não podemos discernir entre verdade
e erro, entre aparência e realidade. Existe, portanto, no fundo desse sistema um
verdadeiro ceticismo, que poderíamos chamar de ceticismo per excessum. Se as
várias e contraditórias percepções dos homens são a medida da realidade e verdade
das coisas, realidade e verdade são palavras vazias e representam algo inatingível
para o homem.
O sistema ou teoria de Protágoras oferece alguma analogia com a teoria de
105
Fichte (imagem ao lado). Assim como para este o pensamento é a medida e a causa da
realidade objetiva ou do não-eu [Nicht-Ich] – o qual existe na medida em que é
pensado e posto pelo eu [Ich] –, para o sofista, a percepção dos sentidos, o eu sensitivo, põe,
determina e regula a realidade. Ao subjetivismo intelectualista e idealista do filósofo alemão corresponde
o subjetivismo sensualista do sofista grego.

§ 48 Górgias

No ano 427 a.C., os habitantes de Leôncio, na Sicília, enviaram a Atenas,


como embaixador, seu compatriota Górgias, que, como Protágoras, fez profissão
de sofista, chamando também a atenção dos atenienses com seus discursos e
eloquência. Górgias fazia profissão de ser retórico, mas sem incluir nela a
ciência universal [i.e. a Filosofia]. No diálogo que leva o nome de Gorgias seu
de Rethorica, Platão nos apresenta este sofista vangloriando-se de ter respondido
a todas as questões que lhe foram propostas, oferecendo-se, claro, para verificar
as mesmas então106.

103
Hypot. Pyrrhon., cap. XXXII.
104
“Protagoras autem dissertis verbis scripsit: de Diis autem, nec an sint, neque quales sint, possum dicere; multa enim sunt quae
me prohibent. Quam ob causam, cum eum capitis damnassent Athenienses, fugiens in mari periit naufrágio”. Sextus
Empir., Adversus Mathemat., lib. VIII.
105
Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), é considerada como uma ponte entre as ideias de Kant e as de Hegel. Em gnosiologia,
versou sobre o problema da subjetividade e da consciência. Em política, foi um dos fundadores do nacionalismo germânico, que
viria a se tornar um dos pilares da política externa do Reich nazista. [N.T.]
106
“Jussit ergo paulo ante, omnes qui intus aderant, ut quam quisque vellet quaestionem induceret, se singulis responsurum
promittens... dic mihi, o Gorgia, num vere dicit Calicles te profiteris responsurum ad omnia, de quibus quilibet sciscitetur?
91
A doutrina de Górgias é uma espécie de ceticismo niilista, contido nas três proposições a seguir:

1º Nada existe.
2º No caso de algo existir, não poderia ser conhecido pelo homem.
3º Na hipótese de que algum homem sabia disso, ele não poderia explicá-lo e torná-lo conhecido a
outros homens.

Sexto Empírico, a quem não se pode negar competência nestes assuntos, especialmente quando se
trata de teorias mais ou menos céticas, resume os argumentos de Górgias em apoio à primeira proposição
nos seguintes termos:
“[1º] Primeira proposição: Nada existe. Em primeiro lugar, o nada não existe, pela própria razão de
que nada é. Em segundo lugar, a realidade também não existe; porque esta realidade seria ou [1] eterna ou
[2] produzida, ou [3] ambas ao mesmo tempo. Se [1] é eterno, não teve começo e seria infinito, mas o
infinito não existe em parte alguma; porque se existisse em algum lugar, seria distinto do recipiente, estando
incluído no espaço que o recebe: portanto, esse espaço é diferente do infinito e maior do que o infinito, o
que repugna à noção de infinito. Se [2] foi produzido, ou [2a] o foi de uma coisa existente, ou [2b] de uma
coisa inexistente: no [2a] primeiro caso, não é produzido, porque já existiria no que o engendrou; mas é
contraditório dizer que uma coisa foi produzida e não produzida. A [2b] segunda hipótese é absurda...
Enfim; a realidade e o nada não podem existir ao mesmo tempo em relação à mesma coisa”.
Em defesa da [2º] segunda proposição, Górgias argumentou que, para que possamos conhecer a
existência e a realidade das coisas, seria necessário que houvesse uma relação necessária entre nossos
conceitos e a realidade, ou seja, que a representação de nosso pensamento como sendo idêntica à própria
realidade e existindo como a concebemos e sob a mesma forma de nossa concepção; o que certamente é
um absurdo, porque senão seria preciso admitir que se eu concebo, por exemplo, que um homem voe pelo
ar, realmente aconteceria assim.
Dado o caso de [3º] que o homem pudesse ou viesse a conhecer algo, seria impossível para ele
comunicar esse conhecimento a outros; porque o meio de comunicação que possuímos com relação aos
outros homens é a linguagem, e esta não é idêntica aos objetos, isto é, às coisas reais que se supõem
conhecidas. Assim como o que é percebido pela visão (como a luz e as cores) não é percebido pelo ouvido,
e vice-versa, também o que existe fora de nós é diferente da linguagem. Transmitimos a outros homens
nossas próprias palavras, mas não coisas reais: a linguagem e a realidade objetiva constituem duas esferas
inteiramente diferentes; o domínio de um não atinge o outro.

§ 49 Crítica

Górgias representa a última evolução da escola eleática, considerada em sua fase dialética e em seu
elemento criteriológico. Discípulo de Zenão, o temível dialético dessa escola, Górgias aplicou ao ser único,
à realidade abstrata dos eleatas, os argumentos que seu mestre usara para combater a existência do espaço,
do movimento e, em geral, do mundo sensível, transformando, assim, em niilismo cético o idealismo
absoluto de Parmênides e Zenão. Como forma de estabelecer e consolidar sua tese cética, Górgias insiste
principalmente na independência e separação entre o sujeito e o objeto, entre o real e a faculdade de
conhecer. Vemos a cada passo, diz ele, que um sentido não percebe o que outro sentido percebe; vemos,
ainda, que o entendimento concebe coisas ou noções que não são alcançadas pela percepção dos sentidos:
portanto, não há relação necessária entre nossas representações cognitivas e os objetos ou coisas a que se
referem, pois essas coisas existem ou parecem existir sem serem percebido pelas faculdades de
conhecimento.
Já destacamos antes que há certa afinidade entre o sistema de Protágoras e o de Fichte, e agora
devemos acrescentar que a doutrina de Górgias tem uma afinidade semelhante e mais palpável com a teoria

“Gorg.: Vere ait, o Cherepho: nempe, modo id ipsum praedicabam, atque adeo nihil novi a me quemquam multis annis perconctatum
esse dico”. Op. Plat. Mars. Fic. interpr., pag. 337.
92
crítica de Kant. Para o sofista siciliano, a ordem sensível não existe para nós como real e objetiva, mas
como uma aparência fenomênica: para o filósofo alemão, a realidade objetiva do mundo sensível [númeno]
é igualmente desconhecida para nós; percebemos apenas as modificações internas que os corpos
determinam em nós, os fenômenos e as aparências, e mesmo isso sujeito às formas subjetivas do espaço e
do tempo. Ambos estabelecem, não a distinção real, mas a cisão entre a ordem ideal e a ordem real, entre a
percepção e o objeto, entre a ordem subjetiva e a ordem objetiva. Sem dúvida, a argumentação filosófica,
o procedimento crítico e as obras científicas do filósofo de Koenisberg valem muito mais,
incomparavelmente mais do que a argumentação e as obras do sofista leontino; mas isso não significa que
não haja grande afinidade – para não dizer mesmo identidade – entre um sistema e outro, afinidade que se
revela até naquilo que constitui o princípio fundamental, o carácter essencial do antigo sistema, isto é, a
separação absoluta e cisão entre a ordem subjetiva e a ordem objetiva. Deste ponto de vista, Górgias pode
ser justamente considerado o ancestral do autor da Crítica da Razão Pura, com suas intuições a priori, com
seu esquematismo da razão e com suas categorias e noções a priori. Também vale notar que o argumento
usado por Górgias em favor de sua primeira tese é basicamente idêntico ao usado por Kant ao expor a
primeira de suas antinomias cosmológicas.

§ 50 Outros sofistas

Entre os muitos sofistas que pulularam na Grécia, e especialmente em Atenas, na mesma época, os
seguintes são considerados os mais notáveis:

a) Hípias de Elis, que, além da eloqüência, possuía conhecimentos especiais sobre matemática e
astronomia. Segundo Platão, ele ensinou que as leis são tiranas dos homens, porque os obrigam a agir contra
as inclinações da natureza. Esta tese está em harmonia com aquela que Tucídides atribui a outros sofistas,
a saber: que a única regra do que é justo e verdadeiro é que o forte deve comandar o fraco.

b) Pródico de Ceos [Κέως], o qual – segundo Sexto Empírico – ensinava que “o sol, a lua, os rios, as
fontes e, em geral, tudo o que é útil à nossa vida, foi endeusado pelos povos antigos por causa da utilidade
que essas coisas relataram”; ele professava a opinião de que a alma humana é o resultado da organização.
Tanto ele quanto Diágoras e alguns outros sofistas eram considerados ateus, embora o medo das leis os
obrigasse a esconder suas opiniões sobre o assunto.

c) Crítias, um dos Trinta Tiranos107 de Atenas, dizia que os deuses e a religião eram invenções da
política para manter o povo sujeito, e que a alma humana reside no sangue e se identifica com ele.

d) Contemporâneos e sucessores destes foram Polo, um discípulo de Górgias; Trasímaco, nativo de


Calcedônia; Eutidemo, de Quio, com alguns outros de que se faz menção nos diálogos de Platão e nas
obras do Sexto Empírico.

As doutrinas morais e religiosas dos sofistas correspondiam às suas ideias céticas e ateístas. A base
de sua moralidade não era a ideia do que era justo e bom, mas o que era útil e agradável. É por isso que
subordinaram a moral à política, em vez de fundar esta na primeira. O que indicamos em relação às suas
teorias filosóficas e às suas ideias religiosas, está em harmonia com a doutrina que Cícero atribui aos
sofistas em geral, a saber: que tudo o que existe é resultado do acaso, e que as coisas humanas não tem
nada a ver com uma providência divina. Por fim, sabe-se que Platão em suas obras, e principalmente no

107
Os Trinta Tiranos (οἱ τριάκοντα τύραννοι) foram os magistrados que, oligarquicamente, governaram Atenas no ano de 404
a.C., após a derrota para Esparta na Guerra do Peloponeso. Segundo o geógrafo Pausânias, eles aquiesceram à condição imposta
pelos espartanos de destruir a famosa muralha de Atenas construída por Temístocles após a retirada dos persas. Segundo Plutarco,
os tiranos foram estabelecidos sobre Atenas pelos aliados de Esparta e mantidos por guarnição espartana que sitiava a Acrópole.
Encabeçados pelo sofista Crítias – que fazia avant la letre, as vezes de Robespierre –, executaram mil e quinhentos homens sem
julgamento, conforme o testemunho de Aristóteles e Isócrates Foram depostos por Trasíbulo, que invadira a cidade com 60 soldados
de Tebas. [N.T.]
93
diálogo Teeteto, apresenta os sofistas como negadores da distinção entre virtude e vício, como inimigos da
moralidade, e como corruptores dos costumes públicos e privados.

Os Trinta Tiranos
Platão (Carta VII)
O regime de governo existente, sujeito a críticas diversas, conduziu a uma revolução. À testa da novo regime,
51 cidadãos foram eleitos chefes: 11 na Pólis, 10 no Pireu (estes dois grupos foram encarregados da Ágora e de
tudo o que concernia à administração); e trinta constituíam a autoridade superior com poder absoluto. Vários
dentre eles, sendo ou meus familiares ou conhecidos, logo me atraíram a si, para tarefas que me convinham.
Alimentei ilusões que não tinham nada de espantoso devido à minha juventude. Imaginava, de fato, que eles
governariam a Pólis, desviando-a dos caminhos da injustiça para os da justiça. Observava também com ansiedade
o que iriam fazer. Ora, vi aqueles homens, em pouco tempo, fazerem lamentar os tempos do antigo regime, como
uma idade de ouro. Entre outros, ao meu querido e velho amigo Sócrates, que não me canso de proclamar como o
homem mais justo do seu tempo, quiseram associá-lo à tentativa de levar pela força um cidadão a ser condenado
à morte, isto com o objetivo de, por alguma forma, o comprometerem na sua política. Sócrates não obedeceu:
preferiu expor-se aos maiores perigos, a tornar-se cúmplice de ações criminosas. Face a todas estas coisas e a
outras do mesmo gênero, e de não menos importância, fiquei indignado e afastei-me das misérias dessa época.
Depressa os trinta caíram e, com eles, todo o seu regime. De novo, e ainda que com maior prudência, estava
desejoso de me ocupar das tarefas do Estado. Ocorriam então, já que era um período perturbado, muitos fatos
revoltantes e não é de admirar que as revoluções tenham servido para multiplicar os atos de vingança pessoal.
Entretanto, os que regressaram usaram de bastante mais moderação. Mas, sem que eu me desse conta de como
acontecia, cidadãos poderosos conduzem aos tribunais este mesmo Sócrates, nosso amigo, e fizeram-lhe uma
acusação das mais graves, que de forma alguma ele merecia: é por impiedade que uns o acusam diante do tribunal
e outros o condenam e fazem morrer o homem que, quando eles próprios afastados do poder e caídos em desgraça,
não quis participar na criminosa prisão de um dos seus amigos, então banido.

§ 51 Crítica geral do Primeiro Período

Como já indicamos, o que distingue e caracteriza esse período pré-socrático da Filosofia grega é a
predominância da ideia cosmológica. A origem, formação e constituição do mundo constituem o objeto
preferencial e quase exclusivo de todas as escolas filosóficas que nele aparecem, apesar de seus métodos
muito diversos e de suas direções conflitantes. O empirismo jônico, o materialismo dos atomistas, as
fórmulas matemáticas dos pitagóricos e as especulações idealistas dos eleatas representam esforços,
caminhos e métodos diferentes da razão filosófica, mas todos subordinados ao pensamento cosmológico.
Este pensamento absorve tanto a atenção do espírito humano neste período que dificilmente se pode
encontrar em suas escolas e filósofos algumas máximas morais, alguns princípios teológicos, algumas
idéias psicológicas incompletas e talvez semeadas.
Ademais, este fenômeno está em perfeita concordância com a própria natureza do espírito humano,
ou, se preferir, com as leis que regem e presidem o desenvolvimento da atividade espiritual ou mental: o
espírito se dirige espontaneamente ao objeto antes que ao sujeito; porque o ato direto é naturalmente anterior
ao ato reflexo. Por outro lado, é certo que o conhecimento sensível – chame-se este de ocasião, origem ou
condição do conhecimento intelectivo – é anterior a ele e determina em parte sua gênese e suas
manifestações. Sendo, então, o mundo externo e material que solicita a ação dos sentidos, é também o
primeiro objeto que solicita e concentra a atividade intelectual.
Os sofistas iniciam um movimento de inversão do objeto para o sujeito. O pensamento, que até então
só se ocupava com o mundo exterior, fecha-se sobre si mesmo e começa a fixar o olhar no mundo interior.
A Filosofia anterior aos sofistas havia investigado, meditado, feito uso da lógica, usado diferentes formas
de argumentação, seguido uma variedade de métodos; mas sem refletir sobre essas formas e métodos de
conhecimento, sem ter consciência reflexa disso; em uma palavra: sem fixar a atenção e sem examinar as
condições do conhecimento humano. Os sofistas, depois de atacar e demolir os sistemas cosmológicos da
Filosofia de então, opondo-se, colocaram o problema crítico, e se é verdade que não souberam dar-lhe a

94
solução certa, também é verdade que a sua mera abordagem comunicava um novo rumo ao pensamento
humano, que desde então passou a ser estudado, afirmado e conhecido como sujeito diante de um objeto.
Deste ponto de vista, e neste sentido, não há dúvida de que os sofistas – no que nos interessa –
representam um movimento de progresso, pois com eles e por meio deles o elemento subjetivo recebe
direito de existência na especulação filosófica, e ocupa o seu lugar na História da Filosofia ao lado do
elemento objetivo. Disso se pode verdadeiramente dizer que os sofistas prepararam o terreno que Sócrates
viria a cultivar, e representam a transição do período cosmológico para o período psicológico ou
antropológico, iniciado por Sócrates, desenvolvido e aperfeiçoado pelas escolas e Filósofos que constituem
o movimento socrático.
Tenha-se presente, contudo, a fim de não exagerar o mérito ou o progresso que corresponde aos
sofistas, que, muito embora tenham levantado o problema crítico, o fizeram de forma indireta, pela negação
da realidade e da verdade objetiva. Já quanto à forma de resolvê-lo, longe de dar a solução certa, só
souberam fechar-se num ceticismo estreito e individualista.
Entre as características gerais da Filosofia no período pré-socrático, figuram a obscuridade da
expressão e a consequente obscuridade dos conceitos. Heráclito é chamado por seus contemporâneos de
Obscuro, por causa daquela falta de clareza que reina em seus escritos. Dos antigos jônios e pitagóricos,
restam pouco mais do que frases lacônicas, máximas soltas, vagas indicações históricas, fórmulas de
significado duvidoso. Parmênides e Empédocles expõem, ou melhor, sugerem suas doutrinas em poemas
alegóricos e com palavras metafóricas de significado duvidoso. Assim é que também deste ponto de vista,
os sofistas representam um progresso, visto que expunham seus conceitos em prosa e em termos claros e
precisos. Os sofistas prejudicaram a Filosofia, fazendo-a perder sua profundidade e atacando todas as suas
verdades; contribuíram, porém, para a divulgação dos conhecimentos científicos, e para difundir ideias
filosóficas em todas as classes sociais. Se a solidez ou substância da doutrina correspondesse à forma, os
sofistas teriam prestado um verdadeiro serviço à ciência e à sociedade.

§52 Olhar retrospectivo

Antes de entrar no segundo período da Filosofia Grega, será bom dar uma olhada rápida no caminho
que acabamos de percorrer. Isto é tanto mais necessário quanto se trata aqui do primeiro período da Filosofia
Helênica, e, consequentemente, de um período que envolve certa confusão e padece das hesitações inerentes
e comuns a tudo o que se inicia.
Quais são os traços dominantes e característicos desse período? Quais são as evoluções e o processo
da ideia filosófica através dos nomes e das escolas cuja história acabamos de esboçar?
Prescindimos aqui da Filosofia Grega considerada em seu estado primitivo e rudimentar, em seu
estado pré-filosófico, por assim dizer, em seu estado de incubação; porque não se pode falar de escolas, de
personagens e de sistemas filosóficos quando se chamava de Filosofia o mero conhecimento e prática das
coisas boas; quando o nome de Filósofos foi dado a pessoas que se distinguiam do vulgo ou da generalidade
dos homens por algum conhecimento e prática do bem: Omnis rerum optimarum cognitio, atque in his
exercitatio, philosophia nominata est, segundo Cícero, e conforme indicado antes dele por Heródoto e
Tucídides.
Atendo-nos, então, ao período propriamente filosófico que se inicia com Tales e termina com os
sofistas, período em que a Filosofia Helênica já oferece um certo organismo científico e aspecto sistemático,
diremos que

a) Para a escola jônica, a matéria é o ser-todo e o princípio dos seres particulares, cujos germes –
inclusive o da vida animal (hilozoísmo) – e cujas virtualidades carrega em si: a observação sensível e a
experiência representam o conhecimento (empirismo) e os princípios do saber para esta escola.

b) Para a escola de Heráclito – derivação parcial e ascendente da escola jônica –, o universo é a


combinação, ou melhor, a sucessão eterna e deficiente do ser e do não-ser; toda a escola é de si
95
“fenomenalista” e transitória; e o ser se identifica com o fazer, com o mover, ser e não-ser. O Ser (o mundo
universo) é uma unidade (monismo); mas uma unidade de movimento, uma série de fenômenos que
aparecem e desaparecem sujeitos a uma lei eterna e absolutamente necessária. Resumindo: realmente não
existe o ser, o absoluto, e apenas o fieri, a sucessão, o moveri.

c) Para a escola de Leucipo e Demócrito, o ser, o mundo universo, não é nem o princípio-matéria da
escola jônica, nem o movimento contínuo ou a sucessão alternada e fugaz dos fenômenos, mas um
agregado, uma aglomeração de seres particulares (atomismo), diferentes e opostos entre si, infinitos em
número, eternos em duração e sujeitos a choques e combinações acidentais ou fatais. O conhecimento ou
percepção desses agregados de átomos que constituem os corpos da natureza – ou melhor, todas as coisas
– verifica-se por meio dos sentidos, excitados e impressos pelos átomos que se desprendem dos corpos;
mas essa percepção é mais subjetiva do que objetiva. Na verdade, só à inteligência pertence perceber e
conhecer a essência real; porque o que há de real e essencial nas coisas são os átomos e o movimento, e
conhecer os átomos e o movimento é função própria e exclusiva da razão pura.

d) Para a escola pitagórica, o ser, a universalidade das coisas, implica algo mais do que a matéria dos
jônios, mais do que o fieri ou sucessão perpétua de Heráclito, e mais do que agregados ou combinações
mecânicas de átomos. Implica um princípio transcendente e superior à natureza material e, acima de tudo,
implica e exige um princípio inteligível, uma ideia racional imanente ao Universo, como razão suficiente
da existência e essência do Universo, com suas formas particulares e existências. Em outras palavras: a
escola pitagórica representa a introdução da ideia no campo da Filosofia, bem como a afirmação implícita
e indireta do princípio espiritualista, em oposição às afirmações materialistas e mecânicas das escolas de
Tales, Heráclito e Demócrito.

c) A escola eleática representa a antítese completa e abrangente das escolas jônica, atomista e de
Heráclito, que acabamos de citar. Desenvolvendo e ampliando o princípio unitário e inteligível de Pitágoras,
a escola de Elea chega finalmente à seguinte conclusão: o ser é a unidade absoluta e pura; o mundo externo
com seus corpos, átomos e mutações é pura aparência ou ilusão, porque toda pluralidade real é impossível,
e isso se verifica, não só na ordem sensível, mas também na ordem puramente inteligível, de modo que o
sujeito e o objeto, o pensamento e a coisa pensada são a mesma coisa, são Deus (panteísmo), o único ser, a
única substância real e toda substância real. Este ser é pensamento puro, é substância ideal-real,
absolutamente inacessível aos sentidos (idealismo), e objeto apenas do pensamento puro.

f) Com os sofistas – ou, se se preferir, por ocasião dos sofistas –, um novo e importante elemento
passa a fazer parte da Filosofia. As escolas anteriores haviam lidado quase exclusivamente com o Universo,
com a realidade externa, deixando escapar apenas ocasionalmente a ideia sobre a forma e as condições do
conhecimento. A escola jônica e suas derivações, a pitagórica, assim como a eleática, concentram toda a
sua atenção no mundo objetivo; o mundo subjetivo, considerado como elemento e princípio da especulação
filosófica, pouco atrai sua atenção. Com os sofistas, esse estado de coisas se modifica. A especulação
filosófica, até então meramente objetiva, passa a centrar-se no sujeito cognoscente enquanto cognoscente.
As questões que se referem ao valor e legitimidade dos sentidos e da razão como faculdades de
conhecimento, aos limites da ciência, às condições de certeza científica são levantadas, discutidas e
resolvidas com maior ou menor sucesso. Em uma palavra: o problema crítico se apresenta iniciado –
somente iniciado, pois não foi nem colocado em seu verdadeiro terreno, nem discutido em sua importância
e em seus diferentes aspectos, nem resolvido de forma profunda e verdadeiramente filosófica. Já
assinalamos que neste conceito, e deste ponto de vista, os sofistas prestaram um serviço à Filosofia e
representam uma evolução progressiva na História desta ciência.

Ignoramos, neste olhar retrospectivo, Anaxágoras e Empédocles, por representarem apenas


variedades ou aspectos parciais de uma das escolas mencionadas. A escola jônica ascende em Anaxágoras

96
ao pressentimento ou concepção rudimentar do teísmo transcendental, mas sem sair do terreno cosmológico
e mecânico, e transformando o conceito hilozoísta em um conceito parcialmente dualista e espiritualista.
A concepção ou sistema de Empédocles chega a ser uma espécie de ensaio de conciliação entre as
várias escolas que se agitavam em torno dele. Para o Filósofo de Agrigento, o Universo é ao mesmo tempo
unidade e pluralidade, essencialidade una e agregação de substâncias ou atomismo, ser permanente e
imutável e sucessão contínua ou fieri.
Alguns historiadores da Filosofia consideram a especulação ética como uma nota característica da
escola pitagórica, e o estudo da lógica ou dialética como uma nota da escola eleática. Embora haja alguma
verdade nisso – tendo em vista que essas duas escolas iniciaram uma certa direção ética e lógica
respectivamente –, não se pode e não se deve admitir que isso constitua seu caráter fundamental, longe
disso. Em ambas as escolas domina o pensamento cosmológico, o que constitui, sem dúvida, sua verdadeira
característica e seu conteúdo essencial. Só que esse pensamento cosmológico aparece envolto em fórmulas
matemáticas e algumas aplicações éticas na escola pitagórica, assim como na escola eleática adentra no
campo das aplicações lógicas. Mas nem a escola de Pitágoras contém a teoria ética adequada, nem a de
Elea uma verdadeira teoria lógica.

97
Segundo Período da Filosofia Grega
§ 53 A Restauração Socrática

O período (1º) cosmológico que acabamos de descrever foi seguido na Filosofia Grega pelo que
podemos chamar de período (2º) psicológico, ou melhor, antropológico, porque nele são cultivadas com
preferente esmero as ciências relacionadas ao homem considerado como um ser inteligente, moral e social,
as quais mal haviam sido tratadas no período anterior. Este novo e fecundo direcionamento da Filosofia
deveu-se principalmente aos labores, ensinamentos e exemplos de um gênio extraordinário em muitos
aspectos, cujo nome está justamente ligado a essa evolução do pensamento filosófico, e daí os nomes que
geralmente são atribuídos a esse movimento: período socrático e restauração socrática.
Porque, com efeito, as obras, o ensinamento e os exemplos de Sócrates, representam a regeneração dos
elementos sãos e verdadeiramente filosóficos que o período precedente comportava, a restauração da
dignidade e da nobreza da ciência, aviltada e desacreditada pela venalidade, o ceticismo e a impiedade dos
sofistas; a investigação racional e sóbria da verdade em quase todas as suas esferas; a real importância da
idéia ética juntamente com o refinamento e aperfeiçoamento do método científico. Nesse sentido, o
movimento iniciado por Sócrates merece o nome de restauração socrática.
Contudo, se a denominação de socrático corresponde a este período, considerado do ponto de vista
histórico, isto é, pelo seu iniciador, não é menos verdade que o que principalmente distingue este período
em seu conteúdo real, é o seu caráter antropológico. Durante seu (1º) primeiro período, a questão capital e
quase única para a Filosofia Grega era a questão cosmológica; a atividade do espírito se concentra no objeto;
a especulação científica marcha diretamente para a natureza material, para o mundo exterior, mal lembrando
do sujeito que investiga, do espírito que pensa. Durante este (2º) segundo período, a investigação da
essência, atributos e relações deste sujeito, representa e constitui a questão mais importante e frutífera da
Filosofia Grega. Se a Filosofia é o conhecimento de todas as
E não é que esta especulação abandone, por isso, a coisas a partir de seus primeiros princípios e
investigação do problema cosmológico, mas sim que o fins últimos, segundo a luz natural da razão; a
aperfeiçoe e o complete; porque isso equivale e significa a Metafísica é a própria ciência do ser,
criação da metafísica, uma ciência que, como se sabe, constitutivo último das coisas. E como a
ocupa um lugar importante na especulação platônica e Teologia é a ciência do Próprio Ser Subsistente
aristotélica, e uma ciência que representa e significa o – Deus –, Domenico de Flandres, com
fundamento, pode afirmar: “Qui ignorat
desenvolvimento e como que o ápice da cosmologia.
Methaphysicam semper peregrinus in
Assim, pois, no (2º) segundo período e por meio dele,
Theologia”.
a Filosofia Grega, sem abandonar a investigação do
problema físico, e sem negar a importância científica da questão cosmológica, entra em uma nova fase de
sua evolução, dedicando atenção preferencial ao exame e solução do problema antropológico. O homem,
como ser inteligente, como ser político-social e, sobretudo, como ser moral, torna-se objeto e centro das
discussões e sistemas dos filósofos. Aparecem então pela primeira vez, além dos tratados que versam sobre
a metafísica, os Diálogos de Platão, que visam investigar a natureza, os atributos e a imortalidade da alma
humana, os que tratam do bem, da res publica e das leis, bem como os tratados De Anima, a Magna Moralia
e o Politicorum de Aristóteles. Ao mesmo tempo, a dialética adquire proporções notáveis e substitui a
dogmática instintiva do primeiro período; a lógica tem condições rigorosamente científicas; a psicologia
aparece como uma ciência própria e relativamente independente; abundam as teorias político-sociais
específicas e, sobretudo, os estudos e sistemas éticos adquirem extraordinária e geral importância, como se
observa nas escolas cirenaica, cínica, estóica e epicurista, nas quais o pensamento ético domina e se
sobrepõe aos demais problemas filosóficos.
Platão e Aristóteles são os principais e mais genuínos representantes desse período da Filosofia Grega;
porque são eles que – sem abandonar ou esquecer o problema cosmológico, antes desenvolvendo e
completando suas soluções por meio da especulação metafísica – conduziram de frente as outras partes da
Filosofia, deram substância, unidade, conjunto e método científico ao problema filosófico em todos os seus
98
aspectos, e sobretudo comunicaram à Filosofia nova vida e direção fecunda através do elemento
antropológico. A partir de então, o homem torna-se o principal centro da especulação filosófica através da
dialética, da psicologia, da moral, da política e da teodicéia.
Nos demais sistemas e filósofos desse período, predomina o aspecto moral do elemento antropológico,
e nesse sentido podem ser chamados de incompletos em relação a Platão e Aristóteles; mas isso não quer
dizer que a idéia principal de todos esses sistemas, a concepção que pulsa no fundo de todos eles, a começar
por Sócrates como iniciador desse período, não seja a idéia antropológica, estudada e desenvolvida, às vezes
em todas os seus aspectos, às vezes em apenas alguns deles. Daí a denominação de período antropológico
que damos ao movimento iniciado por Sócrates na Filosofia Grega.
E não se pode dizer que os sofistas já houvessem dado à Filosofia seu caráter antropológico, pois haviam
desviado a atenção do objeto, da natureza externa, para fixá-la no sujeito. Porque o subjetivismo dos sofistas
é um subjetivismo puramente cético e, digamos, antidogmático, que não tem outra finalidade senão demolir
as afirmações e os sistemas da velha Filosofia física, sem criar nada de novo, sem substituir o edifício
derrubado por nada real e sólido. As obras dos sofistas, segundo a correta observação de Zeller, não podem
ser consideradas como um fundamento positivo da nova direção filosófica que forma o conteúdo do período
que nos interessa, mas sim como uma preparação indireta para ele. É verdade que o sofista tanto o anterior
quanto o contemporâneo de Sócrates, ao negar a cognoscibilidade das coisas, desviava a atividade do
pensamento do mundo externo e a dirigia para o sujeito que sente e pensa; mas fazia isso sem de modo
algum elevar-se ao universal e científico deste mesmo sujeito, seus atributos e relações. E é que os sofistas
consideravam os atos e representações do homem como a medida e a norma das coisas; mas ao falar assim
referiam-se, não ao homem em geral, não à essência ou idéia do homem, objeto da ciência e da investigação
científica, mas ao homem individual, ao ser contingente e sujeito a transmutações perpétuas e infinitas.
Entre o subjetivismo cético dos sofistas e o subjetivismo propriamente antropológico de Sócrates e seus
sucessores, existe toda a distância que medeia entre o fenômeno e a essência, entre a aparência e a realidade,
entre a representação sensível e a idéia racional.

99
§ 54 Sócrates

Sócrates (Σωκράτης) nasceu em Atenas pelo ano 470 antes de Cristo, tendo por pais
o escultor Sofronisco (Σωφρονίσκος) e a parteira Fainareta (Φαιναρέτη). Depois de
praticar por alguns anos a arte de seu pai, e depois de ter praticado em silêncio as
virtudes e máximas morais que mais tarde constituiriam o fundo principal e a
autoridade de sua doutrina, ele começou a difundir entre seus concidadãos as idéias
filosóficas – adquiridas mais através da meditação do que pelo estudo – e a ensinar as
virtudes morais e religiosas, que ele teve o cuidado de praticar antes de ensinar em
palavras. Apesar de uma natureza refratária à virtude e de um temperamento inclinado à
violência108, Sócrates praticou constantemente a mansidão, e ao longo de sua vida deu
provas e exemplos de todas as virtudes, não excluindo a doméstica, a guerreira e a político-social. Basta
lembrar, como prova disso, a paciência e a equidade de espírito com que suportou o temperamento violento
e as extravagâncias de sua esposa Xantipa; o valor sereno, beirando o heroísmo, que manifestou nos campos
de batalha de Potidéia e Delium, onde salvou a vida de Xenofonte, e a integridade e coragem com que
resistiu aos trinta tiranos no exercício de suas funções públicas.
Apesar de tantas virtudes, e talvez por causa delas, o frívolo, inconstante e corrupto povo de Atenas,
excitado pelos sofistas e seduzido por poetas e políticos ainda mais corruptos, condenou Sócrates a beber
cicuta, sob o pretexto de que havia corrompido a juventude e desprezado os deuses. A humanidade
indignada sempre execrará a memória dos autores, cúmplices e partidários da morte do justo, condenando
à infâmia eterna os nomes do autor de “As Nuvens” [Aristófanes], do orador sofista Meleto, do poeta Lícon
e do político Anito109.
Do mais, os últimos momentos de Sócrates corresponderam ao restante de sua vida. A sua morte poderia
ser comparada à do mártir cristão, se a obscuridade e a incerteza sobre o destino final da alma, junto com
os conceitos fatalistas, com as superstições
Culto a Sócrates no Renascimento
(Revista, n. 21, p. 28)
e com o fermento politeísta que aparecem
É muito significativa uma exclamação do famoso Erasmo em seus discursos e atos, não o
de Rotterdam, uma das figuras mais salientes do humanismo: desdourassem e o fizessem perder muito de
“Ó São Sócrates, rogai por nós!” sua beleza e sublimidade. Ainda não havia
Sócrates, como sabemos, suicidou-se. Sendo monoteísta, ressoado no mundo a palavra da Verbo de
ocultou durante o processo sua religião, e disse que acreditava Deus, que deveria trazer ao homem da
em todos os deuses de Atenas, para escapar à condenação à ciência e ao homem da ignorância, ao
morte.
homem da academia e ao menino da escola,
Para Erasmo, clérigo católico, esse Sócrates despertava
a solução clara, precisa, filosófica e simples
tanto entusiasmo que ele se referia ao filósofo como a um santo.
Se pelo menos Erasmo tivesse veneração pelos santos do formidável problema da vida e Er
as
mo
católicos! Mas ele era um péssimo clérigo, no qual não se nota da morte, da origem e do des-
traço algum de piedade sincera e profunda. O culto de “são” tino do homem.
Sócrates tinha expulso do coração de Erasmo os outros cultos.

108
Que a natureza e a compleição de Sócrates não se prestavam muito à mansidão, e que não entranhavam uma predisposição e
facilidade para a virtude, é geralmente atestado pelos biógrafos. Por outro lado, para se convencer desta verdade, basta olhar para
o busto clássico e tradicional deste filósofo, com a sua fisionomia rude, os olhos fundos, a barba áspera, os cabelos incultos, o nariz
rombudo e arregaçado, seus lábios grossos, características e indícios de uma natureza vigorosa e inclinada a paixões violentas. Diz-
se que seus compatriotas costumavam compará-lo ao sátiro Marsias.
109
“Dizem também que quando [Sócrates] viu passar a Anito disse: ‘Esse homem vai tão orgulhoso, como se tivesse feito uma
grande e bela ação ao ter votado a favor da minha morte. E por quê? Porque eu o fiz notar que não estava bem para ele, honrado
pela Pólis com os mais altos cargos, rebaixar o filho ao ofício de curtidor. O insensato! Ele não sabe que entre ele e eu o triunfo
será sempre daquele que em todos os tempos executou as coisas mais úteis e belas! Mas Homero concede a alguns dos que estão
para morrer o dom de penetrar o que está por vir, e vou lhes fazer um vaticínio: tratei por um tempo com o filho de Anito e não me
parece ser um espírito desprovido de energia: pois eu lhes digo que ele não permanecerá no ofício servil ao qual seu pai o consagrou.
Na falta de um guia honesto para conduzi-lo, ele sucumbirá a uma paixão vergonhosa e, daí por diante, continuará a progredir no
caminho da depravação’. [N.T.]
“E os fatos corresponderam ao vaticínio: o jovem entregou-se ao vício do vinho e, ébrio em todas as horas, acabou tornando-se um
homem inútil para sua pátria, para seus amigos e para si mesmo. O pai, pela infame educação que dera ao filho, e pela sua torpe
ignorância, logrou ver-se desonrado até hoje, após a sua morte.” (XENOFONTE. A Apologia de Sócrates.)
100
§ 55 Filosofia de Sócrates

Entrando agora na exposição da sua doutrina, deve-se dizer que:


nosce teipsum
1º) Em sua opinião, o princípio gerador da ciência e sua própria base é o conhecimento de si mesmo:
para Sócrates, o nosce teipsum do templo de Delfos é o primeiro princípio da Filosofia; e, de fato, é o
primeiro princípio de sua Filosofia, tendo em conta que seu labor filosófico se reduz ao estudo e ao
conhecimento do homem como ser moral. Deste modo, ele ou menospreza ou só concede importância às
ciências físicas, cosmológicas, matemáticas, e mesmo às psicológicas e biológicas, na medida em que se
referem ao aspecto ético e político do homem. O estudo do homem e de seus deveres morais, religiosos e
político-sociais, eis o quase único e verdadeiro objeto da Filosofia110 para o mestre de Platão.
No que diz respeito ao mundo e às ciências físicas que lhe dizem respeito,
Sócrates professava um ceticismo muito semelhante ao dos sofistas seus
contemporâneos: ceticismo111 que costumava expressar naquele aforismo
que repetia com frequência: só sei que não sei nada.
maiêutica socrática
2º) O método de Sócrates estava em relação com o ponto de partida
que assinalava para a Filosofia, fazendo-o consistir na observação dos
fenômenos internos, na reflexão e análise raciocinada dos mesmos.
Daí a variedade e flexibilidade do seu método de ensino, que sabia
adaptar-se maravilhosamente às circunstâncias dos ouvintes.
Freqüentemente fingindo ignorância do objeto em questão, outras vezes
fazendo perguntas pontuais e dialéticas, empregando no tempo certo a
indução e a analogia, propondo dúvidas e perguntas simples na aparência,
fazendo uso frequente do diálogo, Sócrates imperceptivelmente conduzia seus
ouvintes ao conhecimento da verdade, que parecia surgir espontaneamente do fundo de sua consciência.
Não há necessidade de dizer que ele usava destas mesmas armas para expor a superficialidade científica e
as contradições dos sofistas.

3º) Partindo da observação psicológica e da análise do sentido moral da humanidade, Sócrates chega
pelo método indicado às seguintes conclusões: eudaimonia
a) O dever do homem e o emprego mais próprio das suas faculdades, é investigar o bem, e conformar a
sua conduta com este bem moral uma vez conhecido. O autoconhecimento, e o esforço constante para
dominar suas paixões e más inclinações, conformando-as à razão, são os meios para alcançar este resultado,
ou seja, para adquirir a perfeição moral, na qual consiste a verdadeira felicidade do homem na terra.
viver bem
b) A prudência, a justiça, a temperança (ou moderação da concupiscência sensível) e a fortaleza são as
quatro virtudes principais e necessárias para a perfeição moral do homem, que será tanto mais perfeito nessa
ordem, quanto mais se assemelha a Deus em seus atos, porque Deus é o arquétipo da virtude e da perfeição
moral. No julgamento divino e na própria verdade, deve-se buscar a norma dessa perfeição moral, a noção
real e verdadeira da virtude, mas não no julgamento do vulgo e das multidões: Nobis curamdum non est,
quid de nobis multi loquantur, sed quid dicat is unus, qui intelligit justa et injusta, atque ipsa veritas.
O importante – acrescenta Sócrates em um dos Diálogos de Platão112, não é viver, mas viver bem (non
multi faciendum esse vivere, sed bene vivere), ou seja, viver de acordo com as regras da retidão moral e da

110
Aludindo sem dúvida a esta tendência de Sócrates, Aristóteles escreve: «Socratis vero temporibus, usus quidem definiendi
increvit, sed indagatio rerum naturalium desiit; nam omne philosophandi studium ad utilem virtutem civilemque usum translatum
est.» De partib. animal, lib. I, cap. I.
111
“Siquidem – escreve Sexto Empírico – Xenophon in suis de ejus dictis et factis commentariis, disertis verbis dicit, eum abnegasse
naturae contemplationem, ut quae sit supra nos; soli autem morum vacasse inquisitioni, ut quae ad nos pertineat”. Adversus
Mathem., lib. VII.
112
Crito vel de eo quod agendum est.
101
justiça. Em harmonia com estas regras ou princípios de moral, não devemos tomar vingança das injúrias,
nem pagar mal com mal; devemos antepor a justiça e o amor da pátria e das leis a todas as outras coisas,
sem excluir os filhos, os pais e a própria vida.
submissão às leis
c) A justiça implica a idéia e o cumprimento dos nossos deveres para com os outros, sendo parte principal
destes deveres a observância e a obediência às leis humanas ou positivas, e também às leis não escritas, ou
seja, à lei natural, anterior e superior a estas e raiz de toda justiça; mas acima de tudo o sacrifício absoluto
de nós e das nossas coisas à pátria, e a submissão incondicional e perfeita aos magistrados.

d) A piedade e a oração são duas virtudes muito importantes, por meio das quais tributamos a Deus
honra e reverência, ao mesmo tempo que buscamos o remédio das nossas necessidades. A melhor oração é
a resignação nas contrariedades, e a submissão à vontade divina.

e) A ordem, a harmonia e a beleza que brilham no mundo e no homem


testemunham e demonstram a existência de um Deus supremo,
primeiro Autor da lei moral e sua sanção suprema. Deus é um
ser inteligente e invisível, que se manifesta e revela em Seus
efeitos: Sua providência abraça todas as coisas, e
particularmente é exercida sobre o homem, pois está em
todos os lugares, vê todas as coisas e penetra os pensamentos
mais secretos do homem.

f) A inconstância e as misérias de todo o gênero que


pesam sobre a vida presente, a tornariam desprezível e
abominável, se não houvesse uma vida futura em que,
desaparecendo estes males, a alma chegasse à posse plena
do bem. O justo deve ter confiança ilimitada em Deus, cuja
providência não o abandonará na morte.
Estas afirmações, juntamente com outras idéias que podem
ser consideradas como premissas lógicas da imortalidade da alma,
demonstram suficientemente a opinião de Sócrates sobre este ponto,
por mais que não se encontrem nele afirmações diretas, precisas e
concretas sobre o estado da alma após a morte.

§ 56 Crítica

Já deixamos indicado que o principal mérito da doutrina de Sócrates consiste em ter tomado como ponto
de partida da Filosofia a observação psicológica, e em ter dirigido a investigação filosófica para a moral e
a teodicéia. O método psicológico e a concepção ético-teológica constituem os dois elementos principais e
o caráter fundamental da Filosofia socrática.
Além do que foi dito, e numa ordem secundária, Sócrates tem também o mérito de ter destruído a
sofística, atacando-a nos seus princípios, nas suas conclusões, e sobretudo nos seus procedimentos; de ter
ensinado teórica e praticamente a sobriedade científica, combatendo ao mesmo tempo os exageros do
dogmatismo e do ceticismo: de ter posto fim à anarquia intelectual e à confusão de idéias introduzida e
aclimatada pelos sofistas, graças ao método rigoroso que seguia nas suas discussões, procedendo do
conhecido ao desconhecido, por gradações lógicas, e procurando, sobretudo, definir as palavras e as coisas;
de ter tirado a Filosofia do terreno puramente individualista e subjetivo em que os sofistas a tinham
colocado, para a colocar e assentar no terreno da universalidade, da imutabilidade, da objetividade. O ego
individual que servia de objeto às especulações da sofística, cede o lugar ao ego universal, ao ego da espécie

102
humana, à consciência do gênero humano; mas, acima de tudo, Sócrates não para, como os sofistas, no
conhecimento como fenômeno subjetivo, mas serve-se deste para chegar à realidade objetiva.
Quanto à metodologia filosófica, Sócrates introduziu duas inovações que valorizam e distinguem a sua
Filosofia, as quais se referem ao (1) uso de definições, ora nominais, ora reais, e ao (2) procedimento por
indução: sem serem de todo desconhecidos, esses dois instrumentos foram pouco e imprecisamente usados
para a investigação da verdade; mas Sócrates dedicou atenção preferencial a eles, fazendo uso frequente
deles, especialmente do primeiro, em suas lutas e discussões com os sofistas.
Nessa ordem de idéias, ou seja, do ponto de vista do método, a Filosofia de Sócrates representa e
comporta um progresso real e uma de suas manifestações mais importantes, práticas
e duradouras no movimento histórico-filosófico. O Mestre de Platão combate
incansavelmente, por meio de definições, a falsa ciência dos sofistas: a
possibilidade e a existência de uma ciência real, objetiva e imutável das coisas,
constitui sua afirmação capital contra as teorias negativas dos sofistas, e se ele
alguma vez parece concordar com eles em suas doutrinas, são apenas
coincidências aparentes e argumentos ad absurdum ou ad hominem, para mostrar
a vaidade e petulância de seu conhecimento. Para todo historiador sério da
Filosofia, é inegável que Sócrates tem a honra e o mérito de ter transformado o
ceticismo imoderado dos sofistas em crítica filosófica, ou, digamos melhor, de ter substituído suas
discussões céticas pela crítica racional e científica.
A par de todas estas vantagens e excelências, a Filosofia de Sócrates comporta o grave defeito de ser
uma Filosofia essencialmente incompleta. Para ele, não há outra ciência possível, nem Filosofia mais digna
desse nome, do que a ciência ético-teológica. As ciências naturais e matemáticas ou não existem ou não
têm importância e utilidade próprias. O mundo físico, e mesmo o mundo antropológico e o mundo divino,
se excetuarmos o aspecto moral dos dois últimos, são objetos que não estão ao alcance de nossa ciência.
Nossos conhecimentos físicos, antropológicos, metafísicos e teológicos carecem de valor objetivo e
científico, se forem considerados na ordem especulativa e separados da ordem moral. A natureza, os
atributos e o destino da alma, assim como a natureza, os atributos e até a existência de Deus, só nos são
conhecidos porque e na medida em que envolvem uma relação necessária com a ordem moral; porque e na
medida em que a consciência e a lei moral não poderiam existir se Deus não existisse. Em uma palavra:
para Sócrates, como para Kant nos tempos modernos, a razão prática e a lei moral constituem o único
critério seguro para chegar à realidade objetiva e à existência de Deus. Se o Mestre de Platão tivesse posto
sua Filosofia por escrito, poderia tê-lo feito escrevendo uma Crítica da Razão Pura e uma Crítica da Razão
Prática, que teriam muitos pontos de contato com as do filósofo Koenisberg, especialmente na parte
relacionada à subordinação da verdade especulativa à verdade prática, da realidade metafísica à realidade
moral.
Há, porém, um ponto ou problema de importância transcendental, que entranha uma diferença profunda,
ainda que parcial, entre a Filosofia de Sócrates e a de Kant, e é aquele que se refere à existência e à natureza
das causas finais. O Mestre de Platão não apenas estabelece e afirma a existência das causas finais, mas
também usa o princípio teleológico para provar e explicar a existência e os atributos de Deus, origem, razão
e fim dessa causalidade; serve-lhe igualmente para explicar a existência, a natureza e a ordem do mundo, e
também para investigar e estabelecer a origem, as características e as condições da ordem moral. O filósofo
de Koenisberg rejeita a finalidade transcendente, a existência e os atributos da causalidade final no sentido
socrático, e apenas admite, como se sabe, uma espécie de finalidade imanente, muito próxima da evolução
darwiniana, e que nada tem em comum com a teoria teleológica de Sócrates.

103
§ 57 Os discípulos de Sócrates

Os ensinamentos de Sócrates, sem constituir uma escola no sentido próprio da palavra, deram origem a
escolas múltiplas e muito diferentes entre si, tanto no que diz respeito à forma de apreciar o ensino do
Mestre como em relação às características e às circunstâncias especiais de seus ouvintes. Alguns deles eram
de idade avançada e vieram para sua escola com opiniões e convicções científicas formadas já de antemão,
como Querefonte, Antístenes e Críton. Houve outros, que, se assistiram às aulas de Sócrates, foi apenas por
motivos políticos, e com o desejo de aprender a arte de governar, ou melhor, de dominar os homens, como
Xenofonte, Crítias e Alcibíades. Assim é que seu Mestre, que possuía maravilhosamente a arte de atrair os
homens, ao mesmo tempo em que lhes transmitia ensinamentos úteis, quando entretido com eles, dirigia
seus discursos para seus fins e inclinações pessoais, discutindo sobre o fim e a constituição do Estado, sobre
a democracia e a aristocracia, sobre as leis e a constituição social.
Diferente foi a via que seguiu e diferentes os assuntos de seus discursos quando falou com homens nos
quais descobriu uma verdadeira vocação filosófica, como foi o caso de Fédon, de Teages, de Aristipo, de
Euclides e particularmente de Platão.
Dada a variedade de direções que Sócrates soube dar ao seu ensino, e dados os elementos heterogêneos
que se agrupavam à sua volta, não é difícil dar-se conta das várias escolas que nasceram do seu ensino, e
que se podem dividir em (a) completas e (b) incompletas. Pertence ao (a) primeiro gênero a de Platão, ou
seja, a acadêmica (§65), pois somente esta escola expôs e conservou a concepção socrática em seus diversos
aspectos, desenvolvendo-a e completando-a por sua vez com investigações e idéias novas. As (b) demais
escolas formadas no calor do ensino de Sócrates, limitaram-se a expor, cultivar e, em geral, exagerar algum
aspecto parcial dele. A escola cirenaica (§58), fundada por Aristipo; a cínica (§59), que deve sua origem a
Antístenes; a megárica (§62), fundado por Euclides, e as de Elis e Eretria (§63), representadas por Fédon
e Menedemo. Discorreremos primeiro das (b) escolas incompletas que representam direções parciais da
doutrina socrática, para depois estudar (a) o movimento geral e o desenvolvimento completo da mesma.

§ 58 Escola cirenaica

Esta escola deve o seu nome à cidade de Cirene (Κυρήνη), colônia grega na África, onde nasceu o seu
fundador Aristipo (Αρίστιππος ο Κυρηναίος), 380 anos antes de Cristo. Tendo
ouvido falar da sabedoria e dos discursos de Sócrates, embarcou para Atenas, e
imediatamente ingressou em sua escola, permanecendo um dos discípulos mais
assíduos de Sócrates até sua morte. Após a catástrofe de seu Mestre, Aristipo
percorreu diferentes países, nos quais tradições legendárias lhe atribuem anedotas
e relacionamentos com tiranos, sátrapas e cortesãos. Regressou à sua pátria, onde
passou os últimos anos da sua vida, nela difundindo as doutrinas que aprendera
e praticara noutras localidades e climas.
Sócrates havia ensinado que a felicidade é o objetivo e o fim último das
ações e da vida do homem. A isso, que poderíamos chamar de (P) premissa
maior socrática, Aristipo acrescentou a seguinte premissa menor: e como (p)
a felicidade do homem consiste no gozo ou prazer; (C) o prazer é o fim último e o verdadeiro bem da vida
humana.
É verdade que Aristipo estabeleceu certa ordem hierárquica entre os prazeres, dando
preferência às alegrias do espírito, como a amizade, o amor paterno, a sabedoria e as artes;
mas isso não significa que o fundo de sua teoria não seja essencialmente sensualista e,
daí, a denominação de hedonismo com a qual é geralmente conhecida.
Como costuma acontecer nesses casos, os discípulos e sucessores de Aristipo – dentre
os quais sua filha Arete (Ἀρήτη), mestra de seu filho Aristipo o Jovem, cognominado
Metrodidactos (ensinado pela mãe) por esse motivo – não apenas exageraram o sensualismo
104
primitivo e mais ou menos moderado da escola cirenaica, mas conduziram-na ao ateísmo e à negação de
toda moralidade, consequências últimas e naturais de todo sensualismo. Teodoro, cognominado o Ateu,
Bion de Boristene e Evêmero (natural de Messinia segundo alguns ou de Messina segundo outros), foram
os principais representantes da evolução ateísta da escola cirenaica. Parebates e seus discípulos, Hegesias
(Ἡγησίας) e Anniceris (Ἀννίκερις), também pertenciam a esta escola, na opinião de alguns escritores; mas
as notícias que existem sobre sua vida e doutrinas são muito escassas e confusas. Hegesias é considerado o
apologista do suicídio. Em geral, a vida dos cirenaicos estava relacionada à sua teoria moral e às anedotas
e tradições113 que se referem ao seu fundador Aristipo. (nominalismo avant la lettre)
Na ordem especulativa, os cirenaicos professavam uma espécie de idealismo cético, em total harmonia
com seu hedonismo na ordem moral. O homem, segundo esta escola, percebe e conhece suas modificações
subjetivas, mas não conhece e não pode conhecer as causas externas que as produzem ou causam: O homem
pode afirmar que é afetado desta ou daquela forma; mas não pode afirmar que haja um objeto externo que
seja a causa dessa afecção interna; quanto aos nomes que damos às coisas – ou melhor, às suas aparências
–, significam na realidade nossas sensações, e não os objetos externos. O movimento, a transformação
contínua das coisas, a distância dos lugares, não permitem ao homem perceber e conhecer os objetos
externos em si mesmos, se é que existem. Na realidade, não há nada de comum entre os homens na ordem
cognitiva, mais do que os nomes que dão às coisas. Também não há critério pelo qual o homem possa
discernir a verdade do erro.
A origem do hedonismo cirenaico é ter tomado como objeto da Filosofia um aspecto parcial do ensino
socrático, e ter confundido a idéia abstrata e geral de felicidade com o gozo sensual.
Suas características doutrinais são o sensualismo na ordem prática ou moral, e o subjetivismo sensitivo
e cético na ordem especulativa ou gnosiológica. Dadas estas características, não é de admirar nem o ateísmo
de Teodoro e de Evehemero, nem a apologia do suicídio feita por Hegesias.
Parece desnecessário chamar a atenção para a estreita afinidade que se descobre entre a doutrina de
Aristipo e a de Epicuro. Assim, andando o tempo, o cirenaísmo se refundiu no epicurismo, podendo ser
considerado como um riacho destinado a se perder na grande corrente epicurista.

§ 59 Escola cínica

O fundador desta escola foi Antístenes (Ἀντισθένης), nascido em Atenas por volta do
ano 422 a.C. Depois de ouvir e seguir as lições de Górgias, tornou-se discípulo, amigo e
admirador de Sócrates. Morto este, ensinou publicamente, e os seus discípulos receberam
o nome de cínicos, seja por causa do local em que ensinava Antístenes –
chamado Cynosargo114 – seja por causa da grosseria dos seus costumes sociais [donde
serem comparados a cães: em grego “semelhantes a cães” diz-se κυνικός], ou pelas duas
causas ao mesmo tempo.
A doutrina da escola cínica e de seu fundador é a antítese completa da doutrina
cirenaica, assim como a vida de Antístenes é a antítese da vida de Aristipo. Sócrates
tinha ensinado e dito muitas vezes em seus discursos, que na virtude consiste o real, verdadeiro e único

113
Conta-se, entre outras coisas, que ele respondia aos que o censuravam por seu comércio com Laís (Λαίς, famosa cortesã de
Corinto): “Eu possuo Laís, mas Laís não me possui”; resposta que traz à memória os conhecidos versos de Horácio:
Nunc in Aristippi furtim præcepta relabor, Quanto a Aristipo, os preceitos furtivamente reproduzo,
Et mihi res, non me rebus subjungere conor. E tento que seja para mim a coisa, não esteja eu a ela submisso.
O mordaz Diógenes o chamou de cachorro real, porque vivera algum tempo ao lado de Dionísio, o Tirano: perguntando-lhe este,
um dia, por que as casas dos ricos e poderosos andavam sempre cheias de filósofos, enquanto na dos filósofos não se viam os
grandes. “A razão – respondeu Aristipo – é porque os filósofos sabem o que lhes falta, enquanto os ricos não”. Esta resposta, bem
como a que deu ao referido tirano quando este, num movimento de cólera, cuspiu-lhe na cara, indicam que o referido poeta latino
conhecia bem o filósofo cireneu, quando escreveu: Omnis Aristippum decuit cor, et status, et res (Todo coração, estado e coisa era
devido a Aristipo).
114
Parece que o Cinosargo (ou Kynosarges [Κυνόσαργες], como alguns escrevem) era um ginásio público frequentado pelo povo
de Atenas, ou seja, pelos plebeus. Se isto é verdade, pode-se dizer que até o local escolhido por Antístenes para ensinar a sua
doutrina estava em relação e harmonia com o espírito e as tendências desta.
105
bem do homem: e, exagerando e desfigurando o sentido desta grande verdade, Antístenes começou a ensinar
que a virtude é o bem supremo, o último fim do homem, felicidade suprema e única a que este deve aspirar.
As riquezas, as honras, o poder e os outros bens são coisas indiferentes na ordem moral; são desprezíveis,
e até abomináveis, portanto, para o homem virtuoso. O prazer sensual, longe de constituir o bem, a
verdadeira felicidade do homem, como pretende Aristipo, é, na verdade, um mal115, e um mal dos mais vis,
por causa dos vícios que ele arrasta.
A liberdade e a felicidade suprema do homem consistem na sua independência de todas as coisas por
meio da vida virtuosa, e prova disso é que se Deus é perfeitamente bom e perfeitamente feliz, é por causa
de sua absoluta independência de todas as coisas. Para adquirir a semelhança com Deus, na qual consiste a
perfeição e a felicidade do homem, segundo o ensinamento de Sócrates, é necessário que este se torne
independente de todas as coisas, como é a Divindade. Com este objetivo, além de olhar com indiferença
para as honras, riquezas e outros bens deste gênero, devemos menosprezar as necessidades artificiais da
sociedade, e superar o que são chamados de conveniências sociais e exigências da civilização. O homem
virtuoso deve limitar-se a satisfazer, de uma forma simples e natural, às escassas necessidades que a
natureza lhe impõe.
Embora pareça que Antístenes fizesse pouco caso das ciências especulativas – e particularmente das
ciências físicas e matemáticas – possuía, no entanto, uma idéia muito elevada da Divindade, uma vez que
ensinava aos seus discípulos que Deus é um ser independente e superior a todas as coisas, incluindo as
divindades do culto popular; e que, longe de ser semelhante a qualquer coisa sensível, não deve sequer ser
representado com imagens, pois é um ser puramente espiritual.

§ 60 Discípulos de Antístenes

a) O sucessor imediato de Antístenes foi Diógenes (Διογένης ὁ Σινωπεύς), mais


celebrado por suas extravagâncias e modo de viver do que por sua doutrina. Na verdade,
não consta que ele tenha escrito nenhum livro, nem que tenha professado qualquer teoria
que mereça o nome de filosófica. São-lhe atribuídas, no entanto, algumas máximas ou
sentenças familiares, muito em harmonia com a mordacidade verdadeiramente cínica do
seu carácter: “Os oradores – dizia – colocam grande empenho em
falar bem, mas não em agir bem.”
“O cuidado é tomado em fortalecer o corpo por meio de
exercícios corporais, mas ninguém se cuida de fortalecer a alma por
meio da virtude.”
“Rico ignorante, carneiro com velo de ouro.”
É de se supor, porém, que a este cínico não faltassem talento e educação,
pois Xeníades, nobre e rico cidadão de Corinto, confiou-lhe a educação dos filhos, cuja adesão
soube conquistar, bem como a admiração dos coríntios, que homenagearam sua memória com
estátuas após sua morte.
Nasceu em Sínope, cidade do Ponto, no ano 414 a.C. Seu pai, Hicesias, foi condenado e morreu na
prisão por ser falsário; e como Diógenes teria sido cúmplice de seu pai na falsificação da moeda, ele foi
para Atenas fugindo da justiça. Antístenes, que no início não o quis receber na sua escola, e até empregou
violência e golpes para o afastar de si, admitiu-o finalmente, em vista da sua insistência. Depois de chamar
a atenção dos atenienses com sua vida e costumes verdadeiramente cínicos, e depois de entreter o ócio e a
ludicidade deles com suas extravagâncias116 por um bom período de anos, encontrou-se reduzido à condição

115
Segundo Diógenes Laercio, Antístenes costumava dizer: “Preferiria cair em loucura furiosa, do que experimentar um prazer
sensual”.
116
As muitas anedotas e tradições que correm acerca de Diógenes são demasiado conhecidas para que seja necessário recontá-las
todas. De resto, este filósofo – que não tinha nem lar nem habitação; que não tinha mais posses que seu barril e seu saco; que jogou
fora a tigela em que bebia como coisa supérflua, ao ver um jovem bebendo com a mão; que rasgava com as unhas a carne que
comia crua etc. – ostentava a sua total falta de pudor e fazia publicamente torpezas abomináveis, o que tornava a sua vida
106
de escravo, não se sabe como ou por quê. Vendido ao mencionado Xeníades de Corinto, permaneceu em
sua casa até morrer em idade avançada. Segundo alguns, sua morte foi voluntária, como resultado de ter
retido violentamente a respiração; segundo outros, ocorreu como resultado de ter comido um pé de boi
cru117.

b) Crates (Κράτης ὁ Θηβαῖος), natural de Tebas, foi o discípulo principal de Diógenes, ao mesmo tempo
que o continuador da doutrina e vida dos cínicos, embora seu caráter e suas ações não apresentem o exagero
cínico de Diógenes. Apesar de sua deformidade e pobreza118, a ateniense Hiparchia, notável por sua beleza,
concebeu uma violenta paixão por Crates, com o qual se casou e viveu vida
perfeitamente cínica, e até mesmo ensinando também por palavra e por
escrito a Filosofia de seu marido119. O principal mérito do filósofo de
Tebas é ter sido mestre de Zenão, com o qual e pelo qual o cinismo se
transforma em estoicismo.
Entre os partidários da escola cínica aparecem também os nomes
de Metrocles – irmão de Hiparchia –, Onesícrito, Mônimo de Siracusa,
Menipo e alguns outros menos importantes.

§ 61 Crítica

Assim como a doutrina professada pela escola cirenaica, a professada pela escola cínica constitui e
representa uma Filosofia essencialmente incompleta, não apenas do ponto de vista meramente socrático,
mas também como um sistema de Filosofia moral derivado daquele de Sócrates. Por um lado, limita e
concentra toda moralidade em uma das máximas ou afirmações de Sócrates; por outro, distorce e exagera
esta afirmação. Se é verdade que a virtude é o maior bem do homem na vida presente, não é verdade que
seja o fim último e a perfeição suprema do homem na vida futura; nem é verdade que a virtude carregue
consigo o desprezo absoluto por outros bens e prazeres, mesmo que sejam intelectuais, como afirmava esta
escola.
O fundo e as tendências da doutrina cínica oferecem alguma analogia e afinidade com o fundo e as
tendências da doutrina de Rousseau nos tempos modernos, uma vez que o pensamento dominante nas duas
teorias é reduzir o homem ao estado e condições de pura natureza, rejeitando as vantagens e desacreditando
as conveniências e leis da vida social. Salva as inevitáveis diferenças consequentes à diversidade de épocas,
há também uma certa analogia entre a vida dos antigos cínicos e a vida e aventuras do filósofo de Genebra,
e é provável que nem Antístenes, nem Crates, nem o próprio Diógenes, se recusassem a reconhecer o
espírito e as tendências de sua doutrina nas Confissões de Rousseau.
Pode-se acrescentar, no entanto, em favor da escola cínica – ou, ao menos, em favor da sua importância
histórico-filosófica – que ela serve de ponto de partida para o estoicismo, um sistema que representa um
verdadeiro progresso no âmbito da Filosofia pagã. A preferência concedida pelo estoicismo à noção de
virtude, que é sua idéia matriz, é também o ponto central e como o princípio geral da escola cínica,
considerada em si mesma e em sua origem. Neste sentido, e deste ponto de vista, o estoicismo representa
uma transformação do sistema cínico.

verdadeiramente cínica, como referimos no corpo texto.


117
Antes de morrer, ordenou que seu corpo não fosse coberto com terra; e, ao objetarem que seria comido pelos cães, disse para
colocar um pedaço de pau em sua mão para os afugentar quando se aproximassem. “Mas como poderás saber quando eles se
aproximarem – redarguiram seus interlocutores – se, então, não sentirás nada?” Ao que o Cínico respondeu: “Bem, se, então, não
vou sentir nada, de que me importa se os cães me despedaçarem?” Na vida e na morte, sempre quis ser Diógenes, o Cínico.
118
A pobreza de Crates foi uma pobreza voluntária, se for dado crédito a São Jerônimo e a vários outros escritores, que afirmam
que antes de partir de Tebas para Atenas, Crates vendeu todos os seus bens, distribuindo-os entre seus parentes e amigos. Talvez
este traço extraordinário de desprendimento tenha sido a origem da violenta paixão que Hiparchia concebeu por Crates.
119
Diz-se que Alexandre Magno também visitou Crates, como fizera com Diógenes, e que tendo lhe perguntado se queria que
reedificasse Tebas, sua pátria, respondeu: “Para quê? Depois viria outro Alexandre que a destruiria novamente”.
107
§ 62 Escola megárica

A morte de Sócrates (399 a.C.) foi o sinal para a dispersão de seus discípulos e amigos, a maior parte
dos quais se retirou para sua respectiva pátria. Conta-se entre eles Euclides (Εὐκλείδης ὁ Μεγαρεύς), que
estabeleceu em Mégara, sua pátria, uma escola que se chamaria megárica ou erística, por causa de sua
paixão pelas disputas dialéticas, nas quais se destacaram os discípulos e sucessores de Euclides,
particularmente Eubulides de Mileto (Εὐβουλίδης) e Estilpão de Mégara (Στίλπων).
A idéia fundamental de Euclides e da sua escola é a unidade do bem120, que está fora do alcance dos
sentidos, e só é conhecido pela razão.
Deixa-se ver nesta doutrina a influência da escola eleática, à qual Euclides tinha pertencido antes de
ser discípulo de Sócrates. A unidade absoluta do ser, identificado com o bem, fora do qual nada real existe,
constitui o fundo da escola megárica, a qual se viu necessitada de buscar recursos na dialética e na sofística
para defender tal doutrina, como fizeram já antes os eleáticos.
Os principais representantes e continuadores da escola megárica, além dos já ditos Eubulides e
Estilpão, foram Alexino de Élis (Ἀλεξῖνος) e Diodoro Kronos (Διόδωρος Κρόνος; † 284 a.C.), natural de
Jaso da Cária e discípulo de Apolônio, que o fora de Eubulides. Diodoro teria vivido e ensinado no Egito,
sob o reinado de Ptolomeu Soter.
A escola megárica, conforme inferido do que deixamos indicado, deve ser considerada como um ensaio
de conciliação, ou melhor, de fusão entre a Filosofia Eleática e a Socrática. O ser Uno dos antigos eleáticos
transforma-se no ser Bem para os megáricos, e identifica-se com a razão suprema e com Deus.

§ 63 Escolas de Élis e de Eretria

A escola de Élis deve sua origem a um dos discípulos favoritos de Sócrates, Fédon (Φαίδων), que dá
o nome ao diálogo de Platão sobre a imortalidade da alma. Retirado para sua terra natal após a catástrofe
de seu professor, fundou ali uma escola, cujo dogma fundamental parece ter sido, como no de Mégara, a
unidade e identidade do ser e do bem. Tanto esta escola como a de Eretria – fundada por Menédemo
(Μενέδημος ὁ Ἐρετριεύς), discípulo do mesmo Fédon, e que recebe o nome do local onde foi fundada, ou
melhor, para onde se transladou, depois de Elis, esta escola – limitaram-se a ensinar e desenvolver o aspecto
ético da Filosofia socrática. Dada a escassez e a insegurança de notícias que temos sobre a doutrina dessas
escolas, devemos limitar-nos a atribuir-lhes como pensamento fundamental a identidade da verdade e da
virtude, do verdadeiro e do bem, ao menos quanto à filial de Eretria, da qual diz Cícero: A Menedemo
ereatrici appellati, quorum omne bonum in mente positum et mentis acie, qua verum cerneretur.
Tanto estas duas escolas quanto aquela fundada em Mégara por Euclides prepararam o terreno, com a
sua doutrina e teorias morais, ao estoicismo, no qual vieram a desaguar com o tempo. Assim, por exemplo,
a apatia ou insensibilidade absoluta ensinada por Estilpão e alguns outros representantes da escola
megárica121 tem bastante afinidade com a que os estóicos atribuíam a seu Mestre.

§ 64 Desenvolvimento e complemento da Filosofia Socrática

O que chamamos de restauração socrática não logrou realizar-se realmente até o advento de Platão e
Aristóteles. Sócrates iniciou, é verdade, essa restauração, mas apenas a iniciou. Ele a iniciara, repudiando
o sofisma dos sofistas, reconciliando a Filosofia com o senso comum, criando e praticando o método
indutivo-dedutivo, apontando para a ciência seu verdadeiro caminho, o caminho da observação psicológica

120
É por isso que escreve Cícero: Euclides, a quo iidem illi Megarici dicti, quid id bonum solum esse dicebant, quod esset unum,
et simile, et idem semper.
121
Referindo-se a estes e comparando a sua doutrina sobre este ponto com a dos estóicos, escreve Séneca: «Hoc inter nos et illos
interest; noster sapiens vincit quidem incommodum omne, sed sentit; illorum, nec sentit quidem». Oper., epist. 9.
108
e da razão reflexa e depurando-a dos elementos poéticos, alegóricos e mitológicos que até então a tinham
desfigurado; pois, como Hegel observou apropriadamente, os deuses abdicaram de certa forma de seu
domínio no reino filosófico quando a pitonisa de Delfos declarou que Sócrates era o mais sábio dos homens.
Sócrates, porém, não fez mais do que iniciar a restauração da Filosofia; porque ele nem possuía o gênio
sublime e ousado da metafísica, nem conhecia a fundo as antigas escolas, nem soube descobrir e depurar o
pensamento que pulsava nos sistemas e pensadores anteriores. E, no entanto, tudo isso foi necessário, além
das iniciações socráticas, para realizar a verdadeira restauração, a verdadeira reconstrução e, ao mesmo
tempo, criação da Filosofia; e tudo isso é encontrado em Platão e Aristóteles. A Filosofia de Sócrates era,
como dissemos, uma Filosofia essencialmente incompleta: Foi um ensaio moral, acompanhado de poucas
e leves noções psicológicas, teológicas e político-sociais. As diversas escolas fundadas por seus discípulos
após sua morte são ainda mais incompletas e imperfeitas, podendo-se até dizer que se a doutrina socrática
não tivesse tido mais representantes do que aquelas escolas, é possível que Sócrates tivesse aparecido na
História da Filosofia como mais um dentre tantos sofistas, ainda que superior na doutrina e nos costumes
aos que lhe foram contemporâneos.
Estas reflexões revelam-nos o mérito, a importância e a verdadeira missão de Platão e de Aristóteles,
genuínos representantes da restauração socrática, se por esta se entende a reconstrução perfeita, e, por assim
dizer, criadora da Filosofia.
Com Platão e Aristóteles, a doutrina do impugnador dos sofistas, que até então tinha permanecido
relativamente estéril; a idéia socrática, que só tinha encontrado intérpretes parciais e incompletos nas
escolas de Aristipo, Antístenes, Euclides e outros, adquiriu um grande movimento de expansão, e a
especulação grega chega ao seu auge, e apresenta as características de uma virilidade nunca superada, de
uma fecundidade verdadeiramente espantosa. Como deixamos indicado acima, nos sistemas e com os
sistemas destes dois sucessores de Sócrates, a Filosofia adquire todo o seu organismo interior e exterior.
Ao lado da metafísica, que vem para completar e servir de coroação à antiga física, tomam assento a ética,
a política, a teodicéia, a psicologia, a lógica, a matemática e as ciências naturais. E aparecem também a
afirmação do teísmo transcendente em oposição ao hilozoísmo monista da antiga escola jónica, e a
afirmação do princípio espiritualista, e a concepção da ciência e das idéias, e a distinção precisa entre o
elemento inteligível e o sensível, com outras grandes e fecundas teorias, ou ignoradas ou apenas
pressentidas pela Filosofia do período anterior.
Daí a importância excepcional destes dois nomes na História da Filosofia pagã, e daí a consequente
necessidade de expor com maior atenção e alguma extensão, sua vida, seus escritos e suas idéias.

109
§ 65 Platão: vida e escritos

De família ilustre e aparentado com a de Códro 122 e Sólon, Platão (Πλάτων, γιος του Αριστάν της
Αθήνας) nasceu em Atenas, cerca de 427 a.C.,
Relacionado com o último Rei de Atenas, a
coincidindo o seu nascimento com a morte de Péricles.
família de Platão era ilustre de diversos modos: sua
Alguns dizem que nasceu em Egina e são muitos os que mãe, Perictione, era irmã de Cármides e sobrinha
afirmam que seu nome verdadeiro, que lhe deram seus de Crítias e se regozijava por seu parentesco com
pais, fora Arístocles, sem que se saiba ao certo quando Sólon. De seu esposo Aristão, além de Platão,
e por que recebeu o nome de Platão, o qual conservou tivera Adimanto, Glauco e Potone, que seria mãe
por toda sua vida. Diz-se também que, em seus de Espeusipo (sobrinho e sucessor de Platão à
primeiros anos, dedicou-se à poesia e escreveu vários frente da Academia). Após a viuvez, desposou
poemas épicos e ditirâmbicos. Se isso estiver correto, é Perilampes, que servira muitas vezes de
preciso admitir em todo caso que seus interesses embaixador junto aos persas e gozava da amizade
do famoso Péricles.
poéticos não foram duradouros, pois aos vinte anos já se
Em contraste com a reticência acerca de si
fizera discípulo de Sócrates, sem mais se interessar pela mesmo, Platão muitas vezes introduziria em suas
poesia, dedicando-se inteiramente ao estudo da obras os ilustres parentes: Cármides dá nome a um
Filosofia. Platão seguiu na escola de Sócrates pelo Diálogo, Crítias é interlocutor em mais de um, já
período de oito anos, ou seja, até a morte de seu Mestre, Adimanto e Glauco figuram na famosa República.
após o que se retirou a Mégara. Na expressão de Burnet, “a cena inaugural de
Passado algum tempo ao lado de Euclides para se Cármides é uma glorificação de toda a família” e
aperfeiçoar na dialética, Platão empreendeu desde “seus diálogos servem não apenas de homenagem
Megara, de acordo com tradições mais ou menos a Sócrates, mas também dos melhores dias de sua
autorizadas, diferentes viagens e peregrinações. São estirpe”.
Clemente de Alexandria e Lactâncio admitem que
permaneceu no Egito por um espaço de treze anos,
instruindo-se em suas ciências e até em seus mistérios
hieráticos, atribuindo-lhe também viagens pela Fenícia,
Babilônia, Pérsia e Judéia. No entanto, exceto a viagem
ao Egito – e isso sem determinar o tempo de sua estada
–, é preciso confessar que todas essas tradições carecem
de fundamentos históricos.
As suas viagens à Itália e à Sicília, o seu comércio
com os discípulos de Pitágoras e com os eleáticos, as suas visitas a Dionísio o Tirano e a Dion, merecem
maior e quase completa confiança123, dados os fundamentos em que se apoiam. Rico, e carregado, por assim

122
Códro (Κόδρος), filho de Melanto, foi o último Rei de Atenas, reinando entre 1089 e 1068 a.C. [N.T.]
123
Supõe-se com bastante fundamento que Platão tenha feito três viagens a Siracusa: a primeiro, quando tinha quarenta anos; a
segunda, aos sessenta anos de idade, quando foi chamado por Dion para lhe confiar a educação de Dionísio, o Jovem. A grande
liberdade e energia com que ele falava contra a tirania na presença de Dionísio, o Velho, lhe acarretaram grandes desgostos e
perigos, e até mesmo o de ser vendido como escravo, segundo alguns, que dizem que foi comprado e devolvido à liberdade pelo
filósofo [cirenaico] Aniceres. Em idade avançada, Platão empreendeu sua terceira viagem à Sicília, com o objetivo de restabelecer
a paz entre Dion e seu sobrinho Dionísio, o Jovem.
110
dizer, com os despojos científicos do Oriente e do Ocidente, Platão abriu escola pública em lugar agradável
e frondoso, pertencente ao seu amigo Academo, de onde se deriva para a sua escola o nome de Academia. O
estudo e o ensino da Filosofia ocuparam constantemente o seu espírito, até que faleceu em Atenas, aos
oitenta e um anos de idade.
Platão é talvez o único Filósofo notável da Antiguidade cujos escritos nos chegaram inteiros124, o que
contribuiu para sua celebridade e para que sua doutrina seja mais conhecida. No entanto, o pensamento de
Platão é obscuro e duvidoso com frequência, contribuindo para isso em parte a forma de diálogo, que não
permite reconhecer sempre com certeza qual é a opinião do autor, e, por outro lado, a forma mitológica e
alegórica que ele usa frequentemente em seus escritos. É por isso que não faltam autores que atribuam a
Platão uma doutrina esotérica ou secreta; de nossa parte, acreditamos que o esoterismo platônico pode se
reduzir às precauções que era preciso tomar se
A hereditariedade nas elites tradicionais se pretendesse não entrar em choque ou pôr-se
Pio XII em manifesta contradição com o politeísmo
Discurso ao Patriciado e a Nobreza Romana de 1944 oficial. É verdade, porém, que em seus escritos
Desta grande e misteriosa coisa que é a hereditariedade –
se tropeça frequentemente com passagens cujo
quer dizer, o passar através de uma estirpe, perpetuando-se de sentido é obscuro e ambíguo, com idéias e
geração em geração, um rico acervo de bens materiais e teorias que parecem contraditórias, como se
espirituais, a continuidade de um mesmo tipo físico e moral, vê, entre outros, nos diálogos e textos que se
conservando-se de pai para filho, a tradição que une através referem à origem, natureza e destino ou
dos séculos os membros de uma mesma família – desta existência da alma após a morte, e, sobretudo,
hereditariedade, dizemos, pode-se sem dúvida distorcer a nos que se referem à teoria do conhecimento.
verdadeira natureza com teorias materialistas. Mas pode-se Apresenta-nos algumas vezes a alma como
também, e deve-se, considerar esta realidade de tão grande
substância puramente espiritual, que voa para
importância na plenitude da sua verdade humana e
o seio de Deus após a morte, ou é punida em
sobrenatural.
Por certo, não se negará à transmissão dos caracteres proporção às suas obras; ao passo que em
hereditários um substrato material; considerar tal facto outras passagens parece mesmo negar-lhe
surpreendente, seria esquecer a união íntima da nossa alma verdadeira espiritualidade como que se
com o nosso corpo, e em quão larga medida as nossas próprias aproximando do materialismo, falando-nos do
atividades mais espirituais dependem do nosso temperamento corpo etéreo e sutil que leva consigo ao
físico. Por isso a moral cristã não deixa de lembrar aos pais as separar-se do corpo e até mesmo da
grandes responsabilidades que lhes cabem a esse respeito. transmigração em corpos de animais. No que
Porém o que mais vale é a herança espiritual, transmitida tange à teoria do conhecimento, a obscuridade
não tanto por esses misteriosos liames da geração material,
é ainda maior, sendo difícil por extremo fixar
quanto pela ação permanente daquele ambiente privilegiado
de uma forma precisa o sentido e significado
que constitui a família; com a lenta e profunda formação das
almas, na atmosfera de um lar rico de altas tradições que dá às palavras sentido, imaginação,
intelectuais, morais e sobretudo cristãs; com a mútua pensamento ou cogitatio, opinião, ciência,
influência existente entre os que moram numa mesma casa, razão etc.
influência esta cujos benéficos efeitos se prolongam para Isso tanto é verdade, e o pensamento
muito além dos anos da infância e da juventude, até alcançar filosófico de Platão parece tão ambíguo e
o termo de uma longa vida naquelas almas eleitas que sabem vacilante, que já na antiguidade havia críticos
fundir em si mesmas os tesouros de uma preciosa e historiadores, a darmos crédito a Sexto
hereditariedade com o contributo das suas próprias qualidades Empírico 125 , que o apresentavam entre os
e experiências.
representantes do ceticismo.

124
Aqui está o catálogo ou índice das obras de Platão, de acordo com a ordem e forma que lhes apontou Marsilio Ficino: Hipparchus,
de lucri cupiditate; De Philosophia, seu amatores; Theajes, de sapientia; Menon, de virtute; Alcibiades primus, de natura homini;
Alcibiades secundus, de voto; Minos, de lege; Eutiphro, de sanctitate; Parmenides, de um rerum princípio; Philebus, de summo
hominis bono; Hippias major, de pulchro; Lysis, de amicitia; Theaete; Libri duodecim, de legibus; Epinomis, id est legum appendix,
vel philosophus; Axiochus; Epistolae duodecim Platonis. [N.T. Para maior clareza, veja-se o Apêndice 1, a seguir]
125
“Platonem alii dogmaticum esse dixerunt, alii aporematicum, id est, dubitatorem; alii vero in quibusdam dogamticum, in
quibusdam aporematicum. Nam in gymnasticis libris, id est exercitatoriis, ubi Socrates aut ludens cum aliquibus inducitur, aut
pugnans adversus sophistas, exercitatorium et dubitatorium quemdam dicunt illum habere characterem, dogamticum autem, ubi
serio loquens, sententiam suam aut per Socratem, aut per Timaeum, aut per aliquem ex hujusmodi viris, exponit.” (Hipotiposes
111
A crítica tem disputado muito, e ainda disputa, sobre a autenticidade126 das obras de Platão. As que
podem ser consideradas como de autenticidade inconteste e, ao mesmo tempo, como que suficientes para
formar uma idéia do pensamento filosófico de Platão, são as seguintes: Fedro (de pulchro), Fedão (de
immortalitate), o Banquete (de amore), Górgias (de Rhetorica), Timeu (de generatione mundi), Teeteto (de
scientia), os dez livros da República e o tratado das Leis. Já o Critão (de eo quod est agendum), e a Apologia
de Sócrates possuem autenticidade respeitável, embora não de todo inconcussa.
Sem prejuízo da marca de profunda originalidade que brilha nos escritos e na doutrina de Platão, não é
difícil, nem raro, reconhecer que sobre seu gênio e suas teorias exerceram influência mais ou menos
decisiva, certas teorias, tradições e idéias de outras escolas e outros filósofos. Ao lado das tradições egípcias
e orientais; ao lado das reminiscências mitológicas, a doutrina de Platão apresenta vestígios mais ou menos
sensíveis e numerosos de terem passado por seu espírito idéias provenientes da escola eleática, da pitagórica
e da de Heráclito. Aristóteles, testemunha privilegiada na matéria, confirma o que acabamos de indicar, e
conclui dando a entender que uma das coisas que mais contribuíram para que Platão excogitasse sua famosa
Teoria das Idéias foi a doutrina de Heráclito sobre o fieri ou fluxo perpétuo do mundo sensível127, ou seja,
das substâncias singulares. A contingência e mutabilidade inerentes a estas exigem, segundo Platão, a
existência de realidades distintas, separadas e independentes das naturezas singulares e sensíveis, realidades
ou essências (idéias) imutáveis de suas e eternas: praeter sensibilia et formas mathematicas, res ait medias
esse, a sensibilibus quidem differentes, eo quod perpetuae et immobiles sunt. [Παρὰ τὰ αἰσθητὰ καὶ τὰ
μαθηματικὰ εἴδη, ἔστι μέσα τινὰ γένη τῶν ὄντων, διαφερόντων μὲν τῶν αἰσθητῶν, ὅτι ἀεί ἐστι καὶ
ἀτρέπτως ὑπάρχει.] (Timeu, 50a-51a)

Apêndice 1 – Catálogo das Obras de Platão


segundo a ordem e a forma que lhes impôs Marsílio Ficino

Título em latim Título em português Assunto


Hipparchus, de lucri cupiditate. Hiparco ganância
De Philosophia, seu amatores. Amantes Rivais transmissão do conhecimento
Theajes, de sapientia. Teages δαίμων ou voz interior de
Sócrates; sabedoria
Menon, de virtute. Mênon virtude
Alcibiades primus, de natura Alcibíades I natureza do homem e bem
hominis. comum
Alcibiades secundus, de voto. Alcibíades II conhecimento
Minos, de lege. Minos lei
Eutiphro, de sanctitate. Eutífron piedade

Pirrônicas, l. 1 c. 33)
126
Geralmente são considerados como apócrifos o Hipparchias, o Minos, o Alcibiades secundus e o Axiochus. As cartas de Platão,
o Epinomis, o Theages, o Hippias major e o Alcibiades primus, que são de autenticidade duvidosa para muitos críticos, por mais
que outros tenham escrito a seu favor. O mesmo quase acontece com os diálogos intitulados Parmenides, Cratylus e Philebus.
127
Depois de resumir as opiniões das escolas pré-socráticas acerca do princípio e da constituição das coisas, Aristóteles acrescenta:
“Post dictas vero philosophias, disciplina Platonis supervenit, in plerisque quidem istos secuta; quaedam autem etiam propia, ultra
Italicorum habens philosophiam. Cum Cratillo namque ex recenti conversatus, et Heracliti opinionibus [καὶ ταῖς Ἡρακλειτείοις
δόξαις] assuetus, tanquam omnibus sensibilibus semper defluentibus, et de eis non existente scientia, haec quidem postea ita
arbitratus est.
Cum vero Socrates de moralibus quidem tractaret, de tota vero natura nihil; in is tamen universale quaereret, et primus mentem
ad definitionem applicaret, illum ob hoc laudans, putavit [Plato] de aliis et non de aliquo sensibilium hoc fieri: impossibile enim
putavit definitionem communem cujuspiam sensibilium esse, quae semper mutantur. Et sic talia, entium ideas appellavit, sensibilia
vero praeter haec”. (Metafísica, l. I, c. 6. 987a-b)
112
Parmenides, de uno rerum principio. Parmênides uno
Philebus, de summo hominis bono. Filebo ética
Hippias major, de pulchro. Hípias maior belo
Lysis, de amicitia. Lísis amizade
Theaetetus, de scientia. Teeteto sabedoria
Io, de furore poetico. Íon poesia
Sophista, de ente. Sofista método de investigação filosófica
Civilis, de regno. Peri Basileias política
Protagoras, contra sophistas. Protágoras natureza da virtude
Euthydemus, sive litigiosus. Eutidemo falácias sofistas
Hippias minor, de mendacio. Hípias menor ação correta
Charmides, de temperantia. Cármides ética
Laches, de fortitudine. Laques sobre a fortaleza
Clitophon, exhortatorius. Clitofon exortação à investigação
científica
Cratylus, de recta nominum ratione Crátilo se os nomes são convencionais ou
naturais
Gorgias, de rethorica. Górgias retórica
Convivium Platonis, de amore. Banquete amor
Phoedrus, de pulchro. Fedro amor | arte da retórica
Apologia Socratis. Apologia de Sócrates
Crito, de eo quod agendum. Críton ou Critão dever
Phoedon, de anima. Fédon ou Fedão imortalidade da alma
Menexenus, seu funebris oratio. Menexêno morte no campo de batalha
Libri decem de Republica. A República política

Timaeus, de generatione mundi. Timeu cosmologia


Critias, de atlantico bello. Crítias continuação da República |
Atlântida
Libri duodecim, de legibus. As Leis política
Epinomis, id est legum appendix, Epínomis continuação das Leis
vel philosophus.
Axiochus. Axíoco preparação da morte
Epistolae duodecim Platonis Cartas

113
§ 66 Teoria das Idéias de Platão

O ponto culminante da Filosofia platônica e a chave de sua doutrina é sua famosa teoria das Idéias,
intimamente ligada à teoria do conhecimento humano. A obscuridade, a linguagem confusa, e até certo
ponto contraditória, que se observa em Platão quando fala das idéias, têm dado origem a interpretações
muito diversas sobre esta teoria. Para nós, a teoria platônica das idéias, considerada em si mesma e em suas
relações com a teoria do conhecimento, pode ser reduzida a:
objeto da ciência
a) A ciência [ἐπιστήμη – episteme] tem por objeto o necessário, o imutável, o absoluto: as coisas
temporárias, mutáveis e contingentes não podem ser objeto da ciência. Disso decorre que não pode ser
ciência o conhecimento das coisas singulares, visíveis e materiais que percebemos com os sentidos, pois
estas variam continuamente e estão sujeitas a mudanças perpétuas, como ensina Heráclito.
idéias inatas
b) O objeto, portanto, da ciência são as idéias [ou formas], que contêm e representam o que é necessário,
imutável e absoluto nas coisas. Essas idéias ou formas são independentes, anteriores e superiores ao espaço,
ao tempo, aos indivíduos e ao mundo visível; elas contêm e representam as essências, isto é, a verdadeira
realidade das coisas. Essas realidades superiores, eternas, ingênitas são, ao mesmo tempo, noções universais
das coisas, mas noções inatas que não se originam dos sentidos, nem das abstrações e comparações do
entendimento.
hiper-realismo platônico
c) Essas próprias idéias ou formas são ao mesmo tempo tipos, modelos e exemplares primeiros das
coisas singulares e sensíveis, que vêm a ser como que impressões, imagens, imitações e participações das
idéias ou formas universais, imutáveis, inteligíveis e eternas. Assim é que as idéias são os verdadeiros seres
reais. São objetos mais reais do que objetos sensíveis, pois sua realidade tem sua razão suficiente e tem sua
origem na realidade das idéias. É daqui que se deve considerar o mundo visível e material como mera
imitação e figura, como concreção parcial, como imagem imperfeita do mundo inteligível, que é o mundo
das idéias [υπερκόσμο των ιδεών (supra-mundo das idéias ou o ὑπερουράνιος (hiperurânio)].
hierarquia das idéias
d) Embora todas as idéias ou formas tenham a mesma característica de necessidade, imutabilidade,
independência e superioridade em relação ao mundo sensível – além de serem os tipos e a razão suficiente
para as coisas singulares –, existe entre elas certa ordem hierárquica quanto à sua universalidade. O lugar
supremo entre elas corresponde à Idéia do Bem, que contém abaixo de si todas as outras. A Idéia do Bem
é, aliás, o modelo típico, o exemplo supremo, segundo o qual Deus realizou a criação, ou melhor dito, a
ordenação do mundo.
mundo das idéias
e) Mas qual é o lugar das idéias de Platão? Onde essas idéias existem ou residem? Aqui está um dos
pontos mais obscuros dessa teoria. Platão afirma naturalmente que as idéias não residem no mundo sensível,
e que não precisam de espaço. Em vez disso, afirma, ou ao menos indica, às vezes que elas existem por si
mesmas e em si mesmas, ou que existam no mundo inteligível, pois existem na Idéia absoluta e suprema
do Bem.
opinião e ciência
f) No homem devem distinguir-se duas ordens de conhecimento, uma inferior e imperfeita, a outra
superior e propriamente científica. A primeira abarca as sensações e percepções de objetos singulares e
sensíveis com suas imagens ou representações. Este conhecimento não atinge ou penetra o que é imutável
e permanente, isto é, a essência das coisas, e por isso mesmo não merece o nome de ciência, mas apenas de
opinião [δόξα – doxa], pois carece de necessidade objetiva, clareza. certeza. No entanto, serve para excitar,
dirigir e concentrar a razão (que é a faculdade superior da alma) nas idéias que preexistem no espírito,
embora adormecidas e em estado latente. A intuição dessas idéias, ou digamos, de seu conteúdo, que
representa a essência e a realidade verdadeira, imutável e necessária das coisas, é o que constitui a segunda
ordem do conhecimento, o conhecimento inteligível, a ciência [ἐπιστήμη – episteme]. A partir daqui é que,

114
para Platão, a ciência é uma verdadeira reminiscência das idéias ou formas inteligíveis, pré-existentes e
conhecidas de antemão, e não uma aquisição real de conhecimento ou verdades desconhecidas.

Em conclusão, e resumindo: a grande Teoria das Idéias ou Teoria das Formas de Platão, teoria que
constitui o fundo e a essência da Filosofia do discípulo de Sócrates, pode ser reduzida e condensada nos
seguintes termos: A idéia, em relação a Deus, é a Sua inteligência; em relação ao homem, é o objeto
primeiro e real do entendimento; em relação ao mundo externo e sensível, é o arquétipo, o modelo
exemplar; em relação a si mesma, é a essência das coisas; em relação à matéria, é a sua medida, sua forma,
seu princípio, sua impressão.
Se considerarmos esta Teoria das Idéias por parte de suas aplicações à teoria do conhecimento, à qual
serve de base, princípio e forma, pode ser resumida nos seguintes termos: Há dois mundos, um eterno
inteligível, imutável e insensível; outro material, produzido, mutável, visível e contingente. A estes dois
mundos objetivos correspondem quatro graus de conhecimento da parte do homem, que são:

1) a conjectura [εἰκασία – eikasía] ou imaginação, que percebe espécies ou representações de objetos


sensíveis;

2) a crença [πίστις – pístis], por meio da qual assentimos à realidade objetiva do mundo externo, e
conhecemos as coisas sensíveis, como singulares e contingentes;

3) o entendimento [διάνοια – dianóia] ou inteligência racional, por meio da qual conhecemos as idéias
ou formas na medida em que constituem e representam verdades e objetos de ordem matemática;

4) e, finalmente, a própria inteligência [νόησις – noésis], inteligência superior e intuitiva das idéias ou
formas e, principalmente, do Ser Supremo (intelligentiam quidem ad Supremus ipsum), princípio universal
dos dois mundos, ou seja, da Idéia do Bem, que é para o mundo inteligível o que o sol material é para o
mundo visível. Porque na teoria de Platão, esta Idéia do Bem é o ser dos seres, a essência superior a todas
as essências, o princípio real da verdade, da ciência e até da inteligência; em uma palavra: é o próprio Deus,
princípio e razão suficiente de todas as coisas, mas superior e diferente de todas elas. Por maiores que
sejam, acrescenta Platão, a beleza e excelência da verdade e da ciência, pode assegurar-se, sem perigo de
erro, que a Idéia do Bem é diferente delas e as sobrepõe em beleza; longe de se identificarem realmente
com o Bem, devem ser consideradas como imagens e reflexos Seus, assim como no mundo sensível a visão
e a luz não se identificam com o sol, ainda que tenham alguma analogia128 com ele, e sejam como que
derivações do astro do dia.

128
As seguintes palavras [N.T.: embora o Cardeal as dê em latim, aqui preferimos dar o texto no vernáculo], tiradas da longa
passagem em que Platão expõe e desenvolve este ponto capital da sua teoria do conhecimento humano, poderão servir ao leitor
para julgar a exatidão da nossa exposição, e também para conhecer o passo do filósofo ateniense sobre esta matéria:
“Já me ouviste, em várias ocasiões, dizer que a Idéia do Bem constitui o mais elevado conhecimento, e que na medida em que dela
participam são úteis e vantajosas a justiça e as demais virtudes. Neste momento deves saber que vou dizer-te isso mesmo, com o
acréscimo de que não a conhecemos bem e que sem isso de nada nos servirá o conhecimento de todo o resto, por mais perfeito que
seja, como inútil nos seria possuir tudo, porém, com exclusão do bem. Ou acreditas que tenha algum valor a posse do que quer que
seja, se não adquirirmos o bem? Ou conhecer tudo sem o bem, sem conhecermos nada belo nem bom?” (República, l. VI, 505a)
“Ora, o que comunica a verdade aos objetos conhecidos e ao sujeito cognoscente a faculdade de conhecer, podes afirmar que é a
Idéia do Bem; é a fonte primitiva do conhecimento e da verdade, tanto quanto estes podem ser conhecidos; mas, por mais belos
que sejam ambos, o conhecimento e a verdade, se admitires que muito mais belo é esse outro elemento – a Idéia do Bem – terás
pensado com acerto.” (508e)
“No meu modo de ver, o sol, como dirás, não somente empresta às coisas visíveis a faculdade de serem vistas, como também a
geração, o crescimento e a alimentação, muito embora ele mesmo não seja geração. O mesmo dirás dos objetos conhecidos, que
não recebem do bem apenas a faculdade de serem conhecidos, mas também lhe devem o ser e a essência, conquanto o bem não
seja essência, senão algo que excede de muito a essência, em poder e dignidade.” (509b)
Platão continua expondo e aplicando os quatro modos de conhecimento que mencionamos, e conclui nos seguintes termos: “Agora,
para essas quatro seções, admite outras tantas operações do espírito: [4] inteligência, para a mais elevada; [3] entendimento, para a
que se lhe segue; à terceira atribuirás a [2] crença, e à última a [1] conjectura, e as distribui segundo o critério de que quanto mais
participar cada uma delas da verdade, tanto maior evidência alcançará.” (511e)
115
É digno de nota aqui que, como já Ιδεα
indicamos acima, o pensamento de
Fédon
Platão sobre a teoria do
“Se a alma é imortal, não é verdade que ela existia antes de nascer?
conhecimento, ou pelo menos sua E se a alma existia antes de nascer, não é verdade que ela existia no
maneira de se expressar, oferece certa mundo transcendental das idéias [υπερκόσμο των ιδεών]? E se a
confusão e ambiguidade. Há alma existia no mundo transcendental das idéias, não é verdade que ela
passagens em suas obras em que os conhecia as idéias antes de nascer? E se a alma conhecia as idéias antes
sentidos externos, a memória, o senso de nascer, não é verdade que o conhecimento humano é uma forma de
comum, a reminiscência e a fantasia recordação (reminiscência) das idéias que a alma já conheceu antes de
aparecem como tantos modos e nascer?” (Fedon, 75d-e)
faculdades de conhecimento, e há
também outras em que se apresentam Fedro
de uma forma mais ou menos “O conhecimento que se adquire por meio da razão e da reflexão é
menos perfeito do que o conhecimento das idéias em si mesmas
diferente daquela já indicada as
(intelligibile secundum). O conhecimento das idéias em si mesmas é o
funções, o alcance e o objetos da [1]
conhecimento mais perfeito e mais verdadeiro (intelligibile primum)”
conjectura ou imaginação, da [2] (Fedro, 250d)
crença [que é, no sentido mais
próprio, a] opinião [δόξα], do [3] Timeu
entendimento ou cogitatio129 e do [4] “As idéias são a realidade última e são mais reais do que as coisas
intellectus ou ciência intelectual. que vemos no mundo sensível. As coisas que vemos no mundo sensível
Pode-se também alegar, em são apenas cópias imperfeitas das idéias no mundo transcendental
confirmação do que foi dito, a [υπερκόσμο των ιδεών]. O conhecimento que adquirimos por meio
doutrina que Platão expõe no diálogo da razão e da reflexão (intelligibile secundum) é derivado das idéias no
Teeteto acerca do conhecimento mundo transcendental, mas é menos perfeito do que o conhecimento
das idéias em si mesmas (intelligibile primum)” (Timeu, 51a-b).
humano, doutrina que, embora
coincida no fundo com a teoria acima
República
exposta, não deixa de oferecer alguns
“A inteligência [νοῦς] é a faculdade que apreende o ser [ὄντος
pontos de divergência daquela e ἐπιστήμη], e o ser é composto de duas partes, a que é inteligível
algumas fases especiais do [νοητόν] e a que é visível [αἰσθητόν]. A inteligível é a que é sempre
conhecimento. O discípulo de a mesma, e a visível é a que nunca é a mesma. A inteligível é a que é
Sócrates começa por distinguir duas objeto da ciência [ἐπιστήμης], e a visível é objeto da opinião [δόξης].
ordens ou gêneros de ser objeto A inteligível é a que é sempre verdadeira [ἀληθές], e a visível é a que
possível do conhecimento: um é verdadeira às vezes e falsa [ψευδές] às vezes. A inteligível é a que é
inteligível, imutável e incorpóreo; conhecida pela razão [λόγῳ], e a visível [αἰσθητὸν] é a que é
outro sensível, corpóreo e mutável. A conhecida pelos sentidos. A inteligível é a que é objeto da inteligência
percepção ou conhecimento do [νοήσεως], e a visível é objeto da visão. A inteligível é a que é
conhecida por meio das idéias [ἰδέαις], e a visível é conhecida por
primeiro, considerada essa percepção
meio das coisas sensíveis” (República, 476b-c)
em geral, chama-se inteligência
[ἀληθείας – aletheia], e é função
própria e exclusiva da razão, assim como a percepção do segundo pertence aos sentidos, e é chamada em
geral opinião [δόξα – dóxa; opinio).
No entanto, o ser inteligível e imutável que constitui o objeto próprio da razão é de duas espécies, a
saber: o intelligibile primum, que compreende e abrange as idéias divinas, as inteligências superiores e as
almas humanas; e o intelligibile secundum, que abrange e contém os números e figuras matemáticas, pois
esses objetos, embora incorpóreos – e, nesse sentido, pertencentes à ordem dos seres-objetos inteligíveis –

129
Assim vemos que no Teeteto fala do [3] entendimento (dianóia – cogitatio) e da [2] opinião (dóxa – opinio) em sentido diverso
do indicado no texto, chamando ou definindo o entendimento como “um discurso [λόγον – sermonem] em que a própria alma
volve sobre si mesma acerca das coisas que considera” (189d). E acrescenta em seguida: “Pois parece-me que a alma, por meio do
pensamento [διανοίᾳ – cogitationem], não faz nada além de discutir consigo mesma, perguntando, respondendo, afirmando e
negando. E quando, depois de ter definido e percebido a mesma coisa, afirma, sem vagar, mais lentamente ou mais rapidamente, é
essa mesma opinião [δόξαν] que consideramos. Por isso, chamo de falar ou opinar, e a opinião é um discurso não dirigido a outro,
nem com voz, mas com silêncio e para si mesmo.” (189e)
116
Santo Tomás explica apresentam certa inferioridade em
relação ao conteúdo do intelligibile
O que é idéia?
primum, porque estão sujeitos à
“Idéia”, em grego, é o que se diz em latim “forma”. Por idéias,
portanto, se entendem as formas de todas as coisas que existem fora divisão. A percepção e o
das coisas mesmas. Ora, a forma de uma coisa qualquer, que existe fora conhecimento do intelligibile
dela, pode ter duas funções: (A) ou é o modelo daquilo do qual ela se primum, ou melhor, das essências
diz ser a forma, (B) ou é o princípio de conhecimento de si mesma, no contidas nele, são chamados de
sentido de que as formas dos cognoscíveis estão naquele que conhece. inteligência ou sabedoria intelectual
(S. Th. I q. 15 a.1 co.) (noésis): a percepção das essências
matemáticas que constituem o
Mas, afinal, as idéias existem? intelligibile secundum tem como
Em qualquer dos dois sentidos é necessário afirmar que existem
nome próprio cogitatio intellectualis
idéias. Eis como prová-lo: Em todas as coisas que não são fruto do
(dianóia). A ordem sensível, como
acaso, é necessário que a forma seja o fim de toda geração. Ora, o
agente não agiria em vista da forma, se não tivesse em si a semelhança
objeto-possível de conhecimento,
dessa forma. O que pode acontecer de duas maneiras. Em certos também se divide em dois, que são: o
agentes, a forma da coisa a fazer preexiste segundo seu ser natural; é o sensibile primum e o sensibile
caso dos que agem por natureza, como o homem gera o homem e o secundum. Pertencem ao primeiro
fogo produz o fogo. Em outros casos, essa forma preexiste segundo o todos os corpos com suas
ser inteligível, como nos que agem pelo intelecto; é o caso da propriedades e acidentes, e sua
semelhança da casa na mente do arquiteto. E esta semelhança pode ser percepção ou conhecimento é
chamada a idéia da casa, pois o artista pretende assemelhar a casa à chamado de crença (pístis):
forma que em sua mente concebeu. Mas, como o mundo não é obra do
pertencem ao segundo as
acaso, mas foi feito por Deus que age por seu intelecto, é necessário
representações, aparências e imagens
que na mente divina exista uma forma, a cuja semelhança o mundo foi
feito. E é nisto que consiste a razão de idéia. (S. Th. I q. 15 a.1 co.) dos corpos, e sua percepção recebe o
Platão afirmava as idéias como princípios do conhecimento das nome de imaginação (eikasía).
coisas e de sua geração. (S. Th. I q. 15 a.3 co.) Ao comparar e relacionar esta
[Diz S. Agostinho que] as idéias são como as formas primeiras ou teoria, ou melhor, esta fase da teoria
as razões permanentes e imutáveis das coisas. Elas não são formadas, platônica do conhecimento com a
são eternas e sempre as mesmas, e a inteligência divina as contém. Por anteriormente exposta, é possível
outro lado, embora não comecem nem acabem, é segundo elas que formar uma idéia relativamente exata
dizemos que é formado tudo o que pode começar e terminar e tudo o e completa da concepção do filósofo
que começa e acaba. (S. Th. I q. 15 a.2 sed contra)
ateniense sobre a origem, processo e
[Logo,] as idéias são razões existentes na mente divina, como
natureza do conhecimento humano. E
mostra Agostinho. (S. Th. I q. 15 a.3 sed contra)
Idéias são as formas exemplares existentes na mente divina. (S. Th. também não se deve esquecer, para
I q. 44 a.3 co.) contribuir para reconhecer e fixar o
sentido desta teoria do conhecimento,
que Platão costuma apresentar a razão
como faculdade e percepção
intermediária entre a pura inteligência
(intellectus, sapientia) – enquanto percepção intuitiva e imediata das idéias, das coisas divinas – e a opinião
– enquanto faculdade e conhecimento das coisas inferiores, incluindo nelas não apenas as coisas sensíveis,
mas também as matemáticas. Marsilio Ficino, ao expor e desenvolver esta doutrina de Platão, supõe, não
sem fundamento, que sua verdadeira intenção é ensinar também que a razão, quando se converte e se aplica
às coisas inferiores, participa de sua imperfeição e dos erros que a opinião implica; e que, pelo contrário,
torna-se participante das coisas divinas e de sua percepção cognitiva quando se converte às coisas superiores
e à inteligência ou mente, ou seja, à parte suprema e como que divina da alma, sede da sabedoria ou ciência
propriamente dita, enquanto a razão é a sede da reminiscência: Quoties (ratio) ad inferiora porrigitur,
opinionis repletur erroribus et divina cogitare desistit. Cum vero ad mentem sui ducem convertitur,
divinorum cognitionem haurit. Quam proprio nomine in mente sapientiam, in ratione reminiscentiam Plato
nuncupat.

117
Tudo isso em vista, podemos resumir e simplificar a teoria de Platão nos seguintes termos:

a) o objeto geral próprio do conhecimento humano enquanto conhecimento científico das coisas em si,
conhecimento perfeito, real e possuidor da verdade, é o mundo suprassensível das idéias, um mundo
permanente, eterno e imutável, assim como o são as essências das coisas contidas, ou melhor dito,
identificadas com as idéias.

b) o objeto geral próprio do conhecimento humano enquanto conhecimento


inseguro, mutável e imperfeito, é o mundo sensível, o mundo dos corpos singulares,
um mundo contingente, variável e imperfeito, assim como são os elementos ou seres
que o compõem.

c) ao mundo suprassensível das idéias como objeto cognoscível, corresponde como


faculdade cognoscente no homem a inteligência, e ao mundo sensível como objeto
cognoscível corresponde, por sua vez, a opinião como faculdade cognoscente. Mas em
ambas devem ser distintos dois graus ou manifestações; porque a inteligência, ou é o conhecimento superior
das idéias como tais e como essências das coisas em si mesmas e em suas relações com o mundo sensível
e inferior, e então é chamada, ora mente, ora sabedoria, ora inteligência simplesmente; ou é o conhecimento
das idéias que constituem o mundo e as verdades da ordem matemática, e então é chamada razão, e algumas
vezes pensamento ou ciência (cogitatio, scientia). Por sua vez, a opinião, na medida em que é percepção e
assentimento à existência dos objetos sensíveis singulares, é chamada de fé ou crença; mas na medida em
que é percepção das representações, imagens, sombras ou espécies desses objetos, recebe o nome de
representação, que alguns chamam de imaginação e outros de conjectura.
Em harmonia com essas indicações, pode-se formar o seguinte esquema da teoria platônica:

A) Objetos
Mundo Inteligível Mundo Sensível
Idéias Matemática Corpos Imagens
B) Formas de Conhecimento
Ciência (episteme) Opinião (doxa)
inteligência entendimento crença conjectura
(noésis) (dianóia) (pístis) (eikasía)

Conclui-se, a partir do exposto até aqui, que na teoria de Platão, o conhecimento humano compreende
os seguintes quatro graus ou modos, procedendo de baixo para cima: [1] percepção das imagens dos corpos
singulares (eikasía – representação; conjetura); [2] percepção ou conhecimento dos corpos como coisas ou
existências singulares e contingentes (pístis – fé, crença); [3] conhecimento científico das essências e
verdades matemáticas (dianóia – ratio, cogitatio); [4] conhecimento das idéias como essência das coisas,
de suas relações mútuas entre si e com a Idéia do Bem, princípio e causa das demais, e que é o próprio Deus
ou Ser Supremo (noésis – intelligentia, sapientia).
Para que uma teoria do conhecimento humano seja completa, não basta apenas apontar o objeto e o
sujeito ou as formas do mesmo, mas também é necessário apontar e explicar a origem e o processo ou
geração do mesmo, e principalmente a transição da ordem sensível e contingente para a ordem inteligível
e necessária, que representa o objeto e o terreno próprio da ciência. Colocado diante desta última fase do
problema do conhecimento, Platão não encontra modo de resolvê-lo senão apelando para a hipótese da
preexistência das almas. As coisas sensíveis que constituem o mundo visível, e que são o primeiro termo
ou objeto de nossa atividade, nem contêm a essência das coisas, nem menos ainda as condições de
imutabilidade, certeza, evidência e necessidade que envolve a verdade; são como imagens distantes e
obscuras, meras sombras das idéias, e por isso impotentes e incapazes de nos colocar em posse delas e da
verdade. Mas ainda que impotentes por si só para fornecer a percepção das idéias e da verdade em si, os
objetos sensíveis excitam e provocam a alma a fixar sua atenção nas idéias, o que consegue concentrando-
118
se em si mesma e abstraindo-se ou separando-se do mundo externo. E se a alma, ao se concentrar em si
mesma, descobre e conhece as idéias cuja sombra distante e obscura havia vislumbrado nos objetos
sensíveis, é porque essas idéias existem no fundo da alma, embora obliteradas e como que sepultadas no
esquecimento e nas sombras. Tudo isso só pode ser concebido e explicado admitindo que as almas humanas,
antes de se unirem ao corpo, existiram e fizeram parte do mundo inteligível, e viveram em comunicação
direta e imediata com as idéias; a mesma que levaram consigo ao se unirem ao corpo, e que em virtude
dessa união ficaram como que sepultadas, obscurecidas e esquecidas. Portanto, na realidade, o processo de
geração e de origem imediata da ciência no homem é um processo de reminiscência. A ciência não é
adquirida; é reproduzida e lembrada: Discere est reminisci (η ανθρώπινη γνώση είναι μια μορφή
ανάμνησης των ιδεών: Fédon 75e)

Apêndice 2 – Alegoria da Caverna


A República (514a-517c)130

Agora imagine a nossa natureza, segundo o grau de educação que ela recebeu ou não, de acordo com o
quadro que vou fazer. Imagine, pois, homens que vivem em uma morada subterrânea em forma de caverna.
A entrada se abre para a luz em toda a largura da fachada. Os homens estão no interior desde a infância,
acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, de modo que não podem mudar de lugar nem voltar a cabeça
para ver algo que não esteja diante deles. A luz lhes vem de um fogo que queima por trás deles, ao longe,
no alto. Entre os prisioneiros e o fogo, há um caminho que sobe. Imagine que esse caminho é cortado por
um pequeno muro, semelhante ao tapume que os exibidores de marionetes dispõem entre eles e o público,
acima do qual manobram as marionetes e apresentam o espetáculo.

130
A Republica, 514a-517c. Tradução de Lucy Magalhães. In: MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Filosofia: dos Pré-
socráticos a Wittgenstein. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. [N.T.]
119
Então, ao longo desse pequeno muro, imagine homens que carregam todo o tipo de objetos fabricados,
ultrapassando a altura do muro; estátuas de homens, figuras de animais, de pedra, madeira ou qualquer
outro material. Provavelmente, entre os carregadores que desfilam ao longo do muro, alguns falam, outros
se calam.
Eles são semelhantes a nós. Primeiro, pensas que, na situação deles, eles tenham visto algo mais do que
as sombras de si mesmos e dos vizinhos que o fogo projeta na parede da caverna à sua frente? Não acontece
o mesmo com os objetos que desfilam?
Então, se eles pudessem conversar, não acha que, nomeando as sombras que vêem, pensariam nomear
seres reais? E se, além disso, houvesse um eco vindo da parede diante deles, quando um dos que passam ao
longo do pequeno muro falasse, não acha que eles tomariam essa voz pela da sombra que desfila à sua
frente?
Assim sendo, os homens que estão nessas condições não poderiam considerar nada como verdadeiro, a
não ser as sombras dos objetos fabricados.
Veja agora o que aconteceria se eles fossem libertados de suas correntes e curados de sua desrazão. Tudo
não aconteceria naturalmente como vou dizer? Se um desses homens fosse solto, forçado subitamente a
levantar-se, a virar a cabeça, a andar, a olhar para o lado da luz, todos esses movimentos o fariam sofrer;
ele ficaria ofuscado e não poderia distinguir os objetos, dos quais via apenas as sombras anteriormente. Na
tua opinião, o que ele poderia responder se lhe dissessem que, antes, ele só via coisas sem consistência, que
agora ele está mais perto da realidade, voltado para objetos mais reais, e que está vendo melhor? O que ele
responderia se lhe designassem cada um dos objetos que desfilam, obrigando-o com perguntas, a dizer o
que são? Não acha que ele ficaria embaraçado e que as sombras que ele via antes lhe pareceriam mais
verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora?
E se o forçassem a olhar para a própria luz, não achas que os olhos lhe doeriam, que ele viraria as costas
e voltaria para as coisas que pode olhar e que as consideraria verdadeiramente mais nítidas do que as coisas
que lhe mostram?
E se o tirarem de lá à força, se o fizessem subir o íngreme caminho montanhoso, se não o largassem até
arrastá-lo para a luz do sol, ele não sofreria e se irritaria ao ser assim empurrado para fora? E, chegando à
luz, com os olhos ofuscados pelo brilho, não seria capaz de ver nenhum desses objetos, que nós afirmamos
agora serem verdadeiros.
É preciso que ele se habitue, para que possa ver as coisas do alto. Primeiro, ele distinguirá mais
facilmente as sombras, depois, as imagens dos homens e dos outros objetos refletidas na água, depois os
próprios objetos. Em segundo lugar, durante a noite, ele poderá contemplar as constelações e o próprio céu,
e voltar o olhar para a luz dos astros e da lua mais facilmente que durante o dia para o sol e para a luz do
sol.
Finalmente, ele poderá contemplar o sol, não o seu reflexo nas águas ou em outra superfície lisa, mas o
próprio sol, no lugar do sol, o sol tal como é.
Depois disso, poderá raciocinar a respeito do sol, concluir que é ele que produz as estações e os anos,
que governa tudo no mundo visível, e que é, de algum modo a causa de tudo o que ele e seus companheiros
viam na caverna.
Nesse momento, se ele se lembrar de sua primeira morada, da ciência que ali se possuía e de seus antigos
companheiros, não acha que ficaria feliz com a mudança e teria pena deles?
Quanto às honras e louvores que eles se atribuíam mutuamente outrora, quanto às recompensas
concedidas àquele que fosse dotado de uma visão mais aguda para discernir a passagem das sombras na
parede e de uma memória mais fiel para se lembrar com exatidão daquelas que precedem certas outras ou
que lhes sucedem, as que vêm juntas, e que, por isso mesmo, era o mais hábil para conjeturar a que viria
depois, acha que nosso homem teria inveja dele, que as honras e a confiança assim adquiridas entre os
companheiros lhe dariam inveja? Ele não pensaria antes, como o herói de Homero, que mais vale “viver
como escravo de um lavrador” e suportar qualquer provação do que voltar à visão ilusória da caverna e
viver como se vive lá?
“Concordo contigo” – responde Glauco – “Ele aceitaria qualquer provação para não viver como se vive
lá”.
120
Reflita ainda nisto: suponha que esse homem volte à caverna e retome o seu antigo lugar. Desta vez,
não seria pelas trevas que ele teria os olhos ofuscados, ao vir diretamente do sol?
E se ele tivesse que emitir de novo um juízo sobre as sombras e entrar em competição com os prisioneiros
que continuaram acorrentados, enquanto sua vista ainda está confusa, seus olhos ainda não se
recompuseram, enquanto lhe deram um tempo curto demais para acostumar-se com a escuridão, ele não
ficaria ridículo? Os prisioneiros não diriam que, depois de ter ido até o alto, voltou com a vista perdida, que
não vale mesmo a pena subir até lá? E se alguém tentasse retirar os seus laços, fazê-los subir, você acredita
que, se pudessem agarrá-lo e executá-lo, não o matariam?
“Sem dúvida alguma, eles o matariam” – concorda Glauco.
E agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar exatamente essa alegoria ao que dissemos anteriormente.
Devemos assimilar o mundo que apreendemos pela vista à estada na prisão, a luz do fogo que ilumina a
caverna à ação do sol. Quanto à subida e à contemplação do que há no alto, considera que se trata da
ascensão da alma até o lugar inteligível, e não te enganarás sobre minha esperança, já que desejas conhecê-
la. Deus sabe se há alguma possibilidade de que ela seja fundada sobre a verdade. Em todo o caso eis o que
me aparece tal como me aparece; nos últimos limites do mundo inteligível aparece-me a idéia do Bem, que
se percebe com dificuldade, mas que não se pode ver sem concluir que ela é a causa de tudo o que há de
reto e de belo. No mundo visível, ela gera a luz e o senhor da luz, no mundo inteligível ela própria é a
soberana que dispensa a verdade e a inteligência. Acrescento que é preciso vê-la se quer comportar-se com
sabedoria, seja na vida privada, seja na vida pública.

§ 67 Metafísica e psicologia de Platão

Deus
a) Deus é, para Platão, o ser absoluto, o bem supremo, a idéia criadora das coisas. Assim como o sol é
a origem e a razão suficiente da luz e da vida do mundo sensível, Deus é a origem e a razão suficiente do
mundo inteligível, ou das idéias, e do mundo sensível, da verdade, da razão, do bem, da perfeição que
resplandecem no primeiro, ao mesmo tempo que da ordem, da distinção, da beleza do segundo. Causa
única, suprema e todo-poderosa, Deus é o princípio, o meio e o fim das coisas na ordem física, enquanto
Ser supremo e perfeitíssimo; e na ordem moral, enquanto legislador supremo e suma justiça. No entanto,
há duas coisas que escapam à ação, e mais ainda à causalidade de Deus, e são a matéria e o mal.
matéria eterna
b) Deus é, por sua vez, o sumamente real, e neste sentido, a origem e a causa de todo bem, de toda vida,
de toda realidade, e consequentemente do mundo e dos seres que ele contém. Mas como esses seres são
cópias, imitações e como que impressões das idéias, a ação produtora de Deus pressupõe uma matéria geral,
algo capaz de receber essas impressões das idéias e a própria ação de Deus. Portanto, existe uma matéria
não produzida, eterna e independente da causalidade de Deus. Logo, o mundo é o resultado de três causas,
que são Deus, a idéia e a matéria.
No entanto, qual é a natureza dessa matéria? Neste ponto, existem as mesmas dúvidas e a mesma
obscuridade que na questão relativa à subsistência das idéias. Para alguns, a matéria de Platão é o espaço;
para outros, é o nada; para alguns, é uma entidade imperfeita, informe e puramente potencial, muito análoga
à matéria prima de Aristóteles; e, finalmente, muitos afirmam que ela deve ser concebida como uma massa
caótica, ou como que um corpo que careça de formas distintivas, opinião que é a que melhor corresponde
à teoria cosmológica de Platão, tomada em conjunto. No entanto, a verdade é que em suas obras se
encontram passagens favoráveis a todas e cada uma das opiniões indicadas; o que faz suspeitar que Platão
mesmo vacilava sobre este ponto, sendo bastante provável que não tivesse idéias claras, precisas e
constantes sobre a natureza dessa matéria. Seja como for, em todo caso resulta que:
mundo
c) conforme a cosmologia de Platão, o mundo é eterno da parte da matéria, e sua produção ou formação
por parte de Deus ocorreu em dependência e sujeição à preexistência e condições necessárias da matéria e
com subordinação às idéias como arquétipos das coisas. Essa matéria é a origem e causa do mal, e, portanto,
121
este é independente de Deus, assim como a matéria, sua causa. Logo, o mal é necessário, fatal e inevitável
no mundo: impossibile est mala penitus extirpari; nam bono oppositum aliquid esse semper, necesse est.
anima mundi
d) o mundo é único; sua figura é esférica, e em seu centro reside a alma universal, emanada de Deus,
por meio da qual vivifica, governa e anima o mundo visível, e especialmente os astros, que por essa razão
“Devemos declarar que este podem ser denominados deuses contingentes, deuses menores. Assim,
Cosmos, de fato, veio à existência o mundo é um verdadeiro animal, e um animal dotado de inteligência:
como uma Criatura Viva dotada de quocirca dicendum est hunc mundum animal esse, idque intelligens.
alma e razão, devido à providência
de Deus.” (Timeu 30b) Antes de entrar no terreno próprio da psicologia de Platão, é bom
lembrar que a teoria teológico-cosmológica dele que acabamos de expor representa seu pensamento no que
tem de mais essencial e provável. No entanto, deve-se ter em mente que aqui, como em tantas outras coisas,
o pensamento platônico está longe de ser claro, harmônico, sistemático, muito menos fixo, sendo envolvido
em frases ambíguas, confusas e bastante contraditórias. Essa confusão e ambiguidade não está ausente de
sua celebrada concepção trinitária – quer seja considerada em si mesma, quer em suas relações com a
produção e natureza do mundo. Essa “trindade” platônica, tão elogiada e comentada por aqueles que não
querem ouvir falar da Trindade cristã, às vezes se apresenta como composta do Unum, do Lógos ou razão,
e da Anima Mundi: outras vezes aparece sob a forma de Bonum, do mundo inteligível ou arquétipo, e da
mente ou forma do universo; às vezes o primeiro termo da trindade platônica é a idéia do bem, o segundo
o conjunto das outras idéias inteligíveis que procedem da do bem, e o terceiro as idéias incorporadas na
matéria, ou na medida em que formam e distinguem as essências materiais, ou, melhor dizendo, o mundo
visível como impressão múltipla ou encarnação das idéias inteligíveis. A idéia do bem aparece às vezes
como identificada com a essência divina, enquanto outras vezes aparece como o primeiro efeito ou
emanação desta. Às vezes é dito que Deus é o princípio único, a causa universal de todas as coisas, tanto
das inteligíveis e eternas quanto das sensíveis e temporais, desde a primeira até a última; enquanto outras
vezes é dito que Deus produz apenas a primeira inteligência e a alma universal, que por sua vez produzem
as outras coisas inferiores.
Daí as contradições, disputas e diversidade de sentidos e opiniões que reinaram em todos os tempos
entre os discípulos de Platão e entre os admiradores mais entusiastas de sua concepção “trinitária”. Em todo
caso, essa concepção pouco ou nada pode ter em comum com a concepção precisa, concreta e definida da
Trindade cristã. A Qual, mesmo prescindindo da confusão e multiplicidade de significados ou sentidos que
caracterizam a primeira, encontra-se e sempre estará colocada a uma distância imensa da “trindade”
platônica, na qual nada há que se pareça com a distinção real e hipostática das três Pessoas divinas, e muito
menos nada que se pareça com a igualdade absoluta, consubstancial e essencial das mesmas. Além disso,
que comparação pode ser feita entre a natureza, os atributos e os efeitos do Espírito Santo da Trindade cristã
e a natureza, os atributos e os efeitos da alma universal do mundo (anima mundi)? Mesmo supondo que
Platão concedesse divindade e personalidade a essa alma universal, suposição que carece de certeza e até
de probabilidade, não seria possível estabelecer termos de comparação entre essa alma universal do mundo
que envolve uma concepção panteísta do cosmos e o Espírito Santo, cuja noção própria e cujas funções são
incompatíveis com toda concepção panteísta da realidade.
Deve-se acrescentar ao que foi dito que os dois termos secundários da “trindade” platônica derivam do
primeiro ou por emanação, ou mesmo por produção, mas em nenhum caso por meio da processão puríssima
sui generis que implica a Trindade cristã; se considerarmos que Platão, assim como Fílon e os neoplatônicos
alexandrinos, aplicam nomes mitológicos e alegóricos aos termos de sua respectiva “trindade”, que acabam
sendo como que certas personificações de certas idéias abstratas, será necessário reconhecer que se trata
aqui de concepções trinitárias que oferecem apenas distantes e imperfeitas analogias com a concepção
Trinitária do Cristianismo. Se descartarmos dessas concepções a personificação alegórica de certas idéias
e das relações que naturalmente concebemos entre o ser, a inteligência e a vida, a “trindade” de Platão, a
de Fílon e a dos alexandrinos, ficam reduzidas a nada enquanto concepções de uma “trindade” divina e
pessoal. O que palpita no seio dessas concepções imprópria e erroneamente chamadas “trinitárias”, o que
constitui seu fundo real, é a afirmação de que a existência e a formação do cosmos material pressupõem a
122
existência de idéias arquetípicas, a afirmação da imanência de um mundo inteligível e ideal neste mundo
visível e corpóreo.
alma humana
e) a alma humana é uma derivação ou emanção da alma universal. Nela é preciso distinguir dois
elementos, um divino – ou seja, a alma propriamente racional e inteligente que existia antes de se unir ao
corpo – e outro elemento animal, que resulta e se manifesta na alma ou espírito em virtude de sua união
com o corpo. Em outras palavras: a alma do homem é um espírito que antes de se unir ao corpo vivia na
região pura das idéias, e que ao se unir ao corpo perde parte de sua pureza espiritual para se tornar sensitiva,
terrena e animal131. A parte superior é imortal e recupera sua perfeição ao se separar do corpo, enquanto a
inferior deixa de existir na morte. A parte superior ou racional da alma reside na cabeça: a inferior se divide
em duas partes ou manifestações, das quais a concupiscível tem seu assento no fígado e vísceras
abdominais, e a parte irascível no peito ou coração.
dualismo essencial
f) em conseqüência, a alma racional é uma substância que se move a si mesma, uma essência dotada de
faculdades afetivas e cognitivas inferiores e superiores. Todas elas, e particularmente as cognitivas, perdem
sua força e se obscurecem devido à união, ou melhor, à inserção da alma no corpo – pois não há verdadeira
união substancial entre a alma e o corpo, mas sim uma união acidental, união do motor ao móvel, união da
causa principal ao instrumento. Daí a obscuridade e insuficiência do conhecimento humano, enquanto não
se eleva e passa da sensação e da percepção das coisas sensíveis e singulares para a intuição racional e
superior das idéias. As sensações e as percepções intelectuais determinadas por elas são ou representam as
vozes confusas e as sombras reflexas e fugazes da caverna alegórica132, inventada pelo discípulo de Sócrates
para simbolizar os resultados da união da alma com o corpo na vida presente, especialmente em relação ao
conhecimento da realidade e à aquisição da ciência.
Porque a aquisição da ciência – considerada em seu sentido próprio, ou seja, como conhecimento da
realidade permanente e da essência das coisas – é uma mera reminiscência (disciplinam videlicet, nostram
nihil esse aliud quam reminiscentiam) de idéias e conhecimentos preexistentes na alma antes de sua união
com o corpo; é independente deste e dos sentidos; é como que inata e conatural à nossa alma que existia e
estava em posse da ciência antes de sua união com o corpo: et secundum hoc necesse est nos in superiori
quodam tempore, ea quorum nunc reminiscimur, didicisse.
E aqui é justo insistir no que já apontamos antes; ou seja, que o pensamento psicológico de Platão é
bastante obscuro e às vezes até contraditório. Enquanto às vezes preconiza a nobreza superior e a
espiritualidade perfeita da alma, em outras ocasiões se aproxima demais das concepções mais ou menos
materialistas das antigas escolas pré-socráticas, principalmente a de Empédocles. Depois de indicar a
opinião deste último sobre a substância da alma, que se supunha composta pelos quatro elementos, pelos
quais conhece todas as coisas, compostas por sua vez dos mesmos elementos, Aristóteles acrescenta que a
teoria de Platão coincide com a do filósofo de Agrigento, com o qual ensina que a alma é composta pelos
elementos que são os princípios das coisas, e funda o conhecimento destas por razão da proporção ou
semelhança que resulta entre os elementos da alma e os das coisas conhecidas: Eodem autem modo et Plato
in Timaeo animam facit ex elementis; cognosci enim simile simili, res autem ex principiis esse.
Acrescente-se ao que foi dito que – segundo o testemunho autorizado de Aristóteles e o que aqui
apontamos – Platão, em outros lugares de suas obras, considera a alma, ora como um número que se move,
ora como uma harmonia, ora como mero motor do corpo, sem indicar as condições desse movimento, nem
– menos ainda – a razão suficiente e a natureza da união da alma movente com o corpo movido, como
Aristóteles lhe acusa (Copulant enim et ponunt in corpus animam, nihil ultra determinantes propter quam
causam et quo modo), com razão suficiente. Não é menor a justiça com que repreende a Platão e a seus
discípulos, porque, ao se concentrarem apenas na alma, sem considerar suas verdadeiras relações com o
corpo e as condições de sua união com este, acabaram caindo nas fábulas dos pitagóricos (secundum

131
Tal é o sentido que os modernos costumam atribuir a Platão; no entanto, alguns destes modernos, e quase todos os antigos,
supõem e afirmam – talvez com maior razão e verdade – que o filósofo ateniense admitia no homem uma alma inferior e sensitiva,
e outra superior e racional.
132
[N. T.] Veja-se o texto completo do Apêndice 2, acima.
123
pythagoricas fabulas), em relação à transmigração das almas133 e à indiferença destas em se unir a todo tipo
de corpos.
Sabe-se que Platão admitia não apenas a preexistência das almas, mas também a metempsicose, e que
as vicissitudes e condição da alma nessas transmigrações estavam relacionadas com seu desapego e
elevação sobre as coisas sensíveis, com sua purificação na ordem cognitiva e afetiva, com a aquisição da
ciência e a prática das virtudes morais: voluptates quae in discendo percipiuntur studiose sectatus fuerit,
animumque decoraverit temperantia, justitia, fortitudine, libertate, veritate.

§ 68 Moral e política de Platão

“Sobre os bens e males – escreve Diógenes Laércio134 – Platão dizia que o objetivo do homem é a
semelhança com Deus; que a virtude é suficiente por si só para a felicidade; mas precisa dos bens do corpo
como instrumentos e auxiliares, como a força e a saúde; e que também precisa dos bens externos, como
riquezas, nobreza e glória; mas mesmo que essas coisas faltem, o homem sábio ou virtuoso será feliz.”
Este pensamento de que a perfeição moral do homem consiste em imitar a Deus; a importância que
Platão dava à virtude, considerando-a como o maior bem humano; suas idéias sobre a providência divina
sobre os homens, juntamente com sua teoria sobre as quatro virtudes principais como meios de alcançar a
perfeição moral tanto para o indivíduo quanto para a sociedade, são evidências da excelência da moral
platônica, considerando seus princípios e máximas gerais.
E dizemos “por parte de seus princípios gerais” porque se abandonarmos o terreno desses princípios e
“Que as mulheres devem pertencer em comum máximas gerais da ética platônica e descermos a pontos
a todos os homens, sem que nenhuma venha a particulares e suas aplicações concretas, especialmente no
formar com ninguém um casal particular. Os campo político-social, nos depararemos imediatamente
filhos, também, serão comuns e nem o pai com o homem pagão, com o filósofo que carece das luzes
conhecerá o filho, nem o filho, seu pai… Não e segurança que a moral do Evangelho e a concepção cristã
acho que se possa pôr em dúvida a imensa fornecem nessas questões. Veremos, enfim, o “divino
vantagem da comunidade das mulheres e dos Platão” ensinar que a vida doméstica deve desaparecer;
filhos, na hipótese de ser realizável; a única
que a escravidão é uma instituição baseada e legitimada na
questão capaz de levantar protestos seria a sua
própria natureza e na inferioridade de certos indivíduos;
aplicação na prática.” (República, l. V 457bc)
que as mulheres devem ser comuns; que as crianças
deformadas e doentes devem ser abandonadas, ou seja, entregues à morte; que a um homem doente e
incapacitado não devem ser fornecidos alimentos ou assistência, uma vez que ele não pode ser útil nem a
si mesmo nem aos outros homens135, e que os pais não devem intervir na educação dos filhos.
Felizmente, o valor científico e o alcance prático de máximas tão horríveis e absurdas são desacreditados
e equilibrados por máximas e doutrinas de alta moralidade, e acima de tudo, pela tendência ética geral e
pelo sentido religioso que domina e se destaca em seus escritos. Não é incomum ver que Platão, inspirado
na tradição socrática, dá importância preferencial à perfeição moral do homem, subordinando de certa
forma a perfeição científica e especulativa136, e até mesmo a Filosofia e as artes.

133
“Hi autem solum conantur dicere quale quid sit anima, de susceptivo autem corpore nihil amplius determinant; tanquam
possibile sit, secundum pythagoricas fabulas, quamlibet animam quodlibet hábeas ingredi.” De Anima, lib. I, cap. IV. 408a-412b)
134
Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. cap. VII, sec. 86
135
Quem quiser ver com que serenidade e sangue frio Platão registra essas doutrinas horríveis, só precisa ler seus livros "A
República" e "As Leis", onde tropeçará a cada passo em máximas desse tipo, fruto em parte de sua concepção socialista e comunista
do Estado. Entre outros, é notável o seguinte trecho, que condensa o pensamento de Platão e resume seu ideal político-social:
“Prima igitur civitas est respublica legesque optimae, ubi quam maxime per universam civitatem priscam illud proverbium locum
habet, quo fertur vere, amicorum omnia esse communia. Certe, in hoc praecipue virtutis erit terminus, quo nullus poni rectior
poterit, si alicubi, videlicet, aut fit istud, aut unquam fiet, ut communes mulieres sint, comunes et liberi, communis quoque omnis
pecunia, omnique studio quod proprium dicitur, undique e vita remotum sit; usque adeo ut ea etiam quae propria singulis natura
sunt, communia quodammodo fiant... Talem utique civitatem, sive Dii alicubi, sive Deorum filii una plures habitent, ita viventes
eamque servantes, omni referti gaudio vivunt. Qua propter reipublicae exemplar non alibi considerare oportet, sed hac inspecta,
talem maxime pro viribus quaerere.” (República, l. II 369a-372d)
136
Assim, ele afirma frequentemente que a verdadeira Filosofia consiste na prática da virtude, e em uma de suas cartas, depois de
elogiar Aristodoro por ter buscado e procurado aperfeiçoar em Filosofia seus costumes, acrescenta: “Etenim constantiam, fidem,
124
Platão ensina e afirma igualmente:
a) que a virtude deve ser colocada acima das riquezas e prazeres, que nem mesmo merecem o nome de
bens em comparação com ela137;

b) que não só devemos honrar a Deus e pedir sua ajuda, mas que Ele deve ser o princípio e como o
inspirador de nossas palavras (a Diis enim necesse est omnium et dictorum et consiliorum initia
proficisci138), assim como de nossos conselhos e resoluções;

c) que o homem deve se abster de fazer mal a outro homem, “É melhor sofrer injustiça do que
mesmo no caso de ter recebido injúrias e danos graves (etiam graves cometê-la, mesmo que tenhamos
sido prejudicados por outra pessoa”
injurias et acerbas fraudes139) de seu próximo; e, finalmente,
(Górgias 469c)

d) que Deus tem lugar ou faz vezes de lei para os sábios, ou seja, para os homens virtuosos, enquanto
os tolos ou viciosos não têm outra lei além do prazer: pois Deus é a lei para os sábios, mas a luxúria é a lei
para os tolos: Deus enim sapientibus est lex, stultis autem voluptas140.
Este grande pensamento, mais próprio de um filósofo cristão do que de um filósofo pagão, é um digno
corolário de outro grande pensamento não menos profundo e não menos próprio de um escritor cristão, que
lhe serve de premissa. Esse pensamento afirma que a servidão e a liberdade excessivas são coisas
detestáveis, assim como a servidão e a liberdade moderadas são coisas excelentes. No entanto, a servidão
e a liberdade serão moderadas e legítimas somente quando forem informadas e vivificadas pelo princípio
divino, e não pela vontade humana. Quando a lei que as regula, o motivo que as inspira e o fim e a intenção
do sujeito forem a lei eterna, a vontade santa e justa de Deus, e não a vontade arbitrária do homem. Quando
Deus é o princípio e o fim da servidão, ela será moderada e não degradará o homem. Mas não será o mesmo
se o princípio e o fim dessa servidão for o homem, a vontade humana: Servitus enim ac libertas immoderata
quidem pessima res est, moderata vero res optima. Moderata autem servitus est, cum Deo servitur:
immoderata, cum homibus: Deus enim sapientibus est lex, stultis autem voluptas.
De acordo com a teoria político-social de Platão, a missão do Estado é realizar a justiça, dando a cada
cidadão o que lhe é devido, ou seja, fazendo e procurando que as funções exercidas por cada membro da
sociedade estejam em relação e harmonia com suas condições, habilidades e forças individuais. A partir
daí:

O organismo social e político excogitado por nosso filósofo, segundo o qual o Estado deve conter três
elementos ou classes fundamentais:

1) os filósofos ou sábios, que representam a cabeça e a inteligência do Estado:

2) os guerreiros, que representam o coração do Estado:

3) o povo ou classe inferior, na qual se incluem os artesãos, comerciantes, agricultores e servos ou


escravos, que representam a parte inferior e animal do homem.

Aos [1] primeiros pertencem e se devem confiar o poder legislativo e executivo, ou seja, o governo do
Estado: aos [2] segundos pertence e se deve confiar a defesa do Estado por meio da guerra: aos [3] terceiros
pertence e se deve confiar o cuidado da parte econômica da sociedade, ou seja, a produção das coisas
necessárias para a manutenção dos cidadãos e a consequente conservação do Estado. Todos os bens e males

integritatem, veram philosophiam esse judico; caeteras autem et alio spectantes scientias et artes, elegantiam quandam et
venustatem si dixero, recte me dicere arbitrabor.”
137
cf. República, l. I 334a; Banquete, 204a-212a; entre outros. [N.T.]
138
cf. As Leis, l. IX 903ª. [N.T.]
139
cf. Górgias 469c. [N.T.]
140
cf. As Leis, l. X 899a-903b [N.T.]
125
do cidadão, todos os seus interesses, todas as suas habilidades e afetos, dependem absolutamente do Estado
e desaparecem diante do interesse e da vontade onipotente do Estado. Nascimento e educação, vida e morte,
casamento e família, liberdade e escravidão, artes e ciências, religião e culto, tudo deve se adaptar às
exigências do Estado, tudo deve ceder e mudar diante do império de sua vontade.
No que diz respeito às formas políticas de governo, após enumerar as três ou quatro fundamentais e
depois de indicar a natureza e as condições da tirania em que cada uma delas pode degenerar, Platão, sem
conceder preferência absoluta a nenhuma dessas formas, concede, no entanto, à monarquia e ao governo de
muito poucos (recta illa civitatis administratio vel apud unum, vel apud paucissimos certe est quaerenda)
certa preferência relativa.
A julgar por alguns textos de seus escritos, Platão considera que a legitimidade e bondade do

Fragmento da República de Platão – Ashmoleum Museum, Oxford


governo do Estado consistem na bondade, justiça e retidão dos fins por parte do
governante, de modo que a constituição correta do Estado e
a bondade ou perfeição de um governo se fundem em uma
espécie de absolutismo subjetivo e pessoal. Se o
governante é sábio, justo e prudente, e trabalha
para melhorar a condição de seus súditos, o
governo será bom e correto, sem que importe se
a submissão é voluntária ou involuntária por
parte dos súditos, ou se o governante age de
acordo com as leis escritas ou prescinde delas
(qui arte quadam imperant, volentibus an
nolentibus, secundum scripta an absque scriptis
institutisque et legibus nihil refert) e até mesmo
das instituições pátrias: se os magistrados sabem
governar bem, então diremos apenas que a
república ou Estado é o que deve ser 141 e que seu
governo é verdadeiramente correto e legítimo. Os governantes ou príncipes
não cometem falta ou pecado, qualquer que seja a coisa que façam (quidquid prudentes principes agant,
nunquam delinquunt), desde que atendam ao bem de seus súditos, e será até ridículo censurá-los quando
obrigam seus súditos a executar o que consideram justo e honesto, mesmo que seja contrário às leis e
costumes pátrios: Cum aliqui coguntur praeter patrias leges moresque facere quae justiora, meliora,
honestioraque sunt, ridiculosissimus omnium erit quisquis vim eam vituperabit.
Doutrina esta que abre caminho para que a tirania e a arbitrariedade do governante ocupem o lugar do
direito e da justiça, e parece mais própria do amigo de Dionísio de Siracusa do que do discípulo de Sócrates.
Felizmente, em outras partes de suas obras, Platão condena a tirania e a arbitrariedade; reconhece a
necessidade de leis que sirvam como norma comum e geral para os cidadãos (quod communius est, quodque
et pluribus et plurimumm conducere putant instituendum), e até mesmo confessa e afirma que não apenas
os cidadãos comuns, mas também os reis, devem estar sujeitos ao império das leis: Cum leges imperent non
solum civibus aliis, sed etiam regibus ipsis142.
Como recordação e corolário da importância excepcional que Platão concedia às habilidades e condições
pessoais do governante, pode-se considerar aquela afirmação ou sentença, registrada em vários lugares143,

141
“Necesse est igitur eam maxime a solam rectam existimare rempublicam in qua qui magistratibus funguntur, revera gubernare
sciunt, sive legibus, seu absque legibus dominentur, sive volentibus sive invitis. Quatenus enim scientia et justitia freti ex deteriori
[257] meliorem pro viribus civitatem efficiunt atque servant, eatenus rectam appellari rempublicam volumus, et in eo ipso duntaxat
definitionem rectae gubernationis consistere: caeteras vero omnes, neque legitimas nec veras dici putandum.” (O Político, c. VII
302b)
142
[N. T.] Uma vez que as leis imperam, não apenas sobre os outros cidadãos, mas também sobre os próprios reis.
143
Um dos mais explícitos e terminantes é o seguinte, tomado de uma de suas Cartas: “Qua propter veram synceramque
philosophiam celebrans adductus coactusque sum, ut praedicarem, hominum generi nullum miseriarum modum, malorumque
finem prius futurum, quam aut recte vereque philosophantium hominum genus ad civiles magistratus et publicos accessisset, aut
hi penes quos civitatum principatus essent, singulari aliquo deorum immortalium beneficio vere sancteque philosopharentur.”
126
segundo a qual a Filosofia ou a ciência superior é necessária para que as sociedades políticas sejam bem
governadas.

A República
Descida ao Pireu (327a-328b)
Céfalo: Justiça segundo os mais velhos. (328b-331d)
Prólogo
Polemarco: Justiça segundo a meia idade. (331e-336a)
Trasímaco: Justiça segundo os Sofistas. 336b-354c
Introdução Se a justiça é preferível à corrupção? (Anel de Giges) 357a-369b
Origem da Cidade 369b-376e
Parte I Educação dos Governantes 376e-412b
O Paradigma
da Cidade Constituição da Cidade 412b-427c
Justiça na Cidade 427c-445e
Unidade da Cidade 449a-471c
Parte II Governo dos Filósofos (nau dos insensatos) 471c-502c
A encarnação
do Paradigma A idéia do Bem (analogia da linha dividida) 502c-521c
Educação dos Filósofos 521c-541b
Timocracia (Discurso das Musas) 543a-550c
Parte III Oligarquia 550c-555b
O Declínio da
Cidade Demagogia 555b-562ª
Tirania 562a-576b
Conclusão Conclusão: a Justiça é melhor que a corrupção 576b-592b
Rejeição da arte mimética 595a-608b
Imortalidade da alma 608b-612a
Epílogo
Recompensa dos Justos em vida 612a-613e
Julgamento dos mortos (Mito de Er) 613e-631d

§ 69 Crítica

Do que acabamos de expor sobre a moral e política de Platão, deduz-se imediatamente que ambas
deixam muito a desejar. A primeira, devido a certas máximas detestáveis e doutrinas horríveis, e a segunda,
além de outros defeitos, por seu caráter utópico e, mais do que tudo, por suas tendências socialistas e
comunistas. De fato, a teoria política do discípulo de
No século XX, A República de Platão inspirou
Sócrates, se considerada em relação à concepção que homens como Mussolini – o qual a lia
envolve a família, a propriedade e a educação, é uma teoria frequentemente a procura de inspiração (cf.
comunista, enquanto sua concepção do organismo do Estado MOSELEY, R. Mussolini: the last 600 days of
e da ação avassaladora, onipotente e onipresente do mesmo, Il Duce, p. 39) – e Martin Luther King – o qual,
é uma concepção essencialmente socialista. ao ser perguntado quais livros levaria para
É apenas concebível, portanto, que historiadores e uma ilha deserta, respondeu que levaria A
críticos heterodoxos e ortodoxos tenham querido apresentar República e a Bíblia (certamente com as
a república de Platão como uma pré-formação e como uma censuras que seu homônimo lhe impusera).
Karl Popper, em A Sociedade Aberta e seus
espécie de modelo da República Cristã, isto é, da Igreja.
Inimigos, acusava a obra de Platão de ser
Somente obedecendo a preocupações de escola e de religião,
livremente reeditada nas “sociedades fechadas
ou inspirando-se em concepções sistemáticas, é possível e anti-liberais”.
descobrir ou apontar relações de afinidade e semelhança
entre a Igreja de Cristo, com sua moral puríssima e elevada, e a república de Platão, na qual o filho não
127
conhece a mãe e a mãe não conhece o filho; na qual ele é arrancado da autoridade paterna para ser entregue
ao Estado desde seus primeiros anos; na qual o homem não tem liberdade para seguir sua vocação e escolher
seu estado; na qual a vida familiar é sufocada e corrompida desde o início, graças à comunidade de
mulheres; na qual o infanticídio deixa de ser um crime para se tornar um dever; na qual, para dizer de uma
vez, a propriedade, a família e até a liberdade da consciência humana são anuladas, negadas e violadas.
Porque é preciso não esquecer que a absorção do indivíduo pelo Estado não se limita às relações do
homem com o finito, mas se estende às suas relações com o infinito; não se limita à esfera política, mas
abrange a esfera religiosa; não se limita aos fins e interesses temporais, civis, naturais e transitórios, mas
até mesmo os interesses e fins religiosos, sobrenaturais e eternos, são sacrificados ao Estado. E isso seria e
é suficiente para estabelecer uma distância infinita, uma verdadeira contradição, entre a república de Platão
e a Igreja de Cristo, que desde seus primeiros passos vem afirmando e defendendo com a palavra e o
exemplo a liberdade e a dignidade da consciência do homem na esfera religiosa-divina, a incompetência do
Estado para dirigir o homem a seu fim eterno, a superioridade da ordem sobrenatural e divina sobre a ordem
natural e humana. Na concepção cristã, o momento religioso representa uma esfera superior, eterna,
autônoma e infinita, à qual a esfera civil e política é subordinada; na concepção platônica, acontece
exatamente o contrário; o momento político absorve e se sobrepõe ao momento religioso; o princípio divino
fica subordinado ao princípio humano; o finito e temporal se sobrepõe ao infinito e eterno.
Na sua metafísica, e especialmente na parte que chamamos de teodicéia, Platão alcança uma altura que
nenhum filósofo anterior havia alcançado. No entanto, quando se presta atenção ao fundo das coisas e se
examinam suas doutrinas e afirmações concretas, observa-se que seu conceito divino, embora continue
sendo elevado e até extraordinário para um filósofo gentio, é desfigurado por idéias que diminuem sua
importância científica, como a existência do Demiurgo, ou ser intermediário entre Deus e o mundo, e, acima
de tudo, a eternidade da matéria. Além disso, há confusão e obscuridade na explicação da verdadeira
natureza do Demiurgo e da matéria eterna, assim como do modo de existência das idéias, que às vezes
aparecem como tipos existentes na mente divina e outras vezes como substâncias subsistentes em si mesmas
e por si mesmas; às vezes aparecem superiores a Deus e independentes, enquanto outras vezes aparecem
subordinadas ao seu poder e vontade.
A mesma observação pode ser feita em relação à psicologia platônica. Sublime e verdadeiramente
filosófica quando proclama a espiritualidade da alma, e quando demonstra sua imortalidade, reconhece sua
origem divina e coloca a essência da ciência e a posse da verdade no conhecimento do necessário, do
imutável, do eterno da idéia, essa mesma psicologia decai, degenera e perde sua elevação quando reduz a
ciência a uma mera reminiscência, quando fala da preexistência das almas e da metempsicose, e de sua
união acidental com o corpo, e de suas purificações e ascensões. Assim, com o tempo, os maniqueus, os
gnósticos e os filósofos alexandrinos buscarão e encontrarão o germe de suas respectivas teorias nas teorias
cosmológicas, teológicas e psicológicas de Platão.
Em suma: o caráter dominante, bem como o vício radical da Filosofia platônica, é o dualismo absoluto
e irredutível. Dualismo cosmológico entre o mundo inteligível e o mundo visível: dualismo teológico entre
Deus e a matéria: dualismo psicológico entre a alma e o corpo no homem. Platão, não só não conseguiu
resolver em superior unidade os dois primeiros dualismos por meio do conceito da criação e da teoria das
idéias divinas, no sentido profundo que a Filosofia cristã ensina, mas também não conseguiu resolver o
dualismo psicológico em unidade de essência e de pessoa, como Aristóteles conseguiu por meio de sua
teoria sobre a geração e a forma substancial.
Não é necessário advertir que outro das características principais da Filosofia platônica é seu certo
idealismo; porque isso está presente no fundo de sua teoria das idéias e também em sua teoria do
conhecimento. A falta de importância que é dada aos objetos externos em relação à origem e constituição
da ciência; a influência nula e até mesmo prejudicial dos sentidos e sensações no desenvolvimento e
conhecimento da verdade; a teoria da reminiscência; as idéias inatas e a subsistência das idéias com sua
independência e anterioridade em relação ao mundo, tudo isso gravita e se precipita em direção às correntes
idealistas. Para Platão, a Filosofia é a ciência das idéias, é a ciência das intuições a priori; nela, os fatos
sensíveis, os seres individuais, a observação e a experiência não significam nada. Daí também suas
afinidades matemáticas e sua predileção pela geometria, pois esta, assim como a Filosofia de Platão,
128
constrói seu edifício científico com base nas idéias de linha, triângulo, círculo, etc., idéias abstratas e
independentes da matéria e suas transformações, embora a matéria ofereça como reflexo, cópia e
participação dessas figuras ideais.
No entanto, deve-se ter em mente que o idealismo de Platão é um idealismo sui generis, que se parece
muito pouco com o idealismo da Filosofia moderna; enquanto este é geralmente subjetivo e cético, o
idealismo de Platão é um idealismo que tem muito de objetivo e dogmático. As idéias de Platão não são
resultado nem meras modificações das faculdades de conhecimento sem conteúdo real e objetivo, como
supõem alguns idealistas modernos, mas são essencialmente objetivas e subsistentes. As idéias de Platão
também não são as mônadas originárias e primitivas de Leibnitz, dotadas de representação e pensamento,
mas, pelo contrário, são os objetos do pensamento, que, enquanto é pensamento puro, conhecimento
intelectual, em quanto e porque participa da realidade ou essência das idéias, e entra em contato com elas.
O idealismo, enfim, de Platão, não exclui a realidade objetiva do mundo externo nem sua cognoscibilidade,
por mais que uma e outra sejam inferiores às das idéias, e dista muito, portanto, do idealismo subjetivo de
Fichte, que reduz o mundo externo a um fenômeno da consciência.
Além disso, e com um pouco de reflexão, notáveis analogias e certa afinidade entre Platão e Kant são
descobertas em relação à teoria do conhecimento. Ambos concordam em negar aos sentidos a percepção
ou conhecimento da realidade objetiva dos corpos, limitando sua esfera às transformações e modificações
transitórias dos mesmos. Ambos afirmam que as idéias ou conceitos puros da ordem inteligível não
dependem nem menos têm sua origem nas sensações.
Se Platão reconhece que os sentidos fornecem ao homem apenas o conhecimento dos acidentes externos,
do fluxo e redução dos fenômenos do mundo material, mas não sua realidade e substância, Kant reconhece,
por sua vez, que os sentidos nos fornecem o conhecimento ou intuição fenomênica do mundo externo, mas
não o conhecimento de sua realidade objetiva, de sua substância, do númeno. Se Platão explica a
possibilidade do conhecimento intelectual por meio das idéias inatas, Kant explica essa mesma
possibilidade por meio de formas subjetivas e de noções ou conceitos a priori, que equivalem na realidade
a idéias inatas. Platão e Kant se separam apenas quando se trata de determinar o valor objetivo dessas idéias,
valor que o primeiro reconhece e o segundo nega, derrubando com essa negação a existência e até mesmo
a possibilidade da ciência. Não é necessário advertir que a vantagem aqui está do lado do filósofo ateniense,
que soube deter-se nos umbrais do ceticismo, umbrais que o filósofo de Königsberg atravessou, depois de
percorrer em companhia, ou se quiser, em busca de Platão, o terreno do idealismo. É verdade que o filósofo
alemão é mais consequente neste ponto, porque o ceticismo é consequência natural e lógica do idealismo.
Já deixamos claro que Platão, embora tenha sido discípulo de Sócrates, não foi apenas discípulo de
Sócrates, mas também pode ser considerado discípulo de Heráclito, dos pitagóricos, dos eleatas e até dos
sacerdotes do Egito e do Oriente. A Filosofia de Platão abrange horizontes muito mais amplos do que os
horizontes estreitos e parciais da Filosofia socrática, que se limitava, como vimos, a um ensaio de moral e
algumas noções psicológico-teológicas e políticas, enquanto na Filosofia platônica entram também, e em
proporções mais ou menos notáveis, a ontologia, a teodicéia, a dialética, as ciências político-sociais e as
matemáticas. Para as escolas anteriores a Sócrates, só existia a Filosofia do objeto; para Sócrates, mal existe
mais do que a ciência do sujeito como ente moral; em Platão e com Platão, a Filosofia entra em posse do
objeto e do sujeito simultaneamente, e este último é discutido e estudado em suas diferentes fases e em suas
relações múltiplas e complexas.

129
§ 70 Discípulos e sucessores de Platão

Deixando de lado o fundador da escola peripatética, principal discípulo de Platão, os sucessores deste
na antiga Academia, e antes que nascessem a Academia média e a nova, das quais falaremos mais adiante,
foram os seguintes:

a) Espeusipo (Σπεύσιππος), sobrinho e sucessor imediato de Platão, que dirigiu a Academia desde o
ano 347 a.C. até o ano de 339, que foi o de sua morte.
Segundo Sexto Empírico, ele admitia como critério de verdade, além da razão para as coisas inteligíveis,
os sentidos para as coisas sensíveis, o que o afastava um pouco e moderava a doutrina de seu mestre. No
entanto, o caráter principal da doutrina de Espeusipo é a direção pitagórica que ele deu à Filosofia de seu
mestre, introduzindo nela, ou pelo menos desenvolvendo a idéia pitagórica da emanação, e fazendo
frequentes aplicações da teoria dos números à Filosofia platônica. A julgar por alguns trechos de Aristóteles,
Espeusipo distorce a doutrina de seu mestre em outro ponto de maior importância, opinando que a bondade
e a perfeição são atributos próprios das coisas produzidas, mais do que de Deus ou do princípio supremo
do mundo144, afirmação que está em harmonia com a teoria que lhe atribuem o próprio Aristóteles e outros
autores, segundo a qual, a origem e produção das coisas
se verifica ab imperfecto ad perfectum, e não vice-

Academia de Platão – Mosaico, Pompéia


versa, como ensinava seu mestre Platão.
Por outro lado, é difícil conhecer com precisão as
opiniões específicas de Espeusipo, uma vez que não
temos suas obras, apesar de terem sido muito
numerosas145, e só chegaram até nós algumas anedotas
sobre sua vida.

b) Xenócrates (Ξενοκράτης) foi o sucessor de


Espeusipo na Academia, pois quando este foi atacado
pela paralisia, mandou chamar Xenócrates para
encarregá-lo da direção da escola. Ele havia sido
condiscípulo de Espeusipo e acompanhou Platão em
suas viagens à Sicília. Era natural de Calcedônia,
homem de costumes austeros e de rosto sério, a ponto
de os ociosos e agitadores de Atenas se calarem e abrirem caminho quando ele vinha para a cidade; mas
era um pouco lento de inteligência. Por essa razão, Platão costumava dizer, referindo-se a Xenócrates e
Aristóteles: “Um precisa de óleo e o outro de freio”. Morreu em idade avançada, no ano 314 a.C.146, tendo
ensinado na Academia por vinte e cinco anos.
O que caracteriza principalmente sua doutrina é a predileção pelas fórmulas matemáticas, podendo-se
dizer que sua Filosofia representa um passo adiante nesse caminho iniciado por Espeusipo. Xenócrates
obriga a Filosofia platônica a descer de sua altura, para encerrá-la e comprimi-la em estreitas fórmulas
matemáticas, sem excluir a própria divindade. Assim, vemo-lo falar de um deus masculino e um deus
feminino, o primeiro dos quais é representado e significado pela unidade, e o segundo pela dualidade. O
deus masculino, que é o verdadeiro ou superior, Júpiter, a razão, é o número ímpar: o deus feminino, deus

144
“Dicimus itaque Deum, sempiternum optimunque vivens esse.... Quicumque vero, ut Pythagorici et Speussippus, putant,
optimum et pulcherrimum non esse in principio, eo quod plantarum quoque ac animalium principia causae quidem sunt; bonum
vero et perfectum in his esse quae ex his sunt, non recte putant.” Metafísica., lib. XII, cap. III 1072a
145
“Deixou muitos comentários – escreve Diógenes Laercio – e muitos diálogos, entre os quais um se chama Aristipo Cireneo;
outro Sobre as riquezas; outro Sobre o deleite; outro Sobre a Justiça; outro Sobre a Filosofía; outro Sobre a Amizade; outro Sobre
os Deuses; outro O Filósofo; outro A Cefalio; outro Clinomaco ou Lisias; outro O Político ou Cidadão; outro Sobre a Alma.» De
vitis, dogmat., et apot., &c., lib. IV.
146
Diógenes Laércio relata que Xenócrates foi vendido pelos atenienses por não poder pagar um imposto ou tributo, e que foi
resgatado por Demétrio Falereo. Ele acrescenta depois que “morreu à noite, tendo tropeçado em um balde, aos oitenta e oito anos
de idade”.
130
inferior, é a mãe dos outros deuses, e a alma que vivifica e anima todas as coisas. Nessas idéias, descobre-
se a influência preponderante da doutrina pitagórica, e também se descobrem os germes das emanações,
pleromas, gênios e éons da gnose e da escola de Alexandria, que apareceram séculos depois.

c) Depois de Xenócrates, Polêmon (Πολέμων), natural de Atenas, e Crates (Κράτης), originário de


Triasio, foram escolarcas, isto é, diretores da Academia. Segundo Diógenes Laércio, Polêmon costumava
dizer que “é melhor exercitar-se nas obras do que em especulações dialéticas”. Esses dois filósofos viveram
juntos na mesma casa e foram colocados no mesmo túmulo. Contemporâneo desses dois acadêmicos foi
Crantor (Κράντωρ), natural de Soli, que faleceu antes deles, mas teve como discípulo Arcesilao, fundador
da Academia Média, da qual falaremos depois.
Embora sejam poucos os historiadores de Filosofia que os mencionem, devem ser enumerados entre os
discípulos de Platão, Hermódoro e Heráclidas, este último natural de Heracléia, no Ponto; assim como
Eudoxo, natural de Gnido, e Filipo, de Opuncio, que sobressaíram em matemática e astronomia.

131
§ 71 Aristóteles

Corria o ano 384 a.C., quando, em uma colônia grega na Trácia, nasceu um dos gênios mais poderosos
que já apareceram na Terra, cujo nome brilhou e brilhará sempre na História da Filosofia. É quase
impossível falar de Filosofia e ciências sem que venha à mente e aos
lábios o nome de Aristóteles, natural de Estagira, colônia de origem
grega. Ele era filho de Nicômaco, médico e amigo de Amintas II da
Macedônia, e pertencia à ilustre família dos Asclepíades, que
remontava sua origem a Esculápio, e na qual a profissão de medicina
parecia ser hereditária e vinculada. Após a morte de seu pai, que lhe
inspirou a paixão pelas ciências naturais, Aristóteles (Ἀριστοτέλης)
foi para Atenas 147 , entrou na Academia e se juntou aos
discípulos de Platão, cujo ensinamento e lições ouviu por
vinte anos. Seu mestre, que logo descobriu o gênio superior
e o valor extraordinário do novo discípulo, costumava
chamá-lo de “o pensamento e a alma de sua escola”, o que
não impedia Aristóteles de adotar tendências e direções
doutrinárias diferentes das de seu mestre, meditando e
preparando desde então seus grandes trabalhos filosóficos e
científicos. Talvez baseado na oposição de doutrinas mais do
que em documentos históricos, diz-se que já na própria Academia houve
certa rivalidade entre o mestre e o discípulo. Segundo a tradição, embora não muito autorizada, diz-se que
Aristóteles colocava seu mestre em apuros por meio de questões capciosas e sutis, e que, por sua vez, Platão
costumava comparar seu discípulo com os pintinhos que lutam contra sua mãe quando se sentem fortes.
Após a morte de Platão, Aristóteles permaneceu por três anos ao lado de Hérmias, tirano ou rei de
Atarneu na Mísia, com quem teve uma amizade muito próxima, casando-se com sua irmã Pítia, de quem
teve uma filha de mesmo nome. Após a morte de Hérmias, retirou-se para Mitilene, onde logo recebeu o
convite de Filipe da Macedônia para assumir a educação de seu filho Alexandre, um convite que não honra
menos o rei da Macedônia do que o Filósofo de Estagira, e que demonstra ao mesmo tempo a justa
celebridade que o último já desfrutava em toda a Grécia e regiões adjacentes. As grandes empresas militares,
políticas e científicas realizadas ou favorecidas por seu discípulo demonstram suficientemente que
Aristóteles soube corresponder à confiança de Filipe na educação e preparação Ar
istó
tele
daquele que em poucos anos seria chamado de Alexandre Magno (isto é, se
Pla
o Grande), e que marcaria época nos anais da História. É sabido que t ão
o grande conquistador se preocupou especialmente em adquirir,
colecionar e enviar a seu antigo mestre todo tipo de
documentos, notícias, livros e objetos capazes de contribuir
para o progresso das ciências, que sem dúvida devem muito ao
amor que Aristóteles soube inspirar em seu discípulo régio.
Não lhe deveu menos sua cidade natal, Estagira, que havia
sido destruída e devastada nas guerras de Filipe, pois ele
conseguiu com o rei sua reconstrução, privilégios e distinções,
entre as quais se destaca a fundação ou estabelecimento de um
ginásio filosófico, chamado Ninfeu (Νυμφαῖον, Nymphaeum), a
enç
onde o futuro conquistador da Pérsia e da Índia ouviu as lições de Flor
-
ral
a ted
C

147
Alguns autores supõem que, após a morte de seu pai, Aristóteles se entregou em sua juventude a uma vida de excessos e que,
tendo dissipado sua fortuna nesses excessos, foi obrigado a estabelecer um comércio de fármacos em Atenas. No entanto, não há
nenhum testemunho autêntico que confirme essa informação, que, aliás, não está em harmonia com o que sabemos sobre sua vida
e costumes.
132
Aristóteles, junto com Calístenes, Teofrasto e alguns outros, até que ele foi viver nos acampamentos para
completar sua educação militar148.
Enquanto Alexandre realizava suas grandes conquistas asiáticas, Aristóteles voltou sua atenção
novamente para Atenas, e o Liceu viu reunir-se em torno do grande Filósofo uma multidão de discípulos e
ouvintes de todos os tipos. Diz-se que sua escola recebeu a denominação de peripatética, devido ao hábito
de Aristóteles de ensinar enquanto caminhava pelas ruas arborizadas do Liceu. Não é preciso acrescentar
que o brilho e o nome do Liceu logo ofuscaram o brilho e o nome da Academia platônica e das outras
escolas filosóficas contemporâneas.
Após a morte do vencedor de Dario, o partido macedônico foi alvo de perseguição e vingança pelo
partido oposto em toda a Grécia, especialmente em Atenas. Aristóteles não conseguiu escapar dessa
perseguição. Tendo sido acusado de ateísmo por Curimedon e Demófilo, retirou-se para Cálcis, na ilha de
Eubeia, para evitar aos atenienses um segundo crime e a repetição da tragédia socrática. Pouco tempo depois,
e neste lugar de exílio voluntário, ele morreu aos sessenta e dois anos de idade, de morte natural, embora
alguns autores suponham que ele tenha sido envenenado149. Segundo a tradição, Aristóteles tinha voz fraca,
olhos pequenos, pernas finas, usava anel e tinha uma certa elegância em sua aparência. Diz-se que seu amor
pelo estudo o levou a ter a idéia de dormir com uma bola de cobre na mão, que serviria como despertador
ao cair em um copo de metal.

§ 72 Escritos de Aristóteles

Aulo Gélio escreve que Aristóteles ensinava duas espécies de doutrina, uma exotérica ou geral para todo
tipo de ouvintes, e a outra esotérica ou especial e reservada. Segundo este autor e muitos outros, nosso
Filósofo comunicava de manhã a certos discípulos privilegiados a doutrina reservada e superior; mas à tarde
as portas do Liceu eram abertas a todas as pessoas, e as explicações do mestre eram adaptadas a tal audiência.
Daí também a distribuição de seus escritos em exotéricos e esotéricos ou acroamáticos. No entanto, embora
os autores geralmente admitam essa divisão, estão longe de concordar quando se trata de aplicar essas
denominações a este ou aquele escrito, e até mesmo quando se trata de apontar o fundamento e a origem
dessa classificação. Alguns fundamentam a classificação na diferença de método: outros na natureza ou
condição da matéria que é exposta ou tratada na obra, dependendo se é mais ou menos elevada e metafísica,
mais ou menos simples e prática. Para outros, a classificação se refere ao estilo, chamando de exotéricas as
obras escritas em estilo mais claro e abundante, e acroamáticas as que oferecem um estilo mais conciso e
obscuro. Segundo alguns, ainda, todos os livros de Aristóteles são esotéricos, exceto os escritos em forma
de diálogo.
Além disso, as obras de Aristóteles são a melhor demonstração não apenas da prodigiosa atividade de
seu gênio, mas também e especialmente da admirável fecundidade e flexibilidade de seu talento
verdadeiramente enciclopédico. A lógica e a gramática, a poética e a dialética, a física e a história natural,
a astronomia e a meteorologia, a moral e a política, a sociologia e a história, a antropologia e a cosmologia,
a metafísica e a teodicéia, tudo é tratado em suas obras, e tratado profundamente e de maneira sólida, apesar
de algumas dessas ciências serem desconhecidas até seu tempo. Para qualquer um que conheça o catálogo
e a importância de suas obras150 , é inquestionável que elas são a expressão mais elevada e completa da
Filosofia e da ciência, dada a época em que floresceu.

148
Diz-se que os estagiritas, gratos pelos muitos benefícios e favores que receberam de seu conterrâneo, instituíram em sua honra
festas e jogos sob o nome de Aristotélica, que eram celebrados anualmente.
149
Não vale a pena discutir, nem mesmo mencionar, a tradição, ou melhor, a fábula, segundo a qual Aristóteles se jogou no fundo
do Euripo, desesperado por não conseguir entender e dar uma explicação para seu fluxo e refluxo.
150
As principais obras de Aristóteles que chegaram até nós são as seguintes: Perihermenias seu de interpretatione; Categoriae ou
Praedicamenta; Analytica priora; Analytica posteriora; Topicorum, oito livros; Elenchorum, dois livros: Todos esses tratados
reunidos formam o Organon de Aristóteles. Physicorum, oito livros; De Coelo, quatro livros; De generatione et corruptione, dois
livros; Meteorologicorum, quatro livros; De anima, três livros; De sensu et sensibilibus; De memoria et reminiscentia; De somno
et vigilia; De longitudine et brevitate vitae; De juventute et senectute; Metaphycorum, quatorze livros; De Xenophane, Zenone et
Gorgia; Ethica ad Nichomacum; Magna moralia; Ethica ad Eudemum; Politicorum, oito livros; Rhetoricorum ad Theodectem,
três livros; De Poetica; De Historia animalium, nove livros; De animalium incessu; De Partibus animalium, quatro livros; De
133
Infelizmente, nem todas as suas obras chegaram até nós, e a autenticidade daquelas que possuímos não
está livre de dúvidas quanto à integridade e disposição do texto. Como observa com razão De Gerando, o
texto de suas obras sofreu muitas alterações, e a ordem das idéias experimentou notáveis e evidentes
transtornos. Daí a dificuldade de penetrar seu verdadeiro pensamento sobre muitas questões, dificuldade
que aumenta devido à obscuridade de sua linguagem em algumas ocasiões e à excessiva concisão de seu
estilo. Além disso, as novas pesquisas que ele realizou e as novas ciências que criou de certa forma o
obrigaram a inventar e usar novas palavras; pois, como diz Cícero, imponenda nova, novis rebus nomina;
e é claro que nem sempre é fácil determinar e fixar o verdadeiro sentido dessas novas palavras e das
vicissitudes que sofreram ao longo de vinte e tantos séculos.
A desigualdade, lacunas e alterações observadas nos escritos do filósofo de Estagira teriam uma
explicação histórica fácil, se for completamente verdadeiro o que Estrabão e outros autores antigos relatam
sobre as vicissitudes de seus escritos. Conta-se, de fato, que Teofrasto, que herdou esses escritos de seu
mestre, os transmitiu por herança a seu sobrinho Neleu de Scepsis, que os escondeu em um subterrâneo,
temendo que os reis de Pérgamo tentassem apoderar-se deles sem pagar seu justo valor. Depois de muitos
anos, eles foram desenterrados e vendidos. Apelicon, seu comprador, sem possuir os conhecimentos
necessários, substituiu por outros aqueles trechos que haviam se tornado ilegíveis, adicionando ao mesmo
tempo outros novos em lugar dos que faltavam, devido à grande avaria que as obras de Aristóteles sofreram
enquanto estavam enterradas. Quando Syla levou a biblioteca de Apelicon para Roma, as obras de
Aristóteles foram confiadas ao gramático Tirânio, que as corrigiu e modificou, preenchendo as lacunas que
existiam; correções e modificações que também foram feitas à sua maneira por Andrônico de Rodes151.
Poucos escritores haverá cujas obras tenham sido objeto de tantos comentários, glossas, interpretações
e exposições como Aristóteles. Os nomes de Simplicio, Alexandre de Afrodisia, Porfírio, Amônio, Temístio,
Filopono, Averróis, Alfarabi, Alberto Magno, Santo Tomás, São Boaventura, Caetano, Toledo, Domingo
Soto e muitos outros antigos e modernos demonstram a importância e consideração que as obras do filósofo
de Estagira sempre mereceram dos filósofos e sábios. Nos dias de hoje, as versões e traduções em várias
línguas das obras de Aristóteles, acompanhadas de prólogos, notas, advertências e
esclarecimentos, substituíram os antigos comentários e exposições. Entre estes últimos,
merece especial menção a realizada em Berlim, sob a direção de Bekker e Brandis,
edição das mais corretas em relação ao texto, preparada e corrigida
pelo primeiro, e não menos apreciável por parte de alguns
comentários antigos, corrigidos e
revisados pelo segundo, que
também enriqueceu esta
grande edição das obras de
Aristóteles com excelentes
escolios152.

“Sine Thoma mutus esset Aristoteles.” (Pico della Mirandola)

generatione animalium, cinco livros. E deve-se acrescentar que ignoramos vários escritos que circulam entre suas obras, mas que
são apócrifos ou de autenticidade muito duvidosa, como os seguintes: Physiognomica; De motu animalium; De mundo; De
coloribus; De spiritu; De lineis insecabilibus; De causis; De re mechanica; De insomniis; De divinatione per somnium; Rhetorica
ad Alexandrum; Parva naturalia.
Além disso, deve-se acrescentar que algumas de suas obras não chegaram até nós, sendo muito de se lamentar esta desgraça no que
diz respeito à História de 158 constituições de Estados ou repúblicas, obra curiosíssima sem dúvida e de grande importância para
conhecer e julgar o caminhar da idéia política na Antiguidade. [N.T.: Para a listagem completa das obras de Aristóteles, veja-se o
Apêndice 3.]
151
É digno de nota o silêncio que Aristóteles mantém em seus escritos acerca de seu discípulo Alexandre Magno. Em suas
numerosas obras, ele nunca o menciona, apesar de sua amizade e da ajuda e materiais que Alexandre forneceu para que Aristóteles
escrevesse seus livros. É muito possível e provável que esse silêncio obstinado seja uma resposta aos sentimentos de vingança de
Aristóteles contra seu régio discípulo, devido à morte violenta e injusta que Alexandre infligiu a seu parente e discípulo Calístenes.
Se for esse o caso, o filósofo de Estagira escolheu bem sua arma de vingança, dada a ânsia de glória e celebridade que dominava o
grande conquistador, que teria trocado parte de seus tesouros e conquistas por alguns elogios na boca e nos escritos de Aristóteles.
152
Escolio é um termo que se refere a um comentário ou nota marginal adicionada a um texto, geralmente para explicar ou esclarecer
um ponto específico. É uma observação ou explicação que é adicionada ao texto principal para fornecer mais informações ou
contexto. [N.T.]
134
Apêndice 3 – Catálogo das Obras de Aristóteles
Corpus Aristotelicum com a numeração de Bekker153

Título em português Título original grego Título em latim


Lógica – o Órganon (Όργανον)
(1a) Categorias Κατηγοριαι Categoriae
(16a) Da interpretação Περὶ ερμηνειας De Interpretatione
(24a) Primeiros Analíticos ou
Analíticos anteriores Αναλυτικων προτέρων Analytica priora
(71a) Analíticos posteriores ou
Segundos Analíticos Αναλυτικων υστερων Analytica posteriora
(100b) Tópicos Τοπικων Topica
(164a) Elencos sofísticos ou
Refutações aos sofistas Περὶ σοφιστικων ελέγχων Sophistici elenchi
Física – Filosofia da Natureza
(184a) Física Φυσικη Physica
(268a) Do céu Περὶ ουρανου De caelo
De generatione et
(314a) Da geração e da corrupção Περὶ γενεσεως και φθορας corruptione
(338a) Meteorologia Μετεωρολογικα Meteorologica
(391a) Do universo (considerada espúria) Περὶ κοσμου De mundo
(402a) Da alma Περὶ ψυχης De anima
Parva naturalia – pequenos tratados de ciências naturais
Περὶ αισθησεως και
(436a) Da sensação e do sensível αισθητων De sensu et sensibilibus
De memoria et
(449b) Da memória e reminiscência Περὶ μνημς και αναμνησεως reminiscentia
(453b) Do sono e da vigília Περὶ υπνου και εγρηγορσεως De somno et vigilia
(458b) Dos sonhos Περὶ ενυπνιων De insomniis
De divinatione per
(462b12) Da adivinhação pelo sonho Περὶ τῆς καθ'ὕπνον μαντικῆς somnum
(464b) Da longevidade e brevidade Περὶ μακροβιοτητος και De longitudine et brevitate
da vida βραχυβιοτητος vitae
Περὶ νεοτητος και γηρος. De juventute et senectute.
(467b) Da juventude e da velhice. Da Περὶ ζωης και θανατου. Περὶ De vita et morte. De
vida e da morte. Do fôlego αναπνοη respiratione
(481a) Do alento (considerada espúria) Περὶ πνευματος De spiritu
(486a) Da história dos animais Περὶ τα ζωα ιστοριαι Historia animalium
(639a) Das partes dos animais Περὶ ζωων μοριων De partibus animalium
(698a) Do movimento dos animais Περὶ ζωων κινησεως De motu animalium
(704a) Da marcha dos animais Περὶ πορειας ζωων De incessu animalium
(715a) Da geração dos animais Περὶ ζωων γενεσεως De generatione animalium
(791a) Das cores (considerada espúria) Περὶ χρωματων De coloribus
(800a) Das coisas ouvidas (considerada
espúria) Περὶ ακουστων De audibilibus
(805a) Fisiognomonia (considerada espúria) Φυσιογνωμονικα

153
[N.T] A numeração de Bekker é a forma padrão de citação do corpus aristotelicum e consiste de três coordenadas, a saber,
número da página, letra da coluna (‘a’ para a primeira coluna e ‘b’ para a segunda) e a linha (quando não é a linha inicial da coluna)
respectivamente. Assim, a título de exemplo, o Tratado “Da adivinhação pelo sonho” (462b12) encontra-se na página 462, segunda
coluna, linha 12 da edição de Bekker.
135
Das plantas (considerada espúria)
(815a) Περὶ φυτων De plantis
Das maravilhosas coisas
(830a)
ouvidas Περι θαυμασιων Mirabilibus
(considerada espúria) ακουσματων auscultationibus
(847a) Mecânica (considerada espúria) Μηχανικα Mechanica
(859a) Problemas (autenticidade disputada) Προβληματα Problemata
(968a) Das linhas indivisíveis (considerada
espúria) Περὶ ατομων γραμμων De lineis insecabilibus
(973a) Situações e nomes dos ventos Ανεμων θεσεις και Ventorum situs et
(considerada espúria) προσηγοριαι cognomina
Sobre Melisso, Xenófanes e
(974a)
Górgias Περὶ Μελισσου, Περὶ De Melisso, Xenophane,
(considerada espúria) Ξενοφανους, Περὶ Γοργιου Gorgia
Metafísica
(980a) Metafísica Τὰ μετὰ τὰ φυσικά Metaphysica
Ética
(1094a) Ética a Nicômaco Ηθικα Νικομαχεια Ethica Nicomachea
(1181a) Magna moralia (autenticidade
disputada) Ηθικα μεγαλα Magna Moralia
(1214a) Ética a Eudemo Ηθικα Ευδημεια Ethica Eudemia
(1249a) Das virtudes e vícios (considerada De virtutibus et vitiis
espúria) Περὶ αρετων και κακιων libellus
(1252a) Política Πολιτικα Politica
(1343a) Economia (autenticidade disputada) Οικονομικα Oeconomica
Retórica
Retórica ou Arte retórica
(1354a) Τέχνη ρητορική Ars Rhetorica
Retórica a Alexandre (autoria disputada –
Anaxímenes?) Ρητορική προς Αλεξανδρον Rhetorica ad Alexandrum
Poética
(1447a) Περὶ ποιητικης Poetica
Outros
Constituição de Atenas (perdida até 1890) Αθηναιων πολιτεια Atheniensium Respublica

Apêndice 4 – Traduções Siríacas de Aristóteles154


É de todos sabido que o grande Guilherme de Entre os filósofos gregos, escolheram de
Moerbecke, O.P., Arcebispo de Corinto, traduziu as
obras de Aristóteles do grego para o latim. É igualmente preferência a Aristóteles, sem dúvida porque o seu
sabido que o fez a instâncias do Doutor Comum (Fr método empírico concordava melhor com a
Wilhelmus Brabaninus Corinthiensis transtulit omnes tendência científica e positiva dos árabes do que o
libros naturalis et moralis philosophiae de graeco in
idealismo de Platão, e porque sua lógica era
latinum ad instantiam fratris Thomae: Catalogus
Stamsensis p. 62, n. 33), o qual desejava que a verdade considerada uma arma útil nas lutas diárias das
aristotélica reluzisse com clareza (procuravit quod fieret diferentes escolas teológicas.
nova translatio que sententie Aristotelis continet clarius As traduções para o árabe das obras de
veritatem: Ystoria 18, p. 252). De fato, os textos latinos
estavam eivados de gnosticismo árabe, o qual germinava,
Aristóteles, bem como das obras gregas em geral,
então, nas escolas da Cristandade. devem-se, em sua maior parte, aos estudiosos
Que eram traduzidas do árabe as obras de Aristóteles cristãos siríacos ou caldeus, especialmente os
no tempo de Santo Tomás é conhecimento comum; a nestorianos, que viveram em grande número
questão que quase nunca se põe é esta: “como chegaram
ao árabe esses textos”? como médicos na corte dos califas e que,

154
Extrato de MUNK, Mélanges de philosophie juive et arabe. p. 313-317. Tradução do aluno Songod Waoga Wilfried Konkobo e
revisada pelo professor para a matéria de História da Filosofia Antiga II, de 2019.2 [N.T.]
136
familiarizados com a literatura grega, indicaram aos árabes os
livros que lhes poderiam oferecer maior interesse. As traduções
das obras aristotélicas foram feitas, em grande parte, a partir das
traduções siríacas, uma vez que, desde o tempo do imperador
Justiniano, começaram-se a traduzir os livros gregos para o
siríaco e a se espalhar pelo Oriente a literatura helênica. Entre os
manuscritos siríacos da biblioteca imperial, há um volume (nº
161), que contém a Isagoge de Porfírio e três obras de Aristóteles,
a saber, as Categorias, Da interpretação e uma parte dos
Primeiros Analíticos. A tradução da Isagoge é atribuída a
Atanásio, monge do mosteiro de Beth-Malca, que a completou
no ano 956 dos selêucidas, ou 645 d.C. e as Categorias, ao
Metropolita Tiago de Edessa (falecido em 768 d.C.). Um
manuscrito árabe (nº 882A), que remonta ao início do século
XIII, contém todo o Órganon de Aristóteles, bem como a
Retórica, a Poética e a Isagoge de Porfírio. O trabalho deve-se a
diversos tradutores e algumas das obras trazem no título
“traduzido do siríaco”, de sorte que não pode haver qualquer
dúvida acerca da origem dessas traduções. Vê-se, de resto, pelas numerosas notas interlineares e marginais
que traz o manuscrito, que havia, desde o século X, muitas traduções diferentes das obras de Aristóteles, e
que as obras feitas às pressas sob os califas Al-Mamoun e Al-Motawackel foram posteriormente revistas,
corrigidas a partir do texto siríaco ou grego, ou até mesmo inteiramente refeitas. O livro Refutações dos
Sofistas é apresentado em nosso manuscrito em quatro traduções diferentes. Já uma breve olhada sobre o
aparato crítico deste precioso manuscrito pode nos convencer que os árabes possuíam traduções feitas com
a mais escrupulosa exatidão; e que os autores que, sem conhecer tais traduções, as chama de bárbaras e de
absurdas (cf. Vey Brucker, Hist. crit. Philos., t. III, pag. 106, 107, 149, 150) encontram-se em profundo
erro. Esses autores basearam o seu julgamento em versões latinas ruins
derivadas não do árabe, mas das versões hebraicas.
Os mais célebres dentre os primeiros tradutores árabes de Aristóteles foram
’Honéin ben-Is’hâk – médico nestoriano que viveu em Bagdá e faleceu em 873
– e seu filho Is’hâk; as traduções deste último foram mais estimadas. No século
X, Ya’hya ben-‘Adi e Isa ben-Zara fizeram novas traduções ou corrigiram as
antigas. Traduziram também os principais comentadores de Aristóteles, tais como
Porfírio, Alexandre de Afrodísia, Temisto e João Filopono. Foi por meio desses
comentadores que os árabes também se familiarizaram com a Filosofia de
Platão, cujas obras não foram todas traduzidas para o árabe ou pelo menos não
foram muito difundidas, com exceção da República, que foi comentada mais
tarde por Averróis. Talvez não tenham conseguido obter logo a Política de
Aristóteles e a substituíram pela República de Platão. É, ao menos certo, que a
Política não chegou à Espanha; mas ela existia, contudo, no Oriente, como se pode ver no post-scriptum
feito por Averróis ao fim de seu comentário à Ética e que Jourdain citou a partir de Hermann da Alemanha.
(Um autor árabe do século XIII, Djemal-Eddin al-Kafti, que escreveu um dicionário dos filósofos,
apresenta, no artigo sobre Platão, como tendo sido traduzidos para o árabe, o livro da República, as Leis e
o Timeu e, no artigo de Sócrates, o mesmo autor cita longas passagens tiradas do Críton e do Fédon.) De
qualquer forma, pode-se dizer com certeza que eles não tinham noções exatas, extraídas das fontes a não
ser da Filosofia de Aristóteles. O conhecimento das obras de Aristóteles e seus comentários logo se
espalharam por todas as escolas; todas as seitas os estudaram avidamente. “A doutrina dos filósofos – diz
o historiador Makrizi – trouxe à religião, entre os muçulmanos, os males mais funestos. A Filosofia não
servia a não ser para aumentar os erros dos heréticos e acrescentar à impiedade um excesso de impiedade”.
Vêem-se levantar entre os árabes homens de espírito superior que, nutridos pelo estudo de Aristóteles,
interpretam eles mesmos os escritos do Estagirita e desenvolvem sua doutrina. Aristóteles foi considerado
137
por eles como o filósofo por excelência; e, se é errado sustentar que todos os filósofos árabes não fizeram
mais do que seguir servilmente seus ensinamentos, ao menos é verdadeiro que ele sempre exerceu sobre
eles uma verdadeira ditadura no que concerne às formas de raciocínio e de método.
Um dos mais antigos e mais célebres comentadores árabes de Aristóteles é Abou-Yousouf-Ya’koub que
floresceu pelo século IX. ’Hasan ben-Sawar, cristão do século X, discípulo de Ya’hya ben-‘Adi escreveu
comentários onde se encontram numerosos extratos à margem do Órganon do qual falamos. Abou-Naçr al-
Farâbi, no século X, tornou-se célebre sobretudo pelos seus escritos sobre a lógica. Abou-‘Ali ibn-Sinâ, ou
Avicena, no século XI, compôs uma série de obras com o mesmo título e o mesmo plano de Aristóteles, a
quem prodigaliza louvores. O que Avicena foi para os árabes do Oriente, Averróis foi, no século XII, para
os árabes do Ocidente. Seus comentários lhe renderam uma enorme reputação e quase fizeram esquecer
seus predecessores. Nós não podemos deixar de citar uma passagem do prefácio de Averróis ao comentário
sobre a Física a fim de mostrar sua profunda veneração aos filósofos e, mais propriamente dito, aos escritos
de Aristóteles: “O autor desse livro – diz Averróis – era Aristóteles, filho de Nicômaco, o célebre filósofo
dos gregos, que compôs também outras obras que nós encontramos sobre esta ciência (a física), bem como
livros sobre a lógica e tratados sobre a metafísica. Foi ele quem renovou essas três ciências, a saber, a
lógica, a física e metafísica e é ele quem as completou. Dizemos que as renovou, porque, como outros
falaram desses assuntos, ele não deve ser considerado como iniciador dessas ciências...; E quando as obras
deste homem apareceram, os homens descartaram os livros daqueles que o precederam. Entre os livros
compostos antes dele, aqueles, quanto a essas matérias, que se encontram mais perto do método científico
são as obras de Platão, nas quais se encontra muito pouca coisa em comparação com o que se encontra nos
livros de nosso filósofo, e que são mais ou menos imperfeitas acerca desta ciência. Dizemos em seguida
que ele completou (as três ciências), porque nenhum dos que o seguiram até nosso tempo, isto é, por quase
1500 anos, conseguiu acrescentar ao que ele disse algo digno de atenção. É, pois, coisa extremamente
extraordinária e verdadeiramente maravilhosa que tudo isso esteja reunido em um único homem. Quando,
no entanto, essas coisas estão em um indivíduo, nós lhe devemos atribuir mais à existência divina que à
humana, razão pela qual os antigos a chamam de Divino” (cf. Brucker, l.c., t. III, pag. 105).

§ 73 Lógica e Psicologia de Aristóteles

É de todos sabido que a Lógica – considerada como uma ciência específica, como uma parte especial
da Filosofia, como uma ciência independente – deve, se não sua origem, sua essência, seu ser científico,
sua perfeição, a Aristóteles; porque foi ele quem, fundindo, comparando e desenvolvendo os elementos
dispersos e os ensaios parciais anteriores, criou na realidade a lógica como organismo científico.
Expor ou resumir sequer os pontos principais da doutrina aristotélica sobre a lógica seria o mesmo que
expor e resumir o conteúdo de qualquer tratado de lógica elementar, uma vez que qualquer um deles contém
e reflete necessariamente os pontos principais da lógica de Aristóteles. Permitimo-nos observar apenas:
1º O ponto culminante e chave da lógica aristotélica é a teoria do silogismo demonstrativo; pois, na
realidade, essa teoria do silogismo demonstrativo é o objeto final, o centro comum e o termo geral de relação
dos diferentes tratados que compõem o Órganon de Aristóteles, como as Categorias, o livro De
Interpretatione, os Analytica priora e posteriora, o livro Topicorum etc.
2º Esta teoria silogística do fundador da escola peripatética é tão completa, tão filosófica e tão acabada
que nada substancial pôde ser adicionado ou mudado nela pelos escritores de lógica que vieram depois dele,
apesar da marcada predileção que alguns filósofos de primeira linha manifestaram em diferentes épocas em
relação a esse tipo de estudos.
Trendelenburg observa com razão que o nome de Aristóteles em relação à lógica é como o nome de
Euclides em relação à geometria. Assim como os geômetras não podem prescindir da doutrina do último
nos problemas que ocuparam sua atenção, tanto antigos quanto modernos, contemporâneos e sucessores,
são obrigados a buscar modelos e inspirações nos escritos de Aristóteles, sempre que se trate de lógica; a
teoria lógica do Estagirita aparece e se manifesta superior a todas as vicissitudes dos séculos: Ut in

138
geometria Euclides, sic in logicis Aristoteles saeculorum vicissitudines ita superant, ut uterque exemplar
sit in quod intueantur et aequales, et posteri.

O Órganon de Aristóteles compreende: As Dez Categorias


Aristóteles, Categorias
a) as Categorias ou predicamentos
As categorias são as classes fundamentais de seres ou
(praedicamenta), como alguns tradutores e
coisas que existem no mundo, e são as seguintes: substância,
intérpretes latinos os chamaram. Neste livro,
quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição, estado,
Aristóteles reduz, primeiramente, a dez o ação e paixão (1a25-1a30).
número de conceitos (ou melhor, [1] Substância: “aquilo que é em si” (“τὸ ὑποκείμενον
predicados/predicamentos) possíveis mais καθ' αὑτό καὶ οὐ καθ' ὑποκείμενον λεγόμενον”: 5, 2a11-
gerais de um sujeito, quais sejam: [1] 2a14).
9 acidentes: “aquilo que é dito de um sujeito e pode ser
substância, [2] quantidade, [3] qualidade, [4]
afirmado e negado sem o sujeito” (“τὸ καθ' ὑποκείμενον
relação, [5] lugar, [6] tempo, [7] posição, [8] λεγόμενον καὶ ἀφαιρετικὸν καὶ ἀντικείμενον τῷ καθ'
hábito (situação) ou modo de ser por parte da αὑτό”: 7, 3a1-3a3).
vestimenta e armas, [9] ação e [10] paixão, e [2] Quantidade: “aquilo que pode ser contado” (“τὸ ποσόν,
ὃ μετρεῖσθαι δύναται”: 6, 2a19-2a20).
depois entra em explicações sobre o [3] Qualidade: “aquilo que é dito de algo, considerando-se
significado, sentido, importância e divisões de a sua natureza” (“τὸ ποιόν, ὃ λέγεται περὶ τὸ τί ἦν εἶναι”:
cada um. 8, 3a6-3a7).
[4] Relação: “aquilo que é dito de algo em relação a algo”
(“τὸ πρός τι, ὃ λέγεται περὶ τὸ πρός τι εἶναι”: 9, 3a9-3a10).
b) o Perihermeneias (ou De [5] Lugar: “o limite que contém as coisas” ("τὸ
Interpretatione, entre os latinos), no qual, περιβάλλον, ὃ ἐν τῷ ὑποκειμένῳ τὸ περικείμενον ἔχει”:
após algumas considerações sobre o nome, o 11, 4a20-4a21).
verbo e a oração enunciativa ou proposição [6] Tempo: “o número do movimento em relação ao antes e
ao depois” (“ὁ τοῦ κινεῖσθαι ἀριθμός κατὰ τὸ πρότερον
em geral, trata das diferentes espécies, formas καὶ ὕστερον”: 12, 5a25-5a26).
e propriedades da proposição. [7] Posição: “o lugar em que algo está em relação a outro”
(“τὸ ποῦ, ἐν ᾧ τι ἐστὶ πρὸς ἕτερον”: 10, 4a10-4a11).
[8] Situação (ποίον): “a disposição na qual algo se
c) os Primeiros Analíticos (Priora
encontra” (“τὸ ποῖον, ἐν ᾧ τι ἔχει”: 10, 4a11-4a12).
Analytica ou, mais geralmente, Priorum [9] Ação: “passagem do não-ser ao ser” (“τὸ ἐξ ἀδύνατου
Analyticorum libri duo), no qual se trata com εἰς τὸ ὂν γίνεσθαι”: 11, 6a1-6a2).
detalhe e profundidade verdadeiramente [10] Paixão: “aquilo que é sofrido” (“τὸ παθόν, ὃ πάσχει”:
11, 6a2-6a3).
analítica dos elementos ou princípios,
essência, propriedades, figuras, espécies e efeitos do silogismo155, e com este motivo também se trata da
indução156, analogia, entimema157 e outras espécies de argumentação.

155
O silogismo é um argumento lógico composto por três proposições: duas premissas e uma conclusão. Cada premissa contém
um termo médio que é compartilhado com a conclusão, permitindo que a conclusão seja inferida a partir das premissas. O silogismo
é uma forma de raciocínio dedutivo que é considerada a base da lógica aristotélica. [N.T.]
156
“A indução é o processo de raciocínio pelo qual, a partir de casos particulares, se chega a uma conclusão geral. É um tipo de
generalização a partir de exemplos específicos.” (Aristóteles, Analíticos Posteriores, l. II, c. 19, 100a).
Como explica Aristóteles, a indução parte de casos particulares para chegar a uma conclusão geral. Baseia-se, portanto, na
observação de exemplos específicos para inferir uma regra ou padrão mais amplo. Ao contrário do silogismo, que é um método
dedutivo (do geral para o particular), a indução chega a conclusões por generalização (dos particulares para o geral), de modo que
o produto da indução pode ser apenas provável, mas não necessariamente verdadeira. Ao observar, por exemplo, um grande número
de cisnes, vendo-os todos brancos, alguém poderia induzir que todos os cisnes o sejam. No entanto, essa conclusão não é
necessariamente verdadeira, pois pode haver cisnes de outras cores que ainda não foram observados. A partir de Francis Bacon e
seu método científico – apresentado na obra sugestivamente chamada o Novum Organum (1620) –, a ciência moderna
hipervalorizou a indução; saindo, assim, do campo do conhecimento certo (método dedutivo) para o do conhecimento provável
(método indutivo). Curiosamente, quando as ciências empíricas trocam a certeza aristotélica pela probabilidade de Bacon, neste
mesmo momento os novos dogmas “científicos” se rebelam contra as certezas filosóficas e teológicas. [N.T.]
157
“O entimema é um silogismo que contém apenas duas premissas, em vez das três premissas completas de um silogismo padrão,
porque uma das premissas é omitida, geralmente a premissa maior, que é considerada óbvia ou implícita.” (Analíticos Posteriores,
l. II, c. 27, 71b) “O entimema é um silogismo em que uma das premissas é omitida, porque é bem conhecida ou porque é evidente
por si mesma.” (Tópicos, l. VIII, c. 6, 157a) [N.T.]
139
d) os dois livros chamados Analíticos Posteriores, no qual se trata da demonstração considerada em
seus princípios, em sua essência, em suas espécies, em seus efeitos, etc., e também da definição.

e) os oito livros dos Tópicos, nos quais Aristóteles expõe o conceito da dialética como arte de disputar
ou discutir e as diferenças que a separam da ciência lógica; investiga e expõe a natureza e as condições do
silogismo provável, em contraposição ao demonstrativo, e termina apontando e discutindo os lugares
(“lugar” em grego é τόπος) de onde se podem obter argumentos prováveis, razões e provas mais ou menos
fortes e convincentes, seja para afirmar ou negar uma tese, seja para resolver algum problema.

f) finalmente, o tratado ou os dois livros Refutações Sofísticas, destinados a expor os sofismas, ou seja,
a natureza, espécies, origem e remédios das argumentações sofísticas.

Depois de enumerar as categorias e fixar seu significado por meio de exemplos, Aristóteles adverte que
essas categorias são representações simples, ou respondem a conceitos incompletos em si mesmos, de modo
que, enquanto tais, carecem de verdade e falsidade; porque a verdade e a falsidade não existem enquanto
não houver complexão de idéias por meio de afirmação e negação. As categorias são elementos possíveis
para a afirmação e a negação (horum autem complexione affirmatio vel negatio fit), que são o resultado da
complexão (quer dizer, comparação) das categorias; mas consideradas em seu estado incompleto, em seu
estado natural de representação simples de um objeto, não possuem nem verdade, nem falsidade: eorum
autem, quae secundum nullam complexionem dicuntur, nullum neque verum, neque falsum est.

§ 74 Cosmologia e Teodicéia de Aristóteles

a) O universo é dividido em (1) mundo celeste e (2) mundo sublunar. O (1) primeiro não está sujeito a
mudanças substanciais que afetem sua essência, e, portanto, não pode ser gerado, é incorruptível e conserva
perfeitamente a forma substancial que recebeu em sua origem, ou melhor dito, desde a eternidade. Embora
seja composto de matéria e forma como todos os corpos, o céu não está sujeito a geração substancial,
corrupção, diminuição, aumento ou alteração. Essa incorruptibilidade e imutabilidade dos corpos celestes,
principalmente do primeiro céu, fazem dele o lugar próprio e como que
conatural de Deus, o que é confirmado e está em harmonia com a
opinião geral dos homens que consideram o céu como o lugar
próprio da Divindade. É notável que essa convicção é
observada tanto entre os gregos quanto entre os bárbaros158,
ou povos não civilizados.
Não acontece o mesmo com (2) os corpos sublunares,
que, além de suas mutações acidentais, estão sujeitos a
transformações substanciais, que afetam a própria essência
e substância específica das coisas.

b) Para que ocorra essa mutação essencial, ou seja, a


geração e corrupção substancial, é necessário: (1º) alguma
coisa que sirva de substratum ou sujeito geral dessas mutações,
uma vez que a mutação pressupõe um sujeito que se transforma, uma
matéria prima na qual possam ocorrer sucessivamente essas variações
substanciais; (2º) alguma forma que, agindo e determinando essa matéria, constitua em união com ela um
ser determinado, uma substância específica, o corpo A ou B; (3º) um agente ou força ativa que, agindo
sobre o corpo A e alterando suas propriedades e condições de ser, determine nele a perda da forma

158
“Omnes enim homines de Diis habent existimationem, et omnes eum qui sursum est locum, Deo tribuunt, et Barbari, et Graeci,
quicumque putant esse Deos, tamquam videlicet, immortali immortale coaptatum sit.” De Coelo, lib. I, cap. IV. 268a.
140
preexistente e a introdução de outra nova. Portanto, a matéria prima, que faz parte e é parte essencial de
todo corpo, deve ser concebida como uma realidade substancial, mas incompleta e potencial em si mesma,
capaz de receber diferentes formas substanciais, mas que em si mesma não tem nenhuma. A forma
substancial também é uma realidade incompleta, mas essencialmente determinante e atuante, a atualidade
primitiva da matéria. Da união imediata e íntima dessas duas entidades resulta o composto substancial e a
essência específica única, com unidade de essência e substância. A forma substancial, pelo fato de ser o
primeiro ato da matéria e por ser atualidade e determinação por sua própria essência, é a raiz e a razão
suficiente originária de todas as formas acidentais, de todas as perfeições e atos que se manifestam na
substância da qual é a forma e, em geral, de toda a atualidade e perfeição do composto.

c) Todo agente, ao agir, age ou de uma maneira consciente ou inconsciente para produzir algum efeito
e alcançar algum fim. Portanto, todo efeito ou mutação leva consigo o concurso de quatro causas, a saber:
(i) causa final, (ii) causa eficiente, (iii) causa formal e (iv) causa material; e a essas quatro causas todos os
gêneros de causas podem ser reduzidos.

Matéria e Forma – Ato e Potência d) O mundo é eterno e, portanto, a série de


Aristóteles, Metafísica gerações substanciais é infinita. Mas como essa
geração exige e pressupõe a ação do agente que une
a forma à matéria, e como não é possível proceder
in infinitum na série de causas eficientes, é
necessário reconhecer a existência de um Primeiro
Motor imóvel, de um agente imutável, de uma
primeira causa eficiente em relação ao mundo.
e) A causalidade desta Primeira Causa eficiente
“Chamamos o ser de potência [δυνάμει] e de ato se estende à matéria prima na mente e opinião de
[ἐντελέχειᾳ], sendo que o que é em potência é aquilo
Aristóteles, ou se limita apenas à sua transformação
que se torna em ato, e o que é em ato é aquilo que
substancial, ou seja, à extração da forma substancial
tem o ato em si mesmo.” (Metafísica. l. IX. 1048a)
da potencialidade da matéria? Este é um problema
“A matéria [υλη] é potencialidade [δυναμις],
obscuro e duvidoso que não pode ser resolvido com
enquanto a forma [ειδος] é atualidade [εντελεχεια], e
a substância [ουσια] é a união desses dois segurança. No primeiro caso, o filósofo de Estagira
princípios”. (Metafísica. l. VII. 1032a) teria se elevado, ou pelo menos teria vislumbrado a
* idéia de criação; no segundo, sua teoria sobre a
Os termos gregos que o Filósofo utiliza são: origem do mundo diferiria muito pouco do
dualismo platônico.
[a] para matéria: υλη [hylé]
f) No entanto, seja o que isso signifique, é certo
[b] para forma: ειδος (eidos), μορφη (morphe) ou
εντελεχεια (entelecheia) que para Aristóteles Deus é um ser necessário, que
existe por si mesmo, a primeira causa do
[c] para ato: ενεργεια (energeia) e εντελεχεια movimento e do mundo, substância eterna,
(entelecheia), de onde a confusão de ato e forma, só imaterial, superior a tudo o que é sensível,
distinta em Santo Tomás
inextensível, indivisível, imutável, dotado de poder
[d] para potência: δυναμις (dynamis) infinito (nam infinito tempore movet; nihil vero
finitum infinitam potentiam habet), inteligência
perfeita e ato puro, sem mistura alguma de potencialidade ou composição, a ponto de serem a mesma coisa
em Deus o entendimento e o inteligível (seipsum vero intellectus [primus] intelligit... ita ut idem sit
intellectus et intelligibile), a intelecção, o sujeito inteligente e o objeto entendido. A vida divina consiste
precisamente no pensamento atual de Deus, na intelecção intuitiva da substância divina essencialmente

141
inteligente e inteligível159, como atualidade puríssima, e tão pura, mesmo no âmbito inteligível, que a noção
mais própria de Deus, o conceito mais essencial da Divindade, é a intelecção, o pensamento atual de Sua
própria essência como ato puro, de tal forma que Deus é a intelecção da intelecção, o pensamento do
pensamento: Seipsam ergo intelligit... et est intellectionis intellectio.
Em conformidade e como consequência da idéia tão pura e elevada que Aristóteles possuía sobre a
Divindade, ele rejeitou a concepção antropomórfica, tão generalizada na época, apesar do apoio que
encontrava no politeísmo da época160.

g) Também não se deve perder de vista que, para Aristóteles, Deus, embora tenha a razão de fim ou de
bem amado, de termo da ordem que resplandece no mundo, e embora seja princípio e causa dessa ordem,
assim como de todos os seres que constituem o universo (a tali ergo principio tum coelum, tum natura
dependet) ou natureza161, não deve ser concebido nem como termo ou produto da evolução do universo,
nem menos ainda como forma imanente do mesmo, mas sim como uma substância atualíssima e inteligente,
como quid prius com prioridade de natureza em relação ao universo mundo e a todas as suas perfeições;
como um ser pessoal e consciente que existe em si e para si, à maneira que o general de um exército – sem
prejuízo de ser o termo, o bem e o princípio da ordem do exército – é, no entanto, independente deste e
superior a ele, dono de seus atos e de sua própria personalidade.
A julgar pelas indicações de Diógenes Laércio, Plutarco e alguns outros, e principalmente pelo trecho
que Cícero cita e atribui a Aristóteles162, este demonstrou a existência de Deus com toda sorte de razões e
argumentos.

h) É verdadeiramente surpreendente que, após uma concepção tão elevada, pura e profundamente
filosófica da Divindade, Aristóteles faça de Deus um ser solitário, sem relação de providência e sem
causalidade eficiente em relação ao governo do mundo. No entanto, é isso que acontece. Nosso filósofo,
que reconhece e afirma Deus como ser inteligente e perfeitíssimo, e como causa primeira do mundo, vida
perpétua e princípio eterno e infinito do movimento, nega a Providência divina, ou seja, a intervenção de
Deus no governo do mundo e dos seres que o compõem. O filósofo grego acredita que o conhecimento do

159
“Caeterum – escreve – vita quomque profecto inexistit (in Deo); siquidem intellectus operatio vita est; ille vero est actus, actus
vero per se illius vita optima et perpetua est. Dicimus itaque Deum, sempiternum, optimumque vivens esse. Quare vita et aevum
continuum et aeternum Deo inest, hoc enim est Deus.” Metafísica. lib. XII, capítulo VII. 1072b
160
Para se convencer disso, basta ler o seguinte trecho, no qual, ao refutar a teoria platônica das idéias, ele rejeita de passagem e
zomba de certa forma dos defensores do antropomorfismo: “Idealem namque hominem, et idealem equum, et sanitatem ajunt,
simile quid illis facientes, qui dicunt quidem esse Deos, sed formae similis hominibus; nec enim isti aliud faciebant nisi homines
sempiternos.” Metafísica., lib. III, cap. III. 998b
161
Comentando Santo Tomás este texto de Aristóteles, escreve, entre outras coisas, o seguinte: “Ex hoc igitur principio, quod est
primum movens sicut finis, dependet caelum, et quantum ad perpetuitatem substantiae suae, et quantum ad perpetuitatem sui
motus; et per consequens dependet a tali principio tota natura, eo quod omnia naturalia dependent a caelo, et a tali motu eius.”
Sententia Metaphysicae, lib. 12 l. 7 n. 16
162
Aqui está este notável trecho, que merece ser conhecido, não apenas pelo conteúdo ou doutrina que contém, mas também como
uma amostra do estilo elegante e animado que o discípulo de Platão sabia usar em algumas ocasiões: “Se pessoas houvesse – disse
Aristóteles – que sempre vivessem debaixo da terra, em casas boas e ilustres, decoradas com sinais e pinturas, e equipadas com
todas as coisas com as quais aqueles que são considerados felizes são abençoados, mas nunca saíssem acima da terra, e ouvissem
apenas rumores e histórias sobre a existência de uma divindade e do poder dos deuses. Então, depois de algum tempo, se as fendas
da terra fossem abertas e eles pudessem sair desses lugares escondidos para os lugares onde vivemos, e de repente vissem a terra e
o mar, e conhecessem a grandeza das nuvens e a força dos ventos, e vissem o sol e sua grandeza, beleza e eficácia em iluminar
todo o céu com luz difusa durante o dia, e quando a noite escurecesse a terra, vissem todo o céu cheio de estrelas e a lua com sua
variedade de luz, tanto crescente quanto minguante, e o nascer e o pôr de todos eles, e seus cursos eternos e imutáveis: quando
vissem tudo isso, certamente acreditariam que existem deuses e que todas essas grandes obras são feitas pelos deuses”. (“Si essent
inquit [Aristoteles], qui sub terra semper habitavissent, bonis et illustribus domiciliis, quae essent ornata signis atque picturis,
instructaque rebus iis omnibus, quibus abundant hi qui beati putantur, nec tamen exissent unquam supra terram, accepissent autem
fama et auditione esse quoddam numen et vim Deorum. Deinde, aliquo tempore, patefactis terrae faucibus, ex illis abditis sedibus
evadere in haec loca quae nos incolimus atque exire potuissent; cum repente terram et maria, coelumque vidissent, nubium
magnitudinem ventorumque vim cognovissent, adspexissentque solem ejusque tum magnitudinem pulchritudinemque, tum etiam
efficientiam cognovissent quod is diem efficeret, toto coelo luce diffusa; cum autem terras nox opacasset, tum totum coelum
cernerent astris distinctum et ornatum, lunaeque luminum varietatem tum crescentis tum senescentis, eorumque omnium ortus et
occasus, atque in omnis aeternitate ratos immutabilesque cursus: haec cum viderent, profecto et esse Deos, et haec tanta opera
Deorum esse arbitrarentur.”) Apud Cicer., De nat. Deorum, lib. II, 37.
142
mundo e de suas partes é incompatível com a pureza e elevação da inteligência divina, cujo único objeto
deve ser a substância, a essência puríssima e atualíssima de Deus.

i) Deus não é apenas o Primeiro Princípio e a Causa Primeira eficiente das substâncias sublunares e de
suas gerações e corrupções substanciais, mas também dos corpos celestes, que não estão sujeitos a geração
ou corrupção. O movimento das esferas celestes e dos astros é circular, e devido à ação imediata de certas
substâncias imateriais e inteligentes (intellectus, intelligentia), muito análogas aos Anjos da Teologia cristã,
que são motores dos astros, mas não formas substanciais dos mesmos.

“Encalhados” na idolatria
(Revista, n. 65, p. 14-15)
Inúmeras almas “encalham” na vida espiritual, em qualquer estágio dela, às vezes de um modo completo, e até
aparentemente irremediável. O mais prodigioso exemplo de encalhe espiritual verificou-se com a idolatria nos
povos antigos. O célebre pregador francês Bossuet, ao se referir à situação do mundo naquele período, invectiva
a crença idólatra como um defeito grosseiro e um erro evidente praticado por aquelas populações. Os antigos
estavam profundamente aferrados a esse erro, não obstante possuírem muitos deles uma inteligência privilegiada,
como os gregos e os romanos.
Não que a razão humana não fosse bastante forte para perceber o erro da idolatria. Prova-o as diversas vozes
discordantes dela, entre as quais Sócrates, Aristóteles e Platão. Contudo, esses três homens, dos mais inteligentes
de todos os tempos, falando para um povo também dos mais sábios do mundo, renunciaram a abolir esse mal, por
considerar que o povo estava “encalhado” na idolatria.
Isso é o que notamos no encalhe da vida espiritual: há todas as possibilidades para se ver o erro em que se
caiu, mas as pessoas estão arraigadas no apego a ele. Não existem argumentos nem recursos que obtenham
resultados, por causa de um ponto “encalhado”.
Em contrapartida, o cristianismo é o exemplo do maior desencalhe da História. Depois da vinda de Nosso
Senhor, homens menos inteligentes, dirigindo-se a povos por vezes menos favorecidos no tocante à inteligência,
lograram vencer com facilidade a idolatria. De modo repentino, porque entrou um fator novo diferente de todos
os anteriores, eles “desencalharam”.
Temos então, na idolatria e no cristianismo, casos coletivos de encalhe e desencalhe.

j) Embora o mundo seja eterno ou infinito em termos de duração, não o é em termos de extensão ou
magnitude; o espaço é finito e fora do mundo não há nem vazio nem cheio. A figura do Universo, assim
como a da Terra, é esférica. Os céus e os astros estão sujeitos apenas ao movimento local, ou seja, a mudança
secundum locum; enquanto os corpos sublunares experimentam, além desse movimento local, a geração e
a corrupção, ou seja, a passagem do não-ser para o ser e vice-versa, e no âmbito substancial, a alteração,
que é a passagem de um acidente para outro, ou da falta de uma forma acidental para sua aquisição, ou
vice-versa.

k) A terra, a água, o ar e o fogo são os quatro elementos que constituem a massa geral dos corpos
sublunares, cuja diferença de forças e propriedades reside no predomínio relativo de um ou outro desses
elementos. Mas não se entenda que esses elementos conservam sua própria essência ao fazerem parte dos
corpos mistos, como pretendem os atomistas (Leucipo, Demócrito), mas, pelo contrário, ao ocorrer a
geração substancial do corpo A, os quatro elementos mencionados perdem sua própria forma substancial e
recebem a forma específica daquele corpo, pela qual são atuados e informados.

143
§ 75 Ética e Política de Aristóteles

A) O homem é capaz de moralidade porque e na medida em que é dotado de liberdade e razão. Ao


contrário dos animais, que agem propter finem de maneira instintiva e inconsciente, o homem conhece,
delibera e age propter finem de maneira consciente e reflexiva. O fim ou bem que o homem se propõe a
alcançar por meio de sua ação é o primeiro motor e a primeira causa dessa ação, embora sua realização real
e efetiva seja posterior às outras causas: primum in intentione, est ultimum in executione.
Não sendo possível proceder in infinitum no número e ordem dos bens que servem como fim para nossas
ações deliberadas, é preciso que haja algo que seja considerado como o fim último e o bem supremo
alcançável por meio dessas ações e, portanto, como a última perfeição do indivíduo.
Para o homem, esta perfeição consiste na prática mais perfeita das faculdades que são próprias do
homem como ser racional e, portanto, na prática da virtude, e acima de tudo na contemplação da verdade,
a operação mais sublime e como a parte mais divina (eorum, quae sunt in nobis divinissimum) que há no
homem. Assim, a última perfeição do homem e sua felicidade na vida presente consistem na operação
própria da razão, como a coisa mais divina no homem, e a vida que emana dessa operação é vida divina em
relação à vida humana163. Riquezas, honras, saúde e demais bens da vida não constituem a felicidade e
perfeição do homem; mas podem contribuir para ela e são necessários para essa felicidade, na medida em
que podem facilitar a posse da virtude e a contemplação perfeita da verdade.
É certo que Aristóteles parece se concentrar na vida presente ao expor a teoria sobre a felicidade como
o fim último do homem; mas se reconhece facilmente que sua teoria é igualmente aplicável à felicidade do
homem na vida futura, na hipótese da imortalidade da alma e, acima de tudo, dada a concepção elevada e
sublime que ele havia formado de Deus. Pois é claro que, uma vez admitida a imortalidade da alma, sua
felicidade após a morte deve consistir no conhecimento perfeito e na contemplação intelectual de Deus, que
é infinito em sua essência e atributos. A aplicação dessa teoria à felicidade do homem após a morte não é
apenas uma exigência lógica, mas também é indicada, se não explicitamente declarada, em alguns trechos
de suas obras164.
Sócrates e Platão haviam ensinado que a virtude consiste na assimilação com Deus. Aristóteles, sem
negar isso, antes pelo contrário, assumindo-o, define e determina de maneira mais filosófica o conceito de
virtude moral, chamando-a de um hábito que inclina o homem a agir de acordo com a razão correta,
rejeitando ao mesmo tempo a opinião de Sócrates, que confundia a virtude com a sabedoria; pois as ciências
residem e aperfeiçoam a parte intelectual do homem, enquanto as virtudes residem na parte afetiva e
aperfeiçoam suas operações. Até a prudência, que reside na compreensão, é uma virtude na medida em que
facilita e dirige as ações humanas do ponto de vista da moralidade. A justiça reside na vontade,
determinando sua operação correta em relação ao seu objeto próprio, que é dar a cada um o que é seu. A
temperança e a coragem corrigem e moderam as paixões da parte afetiva sensível, fazendo com que suas
manifestações estejam subordinadas à razão, a norma imediata da moralidade.

163
“Talis autem vita superat hominis naturam; non enim hoc ipso quo homo est, ita vivet; sed quo est quid in ipso divinuum... Quod
si mens divinum ad ipsum hominem est, et vita quae ab hac manat, divina est respectu ipsius vitae humanae.” Ética., lib. X, cap.
VII. 1177a.
164
Merecem citar-se, entre outros, os seguintes: “Oportet autem, non quemadmodum monent quidam, humana nos sapere sum
simus homines, aut mortalia cum simus mortales, sed quoad fieri potest, immortales nos ipsos facere, cunctaque efficere, ut ea vita
vivamus, quae ab eo manat, quod est eorum, quae nobis insunt praestabilissimum.” Ética. lib. X, cap. VII. 1177b
“Quosque igitur contemplatio sese extendit, eousque sese extendit et felicitas ipsa; et quibus contemplatio magis inest, iis et felicitas
magis inest, non per accidens quidem, sed per ipsam utique contemplationem. At vero, qui mente operatur et eam colit, disponitur
optime, is et amicissimus diis immortalibus esse videtur. Quare sapiens hoc quoque modo, maxime fuerit felix.” Ibid., cap. VIII.
1178a.
O florentino Acaiajuoli (Niccolò Acciaiuoli – 1310-1365), um dos comentadores mais sensatos de Aristóteles, deduz desta última
passagem que o Filósofo fazia consistir a felicidade suprema do homem na união com Deus, seu Autor supremo, por meio da
contemplação intelectual: “Concluditur autem quod ultiman, et supremam felicitatem humanam collocavit philosophus Aristoteles
in operatione secundum sapientiam, qua virum sapientem conjungi cum causa sua quoquo modo velle videtur, id est, cum Summo
Deo, auctore suo, ut ei per contemplationem eo pacto... per quamdam amicitiam, si dicere licet, ei conjungatur, quoad fieri potest...
Etiam indicare videtur Metaphys., XII, nostram felicitatem humanam consistere in contemplatione substantiarum separatarum, et
praecipue et maxime ipsius Dei.”
144
A virtude moral, segundo Aristóteles, é um hábito ou facilidade adquirida pela repetição de atos para
escolher e executar o bem honesto, consistindo no meio que se afasta dos extremos viciosos, sendo próprio
da razão, informada e aperfeiçoada pela prudência, conhecer e fixar o meio em que consiste a virtude,
servindo como princípio e norma geral para reconhecer e preestabelecer a natureza e condições da ação
moralmente boa ou virtuosa. Isso e nada mais é o que o Filósofo de Estagira quer significar quando escreve
que a virtude est habitus electivus in mediocritate consistens, quae quidem mediocritas ratione praefinita
sit, atque ita ut prudens praefiniret.
Das três partes que abrangem a alma As Virtudes Cardeais
Aristóteles, Ética a Nicômaco
humana – (1ª) vegetativa, (2ª) sensitiva e (3ª)
racional –, esta última é o sujeito per se, Virtude [ἀρετή – areté], então, é uma disposição adquirida
conatural e próprio da virtude moral, e em voluntariamente, que consiste em um meio termo relativo a
suas potências específicas residem as nós, determinado pela razão e pelo discernimento, pelo qual
principais delas, que são a prudência e a um homem prudente determinaria. Esse meio termo é uma
justiça. Embora de maneira secundária e disposição escolhida, que está em um meio relativo a nós, e é
indireta, a (2ª) segunda é capaz de virtude determinado pela razão e pelo discernimento, como o homem
moral por parte de algumas de suas prudente o determinaria. (Ética. l. II, c. 6. 1106b)
Prudência [Σοφία ou, mais comumente, Φρόνησις –
faculdades ou potências, como o apetite
phronesis] é uma virtude intelectual que permite a uma pessoa
concupiscível e o irascível, porque embora discernir o que é bom e o que é mau em situações particulares
irracionais em si mesmos, participam de e agir de acordo com essa compreensão. (Ética. l. VI c. 5. 1140a)
certa forma e até certo grau da razão A Justiça [Δικαιοσύνη – dikaiosyne] consiste em dar a cada
(concupiscibilis autem particeps rationis um o que lhe é devido. (Ética. l. V c. 4. 1131b)
quodammodo est, quatenus ipsi obedit, Fortaleza [Ἀνδρεία – Andréia] é a coragem diante do medo.
imperioque ejus obtemperat), à qual estão (Ética. l. III c. 6 1117b)
subordinados e obedecem com maior ou Temperança [Σωφροσύνη – sophrosyne] é a moderação no
menor perfeição. A (1ª) parte vegetativa da prazer. (Ética. l. III c. 10. 1107b)
alma é incapaz de virtude moral, porque não inteligência prudência
participa de forma alguma da razão (nam racional
vegetalis nullo modo cum ratione vontade justiça
homem
communicat), à qual não obedece nem está irascível fortaleza
sujeita em suas potências e atos. animal
concupiscível temperança
E observe-se aqui que, qualquer que seja
a opinião que se atribua ou suponha em
Aristóteles sobre a felicidade última, perfeita e ultra-terrena do homem, é indubitável que este Filósofo faz
consistir a felicidade da vida presente na prática da virtude, nas ações da alma provenientes da perfeita
virtude moral: Felicitas animae per virtutem perfectam operatio quaedam est.

B) A teoria político-social de Aristóteles começa afirmando que o homem está destinado pela própria
natureza a viver em sociedade, não apenas porque a sociabilidade é uma inclinação e até um atributo da
natureza humana, mas também por causa das grandes vantagens que o homem obtém da sociedade, tanto
no âmbito intelectual quanto no moral, econômico e físico. A sociedade não pode subsistir sem um poder
público e sem leis. O poder público e seus depositários são comparados à sociedade como a alma ao corpo
e como a razão às faculdades inferiores. A lei é, ou natural, ou puramente humana. Esta última, ou seja, o
direito legal, determina e prescreve o que é indiferente em si mesmo ou originariamente; mas deixa de ser
assim para o cidadão, uma vez promulgada a lei, como as leis relativas aos pesos e medidas. A lei ou direito
natural obriga sempre e em todos os lugares, mesmo quando não está escrita ou sancionada pelo legislador
humano.
O governo (i) régio, (ii) aristocrático e (iii) democrático são três formas de governo boas em si mesmas,
desde que não degenerem em (i) tirania o primeiro, em (ii) oligarquia o segundo e o (iii) terceiro em
demagogia. A condição fundamental de sua bondade e legitimidade é que procurem e realizem o bem
comum, e não o particular dos governantes. Em princípio, e como ponto geral, o governo de um é preferível

145
ao de muitos; mas concretamente, deve-se atender ao estado, hábitos, caráter e condição social de cada
povo, para determinar a forma de governo que mais lhe convém.
Isso porque Aristóteles – que se destaca por seu senso de realidade, especialmente em questões político-
sociais – ensina e afirma que, quando se trata de estabelecer ou organizar o regime político de uma
sociedade, não se deve considerar o que é
melhor em si mesmo e em princípio, mas sim O Animal Político
o que é possível (non solum respublica quae Aristóteles, Política
optima sit considerari debet, sed etiam quae
constitui possit 1288b), sem perder de vista ao O homem é por natureza um animal político [πολιτικὸν
ζῷον]. (Política. l. I c. 2. 1253a)
mesmo tempo as condições que podem
influenciar para tornar mais fácil e aceitável [i] Monarquia [Μοναρχία] é o governo de um só homem,
para a maioria dos cidadãos esta ou aquela cujo poder é absoluto e ilimitado. (Política. l. III c. 7. 1284a)
[ii] Aristocracia [Ἀριστοκρατία] é o governo dos melhores,
forma de governo: Praeterea, quae facilior et
em que os governantes são escolhidos com base em sua
cunctis civibus communior habeatur. virtude e excelência. (Política. l. III c. 7. 1284b)
Em todo caso, e qualquer que seja a forma [iii] Democracia [Δημοκρατία] é o governo da maioria, em
política de governo adotada, deve-se prestar que a vontade da maioria é soberana e a minoria é
subordinada. (Política. l. III c. 6 1279b)
atenção principalmente em evitar a tirania, e
quem quer que seja o depositário do poder, A [i] monarquia bem constituída é, por natureza, a melhor
deve agir como um verdadeiro rei e pai de das formas de governo, e a monarquia mal constituída é a pior
família, e não como um tirano; deve de todas, pois o monarca é o mais autocrático de todos os
governantes. (Política. l III c. 7. 1278b)
administrar e governar como procurador do
bem comum, e não como dono absoluto de bens e pessoas165, vivendo com moderação em tudo.
O objetivo do governante e legislador deve ser, antes de tudo, tornar os cidadãos virtuosos (propositum
enim ejus est ut cives bonos legibusque obtemperantes efficiat). O Estado deve realizar a justiça na
sociedade (jus ordinatio est civilis societatis), e assim a justiça é de certa forma a virtude específica e
característica da comunidade político-social. Nada é mais detestável e prejudicial do que a injustiça
acompanhada de poder (saevissima est enim injustitia tenens arma), seja no poder público ou no poder
privado. O estado social, que é inerente ao homem, eleva e aperfeiçoa-o quando o Estado realiza e aplica a
justiça 166 ; mas fora dessas condições, quando o homem não está sujeito à lei e ao julgamento como
derivação e aplicação da justiça, o homem se torna o pior de todos os animais (pessimum est omnium
animalium).
Entre as excelentes máximas de conduta que Aristóteles propõe e inculca aos governantes, merece
especial menção aquela que se refere à ambição de dominar por meio de guerras e conquistas. O discípulo
de Platão, sem negar a conveniência e até a necessidade de estar preparado para a guerra, e sem negar a
legitimidade desta e sua utilidade em alguns casos, adverte e afirma que o legislador, o político e o
governante não devem propor isso como um fim próprio, nem mesmo como o fim principal ou preferencial
do Estado; que é absurdo e contrário ao próprio Estado empreender guerras e conquistas quando elas não
são legítimas e justas, e que erram grandemente aqueles que fazem consistir a arte política em dominar os
outros, sem reparar na justiça ou injustiça de tal dominação167, não se envergonhando de fazer contra os
outros o que não querem que lhes seja feito.

165
“Huc enim sunt omnia reducenda, ut iis qui sub imperio sunt, non tyrannum, sed patrem familias aut regem agere videatur, et
rem non quasi dominus, sed quasi procurator et praefectus administrare ac moderate vivere, nec quod nimium est sectari.” Política.
l. V c. XI. 1311a.
166
“Natura igitur omnibus ad hujusmodi societatem est appetitus. Qui autem primus instituit, maximorum bonorum causa fuit, ut
enim perfectione suscepta, optimum cunctorum animalium est homo, ita si alienus fiat a lege et a judiciis, pessimum est omnium
animalium. Itaque impiissimum et immanissimum est sine virtute… justitia vero civile quiddam est, nam jus ordinatio est civilis
societatis; judicatio autem justi judicium.” Política. l. I, c. II. 1253a.
167
O trecho em que Aristóteles expõe essas idéias é digno de ser lido, não apenas pela verdade, precisão e elevação das idéias que
contém, mas também pela energia e vivacidade com que as expressa: “Videretur nimis absurdum esse, si quis considerare velit, an
hoc propositum esse debeat ejus qui legibus instituit civitatem, providere, scilicet, ut illa dominetur finitimis, et volentibus, et
invitis. Quomodo enim id civile, aut lege, sanciendum quod nec legitimum quidem est? neque enim legitimum, non solum juste,
verum etiam injuste dominari. Sed plerique videntur existimare civilem disciplinam esse dominari, et quod in seipsos fieri nollent,
hoc in alios facere non erubescunt: ipsi pro se justitiam quaerunt, pro aliis vero nulla eis justitiae cura est... Patet igitur quod rei
bellicae studia bona sunt existimanda, sed non ut finis supremus, sed gratia illius.” Política., l. VII, c. II. 1326a.
146
Ao examinar seus tratados ou livros políticos, é evidente que Aristóteles possuía um forte senso de
justiça e sua necessidade para a constituição e preservação dos Estados ou sociedades políticas. Quando
essas sociedades perecem e se dissolvem, é principalmente devido à violação da justiça.
A propriedade e a família são duas
“Os dez mandamentos, que resumem a Lei de Deus,
exprimem o que é moralmente necessário, e, por isso,
condições e elementos essenciais da
indicam-nos o que é preciso fazer ou evitar. Os mandamentos sociedade; a comunidade de bens e mulheres é
são também preceitos fundamentais gravados por Deus na absurda, imoral e incompatível com a boa
consciência de todo homem” (Catecismo da Igreja Católica, ordem e até mesmo com a existência da
2070).
A propriedade privada é assegurada por dois sociedade. No entanto, o Estado tem o direito
Mandamentos da Lei de Deus – “Não roubarás” e “Não e o dever de proibir os pais de manterem filhos
cobiçarás as coisas alheias” – e a família, por três – “Honrar que nascem com deficiências e também de
pai e mãe”, “Não pecar contra a castidade” e “Não cobiçar a
terem mais filhos do que os permitidos por lei.
mulher do próximo”. Não é de se estranhar, pois, que
encontremos no Filósofo estes elementos essenciais da No entanto, o sistema de educação
sociedade. Deve-se acrescentar que, para o Estagirita, além da proposto por Aristóteles para crianças e jovens
família e da propriedade, não se pode constituir uma é muito mais moral e rígido do que o de Platão.
sociedade sem a tradição:
A tradição [παράδοσις] é uma fonte de sabedoria e Entre outras coisas, ele ordena e adverte que
conhecimento, pois os antepassados acumularam se deve evitar com todo cuidado que vejam ou
experiência ao longo do tempo e transmitiram esse ouçam algo desonroso, proibindo, para esse
conhecimento para as gerações futuras. Por isso, devemos fim, estátuas e pinturas menos decentes nas
respeitar a tradição e aprender com ela. (Ética. l. I c. 2.
1094b) ruas e praças, e também não permitindo que
A tradição é “a fonte da lei” (Política. l. III, c. 1. 1253a); “é
assistam a comédias e outras representações
uma espécie de memória coletiva que preserva a sabedoria e a teatrais.
experiência dos nossos antepassados” (Ética. l. II, c. 1. 1103a); Além disso, o pai de família (o
“é uma forma de educação que nos ensina a viver de acordo οἰκοδεσπότης ou paterfamilias) tem o direito
com os valores e costumes da nossa comunidade” (Política. l.
II, c. 1, 1260a); “é uma fonte de autoridade que nos ajuda a de mandar em sua esposa e filhos, mas não
resolver conflitos e a tomar decisões justas” (Retórica, l. I, c. como escravos, e sim como pessoas livres, e,
15. 1375b); “é uma parte essencial da cultura de um povo e portanto, com certas restrições, que
deve ser preservada para garantir a continuidade da sua desaparecem quase completamente em relação
identidade” (Política, l. VIII, c. 4, 1337a).
aos escravos. Pois o Filósofo de Estagira,
assim como seus antecessores, considera os escravos como seres naturalmente inferiores, e a escravidão
como uma instituição fundada na própria natureza, fazendo do escravo uma espécie de ser intermediário
entre o animal e o homem livre. No entanto, a doutrina de Aristóteles em relação ao tratamento e conduta
com os escravos é mais racional e humanitária do que a de Platão; pois ensina que é conveniente e justo
fixar um limite para a escravidão, oferecendo e concedendo a liberdade ao escravo em um prazo
determinado.
Deve-se observar também que quando Aristóteles diz que alguns homens são naturalmente escravos,
isso não deve ser entendido no sentido de que a própria natureza, ou a lei natural, os faça assim, mas sim
no sentido de que, assim como há homens dotados de engenho e disposições felizes para a virtude, o
conhecimento e o comando, há outros com os quais a natureza não foi tão benevolente, que possuem uma
alma naturalmente servil, inclinações baixas e certo grau de estupidez nativa, de tudo o que resulta que
nesta classe de homens a escravidão e a sujeição são como conaturais. Quem ler com reflexão os trechos
do Estagirita que se referem a este assunto, facilmente se convencerá de que este é o sentido em que ensina
que a escravidão é natural para certos homens, pelo menos na maior parte dos trechos aludidos, embora
devamos confessar que alguns deles não se compadecem facilmente à primeira vista com esta interpretação.

147
§ 76 Crítica

Quando se trata de formar um julgamento crítico sobre a Filosofia de Aristóteles, considerada em


conjunto e em suas linhas gerais, o primeiro pensamento que vem à mente é comparar sua doutrina com a
de seu mestre Platão, estabelecendo uma espécie de paralelo entre os dois grandes filósofos da Grécia, para
fixar a missão respectiva de cada um no terreno histórico-filosófico.
Já vimos que Platão, além de cultivar e desenvolver o elemento ético-teológico que havia herdado de
Sócrates, completou esse elemento socrático ligando-o à dialética e a uma psicologia e física mais ou menos
incompletas, e sobretudo criando de certa forma a metafísica, parte fundamental e essencial das ciências
filosóficas. Aristóteles fez mais do que isso. Aristóteles, depois de cultivar e desenvolver, como Platão, o
elemento ético-teológico, ou seja, o pensamento socrático em toda a sua amplitude, e depois de criar
também uma metafísica, rival digna da de Platão, deu vida, ser e organismo científico à psicologia, física,
astronomia e história natural, com seus livros De Anima, Physicorum, De Coelo, De Generatione, De
Historia Animalium, e com outros vários que tratam desses assuntos. Mas acima de tudo, Aristóteles criou
a lógica com seu Organon, levando-a à sua última perfeição de uma só vez, sem contar seus trabalhos e
escritos sobre retórica, poética e gramática geral. Dele, como de Leibnitz em tempos posteriores, poder-se-
ia dizer que conduzia de frente todas as ciências.
As diferenças entre Platão e Aristóteles em relação ao método e às tendências gerais da doutrina são
igualmente notáveis e profundas. O (a) diálogo e as (b) especulações a priori são, respectivamente, o (a)
método externo e (b) interno de Platão, enquanto o (a’) raciocínio lógico, a indução e a observação são o
(a’) método aristotélico. O (c) idealismo168 é o caráter dominante da doutrina platônica, enquanto o (c’)
realismo concreto é o caráter dominante da doutrina de Aristóteles. (d) Platão gosta de extrair, por assim
dizer, de si mesmo e de sua razão, sistemas, idéias, teorias utópicas e até mesmo objetos da ciência,
enquanto (d’) Aristóteles busca na realidade externa o objeto da ciência, a base dos sistemas filosóficos e a
razão suficiente das teorias científicas. O (e) ponto de vista de Platão é mais elevado, mais indefinido e
abrange horizontes mais vastos, mas, por isso mesmo, (f) seu pensamento é mais vago, mais obscuro e mais
flutuante. O (e’) ponto de vista de Aristóteles, embora não seja tão elevado e não abranja horizontes tão
vastos quanto o de Platão, é mais filosófico, mais real e prático, mais objetivo e (f’) seu pensamento é mais
preciso, mais conforme à realidade e mais científico. Platão (g) concebe, contempla e cria os objetos do
pensamento, enquanto (g’) Aristóteles observa, classifica e raciocina sobre os objetos do pensamento.
Platão (h) se move e se agita na região altíssima e misteriosa do ideal, enquanto Aristóteles (h’) caminha
com passo seguro pelo caminho da realidade e sempre se move na região das existências e dos fatos. Os
sentidos e a experiência, que, segundo Platão, (i) não significam nada na ordem científica e são elementos,
se não prejudiciais, estranhos à ciência, são, pelo contrário, (i’) elementos muito importantes e
indispensáveis, segundo Aristóteles, em relação à origem e constituição das ciências. Em resumo, em Platão
(j) há mais elevação intuitiva, mais originalidade utópica, mais gênio criador e mais espontaneidade de
imaginação, enquanto em Aristóteles (j’) há mais segurança de julgamento, mais profundidade de engenho,
mais conhecimento da realidade e, acima de tudo, mais ciência e mais verdade.
Ao nos concentrarmos em Aristóteles, vimos que sua teoria do conhecimento está longe de merecer o
epíteto de sensualista que alguns filósofos e historiadores da Filosofia lhe atribuem. Para dissipar essa idéia
tão imprecisa, quisemos citar e apresentar textos, contra nossa costumeira exposição, e, ao prestar atenção
neles, reconhece-se facilmente que a teoria aristotélica sobre o conhecimento pouco ou nada tem em comum
com as teorias sensualistas, embora haja lacunas e pontos obscuros e duvidosos. O mesmo pode ser dito em
relação à sua psicologia: a união da alma com o corpo sob razão de forma substancial exclui o estreito
dualismo platônico, assim como suas utopias sobre preexistência e metempsicose; enquanto a teoria
aristotélica sobre o intelecto agente destrona as idéias inatas e a reminiscência platônicas, fechando ao
mesmo tempo a porta para as teorias do sensismo e do materialismo.

168
Entenda-se o “idealismo sui generis” (cf. § 69), que caracteriza o hiper-realismo platônico, em que as idéias não são só entes
reais, mas hiper-reais, existentes no hiper-urânio. Não há correspondência do “idealismo” platônico com o “idealismo” moderno.
[N.T.]
148
Assim como (k) a teoria das idéias ou das formas é a chave, o ponto central e o centro da Filosofia de
Platão, a teoria da (k’) matéria prima e da forma substancial é a chave, o ponto culminante e o centro da
Filosofia de Aristóteles. E essa teoria leva o filósofo estagirita a vislumbrar a grande idéia da criação, e por
meio dela evita, em todo caso, o escolho do dualismo absoluto de Platão na ordem cosmológica, dualismo
incompatível com a edução da forma substancial da potencialidade da matéria por meio do agente ou causa
eficiente, sobretudo quando se trata de uma causalidade infinita, como é a de Deus, em conceito de
Aristóteles.
No que diz respeito ao problema teológico, pode-se dizer que Aristóteles, embora não fale de Deus com
tanta frequência como Platão, possui uma idéia mais precisa e concreta, uma concepção verdadeiramente
metafísica e filosófica de Deus e de seus atributos. Até mesmo na parte errônea que inclui essa concepção,
que é a negação da providência em relação a uma parte do mundo, descobre-se certo fundo de verdade e de
elevação filosófica; porque há certo fundo de verdade e como uma aspiração teológica em afirmar que o
único objeto digno da inteligência divina é sua própria substância, seu ser infinito, seu próprio pensamento
(seipsam ergo intelligit, et est intellectio intellectionis), seu ato mais puro. Apenas faltou a Aristóteles a
iluminação cristã, que ensina a conciliar a elevação, pureza e simplicidade do pensamento divino com a
extensão e universalidade de seu objeto. Por outro lado, a negação ou dúvidas de Aristóteles em relação à
providência não se estendem à humanidade, objeto principal da providência divina, uma vez que em alguns
lugares de suas obras 169 reconhece a existência e manifestações da providência divina em relação aos
homens.
A teoria político-social de Aristóteles é a antítese direta da teoria de Rousseau e do socialismo
contemporâneo, e também é em grande parte da teoria platônica, cujas tendências utópicas ele exclui. A
sociedade, ou seja, o estado social, longe de se opor à natureza e longe de ser a origem dos males para o
homem, é, pelo contrário, conatural a este, e origem e condição necessária de bem-estar e perfeição em
todas as esferas da vida humana. O organismo social proposto por Platão, e sobretudo sua doutrina acerca
da comunidade de bens, de mulheres e de filhos, são coisas, não apenas utópicas, mas essencialmente
imorais e contrárias à ordem e existência mesma da sociedade. Já foi indicado também que o pensamento
de Aristóteles com relação à escravidão, embora ainda errôneo e irracional, é mais humanitário em suas
aplicações do que o pensamento dos outros
A Virtude da Continência
filósofos, seus predecessores e Aristóteles, Ética
contemporâneos.
O mesmo pode ser dito em relação à A continência é uma virtude, pois é uma disposição
existência e educação dos filhos; pois as voluntária que escolhe o meio-termo em relação aos
idéias de Aristóteles sobre este assunto, prazeres e dores (Ética. l. III c. 10. 1117b).
embora não sejam o que deveriam ser, não A continência é uma virtude que se aplica aos prazeres
sendo ajustadas à razão correta e menos ainda e dores do corpo, e consiste em resistir aos prazeres
à consciência cristã, são menos irracionais e excessivos e às dores excessivas (Ética. l. VII c. 1. 1145a).
repulsivas do que as de Platão e seus O continente é capaz de resistir aos prazeres, mas não
contemporâneos. O sistema de educação os deseja, enquanto o incontinente os deseja, mas não é
proposto por Aristóteles é mais prático e capaz de resistir a eles (Ética. l. VII c. 3. 1147a).
moral do que o deles, e no que diz respeito à A continência é uma virtude difícil de alcançar, pois
exige que a pessoa controle seus desejos e impulsos
multiplicação dos filhos e sua exposição e
sexuais, que são muito fortes (Ética. l. VII c. 5. 1148b).
abandono em certos casos, embora incorra
A continência é uma virtude que se opõe à
em aberrações análogas às de seus
incontinência, que é a falta de controle sobre os desejos
antecessores e contemporâneos, ainda assim
sexuais. A pessoa continente é capaz de resistir aos
procede aqui com certas reservas e prazeres sexuais, enquanto a pessoa incontinente não é
limitações, que revelam em seu autor um (Ética. l. VII c. 6. 1149a).
senso moral mais correto e seguro. Assim,

169
Veja-se, entre outros trechos, o que ele escreve na Ética a Nicômaco: “rerum, ut existimatur, aliquam habent, rationi sane
consentaneum fuerit ipsos eo gaudere quod est optimam, maximeque sibi cognatum et in eos qui maxime hoc amant (mentem) et
honorant, beneficia vicissim conferre, tamquam curam iis quae sibi sunt chara, ac diligentiam adhibentes, in recte beneque agent.”
l. X, c. VIII. 1179a
149
por exemplo, embora conceda ao Estado a faculdade de fixar o número de filhos que devem ser procriados
para evitar a excessiva multiplicação destes, aconselha que se tomem medidas oportunas para conseguir
isso antes que ocorra a concepção, porque é ilícito atentar contra o feto animado ou que já tem vida:
antevenire oportet ut non concipiantur, nam postquam concepti sunt, et sensum aut vitam acceperint, nefas
est attingere eos. (Política. l. VII c. 16. 1335a)
A grande obra do discípulo de Platão, além de sua teoria sobre a geração substancial, é a lógica, que lhe
deve, se não sua origem, pelo menos sua cientificidade, seu desenvolvimento e sua perfeição; porque a
verdade é que o Organon de Aristóteles contém a exposição analítica mais completa e acabada das leis do
pensamento humano. A dialética de Platão, a de Sócrates e a dos eleatas, se convertem e transformam com
o Organon na ciência do pensamento e da investigação da verdade. O mesmo deve ser dito de Zenão, a
quem alguns chamam sem razão “fundador e criador da lógica”. A lógica rudimentar do eleata é a lógica
puramente dialética e disputadora; não é a lógica científica que ensina a buscar a verdade por meios e
métodos racionais. A lógica de Zenão – se merece tal nome seu ensaio dialético – é a arte de disputar, é a
que ensina a combater e demolir, sem edificar nada: a lógica de Aristóteles é a arte que ensina o modo de
investigar a verdade e levantar o edifício da ciência; é a que ensina a pensar e discorrer corretamente para
chegar ao descobrimento da realidade, para entrar em posse da verdade de uma maneira reflexa e realmente
científica. Se Zenão de Eléia, os sofistas, Sócrates, e o próprio Platão, haviam feito uso da dialética e haviam
empregado a demonstração e o silogismo, fizeram-no sem se dar conta da natureza íntima e das condições
científicas da demonstração. Aristóteles não se limitou a demonstrar e fazer uso de raciocínios evidentes,
segundo haviam feito seus predecessores, mas descobriu e fixou seus preceitos e seu método, demonstrou
a demonstração, se é lícito falar assim, descobrindo e formulando sua teoria, segundo já havia observado
seu comentarista Filopono170 séculos atrás.
Assim, o mundo dos sábios não poupou elogios a Aristóteles por esta grande obra, nem jamais negou o
tributo de sua admiração ao legislador do pensamento. Um defeito se nota no Organon, que é a ausência de
um tratado sobre os universais; mas essa culpa é uma injustiça dos tempos, não de Aristóteles, já que ele
escreveu um tratado Sobre o Gênero e Espécie, segundo Laércio, e realmente faz referência a este escrito
no primeiro livro dos Tópicos. A introdução ou Isagoge de Porfírio torna menos sensível essa perda.
A par dessas excelências e vantagens, a doutrina de Aristóteles sofre de graves defeitos, como indicado.
Tais são a falta de afirmações precisas sobre a imortalidade da alma, a negação da providência divina sobre
todas as partes do universo, as afirmações referentes à eternidade do mundo, à solidez e incorruptibilidade
dos céus, às inteligências ou anjos que movem as esferas171, e às causas que ele aponta para explicar muitos
fenômenos físicos, meteorológicos e astronômicos, explicações que sofrem com o atraso das ciências físicas
e naturais naquela época. Mesmo assim, elas lhe devem muito, por terem sido enriquecidas com novas
observações, e por terem chamado a atenção dos sábios para esses assuntos e para a maneira de tratá-los.
Um defeito grave da Filosofia de Aristóteles é a separação que ele estabelece entre a idéia teológica e a
idéia ética. A idéia de Deus – base metafísica e sanção real e última da ordem moral – mal se deixa ver na
Filosofia ética de Aristóteles, cuja teoria moral oferece um aspecto puramente racionalista e implica uma
sanção quase exclusivamente humana e empírica, que tem grande afinidade com a moral independente de
nossos dias.
Não é fácil encontrar, de fato, entre todos os Filósofos da Antiguidade, uma concepção tão vasta, tão
profunda, tão científica, tão lógica como a concepção ética de Aristóteles. O conceito, a essência e as
propriedades da virtude moral, suas condições essenciais, a divisão ou classificação das virtudes morais
com suas relações mútuas, a liberdade, as paixões, a lei natural e civil, os princípios racionais imediatos da
virtude, bem como suas relações e aplicações à ordem política e à ordem econômica, à família, à
propriedade, à justiça, à educação: todas essas coisas e outras igualmente importantes são investigadas,

170
Eis como se exprime ele na biografia que escreveu de Aristóteles: “Magnam item accessionem fecit ad artem disserendi,
quandoquidem ab ipsis rebus normas praeceptaque secrevit, et demonstrandi rationem cum via instituit. Nam superioris memoriae
Philosophi demonstrare quidem ac evidentibus rationibus uti, sciebant, sed demonstrandi modum ac evidentes probationes
conficere, ignorabant: atque idem ipsis usu veniebat, quod sutoribus, qui coria secare non queunt, calceis autem uti probe queunt.”
Aristotelis vita ex monum. Joan. grammat. Philopo alexandrini. Tom. I de las obras de Aristóteles, edic. De Lyon, 1566.
171
Aqui, obsequiosamente, há-que se discordar do purpurado autor. [N.T.]
150
discutidas e analisadas profundamente nos livros morais e políticos de Aristóteles; mas ao terminar a leitura,
experimenta-se um certo vazio, um certo desconforto vago, porque se percebe que falta ali a idéia de Deus
e da vida futura iluminando, afirmando e dando sanção suprema e metafísica a essa concepção gigantesca,
mas incompleta. A teoria moral de Aristóteles é um belo e grande edifício, mas que carece de coroamento;
é uma estátua de Fídias, à qual falta a cabeça.
Afora isso, a doutrina e os escritos de Aristóteles representam um dos elementos mais fecundos e
universais da cultura intelectual do espírito humano ao longo das épocas históricas, e isso não apenas por
causa de seu valor interno, mas também devido aos muitos livros que deram origem 172 e ocasião, e
principalmente devido aos muitos comentários e discussões que foram objeto.

§ 77 Discípulos e sucessores de Aristóteles

Conta-se que, pouco antes de morrer, perguntaram a Aristóteles qual de seus discípulos considerava
mais digno de o suceder na direção do Liceu. Ele respondeu dizendo que o vinho de Lesbos e o de Rodes
são excelentes, mas o primeiro é mais agradável. Com isso, quis dizer que Eudêmo de Rodes e Teofrasto
de Lesbos eram os mais dignos e capazes de liderar a escola peripatética, mas que entre os dois, Teofrasto
tinha alguma vantagem sobre seu colega de Rodes. Independentemente da veracidade histórica desse fato,
narrado por Aulo Gelio, é certo que

a) Teofrasto (Θεόφραστος) foi o sucessor imediato de Aristóteles. Foi nomeado por Aristóteles devido
à doçura e elegância de sua linguagem, já que seu nome original era Tirtamo. Era natural de Ereso, filho de
Melanto, lavador de panos; fora discípulo de Leucipo e Platão antes de entrar e
permanecer na escola de Aristóteles. Morreu em idade avançada, deixando um número
incrível de obras, como indicado no catálogo de Diógenes Laércio. Infelizmente, a
maioria dessas obras desapareceu e restam apenas fragmentos, alguns tratados de
História Natural e a obra intitulada Caracteres. Teofrasto e seu colega e rival
Eudêmo se dedicaram a interpretar e expor a doutrina de seu mestre,
completando-a em alguns pontos. Eles trataram, entre outras coisas, dos
silogismos hipotéticos, segundo Boécio. Teofrasto seguiu principalmente a
direção científica e empírica do mestre, cultivando as ciências naturais e a
parte de observação nas ciências filosóficas. Eudêmo deu preferência ao
elemento filosófico-teológico, tendendo a harmonizar a doutrina de Aristóteles
com a de Platão, enquanto Teofrasto estabeleceu as premissas e preparou o caminho
para seu discípulo e sucessor na liderança da escola peripatética.

b) Estratão (Στράτων) de Lampsaco, com o qual a doutrina de Aristóteles degenera e se transforma em


um naturalismo, tão favorável ao materialismo quanto contrário à verdadeira doutrina do fundador da escola
peripatética. De fato, Estratão – cognomeado Físico, devido à sua predileção exclusivista pelas ciências
físicas – ensinava que a Natureza não precisa nem pressupõe a existência de uma inteligência, causa
eficiente primitiva e ordenadora do mundo, mas que este deve sua origem, seu governo, seus seres e suas
transformações a forças inerentes e imanentes na natureza. Daí a negação lógica de um Deus transcendente
e a consequente identificação da Divindade e da Natureza173. Em harmonia com esta doutrina, este filósofo
mal reconhecia distinção real e efetiva entre o entendimento e os sentidos.

172
Um dos livros mais curiosos e interessantes já publicados sobre as obras de Aristóteles é aquele escrito no século XVI pelo
monge beneditino espanhol P. Fr. Francisco Ruíz, natural de Valladolid. Este livro contém um índice muito completo da doutrina
de Aristóteles, organizado em ordem alfabética. Este trabalho, que com o modesto título de Índice é um verdadeiro compêndio ou
resumo da doutrina de Aristóteles, é composto por dois volumes em formato menor e foi impresso em 1540. O autor conhecia
profundamente não apenas as obras de Aristóteles, mas também as de seus principais comentadores.
173
“Strato – escreve Cícero – is qui physicus appellatur, omnem vim divinam in natura sitam esse censet, quae causas gignendi,
augendi et minuedi habeat, sed careat omni sensu.” De Nat. Deo., lib. I, cap. XIII.
151
c) Após a morte de Estratão, a direção e ensino da escola passou para as mãos de Licão (Λύκων) de
Trôade, cuja fecundidade e elegância na fala é elogiada por Diógenes Laércio, fecundidade que é
reconhecida por Cícero, mas indicando que era de palavras e não de coisas: oratione locuples, rebus ipsis
jejunior.
Tanto Licão como seus discípulos e sucessores Aristão de Ceos 174 (Ἀρίστων ὁ Κεῖος), Critolau
(Κριτόλαος) e Jerônimo (Ἱερώνυμος ὁ Ῥόδιος) não oferecem nada especial em sua doutrina, pelo menos
no que chegou até nós. Se em algo se distinguem, é em terem cultivado com preferência a parte ética da
Filosofia de Aristóteles, embora sem seguir com muita fidelidade as tradições de seu mestre, o qual
certamente não fazia consistir a felicidade suprema do homem na ausência de dor, vacuitem doloris, nem
nos prazeres e satisfação de uma vida passada segundo a inclinação natural (vitae recte fluentis secundum
naturam), como ensinavam Jerônimo e Critolau.

d) Enquanto esses peripatéticos desnaturalizavam a teoria ética de Aristóteles, Dicearco (Δικαίαρχος)


de Messina, Aristóxenes (Ἀριστόξενος), natural de Tarento, e alguns outros, faziam o mesmo em relação
à sua teoria psicológica. Para o primeiro, a alma humana, como entidade distinta e separável do corpo, é
uma entidade quimérica, uma palavra vazia de sentido, nomen inane totum, na expressão de Cícero, que
acrescenta que, para Dicearco, as funções vitais e sensitivas são o resultado da figura e complexão do corpo:
nec sit quidquam nisi corpus unum et simplex, ita figuratum ut temperatione naturae vigeat et sentiat.
Por sua vez, o músico Aristóxenes não via na alma mais do que uma espécie de harmonia175, resultante
das vibrações e movimentos do corpo.

Entre os partidários da escola aristotélica, conta-se também Demétrio Falereu (Δημήτριος Φαληρεύς),
discípulo de Teofrasto, mais conhecido por suas empresas políticas e guerreiras do que por suas doutrinas
filosóficas; pois enquanto nada de especial é relatado sobre estas, consta pela História que governou Atenas
por dez anos como arconte; que os atenienses ergueram em sua honra tantas estátuas de bronze quantos
dias tem o ano, as mesmas que derrubaram depois, levados por sua habitual suspeita e volubilidade,
condenando à morte seu ídolo anterior Demétrio, que se retirou para a corte de Ptolomeu Lagos, no Egito.
Embora Diógenes Laércio suponha que foi exilado do Egito por intrigas políticas e que se suicidou por
meio de uma áspide, outros autores afirmam, com mais verossimilhança, que continuou a gozar de crédito
e honras na corte de Ptolomeu Filadelfo, cuja biblioteca alexandrina enriqueceu com muitos volumes. Não
faltam autores que afirmem que foi ele quem sugeriu a Ptolomeu Filadelfo a idéia de traduzir para o grego
os livros da Lei dos Judeus, e que a ele se deve, portanto, a famosa Versão dos Setenta, a Septuaginta.

174
Não confundir Aristão de Ceos (225 a.C.), que é peripatérico, com Aristão de Quios (260 a.C.), que é estóico. [N.T.]
175
Diz-se que, ressentido pela preferência que Aristóteles deu a Teofrasto para sucedê-lo na escola, honra que o filósofo tarentino
aspirava, ele se vingou desse desdém caluniando seu mestre em suas obras, entre as quais, a que se intitula Elementos Harmônicos,
foi publicada por Meibonio no século XVII.
152
§ 78 Crítica e vicissitudes posteriores da Escola Peripatética

Da breve revisão contida no parágrafo anterior, é evidente que: (1º) os discípulos e sucessores de
Aristóteles não conseguiram ou não souberam manter o brilho e o nome da escola fundada por seu mestre,
que decaiu de maneira tão lamentável e rápida; (2º) eles também não conseguiram manter a direção
enciclopédica de Aristóteles, fazendo a Filosofia e as ciências naturais avançarem juntas e em harmonia,
nem cultivando simultaneamente as diferentes ramificações da Filosofia aristotélica: alguns se dedicavam
à ética, outros à psicologia, outros ainda à física e mais alguns à parte teológica, sem se preocupar muito
com as outras partes da Filosofia.
Daí a profunda degeneração e rápida decadência da escola fundada por Aristóteles, ou melhor, de sua
Filosofia, que só recuperou parte de sua importância e
esplendor, primeiramente com os trabalhos de Andrônico de
Rodes 176 , que organizou, compilou e preencheu algumas
lacunas em suas obras, como também fizeram Boeto de
Sidon177, discípulo de Andrônico, e Xenarco178, que ensinou
em Atenas e Roma. Depois vieram os escritos e comentários
de Nicolau Damasceno179 (quase contemporâneo da origem
do Cristianismo), os de Alexandre de Ega (que foi mestre de
Nero) e os de Adrasto180.
Os trabalhos de todos esses foram de certa forma
obscurecidos e superados pelos de Alexandre de Afrodisia
(Ἀλέξανδρος ὁ Ἀφροδισιεύς), que floresceu no final do
século II d.C. e é sem dúvida o comentador181 mais notável
de Aristóteles entre os antigos 182 . Alguns neoplatônicos,
principalmente Porfírio, também reabilitaram e comentaram
diferentes partes da Filosofia de Aristóteles, e é sabido que o
Isagoge do discípulo e biógrafo de Plotino sobre os
universais supriu em parte a perda de certos escritos do
Estagirita sobre o assunto, servindo ao mesmo tempo como base e ponto de partida para as grandes
controvérsias dos escolásticos sobre o realismo e o nominalismo, como veremos oportunamente. Temístio

176
Andrônico de Rodes (Ἀνδρόνικος ὁ Ῥόδιος - 60 a.C.) foi o último escolarca do Liceu. Seu principal feito foi a organização
dos escritos tanto de Aristóteles quanto de Teofrasto.
177
Boeto (Βόηθος) de Sidón (75-10 a. C.) confundiu substância e matéria. [N.T.]
178
Xenarco (Ξέναρχος) de Seleucia na Cilicia, foi filósofo e gramático, que ensinou primeiro em Alexandria, depois
em Atenas e, por último, em Roma. Disfrutou da amizade de Augusto. Discordava de Aristóteles em diversos
pontos e negava a existência do éter, compondo mesmo uma obra sob o título Contra o Quinto Elemento. [N.T.]
179
Nicolau de Damasco ou Damasceno (Νικόλαος Δαμασκηνός) foi historiador e filósofo. Sua História, composta de 144 livros,
serviu de fonte para As Antiguidades Judaicas de Josefo. [N.T]
180
Adrasto (Ἄδραστος) de Afrodísia (sec. II d.C.) foi filósofo e matemático. Comentou não só Aristóteles, mas, certamente, o
Timeu de Platão. [N.T.]
181
Alexandre de Afrodísia (Ἀλέξανδρος ὁ Ἀφροδισιεύς), cognomeado “o Comentador” (ὁ ἐξηγητής) e “Segundo Aristóteles”,
natural de Afrodísia na Cária, teve como mestres Sosígenes, Hermino e, possivelmente, Aristóteles de Mitilene. Foi nomeado
professor público de Filosofia aristotélica em Atenas pelos imperadores Sétimo Severo e Caracalla entre 198 e 209 d.C.
Suas obras se dividem em [a] Comentários e [b] Tratados.
Entre os primeiros [a] encontram-se os Comentários às [1] Categorias, [2] ao De Interpretação, [3] aos Analíticos Anteriores (no
qual defende que a lógica é instrumento (órgão) e não parte da Filosofia), [4] aos Analíticos Posteriores, aos [5] Tópicos, [6] às
Refutações Sofísticas, [7] à Física, [8] aos Meteorológicos, [9] ao Do sentido e sensível, [10] ao De Coelo, [11] ao Da Geração e
Corrupção, [12] ao De Anima e [13] à Metafísica. No século XIX, só em Berlim, foram publicadas sete (7) edições críticas de seus
Comentários.
Entre os segundos [b], econtram-se [14] Sobre a Alma, [15] Problemas e Soluções, [16] Problemas Éticos, [17] O Destino e [18]
Sobre Mistura e Crescimento. Preservam-se em árabe, ainda, [19] Sobre os Princípios do Universo, [20] Da Providência e [21]
Do Movimento contra Galeno. [N.T.]
182
Seus comentários mereceram ser reimpressos em nossos dias em Berlim, e já no século XVI aqueles que se referem à metafísica
foram traduzidos para o latim por nosso compatriota Sepúlveda e publicados em Veneza com a seguinte capa: Commentaria in
duodecim Aristotelis libros de prima philosophia, interprete Joanne Genesio Sepulveda Cordubensi. Essa versão de Sepúlveda é
uma das mais precisas e muito estimada.
153
de Paflagônia183, que floresceu no século IV da Igreja; Asclépio de Trales184, que viveu no quinto; Filopono,
gramático de Alexandria185, e Simplício186, que floresceram no século VI, preservaram e propagaram as
tradições e ensinamentos da escola peripatética, principalmente nas regiões orientais.
Interrompida essa educação e obstruída sua comunicação com o Ocidente pelo fechamento da escola
filosófica neoplatônica de Atenas, pela invasão dos bárbaros com as guerras e distúrbios consequentes, e
agravada essa situação antifilosófica no Oriente em si devido ao fanatismo muçulmano contra as ciências
no primeiro período de suas conquistas, a Filosofia aristotélica reapareceu de maneira gradual e trabalhosa
na Europa cristã, quando esta se encontrou em estado de retomar a tradução interrompida, recolhendo e
desenvolvendo de um lado as idéias aristotélicas comentadas por Boécio, Cassiodoro e Santo Isidoro de
Sevilha, e de outro lado ampliando e desenvolvendo essas mesmas idéias com a ajuda dos livros, notícias
e tradições doutrinárias que foram introduzidos gradualmente na Europa pelos primeiros Cruzados; mas
ainda mais a comunicação entre a Igreja Oriental e a Ocidental por meio dos Concílios e das controvérsias
eclesiásticas.
Uma vez iniciado o movimento de restauração da Filosofia aristotélica pelos meios e causas indicados,
bastou o gênio da Europa, preparado e fecundado pelas idéias cristãs, para organizar o movimento científico
conhecido pelo nome de Filosofia escolástica, sem necessidade de buscar sua origem ou razão suficiente
na Filosofia dos árabes. Estes também comentaram, é verdade, os escritos de Aristóteles, como veremos
em seu lugar, e nesse conceito contribuíram mais ou menos, não para a origem ou o primeiro
desenvolvimento da Filosofia escolástica, mas para seu maior desenvolvimento, influenciando em algumas
de suas direções e em determinadas controvérsias. Certamente, entre essas direções e controvérsias
provocadas pelos comentários dos árabes, houve algumas opostas diretamente às conclusões fundamentais
da Filosofia cristã, conclusões e doutrinas que serviram de base e ponto de partida para certos filósofos da
época do Renascimento adotarem teorias essencialmente heterodoxas e racionalistas. Isso aconteceu, entre
outras coisas, com a afirmação de que uma coisa pode ser falsa em Filosofia e verdadeira em teologia ou
no terreno religioso, tese essencialmente racionalista, derivada de uma asserção análoga de Averróis, e isso
aconteceu principalmente com a famosa teoria deste sobre a unidade do entendimento, ou, digamos melhor,
da alma inteligente, unidade incompatível com a imortalidade das almas humanas singulares, mas tese
reproduzida por não poucos filósofos renascentistas das escolas italianas: porque é sabido que, durante a
época do Renascimento, os que na Itália faziam profissão de seguir a doutrina aristotélica, negavam a
imortalidade da alma, de uma maneira explícita e direta alguns deles, e outros, ou seja, os averroistas, de
uma maneira indireta; pois, como observa com razão Marsilio Ficino – testemunha excepcional na matéria
–, quase todos os peripatéticos de seu tempo estavam divididos em duas seitas, seguindo uns ao Comentador

183
Temístio (Θεμίστιος) de Paflagónia (317-387 d.C.) seguia principalmente a Filosofia de Aristóteles, em contraposição com
seus contemporâneos neoplatônicos, que o tomavam como um apêndice do pensamento de seu mestre Platão. Filho ele mesmo de
Professor de Filosofia, ensinou a maior parte de sua vida em Constantinopla, tendo sido apontado por Constantino II como
representante dessa cidade no Senado, aos 355 d.C. Comentou [1] o De Anima, [2] De Coelo e [3] a Física de Aristóteles. [N.T.]
184
Asclépio (Ἀσκληπιός) de Trales (570 d.C.), condiscípulo de Simplicio, tentou conciliar a doutrina de Platão com a
de Aristóteles, sendo, por isso, considerado um filósofo eclético. [N.T.]
185
João Filopono (Ἰωάννης ὁ Φιλόπονος) de Alexandria (490-570 d.C.), pertencente à Escola Neoplatônica de Alexandria, no
período pós-niceno, foi Professor na Academia de Alexandria. Distinguiu-se na Física – tendo estudado o impetus, o astrolábio, a
incércia e rejeitando várias teses aristotélicas nesta matéria – e na Gramática (de onde o seu epíteto Grammaticus). Teve forte
influência sobre o mulçumano Alfarábi, o nestoriano Ihoannitius (Hunain) ibn-Isaac e outros; além de ter influenciado, no sec. XIII
a Santo Tomás de Aquino. Terminou a vida convertido ao cristianismo.
Suas obras são, [1] De opificio mundi (sobre o astrolábio), [2] De aeternitate mundi contra Proclum e os Comentários [3] às
Categorias, [4] In Analítica priora; , [5] In Analitica posterior, [6] In primos quatuor Aristotelis de naturali auscultatione, [7] In
librum primum Metereorum, [8] In libros tres De anima, [9] In libros duos De Generatione et interitu, [10] In libros XIV
Metaphysicorum, e [11]In Physicorum libros. [N.T.]
Os comentários de Filopono sobre a metafísica, traduzidos por Patrizzi, foram impressos em 1583 com o seguinte título: Joannis
Philoponi breves, sed apprime doctae et utiles expositiones, in omnes 14 Aristotelis libros eos qui vocantur Metaphysici, quas Fr.
Patricius de graecis latinas feceral. Ferrariae 1583. [N.A.]
186
Simplício (Σιμπλίκιος) da Cilícia (490-560) foi filósofo e matemático e é um dos últimos neoplatônicos, desterrado por
Justiniano – período em que busca refúgio na corte sassânida – e retornando sob Cosroes I. Comentou [1] De Anima, [2] De Coelo
e [3] as Categorias de Aristóteles e [4] o Encheirídion de Epiteto. [N.T.]
154
Alexandre de Afrodisia, e outros a Averróis, mas concordando todos em jogar por terra a imortalidade da
alma187, e negando ao mesmo tempo outras verdades fundamentais do Cristianismo.

§ 79 O estoicismo

Zenão (Ζήνων ὁ Κιτιεύς), fundador do estoicismo, nasceu em Cítio, cidade de Chipre, por volta do
meio do século IV a.C. Seu pai, que era comerciante, trouxe-lhe de Atenas alguns livros contendo o
pensamento de Sócrates e de outros filósofos; e, com a leitura destes, ele começou a se interessar pelo
estudo das ciências. Tendo perdido toda a sua fortuna em um naufrágio que sofreu navegando para Atenas,
ao chegar nesta cidade encontrou casualmente o cínico Crates, cuja escola e ensinamentos
seguiu por alguns anos. Depois frequentou as escolas megárica e acadêmica ou platônica,
ouvindo sucessivamente Estilpão de Megara e Xenócrates. Após vinte anos de estudos e
meditações, Zenão havia formado um sistema próprio de Filosofia, que começou a explicar
publicamente em um pórtico de Atenas, denominado Stoa, razão pela qual sua Filosofia
recebeu os nomes de Estoicismo e escola do Pórtico. Em idade muito avançada, reduzindo
à prática sua teoria acerca da legitimidade do suicídio, o fundador do estoicismo pôs fim
aos seus dias, deixando em seu lugar um nome muito respeitado pelos habitantes de Atenas
na vida e na morte188, uma escola florescente e numerosos discípulos, os quais não se
limitaram a conservar sua doutrina, mas a precisaram, desenvolveram e modificaram em muitos pontos.
Assim, a exposição da doutrina estoica que vamos fazer compreende a de seu fundador juntamente com as
adições e esclarecimentos principais de seus discípulos e sucessores, e em particular as de Cleantes e
Crisipo. Isso, limitando-nos aos estóicos gregos e greco-asiáticos, e prescindindo dos estóicos romanos,
que modificaram e purificaram algumas partes do sistema.
O estoicismo, considerado em Zenão e em seus sucessores imediatos,
“A natureza deu-nos somente
representa uma restauração do ponto de vista socrático. À semelhança do mestre uma boca, mas duas orelhas, de
de Platão, o filósofo de Cítio e sua escola cultivam e desenvolvem o elemento modo que nós devemos falar
menos e escutar mais”. (Zenão)
ético com preferência a todos os outros. Física e metafísica, cosmologia,
teodicéia e dialética, e até mesmo a religião, são subordinadas à moral, e todas recebem uma direção prática
sob a influência do pensamento estóico.
Outra das características mais marcantes e transcendentes do estoicismo consiste em ter separado a
moral da política, e em ter dado à primeira uma direção essencialmente subjetiva, independente e
individualista. Nos sistemas filosóficos anteriores, sem excluir Platão e Aristóteles, vemos que a ética está
de certa forma confundida e identificada com a política, intimamente ligada e como absorvida por esta,
resultando daí que o homem como indivíduo, a personalidade humana, não vive nem age senão pela
comunidade e para a comunidade, que se torna a fonte e como a norma principal da moralidade dos atos
humanos. Com o estoicismo desaparece essa antiga confusão da moral com a política, e a primeira adquire
certo caráter individualista e independente. Em vez dessa comunidade absorvente, diante da qual
desaparecia a vida moral e a ação própria do indivíduo, aparece no estoicismo e com o estoicismo o sábio,
o homem da virtude, que se concentra em si mesmo; que se basta a si mesmo; que se sobrepõe a tudo o que
não é sua própria razão, sua personalidade; que se declara, enfim, independente e superior à natureza, à
sociedade, à divindade mesma, a tudo o que não é ele mesmo.

187
Eis como se expressa Marsilio Ficino sobre este ponto: “Totus enim ferme terrarum orbis a peripateticis occupatus, in duas
plurimum sectas divisus est, alexandrinam et averroicam. Illi quidem intellectum nostrum esse mortalem existimant; hi vero unicum
esse contendunt. Utrique religionem omem funditus aeque tollunt, praesertim quia divinam circa homines providentiam negare
videntur, et utrobique a suo Aristotele defecise, cujus mentem hodie pauci, praeter Picum complatonicum nostrum, ea pietate qua
Theophrastus olim et Themistius, Porphyrius, Simplicius, Avicenna, et nuper Plethon interpretantur.” Op Plotini Mars. Fic. interp.,
prólogo.
188
Conta-se que os atenienses depositaram nas mãos de Zenão as chaves da cidade para que as entregasse ao cidadão que
considerasse mais digno de governá-los, que lhe ofereceram uma coroa de ouro, e que votaram em sua honra estátuas e sepultura
no Cerâmico.
155
Esta direção essencialmente prática, independente e individualista do estoicismo, é evidente em todas
as suas teorias, mesmo naquelas que são mais abstratas, como se observa em sua antipatia pelas idéias de
Platão, em sua solução para o problema dos universais, em sua negação da transcendência divina e em
outras várias afirmações que indicaremos ao expor sua Filosofia.

§ 80. Lógica no estoicismo

Como já foi indicado, a lógica – bem como a física e todas as outras ciências, incluindo a Teologia –
tem uma importância apenas secundária, para o estoicismo. Quer dizer, tais ciências devem ser cultivadas
apenas na medida em que são úteis como preparação e introdução à ética, ciência única e suprema, bem
como a verdadeira perfeição do homem, à qual todas as demais coisas, ciências e bens devem ser
subordinados.
A essência e a substância da lógica dos estóicos – na qual geralmente incluíam a retórica e a poética – é
a teoria do conhecimento; pois, em relação ao restante, coincide geralmente com a lógica aristotélica.
Sua teoria do conhecimento reconhece as Tabula Rasa
sensações como fonte comum de todas as idéias A expressão tem origem na
intelectuais, as quais se reduzem a quatro tabuleta romana utilizada para

stylus
categorias: [1] substância, [2] modalidade ou modo anotações: uma estrutura de
madeira com uma lâmina de
de ser, [3] qualidade e [4] relação. A alma humana cera, que era apagada aquecen- tabula
é uma tabula rasa (à direita), na qual nada está do-a e nivelan-
escrito, e suas concepções (os conceitos) ou idéias, do-a ou alisan-
longe de serem inatas como afirma Platão, têm sua do em seguida.
Era nessa cera
origem na sensação e devem seu ser ao próprio ato que os antigos
da intelecção. A impressão sensível que dá origem escreviam, fazi-
à sensação é uma impressão material, assim como am cálculos, es-
tudavam etc.
a que o selo produz na cera. As idéias universais e
A cera podia ser
subsistentes de Platão são absurdas e quiméricas: amarela ou preta.
as essências representadas nos conceitos universais E cada uma destas tábuas funcionava como uma pequena
não têm realidade, nem nas Idéias de Platão, nem folha onde se escrevia com um stylus ou estilete (de onde
vem o uso de se marcar o círio pascal com um estilete)
nos singulares, como supõe Aristóteles; são apenas que tinha uma ponta fina para escrever e outra redonda
conceitos subjetivos e abstrações da compreensão ou chata para raspar e alisar, para “apagar”.
(nominalismo), que não correspondem a qualquer Daqui as expressões até hoje usadas para a Filosofia do
realidade objetiva. Em outras palavras, o universal, conhecimento: a inteligência é como a tábula que é
informada pelo conteúdo (de fato, a cera toma a forma do
objeto da ciência, não existe nem fora das coisas, conteúdo); as idéias, que em latim se dizem formas,
como quer Platão, nem nas coisas, como quer informam a inteligência.
Aristóteles, mas apenas como abstração do Tabula rasa significa literalmente pequena tábua
pensamento. nivelada ou alisada, isto é, sem nenhum conteúdo prévio.
A verdade de uma idéia ou concepção consiste na fidelidade e exatidão com que reproduz e [a]
representa o objeto; a clareza objetiva, a inteligibilidade perspicaz do objeto, constitui o
único critério de verdade, ou melhor, de certeza, que pode ser distinguido em quatro graus:
[a] imaginação ou percepção, [b] crença ou assentimento, [c] entendimento ou
compreensão (κατάληψις) e [d] ciência ou sabedoria. A [a] mão aberta representa a [b]
imaginação ou percepção; a [b] mão meio cerrada representa o assentimento ou crença em
algo; a [c] completamente fechada representa a compreensão; entrelaçada com a outra mão,
representa a ciência, ou seja, a ciência universal e sistemática, a sabedoria. [c]
Zenão procurou ilustrar isso com uma atitude: esticando os dedos e mostrando a palma da
mão, disse: “A percepção é como isto”. Depois, fechando um pouco os dedos, disse: “O [d]
assentimento é assim”. Em seguida, fechando completamente a mão e mostrando o punho,
disse que isso era a compreensão. A partir dessa comparação, deu um nome novo para este
estado que não havia antes, e o chamou “katalepsis”. Pondo, porém, a mão esquerda sobre
156
a direita e segurando firmemente o punho, disse que a ciência tinha essa característica; e isso era algo
que apenas o sábio possuía189.

A evidência é o único e geral critério de verdade, a norma do julgamento: perspicuis cedere, rem
perspicuam approbare, como diz Cícero.
De acordo com sua teoria essencialmente sensualista e empírica, os estóicos não consideravam a
memória, a experiência e as idéias primeiras como nada mais do que modificações e associações
espontâneas das sensações, bem como representações ou antecipações da espontaneidade sensível.
Os estóicos – escreve Plutarco a esse respeito – ensinam que quando o homem nasce, a parte principal
de sua alma é para ele como um pergaminho, como uma espécie de tabuinha (tabula) na qual ele anota
e inscreve os conhecimentos adquiridos sucessivamente. Em primeiro lugar, ele anota ali as percepções
dos sentidos. Se ele experimentou qualquer sensação, por exemplo, a sensação do branco, quando esta
desaparece, ele conserva a memória dela. Quando muitas sensações semelhantes se associam, resulta e
constitui a experiência, em força e devido a essa associação, segundo os estóicos; pois a experiência
nada mais é do que o resultado de um certo número de sensações homogêneas. Já explicamos como a
percepção das noções naturais (sensações, representações sensíveis) se realiza sem ajuda externa. As
outras são fruto de instrução e do próprio trabalho, razão pela qual são as únicas que merecem ser
chamadas de noções (conhecimento racional), pois as primeiras são meras prenoções ou antecipações.190

§ 81. Física do estoicismo

A física do estoicismo compreende a psicologia e a Teologia, porque para o estoicismo, ou pelo menos
para a maioria de seus adeptos, todos os seres são corporais e, portanto, objetos da física. Embora às vezes
falem de coisas incorpóreas, como espaço, lugar, vazio, tempo, trata-se de uma incorporeidade relativa e
de nome, sendo muito provável que eles chamassem essas coisas de incorpóreas, porque elas não têm
realidade distinta das coisas sujeitas ao tempo, espaço etc. Porque a verdade é que, para o estoicismo, corpo
é todo ser real, tudo o que é capaz de ação ou paixão. Assim, na realidade, tudo o que existe é corpo, ou
seja, coisa corpórea e material, sem que haja nada que seja espírito puro, nem mesmo Deus, diga Aristóteles
o que quiser. O que é chamado de espírito é apenas o princípio ou elemento ativo em oposição ao elemento
passivo.
Em conformidade com esses princípios fundamentais, os estóicos concebiam o mundo como resultado
e efeito da união de Deus, princípio ativo universal, com a matéria inerte e grosseira191 que serve como
princípio passivo. Na realidade, no entanto, tanto o princípio ativo quanto o passivo são materiais e se
distinguem apenas pelo fato de o primeiro, Deus, a substância etérea, o fogo divino, ser um ser inteligente
e dotado de razão, por meio da qual razão age sobre a matéria inferior e mais grosseira. Mas ele age
tornando-se parte das substâncias produzidas com operação ou produção imanente, de modo que o animal,
por exemplo, enquanto animal e vivo, carrega dentro de si uma parte do calor ou fogo divino: Omne quod
vivit, sive animal, sive terra editum, id vivit propter inclusum in eo calorem.
Daqui se infere que a união do princípio ativo com o princípio passivo, a união do Deus-éter com a
matéria inferior e mais grosseira, não é a união do motor com o móvel, nem da causa eficiente em relação
ao seu efeito; é a união de um princípio informante e plástico, que informa, penetra e vivifica todas as partes
do universo, assim como a alma humana informa e vivifica o corpo humano. Deus é, portanto, a alma
universal do mundo, e este é o corpo da Divindade, que, embora como força imanente, esteja intimamente
ligado ao mundo, o supera pela razão. Deus é a razão suficiente da beleza do mundo, a origem de sua
finalidade e do governo providencial a que os seres do universo estão submetidos, embora esta

189
Cícero, Academica, lib. II, 47.
190
De placit. philosoph., lib. IV, cap. XI.
191
“Stoici nostri – escreve Sêneca – duo esse in rerum natura (dicunt), ex quibus omnia fiant, causam et materiam. Materia jacet
iners res ad omnia parata, cessatura, si nemo moveat; causa autem, id est, ratio, materiam format, et quocumque vult versat; ex illa
varia opera producit.” Opera, epist. 65.
157
“providência” se realize de maneira fatal e necessária, porque a Providência divina dos estóicos se identifica
com o fatum ou destino da antiga mitologia, de modo que, na realidade, a razão divina que governa o mundo
e a lei necessária da natureza são a mesma coisa.
O Deus do estoicismo é um ser corporal, assim como todos os seres reais. Com frequência, ele é chamado
de fogo, éter primitivo, e suas transformações contêm a origem e a razão suficiente para a variedade de
seres que povoam o mundo, que, por essa razão, está sujeito a perecer e renascer periodicamente. O
universo, que saiu de Deus, ou seja, do éter divino, entra novamente nele depois de um determinado tempo,
por meio da combustão. Isso significa que a realidade, o ser, para os estóicos, é uno e único, é o fogo
primitivo, é Deus, que se transforma em universo por meio de evoluções e involuções periódicas e fatais,
que trazem consigo a destruição dos seres individuais, permanecendo apenas eternamente o ser divino, o
germe e o fundo essencial, o princípio, o meio e o fim real de todas as coisas.
Além disso, é preciso ter em mente que as idéias do estoicismo, incluindo seus principais representantes
e seu próprio fundador, sofrem de certa vaguidade, confusão e inconsistência, o que não permite formar um
conceito exato e seguro de sua teoria físico-teológica. Às vezes em Zenão, às vezes em seus discípulos, a
divindade é o mundo ou universo, é a razão que se espalha por todas as partes dele, é um ser sem forma e
sentido, é uma força fatal que agita a natureza e determina suas manifestações, é fogo ou éter que informa
e vivifica as partes do mundo, é o sol com as outras estrelas, é o éter que cerca e contém dentro de si o
mundo192, sem contar as aplicações e interpretações mitológicas. De qualquer forma, a idéia mais constante
e mais de acordo com os princípios do estoicismo que parece se desprender de suas afirmações sobre a
matéria é que Deus deve ser concebido como uma realidade una e toda sujeita a uma lei fatal e necessária,
em virtude da qual, e também graças à força viva e inteligente que contém em si essa realidade toda e una,
assume diferentes formas, estados e graus de evolução, que constituem o mundo, ou melhor, os mundos,
que aparecem e desaparecem alternadamente com suas diferentes existências particulares. Quando os
estóicos afirmam que Deus é a razão ou a mente do mundo, eles dão esse nome à mente na medida em que
é a principal parte de Deus, mas não Deus em si, pois rigorosamente essa denominação só pode ser atribuída
ao próprio mundo em sua totalidade e unidade, uma vez que, para o estoicismo, o mundo não é apenas o
melhor e mais perfeito de todos, mas nada pode ser pensado como mais perfeito: Certe nihil omnium rerum
melius est mundo... nec solum nihil est, sed nec cogitari quidem quidquam melius potest.
Dada essa concepção da divindade, é óbvio que, embora o estoicismo fale de providência divina e
liberdade humana, ambas devem ser consideradas meras palavras e fórmulas sem realidade objetiva no
sentido próprio da palavra. Os movimentos e ações do homem, assim como as transformações produtivas
e evolutivas de Deus, estão sujeitos à lei inflexível do fatum universal, de modo que nem Deus nem o
homem podem deixar de colocar seus atos na forma como o fazem. A liberdade, tanto para Deus quanto
para o homem, só pode significar espontaneidade natural, mas necessária, que, embora excluindo a coerção
externa, não exclui a necessidade interna, incompatível com a verdadeira liberdade e domínio de seus atos,
incompatível com o que se chama livre-arbítrio.
Portanto, para o estoicismo, o mal é necessário e inevitável no mundo. Não apenas os males físicos,
como a guerra, as doenças, a morte, mas também o mal moral, são manifestações ou, se preferirmos,
evoluções necessárias e fatais da divindade. Embora não se diga que Deus queira o mal, ele é inevitável e
até necessário para que o bem exista, tanto no sentido físico como no moral. Para provar essa doutrina, os

192
Todas estas opiniões, e algumas mais, encontram-se indicadas na seguinte passagem de Cícero: “Zenon autem naturalem legem
divinam esse censet... quam legem quomodo efficiat animantem, intelligere non possumus: Deus autem animantem certe volumus
esse. Atque hic idem alio loco aethera Deum dicit. Aliis autem libris rationem quandam, per omnium naturam rerum pertinentem,
ut divinam esse affectam putat. Idem astris hoc idem tribuit, tunc annis mensibus annorumque mutationibus. Cujus discipuli
Aristonis non minus magno in errore sententia est; qui neque formam Dei intelligi posse censeat, neque in diis sensum esse dicat,
dubitatque omnino, Deus animans, necne sit.
“Cleanthes autem, qui Zenonem audivit una cum eo, quem proxime nominavi, tum ipsum mundum Deum dicit esse; tum totius
naturae menti atque animo tribuit hoc nomem; tum ultimum, et altissimum atque undique circumfusum, et extremum omnia
cingentem atque complexum ardorem, qui aether nominetur, certissimum Deum judicat, tum divinitatem omnem tribuit astris.
“Jam vero Chrysippus, qui stoicorum somniorum vaferrinus habetur interpres, magnam turbam congregat ignotorum Deorum...
“Ait enim vim divinam in ratione esse positam, et universae naturae anima atque mente; ipsumque mundum Deum esse dicit et
ejus animi fusionem universam: tum ejus ipsius principatum qui in mente et ratione versetur; tum fatalem vim et necessitatem
rerum futurarum; ignem praeterea, et eum, quem antea dixi, aethera; tum ea quae natura fluerent atque manarent, ut et aquam, et
terram et aera, solem, lunam, sidera universitatemque rerum, qua omnia continerentur.” De nat. Deorum, lib. I. n. 14-15.
158
estóicos, apropriando-se do pensamento de Heráclito e prenunciando a escola hegeliana, ensinavam que
nada pode existir sem que seu oposto exista, razão pela qual a justiça não pode existir sem a injustiça, e em
geral o bem não pode existir sem o mal.
Os estóicos admitiam uma espécie de Teologia natural, baseada na relação e subordinação de fins entre
os diferentes seres do mundo, mas não em relação ao próprio mundo, ao qual não está ordenado (praeter
mundum, caetera omnia aliorum causa esse generata) a nada além de si mesmo, sendo, como é, o ser
perfeitíssimo. Nessa cadeia teológica, o homem ocupa um lugar importante e preferencial, pois tem como
objetivo a contemplação e imitação do mundo, ou seja, de Deus, do ser mais perfeito e supremo: ipse autem
homo ortus est ad mundum contemplandum et imitandum.
A alma humana é uma emanção da alma universal do mundo, um sopro, uma participação do fogo divino
primordial. Embora corporal em sua essência, é superior ao corpo humano e pode sobreviver à sua
destruição. No entanto, essa imortalidade ou incorruptibilidade da alma é apenas relativa e temporária, já
que perece e cessa de existir quando o mundo é consumido pelo fogo, para que outro universo comece a
existir. A imortalidade absoluta corresponde somente a Deus.

§ 82. Moral do estoicismo

A moral do estoicismo está resumida e condensada na seguinte máxima: viver e agir de acordo com a
razão e a natureza. Como para os estóicos o fundamento da natureza é a razão divina, agir de acordo com
a natureza é agir de acordo com a razão, e daí surge o fato de alguns deles explicarem e definirem a virtude
como conformidade com a natureza e outros como conformidade com a razão. Essa maneira de viver e agir
constitui a virtude, e a virtude é o bem supremo e único do homem: a fortuna, as honras, a saúde, a dor, o
prazer, junto com todas as outras coisas que são chamadas de boas ou más, são indiferentes por si mesmas,
e até mesmo podem ser consideradas más quando são objeto direto de nossas ações e desejos. Somente a
virtude, a virtude praticada por si mesma e de forma absolutamente desinteressada, constitui o bem, a
perfeição e a felicidade do homem. A apatia perfeita, a indiferença absoluta, por meio das quais o homem
se torna superior e indiferente a todas as dores e prazeres, a todas as paixões com seus objetos, a todas as
preocupações individuais e sociais, são as características do sábio verdadeiro, do homem da virtude. As
paixões devem ser erradicadas porque são naturalmente más; a virtude é necessariamente boa, porque
ninguém pode adquirir ou perder uma virtude sem adquirir ou perder simultaneamente todas as outras.
Diante de máximas e princípios de moralidade tão elevados, qualquer um pensaria que a moral do
estoicismo estaria isenta das grandes aberrações que observamos em outras escolas filosóficas; no entanto,
ocorre exatamente o oposto. A mentira proveitosa, o suicídio, a sodomia, as uniões incestuosas e outras
abominações semelhantes autorizadas na moral dos estóicos demonstram que a superioridade desta é mais
aparente do que real, e que o orgulho só pode produzir doutrinas corruptoras, e que a razão humana por si
só é impotente para descobrir e formular um sistema completo de moral193, ou que não contenha nada
contrário à reta razão.

193
A dar-se crédito a Diógenes Laercio, para os estóicos “os pais e os filhos são inimigos entre si, quando uns e outros não são
sábios”. O mesmo autor acrescenta que Zenão “estabelecia por dogma que as mulheres fossem comuns a todos”.
Ademais, são tantas e tão grandes as aberrações de ordem moral que encontramos nos estóicos, e isto após terem assentado
princípios e máximas gerais de indubitável retidão ética, que bem se podem considerar semelhantes aberrações como castigo
exemplar do orgulho da razão humana. E para que não se creia que exageramos neste ponto, vamos transcrever algumas passagens
de Sexto Empírico, que resumem, não todas, mas algumas destas aberrações, devendo advertir que nos vemos na necessidade de
indicar com muita brevidade, e a omitir por completo palavras e sentenças que se referem a certas abominações, que nem sequer
em latim devemos publicar.
“Apud nos turpe, non vero nefarium habetur, mascula Venere uti, apud Germanos autem, ut fertur turpe non est. Quod cur mirum
ulli videatur, cum etiam Cynici philosophi, et Zenon Citticus, et Cleanthes, et Chrysippus indiferens hoc esse dicant? Stoicos etiam
audimus dicentes a ratione non abhorrere cum meretrice congredi, aut quaestu a meretrice facto aliquem sustentare vitam.
“Quin etiam Citticus Zenon ait a ratione alienum et abhorrens non esse, matris naturam suae era. Atque adeo Chrysippus in Politia
sua dogma hoc ponit, patrem ex filia et matrem ex filio, et fratrem ex sorore liberos procreare. Cum praeterea detestabile sit apud
nos Zeno approbat.” Hypot. pyrrhon., lib. III, cap XXIV.
Não é menos explícita a seguinte passagem, que nos mostra aos estóicos aprovando as abominações mais repugnantes, inclusa a
antropofagia: “Ipse ergo princeps sectae eorum, Zeno de puerorum institutione, cum alia similia, tum vero haec dicit: dividere
nihilo magis nec minus paed... nec foeminas quam mares; non enim sunt alia quae paed... nec foeminas aut mares deceant, sed
eadem illos decent. De pietate autem erga parentes idem ait, de Jocastae et aedipodis facto loquens, non fuisse mirum si matrem
159
A [1] prudência ou sabedoria, [2] a justiça, [3] a coragem ou fortaleza e [4] a temperança são as quatro
virtudes cardeais. O homem que possui com perfeição essas quatro virtudes não tem nada a pedir nem a
invejar à divindade; ele se torna igual a Deus, do qual só difere na duração maior ou menor de sua existência
(bonus ipse tempore tantum a Deo differt, na expressão de um dos principais representantes do estoicismo,
quer dizer, porque não é absolutamente imortal, como Deus).
A virtude é a verdadeira e única felicidade possível para o homem: somente ela pode ser chamada de
bem, no sentido próprio da palavra, assim como, pelo contrário, o único mal verdadeiro é o vício. Todas as
outras coisas são realmente indiferentes. A constância, a fixidez e a imutabilidade da vontade representam
o caráter mais nobre da virtude.
O sábio estóico, o homem da virtude, vive e age em total submissão à natureza, à divindade, à lei
imutável e fatal das coisas, e não com interesses egoístas e em busca de sua própria felicidade. Assim, a
virtude se basta a si mesma e não aspira nem precisa de outra vida, nem da imortalidade da alma, para ser
feliz: virtus seipsa contenta est, et propter se expetenda.
Tese fundamental do estoicismo, também, é a igualdade dos erros morais: para os estóicos, assim como
uma verdade não é maior do que outra, nem um erro é mais erro do que outro, um pecado ou erro moral
não é maior do que outro. Daí também a correlação íntima, a conexão necessária das virtudes, já que não é
possível possuir uma delas sem possuir todas as outras.
Já foi mencionado que os estóicos consideravam as paixões como movimentos contrários à razão e,
consequentemente, como maus na ordem moral. Além disso, o estoicismo costumava reduzir todas as
paixões a quatro, quais sejam [a] a concupiscência (libidinem na expressão de Cícero), [b] a alegria, [c] o
medo e [d] a tristeza. As duas primeiras se referem ao bem como seu objeto próprio; as últimas são relativas
ao mal.
Além dos muitos e graves defeitos que a moral do estoicismo apresenta e que acabamos de mencionar,
ela entranha ainda um outro princípio que a corrompe em sua origem e essência: como vimos, a liberdade
humana, o livre-arbítrio individual no sentido próprio da palavra, é incompatível com a teoria metafísica e
teológica do estoicismo, segundo a qual a natureza humana é determinada em sua natureza e em seus atos
pela natureza universal, e a razão individual pela razão divina. A lei universal de Deus, do homem e do
mundo é a fatalidade absoluta, significada pelo Destino no estoicismo e para o estoicismo. Daqui se segue
que viver e agir de acordo com a natureza e a razão, não pode significar, no estoicismo, outra coisa senão
viver e agir se conformando ao movimento irresistível da natureza universal, abandonando-se ao destino e
à corrente fatalista das coisas, e seguindo atraído pelas correntes da vida, que o arrastam em direção ao seu
fim, ou seja, em direção ao fim geral do universo.
Daqui se depreende que, apesar das aparências em contrário e apesar de suas pretensões, a moral do
estoicismo não seja apenas extremamente imperfeita e viciada, mas que mal mereça o nome de moral, uma
vez que lhe falta um dos fundamentos e condições essenciais para a moralidade. Porque onde não há livre-
arbítrio, onde não há verdadeira liberdade humana, não há e nem pode haver verdadeira moralidade para o
homem, e os nomes de bem e mal, virtude e vício, perdem sentido. O resultado e a aplicação lógica desse
princípio fatalista é essa indiferença ou imperturbabilidade que constitui a virtude, a suprema perfeição do
homem para o estoicismo, a real superioridade do sábio estóico, superioridade e perfeição que o tornam
capaz de considerar como indiferentes e lícitos as maiores abominações, os atos mais repugnantes e imorais
aos quais nos referimos anteriormente.

nihil in eo erat turpitudinis si alias partes ex matre liberos procreavit.


“His autem Chrysippus adstipulans in Politia scribit. Quim etiam in iisdem libris humanarum carnium esum inducit; ait enim: Quod
si ex vivis abscindatur aliqua pars ad esum utilis, neque defodere illam, neque temere projicere, sed eam consumere, ut ex nostris
alia pars fiat.
“In libris autem De officio, de parentum sepultura scribens, haec nominatim dicit: Mortuis autem parentibus, sepulturis utendum
simplicissimis, quipped cum corpus (quemadmodum ungues, aut dentes, aut pili), nihil ad nos pertineat. Ideoque si quidem utiles
sunt carnes, illas in suum alimentum convertent (quemdmodum et si aliquod ex propriis membris abscissum fuisset, verbi gratia,
si pes, uti ipso conveniens fuisset); sin autem sint inutiles (ad esum) aut defossas relinquent, aut longius projicient, nullam earum
rationem habentes, tanquam unguium aut pilorum.” Ibid., cap. XXV.
Seria muito bom que meditassem nessas passagens e se olhassem no espelho aqueles que sustentam que a moral cristão tenha no
estoicismo o seu modelo tipo e a sua origem.
160
§ 83. Crítica

A doutrina exposta no parágrafo anterior quase nos isenta de emitir um julgamento crítico sobre a moral
do estoicismo. Elevada, pura e até sublime em algumas de suas máximas fundamentais, ela, no entanto,
incorre em frequentes aberrações, descendo ao absurdo, à abominação e à imoralidade mais repugnantes
quando se trata de deduções e aplicações concretas. A ética do estoicismo merece crédito da razão, da
sociedade e da Filosofia ao estabelecer e afirmar que a virtude implica conformidade com a natureza e com
a razão divina. Mas essa concepção, considerada em si mesma e prout jacet, tem algo de elevado e superior,
que deteriora não apenas quando focamos em suas aplicações errôneas e exageradas, mas principalmente
quando nos deparamos com sua essência materialista e panteísta. Pois já foi observado que, para os estóicos,
Deus e a natureza material são a mesma coisa, uma única substância. Não é surpresa que a moral estoica,
mesmo com sua aparente e parcial elevação, decaia rapidamente em suas aplicações, porque elas derivam
de uma árvore danificada em sua essência, isto é, seu panteísmo materialista. Já vimos que a moral do
estoicismo é moral radicalmente viciosa e sem valor ético real, uma vez que nega a liberdade humana e
parte do princípio fatalista, que é uma das teses fundamentais da metafísica dos estóicos.
Por outro lado, os dois preceitos célebres do estoicismo, sustine et abstine, bons e até excelentes como
expressões do domínio e direção que a razão deve ter sobre as paixões, deixam de ser assim quando se
convertem em preceitos de extermínio dessas mesmas paixões: uma coisa é a moderação das paixões e sua
subordinação à parte superior, outra coisa é sua aniquilação e a apatia estoica.
A suposta pureza do motivo da ação, o preceito de agir virtuosamente por força própria, com o
consequente desprezo e indiferença em relação a todas as outras coisas e, acima de tudo, a autonomia
independente atribuída a sua razão individual, única norma, medida e fonte de virtude, têm uma grande
afinidade, para não dizer identidade, com os imperativos categóricos de Kant e com as recentes teorias
racionalistas do krausismo194, que apregoam o fazer o bem pelo bem. E não é preciso dizer que todas essas
teorias morais, apesar de seu aparente desinteresse e de suas fórmulas rigoristas, se resumem a um refinado
egoísmo; a um egoísmo que substitui a razão divina pela razão própria; ao egoísmo do homem que se coloca
no lugar de Deus para receber as adorações de sua própria vaidade e dos outros homens. Victor Cousin195
observou oportunamente que o egoísmo, que é a última palavra do epicurismo, é também a última conclusão
lógica do estoicismo.
A física e Teologia dos estóicos se reduzem a um panteísmo psicológico-materialista mais ou menos
informe, que, depois de classificar Deus entre os corpos, faz da divindade a alma do mundo, ou seja, uma
força que informa e penetra todas as coisas, que as gera e destrói por meio de evoluções e involuções
periódicas, e das quais as almas humanas são derivadas ou participações passageiras. No entanto, essa
divindade, embora unida e ligada ao mundo e constituindo seu fundamento essencial, é superior ao mundo,
é a causa ou fundamento do mesmo, e governa-o por meio de sua razão e de leis providenciais. Não é difícil
reconhecer que isso tem muitas semelhanças com a doutrina cosmológico-teológica do krausismo. Por outro
lado, o éter primitivo, Deus, que se transforma em variedade e multiplicidade de mundos e seres sujeitos à
lei necessária do destino ou fatum, lembra as evoluções e transformações da Idéia hegeliana, submetidas à
lei dialética, tão necessária e imutável quanto a do fatum estóico.

194
Krausismo (de seu fundador Karl Christian Friedrich Krause), no âmbito das idéias, é uma doutrina idealista que tenta conciliar
o teísmo com o panteísmo. Sua doutrina, o panenteísmo defende que a divindade – intuitivamente conhecida pela consciência –
não seja pessoal (uma vez que a personalidade implicaria limites), mas uma “essência de todo inclusiva” ou wesen, que contém em
si o universo.
No âmbito das ações, lutava pela tolerância acadêmica e a liberdade de cátedra. Na América, o krausismo encontra seus principais
representantes em Martí e Hostos, próceres da independência e da luta anticolonial de Cuba e de Porto Rico contra Espanha. Valiam-
se das relações com a franco-maçonaria para promover uma rede de apoio à imigração de educadores liberais krausianos para
trabalharem na formação acadêmica das novas repúblicas independentes, especialmente em Costa Rica. [N.T.]
195
Victor Cousin (1792-1867) foi o fundador do ecletismo filosófico, combinando elementos do idealismo alemão com o realismo
do senso comum escocês. Manteve-se influente na educação da sociedade francesa, sendo elevado a Ministro da Instrução Pública
por seu apoio à Revolução de Julho, que pôs fim à Restauração Francesa, com o exílio do Rei legítimo Carlos X e a entronização
do “Rei Burguês”, Luís Filipe de Orléans. Editou as obras de Descartes, traduziu Platão e Proclo e, de sua própria lavra, distingue-
se pela sua Histoire de la philosophie au XVIIIe siècle (1829) e Du Vrai, du Beau et du Bien (1853). Chamou, ainda, a atenção para
a inteligência feminina, com uma série de artigos biográficos, entre os quais Jacqueline Pascal (1845), Madame de
Longueville (1852), Madame de Sablé (1854), Madame de Chevreuse e Madame de Hautefort (1856). [N.T.]
161
Considerada em conjunto, a Filosofia do estoicismo pode ser considerada uma síntese mais ou menos
completa da Filosofia cínica e da doutrina de Heráclito. Na teoria moral de Zenão encontramos vestígios
do ensinamento do cínico Crates, seu primeiro mestre, e sua teoria físico-teológica tem muitos pontos de
contato com a Filosofia de Heráclito. Assim, a escola cínica perde sua importância e, por assim dizer, sua
autonomia, desde que surge e se consolida o estoicismo, que absorve e transforma a moral dos antigos
cínicos. Além de suas contradições, ou melhor, de suas quedas, tão opostas a seu puritanismo, como quando
justifica a mentira, o suicídio etc., a moral estoica tem o grave defeito de condenar absolutamente o prazer
e as paixões, confundindo e identificando a energia natural dessas paixões com a imoralidade. Uma coisa é
que as paixões devam ser moderadas e subordinadas à razão e ao cumprimento do dever moral, outra coisa
é que sejam imorais e más por sua própria natureza, observação que pode ser igualmente aplicada aos
prazeres e satisfações sensíveis.
Outro grave defeito da moral estoica é a separação, ou melhor, a oposição que estabelece entre a virtude
e a felicidade, como consequência, efeito e complemento da mesma, especialmente na vida futura. Uma
coisa é que o homem, ao agir, não deva se propor como fim principal e único da ação virtuosa a felicidade
pessoal, outra coisa é que o direito a essa felicidade não seja uma consequência natural e legítima da ação
virtuosa, ou que esta deva prescindir e rejeitar a esperança e o desejo dessa felicidade, que, afinal, pode ser
considerada uma extensão, uma manifestação da virtude.
Resumindo: se considerarmos o estoicismo como um todo, podemos dizer que, ao lado de certa elevação
parcial do ponto de vista ético, ele contém graves erros como sistema filosófico; porque a verdade é que
sua psicologia é uma psicologia sensualista; sua teodicéia é uma teodicéia panteísta; sua metafísica e
cosmologia têm um fundo materialista e até sua moral degenera em idealismo exagerado em seus princípios,
contraditório e empírico em suas aplicações e máximas.

§ 84. Discípulos e sucessores de Zenão

O estoicismo é uma das escolas filosóficas de vida mais longas e brilhantes entre as antigas. Além da
elevação e superioridade relativa de seus princípios morais, contribuíram para essa longevidade as lutas
que foram obrigadas a travar contra escolas rivais, especialmente o epicurismo e a nova Academia.
Os discípulos e representantes do estoicismo podem ser divididos em estóicos greco-asiáticos e estóicos
romanos. Deixando estes últimos para quando falarmos sobre a Filosofia entre os romanos, limitaremos a
mencionar aqui os principais nomes que representam as tradições e o ensinamento do estoicismo na Grécia
e Ásia. Foram:
a) Cleantes (Κλέανθης), natural de Assos, na Tróade, que sucedeu Zenão na direção da escola e a quem
Laércio atribui uma longa lista de escritos que não chegaram até nós. Discípulos também de Zenão e
contemporâneos de Cleantes foram Perseu, conterrâneo do fundador do estoicismo; Ariston, natural de
Quios, de quem se diz que fundou uma escola separada e que em sua doutrina se aproximou da escola
cética, e Herilo de Cartago, que tendia a realçar a importância das ciências especulativas e tentou corrigir e
moderar o exclusivismo ético da escola estoica.
b) Crisipo (Χρύσιππος), que nasceu em Sólis, segundo uns, e segundo outros em Tarso da Cilícia,
sucedeu Cleantes na regência da escola estoica e foi considerado na antiguidade como o segundo fundador
do estoicismo, provavelmente devido ao grande desenvolvimento e propaganda que exerceu a favor de suas
doutrinas. Segundo Diógenes Laércio, ele frequentemente travou controvérsias e lutas contra os filósofos
contemporâneos em defesa das doutrinas do Pórtico e escreveu mais de 700 livros com esse propósito,
sendo apelidado de a Coluna do Pórtico.
c) Sucessores de Crisipo na escola estoica foram Zenão (Ζήνων) de Tarso, na Cilícia, e Antípatro
(Ἀντίπατρος), conterrâneo deste, embora alguns o considerem natural de Sidon. Por fim, entre os
principais representantes do estoicismo também estão Diógenes da Babilônia, que foi a Roma como
embaixador um século e meio antes de Jesus Cristo, junto com o acadêmico Carneades e o peripatético
Crítola; Paneceuticon de Rodes, discípulo de Diógenes, que procurou moderar o rigor excessivo da moral
estoica, esforçou-se para aproximar e conciliar as doutrinas do Pórtico com as de Platão e Aristóteles, e
162
combateu a astrologia judiciária, e, por último, Posidônio de Apameia, na Síria, que ensinou em Rodes e
teve Pompeu e Cícero como discípulos. Diógenes, Paneceuticon e Posidônio despertaram e enraizaram
entre os romanos a afeição pelas doutrinas do estoicismo.
Para propagar e consolidar essa doutrina entre os romanos, também contribuíram poderosamente
Antípatro de Tiro e Atenodoro de Tarso, mestre o primeiro e companheiro e amigo de Catão de Útica.

§ 85. Epicuro

Pelos anos de 337 a 340 a.C., nasceu Epicuro (Ἐπίκουρος) em Gargetos ou Gargesia,
uma aldeia da Ática, não muito longe de Atenas, sendo seus pais Neocles e Querestrata,
da qual se dizia ser adivinha por profissão. Alguns autores supõem, não sem
fundamentos, que Epicuro nasceu em Samos. Depois de frequentar por algum tempo
as escolas do platônico Xenócrates e do peripatético Teofrasto, abriu sua própria escola
aos trinta e dois anos, e após ensinar seu sistema e suas doutrinas por um período de
cinco anos em Mitilene e Lampsaco, transferiu sua escola para Atenas, onde morreu em
idade avançada, cercado por seus discípulos, que o tinham em grande veneração. Além
de ouvir as lições dos mencionados mestres, Epicuro se entregou com paixão e
fervor ao estudo dos escritos de Demócrito, nos quais se inspirou principalmente
para conceber e formular seu sistema.
Existem poucos filósofos cuja vida e doutrina tenham dado origem a debates tão acalorados e
interpretações tão diferentes como a vida e a doutrina de Epicuro. Segundo alguns, sua vida foi um exemplo
de moderação, retidão e honestidade, e sua teoria moral está longe de ser a teoria do sensualismo grosseiro
e do materialismo que geralmente lhe é atribuído por outros autores, que, por outro lado, também não dão
crédito nem aceitam a moderação e moralidade de sua vida.
Por nossa parte, acreditamos que ambos exageram o bem e o mal no que diz respeito à vida e à doutrina
de Epicuro, e neste conceito procuraremos evitar os dois extremos na exposição de sua doutrina, exposição
que iniciaremos pela moral; porque esta é a parte essencial e como a chave e a substância de toda a sua
Filosofia, na qual, se ocupa de física, de psicologia e de dialética ou canônica, como ele a chama, é apenas
com o objetivo de relacionar essas partes da Filosofia com seu sistema ético.

§ 86. Moral de Epicuro

A essência da Filosofia consiste em conhecer o propósito fim da vida e das ações humanas, em
determinar aquilo que constitui o maior bem do homem e que é sua felicidade. Desconsiderando a felicidade
perfeita e absoluta, que só pode ser encontrada nos deuses, se existem, a felicidade relativa, imperfeita e
limitada que o homem é capaz de alcançar consiste essencialmente no prazer, já que o prazer é aquilo que
desejamos e buscamos por si só e ao qual subordinamos todas as outras coisas. Todos os nossos atos e
aspirações devem ter como objetivo a obtenção dessa felicidade, ou seja, do prazer possível ao homem
nesta vida; porque, perdida essa felicidade, nada nos resta a não ser a esperança ilusória e quimérica da
felicidade dos deuses.
Esse prazer, que constitui a felicidade do homem, tem duas manifestações, que são o movimento e o
repouso. O prazer resultante da satisfação de uma necessidade ou apetite sensível que se experimenta,
aquele que provém de emoções agradáveis, como a alegria, a amizade e outras semelhantes, representa o
primeiro aspecto da felicidade, enquanto o segundo, ou seja, o prazer do repouso e pelo repouso, consiste
em estar livre ou isento da dor e da perturbação. Embora a felicidade humana englobe as duas manifestações
do prazer, a segunda, no entanto, é superior à primeira e constitui de certo modo a verdadeira felicidade do

163
homem, uma vez que esta, em última instância, consiste em estar livre de dores por parte do corpo e em ter
a tranquilidade do espírito, ou seja, estar livre de perturbações e inquietações por parte da alma. Nos autem
– escreveu Cícero em pessoa dos partidários de Epicuro – beatam vitam in animi securitate, et in omni
vacatione munerum ponimus.
Epicuro também ensinava que o prazer que constitui a felicidade e o supremo bem do homem é o que
resulta do conjunto de todos aqueles os atos e estados do corpo e da alma que representam a maior soma
possível de prazer e bem-estar para o homem, e isto não precisamente com relação ao instante ou ao
momento presente, mas abrangendo mesmo o passado e o futuro. E acrescentava também que, nesse
conjunto de bens e prazeres que compõem a felicidade humana, entram em grande medida, e até como parte
principal e superior, os prazeres e satisfações morais e intelectuais, os prazeres da alma, que são superiores
aos do corpo, porque estes são por natureza momentâneos e passageiros, enquanto os da alma se estendem
ao que já passou e ao porvir.
Fundamentado nesse aspecto relativamente louvável da moral de Epicuro, alguns pretendiam e até
pretendem elogiar sua concepção e apresentá-la como uma concepção racional e digna de respeito. Mas os
que tentaram isso, sem dúvida, agiram sem pensar, como justamente afirma Ritter; porque a verdade é que,
diante desse aspecto parcial e relativamente admirável da ética de Epicuro, existem outras opiniões suas e
de seus discípulos imediatos que desvirtuam completamente o valor real dessa afirmação. Segundo o
testemunho de Diógenes Laércio, Epicuro afirmava categoricamente que não podia conceber o bem ou a
felicidade do homem senão por meio “dos prazeres do paladar, dos gozos do amor carnal, da audição e da
vista das belas formas”; e Metrodoro, amigo e discípulo de Epicuro, costumava dizer que a pessoa que
segue a doutrina naturalista e epicurista não deve se preocupar com mais nada além do ventre. “Esta elogio
do prazer sensual – escreve o citado Ritter196 – não se encontra contradito nem pelo que Epicuro diz em
outros lugares sobre o prazer da alma, nem pela desaprovação que em outros lugares ele lança sobre os
prazeres sensuais. Para se convencer da verdade do que dizemos aqui, basta examinar aquilo que Epicuro
e sua escola entendiam por prazer da alma. Metrodoro, em um escrito destinado a demonstrar que o
princípio da felicidade está em nós mesmos, mais do que nos bens exteriores, ensina que pelo bem da alma
não se deve entender nada além do estado sadio e tranquilo da carne, acompanhado pela certeza de que tal
estado continuará no futuro. O próprio Epicuro completa esse pensamento, afirmando que todo prazer da
alma resulta e existe na medida e porque a carne goza antecipadamente do deleite de que se trata, porque o
que distingue o prazer intelectual do prazer ou deleite corporal é justamente, como já indicamos acima, que
no primeiro, a experiência de prazer não se limita ao momento atual, mas se estende ao passado e ao futuro;
o que, provavelmente, não quer dizer outra coisa para Epicuro, além de que o prazer do espírito consiste na
memória do prazer passado e na certeza de que o sábio desfrutará do mesmo prazer no futuro... Depois
disso, Epicuro pôde afirmar que o sábio não deixa de ser feliz, mesmo quando sofre terríveis tormentos,
porque, atormentada com dores corporais, a alma do sábio ainda será suficientemente forte para elevar-se
acima da dor do momento e encontrar prazer na lembrança e na esperança. No entanto, o prazer que Epicuro
elogia não consiste na tendência da alma à virtude perfeita, mas apenas no prazer corporal que desfrutamos
no momento presente, e ao qual associamos a lembrança do prazer corporal passado e a esperança do prazer
corporal futuro”.
Ao lado desta teoria moral, essencialmente terrena, utilitária e sensualista, e apesar de sua psicologia
essencialmente materialista, por uma feliz inconsequência, Epicuro admite a existência do livre-arbítrio e
da responsabilidade moral. Gassendi197, em seu Syntagma philosophiae Epicuri, expõe nos seguintes termos
a doutrina deste filósofo em relação ao livre-arbítrio: “A virtude repousa sobre a razão e o livre-arbítrio,
duas coisas inseparáveis e que se correspondem; pois sem o livre-arbítrio, a razão seria inativa, e sem a

196
Histoire de la Philos. ancien., tomo III, lib. X, cap. II.
197
Pierre Gassendi (1592-1655) foi sacerdote francês e doutor em Teologia. Adepto de uma moral oriunda do epicurismo e baseada
no prazer da serenidade, Gassendi tentou conciliar a teoria atomista da antiguidade com a crença cristã na imortalidade da alma,
no livre arbítrio e num Deus infinito. Sua obra principal, Syntagma philosophiae Epicuri, só foi publicada postumamente. Seguiu
a tríplice divisão da Filosofia proposta por Epicuro em [1] Lógica, [2] Física e [3] Ética. Quanto à lógica, opõe-se a Descartes;
quanto à física, segue os atomistas, numa explicação mecânica da natureza e dos sentidos; e, quanto à ética, considera a felicidade
– a que faz consistir na paz de espírito e ausência de dor corpórea – como o fim do homem, que, durante a vida, só o atinge
imperfeitamente. Influenciou os filósofos do século XVIII, especialmente Denis Diderot, precursor do anarquismo. [N.T.]
164
razão o livre-arbítrio seria cego... Este livre-arbítrio é a faculdade de buscar o que a razão julga bom e
rejeitar o que esta julga ruim. A experiência atesta a existência em nós desta faculdade: o bom senso
confirma o mesmo, mostrando que somente merece louvor ou censura aquilo que foi feito livremente, o
que foi feito voluntariamente e por escolha reflexiva. Por esta razão, as leis instituíram justamente prêmios
e castigos; pois nada seria menos justo do que essa instituição, se o homem estivesse sujeito àquela
necessidade que alguns supõem como soberana absoluta de todas as coisas”.
Desnecessário dizer que a virtude, para Epicuro, consiste na investigação e prática dos meios que
conduzem à aquisição e conservação da posse da maior soma de prazer, como a real felicidade do homem,
no sentido antes indicado. Assim, a virtude principal e como que o tronco das demais, é a prudência, cujo
objeto é o interesse pessoal bem entendido, e cujo ofício é reconhecer e procurar para o indivíduo, levando
em conta suas condições pessoais e as circunstâncias que o rodeiam, o caminho que deve seguir, o estilo de
vida que deve adotar para obter e perseverar na posse da maior soma possível de prazer ou deleite.
Não é menor a contradição que se observa em sua doutrina, ou, se quiser, em suas palavras, em relação
à existência e atributos da divindade, a qual considera, às vezes, como mero resultado de vãos terrores do
vulgo, enquanto em outras vezes recomenda o culto e veneração aos deuses, considerando isso como um
dever e uma virtude. Apesar do dito, Epicuro nega que Deus tenha cuidado e providência sobre as coisas
do mundo, que conceda benefícios aos homens, que descuide de recompensar ou punir as obras do homem,
nem nesta vida nem após a morte. Na realidade, o cerne de sua Teologia é um ateísmo mais ou menos
dissimulado, o mesmo que seu fiel discípulo Lucrécio se encarregou de evidenciar. Isto sem mencionar que
os deuses de Epicuro são deuses nominais, visto que não passam de agregados de átomos os mais sutis;
seus corpos são análogos aos corpos humanos, embora mais sutis e nobres; sua figura é a figura humana,
que é a mais perfeita de todas. Assim, não é surpreendente que, entre os antigos, a opinião de que Epicuro,
apenas em palavras e não na realidade, admitisse a existência de Deus fosse muito válida, não faltando
quem o suponha influenciado neste ponto pelo temor do povo ateniense: Nonnullis videri Epicurum, ne in
offensionem Atheniensium caderet, verbis reliquisse Deos, re sustulisse.

§ 87. Filosofia especulativa de Epicuro

A física de Epicuro é a teoria de Demócrito, com poucas modificações. O universo, o Cosmos, é infinito,
eterno e indestrutível; mas é finito, temporal e corruptível pelos seres particulares que o compõem. O
Universo, assim como as partes ou seres que o compõem, são o resultado dos átomos primitivos, os quais,
movendo-se e colidindo eternamente no vazio, deram, dão e darão origem a todos os seres reais. A
variedade de átomos e combinações produzidas pelo seu movimento contém a razão suficiente da
diversidade de substâncias que povoam o mundo, bem como de seus atributos e propriedades. A
imperfeição, os defeitos e males de todo tipo que se observam no Universo provam que este não é obra de
uma inteligência, mas sim do acaso: aquilo que alguns chamam de causas finais são nomes vazios de
sentido; pois o que é atribuído a elas é o resultado do movimento e colisões fortuitas dos átomos. Em
resumo: os átomos, o movimento e o vazio são as causas eternas e únicas do Universo, ou melhor, são o
Universo, o Ser: todas as coisas, todas as substâncias, qualquer seja sua natureza e propriedades, são
formadas por átomos primitivos e se resolvem em átomos.
A [1] extensão ou quantidade, a [2] forma e o [3] peso são as três propriedades dos átomos, os quais,
postos em movimento por causa de seu peso ou gravidade198, formam todos os seres e o mundo, ou melhor,
os infinitos mundos que devem preencher o vazio infinito, pois dizer que neste há apenas um mundo seria
como representar um campo com uma única espiga. Nada se produz ex nihilo, do nada (de nihilo quoniam
fieri nil posse videmus), antes tudo é feito a partir dos átomos primitivos. Tudo o que existe é corpo, e não
há nada incorpóreo, exceto o vazio.

198
Literalmente, “gravidade” (gravitas) é “peso” em latim; e “grave” (gravis) é “pesado”. [N.T.]
165
Até aqui, a concepção cosmológica de Epicuro pode ser considerada uma mera reprodução da antiga
atomística professada por Demócrito. No entanto, é justo mencionar aqui que Epicuro parece ter introduzido
nessa atomística um novo princípio que modifica e altera significativamente o valor e a importância da
concepção atomística. Demócrito tentou explicar a origem e a formação do mundo por meio do movimento
dos átomos no vazio, decorrente ou resultante do peso dos mesmos, resultando daí os seres e o mundo
subordinados, e sujeitos em sua origem e constituição ao destino ou necessidade absoluta. Epicuro propôs-
se a libertar os homens do terror e influência dos deuses, e o mundo ou a natureza da ação e influência da
necessidade fatalista ou destino que os estóicos usavam em sua teoria cosmológica. E, para isso, ele
introduziu ou supôs nos átomos, além do movimento necessário resultante do peso ou gravidade dos
mesmos, outro movimento espontâneo e livre, pelo qual eles podem se desviar da linha reta, produzindo
pequenos desvios (exiguum clinamen, como diz Lucrécio), os quais possibilitam e facilitam múltiplas
colisões e as subsequentes variadas combinações dos átomos. Esse é o novo princípio ou elemento que
Epicuro introduziu na cosmologia atomística, se damos crédito às indicações repetidas e aos trechos
terminantes de Diógenes Laércio, Plutarco, Cícero e Lucrécio. Ao duplo movimento produzido pela colisão
e pelo peso dos átomos, Epicuro acrescenta um terceiro movimento de mínimo desvio (tertius quidam motus
oritur extra pondus et plagam, cum declinat atomus intervallo minimo), com o qual se torna possível a
diversidade de seres por meio da multiplicidade e variedade de combinações atômicas: Ita effici
complexiones et copulationes, et adhaesiones atomorum inter se.
Segundo todas as aparências, a indução e a analogia forneceram a Epicuro o argumento principal para
estabelecer a existência desse terceiro movimento atômico, desse movimento interno e espontâneo de
desvio que constitui a parte original da cosmologia do filósofo de Gargeto ou Samos, e que lhe serviu muito
bem para excluir e negar a causalidade cósmica do destino ou necessidade fatalista, após ter negado e
excluído a causalidade cósmica de Deus. Epicuro, de fato, apenas transferiu e aplicou aos átomos, os
princípios ou germes primordiais das coisas, o movimento voluntário e variável que observamos no homem,
além do movimento mecânico e necessário de seu corpo e de seus membros199, depois do qual, e por uma
espécie de reversão lógica, buscou no movimento primitivo de desvio dos átomos a origem e a razão
suficiente dos atos voluntários e livres dos animais e do homem, atos que devem ser considerados como
aplicações e transformações da força interna que produz o movimento de desvio primitivo que ele supõe
nos átomos. Esse desvio primitivo, que constitui e representa a parte original – se é que há – da doutrina de
Epicuro, serviu-lhe não apenas para explicar a existência da liberdade no homem, como indicado
anteriormente, mas também para negar o processo infinito nas causas e para dar uma razão para a parte
contingente que observamos no mundo, em oposição à necessidade absoluta e universal, ensinada pelos
estóicos e por alguns outros filósofos: Principium quoddam quod fati foedera rumpat. – Ex infinito ne
causam causa sequatur.
A psicologia de Epicuro é a aplicação dessa doutrina e a dedução espontânea de premissas cosmológicas
semelhantes. A alma humana é uma agregação de átomos arredondados, uma substância composta de fogo
ou éter, ar e outro elemento inominado e sutil que reside no peito. A alma está estendida e unida a todo o
corpo humano, como uma substância sutil e delicada a outra mais grosseira. A sensação, assim como a
intelecção, ocorre por meio de imagens ou simulacros materiais que se desprendem dos objetos, flutuam
no ar, entram pelos órgãos dos sentidos, fixam-se e sucedem-se na alma. Todos os conhecimentos se
reduzem a sensações e antecipações. As primeiras são o resultado imediato da impressão produzida na alma
pelas imagens atômicas e sutis que se desprendem dos corpos. As segundas são o resultado das sensações
e uma espécie de generalização das mesmas, ou melhor, uma coleção de sensações, já que, de acordo com
Diógenes Laércio, Epicuro definia a antecipação como “uma memória daquilo que se nos tem representado
externamente com frequência”. Os discípulos de Epicuro costumavam dar a essas antecipações os nomes
de compreensão, pensamento, idéia racional; mas qualquer que seja a denominação dessas mesmas, é certo

199
Isso é o que se depreende claramente de algumas passagens de Lucrécio, o qual conhecia a fundo o pensamento de Epicuro,
entre as quais podem citar-se as seguintes: Ut videns initium motus a corde creari / Ex animique voluntate id procedere primum (...)
/ Quare in seminibus quoque idem fateare necesse est/ Esse aliam, praeter plagas et pondera, causam / Motibus, unde haec est
nobis innata potestas. (De natura rer., 2º, v. 260ss.)

166
que não são nada além do resultado ou produto quase mecânico da sensação, à qual estão essencialmente
ligadas.
A crença na imortalidade da alma humana é uma apreensão vã. “Para se libertar de tais apreensões – diz
ele –, acostume-se a considerar que a morte é o nada para nós. O mal ou o bem só surgem dos sentimentos,
e todo sentimento se encerra com a vida. Enquanto vivemos, a morte não existe para nós: quando ela já
ocorreu, nós já não somos nada”.
A sensação, o pensamento, com as demais faculdades da alma, são resultado da força inerente aos
átomos e da combinação destes, ou melhor, da força motriz essencial aos átomos dos quais ela é composta.
Que a alma consiste de átomos, ainda que mais sutis do que aqueles que compõem o corpo, e que suas
faculdades e ações são meras manifestações da força interna da matéria atômica, é comprovado pela relação
e dependência entre as mutações do corpo e as vicissitudes da alma e suas faculdades. A alma se desenvolve
e se aperfeiçoa à medida que o corpo se desenvolve e se aperfeiçoa. Suas faculdades e funções, fracas na
infância, vigorosas na virilidade, declinam e atrofiam na velhice, e nós também observamos que elas
aumentam e diminuem, mudam, se modificam, surgem e desaparecem com as mudanças, vicissitudes e
doenças do corpo.

§ 88. Crítica
(materialismo)
O primeiro aspecto que chama a atenção na Filosofia de Epicuro é a sua perfeita conformidade com o
positivismo e materialismo contemporâneos, nos pontos fundamentais, e até mesmo nas provas
apresentadas para negar a criação, a causalidade final e a imortalidade da alma humana. Além disso, o
sistema de Epicuro contém não apenas o germe, mas a substância da concepção transformista do
movimento, única parte do materialismo contemporâneo que se apresenta com certo aspecto de
originalidade. Pois é indubitável que para Epicuro o movimento, como força interna e essencial aos átomos,
é a origem, o fundo e a causa primeira de todas as outras forças e manifestações ativas que aparecem e
desaparecem nos corpos, da mesma maneira que para os positivistas de nosso século, todas as manifestações
de força e atividade, desde a simples atração até o pensamento, são transformações do movimento, o qual
se encontra no fundo de todas elas, não apenas como sua condição sine qua non, mas como germe e essência
comum das mesmas. (sensualismo)
No campo da psicologia, a doutrina de Epicuro é essencialmente sensualista. Sua teoria do conhecimento
é muito semelhante à de Condillac200; na realidade, todas as faculdades e conhecimentos do homem se
reduzem à sensação. Sensações puras ou primitivas, sensações generalizadas pela memória, sensações
transformadas e combinadas de diferentes maneiras: isso é o que constitui e representa o conteúdo interno
e real do conhecimento humano em todas as suas esferas. Não existe em nosso espírito qualquer atividade
intelectual, nativa, livre e superior às sensações: o que chamamos de reflexão racional e científica não passa
de recordação e combinação de sensações passadas e presentes. A sensação dá origem à memória, e a
memória torna possíveis os juízos, generalizando as sensações, não por via de abstração, mas por meio de
coleta, combinação e analogia. (síntese de materialismo e hedonismo)
Além disso, a Filosofia de Epicuro é uma síntese, ou melhor, uma amalgama mais ou menos incoerente
da física materialista de Demócrito e do hedonismo cirenaico, cujas correntes enfraquecidas foram
finalmente absorvidas na grande corrente epicurista. É justo notar, no entanto, que a teoria moral de Epicuro
é superior à dos cirenaicos, seja porque Epicuro parece subordinar os prazeres sensuais do corpo aos

200
Discípulo de John Locke, Étienne Bonnot de Condillac (1714-1780), Abade de Mureau, é o pai do sensualismo, doutrina radical
do empirismo, segundo a qual a experiência é só a fonte material das idéias, mas o próprio método de conhecimento. Tendo sido
ordenado em 1733, renunciou ao sacerdócio e orgulhava-se de ter celebrado Missa somente uma vez na vida, como dizia a Rousseau.
Foi membro da Academia Real de Ciências da Prússia (1749) e da Academia Francesa (1768), mesmo tendo se recusado a educar
os filhos do Delfim, os futuros Reis Luís XVI, Luís XVIII e Carlos X. Autor de Essai sur l’origine des connaissances humaines,
cobre as origens do conhecimento; Traité des systèmes; Traité des sensations; Traité des animaux, (que escreve como uma crítica
à Histoire naturelle de Buffon, o qual influenciou fortemente Lamarck e Darwin); Cours d’études, em 13 volumes e colocado no
Index Librorum Prohibitorum; Le Commerce et le gouvernement considérés relativement l’un à l’autre; La Logique ou l’art de
penser, comissionado pelo governo da Polônia para a educação da juventude do país; e a obra póstuma Langue des calculs. [N.T]
167
prazeres da alma, como a amizade, a alegria, o elogio etc., enquanto os cirenaicos davam a primazia aos
prazeres do corpo, seja também porque o primeiro considerava como parte principal e essência fundamental
da felicidade a ausência de coisas penosas para o corpo e a mente, enquanto os segundos faziam consistir a
felicidade nas emoções agradáveis, nas sensações voluptuosas. (princípios contraditórios)
A verdade é que a moral de Epicuro encerra dois elementos relativamente opostos: um é representado
por seus princípios gerais sobre o prazer como fim último e única felicidade do homem, juntamente com a
negação da vida futura; o outro consiste em seu ensinamento sobre a primazia dos prazeres da alma sobre
os do corpo, e sobre os inconvenientes e perigos do abuso dos prazeres sensuais. Como geralmente acontece
nesses casos, seus discípulos e seguidores deixaram de lado o segundo elemento e dedicaram seus esforços
a cultivar e desenvolver o primeiro, exagerando e distorcendo suas aplicações no campo teórico e prático.
Daí o desprezo e a aversão com que os representantes dessa escola chegaram a ser geralmente vistos, e daí
também as perseguições que sofreram, sendo expulsos das cidades e proibido, em mais de uma ocasião, o
ensino de sua doutrina nas escolas públicas.
Apesar dos esforços que Gassendi e outros fizeram em diferentes épocas para reabilitar a memória e a
doutrina de Epicuro, é preciso reconhecer que ele, como homem de ciência, significa pouca coisa ao lado
de Platão e Aristóteles. Além disso, suas opiniões pueris sobre o sistema do mundo, principalmente sobre
o tamanho do sol e da lua, justificam esse julgamento. Epicuro afirmava seriamente que o sol não é maior
do que parece aos nossos olhos, afirmação que seu fiel discípulo e intérprete Lucrécio repete e segue quando
escreve: “Nec major, esse potest nostris quam sensibus esse videtur.”
Apesar disso, a concepção cosmológica de Epicuro, tomada como um todo, é relativamente superior e
mais verdadeira do que a de Demócrito. É certo que a concepção cosmológica de ambos é essencialmente
mecânica; mas enquanto o filósofo de Abdera, seguindo uma lógica mais precisa e severa, estabelece e
afirma o fatalismo ou necessidade absoluta no processo de causas e efeitos201, Epicuro, negligenciando, se
assim se quiser, as exigências da lógica, estabelece e admite certa contingência causal, fundamentada em
uma certa inclinação dos átomos (Epicurus declinatione atomi, vitari fati necessitatem putat), pela qual
eles se desviam mais ou menos da linha reta e fixa que deveriam seguir, em virtude do peso ou força
mecânica interna202 . Vê-se, pelo exposto, que a concepção cosmológica de Epicuro, sem deixar de ser
mecânica no fundo, como a de Demócrito, envolve um certo desvio dinâmico, que constitui sua
originalidade e, se assim se quiser, seu avanço sobre a concepção de Demócrito, mesmo que, como observa
com justiça Cícero, o movimento desviador dos átomos seja apenas uma hipótese gratuita, uma invenção
de Epicuro para se livrar do destino universal do estoicismo e da necessidade absoluta e fatalista de seu
mestre Demócrito: Qui aliter obsistere fato fatetur se non potuisse, nisi ad has commentitias declinationes
confugisset.

§ 89. Discípulos e sucessores de Epicuro

A corrupção generalizada que, após a morte de Epicuro, se apoderou da Grécia e da Ásia, a decadência
nos costumes, a irreligião e o descrédito que reinavam nesses países, ao mesmo tempo em que os epicuristas
começavam a se propagar em Roma e nas províncias sob seu domínio, contribuíram poderosamente para o
desenvolvimento, a expansão e a permanência, ao longo de séculos, da escola epicurista entre os gregos e
os romanos. Se bem seja verdade que a importância e o mérito de seus discípulos e seguidores não
corresponda ao seu número; pois, exceto por Lucrécio, famoso autor do poema De rerum natura,
dificilmente há alguém digno de especial menção.

201
“Democritus – escreve Cícero – auctor atomorum accipere maluit, necessitate omnia fieri, quam a corporibus individuis
naturales motus avellere.” De Fato, cap. X.
202
O já citado Cícero escreve acerca disto: “Epicurus, cum videret, si atomi ferrentur in locum inferiorem suopte pondere, nihil
fore in nostra potestate, quod esset earum motus certus et necessarius, invenit quomodo necessitatem effugeret. Ait atomum, cum
pondere et gravitate directe deorsus feratur, declinare paullulum.” De natura Deor., lib. I, cap. XXV.
168
a) Diógenes Laércio, que revela certa predileção por Epicuro e certo prazer bastante significativo na
exposição de sua doutrina, fala de seus discípulos e sucessores mais próximos nos seguintes termos: “Teve
muitos e mui sábios discípulos, como Metrodoro de Lâmpsaco (Μητρόδωρος Λαμψακηνός), que, desde
que o conheceu, nunca o abandonou, exceto pelos seis meses em que esteve em casa, e logo voltou... Era
de uma constância de ânimo admirável diante das adversidades e até diante da própria morte, como diz
Epicuro no Primeiro Metrodoro. Dizem que morreu sete anos antes de seu mestre, aos cinquenta e três anos
de idade; foi também discípulo de Epicuro”

b) “Polieno de Lâmpsaco (Πoλύαινoς Λαμψακηνός), filho de Atenodoro, homem benevolente e


amável, como o chamou Filodemo. Também foi seu sucessor na escola Hermaco de Mitilene (Ἕρμαρχoς),
que no início seguia a oratória. Dele restam excelentes obras, que são vinte e duas Cartas sobre Empédocles
e Sobre as Matemáticas, contra Platão e Aristóteles. Morreu na casa de Lísias este ilustre indivíduo.
Também foram seus discípulos Leôncio (Λεοντεύς) e sua esposa Temístia (Θεμίστη), a quem Epicuro
escreveu, assim como Colotes (Κολώτης) e Idomeneu (Ἰδομενεύς), todos naturais de Lâmpsaco.”

c) Polistrato (Πολύστρατος) sucedeu Hermaco na direção da escola; depois dele, veio Dionísio
(Διονύσιος), cuja morte deu lugar ao controle da escola epicurista por Basilides e, em seguida, Apolodoro,
autor de mais de quatrocentas obras. Seu discípulo Zenão, oriundo de Sídon, também escreveu várias obras,
segundo o já mencionado Diógenes Laércio. Filodemo (Φιλόδημος ὁ Γαδαρεύς), discípulo de Zenão,
assim como os dois Ptolomeus de Alexandria, Demétrio de Lacônia e Diógenes de Tarso, preservaram as
tradições e o ensinamento da doutrina de Epicuro, sem introduzir modificações notáveis ou
desenvolvimentos científicos. Geralmente, eles se limitaram a reproduzir e popularizar a doutrina de seu
mestre, embora alguns tenham enfatizado as tendências materialistas e ateístas do mesmo. Os adeptos
gregos do epicurismo foram superados nessa área pelo entusiasta admirador do Grajus homo, ou seja, pelo
autor do poema De rerum natura, como veremos adiante.

169
Terceiro Período da Filosofia Grega
§ 90. Crise e decadência na Filosofia Helênica

O grande e fecundo movimento filosófico iniciado por Sócrates, desenvolvido e completado por Platão,
Aristóteles, Zenão e Epicuro, entrou em manifesta e rápida decadência com a morte de seus últimos
representantes. Quando estes desapareceram, quando morreram Zenão e Epicuro, o cetro da Filosofia Grega
que eles sustentavam em suas mãos, embora não com a elevação de ideias nem com a verdade com que
sustentaram Platão e Aristóteles, esse cetro caiu por terra em pedaços. Careciam de vigor e força para
sustentar levantado no alto esse cetro os braços débeis dos discípulos e sucessores de Platão, que se
entregaram a um ceticismo estreito; os braços dos discípulos e sucessores de Aristóteles, que se
precipitaram nas correntes do materialismo; e também os dos discípulos e sucessores de Zenão e Epicuro,
que nem sequer souberam preservar a grandeza relativa das concepções estóicas e atomistas, consideradas
como concepções mais ou menos originais, embora imprecisas e errôneas no fundo. Pode-se dizer que o
esforço gigantesco, as grandes produções do espírito helênico, realizadas por Platão e Aristóteles, Zenão e
Epicuro, haviam esgotado suas forças e vitalidade.
Mal se tinha passado um século desde a morte de Sócrates, mal se tinha extinguido o eco da voz desses
grandes representantes e atores do movimento socrático, quando vemos a Filosofia Grega entrar em um
período de visível decadência, degenerar rapidamente, agitar-se em lutas estéreis, caminhar com passos
vacilantes e inseguros, e adotar direções múltiplas, mas infrutíferas até que, posta em contato com o
elemento oriental e com o elemento cristão, obedecer a um movimento sincrético e produzir a concepção
neoplatônica, a qual representa os últimos resplendores da Filosofia Grega considerada em si mesma,
considerada como doutrina independente e isolada do Cristianismo. E dizemos isso porque, ao lado do
movimento neoplatônico, devido principalmente à combinação do elemento filosófico grego com o
elemento filosófico ou, melhor dizendo, teosófico oriental, acontecia outro movimento paralelo, devido à
combinação da parte mais racional e elevada da Filosofia grega com o elemento cristão. Essa combinação
primitiva, essa síntese inicial continha a semente do grandioso e belo edifício que os Padres da Igreja e os
Doutores escolásticos iriam construir ao longo do tempo, conhecido na história como Filosofia Cristã.
A História nos ensina que sempre que em determinado ponto surgem e se desenvolvem vários sistemas
filosóficos, esse surgimento e desenvolvimento geralmente dão origem a um movimento [1] cético e [2]
eclético. E a manifestação desse duplo movimento é natural e lógica; porque a luta e os ataques recíprocos
dos diferentes sistemas produzem e desenvolvem, em certos espíritos, [1] dúvidas e desconfianças em
relação a todos eles. Essa desconfiança se transforma e se converte facilmente na ideia de que a verdade
não existe ou é inacessível para nós, enquanto em outros espíritos o exame crítico dos diferentes sistemas
gera [2] a ideia ou convicção de que a verdade se encontra fragmentada e dispersa nos mesmos. Daí decorre
que os primeiros dirigem seus esforços para estabelecer a falsidade de todos os dogmatismos e mostrar a
impotência mais ou menos radical da compreensão humana em conhecer a realidade das coisas, em atingir
a consciência certa e reflexa da verdade. Os esforços dos segundos visam a reconhecer e separar a verdade
e o erro parciais nos diferentes sistemas, para alcançar a posse da verdade integral, da consciência absoluta
e perfeita.
Tal deveria suceder, e sucedeu efetivamente, durante o período socrático, cuja história acabamos de
esboçar, mas principalmente quando havia dado à luz seus sistemas mais originais e importantes, ou quando
havia terminado seu ciclo criador. Ao lado e após os sistemas dogmáticos e mais ou menos contraditórios
de Platão, Antístenes, Aristipo, Aristóteles, os estóicos e Epicuro, surgem [1] o ceticismo e [2] o ecletismo,
apresentando por sua vez variedade de escolas, fases e graus em relação a seus fundadores e principais
representantes, ao caráter dos dogmatismos que motivaram sua origem e até mesmo às cidades que serviram
de centro de irradiação para sua doutrina. Nem Atenas nem Roma, por exemplo, apresentavam condições
tão favoráveis quanto Alexandria para o movimento eclético e sincrético, que teve seu assento e foco
principal na cidade de Alexandre e dos Ptolomeus.

170
Portanto, o período cuja História vamos traçar é um período de crise, transição, decadência e
fermentação, sendo assim bastante difícil classificar e ordenar seu conteúdo com rigoroso método. Para
tentar alcançar isso o máximo possível, falaremos sobre:

a) o movimento cético que durante este período se apoderou da Filosofia grega e de suas principais fases,
o ceticismo pirrônico, o acadêmico e o positivista;

b) a propagação e os representantes da Filosofia helênica e de suas diferentes escolas entre os romanos;

c) o movimento eclético e sincrético do próprio, e dos sistemas ou escolas que foram resultado desse
movimento da Filosofia grega, principalmente de seu contato e fusão com as ideias científicas e tradições
religiosas do Oriente.

(Serapeu – Complexo da Biblioteca de Alexandria)

171
§ 91. Ceticismo pirrônico
EPOCHÉ
a) Pirro (Πυρρος), de quem recebeu o nome este ceticismo, era natural de Élida, contemporâneo de
Aristóteles, e acompanhou Alexandre Magno, em suas expedições pelo Egito, Pérsia e Índia.
Ao retornar à sua pátria, começou a dogmatizar no sentido cético e a viver e agir em
harmonia com sua teoria, se damos crédito a Diógenes Laércio, que relata várias
anedotas203 que confirmam isso. Foi muito respeitado por seus concidadãos e morreu
numa idade avançada de noventa anos.
De acordo com os testemunhos mais fidedignos, Pirro negava apenas ao
homem o conhecimento da verdade objetiva e da essência das coisas, mas não
negava a realidade subjetiva nem o valor dos sentidos como norma de conduta prática
no processo da vida. O homem deve agir de acordo com as prescrições da lei, da qual
emana a distinção entre o bem e o mal; mas deve abster-se de afirmar ou negar qualquer
coisa sobre a realidade objetiva do mundo externo, das coisas sensíveis e, com maior
razão, das coisas espirituais. Os efeitos e impressões que ele experimenta em si mesmo
não dão direito ou meio ao homem para afirmar algo a favor ou contra a existência e a
natureza das causas. Nessa quietude de julgamento [epoché – εποχη] e na execução cega
das leis reside a felicidade do homem.

b) A escola de Pirro durou pouco tempo após sua morte, e o representante mais notável foi seu
compatriota e amigo, o médico Timão (Τίμων), que escreveu um poema satírico com o objetivo exclusivo
de destacar as contradições em que os metafísicos ou dogmáticos de todas as escolas haviam incorrido,
desde Tales até seu contemporâneo Arcesilau. Tanto nesse como em outros escritos céticos, Timão se
esforça para provar que ao homem é dado apenas conhecer o que as coisas parecem a seus sentidos e seu
entendimento, mas não lhe é dado conhecer sua natureza ou realidade objetiva. O que os filósofos e
metafísicos costumam nos oferecer como uma tese certa ou como conclusões demonstradas não passam e
jamais serão mais do que hipóteses mais ou menos plausíveis. Como se vê, o ceticismo de Timão, assim
como o de seu mestre, é um ceticismo objetivo, mas não absoluto ou subjetivo.

Diógenes Laércio indica que o fundador do ceticismo em questão não escreveu obra alguma (Pyrrho
quidem ipse nullum reliquit opus) para ensinar e difundir sua doutrina, deixando isso a cargo de seus
discípulos, entre os quais destaca-se o já mencionado Timão, a quem se deve principalmente a consolidação
e propagação do ceticismo pirrônico, seja pelos elogios que presta ao fundador dessa doutrina 204 ,
comparando sua vida com a dos deuses (solus ut in vivis gereres te Numinis instar), seja pelo
desenvolvimento que deu às razões e argumentos em favor do ceticismo.
Embora tenha sido o principal ou mais célebre, Timão não foi o único discípulo e sucessor de Pirro, pois
também o foram Euríloco, acérrimo inimigo dos dogmáticos – ou sofistas, como os chamavam os pirrônicos
–; Fílon, muito experiente e habilidoso em disputas dialéticas contra os dogmáticos; Hecateu, natural de
Abdera; e Nausífanes, que foi professor de Epicuro, de acordo com alguns autores antigos, o que está em
perfeita consonância com as tendências cético-sensualistas desse filósofo e com o desprezo ou nenhuma
importância e valor que ele concedia à dialética, se devemos acreditar em Cícero, quando escreve que
Epicuro totam dialecticam et contemnit et irridet (desdenha e ridiculariza toda dialética).

203
Diógenes Laércio conta e afirma, entre outras coisas, que Pirro não se desviava dos carros, cães e precipícios que encontrava
em seu caminho, tendo seus discípulos que cuidar para afastá-lo desses perigos, baseando-se no fato de que não se deve dar crédito
algum ao testemunho dos sentidos. Em uma ocasião, passou ao lado de Anaxarco, que havia sido seu mestre e que havia caído em
um lamaçal, sem parar para lhe prestar auxílio para sair.
204
No já citado poema diz, entre outras cosas, dirigindo-se a seu mestre e em louvor do mesmo:
Miror qui tandem potuisti evadere Pyrrho.
Turgentes frustra, stupidos vanosque sophistas.
Atque imposture fallacis solvere vincla.
Nec fuerit curae scrutari, Graecia quali.
Aëre cingatur, neque ubi aut unde omnia constent.
172
§ 92. Ceticismo acadêmico

O ceticismo acadêmico deve sua origem a uma transformação da escola platônica. Arcesilau
(Ἀρκεσίλαος), natural de Pítane, na Eólia, discípulo sucessor de Crates na Academia, foi o autor dessa
transformação. Com a intenção de opor uma barreira e correção ao dogmatismo exagerado de Zenão e
Crisipo, ressuscitou e reintroduziu o método socrático nas controvérsias filosóficas, empregando a ironia,
a interrogação e a dúvida. Os procedimentos céticos por parte do método levaram-no ao ceticismo objetivo,
e seus ataques às ideias claras dos estoicos como critério da verdade levaram-no a exagerar as ilusões dos
sentidos e a impotência da razão para assegurar-se da realidade objetiva das coisas e chegar à posse
científica e refletida da verdade. Sócrates havia dito: só sei que nada sei; e Arcesilau, desenvolvendo o
gérmen cético do mestre de Platão, adicionou: nem mesmo sei com certeza que nada sei. No entanto, seu
ceticismo não se estendia à ordem moral, cuja fixidez ele admitia com os estoicos, limitando-se à ordem
especulativa e metafísica. Seus discípulos e sucessores imediatos foram Lácides de
Cirene, Evandro de Fócida e Hegesino de Pérgamo. Seu sistema é geralmente
conhecido na história da Filosofia pelos nomes de Academia Média,
Academia Segunda, para distingui-la da

b) Academia Nova ou Terceira Academia, que deve sua origem ao filósofo


Carnéades. Ele nasceu em Cirene, dois séculos antes de Jesus Cristo; e, tendo
sido enviado a Roma como embaixador em 155 a.C., chamou a atenção dos
romanos com sua eloquência e, ainda mais, com sua doutrina filosófica, que parece diferir pouco no fundo
da de Arcesilau. Ambos opunham à percepção compreensiva (catalepsia) dos estoicos a
incompreensibilidade (acatalepsia) objetiva das coisas, ou seja, a impossibilidade de conhecer com certeza
e evidência o que as coisas são em si mesmas, sua realidade objetiva.
Alguns deles, no entanto, e especialmente os representantes da Academia Terceira ou Nova,
reconheciam o valor relativo e a legitimidade prática dos sentidos, assim como reconheciam a possibilidade
e suficiência da verossimilhança ou probabilidade racional para a orientação da vida. Erram, de acordo com
Cícero, aqueles que pensam que os acadêmicos negam absolutamente o testemunho dos sentidos; pois o
que eles realmente lhe negam é a razão de critério, ou a nota própria para discernir o verdadeiro do falso.
Eles também não negam todo tipo de afirmação e negação, mas sim aquela que se refere à realidade objetiva
das coisas, ou melhor dizendo, à cognoscibilidade certa e evidente dessa realidade objetiva. No entanto,
podemos formar julgamentos prováveis sobre as coisas205, que são suficientes para a direção e ordem da
vida, embora seja admitido que o homem conhece com certeza e compreende verdadeiramente a natureza
ou o ser das coisas como são em si mesmas, cuja realidade ou essência e atributos permanecem
incompreensíveis à razão humana.
O argumento fundamental com o qual eles se apoiavam para chegar a essa conclusão é a impossibilidade
de reconhecermos com certeza e evidência se nossas percepções e ideias são ou não conformes aos objetos
aos quais se referem nossas representações. Assim, poderia ser dito que, na verdade, a doutrina de Arcesilau
(Academia Média) e a de Carnéades (Academia Nova) representam uma doutrina mais idealista do que
cética, ou pelo menos que seu aspecto cético é uma dedução e resultado de sua concepção idealista. O
ceticismo acadêmico tem bastante analogia com o ceticismo idealista de Berkeley e com o ceticismo crítico

205
Merece ser lida a passagem em que Cícero expõe e resume o pensamento académico a que se alude no texto: “Vehementer errare
eos, qui dicant, ab Academia sensus eripi, a quibus nunquam dictum sit, aut colorem, aut saporem, aut sonum nullum esse; illud sit
disputatum non inesse in his propriam, quae nusquam alibi esset, veri et certi notam.
“Quae cum exposuisset, adjungit, dupliciter dici assensum sustinere sapientem: uno modo, cum hoc intelligatur, omnino eum rei
nulli assentiri; altero, cum se a respondendo, ut aut approbet quid, aut improbet, sustineat, ut neque neget aliquid, neque ajat. Id
cum ita sit, alterum placere, ut nunquam assentiatur, alterum tenere, ut sequens probabilitatem, ubicumque haec aut accurrat, aut
deficiat, aut etiam, aut non respondere possit. Nam, cum placeat, eum, qui de omnibus rebus contineat se ab assentiendo, moveri
tamen et agere aliquid, reliquit (Carneades) ejusmodi visa, quibus ad actionem excitemur. Non enim lucem eripimus, sed ea quae
vos percipi comprehendique, eadem nos, si modo probabilia sint, videri dicimus.» Lucul., cap. XXXII.
173
de Kant nos tempos modernos. Mais ainda: a analogia entre Arcesilau e Kant se torna mais notável se
considerarmos que, assim como o filósofo de Koenisberg colocou a ordem moral fora do princípio cético
por uma feliz inconsequência, o filósofo grego não estende nem aplica ao ordenamento prático o rigor
acataléptico que professa no âmbito especulativo.
Afora isso, a diferença entre Carnéades e Arcesilau, entre a Academia Nova e a Academia Média,
consiste mais no método de procedimento e aplicação. Carnéades, além de acentuar de forma mais idealista
a doutrina de Arcesilau, distingue-se pela crítica sutil e universal dos sistemas filosóficos, especialmente
do estoicismo, que ele perseguiu sem trégua, refutando e demolindo uma por uma todas as suas afirmações
dogmáticas.

c) Clitômaco (Κλειτόμαχος), natural de Cartago, discípulo e sucessor de Carnéades, limitou-se a


continuar o ensino de seu mestre e a colocar por escrito seus argumentos e ataques contra os estoicos.

d) Seu discípulo e sucessor Fílon de Larissa (Φίλων), no entanto, não seguiu seu exemplo e iniciou, no
seio da Academia platônica, um movimento de restauração anticética, esforçando-se para restabelecer o
dogmatismo moderado da antiga Academia. Segundo Sexto Empírico, este Fílon reconhecia a possibilidade
de conhecer os objetos com certeza e evidência, admitindo também certas proposições lógicas como
absolutamente certas e verdadeiras.

e) Esse movimento de restauração dogmática, que Fílon havia apenas iniciado, recebeu desenvolvimento
e complemento nas mãos de Antíoco de Áscalon (Ἀντίοχος), que admitia a evidência intelectual ou
percepção clara da razão como critério da ciência206 e, ainda mais, reconhecia a evidência dos sentidos207
como razão e fonte de juízos certos e verdadeiros.

Considerando as profundas diferenças doutrinárias que separam esse filósofo das teorias cético-
idealistas professadas por Arcesilau e Carnéades, alguns deram ao seu grupo o nome de Academia
Novíssima. Mas a verdade é que a doutrina de Antíoco não é nem cética nem acadêmica; sua solução para
o problema crítico participa ao mesmo tempo da solução platônica, da estoica e da peripatética. Fílon de
Larissa e, especialmente, Antíoco de Áscalon representam a transição do ceticismo para o sincretismo e
preparam o caminho para o ecletismo mais elevado e sistemático da escola de Alexandria.

§ 93. Ceticismo positivista. Enesidemo

Enquanto no ceticismo acadêmico ocorria um movimento de restauração, no qual ele se transformava


em dogmatismo eclético, surgia uma nova escola de céticos positivistas e empiristas, que não apenas
ressuscitava o antiquado pirronismo, mas também lhe dava uma extensão e um desenvolvimento nunca
antes alcançados. O primeiro representante notável desse ceticismo foi Enesidemo (Αἰνησίδημος), natural
de Cnossos, em Creta, o qual parece ter ensinado em Alexandria, embora se desconheça a época exata em
que floresceu – alguns o consideram contemporâneo ou pouco posterior a Cícero, enquanto outros
acreditam que viveu no primeiro século da era cristã. Seja como for, é certo que em seus Oito livros sobre
o pirronismo – dos quais possuímos apenas fragmentos e o extrato conservado nas obras de seu
correligionário Sexto Empírico –, ele expõe e desenvolve as principais razões em que se baseia o ceticismo
positivista e empirista. Os céticos chamavam essas razões ou motivos de dúvida universal de “tropos”, e
são em número de dez, sendo as principais as seguintes:

206
Assim se depreende da doutrina que Cícero lhe atribui por boca de Lúculo, quando escreve nas suas Questões Acadêmicas: “Et
cum accessit ratio, argumentique conclusio, tum... eadem ratio perfecta his gradibus, ad sapientiam pervenit. Ad rerum igitur
scientiam vitaeque constantiam, aptissima cum sit mens hominis, amplectitur maxime cognitionem.”
207
Eis as palavras que quanto a este ponto põe em sua boca o citado Cícero: “Ordiamur igitur a sensibus, quorum ita clara judicia
et certa sunt... Meo judicio ita est maxima in sensibus veritas, si et sani sunt et valentes, et omnia removentur quae obstant et
impediunt.” Acad. Quaest., lib. II, cap. X.
174
1º A diversidade de organização observada entre os seres sensíveis e a consequente diversidade e
oposição das impressões produzidas pelos objetos nesses seres.

2º A diversidade na organização humana, da qual deve resultar e resulta a diversidade de impressões,


ideias e inclinações, que deveriam ser idênticas se não houvesse diversidade na organização dos indivíduos.

3º A variedade e oposição de sensações produzidas pelo mesmo objeto. Um pássaro com plumagem
bonita e canto desafinado produz uma sensação agradável para a vista e, ao mesmo tempo, desagradável
para o ouvido. Por outro lado, é muito possível que esse objeto, que nos parece uno apesar das impressões
contrárias que causa em nós, seja na realidade múltiplo e composto de elementos essenciais que nós não
percebemos por falta de sentidos adequados, assim como a visão não percebe a música por não ser um
sentido adequado para perceber essa realidade.

4º A dependência e a mutabilidade de nossas percepções em relação à distância, situação e outras


circunstâncias que cercam o objeto. O mesmo elefante que parece muito grande quando visto de perto
parece pequeno a uma certa distância. Isso significa que, embora possamos conhecer e afirmar o que esses
objetos são para nós em determinada situação, em determinada distância, em determinada condição, não
podemos afirmar nem conhecer o que esses objetos são em si mesmos e independentemente dessas
condições.

5º As modificações ou mudanças do sujeito que percebe. O objeto que nos causa tal sentimento ou
emoção na juventude nos causa algo diferente na velhice; na doença, vemos e sentimos as coisas de maneira
diferente do que na boa saúde, de modo que a natureza do juízo e do sentimento em relação ao objeto
mudam e se relacionam com o estado do sujeito.

6º A quantidade das coisas modifica e muda completamente suas qualidades e, portanto, essas
qualidades não podem nos orientar no conhecimento de sua verdadeira natureza. Certas substâncias
venenosas, em pequenas doses, servem como remédio, e as mesmas, em maior quantidade, causam doença
e morte.

7º Podemos conhecer e sabemos o que é uma coisa em relação a outra e as impressões que ela causa em
nós; mas não sabemos o que ela é em si mesma, ou em relação à sua essência íntima; porque nada nos
assegura que a relação de uma coisa com outra, ou a impressão que ela causa em nós, seja a norma e a
medida de sua realidade objetiva.

8º A influência do costume, da educação, da sociedade e da religião. Um eclipse, ou o aparecimento de


um cometa, chama nossa atenção e nos impressiona vivamente, porque não são frequentes, enquanto a visão
do sol não nos impressiona nem chama nossa atenção, pois estamos habituados a ela. O judeu educado na
religião de Moisés considera IHWH como o verdadeiro Deus e Júpiter como um ídolo vão.

Enesidemo não se contenta em basear o ceticismo nessas razões gerais; ele submete a uma crítica
minuciosa, sutil e implacável as principais concepções da Filosofia dogmática, e especialmente a ideia de
causalidade, que é talvez a mais essencial e transcendental no campo da ciência. Sexto Empírico expõe nos
seguintes termos a crítica que o filósofo de Cnossos faz à ideia de causa:
Um corpo não pode ser causa de outro corpo; pois se age por si mesmo imediatamente, só pode produzir
o que já está em sua própria natureza. Para agir através de outro corpo, seria necessário que dois se
tornassem um, e além disso, essa produção intermediária se estenderia ao infinito. O que é corpóreo não
pode ser causa de um ser incorpóreo, porque os seres só podem produzir o que contêm e, por outro lado,
o que é incorpóreo não pode ter contato, agir ou experimentar ação. Um corpo não pode ser causa de
um ser incorpóreo e vice-versa, porque um não contém a natureza do outro...

175
As coisas que coexistem não podem ser a causa uma da outra; porque cada uma delas teria igual direito
de exercer essa prerrogativa. Uma coisa anterior não pode ser causa de outra que vem depois, pois a
causa não existe se o efeito não existir ao mesmo tempo, já que ele deve estar contido naquela, e além
disso, constituem uma relação cujos termos são simultâneos e correlacionados. Seria ainda mais absurdo
dizer que a causa pode ser posterior ao efeito.
Aceitaremos uma causa perfeita, absoluta, que age por sua própria energia e sem qualquer matéria
externa? Nesse caso, agindo por sua própria natureza e em posse permanente de seu poder, ela deveria
produzir seu efeito incessantemente, sem se mostrar ativa em alguns casos e inativa em outros.
Afirmaremos, com alguns dogmáticos, que a causa precisa de uma matéria externa sobre a qual ela age,
de forma que uma produza o efeito e a outra o receba? Nesse caso, a palavra causalidade expressará
apenas a relação combinada de dois termos, sem haver motivo para atribuir a propriedade de causa a um
mais do que ao outro, uma vez que um dos termos não pode prescindir do outro.

Depois de atacar a ideia de causa com esses e outros argumentos metafísicos, Enesidemo recorre aos
argumentos empíricos provenientes da experiência e observação dos fatos. A brevidade que nos
propusemos não nos permite expor esses últimos argumentos, então basta lembrar que o filósofo de Cnossos
pode ser considerado um legítimo precursor de Hume no campo metafísico, e também um legítimo
precursor dos materialistas de nossos dias no campo empírico e positivista. Entre Enesidemo e os
positivistas de nosso século, há ainda outro ponto de contato e afinidade, que é sua predileção e tendência
comum para a física atomista-naturalista.

§ 94. Sexto Empírico

Entre os sucessores de Enesidemo, além de Favorino, natural de Arles, na Gália, cujo ceticismo é
conhecido apenas pelos títulos de suas obras e por indicações mais ou menos vagas de Galeno, distinguiram-
se Agripa e o médico Sexto, que recebeu a denominação de Empírico devido à escola médica a que
pertencia208, e que floresceu no final do século II da Igreja.
O primeiro destes, ou seja, Agripa, reduziu a cinco os dez tropos ou motivos de dúvida que costumavam
ser alegados pelos pirrônicos, a saber: (1º) a discórdia e contradição nas opiniões e sistemas dos filósofos;
(2º) a necessidade de proceder in infinitum no que é chamado de demonstração, uma vez que as premissas
de toda demonstração precisam, por sua vez, ser demonstradas; (3º) a relatividade, ou melhor, a
subjetividade de nossas sensações e ideias; (4º) o abuso da hipótese, ou seja, a conversão de hipóteses em
teses; (5º) o uso frequente do círculo vicioso.
O segundo assumiu a missão de reunir, desenvolver e condensar respectivamente
todos os argumentos aduzidos a favor do ceticismo desde Pirro até seus dias. Suas
Hypotyposes pyrrhonicae e seu tratado Adversus mathematicos podem ser
considerados como uma compilação e um comentário geral dos trabalhos
anteriores em favor do ceticismo, e como o arsenal comum dos céticos que o
seguiram até os dias de hoje. São obras que contêm apenas poucos traços de
originalidade, mas que possuem o caráter de verdadeiro monumento literário erguido
ao ceticismo, devido à extensão, universalidade e ao método de seus ataques. Porque
Sexto Empírico, além de agrupar e expor em suas obras todos os argumentos do ceticismo, dirige ataques
especiais e diretos contra cada uma das ciências. Sua obra Adversus mathematicos, embora tenha esse título,
contém capítulos ou tratados especiais contra os astrônomos, contra os aritméticos, contra os lógicos, contra
os físicos, contra os matemáticos, contra os moralistas, de forma que poderia muito bem intitular-se
Adversus omnes et singulas scientias.

208
De acordo com Galeno, naquela época, floresciam duas escolas de medicina, cujos seguidores se distinguiram pela preferência
dada às [1] teorias racionais ou à [2] observação e experiência: os primeiros eram conhecidos como [1] metódicos, e os segundos
como [2] empíricos.
176
Na verdade, Sexto Empírico merece ser considerado como o principal representante da escola cética-
positivista que nos ocupa, e que parece ter florescido durante os dois primeiros séculos da nossa era. Sexto
é o grande vulgarizador dessa escola, porque em suas duas citadas obras, expõe, resume e desenvolve
respectivamente as teorias e argumentos de seus antecessores e companheiros. Assim, embora seus escritos
não se recomendem pelo método, pelo estilo ou pela originalidade, serviram como arsenal e foram como
uma fonte geral na qual os defensores do ceticismo sempre beberam.
Devemos, ainda, ao autor das Hypotyposes pyrrhonicae o conhecimento exato e concreto da natureza,
dos procedimentos, das aspirações e dos fins do ceticismo empírico ou positivista. Para Sexto, o ceticismo
é uma espécie de arte ou disciplina essencialmente dubitativa, uma faculdade ou força inquisitória, por sua
vez hesitatória sempre e por natureza (dubitatoria vel haesitatoria, aut inde quod de re omni dubitet et
quaerat, aut propterea quod haesitans, suspenso sit animo ad assentiendum aut repugnandum), de modo
que em nenhum caso e por nenhuma razão produz assentimento ou discordância no homem. O verdadeiro
cético permanece sempre na dúvida; nunca se inclina para nenhum lado, isso não apenas no caso de um
assentimento certo, mas também no caso de um assentimento provável ou verossímil, no qual o verdadeiro
cético difere e se separa do cético acadêmico, que admite probabilidades, ou seja, que em seus juízos se
inclina para um lado mais do que para o outro: isso sem mencionar que o ceticismo acadêmico afirma que
todas as coisas são ininteligíveis, afirmação da qual se abstém o verdadeiro cético, que nem afirma nem
nega209 a incompreensibilidade das coisas.
O objetivo ao qual o cético deve aspirar, como objetivo final e bem supremo do homem, e um objetivo
alcançável, na medida do possível, por meio do ceticismo, é a imperturbabilidade da mente, a ataraxia
(αταραξία), a perfeita tranquilidade da mente; porque quando a alma, na ordem especulativa, nada afirma
e nada nega; quando não julga nada como realmente bom ou mau em si mesmo, e na ordem prática ou
moral se limita a satisfazer as necessidades naturais (sede, fome, calor, etc.) e a seguir simplesmente as
indicações do costume e da lei, é quando possui a tranquilidade acessível, a imperturbabilidade da mente
que se pode ter. Em suma, o cético tem como objetivo e única felicidade suprema a imperturbabilidade
(dicimus autem finem esse Sceptici imperturbatum mentis statum) da alma; para consegui-la: a) duvida de
tudo e não afirma nada sobre o que é bom ou mau, e, portanto, não persegue, nem busca, nem foge de coisa
alguma com intensidade (qui ambigit de his quae secundum naturam bona aut mala sunt, nec fugit
quidquam nec persequitur acri studio, proptereaque perturbatione caret); b) segue na prática as correntes
da vida comum (observationem vitae communis), ou seja, se conforma aos costumes e às leis, sem ser
levado por afetos ou paixões tumultuosas e obedecendo às necessidades da natureza, como obedece ao
costume e às leis, com total indiferença e sem formar nenhum julgamento acerca de sua bondade ou malícia:
Nos autem leges, et consuetudines, et naturales affectiones sequentes, vivimus citra ullam opinationem.
Além de seu conteúdo cético, os livros de Sexto Empírico contêm informações abundantes e geralmente
precisas sobre os sistemas e opiniões dos filósofos antigos.
Já mencionamos antes que as obras de Sexto Empírico são as fontes das quais todos os céticos beberam
desde a época do médico empírico até os nossos dias. E agora devemos acrescentar que dificilmente será
encontrado um argumento de alguma força entre os alegados pelo ceticismo em suas diferentes fases
históricas, que não esteja desenvolvido, ou pelo menos indicado, nos escritos de Sexto Empírico. A
existência de Deus e a noção de causa são objetos preferenciais dos ataques do cético alexandrino, que
dedica seus esforços para rejeitá-los e destruí-los nos primeiros capítulos do livro terceiro de suas
Hypotyposes Pyrrhonicae. Entre os outros argumentos normalmente alegados contra a existência de Deus,
encontra-se ali exposto e desenvolvido, com certo luxo de palavras e detalhes210, aquele que se refere à
providência divina em suas relações com a existência e origem do mal.

209
Jam vero – escreve Sexto Empírico – et novae Academiae alumni etiamsi incomprehensibilia esse dicant omnia, differunt tamen
a sceptis fortasse, et in eo quod dicunt omnia esse incomprehensibilia; de hoc enim affirmant, at scepticus non desperat fieri posse
ut aliquod comprehendatur, sed apertius etiam ab illis in bonorum et malorum dijudicatione discrepant. Aliquid enim esse bonum
et malum dicunt Academici... persuasi verisimilius esse, id quod dicunt bonum, bonum esse quam contrarium, cum nos nihil bonum
aut malum esse dicamus… sed sine ulla opinatione sequamur vitam, ne nihil agamus.» Hypot. pyrrhon, lib. I, cap. XXXIII.
210
Copiaremos, em confirmação do que foi dito no texto, uma parte somente da passagem aludida, que é por demais extensa: “His
autem istud addendum est: Qui dicit esse Deum, aut providere eum dicit rebus quae sunt in mundo, aut non providere: et si quidem
177
§ 95. A Filosofia entre os romanos

A educação, o caráter, a história e o gênio dos romanos não eram os mais adequados para cultivar o
estudo da Filosofia. A vida ativa constituía o tema principal de sua educação, e o gênio da especulação
científica tinha e podia ter muito pouco espaço na educação de um romano, que era essencialmente político-
militar. Toda a atenção deles estava voltada para o amor à pátria e toda a sua atividade estava concentrada
no desprezo pela morte, na paixão pela glória e, como meio de afirmar esses sentimentos e ideias, na
austeridade de costumes, no culto às tradições dos antepassados, na simplicidade de vida, na constante
vigilância pelo bem público, na liberdade da pátria e no poder da república. Para o romano antigo, para o
romano dos bons tempos da república, não havia mais escola além do Fórum e do Campo de Marte, nem
mais liceu além da tenda de campanha. Os literatos, os oradores, os filósofos eram considerados como
pessoas insignificantes, que pouco ou nada significavam ao lado do guerreiro e do homem político.
Assim vemos que nem o brilho da escola pitagórica, nem as especulações audaciosas dos eleatas, nem
as viagens de Platão à Sicília, nem os trabalhos de Empédocles e outros filósofos encontraram acolhida em
Roma, nem chamaram a atenção de seus habitantes, apesar de terem entrado em contato frequente com as
escolas e filósofos da Sicília e da Magna Grécia, devido às suas contínuas guerras e conquistas. Mais ainda:
quando, com o passar do tempo, ou seja, durante o consulado de Estrabão211 e Messala212, alguns filósofos
fizeram tentativas tímidas de abrir escolas, surgiu um decreto do Senado reprovando e censurando com
rigor tais inovações, contrárias aos costumes e instituições dos antepassados.
Outra prova evidente de que o espírito do povo romano era completamente refratário às especulações
filosóficas é o que aconteceu por ocasião da célebre embaixada que os atenienses enviaram a Roma, na qual
figuravam o estóico Diógenes, o acadêmico Carnéades e o peripatético Critolau. Apesar de a sociedade
romana, naquela época, estar longe de ter a antiga severidade de costumes; apesar da segurança e confiança
em seus destinos que suas conquistas recentes deveriam inspirar; apesar dos patrícios romanos já
começarem a levar filósofos como acompanhantes e apesar de a língua e a literatura gregas já terem sido
assimiladas em Roma e em suas províncias, Catão, o Antigo, assustou-se ao ver a juventude romana acudir
para ouvir os discursos e disputas dos embaixadores filósofos. “Temeroso – diz Plutarco – de que a
juventude buscasse no estudo uma glória que só deveria adquirir mediante o valor e a habilidade política,
censurou os magistrados por permitirem que esses embaixadores, depois de concluídas as questões que
motivaram sua viagem, prolongassem sua permanência na Urbe, ensinando a defender igualmente todo tipo
de opiniões. Por isso, propôs que eles fossem imediatamente despachados para ensinar os filhos da Grécia,
pois os de Roma não deveriam ter outros mestres além dos magistrados e das leis, como fora praticado até
então”.
No entanto, se os esforços de Catão e os decretos do Senado puderam atrasar, não puderam impedir que
a Filosofia grega ganhasse terreno, espalhando-se e enraizando-se entre os romanos, porque tal não era
possível, tendo em vista o crescente relaxamento moral e a mudança radical dos costumes públicos e

providere dicit, aut omnibus, aut aliquibus. Sed si quidem omnibus provideret, non esset neque malum ullum, neque vitiosus ullus,
neque ulla vitiositas: atqui vitiositate plena omnia esse clamant: non ergo omnibus providere dicetur Deus. Sin aliquibus providet,
quare his quidem providet, illis vero non item? Etenim, aut vult et potest providere omnibus; aut vult quidem sed non potest: aut
potest quiddem sed non vult; aut neque vult neque potest.
“Sed si quidem et vellet et posset, omnibus provideret; atqui non providet omnibus, ut apparet ex supradictis: ergo nequamquam et
vult et potest omnibus providere. Quod si vult quidem, sed non potest, ejus vires superabit illa causa propter quam non potest
providere illis quibus non providet. Non ergo providet Deus iis quae sunt in mundo. Ex his autem ratiocinamur, impietatis crimen
fortassis effugere non pose illos qui asseveranter Deum esse dicunt.” Hypotyp. pyrrhon., lib. III, cap. I.
211
Estrabão (Στράβων) (64 a.C. – 24 d.C.) foi geógrafo, filósofo e historiador grego que viveu na Ásia Menor durante o período
de transição da República Romana para o Império Romano. Na filosofia era de corrente estóica e na política, proponente do
imperialismo romano. [N.T.]
212
Marco Valério Messala Corvino (Messalla Corvinus) (64 a.C. – 8 d.C.) foi Cônsul da República junto a Otaviano, em 31 a.C.
Além de General, foi escritor e grande patrono da literatura romana e ficou famoso pelo chamado Círculo de Messala, no qual
reunia grandes literatos como os poetas Álbio Tíbulo e Lygdamus e a poetisa Sulpícia. Foi educado com Horácio e Cícero; e foi
ele próprio o autor de várias obras – todas perdidas – as quais incluíam Memórias das guerras civis após a morte de César, utilizadas
por Suetônio e Plutarco; Poemas bucólicos em grego; Traduções de discursos gregos; Versos ocasionais satíricos e eróticos; e
Ensaios sobre os pormenores da gramática. Como orador, seguia a Cícero em vez da escola ática, mas com estilo afetado e artificial.
Críticos posteriores consideravam-no superior a Cícero, e Tibério adotou-o como modelo. No final da vida, escreveu uma obra
sobre as grandes famílias romanas – muitas vezes confundida com o poema De progenie Augusti Caesaris do século XII d.C. [N.T.]
178
privados, dado o desenvolvimento do luxo e o refinamento de uma civilização que não podia prescindir de
unir os prazeres do espírito com os do corpo, e, por conseguinte, buscar o complemento de seus prazeres
sensuais no cultivo das letras e das ciências. Por isso, nos últimos tempos da República, os romanos, que
até então mal haviam cultivado mais ciência além da política e da moral, e mesmo esta última mais pela
prática ou ação do que pelas letras (bene vivendi disciplinam vita magis quam litteris persecuti sunt) ou o
ensino, começaram a se interessar pelos estudos filosóficos, interesse que se consolidou e cresceu
gradualmente, até tomar forma, por assim dizer, em Lucrécio e em Cícero. Este último pode dizer com boa
fundamentação que, até sua época, a Filosofia havia permanecido abatida ou negligenciada entre os latinos:
Philosophia jacuit usque ad hanc eatatem, nec ullum habent lumen litterarum latinarum.
Por outro lado, não era possível evitar a introdução e propagação da Filosofia grega entre os romanos,
que estiveram, por séculos a fio, em contato constante com os representantes dessa Filosofia primeiro na
Sicília e na Itália e, depois, nas diversas províncias da Grécia e da Ásia. As conquistas de Múmio213, Paulo
Emílio214 e Sila215; as expedições militares de Pompeu216, César, Marco Antônio e Augusto; a posse, enfim,
de Rodes, Atenas e Alexandria, centros e focos do movimento filosófico da Grécia, tornaram inevitável a
propagação da Filosofia Grega entre os romanos.

§ 96. A escola peripatética entre os romanos

De fato, foi como se deu. Entretanto, os romanos se limitaram a expor as especulações da Filosofia grega
e adotar seus diferentes sistemas, sem produzir nenhum que seja original o suficiente para ser digno de
atenção. Embora quase todas as escolas gregas tivessem seus seguidores e representantes entre os romanos,
seu gênio eminentemente prático os levou a preferir a doutrina de Epicuro, a da Academia em suas últimas
manifestações ou tendências ecléticas, e aos princípios rígidos do Estoicismo.
No entanto, também houve alguns que filosofaram no sentido peripatético e deram preferência à doutrina
de Aristóteles. Plutarco menciona Marco Crasso entre os peripatéticos, e Cícero fala do napolitano Staseas,
a quem supõe ser partidário e mestre da Filosofia de Aristóteles. Discípulo de Staseas foi Pupio Pisão
(Marcus Pupius Piso Frugi Calpurnianus), que aparece nos diálogos filosóficos do orador romano como
partidário e admirador da doutrina de Aristóteles e dos peripatéticos. Em um desses diálogos, Pupio Pisão,
depois de elogiar os escritos e instituições dos peripatéticos, e depois de afirmar que na doutrina aristotélica
se inspiraram imperadores e príncipes e até mesmo matemáticos, poetas, músicos e médicos, conclui
recomendando e elogiando o método seguido por Aristóteles e seus discípulos, que na investigação das
coisas procedem discutindo e examinando os argumentos a favor e contra217, sem adotar, por isso, o caminho
cético dos acadêmicos.

213
Lúcio Múmio Acaico (Lucius Mummius Achaicus) foi Cônsul da República em 146 a.C. Distingue-se pela Batalha de Corinto,
a qual marcou o fim da independência grega e o início da dominação romana. À Batalha, seguiu-se o Saque de Corinto, no qual a
cidade foi arrasada e todos os seus tesouros e obras de arte foram saqueados e levados para Roma. Só no ano de 44 a.C., a cidade
foi refundada por Júlio Cesar como Colonia Laus Iulia Corinthiensis. [N.T.]
214
Lúcio Emílio Lépido Paulo (Lucius Aemilius Lepidus Paulus) (77–14 a.C.), mais conhecido como Paulo Emílio Lépido, foi
Cônsul da República Romana (34 a.C.) e pertencia à família dos Lépidos, da gens Emília. Em 42 a.C., com a morte de Brutus,
Paulo Emílio juntou as tropas republicanas remanescentes de Creta e velejou para o mar Jônico, firmando paz com os triúnviros.
Participou ao lado de Otaviano da expedição contra a Sicília de Sexto Pompeu. Durante seu consulado, reconstruiu e dedicou
a Basílica Paula ou Emília, que tinha sido originalmente erigida por seu pai. [N.T.]
215
Lúcio Cornélio Sila (Lucius Cornelius Sulla Felix) (138–78 a.C.), apelidado pelos gregos de Epafrodito (Επαφρόδιτος), foi,
por duas vezes, Cônsul da República, em 88 e 80 a.C., e o primeiro Ditador desde o séc. III a.C., no ano de 82 a.C. Quanto ao
domínio dos gregos, nos anos 87 e 86 a.C., sitiou Atenas e Pireu, então governadas pelo tirano Aristião. Embora a intenção inicial
fosse arrasar a cidade como na Batalha de Corinto, voltando à razão, convenceu-se de que a fama universal de Atenas era como
um título que dava a esta cidade o direito de ser respeitada. Posteriormente, ele poderia invocar entre seus maiores feitos o fato de
ter sido clemente com Atenas: Plutarco, louvando-o, diz que Sila foi grande entre os romanos como entre os gregos, quando decide
perdoar os vivos por respeito aos mortos. [N.T.]
216
Cneu Pompeu Magno (Cnaeus Pompeius Magnus) (106–48 a.C) foi por três vezes Cônsul da República, em 70, 55 e 52 a.C.
Fez parte do primeiro Triunvirato, com Licínio e Júlio César, com o qual romperia posteriormente. Sua última derrota e assassinato
são marcantes para a transformação da República Romana em Império Romano. [N.T.]
217
“Qua ex cognitione facilior facta est in investigatio rerum occultissimarum, disserendique ab iisdem non dialectice solum, sed
etiam oratiore praecepta sunt tradita; ab Aristoteleque principe de singulis rebus in utramque partem dicendi exercitatio est instituta,
ut non contra omnia semper, sicut Arcesilas, diceret, et tamen ut in omnibus rebus, quidquid ex utraque parte dici posset,
179
Na mesma época de Cícero, e posteriormente, floresceram também vários filósofos peripatéticos, que
merecem figurar entre os representantes greco-romanos da escola peripatética, pois ou viveram e ensinaram
em Roma, ou foram mestres de literatos e filósofos romanos. Nesse sentido, pertencem à escola peripatética
greco-romana, além de Andrônico de Rodes, que ordenou e popularizou as obras de Aristóteles entre os
romanos e o já citado Critolau, Nicolau de Damasco e Jenarco de Selêucia. Destes, sabe-se que ensinaram
em Roma no tempo de Augusto: Alexandre de Égina, do qual se diz que foi mestre de Nero; Crátipo, mestre
de Quinto Cícero; Arístocles de Messina, impugnador fervoroso do ceticismo positivista de Enesidemo;
Âmonio de Alexandria, que ensinou em Atenas, onde teve como ouvintes vários patrícios romanos,
Sosígenes, e sobretudo o médico Galeno, que embora natural de Pérgamo, passou a maior parte de sua vida
e ensinou em Roma. Seus trabalhos científicos e descobertas, relacionados com grande parte das ciências
físicas e naturais, são inspirados pela doutrina de Aristóteles, sendo digno de nota também que se atribui a
ele a invenção da quarta figura do silogismo.
Devido ao seu contato e relacionamentos doutrinários, científicos e educacionais com os romanos,
também se poderiam listar entre os representantes do peripatetismo romano Menéfilo, Adrasto, Temístio,
Alexandre de Afrodisia e vários outros comentadores das obras de Aristóteles que floresceram em Atenas,
Alexandria e outras cidades do Oriente e da Grécia, quando a dominação romana já se estendia por essas
regiões.
O último, ou seja, Alexandre de Afrodisia, é talvez o mais notável dessa época, e não foi em vão
chamado por antonomásia de O Comentador. Seus comentários sobre as obras de Aristóteles,
principalmente as que tratam dos livros metafísicos, se destacam pela clareza de exposição e por uma certa
originalidade, e nesse último aspecto pode-se dizer que
eles serviram de modelo para os escolásticos em
seus comentários, seja sobre as obras de
Aristóteles, seja sobre as de Pedro
Lombardo, seja sobre as de Santo
Tomás.
A questão dos universais, que tanto
ocupou os escolásticos, foi tratada por
Alexandre de Afrodisia com bastante
detalhamento, pois ele não apenas explica a
noção geral do universal 218 e seu conceito
específico, mas também discute cada um dos cinco
modos de universalidade. As doutrinas do
comentador de Afrodisia sobre esse assunto talvez
tenham exercido tanta influência nas disputas posterio-
res sobre os universais quanto a Isagoge de Porfírio.
Supõe-se geralmente que Alexandre de Afrodisia tenha comunicado uma certa tendência materialista à
psicologia de Aristóteles, ensinando que a alma humana deve ser considerada como forma puramente
informante do corpo e não como forma subsistente, como uma verdadeira substância intelectual. É verdade
que existem passagens que apoiam essa interpretação materialista, interpretação que, com o tempo, serviu
de ponto de partida para a famosa teoria averroísta da unidade da alma humana; no entanto, também há
textos que parecem excluir e negar essa interpretação materialista psicológica, uma vez que atribuem à
nossa compreensão o epíteto de substância, atribuindo-lhe a sua essência intelectual própria; ele busca a
razão suficiente para a diferença entre a compreensão humana e a divina, em relação à maneira de entender,
em que a primeira envolve certo grau de potencialidade, enquanto a segunda é pura atualidade, razão pela

expromeret.” De Finib. bon. et mal., lib. V, cap. IV.


218
“Universale enim appellatum de omni significat, nam quod de omni dicitur, totum quoddam esse videtur. Totum igitur ad hunc
modum dictum atque universale, idcirco dicitur universale et totum quoniam in se multa continet, deque his singulis univoce
praedicatur, et omnia unum sut secundum praedicatum, et ipsorum quodque hoc est quod praedicatum, propterea quod omnia pariter
communis et se complectentis rationem admittant. Nam illud significat ea (universalia) unitatem haber non continuitate, sed quia
eorum quodque eamdem rationem admittit; equus enim, homo, canis et bos, omnes unum sunt, quoniam eorum quisque animal
est.” Comment. in 12 Arist. libros de prima Phil. Joan. Gen. Sepulveda interp. ed. 1536, lib. V, pag. 212.
180
qual a intelecção em Deus se realiza sem nenhum esforço, algo que não pode ocorrer no homem, cuja
compreensão envolve certa potencialidade219, o que não lhe permite compreender de forma permanente e
sem nenhum esforço.

§ 97. A escola epicurista entre os romanos

Embora sem grande importância científica, houve muitos seguidores e defensores da doutrina epicurista
em Roma. Os nomes de Cássio220 (Catius Insubrus) e Amafânio221 (Gaius Amafanius) são os primeiros que
surgem na história do epicurismo romano, seguidos pelos nomes mais conhecidos e importantes de C.
Casio, de Pompônio Ático, de Veleio e, sobretudo, de alguns dos principais poetas, entre os quais se destaca
Horácio, que se chama com desprendimento notável e franqueza não menor a si
mesmo como Epicuri de grege porcum.
No entanto, o representante mais genuíno, autorizado e completo da
escola epicurista entre os romanos foi, sem dúvida, o famoso Lucrécio
(Titus Lucretius Carus), que nasceu, segundo a opinião mais provável, em
99 a.C. e morreu aos quarenta e quatro anos de idade. Os historiadores
geralmente concordam que ele cometeu suicídio, e Eusébio de Cesaréia o
afirma categoricamente, pois escreve em sua Crônica sobre Lucrécio:
Propria se manu interfecit, anno aetatis quadragesimo quarto.
Seja como for, é indubitável que em seu famoso poema didático dirigido
a Múmio, seu amigo, intitulado De rerum natura, Lucrécio expõe,
desenvolve e enfatiza de forma materialista e ateísta a doutrina de Epicuro, a
quem deseja seguir e imitar (te imitari aveo), tomando-o como mestre e guia,
chamando-o de ornamento da nação grega e reconhecendo-o como o primeiro e mais ilustre dos filósofos:
E tenebris tantis tam clarum extollere lumen, qui primum potuisti... te sequor, oh grajae gentis decus.
Basta passar os olhos pelo poema de Lucrécio para se convencer de que é um verdadeiro comentário
sobre a doutrina de Epicuro, mas um comentário escrito para desenvolver e consolidar a tese ateísta e outras
conclusões negativas da escola. Assim vemos que, embora o fundador desta tenha falado sobre deuses e
seu culto, para o poeta latino não há mais Deus nem causa dos seres além da rerum natura creatrix, e
compraz-se em declarar guerra aberta aos deuses e a toda Religião222, orgulhando-se de ter conseguido
calcá-la aos pés (religio pedibus subjecta) e cantar vitória sobre o céu ou a divindade.

219
“Sic in Intellectu primo sese res habeat oportet, nec ei cum labore intellectio perpetua contingat, siquidem intellectus est et
intellectio. Caeterum quidnam esse causae putemus, cur cum intellectus nostri substantia in eo sita sit quod sit intellectus, huic
tamen laboriosum est continenter intelligere? An intellectus noster non est actu intellectus, neque actus, ut ille, sed potestae?
Primum igitur, si non est intellectus sed potentia, continuatio intellectionis laborem ipsi suppetet.” Comment. cit., lib. XII, pag. 396.
220
Nascido na Insubria, donde o epíteto de Insubro, escreveu um Tratado em quatro livros sobre o mundo físico e sobre o bem
supremo (De rerum natura et de summo bono). Cícero lhe atribui, juntamente com o estilista de prosa menor Amafânio, a escrita
de textos acessíveis que popularizaram a filosofia epicurista entre a plebe. Faleceu em Roma, cerca de 50 a.C., uma vez que, em
carta de 45 a.C. a Cássio Longino, Cícero informa que o epicurista Cássio havia falecido há pouco tempo. Afirma Quintiliano que
“entre os epicuristas, Cássio é agradável de ler, ainda que careça de gravidade”. [N.T.]
221
Caio Amafânio viveu no século I a.C. e foi um dos primeiros a traduzir o termo grego “átomo” para o latino “corpúsculo”
(corpusculum). Em suas Questões Tusculanas, Cícero o critica por falta de estilo e regra na escrita. [N.T.]
222
No princípio mesmo de seu poema, e mal terminada sua invocação a Vênus, escreve:
Humana ante oculos faede cum vita jaceret
In terris, oppressa, gravi sub religione,
Quae caput a coeli regionibus ostendebat,
Horribili super aspectu mortalibus instans;
Primum Grajus homo mortales tollere contra
Est oculos ausus, primusque obsistere contra
Quem nec fama Deum, nec fulmina, nec minitanti
Murmure compressit coelum...
Quare religio, pedibus subjecta vicissim
Obteritur, nos exaequat victoria coelo.”(De rerum nat., lib.I.)

181
Embora Lucrécio fale de mente ou espírito e alma, ele ensina que eles são verdadeiros corpos (corporea
natura, animum constare animamque), e tanto a mente – que é apenas uma manifestação da alma – quanto
a alma em si são meras combinações de corpos pequenos, lisos e redondos: Constare necesse est corporibus
parvis, et laevibus atque rotundis.
Em consonância com essa concepção sobre a origem e a natureza da alma, e seguindo seu mestre
Epicuro, o poeta romano nega terminantemente a imortalidade da alma, zomba dos vãos terrores que a
morte inspira ao vulgo das pessoas, pois, depois de morto, o homem não pode mais sentir dor ou pena
alguma (tu quidem, ut es letho sopitus, sic eris aevi. | Quod superest, cunctis privatus doloribus aegris), e
seu sentimento pela morte de seus entes queridos só pode e deve se referir à ausência ou perda da vida
presente e de seus prazeres. Como materialista e ateu, Lucrécio não podia ignorar a importância
fundamental da doutrina da imortalidade da alma e, por isso, dedica grande parte do terceiro livro de seu
poema a combater e rejeitar essa imortalidade, atacando-a em diversos terrenos e pontos de vista, inclusive
o mitológico.
O conhecimento ou percepção das coisas ocorre na alma por meio de certas imagens em forma de
membranas sutis (quasi membranae) que, saindo dos corpos, se espalham pela atmosfera (volitant ultro
utroque per auras), chegando assim aos órgãos dos sentidos e produzindo na alma a representação e
percepção dos objetos de onde essas imagens corpóreas se desprendem.
Assim como os seguidores recentes do materialismo e do darwinismo, Lucrécio, depois de explicar a
origem do homem por meio de combinações atômicas, procura explicar seu desenvolvimento tanto no
sentido natural ou físico quanto suas propriedades morais, instituições sociais, religiosas e políticas, bem
como a origem e desenvolvimento da linguagem e das artes, por meio de um processo espontâneo da
natureza, que, após diferentes tentativas, produz séries cada vez mais perfeitas, abandonando ([a seleção
natural do] darwinismo) ou deixando perecer as menos perfeitas. A humanidade, com todas as suas
manifestações, representa um processo indefinido, uma cadeia cujo primeiro elo é o homem rudimentar
com qualidades puramente físicas: o homem semisselvagem.
Não é preciso dizer que, para Lucrécio, assim como para seu mestre Epicuro, os átomos ou corpos
simples, geralmente chamados por ele de principia, primordia rerum, são eternos e indestrutíveis, assim
como eterno é seu movimento, e infinito é o vazio no qual se movem.
É digno de nota que Lucrécio supõe que o mundo atual acabará e se dissolverá com o passar do tempo,
e também antecipa o darwinismo moderno ao apontar as imagens e visões percebidas nos sonhos (in somnis
quia multa et mira videbant efficere) como origem das preocupações humanas sobre a existência dos
deuses.

182
§ 98. A escola acadêmica entre os romanos. Cícero

A doutrina de Platão não foi a que obteve maior número de seguidores entre os romanos. Bruto e Varrão
são os que apresentam certa predileção pela doutrina do mestre de
Aristóteles, ou seja, pela primitiva Academia. Por outro lado, a Academia
Nova está brilhantemente representada entre os romanos por Cícero (Marcus
Tullius Cicero); pois, se é verdade que sua Filosofia é uma espécie de
sincretismo que envolve os principais sistemas da Filosofia grega,
não é menos verdade que no fundo de seus escritos
filosóficos pulsa o pensamento, ao mesmo tempo
cético e eclético, da Academia Média e Nova.
O célebre orador filósofo nasceu em Arpino, 106
anos antes de Jesus Cristo, e morreu aos sessenta e Renascimento de Cícero
quatro anos, vítima das disputas civis e das A redescoberta das cartas de Cícero por Petrarca é
vinganças do Segundo Triunvirato. Ele participou considerado um dos marcos fundantes do
ativamente do governo da República como questor, Renascimento, no século XIV. Nesse mesmo século,
pretor e cônsul, e talvez tenha influenciado ainda começa a observar-se uma transformação de
mais seus altos e baixos durante os tempos mentalidade que, ao longo do século XV, cresce cada
turbulentos em que viveu, com sua eloquência e vez mais em nitidez. Segundo a expressão de Zielinski,
magníficos discursos. “o Renascimento era, sobretudo, um renascimento de
Na juventude, Cícero seguiu as lições do Cícero e, apenas depois dele e através dele, do resto da
Antiguidade Clássica” (Cicero Im Wandel Der
epicurista Fedro, do peripatético Filão de Larissa,
Jahrhunderte). Essa observação é, em parte real, dada a
dos estoicos Diógenes e Posidônio e do acadêmico substancial unidade do sensível e do racional no
Antíoco. Sua Filosofia é o reflexo de sua educação homem: o apetite dos prazeres terrenos se vai
literária. Todos os grandes filósofos e todos os transformando em ânsia. Tal clima moral, penetrando
sistemas mais notáveis encontram graça em sua nas esferas intelectuais, produziu claras manifestações
presença e atraem seu olhar. Pitágoras, Sócrates, de orgulho, como gosto pelas disputas aparatosas e
Platão, Aristóteles, Zenão o estóico, todos eles vazias e pelas argúcias inconsistentes, pelas exibições
merecem seus elogios: apenas Epicuro e sua escola fátuas de erudição, e lisonjeou velhas tendências
lhe inspiram repugnância. filosóficas, das quais triunfara a Escolástica, e que já
agora, relaxado o antigo zelo pela integridade da Fé,
Os trabalhos filosóficos de Cícero estão
renasciam em aspectos novos. O tipo humano inspirado
relacionados e em consonância com a trajetória e as
nos moralistas pagãos, que aqueles movimentos
vicissitudes de sua vida política. Sua ação como introduziram como ideal na Europa, bem como a cultura
filósofo é a expressão, ao mesmo tempo que e a civilização coerente com este tipo humano, já eram
complemento, de sua atividade como homem os legítimos precursores do homem ganancioso e
público, e preenche, por assim dizer, o vazio ou os sensual, laico e pragmático de nossos dias, da cultura e
intervalos desta última. Assim, é fácil observar em da civilização materialistas em que cada vez mais
Cícero, considerado como filósofo, as mesmas vamos imergindo. O ápice de autoridade e prestígio
qualidades e defeitos que são atribuídos a ele e que ciceroniano se deu durante o Iluminismo do século
ele realmente possui, considerado como homem XVIII, manifesto em seu impacto sobre Locke, Hume e
Montesquieu.
político. As vacilações, a fraqueza e as contradições
que mancham a vida pública de Cícero, ao lado da impetuosidade, patriotismo e energia do grande
adversário de Catilina, reaparecem igualmente em Cícero como filósofo, ao lado de suas brilhantes
qualidades.
Em harmonia com essas indicações, Ritter observa com razão que “se quisermos ser imparciais e justos
com relação aos serviços prestados por Cícero à Filosofia, é preciso não esquecer que toda a sua formação
tinha um fim político e, consequentemente, também o tinha na Filosofia... Suas obras filosóficas refletem
sua posição em relação aos negócios públicos: facilmente se percebe que eram como uma espécie de
entreatos que preenchiam seus descansos forçados, e se observa que foram publicadas nos intervalos entre
os momentos mais perigosos e o desfrute da honra e do poder. Sem contar os trabalhos filosóficos de sua

183
juventude, que apenas apresentam traduções do grego ou escritos oratórios sobre Filosofia, que podem ser
vistos como preliminares para sua carreira oratória, Cícero compôs obras filosóficas apenas em dois
períodos, [1º] o primeiro dos quais foi quando o Primeiro Triunvirato manteve o Estado em uma agitação
tão febril que Cícero desesperou de sua vida; [2º] o segundo se refere ou abraça a ditadura de César e o
consulado de Antônio, época em que ele não via uma posição honrosa para si nos assuntos públicos. Suas
obras sobre [1º] a República e suas leis pertencem ao primeiro período; [2º] o restante de seus escritos
filosóficos, que correspondem a uma idade mais madura, pertence ao segundo. Durante esses dois períodos,
nem a necessidade, nem a ambição, levavam Cícero a tomar parte ativa na política, pelo contrário, desde o
momento em que ele vislumbrou a possibilidade de exercitar novamente seu talento nos assuntos públicos,
e assim que Pompeu se colocou à frente dos grandes, durante a guerra civil e após a morte de César, ou
desde que ele já não temia muito por si mesmo e por sua família, ele parou de se ocupar com a Filosofia.
Portanto, ele a considerava como um
Morte do Latim Cristão refúgio nas agitações da vida, como
uma distração, como um meio de
O latim cristão foi-se constituindo não como uma corrupção do
latim clássico, uma cópia inferior deste, mas como expressão viva e
preencher seus vazios e intervalos.
dinâmica da fé e da cultura cristãs, num uso consciente e legítimo da Quando vê ou considera que o barco
língua com características únicas: “totalmente conscientes do fato de do Estado está em perigo, ele
estarem lidando com textos consagrados, onde cada palavra tinha seu comunica ao seu amigo Ático a
significado (…) [os cristãos] deliberadamente abandonaram o sistema resolução adotada de se dedicar de
de tradução livre, defendido por Cícero entre outros, e seguiram palavra maneira fundamental ao estudo da
por palavra, conservando assim o máximo possível as peculiaridades Filosofia em meio às vaidades deste
estilísticas e linguísticas dos textos originais. Para os latinos, isso mundo; mas ao mesmo tempo busca
significa uma reprodução tão fiel quanto possível, em latim
informações detalhadas sobre a
extremamente não tradicional, de textos gregos que já eram um tanto
situação dessas mesmas vaidades”.
exóticos. Esse respeito reverente ao texto impede o tradutor de correr
qualquer risco, de modo que, mesmo nos casos em que não pareça De fato, percebe-se que a
estritamente necessário, eles transcreviam diretamente a palavra grega. intensidade de seus interesses
Esse sistema de tradução continua uma antiga tradição dos [Setenta].” filosóficos e ocupações científicas
(Mohrmann, C. Liturgical Latin: Its Origins and Character). diminuem à medida que suas
A partir do Renascimento, contudo, o critério mudou e, mesmo no esperanças de voltar a participar do
culto divino, o que não fosse ciceroniano era considerado barbarismo: governo do Estado e dos assuntos
quando Urbano VIII, Papa Barberini, na década de 1630, reformou os públicos reaparecem. As alternativas,
hinos do Breviário, fê-lo segundo o novo critério. A partir de então, o
as hesitações e a situação expectante
processo se intensificou, culminando na reforma que Pio XII
e indecisa de sua mente e de sua vida
encomendou para o saltério: longe de respeitarem as antigas traduções
latinas – como fizera o próprio S. Jerônimo –, os especialistas no campo político geram em seu
produziram um saltério perfeitamente ciceroniano, “vestindo-o numa espírito uma situação análoga no
linguagem pré-cristã” (Ibidem). campo filosófico. Daí suas
O latim passou de uma língua viva para uma língua morta com o afirmações e idéias contraditórias
renascimento de Cícero, precisamente porque os humanistas do sobre a importância e a utilidade da
Renascimento insistiram que apenas a perfeição literária ciceroniana, Filosofia, já que às vezes proclama a
em oposição à chamada “barbárie” medieval-escolástica, seria completa ineficácia da Filosofia e de
aceitável. seus consolos nas desgraças da vida,
concedendo-lhe apenas uma eficácia
suficiente para produzir um pequeno esquecimento (exiguam doloris oblivionem) ou adormecimento da
dor, ao passo que outras vezes a considera como o verdadeiro bem e o maior da vida presente, chamando-
a também de mãe ou princípio de todos os bens representados pela palavra e pela obra do homem: Matrem
omnium bene factorum beneque dictorum.
A Filosofia de Cícero, considerada como um todo, é como o reflexo da situação vacilante, indecisa,
desigual de seu espírito e de sua vida, tanto na ordem política quanto na ordem científica, e também é o
reflexo de sua educação literária, que foi essencialmente eclética, como apontamos acima. Portanto, não é
estranho, mas bastante lógico, que o pensamento fundamental, a idéia matriz do orador romano no campo
filosófico, seu sistema geral como filósofo, ou talvez melhor, como escritor de Filosofia, esteja representado
184
pela Nova Academia combinada com o ecleticismo probabilista: o homem não pode conhecer a verdade
com certeza e evidência; ele tem que se contentar com juízos mais ou menos prováveis223, mais ou menos
verossímeis, e é a eles que o homem prudente deve se ater em tudo, mas especialmente nas coisas práticas
da vida. Isso explica a discordância e as contradições constantes que são observadas em seus escritos. Às
vezes, parece que ele abraça o dogmatismo teológico de Platão e a teoria ética de Aristóteles; escreve
passagens magníficas para demonstrar a existência de Deus; argumenta profundamente sobre sua natureza
e atributos; apresenta argumentos sólidos a favor da imortalidade da alma; mas na página seguinte ele
derruba toda essa estrutura dogmática, chamando às portas do ceticismo e afirmando a acatalepsia da
Academia Nova.
Ao lado da direção cética-acadêmica, prevalece em Cícero a direção eclética, dando preferência a
determinadas escolas em determinadas matérias e adotando a opinião deste ou daquele filósofo como mais
provável, dependendo do objeto em questão. A Nova Academia e o estoicismo servem-lhe como guia
geralmente nas questões dialéticas e físicas: na psicologia, ele mostra predileção pelas teorias de Platão;
Aristóteles e Zenão fornecem a maior parte de seus princípios morais, e em política ele pode ser considerado
discípulo do primeiro.
São, de certo, notáveis as demonstrações e provas apresentadas por Cícero a favor da espiritualidade e
da imortalidade da alma humana e a favor da existência de Deus224, demonstrações e provas que parecem
pertencer a um dogmático propriamente dito, em vez de um adepto da Academia Média. Com base nisso,
nos grandes e repetidos elogios que ele tributa a Platão, a quem chama e considera como uma espécie de
Deus dos filósofos – quasi quendam deum philosophorum –, e também na preferência que ele dá ao
discípulo de Sócrates em muitas questões, e principalmente em quase todas as que se referem à psicologia,
alguns suspeitaram que, na verdade, Cícero era um defensor da Filosofia de Platão, e que suas dúvidas ou
manifestações céticas têm mais de aparente do que de real. Até alguém poderia suspeitar que essas
manifestações céticas devem ser consideradas ardis literários, cujo objetivo é apenas ocultar sua convicção
pessoal para refutar e rebater com maior liberdade as opiniões dos outros.
A verdade é, no entanto, que tais suspeitas, apontadas por alguns historiadores, não parecem muito
fundamentadas, se considerarmos a insistência com que muitos lugares de sua obra afirmam e alertam que
a verdade está quase sempre misturada com o erro, e que é difícil distingui-los; que, embora admita muitas
coisas como prováveis, não se atreve a afirmá-las ou segui-las como absolutamente certas (nos probabilia
multa habemus, quae sequi facile, affirmare vix possumus), reivindicando ao mesmo tempo sua liberdade
e independência completa para seus julgamentos (liberiores et solutiores sumus), e sobre as opiniões e
doutrinas de todas as escolas. Em consonância com isso, Cícero reprova energicamente a conduta daqueles
que abraçam sistemas determinados sem ao menos poder julgar sua veracidade e daqueles que, orientados
pelo acaso e pelas circunstâncias, mais do que pelo estudo e julgamento das doutrinas, aderem fortemente

223
No livro segundo de seu tratado De officiis, expõe e resume seu pensamento cético-académico nos siguintes termos: “Non enim
sumus ii, quibus nihil veri esse videatur, sed hi, qui omnibus veris falsa quaedam adjuncta esse dicamus, tanta similitudine, ut in
iis nulla insit certa judicandi et assentiendi nota. Ex quo existit et illud, multa esse probabilia, quae quamquam non perciperentur,
tamen quia visum haberent quemdam insignem et illustrem, his sapientis vita regeretur.” Não há necessidade de acrescentar que
esta idéia se encontra a cada passo de suas obras: “Omnibus fere in rebus – escreve no livro primeiro De Natura Deorum – et
maxime in physicis, quid non sit, citius, quam quid sit, dixerim”.
224
Na impossibilidade de aduzir nem citar todas essas provas, dadas as condições deste livro, transcreveremos aqui por via de
amostra e de exemplo, uma das que se encontram nas Quaestiones Tusculanas, não porque seja a mais completa, mas porque abarca
ao mesmo tempo a espiritualidade e imortalidade da alma e a existência de Deus: “Animorum nulla in terris origo inveniri potest.
Nihil enim est in animis mixtum atque concretum, aut quod ex terra natum atque fictum esse videatur: nihil ne aut humidum quidem,
aut flabile aut igneum. His enim in naturis nihil inest quod vim memoriae, mentis, cogitationis habeat, quod et praeterita teneat,
et futura provideat, et complecti possit praesentia; quae sola divina sunt. Nec invenietur unquam, unde ad hominem venire possint,
nisi a Deo. Ita quidquid est illud quod sentit, quod sapit, quod vult, quod viget, coeleste et divinum est, ob eamque rem aeternum
sit necesse est. Nec vero Deus ipse, qui intelligitur a nobis, alio modo intelligi potest, nisi mens soluta quaedam et libera segregata
ab omni concretione mortali, omnia sentiens et movens, ipsaque praedita motu sempiterno...
“Haec igitur et alia innumerabilia cum cernimus, possumus ne dubitare, quia his praesit aliquis vel effector, si haec nata sunt, ut
Platoni videtur; vel, si semper fuerint, ut Aristoteli placet, moderator tanti operis et muneris? Sic mentem hominis, quamvis eam
non videas, ut Deum non vides, tamen ut Deum agnoscis ex operibus ejus, sic ex memoria rerum, et inventione, et celeritate motus,
omnisque pulchritudine virtutis, vim divinam mentis agnoscit. Nihil sit animus admixtum, nihil concretum, nihil copulatum, nihil
coagmentatum, nihil duplex. Quod cum ita sit, certe nec secerni, nec dividi, nec discerpi, nec distrahi potest: nec interire
igitur.” Tusculan., lib. I, cap. XXVII, XXVIII, XXIX.
185
a alguma delas como a uma rocha: Ante tenetur adstricti, quam quid esset optimum, judicare potuerunt...
Ad quamcumque sunt disciplinam quasi tempestate delati, ad eam, tanquam ad saxum adhaerescunt.
É justo observar aqui que essa tendência ou direção cética é acentuada principalmente nas questões de
cosmologia e física, o que não o impede, no entanto, de rejeitar energicamente as teorias físico-
cosmológicas e psicológicas de Epicuro e seus discípulos. Assim, depois de mencionar algumas dessas
teorias, ele diz com certo desprezo: Puderet me dicere non intelligere, si vos ipsi intelligeretis, quia ista
dicitis (Poder-se-ia dizer que eu não entendo, se vós mesmos entendêsseis, porque dizeis tais coisas).
Cícero, que contribuiu efetivamente para o movimento filosófico entre os romanos com seus numerosos
escritos, tem também o mérito de ter popularizado entre eles a História da Filosofia, expondo com maior
ou menor precisão as diferentes teorias das escolas filosóficas, e indicando ao mesmo tempo os primeiros
passos e a origem da Filosofia entre os romanos, sendo importante observar que ele parece atribuir essa
honra a Pitágoras225 e sua escola.
Resumindo: a direção geral de Cícero na Filosofia coincide com a Academia Nova, mas modificando e
atenuando o ceticismo rígido desta, ou seja, moderando seus princípios, embora sem rejeitá-los (quam
[academiam] quidem ego placare cupio, submovere non audeo), segundo ele nos diz.
Nas questões cosmológicas e físicas, ele é mais acadêmico, ou, se preferir, mais cético do que nas outras;
mesmo assim, ele não perdoa a teoria atomista de Epicuro226, à qual declara guerra sem trégua.
Em matéria de metafísica, política e moral, inspira-se alternativa e parcialmente em Platão, Aristóteles
e na escola estóica, dando preferência à moral e à prática dos deveres sociais sobre a ciência (agere
considerate, pluris est quam cogitare prudenter) e a especulação227.

§ 99. O estoicismo entre os romanos. Sêneca

Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio, embora não sejam os únicos228, foram os principais
representantes do estoicismo greco-romano.
Sêneca (Lucius Annaeus Seneca), que floresceu no primeiro século do
Cristianismo, era natural de Córdoba. Seus pais foram Marco Aneu Sêneca, que
ensinou retórica em Roma durante o tempo de Augusto, e Hélvia, que contava
entre seus antepassados a mãe de Cícero. Levado a Roma por seu pai, Sêneca
dedicou sua juventude à eloquência, na qual se destacou. Porém, ao saber que seus
discursos despertavam ciúme e suspeitas em Calígula, abandonou o fórum para se
dedicar ao estudo da Filosofia, na qual teve progressos rápidos. Mais tarde,
participou da vida pública e foi nomeado questor, mas acabou sendo desterrado para
a Córsega, onde permaneceu por sete anos, acusado, com ou sem razão, por
Messalina, de ter tido relações ilícitas com Júlia, filha de Germânico. Agripina o
chamou de volta para Roma para encarregar-se da educação de seu filho Nero, cujos
instintos sanguinários ele logo conheceu, mas não soube ou não conseguiu corrigir.

225
Assim se depreende de várias passagens de suas obras, e entre outras, do seguinte: “Pythagorae autem doctrina cum longe
lateque flueret, permanavisse mihi videtur in hanc civitatem; idque cum conjectura probabile est, tum quibusdam etiam vestigiis
indicatur. Quis est enim, qui putet, cum floreret in Italia Grecia potentissimis et maximis urbibus in ea quae Magna dicta est, in
hisque primum ipsius Pythagorae, deinde postea pythagoreorum tantum nomen esset, nostrorum hominum ad eorum doctissimas
voces aures clausas fuisse?” Tuscul. QQ., lib. IV.
226
Falando em tom de burla, e com o objetivo de por destaque o absurdo de semelhante teoria para explicar a origem e formação
do mundo por meio do encontro fortuito dos átomos, diz, entre outras cosas: “Hoc qui existimat fueri potuisse, non intelligo, cur
non idem putet, si innumerabiles unius et viginti formae litterarum, vel aureae, vel quales libet aliquo conjiciantur, posse, ex his in
terram excussis, anuales Ennii, ut deinceps legi possint, effici.” De Natur. Deor., lib. II, cap. XXXVII.
227
“Omne officium, quod ad conjunctionem hominum et ad societatem tuendam valet, anteponendum est illi officio, quod cognitione
et scientia continetur.” De offic., lib. I, cap. XLIV.
228
Pertenceram a esta escola Musônio Rufo (Caius Musonius Rufus) de Volsínios; Aneu Cornuto (Lucius Annaeus Cornutus) de
Leptis, na África; Eufrates (Euphrates) de Alexandria; Arriano ou Flávio Arriano (Lucius Flavius Arrianus Xenophon) de Niceia,
e alguns outros.
186
Apesar de professae o estoicismo, o comportamento do filósofo cordobês enquanto esteve ao lado de Nero
era mais próprio de um discípulo de Epicuro do que de um estóico. No entanto, nem suas lisonjas e
subserviência, nem suas grandes riquezas, nem os milhares de escravos que possuía, puderam protegê-lo
dos caprichos sangüinários de seu discípulo. Acusado, com ou sem razão, de envolvimento na conspiração
de Pisão, recebeu a ordem de abrir as veias, nem mesmo lhe sendo permitido fazer testamento, e morreu
aos sessenta e cinco anos de idade com estóica ou dramática impassibilidade, ditando um discurso repleto
de máximas morais sublimes e certa magnanimidade própria do orgulho estóico.
O cerne da Filosofia de Sêneca é o estoicismo, especialmente sob o ponto de vista moral. Como os
estóicos, ele divide a Filosofia em (1) Lógica ou Filosofia Racional, (2) Física e (3) Moral. A (1) primeira,
mais do que lógica, é uma simples dialética conforme ele a concebe e expõe, e no que diz respeito à (2)
física, incluindo cosmologia e teodicéia, pode-se dizer que a concepção de Sêneca é uma concepção cética-
acadêmica, semelhante à de Cícero. Para o filósofo cordobês, assim como para o orador romano, a certeza
e a evidência estão além do alcance da razão humana nas coisas físicas e nas ciências especulativas, devendo
nos limitar a consentir no provável e no verossímil.
Isto inobstante, e faltando em certo modo à sua marca, Sêneca investiga, discute e resolve vários
problemas pertencentes à Física em seus escritos, especialmente nos sete livros das suas Questões Naturais,
nos quais ele trata do céu, da terra, dos elementos, dos terremotos, dos fenômenos meteorológicos, dos
cometas etc. Além disso, o filósofo cordobês também aborda, embora nem sempre discuta e resolva, os
principais problemas relacionados à teodicéia e à cosmologia, e, ao fazê-lo, não apenas exalta a nobreza e
importância das ciências especulativas, principalmente aquelas cujo objeto é Deus, mas também parece
dar-lhes preferência sobre a ciência moral, que se refere ao homem, insinuando que a superioridade da
primeira está relacionada à superioridade e distância do homem em relação a Deus (tantum inter duas
interest, quantum inter Deum et hominem), e conclui afirmando que mal vale a pena nascer, se o homem
não puder elevar-se ao conhecimento de Deus e das coisas divinas229, ou superiores, ao conhecimento das
causas e razões primeiras das coisas.
Além disso, as idéias e opiniões de Sêneca em relação a esses problemas, e especialmente em relação à
divindade, geralmente coincidem com as da escola estóica. Para o mestre de Nero, assim como para o
estoicismo, Deus é a mente ou razão do universo, e é ao mesmo tempo todo o universo, considerado em
todas as suas partes, superiores ou inferiores, visíveis ou invisíveis: Quid est Deus? Mens Universi. Quid
est Deus? Quod vides totum, et quod non vides totum.
A virtude é o único e supremo bem ao qual o sábio deve aspirar. Esta consiste em viver de acordo com
a natureza humana (secundum naturam suma vivere), e isso é algo muito fácil por si só, por mais que as
preocupações e a loucura geral dos homens tornem isso difícil: difficilem facit communis insania.
Essa virtude, que torna o homem verdadeiramente sábio, a virtude que resume e representa todas as
virtudes e que traz consigo o bem supremo e a felicidade do homem, é a prudência; pois com ela vêm
necessariamente a temperança, a coragem ou constância, a imperturbabilidade, a libertação da tristeza e,
consequentemente, a felicidade230, tornando todas as outras coisas indiferentes para ele. Portanto, o sábio,
o homem da virtude estoica, “não temerá a morte, nem as correntes, nem o fogo, nem os golpes do destino;
pois ele sabe que essas coisas, embora pareçam males, não o são na realidade”.
O homem da virtude não apenas se assemelha a Deus, mas é superior [!] a Ele de certa maneira, pois
realiza por seus próprios esforços e por escolha o que Deus realiza naturalmente. Est aliquid quo sapiens
antecedat Deum: ille naturae beneficio, suo saspiens est.
Aqui, já surge o orgulho refinado e egoísta do estóico, assim como sua estúpida impassibilidade e suas
aberrações morais, quando afirma que a alma do homem permanece impassível e intrépida, enquanto o
corpo mordetur, uritur, dolet, e, sobretudo, quando ensina que o suicídio não apenas é lícito, mas uma ação

229
“Equidem, tunc naturae rerum gratias ago, cum illam non ab hac parte video quae publica est, sed cum secretiora ejus intravi;
cum disco quae universi materia sit, quis auctor, aut custos, quid sit Deus, totus in se intendat, an ad nos aliquando respiciat; faciat
quotidie aliquid, an semel fecerit; pars mundi sit, an mundus... Nisi ad haec admitterer, non fuerat opere praetium nasci... Detrahe
hoc inaestimabile bonum, non est vita tanti ut sudem, ut aestrum.” Natural. Quaest., lib. I.
230
“Qui prudens est, et temperans est; qui temperans est, et constans; qui constans est, et imperturbatus est; qui imperturbatus est,
et sine tristitia est; qui sine tristitia est, beatus est: ergo prudens beatus est, et prudentia ad beatam vitam satis est.” Epist. 85.
187
conforme à lei interna (nihil melius aeterna lex fecit, quam quod unum introitum nobis ad vitam dedit, exitus
multos), deixando ao arbítrio ou capricho do homem a vida e a morte: Placet? vive: non placet? licet eo
reverti unde venisti.
Esta é uma máxima muito própria de um estóico orgulhoso e também de um filósofo que ensina que o
virtuoso, o sábio estóico, se tem pouco a temer dos homens, nada tem a temer de Deus: scit non multum
esse ab homine timendum, a Deo nihil.
No âmbito especulativo, Sêneca professa certas opiniões que se aproximam muito do materialismo,
embora outras vezes pareça inclinar-se para a opinião contrária. Quod fit, et quod facit, corpus est, escreve
ele, e em outros trechos considera as paixões e os vícios231 e até mesmo a alma como corpos: corpora ergo
sunt, et quae animi sunt; nam et hic corpus est.
Ao lado dessa doutrina tão desanimadora e pouco conforme com a verdadeira moral, Sêneca ensina e
enaltece o culto a Deus e Sua providência paternal para com os homens, e recomenda Sua imitação como
meio eficaz de aperfeiçoamento moral. É justo acrescentar aqui que o verdadeiro mérito de Sêneca como
filósofo moralista reside no que poderíamos chamar de seu princípio humanitário. O filósofo de Córdoba,
sem rejeitar nem condenar absolutamente a escravidão, dirige aos escravos palavras de benevolência e
máximas de doçura e dignidade que não são encontradas nos filósofos anteriores. Sêneca ensina – e ensina
com insistência – a fraternidade ou parentesco universal que une todos os homens entre si – natura nos
cognatos edidit –, e que está enraizada na própria natureza. A partir desse princípio, relativamente novo e
estranho à Filosofia pagã, ele deduz aplicações e máximas que não poderiam ser menos novas e estranhas
para essa Filosofia. Na antiga política, na antiga Filosofia, nos antigos costumes e nas antigas instituições
sociais, era uma doutrina comum e uma prática autorizada considerar-se isento e livre de todo dever de
humanidade e benevolência, não apenas em relação aos escravos, mas também em relação aos estrangeiros,
que, por serem estrangeiros, eram considerados e tratados como inimigos. O filósofo de Córdoba abandona
essas máximas tradicionais e arraigadas para pregar o amor mútuo – haec nobis amorem indidit mutuum –
, que a própria natureza inspira e prescreve a todos os homens, e, além disso, a obrigação ou preceito de
tornar efetivo e prático esse amor por nossos semelhantes, sem distinção de classes ou condições, prestando-
lhes auxílio e ajuda em suas necessidades: Praecipiemus – diz – ut naufrago manum porrigat, erranti viam
monstret, cum esuriente panem suum dividat.
E abordando a questão da escravidão e dos escravos, Sêneca não apenas reconhece que a escravidão não
exclui a humanidade, ou, melhor dizendo, a igualdade de natureza (servi sunt? imo homines), a amizade e
o companheirismo (servi sunt? imo humiles amici; servi sunt? imo conservi), mas também recomenda que
os escravos sejam tratados com clemência e cortesia, admitidos ao convívio familiar e até mesmo como
conselheiros (in sermonem admitte et in consilium) e sentados à mesa, assim como os homens livres232,
sempre que forem dignos em razão de seus modos, pois é com base nestes, e não em seus papéis, que
depende sua dignidade: non ministeriis illos aestimabo, sed moribus.
Em vista de tudo isso, é natural perguntar: de onde vem o fato de Sêneca, não sendo um filósofo de
primeira categoria, não podendo ser comparado a Pitágoras e Sócrates, a Platão e Aristóteles, ensinar, no
entanto, e professar máximas tão superiores às desses grandes filósofos e tão desconhecidas e estranhas em
épocas anteriores? A resposta não é difícil, se levarmos em conta que o filósofo cordobês foi mestre e vítima
do grande perseguidor dos cristãos, aquele que matou São Pedro e São Paulo. Rejeitando como apócrifa a
correspondência epistolar entre o filósofo de Córdoba e o Apóstolo das nações, é preciso reconhecer de
qualquer forma que quando o primeiro desceu ao túmulo, o segundo já havia percorrido ou estava
percorrendo as províncias do Oriente e do Ocidente, anunciando por todas elas e na própria Roma a Boa
Nova, a grande revelação do Verbo de Deus na terra, o Cristianismo, cuja doutrina religiosa, cujas máximas

231
“Non puto te dubitaturum an affectus corpora sint, tamquam ira, amor, tristitia. Si dubitas, vide an vultum nobis immutent. Quid
ergo? tam manifestas corporis notas credis imprimi, nisi a corpore? Si affectus corpora sunt, et morbi animorum... ergo et malitia
et species ejus omnes, malignitas, invidia, superbia... Tangere enim et tangi, nisi corpus, nulla res potest, ut ait Lucretius. Omnia
autem ista, quae dixi, non mutarent corpus, nisi angerent: ergo corpora sunt.” Opera, epist. 106.
232
“Vive cum servo clementer, comiter quoque, et in sermonem admitte, et in consilium, et in convictum... Quid ergo? omnes servos
admovebo mensae meae? non magis quam omnes liberos. Erras, si existimas me quosdam quasi sordidioris operae rejecturum, ut
puta illum mulionem, et illum bubulcum, non ministeriis illos aestimabo, sed moribus... Quidam caenent tecum quia digni sunt;
quidam, ut sint.” Op., epist. 47.
188
e exemplos e cujo espírito de caridade haviam penetrado gradualmente em todas as camadas sociais e
estavam se infiltrando insensivelmente no mundo da ciência, subjugando com a força de sua verdade e
beleza divinas os mesmos espíritos que se rebelavam contra elas e lhes faziam guerra implacável. Somente
dessa maneira é possível conceber e explicar os vislumbres e como que fulgores de moral cristã que,
confundidos e amalgamados com as frias e orgulhosas máximas do estoicismo, aparecem freqüentemente
nas obras de Sêneca. As últimas palavras citadas acima podem ser consideradas como um eco distante e
uma repercussão inconsciente das bem-aventuranças pregadas pelo Homem-Deus no Sermão da Montanha.
Além disso, os acontecimentos históricos devem ter colocado Sêneca em contato imediato ou mediato com
São Paulo. Durante sua estadia na Acáia, o Apóstolo foi chamado e compareceu perante o tribunal de
Galião233, que era irmão de Sêneca. Mais tarde, ele compareceu em Roma perante o prefeito do pretório,
Burro 234 , amigo de nosso filósofo, sem contar que graves autores afirmam que São Paulo também
compareceu duas vezes perante o próprio Nero. Esses fatos demonstram que o filósofo cordobês deve ter
tido, senão uma comunicação direta e pessoal com o Apóstolo das Nações, pelo menos um conhecimento
mais ou menos exato de sua pregação e doutrina.
A elevação que distingue e caracteriza a moral de Sêneca, como resultado e indicativo da influência
latente do Cristianismo, parece observar-se também em alguns outros pontos de sua doutrina, entre os quais
suas idéias sobre o futuro progresso da humanidade merecem uma atenção especial. Sêneca é talvez o único
filósofo da antiguidade que enxergou com certa clareza relativa a existência da lei do progresso humano no
terreno social, no político e, sobretudo, no das ciências e artes. A verdade, diz ele, está patente à
investigação de todos; porém, ninguém a possui completamente, pelo contrário, ainda há muito a descobrir
dela pelos vindouros (patet omnibus veritas, nondum est occupata, multum ex illa etiam futuris relictum
est). Porque chegará o tempo, acrescenta ele, em que, graças a repetidas e diligentes observações, certas
verdades que hoje desconhecemos ficarão evidentes: uma única época não é suficiente para descobrir todas
as verdades: Veniet tempus, quo ista, quae nunc latent, in lucem dies extrahat, et longioris aevi diligentia:
ad inquisitionem tantorum una aetas non sufficit.
Em obséquio à justiça e à imparcialidade, é justo lembrar que o filósofo non semper sibi constat, sendo
muito difícil conciliar entre si algumas de suas ideias, e não sendo raro tropeçar em seus escritos com
afirmações contraditórias. Vários historiadores e críticos, inclusive alguns compatriotas de Sêneca235, se
ocuparam deste ponto, chamando a atenção para a falta de fixidez de idéias que se manifesta no mestre de
Nero.

233
Lúcio Júnio Gálio Aniano ou Galião (Lucius Junius Gallio Annaeanus) foi cônsul sufecto no ano de 56 d.C. e faleceu cerca de
65 d.C. Filho do retórico Sêneca, o Velho e irmão do famoso Sêneca, entrou verdadeiramente para a História por ter participado do
julgamento de São Paulo em Corinto, rejeitando as acusações que os judeus lhe apresentavam contra o Apóstolo. Este episódio de
sua vida é narrado no capítulo 18º dos Atos dos Apóstolos. [N.T.]
234
Sexto Afrânio Burro (Sextus Afranius Burrus) foi, junto com Sêneca, preceptor de Nero. Tornando-se prefeito da guarda
pretoriana, teve papel decisivo na aclamação de Nero como imperador. Nesta mesma função, julgou o Apóstolo das Gentes. Morreu
após uma enfermidade na garganta, que ele mesmo atribuía a um envenenamento a mando do próprio Nero, de quem já havia
perdido as graças. [N.T.]
235
Merece ser citado, entre os últimos, Alonso Núñez de Castro, o qual, em meados do século XVII, pôs em destaque as
contradições de nosso filósofo em um livro publicado ad hoc sob o título de Sêneca impugnado por Sêneca em questões políticas
e morais
189
§ 100. Epiteto e Marco Aurélio

Mal Sêneca baixara ao sepulcro, quando começa a chamar atenção Epiteto (Επίκτητος): nascido em
Hierápolis, cidade da Cária ou Frígia, foi levado à escravidão por circunstâncias desconhecidas de guerra
ou de família. Sua paciência e serenidade de espírito eram verdadeiramente estóicas, conforme
testemunham as anedotas sobre este filósofo236 que foi escravo de um liberto de Nero.
A Filosofia de Epiteto é a Filosofia do Pórtico, levada ao último grau de rigor na sua parte ética. Nela
se nota, assim como em Sêneca, a influência vivificante da idéia cristã,
especialmente em suas máximas referentes à benevolência universal, à
obediência e ao culto a Deus, e à conformidade com a vontade divina
diante das adversidades e males da vida presente. Nota-se também esta
influência cristã nos conselhos sobre o controle das paixões e apetites da
carne, e até mesmo no desapego dos pais, parentes e pátria, embora
distorça, ou melhor dizendo, desconheça o sentido cristão nesse último
aspecto, pois Epiteto subordina esse desapego à tranquilidade da mente
e o recomenda apenas na medida em que traz consigo a paz e a
despreocupação, portanto, com um fim essencialmente terreno e egoísta,
coisas que estão muito longe dos fins superiores e das condições próprias
do desapego cristão.
Pascal observa, com razão, que Epiteto é um dos filósofos pagãos que
melhor compreenderam os deveres do homem, mas que, ao mesmo
tempo, desconhecia a fragilidade da natureza humana, o que o levou a
cometer graves erros de consideração.
Além de alguns outros erros gerais ou comuns do estoicismo, Epiteto considera a alma humana como
parte da substância divina; afirma que a dor e a morte não são males e permite ao homem ser o dono e
árbitro de sua própria vida, acrescentando máximas que deixam de ser morais devido às exagerações do
orgulho estóico237, que corrompem e destroem a natureza humana sob o pretexto de segui-la. Distorcer a
ordem moral e negar a natureza humana é aconselhar que, diante da morte de um filho ou cônjuge, o homem
permaneça em completa insensibilidade, como quando se quebra uma jarra: Si ollam diligis, te ollam
diligere (memento considerare); nam ea confracta, non perturbaberis. Si filiolum aut uxorem, hominem a
te diligi; nam eo mortuo, non perturbaberis.
No meio dessas e de outras máximas análogas, mais ou menos inexatas, mas
muito próprias do orgulho estoico, como quando afirma que o homem pode
adquirir por si mesmo todo o mal e todo o bem sem esperar nada de ninguém,
Epiteto apresenta máximas e idéias que parecem mais próprias de um filósofo
cristão do que de um filósofo gentio, como é fácil observar naquelas que se
referem à existência de Deus, sua providência, culto e obediência 238 ,
conforme foi mencionado acima.
A doutrina contida nas Meditações de Marco Aurélio (Marcus Aurelius
Antoninus) coincide com a que acabamos de ver no Manual ou Enchiridion
do estóico de Hierápolis. O que chama a atenção em Marco Aurélio é a
fidelidade, rigor e constância com que praticou as máximas mais rígidas da moral

236
Numa determinada ocasião, quando seu senhor o agredia com muita violência, Epiteto advertiu-o que se continuasse a dar-lhe
golpes tão fortes, acabaria por quebrar-lhe algum membro. O senhor continuou a golpeá-lo com a mesma fúria, resultando nos
golpes a fratura de uma perna do escravo-filósofo, o qual se contentou em dizer ao seu senhor com calma: “Eu já havia dito que se
continuasse assim, iria quebrá-la.”
237
Algumas das máximas e ideias de Epicteto não apenas ultrapassam os limites da verdadeira moralidade, mas também se tornam
ou degeneram em indecentes e ridículas, como quando escreve: “Hebetis ingenii signum est, in rebus corporis immorari, velut
exerceri diu, edere diu, potare diu, cacare diu... nam haec quidem facienda sunt obiter.” Enchiridion,cap. LXIII.
238
“Religionis erga Deos immortales praecipuum illud esse scito, rectas de eis habere opiniones; ut sentias, et esse eos, et bene
justeque administrare universa, parendum esse eis, et omnibus iis, quae fiant, acquiescendum, et sequenda ultro, ut quae a Mente
praestantissima regantur.” Enchir., cap. XXXVIII.
190
estóica em meio à corrupção que o cercava, tendo diante de si os exemplos daqueles imperadores romanos,
monstros de maldade e todo tipo de vícios, cercados por desordens, guerras e conspirações. Este grande
estóico nasceu no ano 121 da era cristã: foi adotado por Antonino, a quem sucedeu no governo do Império,
destacando-se por sua prudência, coragem e firmeza, e morreu em Sirmio, no ano 180 d.C. Pode-se dizer
que com Marco Aurélio a escola estóica baixou ao túmulo, que não demorou a desaparecer assim como as
outras escolas filosóficas, envoltas nas ruínas que as tribos e nações lançaram sobre elas, enviadas pela
Providência para punir os crimes do povo rei e para abrir os alicerces e desimpedir o terreno sobre o qual,
no decorrer do tempo, dever-se-ia erguer o grande edifício da Civilização Cristã.

§ 101. Movimento de transição

Enquanto as antigas escolas filosóficas se chocavam entre si, e se espalhavam pelo Império Romano;
enquanto prolongavam-se suas seculares lutas e se esvaneciam os rudes ataques do ceticismo contra as
escolas dogmáticas; enquanto os germes do ecletismo teosófico entravam em fermentação, brotando com
força e começando a se desenvolver na cidade de Alexandria, apareceram em diferentes tempos e lugares
certos filósofos, ou, melhor dizendo, escritores eruditos e mais ou menos filosóficos, que, sem pertencer
terminantemente a nenhuma escola, seguiam diversas direções e amalgamavam várias tendências. Alguns
seguiam uma direção positivista; dominava em outros uma espécie de ceticismo satírico; alguns se
orgulhavam de despreocupação religiosa, e nos escritos de outros se descobria um fundo diversificado de
doutrinas e tendências, sem lógica alguma de conexão. São aqueles que poderíamos chamar os eruditos e
livres-pensadores da época. Entre eles, podem-se citar como exemplares:

a) O médico Galeno (Claudius Galenus), natural de Pérgamo, e que floresceu em Roma sob o império
de Marco Aurélio. Seu método é a experiência, e sua direção o empirismo com tendência ao materialismo.
Depois de analisar anatomicamente os órgãos do homem e de compreender sua estrutura e finalidade – no
que se distingue do materialismo e eleva-se acima dos positivistas modernos –, acaba por negar a
espiritualidade e a subsistência da alma humana, que, para o médico de Pérgamo, não passa de matéria
refinada e uma substância perecível, ligada às vicissitudes e destino final do corpo. Em relação a outros
pontos e a certas questões de física, psicologia e, principalmente, lógica, Galeno muitas vezes segue as
ideias e soluções de Aristóteles, como mencionado acima.

b) Por volta da metade do século primeiro da nossa era, surgiu, em Queroneia da Beócia, Plutarco
(Πλούταρχος). Ensinou publicamente em Roma sob o império de Trajano e se retirou para Queroneia, sua
terra natal, nos últimos anos de sua vida. Sua obra Vidas Paralelas dos grandes
homens da Grécia e da Itália tornou seu nome popular entre os estudiosos; mas
para conhecer suas idéias filosóficas é preciso recorrer aos pequenos tratados
que ele escreveu, mais ou menos relacionados à Filosofia. Plutarco se
mostra inimigo das superstições populares: quer depurar o politeísmo das
ficções poéticas, refundindo-as e amalgamando-as no que há de essencial.
Em termos morais, ele é em parte epicurista, em parte estoico, em parte
platônico e em parte aristotélico, mesclando todas essas idéias morais
com especulações demonológicas, crença em oráculos e interpretações de
sonhos e presságios, caindo por um caminho nas mesmas superstições que
ele havia combatido por outro. Em suma: Plutarco, mais do que um filósofo,
é um estudioso, um amante de estudos históricos, um escritor com
inclinações crítico-teosóficas.

191
A Morte de Peregrino c) Pouco depois do escritor de Queroneia, entrou em
(Luciano de Samosata) cena Luciano de Samosata (Λουκιανὸς ό
“Foi então que [Peregrino] aprendeu a Σαμοσατεύς), que se encarregou de generalizar e
maravilhosa doutrina dos cristãos, ao se associar fortalecer os ataques parciais que Plutarco havia
com seus sacerdotes e escribas na Palestina. E (...) dirigido contra algumas manifestações do politeísmo.
eles o veneravam como um deus, tomavam-no por O autor dos Diálogos dos mortos e da Assembleia dos
legislador e o consideravam como protetor, logo deuses persegue com seus sarcasmos todos os cultos,
após Aquele outro, obviamente, a Quem ainda esforçando-se para estender sobre todas as religiões o
adoram, o Homem que foi crucificado na Palestina sopro dessecante de seu sorriso irônico. Luciano é o
por introduzir este novo culto no mundo. (...)
Voltaire do politeísmo greco-romano239.
“Bem, quando ele foi preso, os cristãos,
Parece desnecessário dizer que o escritor de
considerando o incidente como uma calamidade,
não pouparam esforços para o resgatar. Mas, como Samosata confunde o Cristianismo com as demais
isso era impossível, manifestaram-lhe toda forma religiões; porque seu espírito, tão frívolo quanto
de atenção, não ocasionalmente, mas com corrompido, não estava em condições de reconhecer e
assiduidade, e, desde o romper do dia, viam-se apreciar a sublime grandeza e as características
viúvas idosas e crianças órfãs esperando perto da extraordinárias e divinas da Nova Religião. A distinção
prisão, enquanto seus líderes chegavam mesmo a entre a verdade e o erro, entre o bem e o mal, são
dormir lá dentro com ele, após subornar os guardas. palavras sem sentido para Luciano, cuja crítica ligeira
Então, refeições elaboradas eram-lhe trazidas e e mordaz, cuja sátira amarga e por vezes cínica, tendem
liam-lhe em voz alta os livros que lhes são sagrados,
a aniquilar toda moral e toda religião.
e ao excelente Peregrino – pois ainda se apresentava
por esse nome – chamavam ‘novo Sócrates’.
“De fato, vinham pessoas até mesmo de cidades d) Contemporâneo de Luciano, e não muito
da Ásia, enviadas pelos cristãos às custas comuns, diferente em termos de doutrinas e tendências
para socorrer, defender e encorajar o herói. Eles filosóficas, foi o famoso Apuleio (Lucius Apuleius),
mostravam uma velocidade incrível sempre que natural de Madaura, na África. Frequentou escolas em
alguma ação pública desse tipo era tomada; em Cartago, Roma e Atenas, e depois de percorrer vários
pouco tempo, eles gastavam tudo o que tinham. países, retornou à sua terra natal, onde abriu uma escola
Assim foi então no caso de Peregrino: muito pública. A parte filosófica de sua doutrina é uma
dinheiro chegava até ele por causa de sua prisão, e
mistura informe de certas teorias de Platão e
ele conseguia uma boa receita com isso. Os pobres
Aristóteles. Além disso, o que caracteriza sua doutrina
coitados se convenceram, antes do mais, que sejam
imortais e viverão por toda eternidade, em
é a predileção que ele manifesta pela demonologia,
consequência do que desprezam a morte e até uma predileção que o leva a negar a providência divina,
mesmo se entregam voluntariamente à prisão, em confiando o governo do mundo em geral e dos homens
sua maioria. Além disso, o seu primeiro Legislador em particular aos demônios ou gênios que habitam a
persuadiu-os de que todos são irmãos uns dos região média da atmosfera. O autor do Asno de Ouro
outros, desde que, uma vez por todas, reneguem os (ou Metamorfoses), que também escreveu um tratado
deuses gregos, adorem Àquele Sofista Crucificado especial para discutir a origem e a natureza do gênio ou
e vivam sob as Suas leis. Portanto, eles desprezam deus (δαίμων) de Sócrates (De Deo Socratis),
todas as coisas indiscriminadamente e consideram-
aconselha e recomenda prestar culto e honra ao gênio
nas propriedade comum, recebendo essas doutrinas
ou demônio responsável por nossa pessoa, nossa vida e
tradicionalmente, sem nenhuma evidência
definitiva. Então, se algum charlatão e impostor,
nossas ações. Fazendo isso, cada pessoa pode
capaz de se aproveitar das ocasiões, se mistura entre conseguir que seu demônio ou gênio familiar lhe
eles, rapidamente adquire riqueza repentina ao prepare benefícios e evite infortúnios que possam
enganar essa gente simples” (A morte de Peregino, ocorrer, por meio de sonhos, sinais e até mesmo
11-13). aparições visíveis, caso necessário. É bem possível que

239
Não sem razão, o entusiasmo por seu tom satírico e suas críticas ácidas encontrou eco na mentalidade e nas obras de diversos
autores, desde sua redescoberta na Renascença (período em que havia tantas traduções latinas de seu texto quanto de Platão e
Plutarco), influenciando fortemente a obra do humanista Erasmo de Roterdan, do livre-pensador Rabelais (o qual pretendia libertar
as pessoas da superstição medieval, do espírito de cavalaria e da escolástica), do novelista Miguel de Cervantes (autor do famoso
Dom Quixote, em que satiriza a cavalaria), do satirista Jonathan Swift (autor do panfleto satírico Argumento contra a Abolição do
Cristianismo, em que advogava pela manutenção da Igreja Anglicana – o “cristianismo” – como salvaguarda para os ingleses não
192
na teoria demonológica de Apuleio tenham influenciado ideias e reminiscências cristãs mais ou menos
confusas e distorcidas, adquiridas durante suas viagens pela Grécia e Ásia, sem contar sua relação com os
cristãos africanos. A força poderosa e incontestável da palavra divina que carregava em seu seio o
Cristianismo se fazia sentir em todos os sistemas e escritos da época, mesmo contra a vontade de seus
próprios autores.
Nas questões propriamente filosóficas, Apuleio geralmente segue Platão e Aristóteles, como foi
mencionado. Em seu tratado Sobre a disposição das doutrinas e o nascimento de Platão (De Platone et
dogmate eius), dedica um livro a expor os dogmas ou doutrina de Platão: usa outro livro para expor a lógica
e a teoria do silogismo de Aristóteles, cujo tratado De Mundo ele também traduziu do grego para o latim.

§ 102. Os neo-pitagóricos

Para este movimento de transição que se verificou por este tempo no seio da Filosofia – e principalmente
para o movimento sincretista e teosófico que caracteriza as escolas alexandrinas e o neoplatonismo
(expressão mais elevada da Filosofia Grega em seu terceiro período) –, também contribuíram os neo-
pitagóricos que floresceram em Roma e em outras regiões do Império nesse período. A combinação ou
fusão de certas ideias teóricas e práticas dos antigos pitagóricos com algumas doutrinas e princípios de
outras escolas filosóficas é o que constitui o neo-pitagorismo, cujos representantes mais notáveis – fora
Moderato de Cádiz240, contemporâneo de Sêneca, e Nicômaco de Gerasa241, que parece ter vivido na época
dos Antoninos – são:

a) Sextio (Quinti Sextii Patris), que floresceu sob Júlio César e Augusto, e cuja escola parece ter sido
muito frequentada, de acordo com as indicações de Sêneca, que também revelam que na doutrina e ensino
de Sextio, ao lado do elemento pitagórico [razão pela qual S. Jerônimo o chama Xystus Pythagoricus
philosophus], predominava o elemento estóico;

b) Sótio (Sotio Alexandrinus), natural de Alexandria, e um dos preceptores de Sêneca (Sotio philosophus
alexandrinus, praeceptor Senecae), de acordo com o testemunho de Eusébio de Cesareia, ensinou e
defendeu mais amplamente do que Sextio a doutrina e as práticas pitagóricas, incluindo a transmigração
das almas (animas in alia corpora atque alia describi, et migrationem esse, quam dicimus esse mortem), e
a abstinência de carne, se devemos acreditar no testemunho explícito de seu discípulo Sêneca;

c) Apolônio de Tiana (Απολλώνιος ο Τυανέας), famoso pseudo-taumaturgo que, durante o séc. I d.C.,
fez muito barulho no Império Romano com seus truques e falsos milagres, historiados pela primeira vez,

caírem na prostituição, na bebedeira ou no catolicismo), de Fénelon (o “Cisne de Cambrai”), do próprio Voltaire, Diderot, Júlio
Verne, entre outros: similis simili gaudet. [N.T.]
240
Moderato Gaditano (Μοδερᾶτος), natural de Cádiz ou Gadira, na Hispania – por isso Moderatus Gaditanus, em latim –, foi
um neo-pitagórico do século I d.C. Embora pouco se saiba de sua vida, é certo que ensinou em Roma no tempo de Nero. Chamado
vir eloquentissimus por São Jerônimo, Moderato Gaditano tenta fundir numa única doutrina o pitagorismo e o platonismo. Admitia,
para além da matéria, três princípios das coisas: [1] a unidade primeira, superior ao ser e a toda essência; [2] a unidade segunda,
que é o verdadeiro ser, o inteligível, as idéias; e [3] a unidade terceira, que é a alma, e que, como tal, participa tanto da unidade
primeira quanto das idéias. No que tange à matéria, tentava ligá-la ao princípio divino: “A razão universal – escreve –, querendo
dar origem a todos os seres, separou da sua essência a quantidade, afastando-se dela e privando-a de todas as formas e idéias que
lhe pertencem. Essa quantidade, essa idéia separada, por privação, da razão universal (que contém em si mesma as razões de todos
os seres) é o modelo (o tipo) da matéria corpórea. Portanto, a matéria não é outra coisa senão a quantidade ideal destacada da
unidade divina e que se torna, por sua separação, em quantidade real, informe e sem unidade, dividida e dispersa até ao infinito.”
(cf. PELAYO, M. M. Ensayos de crítica filosófica) Essa matéria de Moderato não se distingue muito da matéria prima informe de
Aristóteles. [N.T.]
241
Nicômaco Geraseno (Νικόμαχος), natural de Gerasa, na Jordânia, foi um neopitagórico que viveu e atuou na passagem do
primeiro para o segundo século da era cristã e se dedicou a expor as místicas propriedades dos números. A Aritmética (De
Institutione Arithmetica) do Beato Severino Boécio é uma paráfrase latina e uma tradução parcial da Introdução à Aritmética
(Ἀριθμητικὴ εἰσαγωγή) de Nicômaco; e sua De Institutione Musica fundamenta-se no Manual Harmônico (Manuale
Harmonicum em sua versão latina ou Ἐγχειρίδιον ἁρμονικῆς no grego) do mesmo autor. [N.T.]
193
corrigidos e aumentados por Filostrato Ateniense (Lucius Flavius Philostratus), quando já haviam passado
mais de cem anos sobre o túmulo de Apolônio. Discípulo do pitagórico Euxeno, Apolônio parece ter tomado
por modelo a Pitágoras, reproduzindo suas doutrinas e, sobretudo, praticando seus preceitos. Seguindo o
exemplo de seu mestre e modelo, Apolônio não usava roupas de lã, abstinha-se de comer carne e beber
vinho, andava descalço, levava uma vida austera e rejeitava certas práticas grosseiras do culto idolátrico.
No campo doutrinário, além da importância que dava às fórmulas aritméticas de Pitágoras, recomendava e
praticava o estudo da música, matemática e astronomia.
As práticas pitagóricas, juntamente com a teurgia e a magia, muito em voga na época de Apolônio,
principalmente no Oriente, representam e constituem a base das ações de prestígio e das fábulas atribuídas
a ele por Filostrato. A Vida de Apolônio, como aponta corretamente Haas, “não passa de uma paródia da
vida de Cristo e do Evangelho242, como comprovam, por exemplo, o nascimento milagroso, a reforma do
mundo, os milagres realizados, a expulsão de demônios e a ascensão atribuídos ao suposto taumaturgo”.

Embora tenham sido os principais, ou pelo menos os mais conhecidos, esses não foram os únicos
seguidores do pitagorismo nessa época. As tendências sincretistas e orientalistas predominantes não
puderam deixar de favorecer a ressurreição do antigo pitagorismo. Assim, vemos que São Justino, o mártir,
ao nos contar em seu famoso Diálogo com Trifão suas peregrinações pelas diferentes escolas filosóficas,
enumera, entre os mestres que teve em sua juventude, um pitagórico, que lhe prometia a posse da suprema
felicidade e da verdade, sob a condição de estudar antes a música, a geometria e a astronomia, ciências que
representam o caminho seguro e único para elevar-se ao mundo inteligível, à região da realidade pura e da
verdade perfeita.

§ 103. Movimento intelectual em Alexandria

Temos indicado, mais de uma vez, que a característica dominante, ainda que não exclusiva, do segundo
período da Filosofia grega é o pensamento antropológico, do mesmo modo que o pensamento cosmológico
predomina no primeiro período. Já no terceiro período – e principalmente suas últimas etapas que vamos
percorrer –, o pensamento filosófico assume um caráter teosófico muito pronunciado, a ponto de
predominar, em maior ou menor escala, em quase todas as escolas, sem prejuízo das diversos – e, por vezes,
contraditórias – correntes teológicas que as constituem.
Entre as diferentes causas que contribuíram para a origem e desenvolvimento desta Filosofia teosófica,
ou, se se preferir, eclético-teosófica do terceiro período, não é menos importante a condição geográfica da
cidade que serviu de centro e foco do movimento intelectual em questão: aos 332 a.C. e a caminho do Egito,
o vencedor de Dario, cujo gênio político andava a par com seu gênio bélico, lançou os alicerces de uma
cidade que deveria perpetuar até nós o nome e a glória de seu fundador. Banhada pelas ondas do
Mediterrâneo; tocando, por outro lado, o lago Mareotis; e se comunicando com o resto da África pelo Nilo,
Alexandria tornou-se em pouco tempo o depósito geral do comércio do mundo então conhecido, a cidade
mais populosa do Império Romano, depois da capital, o centro para o qual convergiam o Oriente e o
Ocidente, a Grécia e a África, e o ponto onde se encontravam os sábios, artistas, filósofos, poetas,
gramáticos, astrônomos, matemáticos e até teólogos e sacerdotes; pois todos eles encontravam acolhimento
favorável e proteção no famoso Museum243, fundação verdadeiramente régia dos sucessores de Alexandre.

242
Já Porfírio (séc. III d.C.), em seu Adversus Christianos (Κατὰ Χριστιανῶν), contrapunha os milagres de Cristo aos de Apolônio;
e o prefeito Hierocles (séc. IV d.C.) chegava a sustentar que os de Apolônio eram ainda maiores. Eusébio de Cesaréia contra-
arrestou afirmando, no seu Contra Hieroclem, que Filostrato era um fabulista e que Apolônio era um mago sustentado pelos
demônios (tese comum a Lactâncio). A comparação entre Cristo e Apolônio se tornou lugar-comum nas polêmicas anti-cristãs dos
séculos XVII e XVIII: o deísta inglês Charles Blount publicou, em 1680, uma primeira tradução da Vida de Apolônio para o
vernáculo; o sádico Marquês de Sade, em seu Diálogo do padre com o moribundo (1782), chama a ambos “falsos profetas”. [N.T.]
243
O Museum Alexandriae (Μουσεῖον τῆς Ἀλεξανδρείας) era uma instituição pública de natureza religiosa e científica: dedicado
às Musas – deidades inspiradoras e protetoras das artes ou técnicas e das ciências –, o Museu tinha por finalidade fomentar e
custodiar as mesmas artes e ciências, razão pela qual costumava conter um repositório de livros ou biblioteca. O Museu de
Alexandria, fundada por Ptolomeu I Sóter (séc. III a.C.), compreendia a famosa Biblioteca de Alexandria, era sustentado pela
194
O astrônomo e o sacerdote, o matemático e o filólogo, o sábio e o filósofo tinham igual espaço nesta grande
instituição, onde, ao lado de um liceu para ensinar Filosofia, havia um gabinete astronômico e um depósito
geográfico, e um templo para cultuar todos os deuses, e havia, acima de tudo, uma biblioteca, a mais
apropriada para promover e aperfeiçoar o estudo das ciências. Pois é sabido que esta grande fundação de
Ptolomeu I Sóter já continha, após poucos anos, mais de duzentos mil volumes, segundo o testemunho
autorizado de Josefo. No reinado de Ptolomeu III Evérgeta (246-221 a.C.), o edifício destinado a esse fim,
no famoso Brucheion [o bairro real], já não conseguia conter os volumes adquiridos, sendo necessário
colocar uma parte deles no templo de Sérapis: e não é necessário lembrar que, quando na época de César
(48 a.C.), foi em grande parte reduzido a cinzas, continha quatrocentos mil volumes244, relacionados com
todos os tipos de conhecimento. Não é difícil compreender o forte impulso que todas as ciências receberam
com a ajuda de uma biblioteca desse tipo, equipada também com uma multidão de copistas, calígrafos,
gramáticos e sábios ocupados em copiar e corrigir os textos.
Além disso, o Museu de Alexandria não era nem uma escola especial de Filosofia – como a Academia
platônica ou o Pórtico dos estóicos – nem um colégio de sacerdotes-astrônomos – como os de Mênfis e
Babilônia – nem, tampouco, uma instituição político-moral – como a de Pitágoras – ou uma escola de
gramática e filologia ou uma Academia de Medicina, mas era tudo isso ao mesmo tempo: era uma
verdadeira universidade [sic], ou seja, uma instituição muito semelhante àquela que conhecemos hoje por
este nome, e mais ainda à Universidade da Idade Média245.
Daí essa série de trabalhos e publicações de todos os gêneros que apareciam sucessivamente em
Alexandria. Euclides escreve seus Elementos de Geometria, o bibliotecário real Eratóstenes publica
notáveis escritos sobre astronomia e geografia; os Setenta intérpretes traduzem a Bíblia para o grego;
Aristilo e Timocaro fazem avançar a astronomia; Apolônio de Pérgamo aperfeiçoa a geometria com o seu
tratado sobre as Seções Cônicas; Ptolomeu escreve o seu famoso e popular Almagesto; Hiparco descobre a
precessão dos equinócios; Estrabão cultiva e aperfeiçoa a geografia astronômica e política; Erasístrato e
Herófilo desenvolvem e aperfeiçoam a medicina através do estudo da anatomia, enquanto Eudóxio de
Cízico e Dioscórides contribuem para o mesmo resultado com suas publicações e trabalhos sobre botânica
e outros ramos da história natural. Os nomes de Tiranião e Dídimo, os de Ctesíbio e Heron, os de Amônio,
Ápio e Eratóstenes, os de Duris de Samos, Aristarco, Políbio e Manetão mostram que em Alexandria eram
cultivados com ardor a gramática, a filologia, a retórica, a crítica, a História, sem negligenciar as ciências
físicas, exatas e naturais.
Ao mencionado Aristarco de Samotrácia alguns atribuem a primeira idéia ou afirmação acerca do
movimento da Terra. Mas a verdade é que, segundo um trecho explícito de Cícero246, essa honra pertence
por justiça a Hicetas ou Nicetas de Siracusa, que deve ter conhecido e ensinado a teoria copernicana
moderna em seu aspecto essencial.

dinastia ptolemaica (e posteriormente pela República Romana e pelo Império) e era administrado por um sacerdote nomeado pelo
Faraó, como os demais templos egípcios. Os membros do Museu (os filólogos) eram remunerados, isentos dos impostos e recebiam
moradia, alimentação e servos. Durante o Império, a filiação ao Museu passou a ser uma distinção antes militar que acadêmica.
Quando Caracala, aos 216 d.C., suprimiu o Museu, as antigas atividades já não se exerciam lá, mas no Serapeu. [N.T.]
244
Por sorte, este desastre foi em parte reparado pouco tempo depois, pois Marco Antônio mandou colocar em Alexandria a
biblioteca que Átalo, rei de Pérgamo, havia legado ao Senado romano. Assim, esta grande fundação dos lágidas ou ptolomeus foi
preservada com bastante esplendor, até que foi reduzida a cinzas pelo fanatismo dos muçulmanos, os protegidos e amigos de Draper
[John William Draper, da Universidade de Nova York].
245
Neste ponto, a apreciação do Cardeal centra-se sobre a similitude (para apresentar a peculiaridade desta instituição na
Antiguidade) e não sobre a essencial distinção da Universidade, como nascida da Cristandade: enquanto a Universidade Medieval
– erigida simultaneamente sobre a unidade de todos os saberes sob a égide do Verbo (ou Lógos) Unigênito e sobre a unidade do
intelecto humano – favorecia a síntese, a Biblioteca de Alexandria – fundada na confluência de todas as correntes – tendia ao
sincretismo. [N.T.]
246
Eis o curioso trecho: “Hicetas Syracussus, ut ait Theoprastus, coelum, solem, lunam, stellas, supera denique omnia, stare censet;
neque praeter terram rem ullam in mundo moveri; quae cum circum axem se summa celeritate convertat et torqueat, eadem effici
omnia, quasi stante terra coelum moveretur.” Lucullus, cap. XXXIX.
Se o que Cícero supõe aqui é verdade, é necessário reconhecer que o cerne da teoria copernicana foi ensinado por Hicetas ou
Nicetas de Siracusa alguns séculos antes da era cristã. Em todo caso, parece certo que o trecho de Cícero foi como a faísca que
acendeu o gênio de Copérnico, como ele mesmo confessa no prólogo-dedicação a Paulo III, que colocou em sua famosa obra:
“Reperi apud Ciceronem, primum Nicetam sensisse terram moveri... Inde igitur occasionem nactus, coepi et ego de terrae
mobilitate cogitare.”
195
Como não poderia deixar de acontecer, a Filosofia grega tomou parte no grande movimento intelectual
alexandrino, e por isso vimos que, no período que acabamos de percorrer, todas as grandes escolas da
Filosofia helênica e greco-romana tiveram professores e representantes mais ou menos autorizados em
Alexandria. Mas chegou uma hora em que as lutas dessas escolas entre si e com o ceticismo, e por outro
lado, a grande fermentação produzida pelo choque de correntes intelectuais muito diversas e contraditórias,
mas não menos poderosas e enérgicas, produziram uma das manifestações mais notáveis do pensamento
filosófico. Já dissemos que Antíoco de Áscalon, o herdeiro da Academia cético-idealista de Carnéades,
realizara uma espécie de compromisso entre o dogmatismo e o ceticismo, compromisso que os sábios e
filósofos de Alexandria logo estenderam às diferentes escolas da Filosofia grega, e depois aos diversos
sistemas teogônicos, morais e religiosos que, do Oriente e do Ocidente, da Grécia, da Ásia, do Egito e da
Palestina, haviam acorrido à cidade dos Ptolomeus. Os sistemas filosóficos e as teogonias dos brâmanes, o
ascetismo de Buda e seus discípulos, o dualismo mazdeísta e as tradições zoroástricas, o monoteísmo
judaico e as reminiscências dos profetas de Israel durante o cativeiro babilônico, o hieratismo dos egípcios,
as máximas tradicionais da escola pitagórica, a mitologia inesgotável da Grécia e o politeísmo greco-
romano eram outras tantas correntes que se cruzavam e colidiam entre si e com a Filosofia grega em
Alexandria. Quando todos esses elementos estavam em fermentação e começaram a se manifestar escolas
e tendências filosófico-teosóficas em relação à natureza daqueles elementos, o eco distante da palavra do
Verbo de Deus, que ressoava às margens do Jordão, de repente chegou ao Museu e essa palavra não
demorou a ressoar dentro dos muros e nas proximidades da cidade de Alexandre, causando uma sensação
extraordinária pela novidade, pela elevação de doutrina, pela pureza moral, pelos suas testemunhos ou
mártires, pelas suas obras maravilhosas, pela sua propaganda extraordinária. Rejeitada e tratada com
desprezo no início pelos sábios e filósofos alexandrinos, eles logo se viram obrigados a levar em conta a
Nova Religião e, enquanto alguns deles persistiam em sua hostilidade e concentravam todas as dispersas
forças do paganismo para erradicá-la, outros tentaram fundi-la e conciliá-la, seja com a Filosofia grega, seja
com as teogonias e religiões do paganismo.
As precedentes indicações explicam a origem e o caráter fundamental do movimento filosófico neste
terceiro período da Filosofia, e ao mesmo tempo contêm a razão suficiente para a diversidade relativa de
escolas que vemos surgir durante ele. O movimento filosófico deste período é essencialmente eclético e
teosófico, pois isso é exigido pelas condições e elementos que o originaram. Preparado de longe pela
Filosofia greco-romana, favorecido em suas tendências ecléticas e ético-religiosas pelos representantes do
movimento de transição, pela fermentação intelectual de Alexandria e pelo neo-pitagorismo, do qual
falamos em parágrafos anteriores, este movimento filosófico adquire e revela decididamente seu caráter
eclético-teosófico nas escolas que preenchem suas últimas etapas e que ora vamos percorrer. O número e
classificação das principais escolas que representam esse movimento estão relacionados com a natureza e
o predomínio relativo de seus elementos filosóficos e teológicos.
Em harmonia com essas indicações, reduziremos a três as escolas a que nos referimos, serão: [A] escola
greco-judaica, [B] escola gnóstica e [C] escola neoplatônica.

196
§ 104. Origem da escola greco-judaica

Os setenta anos de cativeiro babilônico colocaram os judeus em contato com a doutrina zoroástrica, bem
como com as teorias e práticas religiosas da Caldéia e da Índia, e a influência dessa comunicação se fez
sentir na nação hebraica após o retorno aos locais pátrias. Fruto em parte e resultado dessa comunicação
foi, sem dúvida, o amálgama informe de paganismo e mosaísmo que tomou forma entre os samaritanos, e
é de se acreditar que tal comunicação influenciou o surgimento e desenvolvimento das seitas que dividiram
os judeus, especialmente os essênios e terapeutas, nos quais não se pode ignorar a influência do misticismo
oriental e budista, das tradições astronômico-religiosas dos caldeus e assírios. Segundo Porfírio, certos
judeus que moravam na Síria se dedicavam exclusivamente à contemplação da Divindade, a examinar o
curso dos astros durante a noite, a oferecer sacrifícios a Deus, a quem também dirigiam frequentes preces.
Fílon escreve, ao falar dos terapeutas ou judeus místicos que povoavam o Egito em seu tempo: “Sua
doutrina, transmitida sob a forma de iniciação secreta, contém investigações filosóficas sobre a existência
de Deus, sobre a geração do mundo e sobre a moral; envolvem essas doutrinas em fórmulas alegóricas e
simbólicas e pressupõem que é necessária uma certa inspiração divina para atingir seu conhecimento”.
Apesar de suas vicissitudes e das perseguições frequentes de que foram alvo e vítimas, é um fato
histórico indubitável que os judeus se dispersaram e se espalharam grandemente pelas províncias do Egito,
da Ásia Menor e da Grécia, e que a colônia judaica de Alexandria era tão importante em número quanto
em riqueza. Suas escolas e idéias não puderam deixar de sofrer a influência do helenismo, com o qual
estavam em antiga e permanente comunicação, especialmente desde a versão da Septuaginta. Daí a origem
e o caráter peculiar da escola greco-judaica que floresceu em Alexandria, e cujo principal representante foi
Fílon, embora seu primeiro ensaio sistemático seja devido a Aristóbulo de Panias (Αριστόβουλος του
Πανέα).
A filosofia greco-judaica é uma concepção sincrética do mosaísmo e helenismo; é uma tentativa de
conciliação, ou melhor, de fusão e identificação entre a Bíblia e a Filosofia grega. Para alcançar o resultado
desejado, Aristóbulo, inventará ou usará versos supostamente de Orfeu, Hesíodo e Homero que expressam
a doutrina contida no texto bíblico; tentará provar que Pitágoras e Platão receberam dos judeus suas
O Judaísmo dito Helênico principais teorias; buscará relações entre a
mitologia grega e a narrativa mosaica do
O judaísmo alexandrino deste período era, na expressão de Pentateuco e, finalmente, interpretará de
Wolfson, “do mesmo tronco do judaísmo farisaico, que então
prosperava na Palestina, ambos tendo brotado daquele judaísmo forma alegórica os trechos doutrinários e
macabeu que fora moldado pelas atividades dos escribas.” (Philo: históricos do Antigo Testamento,
Foundation of Religious Philosophy. t. I p. 56). O grego era falado procurando harmonizá-los com as teorias
nas sinagogas por todo o Mediterrâneo, como se torna evidente
da Filosofia grega.
pelo exemplo de Fílon, que não escreveu o seu grego literário
para um público de gentios, mas para os seus compatriotas judeus Embora São Clemente de Alexandria e
altamente cultivados. O próprio texto bíblico que ele comenta é Eusébio de Cesareia listem Aristóbulo entre
a tradução grega dos Setenta, a Septuaginta, que se em algo os peripatéticos, é mais provável que ele
difere do texto grego que possuímos deve-se não pelo uso da
chamada Bíblia Hebraica, mas pelo fato de nossa recensão ser de não tenha seguido exclusivamente
origem posterior. nenhuma escola em particular, pois seu
Contudo, suas idéias e seus métodos não lançam profundas pensamento era apenas conciliar e até
raízes no judaísmo pós-cristão: após a destruição do Templo e mesmo estabelecer identidade doutrinária
dispersão dos judeus palestinos, do chamado Concílio de Jamnia
(no qual se excluem do cânon judaico sete livros canônicos dos entre o mosaísmo e o helenismo filosófico.
cristãos) e da compilação dos dois primeiros Talmudes na Este filósofo judeu viveu em Alexandria
Babilônia, a postura judaica se move num círculo de idéias bem durante o reinado de Ptolomeu VI
diverso e a própria comunidade de Alexandria, outrora
Filométor, segundo a opinião mais
florescente, já quase não é mais mencionada pela História. A
filosofia greco-judaica como um todo desaparece rapidamente provável. Infelizmente, suas obras não
sem deixar atrás de si qualquer impacto permanente sobre o chegaram até nós, das quais apenas alguns
judaísmo, e é somente através dos cristãos que Fílon, Josefo, e a fragmentos e trechos preservados e citados
literatura não-talmúdica ou não-canônica dos hebreus deste
período sobreviveram.
nas obras de São Clemente de Alexandria e
Eusébio de Cesareia são conhecidos.

197
§ 105. Fílon

O filósofo hebreu Fílon (Φίλων ο Αλεξανδρινός ou ‫ )פילון האלכסנדרוני‬nasceu em Alexandria,


provavelmente 25 ou 30 anos antes de Jesus Cristo. Eusébio e São Jerônimo
afirmam que ele pertencia à família sacerdotal e que um de seus irmãos era
prefeito ou juiz dos judeus de Alexandria247 . Devido às perseguições e
massacres sofridos pelos judeus de Alexandria e províncias vizinhas, ele
foi enviado por seus correligionários como embaixador a Roma (De
legatione ad Caium), onde se encontrava por volta do ano 40 da era
cristã.
O pensamento filosófico de Fílon é uma tentativa de conciliar e
harmonizar a Filosofia grega com a doutrina contida nas Sagradas
Escrituras vetero-testamentárias. Seu ponto de partida, bem como seu
método para chegar a esse resultado, é a interpretação alegórica desses livros.
Quando a alegoria não é suficiente, o filósofo judeu recorre à interpretação mística, sem deixar de expor e
interpretar à sua maneira as teorias da Filosofia grega, a fim de harmonizá-las com a doutrina judaica. Daí
seu ecletismo filosófico, que o leva a recorrer a Zenão, Pitágoras e Aristóteles quando Platão não se adapta
às suas ideias, e daí também a obscuridade e contradições percebidas em seus escritos filosóficos. Às vezes
ele fala de Deus como se fosse apenas uma idéia, um ser abstrato e impessoal, o ser genérico; enquanto em
outros trechos ensina que Deus é um ser pessoal, ativo e vivente, superior e diferente do mundo. A julgar
por alguns trechos de suas obras, o Logos – Verbo ou palavra de Deus – seria, para ele, [1] um ser
intermediário entre Deus e o mundo, o arquiteto do Universo, o instrumento da criação, um ser produzido
por Deus imediatamente e anteriormente à produção do mundo; porém, a julgar por outros trechos do
mesmo, esse Logos, ou [2] se identifica com o Universo e é uma espécie de alma universal do mundo,
análoga à do estoicismo, ou [3] se apresenta como uma personificação simbólica da virtude divina enquanto
criadora.
Não são menores as contradições e variações que o pensamento do filósofo judeu apresenta quando se
trata de resolver o problema do conhecimento, ou melhor, da cognoscibilidade de Deus. Apoiando-se
algumas vezes na finitude do homem, na imperfeição de suas forças ou faculdades de conhecer, no abismo
profundo e insondável que separa Deus do mundo, o ser infinito de todo ser finito, ele concede apenas ao
homem um conhecimento imperfeito, enigmático ou metafórico e indireto e obscuro de Deus. A inteligência
humana pode elevar-se até Deus por meio de seus efeitos, por meio das obras divinas; mas não pode
conhecer mais do que sua existência e de forma alguma sua essência, nem seus atributos e perfeições.
Porém, em outras ocasiões, Fílon parece abandonar todas essas afirmações e idéias para ensinar que Deus
se manifesta e revela ao homem por meio de iluminações superiores, que o colocam em posse de Deus, em
sua essência, em seus atributos e até em seus efeitos; porque, a julgar por alguns trechos de suas obras, ele
não só admite esse tipo de conhecimento supremo e intuitivo da Divindade, como supõe que essa intuição,
esse conhecimento superior de Deus, implica simultaneamente o conhecimento das coisas ou seres
inferiores a Deus: Emergens [intellectus] supra creata omnia manifeste increatum contemplatur, ut et
ipsum per se comprehendat et umbram ejus, hoc est, et verbum ejus, et mundum hunc universum.
As mesmas dúvidas e obscuridades reinam nos escritos de Fílon, seja em relação aos anjos, que às vezes
aparecem como substâncias espirituais e inteligentes e outras vezes como meras forças da criação e da
natureza, seja em relação à alma humana, ou seja, ao homem, cuja liberdade ele reconhece em alguns
trechos, enquanto em outros afirma que o pecado é inato e necessário no homem e que a liberdade é um
atributo peculiar e exclusivo de Deus.

247
Alexandre Lysímaco, irmão de Fílon, é referido por Josefo em suas Antiquitates iudaicæ e Bellum iudaicum. Fora aprisionado
por ordem de Calígula e libertado por Cláudio, com quem mantinha proximidade. Um seu filho, Marcos Júlio Alexandre, desposou
Berenice, filha de Herodes Agripa; e outro, Tibério Júlio Alexandre, abandonando o judaísmo, torna-se procurador da Judéia e
governante do Egito, participando ativamente das campanhas contra Jerusalém. A este Fílon dirige seu tratado Alexandre (De
animalibus), do qual só foi preservada a tradução armênia. [N.T.]
198
Sem perder de vista essa obscuridade relativa, a doutrina filosófica de Fílon pode ser resumida nos
seguintes termos, que abrangem o mais certo e provável de sua Filosofia:
(Deus)
a) Deus é o Ser universal, o Ser como ser: sua essência é incompreensível para nós, pois só sabemos que
Ele existe ou é, mas não o que é. Todos os nomes que empregamos para significar seus atributos devem ser
tomados em sentido impróprio, porque, na realidade, Deus não tem atributos, é puro Ser. Deus está no
mundo, não com a presença da essência, mas com a presença da operação, ou seja, na medida em que age
nele. Deus é incorpóreo, invisível, superior à virtude, à ciência, ao bem e à beleza. Deus possui apenas uma
liberdade perfeita, que se estende à criação do mundo, pois todas as outras coisas estão sujeitas à
necessidade.
(Lógos)
b) O mundo foi criado livremente por Deus, mas essa criação não é obra imediata de Deus, mas do
Lógos, ser intermediário entre Deus e o mundo, ser anterior e superior a este, mas inferior e posterior
Àquele, embora seja chamado de filho de Deus, porquanto seja sua obra mais perfeita e seu efeito imediato.
A sabedoria de Deus é a mãe do Lógos, que é como o filho primogênito, e o mundo visível é o filho segundo
ou posterior de Deus. Esse Lógos também é o lugar das Idéias, ou seja, o mundo inteligível e ideal de Platão.
Essas Idéias contidas no Lógos são as espécies e os gêneros, e também são os anjos, demônios e almas
racionais personificadas, e assim Deus se revela e se manifesta no mundo por meio do Lógos, que aplica,
sensibiliza e encarna as Idéias na matéria, sobre a qual o Lógos só pode agir como ser relativamente
imperfeito em relação a Deus. Este último, por ser puro ser e perfeitíssimo, não pode agir nem ter qualquer
contato com a matéria, uma vez que esta é essencialmente imperfeita, má e a origem do mal.
(iluminação)
c) A felicidade consiste na contemplação intuitiva de Deus; uma intuição que o homem não pode
alcançar por seus próprios esforços e que é apenas resultado de uma iluminação divina. Essa iluminação
intuitiva é recebida na inteligência, como uma faculdade superior da alma racional, à qual também
pertencem a sensação e a palavra.
(incompreensibilidade da alma)
d) No entanto, nossa inteligência é de tal condição ou natureza que, embora possa compreender outras
coisas, não pode conhecer-se a si mesma: Mens quae inest nostrum unicuique, caetera potest
comprehendere, seipsam nosse non potest.
No seu tratado De Gigantibus, Fílon supõe a existência de almas racionais na atmosfera, que são as
mesmas que Moisés chama de anjos, e outros filósofos chamavam de gênios: Quos alii philosophi genios,
Moyses solet vocare angelos: hi sunt animae volitantes per aerem.
(antropologia)
e) A teoria antropológica de Fílon coincide com a de Platão. Assim como o fundador da Academia,
Fílon supõe que o homem é apenas a alma racional, e não a combinação da alma e do corpo, opinião que
ele atribui a Moisés248, influenciado por sua idéia favorita de conciliar e identificar a doutrina de Moisés
com a de Platão. O filósofo judeu também adota as opiniões de Platão sobre a divisão e a residência ou
assento da alma humana no corpo249, assim como adentra o terreno da teoria platônica ao considerar Deus
como a alma do universo: Deus enim anima hujus Universitatis intelligitur.
No campo moral, Fílon segue os passos de Platão. Assim como ele, coloca o maior bem do homem na
virtude e a verdadeira felicidade da vida na aproximação ou assimilação a Deus por meio da prática do bem
racional ou honesto. Ele também concorda com o filósofo ateniense em relação à natureza, número e efeitos
das virtudes morais, assim como em relação às recompensas e punições na vida futura. Mesmo na influência
especial e decisiva que Platão concede à purificação moral do homem para conhecer a Deus, Fílon se
aproxima do filósofo de Atenas, ensinando que o vício impede o perfeito e verdadeiro conhecimento da
divindade: In malo homine, opinio de Deo vera obscuratur celaturque, est enim plena tenebris.

248
“Hominis autem animam nominat (Moyses) hominem, non hoc, ex utroque concretum, ut dixi, sed illud divinum opificium, quo
ratiocinamur.” Philonis op., pag. 132, ed. 1613.
249
“Animadvertendum igitur tripartitam esse nostram animam, habereque partes, rationalem, irascibilem et concuspicibilem;
quarum rationalis regionem capitis inhabitat, irascibilis vero pectus, sicut concupiscibilis inguina” Op. Legis Alleg., lib. I, pag. 43.
199
No desejo e propósito pré-concebido de conciliar, Noé e Deucalião
refundir e identificar a doutrina de Platão com a de Fílon, De Praemiis et Poenis, 23
Moisés, deve-se encontrar a razão suficiente do
Pois o Criador considerou digno que a mesma
alegorismo filoniano, um alegorismo que, como se
pessoa fosse tanto o fim da geração condenada
sabe, influenciou bastante a exegese alegórica seguida quanto o início da geração livre de culpa, ensinando
posteriormente por Orígenes e outros representantes da com obras, não palavras, àqueles que dizem que o
famosa Escola cristã ou catequética de Alexandria. mundo é desprovido de Providência, que, conforme
a lei que Ele introduziu na natureza do universo, as
Para Fílon, por exemplo, a serpente das Escrituras é a miríades todas dentre os seres humanos que viveram
volúpia ou prazer; Adão é a compreensão; Eva é o com a injustiça não são dignas de um só homem
sentido; os dois querubins da arca representam os dois [ἑνὸς ἀνδρὸς] que convive com a justiça. Este, os
hemisférios do mundo; a espada de fogo que o gregos o nomeiam “Deucalião”, mas os caldeus,
“Noé”, em cujo tempo, aconteceu de sobrevir o
querubim do paraíso possuía significa o sol: Igneus grande dilúvio.
vero gladius solem significat.

§ 106. Crítica

Além de seu caráter eclético, a Filosofia de Fílon é essencialmente teosófica, não apenas em termos de
conteúdo, mas também em relação ao método e procedimento. A teodicéia preside todas as outras partes da
Filosofia filônica e serve como norma para a solução dos problemas psicológicos, morais e cosmológicos.
Mas não é só isso: enquanto a Filosofia grega geralmente caminha do mundo para Deus, elevando-se à
concepção divina por meio do estudo e observação da natureza, reflexão e deduções lógicas, Fílon caminha
de Deus para o mundo e para o homem; ele toma a Religião como causa e premissa da Filosofia, e só pensa
em resolver os problemas da ciência em harmonia com a idéia divina pré-concebida a priori.
É evidente, por outro lado, que o elemento platônico é predominante na Filosofia de Fílon, embora ele
recorra ocasionalmente a outros representantes da Filosofia grega em busca de idéias adequadas à sua
concepção filosófico-bíblica.
Os escritores que afirmaram que o Verbo do Evangelho de São João, ou o Filho, Segunda Pessoa da
Trindade cristã, tem sua origem na doutrina de Fílon, ou agem de má-fé flagrante, ou desconhecem
completamente o verdadeiro conteúdo da Filosofia filônica. Sem mencionar a obscuridade, as hesitações e
os trechos duvidosos e contraditórios do filósofo judeu sobre esse ponto, é evidente que mesmo
considerando e interpretando esses trechos da forma mais análoga ao Verbo ou Lógos do Cristianismo, e,
portanto, no sentido mais favorável às alegações dos escritores mencionados, há uma distância imensa entre
o Lógos de Fílon e o Verbo ou Lógos do Evangelista. O Verbo de São João é igual, coeterno e
consubstancial a Deus; é incriado e necessário em sua existência como o próprio Deus; possui a mesma
essência, com identidade e unidade numérica e individual; seus atributos são os atributos de Deus; seu
poder é o poder infinito de Deus: sua causalidade é a causalidade de Deus, sem separação ou divisão, seja
específica, acidental ou individual.
Pelo contrário, o Lógos ou Verbo de Fílon é um ser posterior a Deus; um ser cuja natureza, longe de ser
consubstancial à de Deus, não é nem mesmo idêntica à essência divina, uma vez que é inferior a Deus,
como ser intermediário entre o mundo e Deus. Por outro lado, a inferioridade substancial e essencial do
Lógos filônico está evidentemente demonstrada pelo próprio objeto e razão suficiente de sua existência. A
existência do Lógos é necessária, segundo o “Platão judeu”, porque Deus, devido à perfeição e pureza de
sua própria natureza, não pode agir diretamente e imediatamente sobre a matéria, que é um elemento
necessário na criação do mundo. Daí a necessidade de admitir o Lógos, uma espécie de Deus minor, cuja
natureza, embora ainda relativamente perfeita e mais semelhante à de Deus do que a de outros seres, é
inferior e muito diferente da essência divina, e capaz, assim, de entrar em contato e relacionamento com a
matéria.

200
Essa é a substância e a verdadeira essência do pensamento de Fílon sobre o Lógos divino, que certamente
difere muito do Lógos de São João, ou seja, o Verbo igual a Deus, com igual identidade essencial, e cuja
divindade é a própria divindade de Deus, se é permitido dizer assim: et Deus erat Verbum.
À falta de outros argumentos, seria suficiente considerar a diferença absoluta e essencial entre a
“trindade” filônica e a Trindade cristã, para reconhecer que não há nada em comum entre o Lógos de Fílon
e o Verbo de São João. A Trindade do Cristianismo, com suas Hipóstases ou Pessoas iguais em dignidade,
perfeição, atributos, essência, igualmente eternas, igualmente incriadas, igualmente infinitas, igualmente
criadoras do mundo, igualmente distintas e infinitamente superiores ao mundo por Ela criado do nada, em
nada se assemelha à “trindade” de Fílon, composta por Deus, Lógos e mundo, seres que excluem e negam
qualquer idéia de igualdade e identidade de essência e atributos; “trindade” na qual entram elementos
incriados e criados, eternos e temporais, finitos e infinitos. A concepção “trinitária” do filósofo judeu, assim
como a concepção “trinitária” de Platão, que lhe serve de base e norma, contém apenas uma analogia
distante e como uma sombra da concepção trinitária da Religião Católica; isso pode ser chamado de verdade
axiomática para qualquer pessoa que, sem preocupações sistemáticas, concentre-se nas duas concepções
trinitárias.
Os grandes elogios que ele faz aos terapeutas, e o desprezo com o qual ele fala, em algumas ocasiões,
da Filosofia e da ciência humana, das quais diz que só servem para evitar os erros e enganos dos sofistas
(errores hallucinationesque sophistarum), buscando a verdade em uma espécie de contemplação divina e
intuitiva, revelam uma forte tendência para o misticismo na doutrina de Fílon, e explicam ao mesmo tempo
a influência que ele exerceu nas teorias do gnosticismo e do neoplatonismo, assim como na tendência
alegórica que se manifestou na Escola exegética de Alexandria.
O gnosticismo pôde se inspirar no pensamento, ou melhor, nos livros de Fílon, mesmo em relação à sua
tese fundamental sobre a origem e existência de coisas essencialmente boas e más; pois o filósofo judeu,
obedecendo aqui, como em outras questões, à inconstância e contradições de seu pensamento, depois de
indicar em uma parte que Deus deve ser considerado apenas a causa do bem (Deum bonorum tantummodo
causam esse) e não do mal, conclui por dizer em outro trecho que, entre as coisas criadas por Deus, algumas
são más por natureza e outras boas: Duas naturas invenimus creatas, factas et elaboratas a Deo, alteram
ex seipsa noxiam, reprehensibilem, execrabilem; alteram utilem, laudabilemque... Sunt enim ut bonorum,
ita etiam malorum thesauri apud Deum (“Encontramos duas naturezas criadas, feitas e elaboradas por Deus,
uma delas nociva, repreensível, execrável por si só; a outra útil e louvável... Pois assim como existem
tesouros de coisas boas, também existem tesouros de coisas más em Deus”).

201
§ 107. Gnosticismo

O gnosticismo é um dos fatos histórico-doutrinários cuja crítica é mais difícil, não apenas porque se
trata de um fato que se apresenta na cena sem antecedentes apreciáveis à primeira vista, mas também pela
complexidade de suas manifestações, não menos do que pela multiplicidade e variedade de seus
representantes. Daqui a diversidade de sistemas e métodos adotados pelos críticos e historiadores para
classificar e expor as fases do gnosticismo. Alguns seguem a ordem cronológica; outros seguem a ordem
lógica; há quem classifique e exponha o gnosticismo sob um ponto de vista geográfico, dividindo em
gnosticismo asiático, egípcio, sírio, etc., enquanto outros subordinam essa classificação à predominância
relativa dos elementos religiosos (judaico, cristão, pagão ou politeísta) que entranham, não faltando também
autores que submetem a classificação sistemática do gnosticismo à predominância desta ou daquela idéia
filosófica.
Como não se trata aqui do gnosticismo sob um ponto de vista dogmático-religioso, nem sob o ponto de
vista de seu significado na História eclesiástica, mas sob um ponto de vista filosófico, parece-nos oportuno
e razoável tomar como base para o estudo, classificação e exposição do gnosticismo a idéia que serve de
ponto de partida geral para todos esses sistemas, e que contribui ou representa o centro de gravitação de
todas as teorias gnósticas. Em nossa
O Gnosticismo
opinião, a idéia-mãe dos sistemas
Mons. Cristiani, Breve História das Heresias
gnósticos; o problema fundamental que
A palavra Gnose, vinda do grego, significa: Conhecimento ou o gnosticismo se propõe resolver é o
Ciência. Os gnósticos se julgavam pensadores originais que não se
podiam dobrar à fé dos simples fiéis. Durante os primeiros séculos relativo à origem do mal, com o qual
da Igreja, houve um verdadeiro formigar de heresias de inspiração está intimamente ligado o problema que
gnóstica. Seria inútil referir aqui, detalhadamente, todos os sonhos se refere à origem do mundo, ou seja, a
dessas seitas distantes. Limitemo-nos a dar uma ideia geral. Dois
transição do infinito para o finito. A
problemas parecem ter chamado a atenção dos gnósticos: o
problema da criação e o problema do mal. Aliás, são dois problemas solução desse duplo problema
intimamente ligados. Pois, se Deus criou o mundo, donde vem o constituiria o fundo e o conteúdo real e
mal? Se não criou o mal, como pode ser considerado Criador único quase exclusivo de todas as teorias
das coisas?
gnósticas; seria o objeto constante e
Sobre o tema, os gnósticos construíram sistemas audaciosos.
Segundo eles, além do reino da luz, que é o de Deus, devemos preferente de suas especulações, e,
distinguir o das trevas que é o da Matéria eterna e das trevas. Entre consequentemente, a distinção e
o Deus-Abismo, como costumavam falar, e o organizador da variedade de suas escolas estão
Matéria, que chamavam de Demiurgo, deve ter havido grande
número de graduações, que chamavam de éons. E a maioria das relacionadas com a natureza da solução
seitas juntava um éon masculino com um éon feminino [sizígias]. O dada a esse duplo problema. Essa
Demiurgo, autor de nosso mundo material, segundo eles, era ou o solução – uma vez rejeitada a solução
último dos éons, o mais afastado do Deus-Abismo, ou um Demônio cristã, baseada na criação ex nihilo – ou
que arrebatara uma centelha da Plenitude divina – o Pleroma – a fim
de com ela animar a matéria. é a solução panteísta ou a dualista.
Para os gnósticos, tal origem do mundo explica a diversidade dos Ambas estão presentes na heterodoxia
espíritos humanos: distinguiam entre os Gnósticos ou Espirituais gnóstica, na qual, portanto,
[pneumáticos], eles mesmos, os instruídos, em quem a matéria é distinguiremos dois ramos ou duas
dominada pelo Espírito de Deus; os Cristãos Ordinários [psíquicos],
em quem Matéria e Espírito estão mais ou menos equilibrados; e os escolas fundamentais, que são a
Pagãos ou Materiais Hílicos; nos quais a matéria leva, panteísta e a dualista. Esta última pode
decididamente, a melhor sobre o Espírito. Aplicando os próprios ser subdividida em outras duas, onde
sistemas à fé crista, os Gnósticos costumavam fazer de Cristo um
predominam as tendências práticas e
éon enviado por Deus. Esse éon se apoderou do homem Jesus no
momento em que foi batizado no Jordão. Daí em diante teve por morais, prevalecendo em uma delas o
missão levar os homens à verdadeira Gnose, que é o Evangelho, para sentido anti-judaico ou o exclusivismo
libertar os homens da matéria. Foi assim que, graças a Ele, se operou “cristão”, e na outra o sentido pagão ou
a Redenção. Quando o Evangelho tiver completado sua obra sobre a
terra, todas as parcelas de espírito divino, aprisionadas na matéria,
materialista.
voltarão à Plenitude de Deus – Pleroma divino. E o reino das trevas Em resumo: o movimento
ficará para sempre nas trevas. Na exposição agora feita, há várias heterodoxo gnóstico, em nossa opinião,
idéias que ressurgiram em nossos dias tanto entre os teósofos como
entre os espíritas.
202
está representado e condensado nas correntes:

a) panteísta;

b) dualista;

c) anti-judaica; e

d) semipagã ou materialista.

§ 108. Gnosticismo panteísta

O representante principal do gnosticismo panteísta é, sem


Valentino
dúvida, Valentino, que viveu e dogmatizou em Alexandria por volta
Tertuliano, Contra os
do ano 140 da nossa era; passou depois para Roma e faleceu na ilha
Valentinianos
de Chipre no ano de 160. Reunindo, desenvolvendo e
sistematizando as correntes panteístas parciais que até então haviam Valentino esperava se tornar
Bispo, pois era um homem habilidoso,
se manifestado no seio do gnosticismo durante a primeira época de tanto no intelecto quanto na
sua fermentação, esse gnóstico alexandrino formulou um sistema eloquência. Indignado, porém, que um
mais completo e acabado, embora não mais racional ou verdadeiro outro obteve tal honra por causa de
uma reivindicação que um confessor
do que o de seus predecessores. Aqui estão seus principais traços:
havia lhe feito, deixou a Igreja da fé
(pleroma – igualitarismo quietista | paz amorfa) verdadeira. Assim como outros
(1º) Desde a eternidade e antes de todas as outras coisas, e como espíritos incansáveis que, quando
princípio de todas elas, existia o Abismo, acompanhado pelo atribulados pela ambição, são
finalmente inflamados pelo desejo de
Silêncio. Após inúmeros séculos, o Abismo concebeu a idéia de se vingança, ele se dedicou com todas as
manifestar, e, tendo depositado essa idéia em seu companheiro, o suas forças em exterminar a verdade;
Silêncio, surgiram simultaneamente a Inteligência e a Verdade, as e encontrando a pista de uma certa
quais, em união com os dois primeiros, constituem os quatro éons opinião antiga, ele trilhou um caminho
para si com a sutileza de uma serpente.
(αιών) primitivos, as quatro manifestações primordiais da
Divindade ou do Ser. Essa tétrada primitiva passou a ser ogdoada,
porque a Inteligência e a Verdade produzem a Palavra (Lógos) e a Vida, e estas, por sua vez, produzem o
Homem e a Igreja. Essa ogdoada primordial dá origem a outros vinte e dois éons, dez dos quais emanam
da Palavra e da Vida, e os doze restantes do Homem e da Igreja. A emanação de uns e outros é feita por
sizígias ou pares, e todos recebem denominações mais ou menos estranhas e obscuras. Os doze pares de
éons que emanam do Homem e da Igreja são Parakletos (o Paráclito ou consolador) e Pistis (a fé); Patriklos
(a paternidade, o que pertence ao pai) e Elpis (a esperança); Metriklos (o que se relaciona com a mãe, a
maternidade) e Agape (o amor); Aeinous (o que sempre entende ou é inteligente) e Synesis (a prudência);
Eclesiastikos (o eclesiástico) e Makariotes (a bem-aventurança); Thélétos (o voluntário ou vontade) e
Sophia (a sabedoria).
É fácil reconhecer que essa coleção de éons, sendo politeísta, ou melhor, mitológica em sua forma, é
essencialmente panteísta em seu conteúdo real, pois todos esses éons são fases e emanações do Ser, que,
antes inativo e silencioso, sai de seu descanso e silêncio para se manifestar e se desenvolver em Inteligência
e Verdade, em Palavra e Vida, em Humanidade e Igreja ou Cristianismo. O mesmo pode ser aplicado aos
outros éons inferiores, emanações mediadas do Ser e imediatas à ogdoada. Através da diversidade de nomes
e do processo por pares, que pode ser considerado como uma reminiscência e reprodução dos deuses
masculinos e femininos do politeísmo, o pensamento panteísta se revela com toda clareza, pensamento que
aparece mais indubitável e evidente quando se considera que, segundo o gnóstico alexandrino, esses trinta
éons constituem o Pleroma, ou seja, a totalidade, a plenitude do Ser primitivo e absoluto.

203
(pleroma)

Bythos Sigê
(Abismo) (Silêncio)

(tetrada)
(ogdoada)
Nous Aletheia
(Mente) (Verdade)

Lógos Zoé
(Palavra) (Vida)
década
Anthropos Ecclesia
(Homem) (Igreja)
Parákletos Pistis
(Consolador) (Fé)
Patriklos Elpis
(Paternidade) (Esperança)
Matriklos Agape

(dodecada)
(Maternidade) (Amor)
Aeinous Synesis
(Inteligente) (Prudência)
Eclesiástikos Makariotes
(Eclesiástico) (Beatitude)
Theletos Sophia
(Vontade) (Sabedoria)

Matéria e
Demiurgo

Mundo

(sabedoria: causa da diversidade e do mal)


(2º) A Sophia, éon feminino e último dos trinta cujo conjunto forma e representa o mundo inteligível ou
superior, tendo concebido um desejo violento de compreender o Pai (o Ser primitivo ou divino), causou
uma perturbação e desequilíbrio no pleroma, perturbação e desequilíbrio que cessaram quando o Filho
único do Pai (a inteligência, o segundo éon do pleroma) produziu um novo par de éons, a saber, o Cristo e
o Espírito Santo, destinados a restabelecer o equilíbrio e a paz entre os éons do mundo superior. No entanto,
devido ao seu desejo desordenado de se unir ao Abismo e compreender seu ser, Sophia foi exilada do
Pleroma e precipitada no caos, transformando-se em Sophia Achamoth, ou seja, sabedoria de ordem
inferior, e gerando com suas paixões, crises e agitações o mundo material e visível, que é, portanto, uma
degeneração do mundo inteligível ou superior e tem sua origem imediata na paixão, no movimento
desordenado e mau de um dos éons que constituem o pleroma. A matéria e o Demiurgo são as primeiras
produções da Sophia inferior, que, através do Demiurgo, como a alma universal e o princípio ativo do
mundo, produz todos os seres mundanos, incluindo o homem, que recebe seu corpo da matéria, sua alma
do Demiurgo e sua parte espiritual da Sophia inferior, que recebeu esse poder do Espírito Santo enviado
por Cristo.
(espírito – alma – corpo)
(3º) Na constituição do mundo existem três princípios fundamentais: [1] a matéria pura (princípio
hílico), [2] a vida animal (princípio psíquico) e [3] a vida espiritual (princípio pneumático), e as diferentes
substâncias que compõem este Universo correspondem a esses três princípios. Todos os três entram em
partes iguais na constituição e integração do homem, e conforme ele cultiva, desenvolve e faz predominar
um desses três elementos constituintes, resulta a classificação dos homens em [1] homens hílicos,
[2] homens psíquicos e [3] homens pneumáticos ou espirituais. Estes últimos manifestam, incorporam e
204
representam o princípio divino no mundo, e a missão de Cristo e a redenção do homem consistem
precisamente no conhecimento do Pai, na ciência perfeita (gnosis) do pleroma, que Jesus Cristo revelou aos
homens. Portanto, o Cristianismo ou a Igreja representariam o reinado, ou seja, o predomínio relativo dos
homens pneumáticos, assim como o reinado dos psíquicos ou homens interessados, e flutuando entre a vida
material e espiritual, corresponde ao mosaísmo, e o reinado dos hílicos ou homens entregues à vida terrena
e material corresponde ao paganismo, embora isso não negue a existência de alguns homens pneumáticos
no judaísmo e no paganismo, assim como a existência de homens hílicos no Cristianismo.

§ 109. Crítica

Em conformidade e harmonia com seus princípios acerca da unidade essencial da espécie humana, o
Cristianismo proclamou desde seu início a unidade de fé e moral para todos os homens. Assim como a
moral evangélica é a mesma para os grandes e pequenos, para os sábios e ignorantes, o símbolo da fé, a
verdade religiosa, também é a mesma para todos os homens, e o espírito do Evangelho rejeita absolutamente
a orgulhosa pretensão daqueles que dividem os homens em duas classes, como se o povo tivesse o dever
de acreditar em tudo que dizem, e os grandes o direito de acreditar no que bem lhes parecer. Nada é mais
contrário à letra e ao espírito do Evangelho; nada é mais oposto ao ensinamento e à prática do Divino
Salvador do que tal separação entre grandes e pequenos, entre sábios e ignorantes: e isso precisamente
constitui uma das características divinas do Cristianismo, a aspiração à universalidade, a unidade absoluta
de fé e moral.
Essa universalidade de doutrina, essa igualdade de deveres e direitos, essa unidade de credo e moral
para o homem do povo e o homem do mundo sábio, chocava-se frontalmente contra uma das preocupações
e práticas mais arraigadas no mundo antigo, e feria profundamente a susceptibilidade do filósofo, do sábio,
do literato e do sacerdote, acostumados, como estavam, a distinguir e separar na religião a parte mitológica,
externa e vulgar, da parte filosófica, esotérica, especial, ou seja, do sentido científico e verdadeiro,
reservado aos sábios: a verdade religiosa para o homem ilustrado não tinha nada em comum com a
concepção religiosa e com o culto que o povo praticava. É isto, e não outra coisa, o que se deve buscar, e o
que existia no fundo das iniciações secretas que ocorriam nos templos e no fundo dos ensinamentos ocultos
dos magos e sacerdotes na Pérsia, Assíria e Caldéia, bem como nos colégios hieráticos do Egito e na
distinção entre a doutrina pública e a reservada pelos principais filósofos. Daí uma das grandes
repugnâncias dos sábios do mundo gentílico contra o Cristianismo.
Porque os sábios do mundo pagão, os aristocratas da inteligência que ouviram e até receberam a doutrina
evangélica nos primeiros tempos, evitavam misturar sua religião com a religião do povo; sentiam-se
rebaixados com tal comunidade e igualdade religiosa, e seu orgulho, revoltado contra tal idéia igualitária,
lhes inspirou o pensamento da Gnose, o pensamento de buscar no Cristianismo uma ciência mais perfeita,
uma concepção superior à dos fiéis comuns, uma sabedoria própria e constitutiva do cristão perfeito: daí a
classificação gnóstica em pessoas [1] hílicas, [2] psíquicas e [3] pneumáticas. O gnosticismo, portanto, em
todas as suas formas, deve sua origem ao orgulho dos sábios do paganismo; o gnosticismo é uma tentativa
de esoterismo aplicado à Religião de Jesus Cristo; o gnosticismo, enfim, representa o protesto da religião,
da ciência e da Filosofia do mundo pagão contra a universalidade da Religião e da moral, contra a unidade
e igualdade de deveres e direitos, de fé e de moral para todos os homens, pregadas e autorizadas pelo
Cristianismo.
Ao nos concentrarmos agora no gnosticismo particular de Valentino, diremos que o panteísmo constitui
a base de sua doutrina, na qual, a par de algumas idéias (a) cristãs mais ou menos desfiguradas, entram
como elementos principais (b) o platonismo e (b) o judaísmo cabalístico. No Abismo-Silêncio e nos trinta
éons em que se manifesta e se desenvolve, sendo estes o Pleroma ou plenitude do Ser, é impossível não ver
uma concepção essencialmente panteísta. Por outro lado, essa série de evoluções e emanações, inventadas
para explicar, sem recorrer à criação ex nihilo, a produção do mundo, a transição do infinito ao finito,
revelam e demonstram claramente a concepção panteísta do gnóstico alexandrino. Se deixarmos de lado as
formas mitológicas e cabalísticas em que Valentino envolve sua doutrina, fica evidente que sua teoria
205
cosmológica é tão panteísta quanto sua teogonia. A Sophia Achamoth, a Sophia inferior e perturbada do
gnóstico alexandrino, é o Ser absoluto e primitivo, é Deus, substrato substancial e real do Pleroma, que sai
de si para se manifestar na natureza visível, para se limitar e se determinar a si mesmo no mundo. Julgando
a partir do que diz acerca dos valentinianos Santo Ireneu (a quem certamente não se pode negar algum
conhecimento preciso de sua doutrina), o panteísmo de Valentino e seus discípulos é um panteísmo
idealista, uma vez que costumavam dizer em uma linguagem figurada que o mundo existe em Deus como
uma mancha em uma túnica, indicando outras vezes que o Universo, com relação a Deus, é como a sombra
na luz. Ritter e Baur250 são da opinião de que o sistema de Valentino até mesmo envolve a negação da
realidade da matéria, uma vez que tudo emana de uma substância espiritual única. Isso significa que o
panteísmo valentiniano implica, pelo menos, tendências idealistas.
Por outro lado, os vestígios de platonismo na teoria do gnóstico alexandrino são tão numerosos quanto
evidentes, basta lembrar que os Éons valentinianos são apenas as Idéias de Platão hipostasiadas ou
personificadas; que as três vidas do homem, [1] hílica, [2] psíquica e [3] pneumática, correspondem às três
almas do filósofo ateniense, e que a teoria dele sobre a matéria, como origem do mal, como prisão da alma
superior, como impedimento do conhecimento, da ascensão às Idéias e da reversão [reditio] a Deus, está
em perfeito acordo com a teoria de Valentino sobre a origem do mal, sobre o Cristianismo, como religião
que eleva o espírito e o liberta das amarras da matéria, e sobre a redenção, que consiste no conhecimento
da grandeza inefável do Ser primitivo e divino.
A tétrada, a ogdoada, a década e a dodécada de Valentino, podem ser facilmente consideradas como
imitações e aplicações da numeração cabalística, tão em voga entre os judeus, e conforme apresentado nos
famosos códigos da cabala hebraica, o Sefer Yetzirah (ou Livro da criação) e o Zohar (ou Livro da luz);
mas é ainda maior e mais evidente a afinidade panteísta que existe entre a doutrina contida nesses livros e
a teoria de Valentino. O Deus do Zohar, que deve ser concebido como o ser oculto e concentrado em si
mesmo, como o ser indeterminado, sem forma e sem nome, é muito semelhante, para não dizer idêntico, ao
Abismo-Silêncio que serve como ponto de partida para a teogonia valentiniana. O Livro da luz também nos
diz que a transição de Deus, como ser indeterminado e abstrato, para a existência concreta se dá por meio
de uma série de evoluções lógicas, que manifestam e determinam a substância divina. Do infinito emanam,
por meio de emanações graduais, a Coroa, a Sabedoria, a Inteligência, a Misericórdia, a Justiça, etc. Não é
preciso dizer que essas evoluções, ou Sephiroth da Cabala, correspondem aos éons da gnose valentiniana,
e que os trinta éons desta, assim como os dez sephiroth daquela, não passam de nomes diferentes e
personificações dos atributos intelectuais e morais do Ser único, da substância divina, sendo de se observar
que, no citado Zohar, Deus é chamado de o Ser único, apesar das inúmeras formas em que se reveste. Para
que a afinidade seja completa, no mesmo livro é dito que tudo o que foi formado por Deus existe por meio
do masculino e do feminino, doutrina que, sem dúvida, serviu de ponto de partida e de norma para a
emanação por sizígias, de éons masculinos e femininos, que encontramos na concepção de Valentino.
O empenho e esforço que os antigos doutores cristãos, especialmente Santo Irineu e Tertuliano,
empregaram para refutar a doutrina de Valentino, indicam a importância e o desenvolvimento que adquiriu,
e revelam que seu gnosticismo encontrou eco entre os primeiros cristãos, o que também é demonstrado pelo
número e importância de seus discípulos e sucessores, entre os quais se destacam Heráclio, Secundus,
Marcos e alguns outros.
A julgar pelas indicações de Santo Irineu, os discípulos de Valentino não se distinguiram pela pureza de
seus costumes 251 e até costumavam usar certos embustes e fraudes para seduzir e atrair os incautos e
simplórios 252 . Chegaram mesmo a alterar as formas dos sacramentos em relação e harmonia com suas

250
Ferdinand Christian Baur (1792-1860), natural da Alemanha, é o fundador da chamada Escola de Teologia de Tubinga.
Aplicando a dialética hegeliana à teologia protestante, é o autor da teoria segundo a qual o Cristianismo Primitivo do século II
representaria a síntese entre um Cristianismo dito “Petrino” (judaico | tese) e um Cristianismo dito “Paulino” (gentílico | antítese).
Apesar de o ápice de sua influência ter sido a década de 1840, seus trabalhos tiveram profundo impacto na chamada alta crítica da
exegese bíblica – na qual se procurava estabelecer a origem e a composição do texto bíblico – e lançaram raízes mesmo no século
XX. [N.T.]
251
“Et quidam quidem Valentiniani clam eas mulieres, quae discunt ab eis doctrinam hanc, corrumpunt, quemadmodum multae
saepe ab iis suasae, post conversae mulieres confessae sunt.” Adversus Haeres., lib. I, cap. VI.
252
De acordo com o citado Santo Irineu, Marcos, um dos discípulos de Valentino, relatou que, para tornar-se sensível e demonstrar
206
teorias, sendo vistos batizando em nome do Pai incompreensível ou silencioso e da Verdade como mãe dos
demais eons inferiores: in nomine ignoti Patris universorum, in Veritate matre omnium.

§ 110. Gnosticismo dualista

Ao lado do gnosticismo panteísta, surge o gnosticismo dualista, representado principalmente por


Saturnino e Basílides, discípulos de Menandro, considerado o iniciador desse movimento dentro do
gnosticismo.
Já dissemos que todo o movimento gnóstico está concentrado na solução do dilema duplo fundamental
sobre a origem do mundo e do mal. Uma vez que a solução cristã é rejeitada e se não se adere à solução
panteísta, é necessário recorrer à solução dualista, e isso é o que Saturnino e Basílides fizeram. De acordo
com as indicações e fragmentos encontrados nas obras dos escritores ortodoxos dos primeiros séculos,
especialmente nas de Santo Irineu e Clemente de Alexandria:

a) Saturnino admitia dois reinos: o da Luz e o das Trevas. No topo do reino da Luz, e como primeira
origem dos seres que o compõem, está Deus supremo, oculto em si mesmo e incompreensível em sua
essência, do qual procedem os seres que constituem o mundo dos espíritos. Esse processo ocorre a partir
do mais perfeito para o menos perfeito, e o último grau corresponde aos sete anjos ou espíritos inferiores
encarregados de formar e organizar o mundo visível, que apenas recebe um fraco reflexo da luz divina que
abunda no mundo superior dos espíritos. Devido à sua relativa impotência e à oposição de Satanás, o
princípio do mal, os sete anjos responsáveis pela produção do mundo só conseguiram comunicar e fixar em
um certo número de homens a centelha divina proveniente do mundo superior; daí a existência original de
homens naturalmente bons e homens naturalmente maus. O príncipe das trevas e do mal, usando esses
homens naturalmente maus, adquiriu tal domínio sobre os homens bons que foi necessário que o Pai
celestial enviasse Cristo para salvar os bons e libertá-los da ação de Satanás. Esse Salvador ou Cristo,
pertencente ao mundo da Luz e dos espíritos, tem apenas a aparência e a figura do homem, mas não a
realidade da natureza humana, nem um verdadeiro corpo, e é superior ao Deus dos judeus, que não é o Deus
supremo e verdadeiro, mas o primeiro dos sete anjos que fabricaram e organizaram este mundo visível.
A matéria, por ser essencialmente oposta ao espírito, e especialmente ao princípio ou autor do mundo
dos espíritos e da Luz, é a origem, ou melhor, a essência do mal, cuja personificação é Satanás. Daí a
predominância do mal no mundo visível, onde a matéria abunda; e daí também a guerra e os esforços que
Satanás faz para destruir a pequena parte espiritual, o lampejo de luz que ele recebeu quando foi produzido
pelos sete anjos inferiores do mundo superior. Daí a eterna e permanente oposição entre Deus e Satanás,
entre matéria e espírito, entre os homens bons ou pneumáticos e os maus ou hílicos e carnais. De acordo
com essa doutrina, Saturnino e seus seguidores consideravam tudo o que envolvesse um contato estreito
com a matéria como mau; condenavam até mesmo o consumo de carne e afirmavam que o casamento é
uma instituição ilícita e satânica.

b) O sistema de Basílides é essencialmente dualista, assim como o de Saturnino, embora se diferencie


em alguns pontos mais ou menos importantes e em algumas de suas aplicações.
O gnóstico sírio se separa imediatamente de Saturnino, assim como de Valentino, pelo número de
emanações ou efeitos do Ser divino que compõem e constituem o mundo superior. Aos anjos de Saturnino
e aos trinta éons de Valentino, Basílides acrescenta seres e emanações até totalizar trezentos e sessenta e
cinco mundos intelectuais, todos anteriores e superiores ao mundo visível e material.

a eficácia das palavras da consagração, preparava o vinho de tal maneira que mudasse de cor após as palavras do consagrante:
“Pocula vino mixta fingens se consecrare, atque invocationis verba in longius protendes, efficit ut purpurea et rubicunda appareant,
existimeturque... sanguinem suum per ipsius invocationem in poculum illud stillare, gestiantque ii qui adsunt, ex ea potione gustare,
ut etiam in ipsos gratia ea, quae per hunc magnum praedicatur, influat.” Advers. Haeres., lib. I, cap. XIII. Esta passagem, que indica
o procedimento fraudulento do valentiniano, prova ao mesmo tempo que na época era já uma idéia comum e geral entre os fiéis a
conversão do vinho no Sangue de Jesus Cristo por meio das palavras da consagração.
207
Para Basílides, o reino da Luz e o reino das Trevas ou do mal são dois reinos igualmente eternos,
existentes por si próprios e independentes um do outro. Enquanto esses dois reinos funcionavam por si
próprios e dentro de seus próprios seres e limites, tudo ocorria em ordem. A desordem começou quando
certos seres do mundo tenebroso, ao perceberem a luz das inteligências do mundo celeste, conceberam o
desejo de se unir a elas. A esta união ou mistura primordial de princípios bons e maus, como esses gnósticos
a chamavam, deve-se a existência e organização do mundo visível, que é uma obra imediata dos anjos
inferiores ou que residem no último céu, sendo o primeiro ou principal deles o Deus dos judeus. Sua
impotência relativa, aliada aos esforços das potências ou espíritos maus do mundo tenebroso para se unirem
a eles, é a causa de que neste mundo o bem e o mal estejam misturados e confundidos por toda parte; de
que o mal siga o bem como a sombra segue a luz, e de que o princípio divino que entra na alma humana
esteja cercado e como oprimido pelos vícios e paixões, que são os espíritos provenientes do reino tenebroso.
Para separar novamente a luz das trevas; para libertar o espírito das amarras da matéria, restituindo-lhe
a existência espiritual que tinha antes de se unir ao corpo (metempsicose, preexistência platônica das
almas); para restabelecer, em uma palavra, a ordem primordial, o Pai celestial enviou ao mundo seu
primogênito, chamado Cristo. Ele desceu sobre Jesus quando Ele foi batizado no Jordão; mas Ele não foi
crucificado de fato, pois no ato da Paixão Ele foi substituído por Simão Cirineu de forma milagrosa, que
foi crucificado em lugar de Jesus. O conhecimento da verdade secreta e oculta que Cristo comunica a certos
homens escolhidos é o que constitui a gnose, a ciência superior do cristão, que o eleva acima dos outros
homens. Essa ciência ou iluminação o isenta da influência da matéria e das potências do mundo das trevas.
Nenhum movimento das paixões e da carne, nenhum pecado pode impedir sua salvação, ou seja, seu retorno
ao seio do Pai e Deus Supremo, princípio do mundo da luz.

Em Saturnino e Basílides, assim como em Valentino, podemos observar a influência das idéias
platônicas, que aparecem nesses sistemas hipostasiadas para explicar os atributos divinos e a origem do
mundo. A distinção entre o mundo superior e inteligível e o mundo inferior ou material, assim como a
metempsicose e a preexistência das almas, também são derivações e aplicações do platonismo.
Considerando-se esse ponto de vista, o gnosticismo dualista coincide com o panteísta, do qual se distingue
e separa, no entanto, devido à concepção dualista que o informa. As semelhanças e afinidades percebidas
entre os sistemas dualistas do gnosticismo e a doutrina do Zend-Avesta evidenciam a influência deste livro
e das tradições do parsismo na origem e no desenvolvimento do gnosticismo dualista. O que é o panteísmo
simbólico do Zohar e da Cabala judaica para o sistema de Valentino é o Zend-Avesta e a tradição mazdeísta
para os sistemas de Saturnino e Basílides.

§ 111. Gnosticismo antijudaico

Marcião, natural de Sínope, no Ponto, é o principal representante do gnosticismo que chamamos de


antijudaico, devido ao antagonismo absoluto que estabelece entre o Cristianismo e o judaísmo. O Deus do
Evangelho, longe de ser o mesmo Deus adorado pelos judeus, não apenas é diferente, mas antitético em seu
ser, seus atributos, suas obras e suas manifestações. O primeiro é o Deus supremo, o Ser inefável e
absolutamente puro, que exclui toda comunicação com a matéria, o Deus de paz, bondade e amor, enquanto
o segundo é um Deus inferior e imperfeito, organizador da matéria e do mundo. Não há nada em comum
entre a Lei mosaica e a Lei evangélica, entre o Antigo e o Novo Testamento. Jesus Cristo não é o Messias
anunciado por Moisés e pelos Profetas judeus; pois estes falaram apenas de um Messias humano e temporal,
que deveria dar-lhes o império do mundo. Nem Moisés, nem os Patriarcas, nem os Profetas do Antigo
Testamento conheceram o Deus supremo e verdadeiro, apenas o Demiurgo ou Deus inferior. Cristo é o
Deus supremo e verdadeiro, que apareceu repentinamente, ou seja, sem antecedentes ou preparação
mosaica, durante o reinado de Tibério, com a aparência e forma de um homem; mas sem um corpo real e
natureza humana, sem ter realmente nascido da Virgem; pois o Deus supremo não pode ter qualquer
comunicação com este mundo material, nem se submeter às leis de um mundo produzido pelo Demiurgo
ou Deus dos judeus.
208
A matéria é eterna e a origem do mal. A relativa impotência do Demiurgo, juntamente com a essencial
imperfeição e malícia inerentes à matéria, são uma dupla causa da grande imperfeição do mundo visível,
mas especialmente da imperfeição do homem, que se hoje pode agir bem e elevar-se em conhecimento e
verdade, entrando na ordem divina, é pela revelação e ação de Cristo; pois considerando-se o homem como
saído das mãos do Demiurgo, ele está sujeito ao domínio do mal e dos espíritos malignos, sem poder resistir
a eles: sua impotência nesse sentido é tal que ele não pode elevar-se ao conhecimento do Deus Supremo e
verdadeiro, nem sequer suspeitar de sua existência.
Como pode ser visto, o pensamento fundamental do gnosticismo de Marcião é a completa ruptura, a
antítese radical entre o Cristianismo e o judaísmo, e a concepção dualista serve como base filosófica para
chegar à antítese teológica. Como consequência lógica disso, a moral do gnóstico de Sínope é uma
derivação de sua concepção dualista, e por isso vemos que ele ensina que, para ser um verdadeiro discípulo
de Cristo, é necessário libertar-se dos laços da matéria e rejeitar qualquer comunicação com ela; que é ilícito
o consumo de carne, e que o casamento é uma instituição condenada por Deus e própria dos homens que
seguem as inspirações do Demiurgo e as condições de imperfeição e mal que pertencem ao mundo por ele
produzido.
É digno de nota que, enquanto Marcião, por um lado, exagerava de forma exclusivista a importância e
a elevação do Cristianismo, por outro, negava e destruía sua própria essência, negando a realidade da
Encarnação, da Paixão e da Redenção por parte do Filho de Deus, reduzindo-as a uma espécie de ilusão. E
é digno de nota também que essa idéia de reduzir a meras aparências (doutrina do docetismo) a vida e as
ações de Cristo é uma idéia geralmente adotada pela maioria das seitas gnósticas, embora se separem e
combatam em outros pontos. Isso prova que a Redenção do homem, ensinada pela fé católica, o grande
mistério de Cristo crucificado, foi e sempre será um escândalo para o judaísmo carnal, mistério de loucura
para a sabedoria pagã: judaeis quidem scandalum, gentibus autem stultitiam.

§ 112. Gnosticismo semipagão

Carpócrates, natural de Alexandria, e seu filho Epifânio, são os principais representantes desse
gnosticismo, que chamo de semipagão, pois se trata de um sistema composto, quase na totalidade, por
doutrinas pitagóricas e platônicas. Pode-se dizer que todo o cristianismo do sistema carpocratiano se reduzia
a considerar Cristo como um homem extraordinário em ciência e comunicação com Deus; como um mestre
que ensinou a vaidade da idolatria; como uma alma intimamente ligada à Mônada ou Deus supremo, do
qual recebeu iluminações especiais e o poder de fazer milagres. Costumavam também citar ou invocar
alguns textos do Evangelho para comprovar suas afirmações, ainda que fossem absurdas, como quando
pretendiam provar a metempsicose, citando o texto ou capítulo 5º do Evangelho de São Marcos.
Além desses fracos vestígios de cristianismo, a doutrina de Carpócrates não é mais do que a doutrina de
Platão, amalgamada e combinada em alguns pontos com as tradições de Pitágoras. Deus, ser primordial,
eterno e não criado, é uma unidade absoluta, é a Mônada da qual nascem, por emanações graduais e
descendentes, uma multidão de seres. As primeiras e mais nobres emanações constituem e representam os
seres que compõem o mundo superior, o mundo dos espíritos, o mundo inteligível; o mundo terrestre, que
serve de morada para os homens, é uma manifestação remota e imperfeita da Mônada divina; deve seu
surgimento imediato aos espíritos ou seres inferiores do mundo inteligível.
A alma racional pertence ao mundo superior e existia antes de sua união com o corpo, no qual se encontra
como prisioneira e exilada; mas conserva as aspirações próprias de sua natureza espiritual e divina. Por
virtude desse princípio divino e supramundano que neles habita, alguns homens, elevando-se acima das leis
ordinárias da natureza e das paixões humanas e estimulando e fortalecendo a reminiscência da felicidade
que desfrutavam em sua vida superior e anterior, alcançam a união gnóstica, a união íntima e intuitiva com
o Ser divino, com a Mônada primordial. Quando o homem atinge essa união absorvente e íntima com a
Divindade, na qual consistem a suprema felicidade e a gnose perfeita, a diferença de cultos e religiões, a
distinção entre o justo e o injusto, entre o vício e a virtude desaparecem para ele. Tudo é indiferente e lícito

209
ao gnóstico que alcançou esse estado (molinismo, iluminados); nem as paixões nem o pecado podem tê-lo
como parte ou manchá-lo.
As almas humanas estão sujeitas à transmigração, até que adquiram a gnose perfeita por meio da
absorção e da união íntima com Deus. Santo Irineu afirma que Carpócrates ensinava que, para se livrar da
transmigração, era necessário se entregar a toda espécie de ações más e experimentar todos os prazeres. Em
todo caso, é certo que a indiferença gnóstica dos carpocratianos leva logicamente à abolição de toda lei
moral e à prática de orgias horríveis, que a história atribui a esses sectários. Diz-se que nas reuniões
adoravam, ou melhor, reverenciavam as imagens de Pitágoras, Platão e Jesus, o que certamente está em
harmonia com sua doutrina cristológica.
Nos escritos antigos, encontramos testemunhos frequentes da influência exercida pelo gnosticismo pelas
idéias pitagóricas. Sobre o mencionado Valentino, talvez o gnóstico mais notável, Filostrato escreve que
ele tinha mais de pitagórico do que de cristão: Pythagoricus magis quam christianus.

§ 113. Gnosticismo e Idealismo Alemão

É muito provável que a epígrafe com a qual iniciamos este parágrafo faça surgir um sorriso nos lábios
dos admiradores da nova Filosofia alemã. Mas, arriscando escandalizar aqueles e outros que estão longe de
suspeitar que existem relações de afinidade e parentesco entre o gnosticismo dos primeiros séculos da Igreja
e certas especulações da Filosofia alemã, ousamos afirmar que essa afinidade existe e, mais ainda, que só
pode passar despercebida para aqueles que desconhecem esses dois movimentos do espírito humano.
Acabamos de ver que todas as cristologias gnósticas envolvem, sob uma forma ou outra, a negação de
Jesus Cristo como Deus e verdadeiro homem. O Cristo do Evangelho cristão é, para os gnósticos, ou uma
mera aparência, um fantasma, ou um homem dotado de virtudes e conhecimentos extraordinários recebidos
de Deus. É evidente que, em um caso ou outro, o Cristo do Catolicismo se torna um Cristo ideal ou mítico,
um ser que representa a encarnação, a expressão de um princípio de vida superior na humanidade que, até
então, estava submetida a uma vida material e inferior. Cristo não tem importância como ser histórico e
pessoal; toda a sua importância e a redenção atribuída a ele consiste em ter revelado ao mundo a idéia moral
em toda a sua pureza; em ter inspirado a consciência humana a idéia da perfeição ética, por meio da qual o
homem pode se elevar acima das condições da matéria e dos sentidos que antes o dominavam.
Será necessário chamar a atenção do leitor para as estreitas relações de semelhança e
nt

afinidade entre a cristologia do gnosticismo e a cristologia do pai e fundador do


Ka

transcendentalismo alemão? Pois é certo que, na teoria de Kant, o Cristo Salvador do


qual nos falam os Evangelistas não é o Verbo de Deus feito carne de fato, não é uma
Pessoa divina, não é verdadeiro Deus-homem: é um homem a quem Deus comunicou a
perfeição moral, teórica e prática, em seu grau mais elevado, e que, por isso, pode e deve
servir de exemplo para a regeneração e redenção da humanidade. Jesus de Nazaré é o
arquétipo do homem perfeito, superior e livre das condições da matéria e dos sentidos, que dominam o
homem na medida em que ele se afasta desse modelo ou ideal; porque se afastar desse modelo é se afastar
da idéia de moral realizada em Cristo, que, sob esse ponto de vista, ou seja, como representante da idéia
moral em toda a sua pureza, eleva,Sc redime e salva o homem.
he
Valentino lli
ng
Avancemos mais um passo no terreno da Filosofia alemã e logo
encontraremos Schelling reproduzindo os principais traços da
teogonia de Valentino. O Abismo-Silêncio do gnóstico alexandrino,
inativo em sua origem e, por séculos, oculto e como envolto (Deus
implicado de Schelling) em si mesmo, entra em ação e movimento;
manifesta e desenvolve seu ser por meio de emanações e evoluções sucessivas e
descendentes, parte das quais constituem o mundo visível ou a natureza, enquanto a
Sophia entra no homem como princípio divino, no qual se desenvolve, manifesta e
cresce até dominar e sobrepor-se à matéria, a fim de voltar ao Pleroma ou plenitude
do ser, por meio da gnose, da ciência perfeita e absoluta do ser, da grandeza inefável, como diziam os
210
valentinianos. O autor da Filosofia da natureza fala, por sua vez, de um ser primitivo, indeterminado e
vago, que ainda não é Deus, mas que contém todo o ser, toda a essência de Deus, do mundo e do homem.
Essa espécie de abismo caótico, esse fundo que contém todas as perfeições e todas as essências em seu
estado inicial, sem ser nenhuma delas determinadamente, começa a se mover, desperta de seu sono, agita-
se, se desenvolve e, por meio de evoluções determinadas, adquire o ser pessoal, a consciência de sua
divindade; depois, transforma-se em natureza (mundo visível dos valentinianos) e encarna na humanidade
(elemento pneumático) ou espírito. A época histórica que corresponde a essa terceira manifestação do ser
primitivo é representada pelo Cristianismo, no qual o bem adquire predominância sobre o mal.
Some-se a isso que a ciência absoluta de Schelling, o conhecimento e a consciência da identidade entre
o objeto e o sujeito, entre o espírito e a natureza em relação ao Absoluto, está em consonância com a ciência
perfeita e superior dos antigos gnósticos, coincide com a gnose que caracteriza os homens pneumáticos, os
He
“verdadeiros cristãos” do antigo gnosticismo. ge
l
Se passarmos de Schelling para Hegel, a afinidade e relações entre o
transcendentalismo alemão e o antigo gnosticismo aparecem igualmente claras e reais.
A Idéia hegeliana, o Ser abstrato e puro do filósofo de Stuttgart, seu Deus-
potencialidade, traz à
Gnosticismo, heresia de nossos dias
(“Catolicismo” Nº 53 - Maio de 1955)
mente espontaneamente o
Abismo-Silêncio, o Pai sem nome nem
Ao lado da heresia declarada, surgem também correntes
gnósticas de pensamento no próprio seio da Igreja, como a atributos dos antigos gnósticos, e o Ein sof (‫אין‬
liderada pelo Abade Joaquim de Fiore. Concebia ele a ‫ )סוף‬ou infinito inefável, sem nome e sem
História como sequência de três períodos. No primeiro forma do Zohar e da Cabala.
[hílico] reinou o Pai, que governou os homens pelo temor; o
segundo [psíquico] foi o reinado do Filho, que regeu o E, deixando de lado alguns outros pontos de
mundo pela sabedoria e pela disciplina; o terceiro período contato e afinidade, até focarmos na atenção
[pneumático] seria o da fraternidade das pessoas autônomas, nas três formas religiosas que, segundo Hegel,
ou reinado do Espírito Santo. Em virtude da descida do representam o movimento lógico da Idéia na
Paráclito, seriam os homens transformados em membros
desse novo reino sem a mediação sacramental da graça. A História, a saber: (a) a religião da natureza, na
Igreja deixaria de existir, já que os dons carismáticos qual o espírito se encontra como absorvido na
necessários para a vida perfeita seriam alcançados pelos matéria; (b) a religião da individualidade, na
homens sem necessidade de Sacramentos. Posto que
qual o espírito se separa da matéria e a natureza
Joaquim de Fiore concebesse esse terceiro período como o
reino dos monges pela expansão do espírito monástico, na se opõe a Deus; (c) a religião da razão absoluta
realidade, entretanto, a idéia de uma comunidade e da harmonia, na qual o espírito e a matéria,
espiritualmente perfeita ao ponto de dispensar a autoridade Deus e o homem, se unem na consciência de
institucional foi por ele lançada como um germe de toda a
sua identidade no homem e por meio do
revolta social e política que irrompeu no mundo a partir do
crepúsculo da Idade Média. Foi por inspiração do frade homem. As (a) religiões pagãs da Índia, da
italiano, ou do pensamento gnóstico que ele herdou e Pérsia, do Egito etc., representam a primeira
transmitiu às gerações futuras, que os humanistas e forma religiosa da humanidade; a (b) segunda
enciclopedistas dividiram a História em antiga, medieval e
moderna; que Comte lançou sua lei dos três estados, o é representada pelo politeísmo greco-romano;
teológico, o metafísico e o científico ou positivo; que a o (c) Cristianismo representa a terceira e última
dialética de Marx criou os três estágios, do comunismo forma religiosa. Com ligeiras variações, essa
primitivo, da sociedade dividida em classes, e do comunismo teoria é a teoria histórico-religiosa de
integral; e que o nazismo criou o símbolo do Terceiro Reich,
também de fundo quiliástico e gnóstico, por herança do Valentino, a quem vimos identificar e
panteísmo de Fichte, de Hegel, de Schelling. distinguir na História da humanidade o período
ou reinado do princípio [1] hílico, o período ou
reinadoParadoosprincípio
gnósticos,[2]talpsíquico
origem edo mundo explica
o período ou reinado a do princípio [3] pneumático. O [1] paganismo
diversidade dos espíritos humanos: distinguiam entre os
representa
Gnósticos ooureinado do primeiro;
Espirituais o [2] reinado
[pneumáticos], do princípio
eles mesmos, os psíquico se manifestou no judaísmo e por meio
doinstruídos,
judaísmo; a [3] religião de Cristo é a expressão,
em quem a matéria é dominada pelo Espírito de a manifestação correspondente ao reinado do princípio
Deus; os Cristãos
pneumático, Ordinários
ou seja, [psíquicos],
do princípio divinoem quem
que Matéria
entra na alma humana e reconhece a sua identidade com ele,
e Espírito estão mais ou menos equilibrados; e os Pagãos ou
voltando a Deus.
Materiais Hílicos; nos quais a matéria leva, decididamente, a
melhor sobre o Espírito. Aplicando os próprios sistemas à fé
crista, os Gnósticos costumavam fazer de Cristo um éon
enviado por Deus. Esse éon se apoderou do homem Jesus no
momento em que foi batizado no Jordão. Daí em diante211 teve
por missão levar os homens à verdadeira Gnose, que é o
Evangelho, para libertar os homens da matéria. Foi assim
que, graças a Ele, se operou a Redenção. Quando o
Evangelho tiver completado sua obra sobre a terra, todas as
§ 114. A escola neoplatônica

“Enquanto os médicos judeus e os gnósticos – escreve De Gerando 253 – recorriam à Filosofia para
comentar os dogmas religiosos, os filósofos provenientes da escola platônica recorriam às tradições
misteriosas da Ásia e do Egito para obter idéias e perspectivas que ajudassem a lançar nova luz sobre as
doutrinas da Academia; assim como os primeiros, subordinando todas as suas combinações ao interesse de
suas antigas tradições, apenas concediam uma parte secundária às especulações racionais, os segundos, por
sua vez, essencialmente ocupados nessas especulações, recorriam às tradições mitológicas apenas para
completar seu sistema filosófico. Isso significa que o que formava a idéia dominante para uns era apenas
uma idéia acessória para os outros. Os primeiros explicavam os livros sagrados de Zaratustra recorrendo a
Platão; os segundos explicavam Platão usando Orfeu e Zaratustra254. As perspectivas eram opostas, embora
as direções tendessem a se encontrar e se unir.”
Essas palavras de De Gerando expressam o que constitui o caráter peculiar do neoplatonismo em
comparação com as outras escolas desse período filosófico. Além desse caráter apontado aqui, o
neoplatonismo se destaca também das outras escolas contemporâneas pelo predomínio e importância que
o elemento platônico desempenha em relação às outras grandes escolas helênicas. É verdade que essa escola
se propôs e se esforçou para unir, conciliar e fundir a Academia, o Liceu, a tradição pitagórica e o Pórtico;
no entanto, não é menos verdade que o pensamento platônico é o que predomina nessa concepção sincrética,
na qual o discípulo de Sócrates ocupa um lugar importante e muito superior ao que o neoplatonismo
concedeu à escola italiana e ao estoicismo.
Vê-se, pelas nossas palavras, que a denominação de neoplatonismo aplicada a essa escola é racional e
fundamentada, e que a denominação de filósofos alexandrinos, Filosofia de Alexandria, é menos precisa e
fundamentada do que a de Filosofia neoplatônica, principalmente considerando que os principais
representantes desta ensinaram e abriram suas escolas em Roma e Atenas.
Na nossa opinião, o neoplatonismo, sem prejuízo do seu caráter fundamental geral, ou seja, seu
ecletismo filosófico e teosófico, implica três fases ou escolas: [1ª] a escola filosófica, representada por
Plotino e caracterizada pelo predomínio do elemento filosófico sobre o teosófico; [2ª] a escola mística,
representada por Jâmblico e caracterizada pelo predomínio do elemento místico sobre o filosófico; e
[3ª] a escola filosófico-teúrgica, na qual não se observa predominância especial por parte dos dois elementos
e que se distingue também pela tendência prática e pelo caráter teúrgico de seu misticismo. Essa fase do
neoplatonismo foi cultivada na escola de Atenas, e seu principal representante é Proclo.
A julgar pelo que nos diz Eusébio de Cesareia em sua Preparação para o Evangelho, o fundador da
escola neoplatônica de Alexandria, ou pelo menos seu precursor, foi Numênio (Νουμήνιος ὁ ἐξ
Ἀπαμείας), que se empenhava em conciliar e fundir a teoria platônica com a pitagórica, bem como
complementar ambas relacionando-as e harmonizando-as com as tradições religiosas da Índia e do Egito.
Segundo Eusébio, Numênio ensinava que o Deus Supremo, o Ser primordial, não pode entrar em
comunicação direta com o mundo visível, nem agir imediatamente sobre a matéria; a partir disso, ele
deduziu que o mundo foi produzido pela Inteligência (νοῦς), uma emanação direta do Ser primordial. Esse
Demiurgo, ou Divindade secundária, por sua vez produz uma terceira, que governa, dirige e harmoniza as
diferentes partes do universo, como se fosse a alma do universo (anima mundi), a qual, em união com a
Inteligência e o Deus supremo, forma uma tríade que veremos reproduzida posteriormente por Plotino em
termos muito semelhantes.
De acordo com os fragmentos preservados por Eusébio, a semelhança e a identidade doutrinária entre
Plotino e Numênio se estendem igualmente a outros pontos fundamentais da Filosofia. Assim, mesmo em
tempos antigos, e até quando Porfírio escrevia a vida de seu mestre, não faltaram aqueles que consideravam
a doutrina de Plotino como plágio da de Numênio.

253
Hist. comp. des Syst. de Phil., t. III, cap XXI.
254
Acreditamos que De Gerando se deixou levar aqui pelas exigências do pensamento antitético. Zoroastro significa pouco no
teosofismo neoplatônico: o elemento místico-religioso do neoplatonismo é representado principalmente pela mitologia greco-
romana, pelos mistérios do Egito, por Orfeu e Trismegisto.
212
No entanto, deixando para os críticos a tarefa de discutir um fato que, afinal de contas, tem pouca
importância para a História do neoplatonismo como escola filosófica, diremos que geralmente se considera
Amônio Sacas (Ἀμμώνιος Σακκᾶς) como o fundador do neoplatonismo ou, pelo menos, como seu
precursor. No meio dos infortúnios e contratempos de sua vida de trabalho, ele soube se dedicar às
especulações metafísicas e transmitir seu pensamento a outros homens, destacando-se entre seus discípulos
Herênio, Plotino e um Orígenes (talvez distinto, na opinião mais provável, do Orígenes cristão). Como o
iniciador do movimento socrático, o fundador do neoplatonismo não escreveu nenhum livro. Eusébio de
Cesareia afirma que Amônio abandonou o paganismo para se tornar cristão; Porfírio, por outro lado, afirma
que ele renegou o cristianismo para se tornar pagão, opinião que parece mais provável, considerando quem
foram seus principais discípulos, a doutrina que professaram, que Porfírio pode ter conhecido o fundador
do neoplatonismo e que ele desfrutou da intimidade de Plotino, discípulo imediato de Amônio255. Seja qual
for o caso, parece certo que os três principais discípulos de Amônio prometeram a ele guardar segredo sobre
sua doutrina, mas, quebrando esse sigilo, Herênio permitiu que seus companheiros também não cumprissem
seu compromisso.
Passando agora da origem puramente histórica do neoplatonismo à sua origem doutrinal,
acrescentaremos que, segundo o respeitável testemunho de Fócio, o pensamento gerador, a idéia-mãe que
deu origem à escola neoplatônica por parte de seu fundador, foi a conciliação256 entre a doutrina de Platão
e a de Aristóteles.

§ 115. Plotino

Plotino (Πλωτῖνος), o principal e mais genuíno representante do aspecto filosófico do neoplatonismo,


nasceu em Licópolis, nos primeiros anos do século III da Igreja. Depois de ouvir as lições de vários
filósofos, e por último as de Amônio Sacas em Alexandria, mudou-se para Roma, onde ensinou o
neoplatonismo até à sua morte em 270 d.C. Sua escola era frequentada por pessoas de todas as províncias
do Império e tornou-se um centro de resistência e conflito com a religião cristã, cujos mistérios, princípios
de igualdade entre todos os homens e universalidade doutrinária não se harmonizavam com
o orgulho e as tradições da Filosofia pagã. Porfírio, confidente e discípulo favorito de
Plotino, reuniu e organizou os escritos de seu mestre, distribuindo-os em seis Enéadas,
cada uma contendo nove livros ou tratados. Esses escritos chegaram até nós, o que nos
possibilita conhecer e julgar a filosofia de Plotino com mais acerto e segurança do que a
de outros filósofos antigos. Aqui está seu resumo:
(Uno)
a) Deus é algo incompreensível e inominável para nós: é tudo o que existe e não é nada
do que existe; contém em si toda a realidade, mas não é uma essência determinada; daqui se infere que o
nome menos impróprio que podemos atribuir-lhe é o de Uno. Ele é, portanto, a unidade absoluta, necessária,
imutável, infinita; mas não é a unidade numérica, é a unidade universal em sua perfeita simplicidade. Este
Uno abstrato e universalíssimo está acima de todas as coisas, acima de todas as ideias e perfeições que
podemos conceber: sendo, como é, o princípio e o ser de todas as coisas, não é nem bondade, nem liberdade,
nem pensamento, nem vontade, mas é superior a tudo isso, e até é superior ao ser. O Uno não é o ser, não
é a inteligência: é superior ao um e à outra; está acima de toda ação, de toda determinação, de todo

255
É possível que o Amônio ao qual Eusébio se refere seja outro Amônio, um filósofo peripatético e cristão que florescia naquela
época em Alexandria, de quem São Jerônimo diz ter escrito algumas obras sobre o Cristianismo, incluindo um livro sobre a
concordância entre Moisés e Jesus Cristo. As opiniões divergentes de Eusébio e Porfírio também poderiam ser conciliadas supondo
que Amônio pertencia a alguma das seitas gnósticas, idéia que está relacionada com o ensinamento esotérico atribuído a ele.
256
Eis as palavras textuais de autor tão diligente como autorizado: “Multi Platonici et Aristotelici, suos inter se praeceptores
aliquando contendere sustinuerunt, allato a singulis in medium quid cuique mediato videretur, et eo usque audaciae et contentionis
processerunt, ut et scripta praeceptorum suorum depravarent, quo magis viros inter se pugnantes exhiberent. Atque ea perturbatio
perduravit philosophicis exercitationibus illapsa, usque ad divinum Ammonium. Hic enim primus, aestu quodam raptus, ad
philosophiae veritatem, multorumque opiniones, qui magnum dedecus Philosophiae adferrent, contemnens, utramque sectam probe
calluit, et in concordiam adduxit, et a contentionibus liberam philosophiam tradidit omnibus suis auditoribus, et maxime doctissimis
aequalibus suis Plotino, et Origeni, et successoribus.” Biblioth. Cod. 251, pag. 1382.
213
conhecimento; não é nem movimento, nem quietude, nem alma, nem inteligência, nem mesmo coisa
individual ou determinada: neque illud, neque hoc dicere fas est257.
Em suma: o Deus de Plotino parece coincidir com o Absoluto de Schelling; é a unidade superior (super
haec omnia sit) a todas as coisas, incluindo a essência e a vida (non essentia, non vita); unidade que encerra
em si todas as essências, que carrega em si todas as formas específicas, sem ser nenhuma delas, sem ser
realidade concreta: é o Unum anterior e superior, no qual coexistem e se identificam os contrários: é a
realidade neutra e uniforme, ou melhor, informe, superior a toda determinação e forma: ipsum [Unum]
secundum se uniforme, imo vero informe, super omnem existens formam.
(Nous)
b) Do Unum absoluto emana a Inteligência (Nous) suprema, que constitui o segundo princípio das
coisas. Sua emanação do Uno ocorre sem ação propriamente dita e sem vontade deste; é uma emanação
espontânea e necessária, como a luz que emana do sol.
Os trechos em que Plotino fala desse segundo princípio são obscuros e até contraditórios, resultando daí
a grande diversidade de opiniões por parte de seus intérpretes e dos historiadores da Filosofia, quando se
trata de fixar sua origem e sua essência. Em nosso entendimento, a Inteligência suprema significa e
representa uma primeira evolução do Uno absoluto, por meio da qual este passa do estado inconsciente à
intelecção consciente de si mesmo como realidade absoluta e universal, e como princípio dos seres e do
mundo por meio das Idéias contidas, ou melhor, identificadas com a Inteligência suprema. Somente dessa
maneira, somente considerando a Inteligência nesse sentido, se pode compreender o que o filósofo
neoplatônico diz sobre ela, ou seja, que a Inteligência é ao mesmo tempo o objeto concebido, o sujeito que
concebe e a ação de conceber.
(anima mundi)
c) À procura da Inteligência, que, juntamente com a Unidade absoluta, constitui a díade primitiva, vem
a Alma do mundo, para constituir, em união com as duas anteriores, a famosa tríade de Plotino. “A Alma
do mundo – ele nos diz– é o terceiro princípio subordinado aos outros dois: essa alma é o pensamento, a
palavra, uma imagem da Inteligência, o exercício de sua atividade; pois a Inteligência não age apenas pelo
pensamento, no entanto, esse pensamento ainda é indeterminado, pois é infinito”. A explicação, como se
vê, deixa muito a desejar em termos de clareza; pois não é fácil conceber em que se distingue a Alma do
mundo da Inteligência, se aquela é o pensamento desta, especialmente depois de ter afirmado que na
Inteligência o sujeito cognoscente e a ação de conhecer são uma mesma coisa. Talvez Plotino tenha querido
significar que a Alma do mundo seja a causa eficiente imediata do mundo visível, o princípio organizador
inteligente do Universo inferior. Em outras palavras: para Plotino, toda atividade, toda força, toda vitalidade
pertence à ordem intelectual, é pensamento, e radicam na Alma do mundo e na Inteligência suprema,
emanações primordiais e indivisíveis do Uno, pois este permanece em toda sua integridade e pureza (semper
integrum restat atque illibatum), apesar dessa dupla emanação.
(matéria – privação do ser)
d) Em relação e harmonia com essa doutrina, Plotino ensina que a matéria da qual é composto o mundo
visível é privação do ser mais do que ser verdadeiro. Este mundo material carece de verdadeira realidade,
segundo o filósofo neoplatônico; pois a verdadeira realidade pertence ao mundo inteligível, ao mundo
divino das Idéias, as quais constituem as essências das coisas. O mundo inteligível, composto de gênios
inteligentes ou de espíritos, penetra, move e vivifica o mundo material, que é como uma imitação (illius
imitatio), um reflexo daquele. As Idéias, realizadas e como encarnadas nas coisas, por meio das formas que
produzem nelas, constituem sua essência íntima e são a origem e a razão suficiente de seu movimento e
vida. Portanto, a Idéia, o pensamento está em todos os seres; pulsa dentro de todas as coisas; comunica vida
e movimento a toda realidade: toda realidade é pensamento (Hegel), e toda essência real é racional. Todas

257
“Quidnam igitur est Unum, quamve naturam habet?... Non est intellectus, sed ante intellectum extat; intellectus enim est aliquid
entium, illud vero non aliquid, sed unoquoque superius. Neque est ens; nam ens velut formam ipsam entis habet, sed illud est
prorsus informe, ab intelligibili etiam forma secretum. Unius namque natura, cum sit genitrix omnium, merito nullum existit illorum.
Igitur neque quid existit, nec quale, nec quantum. Praeterea, non est intellectus, non anima, non movetur, non quiescit.” Plotini op.
Marsilio Fic. interp., Enneada 6.ª, lib. IX, cap. III.
Em outra parte acrescenta ou afirma que o Unum “est tale, ut de ipso nihil praedicari queat, non ens, non essentia, non vita, propterea
quod super haec omnia, sit.” Ibid., Enne. 3.ª, lib. VIII, cap. IX.
214
as Idéias, que são imanentes na Inteligência, se imprime e são participadas pelos seres que constituem o
mundo visível, por meio da ação produtora e plástica da Alma do mundo.
A matéria, que faz parte dos corpos, é o que mais se afasta do Ser ou do Unum, a participação mais
imperfeita das Idéias, o último reflexo da ação plástica da Alma do mundo; sua extensão e solidez a afastam
e separam da matéria ideal, da qual se distingue especificamente, e com a qual tem apenas certa analogia
remota. Considerada em si mesma, carece de realidade e tem muito de não-ser: toda realidade e ser que
nela se manifestam, procedem das formas, as quais, por sua vez, são derivações das Idéias. Daí é que o
mundo ideal e o mundo sensível formam diferentes categorias, e mal podem ser comparados além de uma
semelhança análoga, e não de uma semelhança específica. E isto é tão verdade que até mesmo as próprias
formas do mundo corpóreo, embora sejam participações diretas e como derivações imediatas das formas
(as Idéias) do mundo inteligível, são como uma realidade imaginária (forma haec imaginaria est), como
uma essência ilusória em comparação com as formas e essências do mundo inteligível, que são as
verdadeiras: Illic autem (no mundo inteligível), et forma vera est, et subjectum consequenter essentia vera.
No entanto, essa distância que separa o mundo sensível do mundo inteligível, embora seja muito grande
e imensa em certo sentido, não impede que haja entre os dois analogias e semelhanças determinadas, sendo
uma delas a que se refere à matéria. Pois no mundo inteligível é preciso admitir uma matéria que seja como
o substrato universal, que faça as vezes de sujeito geral e uno com respeito à multiplicidade de formas, as
quais representam as diferenças essenciais258 e a distinção de espécies no mundo inteligível. Por outro lado,
acrescenta Plotino, se nosso mundo sensível é composto de matéria, também deve existir essa matéria no
mundo inteligível, uma vez que o primeiro é uma imitação do segundo: Si intelligibilis illic mundus existit,
hic vero noster illius est imitatio, atque componitur ex materia, illic quoque oportet esse materiam.
A matéria do mundo inteligível é distinta da do mundo sensível. Esta passa sucessivamente de uma
forma para outra, transformando-se em toda espécie de coisas, por meio das novas gerações e corrupções,
de modo que está sujeita a mudanças contínuas, enquanto a matéria do mundo inteligível ou superior é por
si mesma permanente no ser do qual faz parte, sem experimentar mutações ou mudanças de forma: Portanto
(no mundo sensível e inferior), nada é sempre o mesmo: Idcirco (in mundo sensibili et inferiori), nihil
semper est idem: in superiori autem, materia simul est cuncta; cumque jam cuncta possideat, non habet
omnino in quod valeat permutari.
(alma humana)
e) A alma humana, emanação imediata da Alma do mundo, é anterior e posterior ao corpo em seu ser e
em suas operações. Essa preexistência da alma em relação ao corpo implica em sua independência e
superioridade em seu ser e em suas funções, independência que abrange não apenas as funções da parte
superior e intelectual, mas também da parte inferior; de modo que a alma é completamente ativa e
independente do corpo e de seus órgãos na sensação, assim como na inteleção. Assim, a memória não
consiste apenas na conservação ou no vestígio das impressões recebidas, mas sim no desenvolvimento da
energia da alma e de seu relacionamento com os espíritos, com os quais teve comunicação antes de se unir
ao corpo (anima ex incorporeo in corpus quodlibet labitur); mas uma vez unida ao corpo, não apenas ao
humano, mas também aos astros, ela adquire os sentidos. Daí que, segundo Plotino, as almas do sol e dos
demais astros não apenas veem e ouvem (solem autem, stellasque alias videre atque audire), mas também
possuem memória e conhecimento, e até mesmo ouvem e atendem aos nossos votos: alioquim nisi sint
memores, quomodo benefacient? Cognoscunt et vota nostra.
(mundo animado – deusa mãe)
f) O Universo produzido, informado e eternamente vivificado pela Alma do mundo (nullum unquam fuit
tempus in quo non animaretur hoc universum), contém, além das almas humanas, as dos animais e as dos
astros, uma alma especial ou própria da terra, a qual não apenas sente (cuer non et terram sentire dicamus?),
mas também é inteligente e é uma espécie de deusa: Neque absurdum, nec impossibile putandum esta

258
“Profecto, si plures ibi sunt species, commune quiddam in ipsis esse necessarium est, rursusque proprium, quo aliud ab alio
distinguatur. Hoc utique proprium, atque haec separans differentia, forma certe est propria. Quod si illic est forma, est insuper et
formatum, circa quod differentia est. Subest itaque materia, quae illam accipiat formam.” Ennead. 2ª, lib. IV, cap. IV.
215
animam terrae videre. Meminisse vero oportet, hanc ipsam non esse vilis cujusdam corporis animam,
ideoque intelligere, esseque deam.
Corolário legítimo dessa doutrina é aquela professada geralmente pelos neoplatônicos em relação à
vivificação do mundo, que eles consideravam como um animal imenso259, composto de diferentes partes ou
membros, formando uma espécie de organismo cósmico.
A queda da alma, ou seja, sua incorporação, produz e determina nela o esquecimento relativo de sua
origem divina, na medida em que procede da Inteligência e da Alma do mundo que lhe deram o ser, e
também produz a obliteração das Idéias. No entanto, ela sempre mantém uma certa aspiração e movimento
em direção ao mundo superior das Idéias, em direção ao Pai celestial de quem emana, e enquanto algumas,
atraídas e dominadas pelos prazeres e apetites, se tornam seres carnais, outras, lutando contra esses apetites,
podem gradualmente se elevar ao mundo superior do qual caíram, retomando mais ou menos perfeitamente
às condições de ser e de vida que antes desfrutavam e possuíam antes da incorporação. As purificações, as
orações, a mortificação, a abstração das coisas sensíveis, a prática da virtude260, constituem o caminho para
alcançar isso. A perfeição da alma e sua felicidade suprema consistem na união extática com o Uno, por
meio de uma intuição intelectual, simplificadora e unificadora, que representa um conhecimento superior
ao sensível, superior ao intelectual ou racional, superior ao próprio conhecimento das Idéias. Somente após
a separação do corpo, a alma pode alcançar essa intuição de forma permanente. No entanto, durante a
presente vida, ela é concedida por breves instantes e muito raramente a certas almas privilegiadas, quando
elas alcançaram o último grau de purificação moral, de abstração do mundo material e de elevação
intelectual.
(imortalidade da alma)
g) Com uma grande variedade de razões, algumas delas bastante notáveis, Plotino prova e procura
demonstrar a imortalidade da alma humana, que, pelo simples fato de ser inteligente, não pode ser corpo
(si ergo intelligire est absque corpore comprehendere, multo prius oportet ipsum quod intellectorum est,
non esse corpus), nem possui as qualidades dos corpos, como figura, cor ou extensão. Assim, nossa alma
não pode perecer, pois, longe de ser corpo, sua essência é simples e exclui toda composição, de modo que
não pode deixar de ser, nem pela divisão, nem pela alteração: Anima vero unus est et simples actus et natura
in vivendo consistens... si ergo nullo ex his modis corrumpi potest, incorruptibilem esse necessarium est.
A imortalidade da alma humana é como uma consequência natural de seu parentesco com a divindade
(animam vero cognatam esse divinioris sempiternaeque naturae) ou essência eterna, da qual é como uma
emanação. Esse parentesco divino e a consequente imortalidade da alma são provados, entre outras razões,
porque é capaz da verdadeira sabedoria e da verdadeira virtude, que são coisas certamente divinas, uma vez
que o homem, ou melhor, a alma habita no mundo inteligível como em seu próprio lugar, conhece
intuitivamente a verdade eterna, e encontra em si mesma a temperança e a justiça, ou seja, produz em si
mesma a ciência e a virtude por meio da abstração das coisas sensíveis e por meio da intuição das idéias
divinas que traz em si261, eternas em sua duração, assim como divinas em sua origem, e constitutivas da
vida da alma inteligente.

259
“Mundus est unum animal, in quo partes, quamvis loco distantes, tamen propter naturam unam invicem ad se feruntur.” De
mysteriis Aegypt., pag. 108, edic. 1552.
260
Eis uma das passagens em que Plotino fala dos meios que conduzem à união e posse de Deus: “Pervenimos autem ad ipsum
purgationibus, precibus, cultu animum exornante, ascensu ad intelligibilem mundum, ibidem perseverantia, dum videlicet, illius
mundi dapibus animus vescitur... factusque essentia, et intellectus, et animal universum, non ulterius ipsum (Deum) extrinsecus
aspicit... ubi certe dimissis omnibus disciplinis, animus hucusque perductus et collocatus in pulchro, usque ad illud, in quo est,
intelligit hactenus: eductus autem inde quasi unda quadam intellectus ejusdem, altiusque ab ipso velut tumescente et exudante
sublatus, nesciens quo modo, subito perspicit. Sed ipse intuitus oculos lumine complens, non efficit quidem ut per illud interim
aliud videatur; imo lumen, ipsum idem est penitus quod videtur; non enim est in illo hoc quidem visibile, hoc autem ejus lumen,
neque intellectus et intellectum.” Plot. op., Enn. 6ª, lib. VII, cap. XXXVI.
261
“Sapientia enim veraque virtus cum divinae res sint, non possunt alicui unquam vili mortalique inesse naturae, sed necesse est
tale quiddam esse divinum, quippe cum compos sit divinorum ob cognationem quamdam communionemque substantiae... ille ipse
qui aufert (vitia et sensibilia), seipsum intueatur, seque immortalem esse facile credet, quando, scilicet, seipsum in mundo
intelligibili puroque loco perspexerit habitantem. Cernet enim intellectum videntem, non sensibile quidquam, neque ex his
mortalibus aliquid, sed vi sempiterna sempiternum rite considerantem, et omnia in mundo intelligibili, seque ipsum intelligibilem
lucidunque effectum, veritate, videlicet, illustratum, quae quidem ab ipso bono corusca. Si ergo purificatio ipsa efficit, ut animus
optima quaeque cognoscat, nimirum scientiae latentes intus effulgent, quae et revera scientiae sunt. Anima etiam non extra currens
temperantiam perspicit et justitiam, sed penes seipsam in sui ipsius animadversione, ejusque quod prius erat agnitione, velut divinas
216
Vale ressaltar que Plotino dedica alguns capítulos para examinar se a alma racional é uma só e a mesma
em todos os homens, ou se, pelo contrário, existe uma em cada indivíduo, discussão que revela que a famosa
teoria averroísta sobre esse ponto já deveria ser conhecida no tempo do líder do neoplatonismo. Em todo
caso, Plotino rejeita essa teoria como absurda (absurdum namque est unam esse animam meam et animam
cujusque) e contrária à própria experiência, uma vez que a unidade da alma nos indivíduos acarretaria a
unidade e identidade dos fenômenos ou manifestações de vida em suas diferentes ordens: Si una esset,
oporteret utique, me sentiente, alium quoque sentire, ac me bene vivente, alium bene vivere (“Se fosse uma,
então, necessariamente, sentiria outro o que eu sinto, assim como vivendo eu bem, outro também viveria
bem”).
Aquela que é verdadeiramente e propriamente una, acrescenta Plotino, é a alma do mundo. Em sua
qualidade de emanação de certa forma direta e imediata do Uno, é em si mesma divina e comunica
divindade ao universo mundo e a suas partes principais, como o sol e as estrelas: Propter ipsam hic mundus
est Deus; sol quoque Deus est, quoniam animatus, stellaeque similiter omnes.
A teoria antropológica de Plotino e do neoplatonismo em geral coincide com a de Platão. O corpo não
passa de um instrumento em relação à alma (corpus enim non pars hominis, seu instrumentum), e esta é
tudo no homem e constitui sua verdadeira essência.
A julgar pelo que Jâmblico insinua e afirma, Plotino e seus discípulos admitiam no homem duas almas:
uma superior e celeste, que tem sua origem na Inteligência e na Alma do mundo, princípios ou agentes
divinos e imediatos desta, e outra inferior, que procede dos astros (duas homo habet animas; una quidem
est ab intelligibili primo, atque ipsius opificis potentiae particeps; altera vero ex circuitu coelestium nobis
indita) e de seus movimentos. Embora esta última não tenha livre arbítrio e esteja sujeita às influências e
movimentos dos astros, dos quais traz sua origem e natureza, o mesmo não ocorre com a primeira, que, por
ser de natureza superior aos astros, é independente de seus movimentos e de toda influência fatalista262,
proveniente da natureza material; porque essa alma tem em si mesma o princípio da ação: habet enim anima
principium in se proprium.
Nessa união deiforme e extática, pela qual Deus e a alma se identificam (duoque ibi unum sunt), e na
qual esta é arrebatada e como absorvida pela força ou golpe intuitivo (jactu quodam intuendi), ela se
esquece do corpo, perde a consciência de sua união com este e até mesmo de sua própria existência: Jam
vero, animus ita defixus in Deum, corpus suum non sentit ulterius, neque se esse animadvertit in corpore,
neque seipsum aliud quiddam esse pronuntiat, non hominem, non animal, non ens, non universum.
É sabido que, segundo Porfírio, seu mestre desfrutou por quatro vezes durante sua vida dessa união
intuitiva e extática com o Uno, assim como é sabido que a união mística, com suas diferentes manifestações,
ocupou grandemente a atenção do neoplatonismo263.

§ 116. Crítica

Já se disse que a doutrina de Plotino é a teoria da unidade absoluta e das relações múltiplas, por meio
das quais a variedade provém dessa unidade absoluta e primordial. O que não admite dúvida é que o que
constitui o fundo da teoria plotiniana, é um panteísmo ao mesmo tempo emanacionista e ideal. Todos os

imagines in se sitas jam intuetur.” Ennead. IV, lib. VII, cap.X.


262
“Respondet Jamblicus: Anima igitur a mundis (coelestibus) in nos descendens, mundorum quoque circuitus sequitur. Quae vero
ab intelligibili veniens intelligibiliter adest, geneficum circuitum supereminet, atque per eam et a fato solvimur, et ad intelligibiles
Deos ascendimus.” De myst. Aegypt., pag. 159.
263
Nada mais curioso, de fato, que as descrições que desta união se encontram nos escritos dos discípulos e sucessores de Plotino.
No livro De Mysteriis Aegyptiorum, e em um de seus capítulos que tem por epígrafe: Inspiratus vacat ab actione propria ac Deum
habet pro anima, descrevem-se largamente a natureza, características e efeitos de tal fenômeno. Eis algumas de suas sentenças:
“Maximum vero afflationis divinae aignum est, quod ille qui numen deducit insinuatque, prospicit spiritum descendentem, atque
ab eo mystice docetur ac regitur... adeo ut nec ullam queat actionem peragere propriam... Est igitur afflatio nihil aliud quam totos
a Deo animuos occupari atque contineri. Hinc vero posterius sequitur extasis, id est, exitus vel alienatio quaedam... Ex quibus
colligitur duobus modis ad Deum hominem praeparari; uno, per purgatoriam aquam... altero per sobrietatem, solitudinem,
separationem mentis a corpore, intentionemque ad Deum... In uno simul comprehendit omnium veritatem, propter essentiam ejus
separatam prorsus et omnia superantem.”
217
seres, desde a Inteligência suprema, até a matéria do mundo visível, são ou reflexos inteligíveis e superiores
ou derivações plásticas e imanentes do Unum, que envolve a realidade universal, a identidade substancial
de todas as coisas. A variedade e a multiplicidade são mais aparentes do que reais; representam e expressam
apenas fases e evoluções variadas da Unidade primordial, do ser absoluto. Em suma: o Universo, com todos
os seus seres, emana e procede do Uno, da maneira que a luz vem do sol (tanquam lumen a sole); o finito
é uma expansão, em parte inteligível, em parte sensível e plástica do Infinito.
Em conformidade com esta doutrina, vimos Plotino disseminar por todos os seres o princípio divino
representado pela Alma do mundo, cujas efusões ou emanações informam, vivificam e até divinizam os
astros, os céus, a própria terra; ao passo que vemos seus discípulos, e entre eles Proclo, declarar
explicitamente que o princípio divino está em todas as coisas (divinorum omnia plena sunt), e que a
processão se dá numa descida gradual a partir do Unum primordial e infinito: Quae enim ordine supermrum
regun collitur in Uno, haec deinceps dilatantur in descendendo.
Depois do que dissemos ao falar sobre as principais características das escolas filosóficas deste período,
parece desnecessário chamar a atenção para o caráter teosófico da de Plotino, por mais que nos tenhamos
limitado a indicar brevemente suas idéias sobre este ponto. A verdade é que a concepção plotiniana entranha
características essencialmente teosóficas em quase todas as suas partes. Teosófica é a sua cosmogonia,
teosófica é a sua teoria do conhecimento, na qual nos apresenta a alma conhecendo Deus por meio de um
contato essencial (contactus quidam essentialis et simplex), e por meio de uma simples intuição 264 , e
teosófica é até a sua teoria ético-religiosa.
Além de muitas passagens alusivas à conciliação da Filosofia grega com a mitologia helênica e com as
tradições religiosas do Oriente, o neoplatônico egípcio aponta como fim e termo da ciência e do homem a
união íntima com a Divindade: e as purificações, a comunicação com os gênios superiores, a oração, o
êxtase, a contemplação, a solidão e todo o tipo de operações teúrgicas constituem o fundo e a trama principal
de sua psicologia, de sua moral e até de sua metafísica.
Na tríade de Plotino descobre-se visivelmente a influência das idéias cristãs que flutuavam na atmosfera,
e que tinham penetrado por todo o lado no mundo intelectual. A tríade de Platão encontra-se
mais cristianizada – se é possível o dizer – em Plotino; mas sem passar de ser um remedo e imitação, e nada
mais do que uma imitação, da Trindade cristã. A consubstanciabilidade e a igualdade hipostática,
características fundamentais da Trindade do Cristianismo, são incompatíveis com a “trindade” plotiniana,
na qual a Inteligência e a Alma pertencem a uma ordem relativamente inferior ao Unum, que contém e
constitui a verdadeira essência de Deus. Ao mesmo tempo – e enquanto se afirma que a realidade total e
íntegra da essência divina está no Unum –, se supõe que, como tal, e pro priori a toda emanação ou
evolução, o Uno careça de inteligência; hipótese absolutamente incompatível com a Trindade cristã, na qual
a inteligência é atributo idêntico e igualmente atual no Pai (o Unum de Plotino) e no Filho
(a Inteligência plotiniana), sem que haja momento em que o Pai, nem mesmo a essência divina, possa ser
concebida sem a Inteligência. O neoplatonismo, ao afirmar que a Unidade é superior e anterior à
Inteligência e à força produtora do mundo, coloca-se a uma distância imensa da concepção trinitária do
cristianismo, e até se põe em disputa com a simples razão natural, que rejeita e rejeitará sempre a hipótese
de uma Unidade primitiva e absoluta, ou seja, de um Deus ininteligente e impotente. Parece desnecessário
acrescentar que a força plástica e produtora por emanação que se atribui à Alma do mundo, dista também
muito da força criadora ex nihilo que a concepção cristã reconhece no Espírito Santo e em cada uma das
três pessoas divinas. Assim se explica que Jules Simon, apesar de ser racionalista e, como tal, pouco
favorável ao princípio católico, reconhece e confessa que entre as três pessoas da Trindade cristã e as três
hipóstases da trindade de Plotino, não há identidade, e sequer verdadeira e própria analogia265.

264
Esta parte da teoria de Plotino foi adotada com entusiasmo e fidelidade por seus discípulos e sucessores na escola neoplatônica.
Jâmblico, ou quem quer que seja o autor do tratado De mysteriis Aegyptiorum, escreve, entre outras coisas: “Cognitio divinorum
fuit semper in anima per simplicem intuitum vel contactum.”
265
“Il n'y a donc pas identité, il n'y a pas même analogie, entre les trois personnes de la Trinité chrétienne et les trois hypostases de
Plotin.” Histoire de l'école d'Alexand., lib. II, cap. IV
218
Em confirmação de sua tese, o autor da História da Escola de Alexandria observa com razão que
existem diferenças radicais e profundas entre a concepção católica e a concepção plotiniana, em ordem às
pessoas divinas e suas relações:
Cada uma das hipóstases do Deus de Plotino difere radicalmente das pessoas divinas correspondentes
no dogma cristão, e a oposição não é menor quando se consideram, não as pessoas em si mesmas, mas
as diversas relações. Assim, vemos que na doutrina cristã, o Pai, o Filho e o Espírito Santo se conhecem
e se amam mutuamente. O Pai ama o Filho e é amado por Este; o Espírito Santo conhece o Pai e o Filho,
possuindo de um e do outro um conhecimento igualmente completo, igualmente direto. Pelo contrário,
segundo Plotino, cada hipóstase conhece e ama exclusivamente a hipóstase que a precede,
permanecendo estranha às hipóstases inferiores. A Unidade, que nada tem sobre si ou superior a ela,
nada conhece nem ama, e Plotino mal se atreve a indicar que se ama e conhece a si mesma. Na sua
‘trindade’, o objeto do conhecimento e do amor da terceira hipóstase, é a segunda hipóstase com
exclusão da primeira. A alma, para Plotino, emana da inteligência, como esta emana da unidade: o
Espírito Santo, na teoria cristã, não procede apenas do Filho, mas procede ao mesmo tempo do Pai e do
Filho. Mas o que constitui uma diferença radical entre as duas doutrinas, o que exclui toda idéia de uma
origem comum, é que o Deus de Plotino encerra três hipóstases desiguais, e que, portanto, não
constituem um Deus perfeito.

Adicione a isto que enquanto a primeira pessoa da Trindade cristã não é apenas um ser real, concreto e
individual, mas se define pela noção de ser – Ego sum qui sum –, a primeira hipóstase da “trindade”
plotiniana é uma espécie de realidade indeterminada e indiferente (illud est prorsus informe), uma espécie
de deus-nada hegeliano, que não é um ser, que exclui a determinação e realidade do ser: non ens, non
essentia, propterea quod super haec omnia sit.
Na Trindade cristã, se se excetua a paternidade e a filiação, há perfeita igualdade, há perfeita identidade
em tudo, de modo que os predicados ou razões e conceitos de ser, de substância, de entendimento, de
vontade, de vida etc. correspondem tanto ao Pai quanto ao Filho; são perfeições que se encontram
atualmente tanto no primeiro quanto no segundo. Na “trindade” ou tríade plotiniana, estes atributos ou
conceitos, estas perfeições, só se adequam atualmente ao intellectus que corresponde ao Filho da Trindade
cristã; mas não ao Pai, ou seja, ao Unum, ao qual só se adequam de uma forma implícita e como em
potencial (potestate), sem que se possa dizer que é atualmente substância, inteligência, vida etc., como se
diz do Pai na Trindade católica.
Adicione a isto que na concepção de Plotino, a tríade é formada por emanação, e, o que é mais, por
emanação descendente. O próprio intellectus, que tão importante papel desempenha nessa tríade, de tal
forma procede ou emana (ex Uno manat), que vem a ser por necessidade uma coisa inferior e mais pobre
que o Unum, do qual procede: Si ergo non idem [cum Uno], et certe non melius... ergo deterius illo; id
autem est indigentius.
Se estas indicações e provas – que aliás não são as únicas que poderiam ser alegadas na matéria –,
bastam para demonstrar que pouco ou nada há realmente em comum entre a concepção “trinitária” de
Plotino e a concepção trinitária do catolicismo, corroboram e confirmam ao mesmo tempo o que em
parágrafos anteriores indicamos em ordem às concepções trinitárias de Platão e de Fílon, uma vez que não
se pode pôr em dúvida que estas concepções estão muito mais longe da Trindade cristã do que a teoria de
Plotino. Os homens versados nestas matérias sabem muito bem que a concepção trinitária do filósofo
neoplatônico é a mais profunda entre as concepções trinitárias dos filósofos, e a que mais se aproxima,
portanto, da doutrina católica sobre este ponto.
Mas voltando ao nosso filósofo, e continuando a crítica geral de sua filosofia, seja lícito observar que,
depois do que foi dito ao expor sua doutrina, parece desculpado chamar a atenção para seu caráter eclético
e fusionista. O elemento platônico, que é o dominante, é transformado e modificado por idéias tiradas das
religiões orientais, da mitologia helênica, da Filosofia de Aristóteles, da dos estóicos, e mais ainda, das
tradições pitagóricas. Porfírio, o discípulo predileto e imediato de Plotino, diz-nos terminantemente na Vida
de seu mestre que Platão e Pitágoras eram seus filósofos favoritos. Prova fiável dos seus passatempos
pitagóricos encontramos certamente na sua teoria ético-psicológica, nas suas idéias sobre a transmigração
219
e encarnações sucessivas da alma em relação às suas obras, e até na sua concepção do Unum, que apresenta
notável afinidade com a Mônada dos pitagóricos.
Se a Filosofia de Plotino é idealista por parte do seu conteúdo, não é menos por parte do método. Os
sentidos, a observação, a experiência, significam pouco ou nada para o autor das Enneadas, que marcha
sempre pelos picos da especulação metafísica e a priori. Assim, Plotino é um dos representantes mais
rígidos do princípio idealista na Filosofia, e revela tendências apriorísticas e utópicas até nas matérias e
questões que de sua natureza são mais experimentais e dependentes da observação, como acontece com as
políticas e sociais.
Basta lembrar, em corroboração disso, o que Porfírio nos refere na Vida de seu mestre; a saber: que
pediu autorização ao imperador Galieno para fundar na Campânia uma cidade organizada e regida segundo
as leis da república de Platão, que, por isso, levaria o nome de Platonópolis.
Segundo teremos a ocasião de notar no decurso desta História da Filosofia, a doutrina da escola
neoplatônica, cujo principal representante é Plotino, exerceu bastante influência na Filosofia escolástica,
como a exerceu também na dos árabes e na de alguns judeus. Concentrando-nos em Plotino, não é possível
desconhecer as relações de afinidade e filiação que mediam entre sua doutrina sobre a existência de uma
matéria pertencente ao mundo superior e inteligível, além da que pertence ao mundo visível e corpóreo, e
a teoria exposta e desenvolvida por Ibn-Gabirol (o Avicebrão dos escolásticos) em seu famoso livro Fons
vitae, citado com frequência e contestado mais de uma vez por Santo Alberto Magno e Santo Tomás. Porque
o fundo e como que a essência do livro de Gabirol, consiste precisamente na concepção da universalidade
da matéria [hilemorfismo universal] como parte essencial de todas as coisas, sejam substâncias corpóreas,
sejam substâncias espirituais ou seres pertencentes ao mundo das inteligências. Embora modificando-a no
sentido cristão, Escoto e Raimundo Lúlio adotaram em parte esta concepção plotiniana da matéria, renovada
e desenvolvida no século XI por Avicebrão.

§ 117. Porfírio

Embora, como já indicado, a escola de Plotino em Roma fosse muito frequentada, e até honrada pelo
imperador Galieno e sua esposa Salonina, chegou-nos apenas o nome de Amélio e de alguns outros, e é
muito possível que aquela escola e a memória de seu fundador tivessem permanecido na obscuridade, não
fosse a existência de Porfírio (Πορφύριος), o discípulo mais notável. Nasceu em Batânia, na Síria, segundo
a opinião mais generalizada, ou, segundo outros, em Tiro, por volta dos anos 232 ou 233 d.C. Longino, que
foi seu primeiro mestre, lhe deu o nome de Porfírio, pois seu nome original era Malco. Por volta dos trinta
anos de idade, foi para Roma, onde se tornou discípulo de Plotino, chegando a ser seu amigo e confidente.
Após a morte de seu mestre, cuja vida escreveu e cujos escritos compilou nas Enéadas, parece que viveu a
maior parte do tempo na Sicília, onde faleceu no início do século IV.
Entre os escritos filosóficos de Porfírio, incluem-se seus Comentários sobre o Timeu de Platão e sua
Introdução às categorias de Aristóteles, onde ele levanta e discute a grande questão dos universais, que
tanto ocupou, ao longo do tempo, filósofos e teólogos; um tratado sobre a abstinência de carne de animais;
e uma carta a Anébon, sacerdote egípcio, na qual trata especialmente sobre as almas, a demonologia e a
teurgia. É sabido também que Porfírio escreveu contra os cristãos, especialmente contra a divindade de
Jesus Cristo, uma obra em quinze livros, que não chegou até nós, assim como as refutações dessa obra feitas
por São Metódio e Eusébio de Cesareia, juntamente com outros Padres e escritores cristãos.
O mérito de Porfírio, como filósofo, consiste principalmente em ter interpretado e esclarecido o
pensamento, muitas vezes obscuro e ambíguo, de seu mestre, contribuindo assim para difundir e popularizar
entre os homens de letras a filosofia de Plotino.
A origem e a fonte do mal, segundo Porfírio, não reside no corpo ou na matéria, mas nas forças e desejos
inferiores da alma, na adesão da mesma às coisas sensíveis às quais está unida (copulati vero sumus naturae
sensibili), embora nossa alma, considerada em si mesma e em seu estado anterior à união com o corpo, seja

220
uma essência intelectual, pura e livre de sentidos: Eramus enim et adhuc sumus intellectuales essentiae,
purae ab omni sensu naturaque irrationali viventes.
A felicidade suprema, última e verdadeira do homem, ou, se preferir, da alma, não consiste na
acumulação de conhecimentos e na posse de muitas ciências, mas sim na contemplação intuitiva e superior
do Ser absoluto, uno e verdadeiro, através do qual e no qual se estabelece a unidade ou identificação da
alma que contempla e o objeto da contemplação266, entre o sujeito inteligente e o objeto inteligível.
O caminho e os meios para preparar e alcançar essa união com o Inteligível uno, supremo e infinito, é a
mortificação, o esquecimento e como a morte dos apetites materiais e das afecções dos sentidos (per
extenuationem quamdam, et, ut dixerit aliquis, per oblivionem, mortemque affectuum), a perfeita e pura
abstração do corpo com todas as coisas materiais e sensíveis; pois assim, e somente assim, podemos chegar
à união íntima com Deus, Ser puríssimo, o mais simples e separado de
toda matéria: Non aliter, inquam, Deo copulari possumus, quam per
purissimam abstinentiam.
À medida que o homem avança nesse caminho de virtuosa
mortificação, à medida que é aperfeiçoado por meio dessas
purificações intelectuais e morais, ele pode alcançar e
alcança tal estado de perfeição, mesmo na vida presente,
que ele se transforma de certa forma em um ser quase
divino e superior até aos maus gênios ou demônios, entra
em comunicação com os bons gênios ou deuses
inferiores, conhece as coisas ocultas e futuras e, como
verdadeiro filósofo e sacerdote de Deus, sente, conhece
e possui a Deus já nesta vida267, sem prejuízo da união
identificativa com o Uno após a separação da morte.
De acordo com essa doutrina, Porfírio admite, em
princípio e com algumas ressalvas, a teurgia; defende quase
todas as superstições do culto politeísta; reconhece o
contato dos homens não apenas com os gênios ou deuses
inferiores, mas também com as almas dos mortos, acrescentando
que estas podem ser evocadas, que permanecem às vezes perto
dos corpos e dos túmulos, que podem aparecer e manifestar-se sob
diferentes formas e, finalmente, que as almas e os demônios agem nas
operações dos encantadores, nos sortilégios, nos vaticínios (quibus sane
malefici saepius abutundur ad ministerium suum afficiendum) e nas outras
formas de comunicação com os espíritos, operações e formas de
comunicação representadas na antiguidade pelos oráculos, as bruxarias e
Árvore de Porfírio

as possessões demoníacas, e na atualidade pelas práticas e superstições


espíritas. Quando sai da atmosfera teúrgica e espiritualista, Porfírio
ocasionalmente apresenta pensamentos elevados e dignos, como quando
diz que uma alma pura e livre de paixões é o melhor sacrifício que o
homem pode oferecer a Deus: Apud Deos optima est oblatio, pura mens
et perturbationum vacuus animus.

266
“Beata nobis contemplatio, non est verborum accumulatio disciplinarumque multitudo, quemadmodum aliquis forte putaverit...
Profecto contemplationis finis est Ens ipsum, verumque assequi, adeo, scilicet, ut ejusmodi assecutio contemplatorem, pro naturae
suae viribus, cum eo quod contemplatur conflet in unum ; non enim in aliud, sed in ipsum, vere seipsum fit recursus.” De abstinentia
animal., cap. II.
267
Para que não se creia que exageramos, extraímos uma das passagens em que Porfírio expõe suas idéias sobre o assunto: “Jure
igitur philosophus deique sacerdos, omnibus dominatis, animalibus omnibus abstinet. Solus, videlicet, soli Deo per seipsum studens
appropinquare... quo quidem commercio, ipse deinde et naturas rerum intelligit et divinat, Deumque habet in semetipso, unde
aeternae vitae fiduciam pignusque possidet. Si qua necessitas instat, non desunt huic divinitatis familiari passim boni daemones
occurrentes ei, et per somnia, signa, voces, futura praenuntiantes, unde discatur quid sit necessarium devitare.” Epist. ad Aneb., cap.
IV.
221
§ 118. Neoplatonismo místico

Jâmblico (Iamblichus Chalcidensis), natural de Cálcis, na Cele-Síria, e discípulo de Porfírio, representa


uma evolução importante do neoplatonismo. Já deixamos indicado que esta escola entranha dois elementos,
o filosófico e o místico ou teosófico. Em Plotino, e até em seu discípulo imediato, Porfírio, o elemento
filosófico tem mais importância que o místico, pois este último fica subordinado de certa maneira ao
elemento filosófico. Jâmblico representa um movimento em sentido contrário: o elemento místico
sobrepõe-se ao filosófico, sem o anular: o objetivo principal da
Filosofia, na opinião de Jâmblico e seus discípulos consiste em Acerca de Jâmblico
justificar e autorizar no plano especulativo todas as superstições do (Juliano Apóstata, Sobre o
culto popular; explicar o sentido real do politeísmo, subordinar a Divino Sol)
ciência ao culto e ensinar as formas e espécies deste.
Qualquer que seja a opinião adotada acerca da autenticidade do Um homem posterior a [Platão]
livro ou tratado Sobre os Mistérios dos Egípcios, geralmente em data, embora não na mente:
Jâmblico de Cálcis, que nos iniciou
atribuído a Jâmblico, é certo que o conteúdo desse livro é a expressão em outros ramos da Filosofia e
mais exata do pensamento do filósofo de Cálcis, e que as idéias nele também neste por meio de seus
vertidas estão em perfeita consonância com as que se encontram em discursos. (...) Poderás obter
sua Vida de Pitágoras e em seu Protrepticus ou Exortação à informações mais completas e mais
abstratas consultando as obras sobre
Filosofia. Os deuses gregos, romanos, egípcios, persas e orientais, ele compostas pelo divino Jâmblico:
todos têm lugar, razão suficiente e justificação no Universo de lá encontrará o limite extremo da
Jâmblico: apenas o Deus dos cristãos é excluído da honrosa sociedade sabedoria humana alcançada. Que o
divina. Mesclando e aproveitando-se das Idéias de Platão, das formas poderoso Sol me conceda alcançar
um conhecimento não inferior a
substanciais ou enteléquias de Aristóteles e dos números de respeito dele próprio, e ensiná-lo
Pitágoras, ele distinguia três classes ou ordens de deuses: os (1º) publicamente a todos, e em
deuses intelectuais (as Idéias platônicas); os (2º) deuses particular àqueles que são dignos de
recebê-lo; e, desde que Deus nos
suprassensíveis ou superiores ao mundo visível (os Números de
conceda isso, consultemos juntos o
Pitágoras); e os (3º) deuses imanentes no mundo (as Formas de bem-amado Jâmblico; de cuja
Aristóteles), que são inferiores à Unidade absoluta ou divindade abundância, algumas coisas que me
suprema, dos quais emanam por meio de séries ternárias e numa vieram à mente, eu aqui coloquei.
Estou bem ciente de que nenhuma
escala descendente. outra pessoa tratará esse assunto de
O misticismo psíquico e prático corresponde ao misticismo forma mais perfeita do que ele o fez,
especulativo e cosmogônico na Filosofia de Jâmblico. Depois de mesmo que venha despender muito
apresentar ao leitor o processo cosmogônico do Ser, seguindo passo trabalho adicional em novas
descobertas na pesquisa; pois é
a passo essa série interminável de deuses, demiurgos e logos, de muito provável que ele se desvie da
demônios, anjos, gênios bons e maus, heróis de todas as classes, o concepção mais correta da natureza
representante do neoplatonismo sírio entra em minuciosos detalhes de Deus.
sobre os meios de se comunicar com esses deuses e mundos
superiores. A purificação da alma por meio da abstração das coisas
sensíveis, o ascetismo, a contemplação, as expiações, as invocações,
as palavras misteriosas, as práticas sagradas, a inspiração, o êxtase, a
inspiração profética, até chegar à absorção da alma e a sua união
teúrgica com a Divindade e com o Ser absoluto, tudo é descrito e
recomendado por Jâmblico. “Aquele que evoca a Divindade – diz-se
no livro Sobre os Mistérios dos Egípcios – vê às vezes um sopro que
desce e se insinua, por meio do qual é instruído e dirigido
misticamente. O homem que recebe essa comunicação divina percebe
como uma espécie de raio luminoso, que às vezes é percebido pelos
que estão ao seu lado, e anuncia a presença de um Deus. Os homens
experimentados nessas práticas, conhecem por certos sinais (quo ex
signo in his rebus periti, verissime discernunt, quae sit potestas Numinis, quis ordo, et de quibus vera

222
loquatur) a verdade, o poder e o status desse Deus, as coisas sobre as quais ele pode nos instruir, as forças
ou virtudes que ele pode nos comunicar... Mas para atingir a perfeição da ciência divina, não basta ter
aprendido a discernir esses sinais; é preciso também saber em que consiste essa inspiração. Essa inspiração
não vem dos gênios, mas dos próprios deuses, e até é superior ao êxtase, que é mais uma consequência do
que um acidente. É uma espécie de possessão plena e absoluta que provém do sopro divino, que de certo
modo anula nossas faculdades, operações e sentidos... Esse transporte divino é algo supra-humano, como
se Deus nos tomasse como seus órgãos; daí surge a virtude profética, pela qual proferem-se palavras que
não são compreendidas por aqueles que aparentemente as repetem.”
Como se percebe por esta passagem e por essas idéias, a nova ciência espírita é uma ciência bastante
antiga em seus procedimentos, em seus fenômenos, em suas aspirações. Para que a afinidade e semelhança,
por não dizer identidade, sejam mais perfeitas, Jâmblico, após afirmar, como o espiritismo moderno, que o
sonambulismo é um estado sui generis e intermediário entre o sono e a vigília (medium quiddam inter
vigiliam et somnum), recorre, para explicar seus fenômenos, à hipótese de uma dupla vida ou estado da
alma268, assim como fazem certos adeptos do espiritismo.
É ainda mais notável, se possível, e verdadeiramente chocante, a afinidade – ou, melhor, identidade –
que se observa entre os efeitos e fenômenos que Jâmblico atribui à inspiração e influência dos espíritos e
os que encontramos no espiritismo moderno e em suas evocações. Jâmblico nos diz, de fato, que são
bastante diferentes e múltiplos os sinais, efeitos e obras que resultam das operações teúrgicas e espíritas,
mencionando explicitamente os movimentos de translação dos corpos, elevação e suspensão no ar,
agitações do corpo e de seus membros, sons e vozes e até peças de música269 , e, o que é ainda mais
importante, encontramos no filósofo neoplatônico a moderna teoria e até mesmo o nome (vehiculum), por
assim dizer, dos médiuns do espiritismo270.
Em relação e harmonia com a predominância do elemento místico-teúrgico que permeia a Filosofia de
Jâmblico, sua teoria ética reduz-se à absorção final da alma em Deus após a morte, preparada durante a vida
presente por meio de mortificações, silêncio, abstração dos sentidos e, acima de tudo, por meio das práticas
teúrgicas, por meio das quais o homem, ou melhor, a alma, eleva-se cada vez mais em direção a Deus.
Sucedeu a Jâmblico na escola Edésio (Aedesius) da Capadócia e a este seu compatriota Eustáquio. Além
desses, também foram discípulos diretos de Jâmblico, ou seguidores de sua doutrina e continuadores de sua
escola místico-neoplatônica, Eusébio de Mindus, Prisco de Molossus, Máximo de Éfeso, Crisanto de
Sardes, e o imperador Juliano, o Apóstata, famoso não apenas por seus trabalhos filosóficos, mas também
por seus esforços para extinguir o Cristianismo, assim como por seus esforços para restaurar e regenerar o
politeísmo. Essa idéia o arrastou para todos os delírios e práticas do espiritismo politeísta e da teurgia,
preconizados e praticados pelos adeptos e seguidores da doutrina de Jâmblico, dos quais estava sempre
cercado. Durante seu império, foi nomeado Cônsul um desses filósofos, chamado Salústio (Saturninius
Secundus Salutius), que, juntamente com Claudião de Éfeso, Macróbio, autor das Saturnais, Olimpiodoro,
que floresceu em Alexandria, assim como Hipátia, continuaram a escola místico-filosófica e a tradição
teúrgica iniciada por Jâmblico. O eclético Temístio, um dos principais comentaristas de Aristóteles, também
seguiu em parte essa doutrina.

268
“Anima duplicem habet vitam; unam quidem simul cum corpore; alteram vero ab omni corpore separabilem. Quando vigilamus,
utimur plurimum vita, quae communis est cum corpore. Quando quodammodo dormientibus animus a corpore solvitur, tunc illa
vitae species secundum seipsam permanens separabilis, separataque, sive intellectualis, sive etiam divina, protinus expergiscitur in
nobis, agitque quemadmodum sua fert natura.” (De mysteriis Aegypt., pag. 53.) A teoria de alguns espíritas para explicar os
fenômenos do sonambulismo coincide perfeitamente com o conteúdo desta passagem.
269
Para que não se creia que exageramos, fixemos a atenção na seguinte passagem – que, por certo, não é a única deste gênero –,
que parece tomada de alguma revista espírita: “Secundum horum diversitatem, differentia sunt inspiratorum signa, et effectus, et
opera... Inspirati, alii moventur, vel toto corpore, vel quibusdam membris, vel contra quiescunt. Item, choreas, cantilenasque
concinnas agunt. Corpus eorum, vel excrescere videtur in altum, vel in amplum, vel per sublimia ferri, atque contra. Item, voces
edunt, vel aequales perpetuasque, vel inaequales et silentio interruptas.” Ibid., pag. 37.
270
“Sive ut vehiculum, sive ut instrumentum se subjecerint, priorem vitae modum deposuere... Ideo, nec utuntur sensibus, neque
ita vigilant, ut qui vigiles sensus habent, neque ipsi praesagiunt vel moventur humano quodam impetu atque more, neque suum
statum animadvertunt, neque ullam edunt cognitionem actionemque propriam, sed totum illic agitur sub forma actioneque
divina.” Ibid., pag. 56.
223
§ 119. Escola filosófico-teosófica do neoplatonismo

De acordo com a Filosofia de Jâmblico e seus discípulos, promovida e protegida por Juliano, o Apóstata,
uma reação contra as exagerações místico-teúrgicas que a estavam prejudicando e desacreditando deveria
ocorrer, e de fato ocorreu. Essa reação deu origem à escola neoplatônica de Atenas, cujos primeiros
representantes foram Plutarco de Atenas271, filho de Nestório; seu discípulo Siriano de Alexandria, autor de
vários comentários sobre as obras de Platão e Aristóteles, que foram perdidos, e Hierocles de Alexandria.
Mas o verdadeiro e mais genuíno representante dessa evolução neoplatônica é o famoso Proclo (Proclus
Lycaeus), cujos numerosos escritos condensam e refletem a tendência característica da escola neoplatônica
de Atenas.
Este filósofo nasceu em Constantinopla no início do século V, mas foi educado e viveu seus primeiros
anos em uma cidade da Lícia, de onde seus pais eram originários. Depois, ele foi para Alexandria, onde foi
discípulo por pouco tempo de Olimpiodoro, e completou sua educação filosófica em Atenas, ao lado do
mencionado Plutarco, Asclepigenia, filha deste, que também o iniciou em vários mistérios e práticas
teúrgicas, e Siriano, a quem sucedeu na escola neoplatônica de Atenas, falecendo em 485.
Como mencionado, Proclo representa no neoplatonismo a união e a fusão do elemento filosófico e do
elemento místico, sem conceder um notável predomínio nem ao primeiro, como Plotino, nem ao segundo,
como Jâmblico. Seu discípulo e biógrafo Marino o apresenta como um homem eminentemente teosófico e
teúrgico, combinando, interpretando e desenvolvendo as tradições religiosas dos caldeus, persas, egípcios
e gregos, e se dedicando à prática de uma vida austera, purificações, evocações, iniciações, expiações e
todo tipo de operações teúrgicas. Mas isso não o impediu de dedicar atenção especial ao cultivo da Filosofia
científica e racional, nem de esquecer os nomes de Orfeu e Homero, Zoroastro e Hermes, nem de estudar a
fundo as obras de Pitágoras, Sócrates, Platão, Aristóteles e Plotino, sobre as quais escreveu notáveis
comentários272, além de suas próprias obras, como a Teologia de Platão, seus tratados Sobre a Providência,
Do Destino, Da Liberdade, Da Natureza do mal, Sobre a Alma e o demônio, entre outros menos
importantes.
Os pontos principais de sua Filosofia propriamente dita, separados das formas teosóficas e teúrgicas
com as quais está frequentemente misturada, podem ser resumidos da seguinte forma:
(Unidade-Essência)
1º A Unidade é o ser primordial ou a essência absoluta e universal, que está no fundo de todos os outros
seres. Essa essência, una e absoluta, é a causa primeira e única dos seres, ou melhor, de todas as
manifestações e evoluções do ser; mas, considerada em si mesma, é inacessível à compreensão e à palavra
do homem; na realidade, não é o bem, nem o ser, nem o não-ser, nem mesmo a unidade, mas está acima do
bem, da unidade, do ser e do não-ser, da afirmação e da negação: às vezes, substitui o nome de bonum pelo
de unum. É a essência-causa, da qual tudo surge e para a qual tudo retorna. O processo das coisas da
Essência-Unidade ocorre, segundo Proclo, por graus descendentes, ou seja, do mais perfeito para o menos
perfeito, e não ao contrário (isto é, a minus perfecto ad perfectius273), como se supõe na evolução da Idéia
hegeliana. Tomado em conjunto e de um ponto de vista geral, esse processo das coisas, começando de baixo
para cima, inclui (a) o mundo sensível e material; (b) o mundo intelectual inferior, composto pelas almas
humanas e pelos demônios; (c) o mundo intelectual superior, que abrange os espíritos puros ou anjos,
também chamados de deuses inferiores; e (d) o mundo inteligível, representado pela Inteligência suprema
e pela Alma universal. Dela surgem diretamente os demônios e as almas humanas unidas ao corpo; daquela,

271
Plutarco de Atenas (Πλούταρχος ὁ Ἀθηναῖος), restabeleceu a Academia de Platão em Atenas na primeira metade do século
V d.C. Escreveu diversos Comentários sobre Platão e Aristóteles, harmonizando suas doutrinas. [N.T.]
272
Entre outros, escreveu comentários sobre o Parmênides, o Alcibíades e o Timeu de Platão. Santo Tomás atribui a Proclo o famoso
livro Das Causas, que tanto ocupou a atenção dos escolásticos na Idade Média e foi comentado pelo Doutor Angélico e outros
escritores daquela época. É certo que é um dos tratados em que a especulação metafísica de Santo Tomás atinge maior altura.
273
A seguinte passagem indica o pensamento de Proclo acerca do processo ou emanação das coisas a partir de Deus ou Ser uno e
primitivo: “Ipsum Bonum, tanquam super naturam intellectualem in se consistens, usque ad postrema descendit... Primo quidem
ipsis vere existentibus (la inteligencia y el alma universal o potencia plástica); secundo, divinis animis; tertio, numinibus humano
generi praesidentibus; quarto, nostris animis, atque deinceps animalibus, et plantis, omnibusque corporibus: ipsae denique informi
materiae, infimae rerum faeci.” De Anima et daemone Mars. Fic. interpr., página 50, edic. 1552.
224
que é a região própria das Idéias, surgem os espíritos ou almas superiores, cujo conjunto constitui um
mundo que deve ser chamado de inteligível intelectual, porque participa do inteligível e do intelectual
inferior. Sobre esses quatro mundos, e como fundo potencial e essência inicial e indiferente de todos, está
o Unum ou o Bonum primordial e absoluto, o que é em si mesmo.
(matéria)
2º A matéria, considerada em si mesma, não é nem boa nem má, mas é a fonte da necessidade que
governa as coisas do mundo sensível. A Providência divina, que tem como principal objetivo os mundos
superiores inteligíveis e intelectuais, estende-se também ao mundo sensível: Providentiam ad ultimum
usque procedere, ac nec minimum quidem sui expers.
(alma imortal)
3º A alma humana, uma derivação imediata da Alma do mundo, mas mediada pela Unidade-Essência
primordial, assim como todas as outras coisas, é ao mesmo tempo eterna e temporal; eterna em relação à
essência (krausismo), temporal em relação ao desenvolvimento de sua atividade. Os males que ela sofre
são devidos a seus pecados passados e presentes; mas ela pode se libertar e se redimir até retornar a Deus,
sendo absorvida por ele por meio de purificações morais, prática da virtude e intuição intelectual da
Divindade ou da Unidade.
Proclo estabelece e demonstra a imortalidade da alma, e ao fazê-lo, enfatiza a força de reflexão que
nossa alma possui, força que, segundo o filósofo neoplatônico, constitui o caráter fundamental que distingue
e separa as coisas espirituais dos corpos ou coisas materiais. Nesse sentido, a Filosofia de Proclo representa
um avanço em relação à de Plotino, que não soube apreciar a importância e as aplicações dessa força de
reflexão como elemento fundamental para a ciência psicológica e para a demonstração da imortalidade da
alma.
No entanto, apesar disso, Proclo supõe e afirma que nossa alma tem maior afinidade e dependência do
corpo do que a que Plotino supõe e atribui a ela. Para Plotino, entre a alma humana e a Unidade, apenas a
Inteligência divina e a Alma do mundo mediam; mas para Proclo, a alma humana, sem deixar de ser uma
derivação imediata da Alma do mundo, tem sobre si e ao seu redor uma multidão de deuses e demônios,
por meio dos quais ela se comunica com a Divindade e com a Unidade, e dos quais ela precisa de ajuda e
socorro, e alcança por meio das práticas teúrgicas. Plotino frequentemente sugere a possibilidade, ou até
mesmo a facilidade, para a razão humana de elevar-se de um salto à intuição da Unidade, e de mover-se e
permanecer com certa espontaneidade e conaturalidade no mundo inteligível, no mundo superior ou das
ideias divinas, com quase total independência do corpo e das coisas sensíveis. Proclo, por outro lado, tende
a negar essa facilidade de abstração, independência e separação da alma do corpo ao qual está unida e do
qual depende, segundo Proclo, até mesmo para as operações e funções da razão e da vontade. Aqui, como
em várias outras questões, o sentido platônico predominante em Plotino é corrigido e modificado pelo
sentido aristotélico, que Proclo adotou, combinando-o com o elemento platônico.
(cinco graus de conhecimento)
4º No homem devem ser distinguidos cinco graus de conhecimento em relação aos diferentes objetos
conhecidos. O (i) primeiro grau refere-se aos objetos sensíveis e singulares por meio dos sentidos; o
(ii) segundo refere-se a esses mesmos objetos considerados como universais; o (iii) terceiro refere-se aos
objetos matemáticos que prescindem da matéria e às verdades que são deduzidas de definições e noções
comuns e dos primeiros princípios; o (iv) quarto refere-se às Idéias, que constituem o mundo inteligível e
são as verdadeiras essências e causas das coisas; o (v) quinto é a intuição supra-racional e supra-intelectual,
por meio da qual a alma se une intimamente à Unidade ou Essência absoluta, ficando como transformada e
divinizada nela.
O princípio íntimo, a fonte própria do conhecimento intelectual, é a afinidade ou semelhança entre o
conhecedor e o conhecido (simile simili cognoscitur), entre a faculdade que conhece e a coisa conhecida.
Daqui se infere que não devemos buscar o conhecimento da realidade e essência das coisas fora de nós, ou
seja, nos fenômenos externos e sensíveis, mas sim dentro de nossa alma, que contém em si as idéias ou
verdadeiras essências (veras rationes) de todas as coisas, embora latentes e obscurecidas devido à geração,
ou seja, devido à união da alma com o corpo: Oportet animam se ipsam ingredientem, ibi veras rationes
rerum perscrutari: plena enim est horum animae ipsius essentia; delitescunt vero ex oblivione genefica.
225
O elemento predominante na concepção filosófica de Proclo é o platonismo, assim como nos demais
representantes da escola neoplatônica. No entanto, nota-se nesta escola uma certa predileção relativa pela
doutrina de Aristóteles, adotando em todo ou em parte algumas de suas teorias. Isso ocorre especialmente
em relação à natureza e número das causas, bem como à natureza ou conceito da faculdade ou potência em
suas relações com a essência e o ato. Em relação a este último ponto, Proclo se expressa como poderia se
expressar o próprio Aristóteles274.
Os discípulos e principais sucessores de Proclo foram Marino da Palestina, que escreveu a vida de seu
mestre; o médico Asclepiodoto, natural de Alexandria; Heliodoro e Amônio, filhos de Hermias e Edesia,
um casal que também cultivou a filosofia neoplatônica; Hegias, parente de Plutarco; Isidoro de Alexandria,
que sucedeu a Marino; e, por último, Damáscio, que dirigia a escola neoplatônica de Atenas quando esta
foi fechada por decreto do imperador Justiniano no início do século VI. Damáscio, Isidoro de Gaza,
Simplício de Cilícia, juntamente com outros neoplatônicos, refugiaram-se então na Pérsia, onde
continuaram por algum tempo o ensino e as tradições do neoplatonismo, até que desapareceram
gradualmente, não sem deixar profundas marcas nos escritores cristãos. Nas obras atribuídas a São Dionísio
Areopagita, nas de Filopono, Boécio, Erígena e alguns outros, encontram-se a todo momento
reminiscências e idéias neoplatônicas, as quais, fecundadas e fundidas ao calor da mentalidade cristã pelos
grandes filósofos e teólogos da Idade Média, forneceram um dos elementos mais importantes para a grande
obra de reconstrução filosófica, realizada posteriormente pela Escolástica cristã, da qual se pode dizer que
deve sua filiação parcial e indireta à Filosofia neoplatônica, devido à influência desta em muitos dos Padres
da Igreja e escritores cristãos dos primeiros séculos 275 , cujas obras representam um dos antecedentes
imediatos e diretos da mencionada escolástica.
Assim chega ao fim – escreve Ritter – a Filosofia neoplatônica, e com ela, a Filosofia Antiga. Em 529,
o imperador Justiniano proibiu o ensino da Filosofia em Atenas. Este decreto parece ter sido a ocasião
para que os principais filósofos da época, entre eles Isidoro, Damáscio e Simplicio, deixassem Atenas e
fossem para a Pérsia. Eles viam a Filosofia desprezada em seu país e viam as antigas religiões, às quais
eles estavam apegados, sendo perseguidas por uma Religião inimiga, que eles abominavam. Eles
perderam a esperança da Filosofia em sua pátria e, como já haviam aprendido a buscar no Oriente, fonte
de sabedoria e sede da vida religiosa, as opiniões que haviam dominado em sua escola, emigraram para
a Pérsia, onde imaginavam encontrar uma melhor situação e onde reinava Cosroes, um filósofo à
maneira de Platão. Mas os infelizes sofreram uma grande desilusão. Não encontraram nada do que
haviam imaginado. Assim que viram e observaram aqueles costumes estrangeiros, ferozes, injustos e
licenciosos; assim que viram aquele Rei-filósofo, mas que não pertencia à sua escola, e que era mais
amigo do prazer do que da austeridade, arrependeram-se de ter abandonado sua pátria, desejaram
ardentemente retornar a ela e assim o fizeram, preferindo viver entre seus compatriotas a viver honrados
entre estrangeiros... Com eles, se a Filosofia pagã não desceu completamente ao túmulo, não deixou,
entretanto, nenhum vestígio para a História.

Essas últimas palavras de Ritter não nos parecem muito precisas. É verdade que a Filosofia pagã,
considerada como um conjunto de doutrinas puramente racionais ou apartadas da idéia cristã como idéia
revelada, e também considerada subjetivamente ou por parte de seus representantes, desceu ao túmulo com
a Filosofia neoplatônica; mas não é verdade que essa Filosofia pagã não tenha deixado nenhum rastro ou
vestígio na História da Filosofia. Porque nos diferentes sistemas filosóficos posteriores ao neoplatonismo,
na Filosofia ou Filosofias que surgiram e continuam surgindo no mundo e na História após a escola
neoplatônica, não se pode negar que existiram e existem muitos e não desprezíveis elementos tomados da

274
Eis suas palavras: “Media namque inter actionem et essentiam potentia est, producta quidem ab essentia, actionem vero
producens.” Comment. in Alcibiad., cap. XVIII.
275
Como uma das muitas provas que poderiam ser apresentadas em confirmação do que foi dito no texto, basta lembrar o seguinte
fato: No último terço do século IV, Sinésio, que foi Arcebispo de Ptolemaida, conta sobre si mesmo que, em sua juventude, foi a
Alexandria com o objetivo de assistir à escola e ouvir as lições de Hipátia, que ensinava publicamente a Filosofia pagã,
principalmente a de Platão e Plotino. O Arcebispo de Ptolemaida tinha tão alta opinião e conceito dessa professora de Filosofia
neoplatônica que lhe enviou alguns de seus escritos para serem revisados, como consta em uma de suas cartas endereçadas a ela, a
Mestra de Filosofia.
226
Filosofia pagã. Precisamente o elemento neoplatônico é um dos que mais predominaram na Filosofia
Escolástica, como mencionamos acima, e não é necessário lembrar, e ninguém ousará negar, que no fundo
dessa mesma Filosofia Escolástica, e também no fundo da Filosofia Moderna e Contemporânea, palpita o
pensamento de Platão e o pensamento de Aristóteles, e certas idéias dos dois grandes filósofos gregos
reaparecem, se transformam, se renovam, se afirmam, se desenvolvem e se aplicam.

§ 120. Crítica geral do neoplatonismo e da Filosofia pagã

O neoplatonismo, com suas três evoluções ou escolas, representa a continuação da Filosofia pagã dentro
do Cristianismo e demonstra ao mesmo tempo a impotência relativa e a esterilidade real de toda Filosofia
racionalista. Apesar do poderoso auxílio que o neoplatonismo recebia das idéias cristãs, que circulavam e
penetravam imperceptivelmente nas mentes, os neoplatônicos, arrastados pelo ódio contra a nova Religião,
rejeitaram com sua persistente tenacidade as grandes idéias cristãs que contêm a solução dos problemas
fundamentais da ciência, como a origem do mundo e do homem, a origem do mal, o destino final da
humanidade, a lei do amor universal etc.; fecharam seus corações em seu ódio ao novo ensinamento e,
concentrando-se cada vez mais nas especulações da razão humana, ouviram apenas a palavra do homem,
excluindo a Palavra de Deus. O resultado desse movimento separatista do neoplatonismo, como já vimos,
foi uma mistura informe de panteísmo, idealismo, teurgia e superstições ridículas. As especulações
metafísicas e a moral, relativamente elevada e pura, de Platão e Aristóteles, nas mãos dos neoplatônicos se
tornaram um sistema de concepções fantasiosas e arbitrárias no campo especulativo, e um conjunto de
práticas grosseiramente supersticiosas e operações extravagantes e ridículas no campo ético. O
neoplatonismo, portanto, a última palavra da Filosofia pagã e que representa a última evolução do
pensamento helênico, traz a demonstração histórica da impotência da razão humana para alcançar e manter-
se nos caminhos da verdade plena e da verdadeira justiça, se não for vivificada e informada pela idéia cristã,
que é como o sal que impede sua putrefação. Sem esse princípio vital, a Filosofia pode elevar-se nas asas
do gênio a maior ou menor altura relativa; pode disfarçar mais ou menos seus defeitos e erros; pode
momentaneamente deslumbrar com certos aspectos brilhantes, mas sempre carregará em seu seio erros
fundamentais, como vimos em Platão e Aristóteles, e, acima de tudo, sempre carregará em seu coração um
princípio de corrupção e morte, que, desenvolvendo-se mais tarde ou mais cedo, imprime-lhe um
movimento fatal de decadência, até precipitá-la no abismo.
E o que mais significam e demonstram o panteísmo de Plotino, o ultramisticismo teúrgico de Jâmblico
e Proclo, os delírios dos gnósticos, as aberrações dos estóicos, o ateísmo e materialismo de Epicuro, o
ceticismo idealista da nova Academia, após os grandes trabalhos de Platão e Aristóteles, incubados e
promovidos pela restauração socrática? É que esse movimento de restauração e esses grandes trabalhos
estavam viciados por grandes erros metafísicos e morais, e eram essencialmente defeituosos e estéreis,
porque não havia ali a seiva purificadora do Cristianismo para evitar aqueles grandes erros e para vivificar
e fecundar aqueles trabalhos. É difícil calcular qual teria sido o destino da Filosofia greco-romana,
considerando o estado de prostração e decadência a que havia chegado quando o Cristianismo apareceu, o
qual, além de dar origem, vida e organização a uma nova Filosofia, a Filosofia cristã, deu origem e
oportunidade ao movimento neoplatônico, movimento que vivificou, ou melhor, galvanizou por algum
tempo a agonizante Filosofia greco-romana.
É importante lembrar aqui a inconstância, as vacilações, a obscuridade e as contradições que com tanta
frequência observamos nos representantes do neoplatonismo, seja em relação ao conhecimento de Deus, às
relações entre este e o mundo, à alma humana ou a outros problemas fundamentais da Filosofia. Essa
insegurança de juízo, essas contradições na palavra e no pensamento, sem dúvida influenciaram a
esterilidade do movimento neoplatônico, assim como influenciaram a fraqueza da Filosofia greco-judaica.
Nada se opõe mais diretamente a um sistema filosófico, nada destrói mais sua virilidade e sua força de
propaganda do que a inconstância e a contradição do pensamento, inconstância e contradição que costumam
acompanhar e seguir as concepções ecléticas ou sincréticas.
227
E o neoplatonismo, considerado em suas diferentes fases e evoluções, é uma concepção essencialmente
sincrética, como bem demonstram suas inegáveis e evidentes relações de afinidade com as idéias e práticas
religiosas que dominavam na Índia, Pérsia, Síria, Egito e outras regiões orientais, assim como as idéias e
teorias que têm sua origem na Filosofia grega. No fundo da concepção neoplatônica e em sua parte
propriamente filosófica, encontram-se constantemente idéias e reminiscências dos sistemas de Pitágoras,
Platão, Aristóteles e alguns outros representantes da Filosofia helênica. O predomínio da doutrina e das
tendências de Platão é frequentemente evidente, especialmente nos problemas relacionados à natureza de
Deus, à origem do mundo, ao processo e às condições do conhecimento humano, à origem, natureza e
destino final da alma humana, à dignidade da virtude, ao desprezo das paixões e das coisas sensíveis, à
prática e às condições da moralidade. Nessas questões, e em algumas outras de maior ou menor importância,
o neoplatonismo merece ser considerado como uma transformação, ou melhor, como uma reprodução do
antigo platonismo acadêmico, ao qual apenas acrescenta o aspecto teosófico que geralmente caracteriza as
escolas neoplatônicas, e que é resultado ou manifestação natural da amálgama do elemento filosófico com
o elemento místico-religioso, elemento que em certas evoluções e em determinados representantes do
neoplatonismo predomina de maneira visível sobre o elemento propriamente filosófico.
Além disso, é justo dizer e confessar que o movimento filosófico realizado pelo pensamento helênico é
extremamente notável, se considerado como um todo. No primeiro período, o período cosmológico e de
incubação; no segundo, caracterizado pelo predomínio do elemento antropológico; no terceiro, que
representa o movimento eclético e teosófico: em todos eles aparecem homens extraordinários e filósofos
de primeira grandeza, capazes de honrar uma geração e um povo.
A fertilidade e a variedade de sistemas; os escritos admiráveis de muitos; a virilidade e a elevação que
se destacam nas especulações de outros, principalmente no segundo período; a universalidade do
conhecimento, a multiplicidade de escolas e centros de saber, juntamente com o número extraordinário de
filósofos notáveis que floresceram em um período de tempo relativamente curto, tudo nos leva a olhar com
respeito e admiração esse grande movimento filosófico que teve seu centro e foco de irradiação na Grécia,
cuja influência poderosa e enérgica foi sentida tanto na Ásia, na África quanto na Europa latina, e que nos
obriga a reconhecer no pensamento helênico um dos fatores mais importantes da civilização e do progresso.
Seria extremamente injusto ignorar esses serviços da Filosofia grega, que criou e desenvolveu a Física e a
Cosmologia em meio às disputas e alternativas das escolas jônica e pitagórica, do atomismo e do eleatismo;
que em seu segundo período criou, desenvolveu e aperfeiçoou a metafísica, a lógica e a psicologia, as
ciências morais e políticas, demonstrando uma fertilidade viril raramente reproduzida na História; que em
seu terceiro período se esforçou para penetrar e elevar-se ao conhecimento científico de Deus e das coisas
divinas em suas relações com o homem e o mundo. É verdade que cometeu graves erros e não soube
preservar as sociedades da corrupção moral, nem erradicar ou suprimir nas nações sua viciosa organização
político-social, nem estabelecer a justiça, nem regularizar e humanizar a guerra; mas soube dar exemplos
notáveis de moralidade austera; soube combater grandes erros do politeísmo idolátrico e até soube morrer
com heroísmo em defesa da verdade religiosa. Não lhe era dado evitar aqueles grandes erros, nem realizar
a reforma social, porque lhe faltava o princípio divino que o Cristianismo trouxe ao mundo, princípio que,
completando, desenvolvendo e regenerando a Filosofia pagã, deveria dar origem a uma nova era na História
da Filosofia: a era da Filosofia cristã.

228

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