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parece que hoje em dia impera um certo senso comum entre nós de
que fé e conhecimento são coisas opostas, mutuamente excludentes
como luz e escuridão – se você tem conhecimento você não tem fé, e
vice-versa. Há, no entanto, para contrariar essa noção, uma
afirmação muito contundente na Bhagavad-Gita acerca da relação
entre esses dois princípios: “shraddhavan labhate jñanam – aquele
que tem fé ganha conhecimento.” De acordo com Krishna, o autor
dessa afirmação, conhecimento e fé não só não são opostos como
mantêm entre si uma relação muito peculiar de dependência: fé é
condição sine qua non do conhecimento. Vamos entender o que isso
significa.
Em primeiro lugar, o que é conhecimento? Parece-me que é algo
cuja força de evidência acaba com quaisquer dúvidas ou
desconfianças com relação àquilo que está se mostrando com tanta
clareza, e faz com que possamos relaxar e prosseguir com o que
quer que estejamos fazendo sem pensar mais naquilo. Agora mesmo
enquanto escrevo este texto há uma enormidade de conhecimentos
envolvidos nessa ação, um dos mais essenciais deles sendo o de que
as palavras estão sendo realmente escritas no processador de textos,
o que me permite relaxar e apenas escrever. E o que é que me
concede a certeza de que de fato as palavras estão sendo escritas?
São os meus olhos, com os quais tenho uma relação de plena
confiança, fé.
Para essa pessoa, não adianta o estudo de mais textos; ela precisa da
qualificação prévia para o estudo dos textos, chamada fé, shraddha.
Em um famoso texto da tradição chamado Vivekachudamani de
Shankaracharya há, na seção que fala da qualificação do estudante,
uma definição muito bonita de fé que corrobora o que viemos
dizendo até aqui: “shastrasya guru-vakyasya satya-buddhi-
avadharana sa shraddha kathita sadbhih yaya vastu-upalabhyate – a
convicção de que as palavras do guru e da escritura são verdadeiras é
chamada fé pelo sábio, por meio da qual a verdade é compreendida.”
A definição é bastante ousada: yaya vastu-upalabhyate significa que
a obtenção do conhecimento se dá por causa da presença de
shraddha, e sem ela não há possibilidade de conhecimento. Isso
significa que, no caso de Vedanta, a atitude acadêmica de
“convença-me” nascida da “neutralidade” esperada de um cientista
impede que o conhecimento se estabeleça, deixando o acadêmico
apenas com a cabeça cheia e a língua afiada. E o interessante aqui é
notar que a dita neutralidade acadêmica, que supostamente impede
o acadêmico de estar previamente comprometido, é apenas uma
farsa, pois ser “neutro” é apenas uma maneira peculiar de já estar
comprometido. E é por isso que mumukshutva, o comprometimento
com a liberação é outra qualificação prévia exigida para o estudo de
Vedanta. Pois qualquer outro comprometimento impedirá a fé
necessária para que o conhecimento aconteça e cumpra o seu
propósito de fazer a pessoa fechar a torneira – interromper a sua
incessante busca por felicidade ou completude.
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