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Ponto de partida

A presente meditação tem sua fonte nas primeiras páginas da Sagrada Escritura3, em que é
narrado o “sonho” de Deus, que se revela como o Criador do ser humano (homem e
mulher), e que os cria à sua imagem e semelhança para crescerem em liberdade,
responsabilidade e viverem em harmonia no “jardim” do mundo criado.

As fraquezas de Adão, Eva e de seus descendentes não são resultados de um castigo divino,
mas são consequências de escolhas equivocadas que desembocam na desobediência. Deus,
entretanto, não abandona o ser humano nestes momentos, mas transforma o fracasso em
oportunidades de crescimento. Este é o contexto vital da experiência vivenciada por José do
Egito e sua família; e que, por conseguinte, foi transformada por Deus em profundas
relações fraternas. É nesta perspectiva que propomos a história de José do Egito, como um
pré-anúncio da história de Jesus Cristo, que transformou, de forma única e definitiva, o
sentido da vida humana no mundo e a relação entre criatura e Criador.

Experiência de fé e vida de José do Egito

A crise vivenciada por Jacob, embora se desenvolva no contexto familiar, simboliza e


representa as fragilidades e dificuldades da humanidade em sua tarefa cotidiana de construir
relações fraternas.

A predileção de Jacob pelo filho José incomodava seus irmãos4. Essa predileção foi
provavelmente o motivo pelo qual os outros irmãos se sentiam “não amados”, mas sim
“rejeitados”. Com o passar do tempo, essa preferência do pai pelo irmão mais novo se torna
irritante e odiosa, e desencadeia uma série de ações equivocadas que aumentarão a dor e o
sofrimento da família. O pai, entretanto, não substituiu sua preferência por José por nenhum
de seus irmãos. A tentativa dos irmãos “rejeitados” de reverter a situação a seu favor só
agrava mais o conflito familiar. Entretanto, não podemos esquecer que Jacó experimentou
um processo interno de liberação; por isso, não obstante a centralidade do papel de José na
narrativa, a história é também de Jacó e de seus antigos conflitos com seu tio Labão e seu
irmão Esaú. Jacob e sua família seguem um caminho que os conduziu à transformação do
coração. José foi escolhido por Deus para mediar esta experiência de fé.

Jacob, em Betel5, teve uma experiência por meio dos sonhos em que Deus manifesta sua
mensagem. José teve dois sonhos6, que contou em família, e só aumentou a raiva de seus
irmãos. No segundo sonho, seus pais apareceram na cena, por isso Jacob questionou José
sobre o desfecho final deste sonho, porém guardou os sonhos do menino na mente7.

Os sonhos de José não foram bem-vistos por seus irmãos, pelo contrário, serviram para
arruiná-lo. Seus irmãos zombaram dele; eles o chamaram de “sonhador” e planejaram matá-
lo8. O plano de assassinato foi interrompido por Rúben9, dando lugar ao abandono na
cisterna e venda aos ismaelitas10. Despiram José da túnica, que era símbolo da predileção
do seu pai11, e ensoparam com o sangue de cabrito para enganá-lo por vingança e
justificarem seu desaparecimento12.

José, quando estava no Egito, experimentou que Deus estava com ele nesta nova
experiência. Seu amo Putifar o colocou à frente de sua casa13. Enquanto trabalhava na casa
do seu amo, a esposa de Putifar convidou José para dormir com ela, mas, por respeito e
lealdade ao patrão, ele se recusou a satisfazer os desejos sexuais da patroa. Por conta disso,
foi caluniado e preso. José já tinha passado por uma primeira experiência de prisão, quando
seus irmãos o colocaram em uma cisterna. No decorrer do primeiro acontecimento, sua
túnica foi manchada de sangue de cabrito e serviu para justificar seu desaparecimento; nesta
segunda situação, suas roupas também serviram como prova de sua transgressão. Em ambos
os casos, suas roupas são utilizadas como base de argumentos mentirosos, de modo a
enganar os outros e como forma de vingança14.

Mesmo na prisão, José percebeu que Deus estava sempre com ele. Destacou-se dos demais
detentos; e, por isso, todos os prisioneiros são confiados a sua responsabilidade15. Quando
ele desempenhava essa função, teve uma experiência importante para o desenvolvimento da
sua missão: o exercício de sua capacidade e habilidade de interpretar os sonhos foi um dom
que José atribuiu a Deus16. O dom de interpretação tornou-se mais evidente quando
José interpretou os sonhos de dois dos servos do rei que estavam presos17; por isso, ele foi
levado ao Faraó e interpretou os dois sonhos do rei. Após este fato, José assumiu o cargo de
vice-rei do Egito18. José não era mais apenas um “sonhador”, como diziam os seus irmãos,
mas um intérprete de sonhos.

A fome na região levou os irmãos de José a viajarem para o Egito, pois lá havia fartura.
Seus dez irmãos, ao chegarem lá, encontram José e se curvam diante dele19. O sonho de
José começou a se realizar. José testou seus irmãos, porém não movido por um sentimento
de vingança, mas pela vontade e desejo de que eles o reconhecessem e recuperassem a
fraternidade20. Essa prova se estendeu até a segunda volta de seus irmãos no Egito, já com
a presença de seu irmão mais novo, Benjamin21.

O gesto de Judas, que se ofereceu como escravo em lugar da liberdade do irmão mais novo,
demonstrou que estava ocorrendo uma transformação interna no que concerne à maneira de
compreender as relações familiares. O sentimento de “ser irmão” agora falou mais alto e
José percebeu uma transformação espiritual nesse gesto; por consequência, a fraternidade
foi remontada, e, então, houve espaço para reconhecimento22.

José chorou pela terceira vez23, mas, naquela vez, seu grito ecoa por todo o Egito e chega à
casa do Faraó. Depois desse lamento, José se manifestou aos seus irmãos: “Eu sou José.
Meu pai ainda está vivo? Eu sou José, seu irmão, a quem você vendeu aos egípcios”24. O
auge do reconhecimento foi a interpretação que José fez dos acontecimentos que o
conduziram àquele momento. José interpretou seus sonhos e concluiu que tudo o que
aconteceu foi de acordo com o plano de Deus, por isso seus irmãos não deveriam se sentir
culpados25, pois foi Deus quem o enviou para o Egito em vista da sobrevivência dos irmãos
e da preservação da vida de muitos26. Essa certeza permitiu que José não se concentrasse
nas experiências passadas que lhe proporcionaram sofrimentos e dores, mas sim na
contemplação da totalidade dos acontecimentos vistos à luz da fé. O “dom divino da
interpretação” serviu de ponte para o encontro com o Deus criador e protagonista da história
humana, que atuou por meio da pessoa de José, que agiu com liberdade e responsabilidade e
restabeleceu a vida fraterna segundo o “sonho” de Deus.
A interpretação dos fatos à luz da fé em Deus proporcionou uma nova leitura dos
acontecimentos. A experiência de fé em Deus criador situou os conflitos familiares no
horizonte amplo da criação, e possibilitou que o “sonho” de Deus continuasse atuando na
história a partir da renovação do coração humano. A mensagem central desse “sonho”
divino encontra-se na origem da criação. Na sua origem, a humanidade foi criada na
gratuidade e no amor. No ato da criação, Deus se entregou como um presente no “sopro”
divino, doando aos seres humanos o “dom da participação dinâmica na vida divina”, a fim
de que sejam no mundo reflexo da imagem e semelhança de seu Criador. Esse dom precioso
está escondido no fundo dos corações humanos. É a luz que ilumina todos os seres humanos
que vêm a esse mundo. Por isso, no momento em que emergem as fraquezas, os limites
humanos, as feridas causadas pelas ofensas, calúnias e agressões, a humanidade precisa
redescobrir o tesouro escondido no seu coração, que lá foi colocado por seu Criador, e
permitir que a força do amor divino transforme em luz as trevas. Ao arriscar-se nessa
aventura do amor, a humanidade cresce diante de Deus em liberdade e responsabilidade e
no cuidado de si, dos outros e da casa comum.

3. José do Egito, prefiguração de Jesus Cristo

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