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OSCAR^ CVLLMANN

PEDRO
DISCIPVLO APOSTOLO •M ÁRTIR.

ASTE
SÃO PAVLO
PEDRO
DISCÍPULO - APÓSTOLO - MÁRTIR

A ST E
S Ã O PAVLO
ASSOCIAÇÃO DE SEMINÁEIOS TEOLÓGICOS EVANGÉLICOS

Conselho Deliberativo:

Júlio A. Ferreira, reitor do Seminário Presbiteriano de Campinas


Isnard Rocha, reitor da Faculdade de Teologia Metodista de Rudge Ramos
Jaci C. Maraschin, professor do Seminário Episcopal de São Paulo
Joaquim Beato, reitor do Seminário Presbiteriano do Centenário (Vitória,
Esp. Santo)
A. Ben Oliver, reitor do Seminário Batista do Rio de Janeiro
Wilson Giiedelha, reitor da Faculdade de Teologia Presbiteriana Indepen­
dente de São Paulo
Paulo Pierson, reitor do Seminário Presbiteriano do Recife
D»vid Mein, reitor do Seminário Batista do Recife
Roberto Grant, reitor do Seminário Teológico do Rio (Pedra de Guaratiba,
Guanabara)
João Mizulki, deão da Faculdade de Teologia Metodista Livre de São Paulo
Hardiug Meyer, professor da Faculdade de Teologia Sinodal Luterana de
São Leopoldo
Paulo Schelp, professor do Seminário Luterano Concórdia, de Pôrto Alegre
Thumion B ryant, reitor da Faculdade de Teologia B atista de São Paulo
Aharon Sapsezian, secretário geral da Associação de Seminários Teológicos
EVangélioos

EDIÇÕES DA A S T E

À venda:
VOCABÜLAKIO BÍBLICO , de J, — J. von Allmen
O PROTESTANTISM O BKASILEIRO, de E. Léonard
O CATOLICISM O KOMANO — um simpósio protestante
O PENSAMENTO DA EEFOEM A, de H. Strohl

No prel»:
A PESSOA DE CRISTO , de G. C. Berkouwer
BEUS ESTAVA EM CRISTO, de D. M. Baillie
O ENSINO DE JESUS, de T. W. Manson '

Em preparação:
PSICOLOGIA DA RELIGIÃO , de P. Johnson
JESUS DE NAZARÉ, de G. Bornkamm
TEOLOGIA DO AN TIG O TESTAMENTO, de G. von Rad
TEOLOGIA DO NÔVO TESTAMENTO', de A. Richardson
EPÍSTOLA AOS ROMANOS, de F. — J. Leenhardt
O PKEPARO DE SERMÕES, de A. W. Blackwood
A FÉ C KISTA, de G. Aulén
OSCAR CULLMANN
Doutor em Teologia, D. D., catedrático em Basüéia e Paris

PEDRO
DISCÍPULO - APÓSTOLO - MÁRTIR

H ISTÓRIA E T E O L O G IA

TR A D U ÇÃ O

DE

NELSON KIRST
E
JO RGE CESAR MOTA
Título do original alemão:
PKTRUS
Jünger — Apostel — Märtyrer
Zwingli Verlag Züricli, Stuttgart
2^ edição, 1960

Edição em língua portuguesa, com a ajuda do


Pundo de Educação Teológica, NoTa York, EE. UU.,
pela
Associação cie Seminários Teológicos Evangélicos
......... São Paulo
1964
A Universidade de Manchester
e principalmente à sua Faculdade de Teologia
em testemunho de gratidão
pelo grau de “ Doctor of Divinity"
Credo in unam sanctam catholicam
et apostolicam ecclesiam.
Tu és Pedro e sôbre esta pedra edificarei a minha Igreja,

Edificados sôbre o fundamento dos apóstolos e profetas.


Rogo por aquêles que crêem pela palavra dos apóstolos.

SrKíJOam%críZa SACo&úàa... 9 15 . .
í n d i c e
Prefácio da Primeira Edição ................................................... 9
Prefácio da Segunda Edição ................................................... 13

PRIMEIRA PARTE; A QUESTÃOHISTÓRICA ..................... 17


Capítulo I: Pedro, o Discipiilo ................................................. 19
1.°) Nome, procedência e profissão de Pedro .................. 19
2.'*) Sua Posição no Circulo dos Discípulos ...................... 25
Capítulo II: Pedro, o Apóstolo ............................................... 35
1.°) A Direção da Comunidade Primitiva .......................... 35
2.®) A Missão a Serviço da Comunidade Primitiva Judeo-
Cristã ...................................................................................... 43
3") A Questão da Vocação Apostólica .............................. 62
4.°) As concepções Teológicas do Apóstolo ........................ 72
Capitulo III: Pedro, o Mártir ..................................................... 77
1°) O Problema ......................................................................... 77
2°) História do Problema da Estada de Pedro em Roma 78
3.“)' As Fontes Literárias ........................................................ 85
4.°) As Fontes Litúrgicas ........................................................ 135
5 “) As Escavações ..................................................................... 145
SEGUNDA PAHTE: A QUESTÃOEXEQÉTICO-TEOLÓGICA 176
O Problema .................................................................................... 176
Capítulo I: A Questão Exegética deMt16.17-19 180
1°) História das Principais Interpretações ........................... 180
2.°) O Contexto de Mt 16.17-19 ............................................ 194
3.°) Autenticidade e Sentido do Texto ................................. 212
Capitulo II: A Questão Dogmática da ApUcaçSo de Mt 13 .17
e segs. à Igreja Posterior ................................................. 24a
1.°) O Fundamento da Igreja ................................................ 244
2°) A Direção da Igreja ............................................................ 253
índice dos Autores Citados ....................................... • ............. 271
índice das Passagens Bíblicas ................................................. 233
Antes de nos decidirmos a dedicar êste livro à Universidade
de Manchester e particularmente à sua Faculdade de Teologia,
saldando assim uma dívida de gratidão, e exprimindo nosso res­
peito e amistosa colaboração, tivemos a intenção de dedicá-lo aos
nossos amigos católicos romanos, especialmente aos que, entre
êles, são teólogos, aos quais nos consideramos ligados não só
pela estima que lhes devemos no plano puramente humano, mas
também por razões da fé que nos é comum. Deixamos de fazê-
lo, entretanto, porque a última parte do nosso trabalho, devido
à sua natureza, não poderia contar com a aprovação de sua\
igreja e, assim, daria motivos a más interpretações. Podemos,
porém, afirmar-lhes que, durante o preparo do capítulo final, re­
cordamos várias das palestras que com êles entretivemos. Previ­
mos igualmente novas objeções que os nossos argumentos provã-
velmente provocariam em seu meio e, durante a elaboração da­
quela última parte, constantemente nos vimos em silenciosa dis­
cussão com êles, mau grado sua ausência.
O que publicamos até agora sôbre o primitivo pensamento
teológico cristão, encontramo-lo também em círculos católicos ro­
manos com autêntica compreensão, e por isso esperamos e dese­
jamos que justamente os argumento sôbre o que nos pode se­
parar (tratado com tôda franqueza no presente estudo, ao lado
de muito mais que deverá receber a sua aprovação) não ve­
nham prejudicar o diálogo das confissões cristãs mas, ao contrá­
rio, favorecê-lo.

Êste diálogo deve ser continuado, apesar da encíclica “Hu-


mani Generis” e agora, talvez, mais do que nunca. Ao que
nos consta, as admoestações dêsse documento não visam às discus­
sões com cristãos não romanos, nas quais cada partido defende cla­
ramente o seu ponto de vista. De fato, não será silenciando sôbre
os motivos de divergência que se melhorará a mútua compreen­
são. Onde quer que o mesmo Nome seja invocado, e o
mesmo sincero esforço se faça para se ouvirem uns aos outros.
não se deve recear a discussão franca daqueles temas em que,
do ponto de vista humano, pareceria impossível qualquer espé­
cie de acôrdo. Constantemente se verifica, em assembléias de re­
presentantes das diversas confissões, que se nutre um enorme
empenho para não se mencionarem senão os pontos chamados
pacíficos, e os outros são intencionalmente evitados; e, no entanto,
sempre se acaba chegando ao momento em que não ê mais possí­
vel manter essa atitude. E êsse seria precisamente o instante
que se deveria aproveitar para a verificação das razões pelas
quais não existe concordância, e também para se escutarem uns
aos outros, e não, como soe acontecer, para outra vez se desen­
cadear a luta ou utòpicamente se almejarem conversões de lado a
lado. No caso de algum dos argumentos de nosso livro vir a ser
usüdo como arma contra a Igreja Romana, tal uso polemico nâo
corresponde aos nossos propósitos. Isto porque, em nossa opinião,
também as simples palestras em comum, de teólogos romanos e
protestantes, justamente com as realizações ecumênicas dos últi­
mos decênios, constituem um dos acontecimentos agradáveis da
História eclesiástica de nossa época. *

Nesse espírito (partindo dos princípios exegético-históricos


que determinam todo o trabalho) escrevemos a última parte dêste
livro. Esperamos que essa secção provoque, em ambos os seto­
res, manifestações acêrca das questões fundamentais que causam
a separação da cristandade. Porque a realidade é que, depois
de têrmos disputado tanto, em tempos Idos, sôbre tais questões,
acostumamo-nos de tal maneira, em ambas as partes, ao fato de
nâo concordarmos no ponto de partida, que freqüentemente temos
por desnecessário sequer tocar no assunto e, o que é pior, até
refletir sôbre êle. Sem levar em conta o fato de que, em tais
circunstâncias, as discussões sôbre dogmas e questões isoladas,
como tiveram lugar em tempos mais recentes, são mais ou menos
inúteis, surgem dessa maneira preconceitos e mal-entendidos re­
cíprocos, cujo afastamento deveria ser o primeiro resultado, e
isto, por motivos científicos bem como por razões de fé. O reini­
cio do colóquio sôbre o primado romano seria conveniente, visto
que os argumentos não são mais os mesmos dos séculos X V I
e XVII.

No presente estudo só no último parágrafo ventilamos pro­


positadamente a questão dogmática pois, como um todo, êste li­
vro se destina a ser uma contribuição àquela parte da ciência da
História que se ocupa dos primórdios da fé e da Igreja cristã.
Caso algum bibliotecário esteja em dúvida quanto à classificação
dêste volume, gostaria de ajudá-lo antecipadamente a sair dêsse
embaraço: apesar de seu subtítulo, e apesar de nosso interêsse
pessoal pela questão teológica de Pedro, o que, mesmo como
historiógrafo não tentamos ocultar, não pertence à dogmática,
nem à Literamra sôbre os detalhes ecumênicos, e nem à polêmica,,
mas à História do Cristianismo primitivo.
O que aqui apresentamos é um trabalho histórico sôbre o
apóstolo Pedro ( 1). A história de Pedro, porém, flui diretamen­
te da sua utilização dentro da evolução histórica posterior.
Essa utilização, no entanto, é simultâneamente de natureza teoló­
gica, e a história de Pedro tornou-se objeto de uma afirmação
dogmática da Igreja Católica Romana. Assim, num trabalho his­
tórico que visa ocupar-se de Pedro, não pode ser contornado o
problema teológico e o mesmo só pode ser examinado em íntima
conexão com a História.
Oxalá a aplicação fiel dos métodos rigorosamente históricos,
pelos quais nos empenhamos na análise dessa questão, constitua
uma base para a controvérsia entre historiógrafos não-cristãos e
cristãos e entre teólogos cristãos de confissões separadas, que pro­
fessam em comum uma “ecclesia catholica et apostolica” mas acre­
ditam vê-la concretizada de maneira diversa, no presente.

Páscoa de 1952.

(1) Isto nos pareceu tanto mais importante, por possuirmos poucos
trabalhos científicos sôbre Pedro- As m onografias sôbre Paulo são muito
mais numerosas- As publicações gerais mais recentes sôbre Pedro são: a)
protestantes: F- SIEFFERT, Realenzyklopãdie für Theologie und Kirche, 3-®
ed-, art- “ Petrus” , vol- 15, p- 190 e sesrs-; F- J- FO AK E S-jA CK SO N , Peter,
Prince of Aoosfles, A Study in the History and Tradition of Christíanitv,
1927;W . BRANDT,Sf/Tzon Petrus, s-d-(obra de vulgarização;) E-FASCHER,
Realenzyklopãdie d-kl- Alt. Pauly-W issow a, art- “ Petrus” , col 1335 e segs.;
b) católicas: C- FOUARD, S. Pierre et les premières années du christianis­
me; L- FILLION, Dictionnaire de la Bible, art- “ S. Pierre” ; A. T R IC O T ,
Dictionnaire de Théologie catholique, art- “ S. Pierre” , 1935: M. BESSON,
S. Pierre et les origines de la primauté romaine, 1928 (hem ilustradib) ;
M- MEINERTZ, Lexikon für Theologie und Kirche, art. “ Petrus” , 1936;
recentemente P. GAECH TER, Petrus und seine Zeit, 1958-
No prefácio da primeira edição expressamos a esperança
de que o emprêgo dos métodos históricos, que nos empenhamos
por seguir em nosso livro, se tornasse a base para uma nova
discussão de um antigo problema, entre historiógrafos não-cris~
tãos e cristãos e, principalmente, também entre cristãos de confis­
sões diferentes. Tal esperança cumpriu-se amplamente. Dessa
forma podemos atestar, agradecidos, que os nossos companheiros
de diálogo, católicos quase que sem exceção, em artigos e em li­
vros dedicados especialmente à crítica de nosso trabalho, discuti­
remos com lealdade científica apesar da energia com que defen­
deram o seu ponto de vista. Não se Umitaram êles a um ou outro
ponto, mas penetraram objetivamente em tôdas as partes do nosso
estudo. Também recebemos de historiógrafos profanos e de teólo­
gos protestantes muitas críticas estimulantes que nos incentiva­
ram a prosseguir, das quais estamos empenhados em tirar pro­
veito, inclusive nos pontos em que discordam das nossas inter­
pretações. Infrutíferas são só as críticas que partem de uma
questão isolada dentro de um livro e põem-se a atacar todos os
problemas que se encontram fora daquele estreito horizonte.
Em vista disso, desejamos que nesta nova edição, a ques­
tão da “autenticidade” de M t 1 6 . 1 7 - 1 9 não desloque demasiada­
mente para segunda plana tôdas as outras, como aconteceu em
muitos casos, como, por exemplo, em nosso exame do problema
de Tiago, o nosso parecer sôbre as escavações sob a B asílk a de
São Pedro, e especialmente a interpretação do importante capi­
tulo da Primeira Epístola de Clemente, a qual, quando mencionada,
é tratada com estranha pressa pelo critico, sob a alegação do
emprêgo de métodos helenistas. Vários críticos só souberam cons­
tatar, em todo o livro (2 ), que defendemos a “autenticidade” de

(2) Lamentàvelmente, partindo às vêzes de um preconceito um tanto


primitivo (que se deveria esperar estivesse superado), como se veredito de
inautenticidade fôsse critério de um estudo científico especial e, vice-
versa, como se resultados contraditórios fôssem indíces suspeitos de um
procedimento “ não crítico” ! É evidente que levamos a sério argumentos
novos e objetivos contra a autenticidade.
Mt 16.17-19. Não deveriam também êsses pesquisadores, no in­
terêsse de uma discussão proveitosa, já que se limitam à sua opi­
nião sôbre o nosso exame dessa passagem, (juntamente com mui­
tos outros críticos) peio menos ponderar seriamente nossa suges­
tão de transferir os referidos versículos, cuja conexão com a cena
de Cesaréia de Filipe negamos, para o contexto de uma antiga
tradição referente a diálogos durante a última ceia? Principal­
mente a nova argumentação, sôbre a qual baseamos essa tese na
T. W. Manson-Gedenkschrift ■€ na presente 2.® edição, deveria
demonstrar que não há uma diferença metódica tão grande em
procurar-se êsse contexto, como muitos defensores da “inaatenti-
cidade” , em uma aparição ou na história da Paixão, a qual acre­
ditamos poder provar, em todo caso, com vestígios mais claros
em um considerável número de passagens.

Visto que tencionamos dedicar um trecho especial, sob o ti­


tulo “Petrus under der P a p a f’, á questão teológica do primado no
sentido restrito, tal qual resultou das respostas católicas ao nos­
so livro, cogitamos inicialmente em só “revisar“ a 1.°' edição do
nosso livro, sem apresentar alterações fundamentais. No entan­
to, uma vez que os problemas históricos e exegéticos são o seu
assunto principal, revelou-se que, em vista dos muitos trabalhos
acêrca do problema do Pedro histórico (alèm das criticas, prò-^
priamente ditas, à edição), seria inevitável um reexame com­
pleto de quase todo o livro. Por um lado, teólogos católicos
reestudaram a relação entre Tiago e Pedro, reconhecendo com
razão a sua importância para o primado. Por outro, K. Heussi
asseverou mais uma vez, quanto à questão da estada ou não de
Pedro em Roma — em continuação à sua polêmica contra H.
Lietzmann, em uma nova série de escritos, agora também contra
nós e K. Aland e com uma paixão ainda maior (3 ) — a sua tese,
segundo a qual o apóstolo “jamais pôs os pés na cidade do Tibre” .
O debate sôbre a Importância dos resultados das escavações sob a
Basílica de São Pedro em Roma motivou importantes publicações.
E as próprias escavações continuam. Finalmente, surgiram novos
estudos significativos sôbre Mt 16. Antes de tudo, as observa­
ções tiveram de ser consideràvelmente aumentadas, para incluir
pelo menos os mais importantes dêsses trabalhos. Êles demons-

(3) Em 1953 surgiu in Deutsches Pfarrerblatt sua crítica ao nosso


livro. Queiram os leitores do referido artigo (caso tenham lido também
0 nosso livro) julgar se aquêle pode ser classificado de objetivo ou mes­
mo de honesto.
tram que, em quase todo terrene, pelo menas da discussão histó­
rica, arqueológica e exegética, as fontes em gérai não estão dis­
postas como se os eruditos católicos defendessem uma certa opi­
nião, e os protestantes a oposta. Isto não deixa de ser um si­
nal agradável e promissor, tanto para o diálogo ecumênico como
para os progressos da liberdade de pesquisa. Dos problemas
abordados na parte histórica do nosso livro, só a questão de Tia­
go, na qual é possível verificar um certo consenso católico, cons­
titui exceção nesse sentido.
Ê evidente que, apesar de todo o empenho pela objetividade,
de ambos os lados, a verdadeira questão teológica do primado
continua a separar as confissões, embora não sejam uniformes q
maneira de fundamentar o primado, do lado católico, nem a ma­
neira de contestá-lo, do protestante. Os argumentos referentes a
essa polêmica, no final do nosso livro, foram os menos alterados.
Isto, não porque não nos tivéssemos empenhado, nesse sentido, a
aproveitar a discussão, mas, ao contrário, porque tencionamos de­
dicar-lhe, como mencionamos acima, um trabalho especial para
corresponder ao grande número de tomadas de posição católicas.
Entretanto, tendo em vista o estabelecimento da nossa tese básica da
diferença entre p apostolado e a direção da Igreja, que prossegue,
decidimos deixar o último capítulo como está, limitando-nos, por
ora, a corrigir nessas páginas formulações equívocas e errôneas.
Em nossa publicação posterior, esperamos poder discorrer nova­
mente sôbre o problema, de maneira a considerar melhor os con-
tra-argumentos católicos. A questão da forma da sucessão deverá
ser reexaminada em conexão com o problema da tradição, sôbre o
qual discorreremos em outro lugar. Nossos presentes estudos sô­
bre a escatologia do Nôvo Testamento também deverão esclare­
cer alguns pontos. Mas também só poderemos continuar a ser­
vir à causa se, por enquanto, continuarmos a debater as questões
puramente históricas sôbre Pedro, que são básicas para as teoló­
gicas. Visto que elas se revestem da maior importância, tam­
bém nesta segunda edição egperamos que, na sua nova roupagem,
nosso livro sôbre Pedro continue a facilitar e a fomentar a orien­
tação e a discussão objetiva.
Agradecemos ainda às nossas irmãs a conclusão e revisão
do manuscrito além de outros serviços prestados. Ao nosso as­
sistente, Pastor W illy Rordorf, agradecemos também sua colabo-
roção.

Outubro de 1960.
A QUESTÃO HISTÓRICA

As fontes de que dispomos sôbre Pedro são, principalmente,


os escritos do Nôvo Testamento. Para o último período de sua
vida teremos de utilizar testemunhos arqueológicos, bem como
litúrgicos, e texto dos Padres apostólicos e dos Padres da Igreja.
As informações que possuímos sôbre Pedro podem ser agru­
padas sob os três seguintes títulos: 1.°) Pedro, o discípulo, 2 °)
Pedro, 0 apóstolo, 3.®) Pedro, o mártir. Em conexão com o mar­
tírio teremos de abordar a questão, em princípio importante, da
estada de Pedro em Roma.
C A P ÍT U L O I

PEDRO, O DISCÍPULO

IP ) Nome, Procedência, Profissão

Como fontes para o estudo de Pedro, o discípulo, entram em


consideração apenas os evangeliios canônicos, pois os apócrifos
só lhes acrescem material lendário.
A tentativa fantástica de negar a existência histórica de Pe­
dro e de explicar “o Pedro cristão como personificação do Pe­
tros ou Mitra pérsico” , não necessita de refutação e apenas é men­
cionada a título de curiosidade (4).
Começamos com a questão do nome de Pedro, que se rela­
ciona com a da sua importância entre os doze.
0 nome original do apóstolo é Simeão ou Simão. Simeão (5)
é um nome hebraico, difundido entre os judeus. Só em Atos 1 5 .14
e II Pe 1 . 1 é que lemos essa forma semítica, relacionada a Pedro
(6). Os Evangelhos apresentam o nome grego: Simão. Êste não
resultou, ao contrário do que se supunha, da grecização do nome
hebraico, mas é autênticamente grego (7), sendo testemunhado já
por Arístófanes. É provável que o nome Simeão, originalmente he­
braico, tenha sido substituído posteriormente pelo grego, que soa'
semelhantemente. Em todo caso, não me parece completamente
impossível que Pedro tenha recebido, de antemão, um nome gre­
go, como seu irmão André, visto que isto também aconteceu com
Filipe, 0 qual, segundo Jo 1.4 4 , provém da mesma localidade
de Betsaida, tanto mais que está comprovada a influência helenis-

(4) Vide A. DREW S, Die Petruslegende, 1924.


(5) Shimeon.
(6) Em At 15.14 , essa forma é empregada propositadamente, visto
que é T iago quem fala. Em II Pe 1 .1 , a variante Smon (B) é certamente
secundária. A identidade entre aquêle Simeão (At 15.14 ) e Pedro é ne­
gada finalmente mais uma vez por E. FUCHS (Z. Th. K. 1951, p^ 350).
(7) Vide F. BLASS-A. DEBRUNNER, Grammatik des Neutestament-
lichen Griechischen, 7-^ ed-, 1943, § 53, 2 e FIC K -BE C H TE L, Die griechi--
schen Personennamen, 1894, p. 30, 251. V. também A. DEISSMANN,-
Bibelstudien, 1895, p. 184, obs. 1. ■•
ta sôbre essa povoação (8). Também não é impossível que Pe­
dro tenha recebido, de antemão e simultâneamente, o nome hebrai­
co Siraeão e o grego Simão, que soa de modo semelhante, fato
costumeiro na Diáspora e que, provàvelmente, também temos que
aceitar para Paulo-Saulo.
Além dêsse nome, êle tem um cognome. Kepha. É uma pala­
vra aramaica e significa “ pedra” , “ rocha” . Kepha não é, pois, co­
mo poderíamos estar inclinados a crer, um nome próprio (9).
Não é um prenome corrente entre os judeus, mas um substantivo
comum. No Nôvo Testamento encontramos êsse cognome, ora
na SLia forma aramaica, logo transcrito em letras gregas (assim
geralmente em Paulo — G l 1.18 ; 2.9; 2 .11 ( 10 ) ; I Co 1.12 ;
3 .2 2 ; 9 . 5 ; 15 .5 ) , ora traduzido para o grego Petros; Paulo es­
creve apenas uma vez Petros; G l 2 .7 e 8 ( 1 1 ) , talvez por estar
citando nesse ponto um documento oficial, no qual foi usada a
forma Petros na tradução grega. Os evangelhos apresentam ora
Simão, ora Pedro, ora Simão-Pedro (12 ). As traduções sírias
trazem Simão Kefa. Nos casos em que a palavra foi conservada
aramaica dentro de um conjunto grego, acrescenta-se no fim um
s fina! grego, para dar-lhe uma terminação grega: Kephas. A tra­
dução grega para Kepha seria, segundo a Septuaginta, em J r 4.29
e Jó 30.6 de preferência Petra ( 13 ) , que significa “ rocha” . Por

(8) V. adiante p. 24.


Í9) L=so é afirmado injustamente por T . ZAHN, Kommentar zum
Neuen Testament, das Evangelium das Matthäus, 3.® ed., 1922, p- 540, sem
a apresentação de uma prova. Também M. J. LAGRANGE, L'Evangile se­
lon St. Matthieu, 5.® ed., 1941, p. 324, o considera possível
(10) A opinião completamente infundada de que em Gl 2 .11 se trata
de um outro Cefas que nada tem a ver com Pedro, e que é um dos 70
discípulos, surge na Antigüidade em CLEM EN TE DE ALEXANDRIA,
Hypot. V (Eus. H. E. I, 12, 2), depois, nos catálogos dos apóstolos (Vide
T . SCHERMANN, Prophetenund Apostellengen nebst Jängerkatalogen,
1907, p. 302 e seg.), recentemente em j. M. RO BER TSO N , Die Evangelien­
mythen, 1910, p. 103 e D. W. RIDDLE, The Cephas-Peter Problem and a
possible Solution (Journal of bibücal Literature, 1940, p. 169 e segs.).
(11) Contrário a tôdas as testemunhas textuais, A. MERX. Die vier
kanonischen Evangetien nach ihrem ältesten bekannten Text, 11, 1, Das
Evangelium Matthäus, 1902, p. 161, considera “ Pétros” como secundário e
aceita nessas passagens um “ Kephãs” original.
(12) O Quarto Evangelho apresenta de preferência: Simon Petros.
(13) Em outras ocasiões “ pétra” é, na Septuaginta, tradução de
fur e sela’. V. H OTCH -RED PATH , A Concordance to the Septuagint and
the Greek Version of the Old Testament, 1897-1900 O aramaico Kepha
é traduzido por “ lithos” , como o demonstra A. DELL, Mt 16 .17-19
(ZNW , 1914, p. 19, e segs.), baseado no Evangelium Hierosolymiianum e na
Siriaca Sinaitica. Apesar disso, é certo que Cefas significa em aramaico
simultâneamente “pedra” e “ rocha” . A s conclusões que A. DELL tira da
tradução “líthos” devem ser rejeitadas. V. a próxima observação.
ser essa palavra, porém, feminina no grego e por ter no fim a ter­
minação a, escolhe-se, no Nôvo Testamento, para a tradução, uma
palavra grega menos corrente, que tem a terminação masculina
grega os: Petros (Jo 1.4 2 ). A diferença de significação entre
Petros e Petra não é essencial, pois mesmo que Petra signifique
originalmente, de preferência, rocha compacta e Petros, de prefe­
rência, o bloco de pedra isolado, tal diferença não é observada ri­
gorosamente (14 ). O fato de ter existido no aramaico o nome
próprio Petros, que significava, provàvelmente, “ primogênito”
(15 ) , poderia ter influenciado a preferência pela forma Petros.
Mas quanto a isso não há certeza.
Em todo caso, o fato de que a palavra Kepha foi traduzido para
o grego é significativo. Êle prova que não se trata de um nome
próprio, pois nomes próprios não são traduzidos. É verdade que
se tentou provar já ter existido o nome Pedro em época pré-cris-
tã, como abreviatura do Petronius latino, e que aparece em Jose­
fo (16 ), o escritor judeu. Tal tentativa, porém, fracassou Õ ’^)-
Só por ser Pedro para nós, hoje, um nome próprio muito em
voga, somos tentados a esquecer que Kepha é um substantivo co­
mum. Contudo, isto é importante, se quisermos julgar corretamente
o alcance do fato de que êsse cognome foi dado a Pedro por Je­
sus. Corresponde ao costume judaico, escolher como cognome,
palavras que aludam de qualquer maneira a uma situação espe­
cial, como promissão, e que comprometam aquêle que recebeu tal
cognome. Conhecemos tais exemplos do Antigo Testamento (18 ),

(14) Em HOMERO, Od. IX 243; HESIODO, Teog. 675 e Sap. 17 .17


(L X X ), “ pétra” é empregada no sentido de “ pedra” , “ rochedo” . Também
Gaüeno, XII, 194, afirma que ambas as palavras são permutáveis. A.
DELL, op- cit-, p- 19s-, acentua, por isso, erradamente, que Kepha e
Petros significam “ pedra” e não “ rocha” .
(15) J- LEVY, Neuhebräisch-Ckaidäisches Wörterbuch, Í876 e segs-,
DALMAN, Aramäisches Wörterbuch, 2-^ ed-, 1922; STRACK-BILLERBECK,.
Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, tom. 1, p. 530.
(16) jOS- Ant., 18, 6, 3. Na verdade, porém, trata-se de má trans­
crição da palavras “ prõtos” -
(17) A. MERX, op. cit., p. 160 e segs., empreendeu a tentativa. V.
também A- M EYER, Jesu Muttersprache, 1896, p- 51. Foi combatido por
A. DELL, op- cit-, p- 14 e segs-: “O nome próprio Pedro absolutamente não
aparece na literatura profana; êle surge pela primeira vez em Tertuliano” .
Por outro lado, existia, como já foi mencionado (V. acima obs- 15),
um nome aramaico pet(e)ros, que podera ter uma relação com peter “ primo­
gênito” . Está totalmente fora de cogitação que o grego “ Petros” tenha
sido derivado daí, e que tenha dado motivos para uma falsa retradução,
Kepha para o aramaico, considerando-se o fato de que para Pauio, Cgfas
já é a designação usual, da qual derivou posteriormente Pedro-
(18) Gn 17 .5 e segs-; 17-15; Gn 32,29; Is 62.2; 65-15. V. também.
JUSTINO, Dial. c. Tryph. 106, 3.
e também os discípulos recebiam, de modo idêntico, um cognome,
conferido por seu rabi (19 ). Jesus mesmo não o conferiu apenas
a Pedro, mas também aos filhos de Zebedeu: Boanerges, que em
Mc 3 .1 7 , é explicado como “ filhos do trovão” (20). Para com­
preendermos perfeitamente qual a impressão que tal cognome pro­
vocou necessariamente em Pedro e nas outras testemunhas dêsse
acontecimento, seria bom não traduzir a palavra Cefas pela pala­
vra Pedro, hoje demasiadamente corrente, e que está para nós,
por demais cristalizada como nome próprio, mas pela palavra “ro­
cha” ; portanto: Simão Rocha (2 1).
A concessão de tal nome parte de Jesus, segundo testemunho'
unânime dos evangelhos. Ela não pode ser atribuída aos condis­
cípulos de Jesus, os quais lhe teriam conferido tal nome honorá­
rio, baseados no fato de que êle tenha sido o primeiro a ver o Se­
nhor ressurgido (22). Pois não é de se esperar que, nesse caso,
0 nome se tivesse imposto da maneira como o constatamos (23).
Entretanto, ainda não se pode afirmar que êsse nome lhe foi dado
na situação que se nos apresenta em Mt 16. A concordância dos
evangelistas, no que se refere ao fato em si, é tanto mais notável,
por divergirem totalmente entre si, no tocante à exposição das
circunstâncias externas, nas quais se efetuou essa concessão de
nome. Segundo Mt 16 .18 , a passagem bíblica principal, com a
qual teremos de ocupar-nos minuciosamente, Jesus teria dado o
cognome a Simão sòmente na oportunidade em que êle simultâ-

(19) Vide P- FIEBIG, Gleichnisreden lesu. 1912, p. 53 e segs.


(20) V. em referência a í s f o E. PREUSCHEN, Die Donnersöhne
(zmv, 1917, p. 141 e segs.) e F. SCH U LTH ESS, Zur Sprache der Evange­
lien (ZN W , 1922, p. 243 e segs.).
(2 !) Na sua tradução francesa dos Evangelhos, 1943, H. PERN O T
escolheu acertadamente a palavra “ Roc” e parece-nos injustificável que se
tenha recebido essa sugestão com alguma ironia.
(22) Assim K, G- G O E T Z, Petrus als Gründer und Oberhaupt der
Kirche und Schauer von Gesichten nach den altchristlichen Berichten und
Legenden, 1927, p. 67 e segs. Além disso, E. DINKLER, Die ersten Pe­
trusdarstellungen. Ein archäologischer Beitrag zur Geschichte des Pe-
irusprimats {Marburger Jahrbuch für Kunstwissenschaft, 1939), p. 2 e segs.,
id. Die Petrus-Rom-Frage (Theol. Rundschau 1959, p. 196 e segs.) e E.
HIRSCH, Frühgeschichte des Evangeliums, II, 1941, p. 306 e segs.
(23) E. DINKLER, op. cit., diz corretamente que durante a vida
Jesus emprega o nome Simão ao falar com Pedro. Isto, porém, dificilmente
vem demonstrar que não possa tê-lo distinguido com o nome honorífico de
“ Pedra” . Êle provàvelmente também não usava “ Boanerges” ao dirigir-se
aos filhos de Zebedeu. Em vista disso, o fato mencionado também por E.
DINKLER, de que ao lado da confissão óphthe Kephã encontramos um
óphthe Símoni não nos permite concluir que o cognome foi conferido a
Pedro só depois da Páscoa. Correto, porém, é que êle se impôs só a partir
dêsse momento — mas em lembrança de uma palavra de Jesus-
neamente o explicou de modo mais acurado, e no momento em que
Pedro, segundo Mc 8.27 e segs., fêz sua célebre profissão de fé em
Jesus, em Cesaréia de Filipe. Lá Jesus pergunta aos seus discí­
pulos; “ Quem dizem os homens que eu sou?” (24). Os dis­
cípulos participam-lhe as diversas opiniões difundidas entre o po­
vo. Em seguida Jesus pergunta; “ Mas vós, quem dizeis vós que
eu sou?” Pedro toma a palavra e diz; “ Tu és o Cristo” (Mt.:
0 Filho do Deus vivo). Segundo Mt 16 .17 , Jesus responde:
“ Bem-aventurado és, Simão Barjonas, pois não foi carne e sangue
quem to revelou, mas meu Pai que está nos céus” , e continua:
“ também eu te digo que tu és Pedro, e sôbre esta pedra edifica­
rei 0 minha Igreja” .
Portanto, da mesma maneira pela qual Pedro dá um nome
a Jesus, 0 qual mais tarde é regularmente acrescentado ao seu
nome e, finalmente, fixado como nome próprio; Christos, em he­
braico Messias, i. e. ungido, assim, segundo Mateus, Jesus dá a
Pedro um cognome; “ Pedra” ,
Teria Jesus realmente conferido o cognome a Pedro por oca­
sião dêsse ato mencionado no Evangelho? Essa pergunta é per­
tinente porque, segundo Mc 3 .16 , o acontecimento a que se re­
fere, excluída a adição explicativa, teve lugar em outra oportuni­
dade, e, por sua vez, Jo 1.4 2 apresenta o concessão do nome
ainda em outra circunstância. Conforme Mc 3 .16 , Jesus deno­
minou “ Pedra” a Pedro já quando da vocação dos discípulos (25)
e, segundo Jo 1.4 2 , mais cedo ainda, no primeiro encontro na
Judéia, embora Jesus fale aí no futuro; “ Tu serás chamado
Cefas” . Dessas variações que em realidade podem ser harmo­
nizadas (26), concluímos que a lembrança do momento em que
Jesus atribuiu a Pedro o cognome perdeu-se na tradição, como;
aliás, acontece com a “ moldura” de muitas outras narrativas dos
Evangelhos.
(24) Mt 16.13 diz, de acôrdo com as melhores testemunhas textuais:
“ o Filho de homem (tòn yiòn toa anthrópou) em lugar de “eu” {me)-
Confrontando-se, porém, com Mc 8.28, essa passagem é certamente secun­
dária, visto que a resposta já está antecipada na pergunta.
(25) M. J. LAGRANGE, L’evangile selon St. Marc, 6.“ éd., 1942, p. 65,
juntamente com A. LO ISY, J. KN ABEN BAU ER e outfos, considera essa
ocasião a original; “ Le moment choisi par Marc est probablement celui qui
se rapproche le plus des faits, parce que dès lors Simon devient la pierre
angulaire de l’édifice commencé par Jésus” -
Conseqüentemente, Marcos evita, só a partir dêsse ponto, o nome
Simão, o qual usara regularmente. Só no cap. 14.37, na cena do Getsêmani,
Jesus lhe d iz; “Simão, tu dormes?” Talvez Marcos queira exprim ir in­
tencionalmente que nessa situação Simão não é chamado de “ Rocha” por
Jesus.
(26) V. adiante, pág. 200 e segs.
Não devemos perder isso de vista quando chegarmos à exe­
gese minuciosa de Mt 16.16 e segs. Em principio, o momento da
concessão do nome não tem importância fundamental Importante
é, por outro lado, 1.°) o fato de que, segundo o testemunho unâ­
nime dos evangelhos de Marcos, Mateus e João, Jesus conferiu a
Pedro êsse nome; 2.°) que, segundo uma tradição transmitida ape­
nas por Mateus, Jesus explicou êsse nome numa ocasião especial,
com o fito de fundar a sua Igreja sôbre o apóstolo que êle qualifi­
cou de rocha. ,
Dos evangelhos podemos ainda deduzir os seguintes dados
biográficos: Pedro é: segundo Mt 16 .17 , filho de Jonas (ara­
maico: barjonas) que, de acôrdo com Jo 1.4 2 e 2 1 . 1 5 e segs. é
um diminutivo de Johannes. É necessário que permaneça duvi­
dosa a correção de uma outra explicação, que se reporta a um
dicionário judaico, segundo a qual, o aramaico barjonas não te­
ria nada a ver com João, significando, porém, o mesmo que “ ter­
rorista” (27). Pedro tei'ia sido filiado, então, ao partido dos
inimigos decididos dos romanos, dos chamados “ zelotes” , como
Simão, 0 “ Zelote” (Lc 6 .15 , At 1 .1 3 ( 2 8 ) e talvez Judas ísca-
riotes (29).
Conforme Jo 1.44, êle é natural de Betsaida ( “ cidade de pes­
cadores” ), que segundo a mais provável das hipóteses, estaria
localizada na margem leste do Jordão, nas proximidades de sua
desembocadura no lago Genesaré (30). Apesar de ser uma lo­
calidade judaica, merece atenção o fato de estar situada num am­
biente pagão, 0 que também se deduz, segundo Jo 1.44, dos nomes
gregos do irmão de Pedro, André, e de Filipe, que também provém
de Betsaida, bem como provàvelmente o do próprio Simão (3 1).
“ Aquêle que se criou em Betsaida certamente não só entendia o
grego, mas era também conhecedor e estava acostumado com a
(27) ROBERT EISLER, Jesous basileus ou basileusas, 1929, p. 67s.,
segundo ELIESER BEN JEHUDA, Thesaurus totius hebraitatis, Vol. lí,
p. 623. Vide G. DALMAN, Aramäisch-neuhebräisches Wörterbuch, 2.® ed.,
1922, 65a; provàvelmente um estrangeirismo arcaico. Para reforçar essa
tese, poder-se-ia dizer que Jonas não é empregado como abreviação para
Johannes em nenhum outro iugar.
(28) Kananaios em Mc 3-18, Mt 10.4, que não pode ser traduzido
por cananeu, mar por zelador ou entusiasta, e que se baseia em uma trans­
c r i t o 'da palavra aramaica kanana.
(29) Poder-se-ia derivar Iscariotes de sicarius = bandido (J. WELL-
HAUSEN, Das Evangelium Marci übersetzt und erklärt, 1909, p. 23, men­
ciona essa explicação mas não a considera provável). Vide F. SCH U L-
TH ES, Das Problem der Sprache Jesu, 1919, p. 54 e segs.
(30) Vide G. DALMAN, Orte und Wege Jesu, 3.=^ ed., 1924, p. 172.
Edição francesa; Les itinéraires de Jesus, 1930, p. 215 e segs.
(31) V- acima p- 19.
cultura grega, devido ao contato com estranhos” (32). Eis por­
que, conforme Jo 1 2 .2 1, se dirigem iogo a Filipe, que é natural de
Betsaida. Caso a informação do Evangelho de João, sôbre a
procedência de Pedro dessa localidade, seja correta, poderia es­
tar relacionado a isso o fato de Pedro defender, de acôrdo com
Aí 10 e 1 1 , um ponto de vista universal e não estar, como veremos,
muito afastado de Paulo, teologicamente. Isso não impede que
em At 4 .13 , êle juntamente com João, seja qualificado de “ inculto”
(33), pois não era “ homem de estudos” , quer do ponto de vista
judeu quer do grego.
Posteriormente o encontramos radicado em Cafarnaum (Mc
1.2 9 paral.) e, ao que tudo indica, Jesus freqüentou seguidamente
sua casa, talvez até tenha residido com êle por pouco tempo (Mt
8. 14). '
Êle é pescador de profissão (Mc 1 . 1 6 p aral; Lc 5 .2 ; Jo
2 1.3 ) . Parece exercê-la num empreendimento comum com os dois ;
filhos de Zebedeu que são denominados “ sócios” (Lc 5 .10 ) (34).
Segundo o testemunho dos evangelhos sinóticos (Mc 1.2 9 e
segs. paral.) e o de Paulo (I Co 9 .5 ), Pedro é casado. Informações
posteriores sôbre os seus filhos e o martírio de sua espôsa, ao
qual teria presenciado (36), são lendárias.
A interpretação joanina (Jo 1.3 5 e segs.) dá a entender que tan­
to êle como seu irmão André e o discipulo anônimo faziam parte do
círculo mais ou menos íntimo dos discípulos de João Batista, antes
de reunir-se a Jesus (37).

2.°) Sua Posição no Círculo dos Discípulos

Verificamos nos evangelhos sinóticos que Pedro realmente ocu- ■


pa uma posição, especial entre os discípulos, juntamente com os
filhos de Zebedeu e o seu irmão André, êle pertence ao circulo
mais intimo dos que se reúnem em tôrno de Jesus. Segundo Mc

(32) G. DALMAN, op. d t-, p- 177; edição francesa p. 221.


(33) Agrammatoi eisin kal ediõtai. F. J. FOAKES-JACKSON , Peter:
Prince of Apostles. A Study in the History and Tradition of Christiariity,
1927, p. 55, acredita que êsse juízo resulte do desprêzo pelo sotaque galileti.
(34) Koinonoí-
(35) CLEM. de ALEX., Strom. II!, 6, 52; acêrca de uma filha. Vide
Act. Vercell.
(36) EUSÉBIO, H. E. III, 30, 2, de acôrdo com CLEM. de ALEX .,
Strom. V n , 11, 63; acêrca da espôsa V. também Pseudo-Clem., Hom
XIII, 1, 11; Rec. VII, 25.36; IX, 38.
(37) A hipótese, segundo a qual bar-Jo.nas significa que Pedro era
“ discípulo de João Batista” não tem fundamento.
1 . 1 6 e Mt 4 .18 , êle é, com André, o primeiro discípulo chamado
■por Jesus. Mc 5 .3 7 observa expressamente que Jesus não per­
mitiu a ninguém segui-lo para dentro da casa do chefe da sina­
goga, exceto a Pedro e aos filhos de Zebedeu, e assim também o
encontramos em outras ocasiões junto com êsses irmãos (V. Mc
9.2 p aral, Mc 14 .3 3 paral).

No entanto, mesmo dentro dêsse círculo mais íntimo. Pedra


está quase sempre em primeira plana. Na história da pesca mara­
vilhosa (Lc 5.1 e segs.) Pedro é evidentemente o protagonista, em­
bora, bem no final, os filhos de Zebedeu também sejam incluídos.
Conforme Mt 14.28, só Pedro tenta imitar o seu Senhor que es­
tá a andar sôbre o lago. Êle quase sempre se nos apresenta co­
mo porta-voz dos doze. Vimos 'acima que Pedro responde, quan­
do Jesus dirige uma pergunta a todos os discípulos (Mc 8.29
segs. p aral) Analogamente lemos ao fina! dessa narração de Mar­
cos, cap. 8 .33, que Jesus fita todos os discípulos quando endereça
a Pedro as acerbas palavras: “ Arreda! Satanás, porque não co­
gitas das coisas de Deus, e, sim, das dos homens” . A repreensão
vale evidentemente para todos os discípulos, pois Jesus sabe que
também as palavras com as quais Pedro se dirigiu a êle para afas­
tá-lo do calvário refletem o desejo satânico de todos os doze, de
maneira que também aqui Pedro aparece como o porta-voz de
todos os discípulos. O mesmo resulta da história da Transfigura­
ção (Mc 9 .2 e segs.). Também aqui é Pedro quem propõe a Je­
sus 0 levantamento de tendas (Mc 9 .5 ). Aos filhos de Zebedeu,
enquanto isso, cabe quase que só o papel de figurantes. È Pedro
quem se dirige a Jesus em diversas situações com perguntas das
quais todos querem saber as respostas : “ Senhor, até quantas vê­
zes meu irmão pecará contra mim, que eu lhe perdoe? Até sete
vêzes?” (Mt 1 8 .2 1 ) . “ Senhor, proferes esta parábola para nós
ou para todos?” (Lc 1 2 .4 1) . “ Eis que nós tudo deixamos e te
seguimos” (Mc 10.28 p aral). Assim também ocorre que em um
evangelho todos os discípulos perguntam, enquanto que na passa­
gem paralela do outro, só Pedro pergunta (cm. Mc 7 . 1 7 com Mt
1 5 . 1 5 e Mt 2 1.2 0 com Mc 1 1 . 2 1 ) . Em Lc 2 2.8 Pedro e João
são incumbidos por Jesus de preparar a Páscoa. Em Mc 14 .2 9
Pedro promete fidelidade ao Senhor. No Getsêmani Jesus voi-
ta-se mais uma vez, segundo Mc 14 .3 7 (Mt 26.40), para Pedro,
perguntando repreensivamente se êle não conseguiria vigiar nem
sequer uma hora; contudo, novamente são subentendidos também
os filhos de Zebedeu, aue estão igualmente oresentes. A partir de
Mt 17.24, mesmo os estranhos encaram Pedro como o representan­
te especia! do grupo dos discípulos. Os cobradores de impostos
dirigem-se a êle em sua pergunta.
As listas dos discípulos (Mc 3 . 1 6 ; Mt 10 .2 ; Lc 6. 1 4; At
1 . 1 3 ) diferem nos seus pormenores, porém tôdas colocam Pedro
em primeiro lugar. A lista de Mateus até acentua que êle é o
“ primeiro” (prôtos). A expressão “ Pedro e os seus” (38) é
característica (Mc 1 . 36; Lc 9 .3 2 ; 8.45 conforme a variante me­
lhor testemunhada) como designação do grupo dos discípulos.
Particularmente surpreendente é, em Mc 16.7, a palavra do anjo;
“ Ide, dizei a seus discípulos e a Pedro, que êle (Jesus) vai adian­
te de vós para a Galiléia” .
■ No tocante a essa posição especial, não há, portanto, diferen­
ça alguma entre Marcos e os outros sinóticos, como se tem afirma­
do freqüentemente. Justamente no Evangelho de Marcos, do qual
foi dito que, apesar de ter surgido em Roma, não conhece qualquer
reivindicação de autoridade para Pedro (39), êle aparece entre os
discípulos como o porta-voz. Basta examinar as passagens acima
citadas para convencer-se alguém, de que, na verdade, cada um dos
três sinóticos salienta a prim^azia de Pedro, independentemente e
a seu modo. Apesar de faltarem em Marcos as palavras sôbre a
Igreja (Mt 16.17 e segs.) sua apresentação geral não deixa a me­
nor dúvida quanto ao papel especial que o evangelista atribui a
Pedro. Querer deduzir tendências inimigas a Pedro, do fato de
que 0 evangelista não silencia acêrca das suas fraquezas, é não
compreender o alcance dêsses dados (40). Vimos acima (41) que,
às vêzes, em um dos evangelhos sinóticos, todos os discípulos fa­
lam e na passagem paralela de um outro, só Pedro. Contudo, é
digno de nota que, em relação a isso, não é de modo algum sem­
pre 0 mesmo evangelho que desloca Pedro para a primeira, mas
que também a êsse respeito o realce dêsse discípulo evidencia-se
ora em um, ora em outro. Assim, justamente no Evangelho de
Marcos (Mc 1 1 . 2 1 ) , Pedro toma o lugar de todos os discípulos,
os quais, no capitulo paralelo de Mateus ( 21 . 20) , fazem a per­
gunta acêrca da figueira sêca.

(38) Pétros kal oi svn aufõ; Pétros kal oi mef autou-


(39) H. STRATH M AN N , Die Stellung des Petrus in der Urkirche.
Zm Frühseschichfe des Worfes an Petrus, Mt 16 .17 -19 (Zeitschrift für
systematische Theologie, 1943, p. 223 e seRS.
(40) De maneira nenhuma noHpmos falar de uma animosidade de
Marcos contra Pedro, como o faz R. BU LTM AN N, Die Frage nach de mes­
sianischen Bewsstsein und das Petrusbekenntnis (ZW N , 1919/20), p. 170.
V ide M. GOGUEL, L’E rfise primitive, 1947, p. 191: “ II n’y a aucune trace
d’antinétrinisme chez Marc” .
(41) V. p. 26.
Também não podemos esíabeiecer uma diferença fundamen­
ta! entre Lucas e Mateus, partindo de suas atitudes em relação a
Pedro, como se só Mateus tivesse tido um interêsse eclesiástico es­
pecial num primado duradouro de Pedro (42). Pois ainda que
Mt 16.17 e segs., além da narração sôbre a tentativa de Pedro de
andar sôbre o lago (Mt 14.28 e segs.), bem como o prôtos em Mt
10 .2 , pertençam às particularidades de Mateus, confrontam-se com
elas os versículos, nos quais Lucas mostra um interêsse positivo
por Pedro, como, sobretudo, a narração da pesca maravilhosa
(Lc 5 . 1 ) . Além disso, é notável que entre as particularidades
de Lucas existe uma passagem paralela à da rocha em Mt 1 6. 1 7,
que concede claramente a Pedro uma posição singular entre
os irmãos, para o futuro (cap. 2 2 . 3 1 ) ; “ Simão, Simão, eis
que Satanás vos reclamou para vos peneirar como trigo, Eu,
porém, roguei por ti, para que a tua íé r.ão desfaleça; tu, pois
quando íe converteres (cf. outra variante; converte-te ( 43 ), for­
talece os teus irmãos” . A esta passagem, cuja autenticidade não
pode ser negada com os mesmos argumentos como Mt 16.18 e
segs., pois não contém o vocábulo Igreja {ekklesia) que, na crí­
tica, é freqüentemente tido como uma pedra de tropêço (44), se
deveria recorrer, muito mais do que acontece normalmente, nes­
se debate. Também aqui é dito a Pedro da sua estreita relação
com Satanás porém, com respeito a isso, è!e é considerado expres­
samente junto com os outros discípulos; Satanás vos reclamou
(de Deus), para vos peneirar. Vimos (45) que também em Mc 8
essa é uma premissa não expressamente mencionada e, ainda as­
sim, tanto lá como aqui, Jesus endereça a palavra só a Pedro e
especialmente a incumbência é dirigida só a Pedro; “ Fortalece os
teus irmãos” . Não é possível, pois, constatar uma tendência pró
ou contra Pedro em qualquer dos sinóticos. Não há pois, dúvi­
da alguma de que, de acôrdo com os três sinóticos, Pedro real­
mente desempenhou o papel de porta-voz dos doze discípulos e,

(42) H. STRATH M AN N , op. cit., julga os diversos evangelhos sob


o ponto de vista da sua posição frente à reivindicação da autoridade de
Pedro, cada um de acôrdo com a sua ligação a esta ou àquela Igreja. Êsse
seu sistema é talvez um tanto esquemático: Marcos-Roma — nenhum
interêsse pela reivindicação petrina; Lucas-Atos dos Apóstolos ^ — região
m issionária paulina — primado de Pedro limitado temporàriamente; Ma-
ieus-Antioquia (Vide B. H. ST R E E T E R ) — primado constante; João-Ásia
Menor ■ — tendência contra Pedro e a favor de João.
(43) E. STA U FFE R , “Zur Vor- und Frühgeschichte des Primatus
P etri” {Zeitschrift für Kirchengeschichte 1943/44), p. 18, obs. 58, apresenta
diversos motivos a favor dessa variante,
(44) V. p. 187 e seg.
(45) V. acima p- 24 e seg.
além disso, segundo os evangelhos de Mateus e de Lucas, Je­
sus o escolheu, de maneiía especial', para o futuro cumpri-
menío da missão de fortalecer os irmãos. A consciência de uma
distinção de Pedro no grupo dos discípulos pertence a tôda a
antiga tradição dos evangelhos sinóticos, mesmo executando-se a
passagem controvertida de Mt 16.17 e segs., sôbre a qual dis-
corrreremos minuciosamente na segunda parte dêste trabalho.
Essa posição especial, que não é testemunhada apenas por Mateus,
mas também por Lucas e Marcos, não pode e não deve ser desmen­
tida e nem sequer diminuída, com o fito de satisfazer qualquer ten­
dência confessional ou crítica. Sem dúvida deve ser acrescenta­
do que, em tôdas essas passagens, Pedro é, na verdade, elevado
acima da totalidade dos discípulos; contudo, como porta-voz, sem­
pre aparece em “ diálogo com Cristo” e jamais, como sucede na
literatura ulterior, lhe cabe um papel preponderante fora dessa re­
lação com Cristo (46).
Um quadro pouco diferente se nos apresenta, se passarmos pa­
ra o Evangelho de João. .A. inegável distinção sinótica de Pedro
torna-se um problema, pois nesse Evangelho o misterioso e anô­
nimo “ discípulo amado” entra em uma certa concorrência com
Pedro. Ao contrário dos sinóticos, os interêsses do autor em tor­
nar presente a posição de Pedro poderia ter influenciado a exposi­
ção. É digno de nota, porém, que êsse Evangelho, o qual quer evi­
dentemente acentuar a relação particularmente íntima entre Jesus e
0 discípulo amado, não tenta, apesar disso, em parte alguma, des­
mentir diretamente o papel especia! de Pedro, dentro do grupo dos
discípulos (47), mas apenas tem a tendência de moderá-lo a pon­
to de poder mostrar que ao lado da posição especia! de Pedro exis­
te a outra, diferente, do discípulo amado (48). Isto certamente
se relaciona com a característica postergação de todo o grupo dos
doze como tal, no esquema dos discípulos dêsse Evangelho, a qual,
em geral, não é devidamente considerada. Que, apesar dessa ten­
dência o quarto evangelho aceite a eminência de Pedro como um
fato, parece-me uma prova particularmente importante de que ês­
se fato era tão notório na Igreja primitiva, que não podia ser ne-

(46) isso está corretamente acentuado em J. L. KLINK, Het Petrus­


type in het Nieuwe Testament en de Oud-Christelijke Letterkunde, D isser­
tation. Leyden, 1947.
(47) Também em Jo 6.66 e segs. e Jo 13.36 Pedro aparece como
porta-voz dos outros discípulos.
(48) O Evangelho dos Hebreus vai muito além no combate à posi­
ção excepcional de Pedro.
gado e nem silenciado, mas apenas diminuído (49). Sòmente
a exclusividade da posição especial de Pedro é atacada; de resto,
é acentuada a diferença do papel de ambos.
Isto se torna especialmente claro na história da paixão. As­
sim no capítulo 13.24, durante a última ceia, onde Pedro se vê
constrangido a apelar para o discípulo amado, reclinado sôbre
0 peito do Senhor, para descobrir um segredo de Jesus. Além
disso, no cap. 18.15, onde o discípulo amado entra com Jesus
para o pátio do sumo sacerdote, ao passo que Pedro fica fora,
à frente da porta. Particularmente no momento mais decisivo, ao pé
da cruz, não é Pedro, mas o discípulo amado que está presente, e
êste é distinguido muito em especial pela palavra que lhe é di­
rigida pelo crucificado (50). Adiante, o autor narra como o dis­
cípulo amado na verdade chega primeiro {prôtos 20.4) ao túmulo
mas não entra, enquanto que Pedro chega só depois dêle, mas en­
tra. 0 discípulo amado vai para dentro sòmente depois de
Pedro, mas por outro lado, apenas se diz dêle, que “ creu” logo
depois de ter “visto” (20.8) (51).
Daí se esclarece em parte o cap. 1.41, onde encontramos
oomo primeiros discípulos de Jesus dois ex-discípulos de João
Batista, um anônimo e André, o irmão de Pedro. Aqui, pois, não
é Pedro o “ primeiro” , aqui não é êle o prôtos. Em todo caso,
depois dêsses dois, cujo encontro com Jesus parece antes uma
espécie de prelúdio, êle é o primeiro que chega a Jesus. De fato,
no V. 41 fala-se de um “ primeiro” , que poderia referir-se a Pedro.
Alguns MSS, divergem quanto porém ao final da palavra.
Uns apresentam o primeiro (prôtos) no mominativo. Assim André
é considerado o primeiro, que, como tal, encontra seu irmão
Pedro. Nesse caso, estaria acentuado que a dignidade de ser o
“ primeiro” caberia a ambos os ex-discípulos de João Batista, o
anônimo e André. Os outros manuscritos apresentam o primeiro
(prôtos) no acusativo. Assim Pedro retém a posição de honra
do “primeiro” , porém apenas no que se refere ao fato de êle

(49) Isso é reconhecido expressamente também por D. F- STR AU SS,


Das Leben Jesu für das deutsche Volk, 1864, p. 423.
(50) E. M EYER, “ Sinn und Tendenz der Schlusszene am Kreuz im
Johannes-evangelium” (Sitzungsberlcht der preussischen Akademie der
Wissenschaften 1924, p. 159), supõe até que o díscípulo amado é, por
assim dizer, acolhido na fam ília do Senhor e adotado no sentido mais
restrito, como seu irmão, por meio das palavras d irigidas a êle e à mãe
de Jesus.
(51) V ide O. CULLMANN, Eiden kal epísteysen (in publicação co­
memorativa dedicada a M. QOGUEL, Aux sources de la tradition chrétienne,
1950, p ..56 e segs.). -
ser encontrado primeiro por seu irmão, o ex-discípulo de JoãO:
Batista, e conduzido a Jesus. Essa divergência entre os ma­
nuscritos mostra que já na Antigüidade fôra reconhecido o in­
terêsse especial do quarto evangelista quanto a essa questão. Em­
bora seja difícil saber se êle próprio escreveu o nominativo ou
0 acusativo, o certo é que com isso, exatamente como no cap. 20,
quer chamar a atenção para a relação singular entre Pedro e
aquêle discípulo anônimo, que provàvelmente é idêntico ao dis­
cípulo amado e que, como discípulo de João Batista, reuniu-se
primeiro a Jesus. Com isso, o evangelista não tencionava negar
aqui a primazia de Pedro, porém, fazer ver como o discípulo anô­
nimo foi o “primeiro” , a se tornar discípulo de Jesus.

Essa tendência é tanto mais clara, lembrando-se que André,


logo no comêço, dá testemunho a Jesus, como Messias, enquanto
que Pedro o classifica só posteriormente (cap. 6.66 e segs.) de
0 “ Santo de Deus” . Em todo caso, não pode, por outro lado,
deixar de ser dito que o evangelho de João reconhece expressa­
mente que Jesus concede o nome de honra “ Rocha” a Pedro
e, como vimos (52), até o coloca no comêço (cap. 1. 42), trans­
mitindo com ênfase, a seu modo, a decisiva confissão de Pedro
(cap. 6.66 e segs.).
Encontramos exatamente a mesma atitude dupla, face à po­
sição especial de Pedro, no capítulo suplementar 2 1, que con­
corda, sob êsse aspeto, portanto, com os capítulos 1 a 20: por
um lado essa posição é expressamente reconhecida, por outro,
ela é diminuída pelo acareamento oom a do discípulo amado. As­
sim, no comêço da narração aqui relatada, sôbre a aparição de
Jesus no lago da Galiléia, Pedro é mencionado em primeiro lu­
gar na lista dos discípulos (53). Por outro lado, é o dis­
cípulo amado que reconhece o Senhor primeiro, porém Pedro, em
compensação, é o primeiro que vai ter com êle. Essa confronta­
ção de ambas as posições especiais determina, pois, também êsse
capítulo, e alcança seu auge no diálogo que se segue ao milagre,
entre o Ressuscitado e Pedro. O autor dêsse capítulo seja lá quem
fôr, pertence, em todo caso, ao círculo joanino. O fato de ter
feito dêsse diálogo, por assim dizer, um fecho de ouro, carac­
teriza sua compreensão do sentido do Evangelho de João. Dessa

(52) V. acima, p. 24.


(53) De acôrdo com E. STA U FFER , op. cit., p- 13 e seg., essa narração;
baseia-se em um relatório antigo sôbre a aparição de Jesus só a Pedro,;
mencionada em 1 Co 15.3. V. adiante p. 64.
maneira êle talvez tenha acentuado demais a intenção indubita­
velmente existente do quarto evangelista. Por outro lado, êle
compreendeu corretamente a sua concepção, confrontando de mo­
do bem análogo os dois discípulos e fazendo ver como a cada
um dêles, mas a cada um de maneira diferente, é concedida, pelo
Ressuscitado, uma posição especial para o futuro (54). Pedro é
investido na função de pastor (55); porém, ao discípulo amado,
que aqui “ segue” a Pedro (o que, segundo o uso idiomático (56)
joanino, poderia subentender também um contato espiritual), é
prometido que sobreviverá a êste e isto significa, provàvelmente,
nesse contexto, que êle terá uma missão idêntica a cumprir, porém,
segundo todo o Evangelho, de natureza diferente (57).

(54) M. GOGU EL, L’Eglise primitive, 1947, p. 200, ao contrário, é


de opinião que êsse diálogo serve à glorificação de Pedro, em detrimento
do discípulo amado, estando assim em oposição aos capítulos 1-20.
(55) Parece-me impossível contestar essa afirmação, como o tenta
fazer K. O- G O E TZ, op. cit-, p. 15. G O E TZ evidentemente tem razão ao
escrever que Pedro é reinvestido na posição de discípulo, a qual perdera
pela tríplice negação. Mas simultâneamente temos aqui mais do que uma
nova confirmação da vocação ao discipulado. O fato de que Jesus não
reside mais na terra implica necessariamente uma nova incumbência para
o discípulo.
(56) Vide 0- CULLMANN, “ Der johanneische Gebrauch doppeldeutiger
Ausdrücke als Schlüsse! zum Verständnis des vierter Evangeliums” {Theolo­
gische Zeitschrift, 1948, p. 360 e segs.).
(57) R. BU LTM AN N, Das Johannesevangelium, 1950, p. 547, escreve
que a autoridade de Pedro é transferida ao discípulo amado- E. STAU FFER ,
op- c it., p. 15, concorda, m.as acrescenta que não se trata apenas da auto­
ridade do evangelista, como pensa BU LTM AN N, mas do líder eclesiástico,
João. Isto, porém, apaga a diversidade de ambas as posições especiais,
acentuada em todo o quarto Evangelho e nesse capítulo 21.
Para o erudito católico R. GRÄBER, Petrus der Fels. Fragen um den
Primat, 1949, p. 37 e segs. o sentido de Jo 21 reside no fato de que a
pergunta de Pedro: “ Senhor, e quanto a êste (o discípulo am ado)?” conta
com a possibilidade de que o discíplo amado poderia vir a ser seu “ su­
cessor” . A resposta de Jesus: “ Se eu quero que êle p e rm an eça..-” esta­
ria, no entanto, refutando expressamente essa opinião de Pedro, uma vez
que outros teriam sido determinados para seus sucessores. Essa inter­
pretação artificiosa que está muito menos fundamentada do que a hipótese
digna de menção da primeira parte do trabalho de R. GRÄBER (V- adiante
p. 40, 45), tem a única finalidade de descobrir a qualquer preço um tes­
temunho textual para a transferência da sucessão apostólica de Pedro
aos bispos romanos.
Além disso, a afirmação de GRABER (p. 39) de que o discípulo
amado certamente deveria estar vivo por ocasião da redação do capítulo
21 não está de maneira alguma provada com a ponderação de que não-
haveria sentido em refutar após a sua morte a opinião de que êle não
morreria. Não se poderia dizer, ao contrário, que justamente naquela
ocasião se fêz mister demonstrar que a palavra de Jesus acêrca do “ per­
manecer” não fôra desmentida pela morte do discípulo?
Assim, o Evangelho de João, justamente por ter, ao con­
trário dos Sinóticos, a tendência de distingir o discípulo amado,
confirma indiretamente o resultado ao qual nos levou o exame
das passagens sinóticas sôbre o discípulo Pedro; Segundo o tes-
temanho total da tradição dos evangelhos, Pedro ocupa uma po­
sição especialmente representativa entre os discípulos de Jesus.

Com isso, no entanto, não está dito que lhe cabe o papel de
líder dos condiscípulos enquanto Jesus viver. Êle é, ao contrário,
sòmeate o seu porta-voz, o seu representante, no bem e no mal,
mas não lhes dá ordens em nome de Jesus, e o Mestre, em ocasião
alguma durante sua jornada terrena, o incumbiu de tal função.
As três passagens, Mt 1 6, 1 6 e segs., Lc 2 2 . 31 e seg. e Jo
2 1 . 1 5 e segs., nas quais êle é incumbido de uma obrigação espe­
cial em relação aos irmãos, referem-se ao futuro, ao tempo após
a morte de Jesus. A tradição dos evangelhos soube, pois, dife­
renciar entre a posição de Pedro antes e após a morte de Jesus.
Partindo dessa ponderação, não é provável que, como se tem
afirmado, o realce de Pedro no círculo dos discípulos, durante
a vida de Jesus, seja só um retrocesso da posição que êle realmen­
te ocupara na comunidade primitiva, depois da morte de Jesus,
pois, nenhuma posição liderante lhe é atribuída frente ao grupo
dos doze; êle se apresenta só como o mais representativo dos dis­
cípulos: o que todos representam, fazem e pensam, manifesta-se
com uma ênfase especial em sua pessoa.
Nesse ponto, poder-se-ia ser tentado a prosseguir e inquirir
sôbre a explicação de tal realce. Teria acontecido que Jesus lhe
concedeu aquêle nome, fortalecendo, assim, em Pedro, a consciência
de ser discípulo, ou procurava explicá-lo, ao contrário, psicolò-
gicamente, tomando como ponto de partida o caráter de Pedro,
considerando ainda a concessão do nome? A última possibilida­
de tem sido ponderada freqüentemente (58). Partiu-se da pre­
missa de que, enquanto Jesus vivia, Pedro não se evidenciou jus­
tamente como “ rocha” , ao contrário, especialmente sua fraqueza
humana é que chamava a atenção. A cena no lago Genesaré, na
verdade, ilustra o caráter de Pedro: êle é impulsivo, entusiasta,
não hesita em lançar-se ao mar ao primeiro impulso, quando Je­
sus o chama, porém logo relaxa a intrepidez, e o mêdo apossa-se
dêle. Assim êle confessa em alta voz, em primeiro lugar a sua
fidelidade ao Mestre, mas é o primeiro que o negará na hora do

(58) Principalmente por F. SIEFFERT, in Realenzyklopüdie für


Theologie und Kirche, 3.“ ed., art. “ Petrus” , tom. 15. p. 190.
perigo. E, apesar disso, é o que se supõe, talvez exatamente êsse
caráter, com as suas contradições pronunciadas, mostrasse Pedro
como o discípulo psicologicamente mais apropriado para ser “ ro­
cha” entre os outros. O entusiasmo transbordante, o fervor ar­
dente dêsse discípulo seriam, realmente, qualidades humanas neces­
sárias para merecer um nome tão honroso. A sua instabilidade e
fraqueza não seriam mais que os lados sombrios dessas qualidades.
Não é possível, no entanto, fundamentar psicologicamente a
posição especial de Pedro, bem como a concessão do nome e, aliás,
não nos cabe perguntar porque Jesus o escolheu como “ rocha” em
vez de outro discípulo (59). A partir de nossas fontes não pode­
mos mais que simplesmente constatar o fato dessa escolha.
Por outro lado, também está errado derivar a posição repre­
sentativa do discípulo Pedro e as qualidades mencionadas, de
modo contrário, partindo só da concessão do nome, como se só
assim tivesse surgido a sua consciência de, por assim dizer, repre­
sentar em sua pessoa a totalidade dos discípulos, já durante a vida
terrena de Jesus. Mais uma vez, podemos dizer sòmente que Pe­
dro demonstrou bem claro ser realmente possuidor de tôdas as
fraquezas e qualidades humanas que o discipulado encerra.
É impossível decidir claramente se o seu realce deve ser ex­
plicado, partindo-se da concessão do nome ou se, ao contrário, a
concessão do nome deve ser elucidada, a partir de seu verdadeiro
realce. Na verdade, trata-se, provàvelmente, de um efeito recí­
proco. Jesus conhece melhor do que qualquer outro as qualida­
des de Pedro, as boas e as más, e conta com elas, em vista da
tarefa reservada para os discípulos. Por outro lado, a distinção
especial dêsse discípulo como de um homem-rocha, expressa um
ato de decisão soberana, efetuado pelo Mestre, que talvez tenha
fortificado Pedro no seu papel de representante natural.
Para o período de tempo após a morte de Jesus, o problema
da posição especial de Pedro é de outro caráter. O discípulo tor­
na-se 0 apóstolo do Senhor crucificado e ressurgido. Nessa qua­
lidade, a sua posição precisa necessàriamente assumir outro ca­
ráter. Sôbre isso versará o próximo capítulo.

(59) K. L. SCHMIDT, Festschrift für Deissman, 1927, p. 301, rejeita


acertadamente inquirir do por quê da eleição de Pedro, como “ Rocha” ,
com a observação de que não poderiíi responder-se tanto quanto a esta
pergunta: “Por que teria Deus escolhido o povo de Israel?”
C A P ÍT U L O II

PEDRO, 0 APÓSTOLO

Segundo as fontes à nossa disposição, inicia-se para Pedro,


com a morte e ressurreição de Jésus, uma situação completamente
modificada, sob dois pontos de vista. Primeiro, sua posição espe­
cial não se manifesta na direção da pequena comunidade de discí­
pulos, em vista da ausência física do Senhor. Contudo, o cará­
ter e 0 limite temporal dessa direção deverão ser definidos mais
acuradamente. Segundo, essa posição especial baseia-se agora
numa incumbência singular, que deve ser definida nos seus diver­
sos aspectos.
Comecemos com o primeiro ponto. ,

1.°) A Direção da Comunidade Primitiva

Constatamos claramente, nos Atos dos Apóstolos, que Pedro


ocupa uma posição especial na comunidade primitiva de Jerusalém.
Esta é a nossa única fonte, ao lado das epístolas de Paulo, sôbre
as quais discorreremos mais adiante. Examinaremos inicialmente
0 que nos dizem os doze primeiros capítulos.
No cap. 1 . 1 5 e segs. é Pedro quem determina a eleição do
duodécimo apóstolo ( 1). Desde logo torna-se evidente que o fato
de ser o porta-voz dos outros significa simultâneamente que êle
preside o pequeno grupo de fiéis, seja qual fôr a sua autoridade.
É êle quem explica o milagre do Pentecostes, diante da multi­
dão reunida (cap. 2 . 1 4 ) . Consta que “ êle se levanta com os
onze” , mas é o único que toma a palavra. No v. 37 as testemu­
nhas presentes ao milagre dirigem-se, após a sua alocução, “ ã
Pedro e aos demais apóstolos” , como expressa o autor.

(1) P. GAECH TER, “ Die Wah! des M atthias” (Apg. ], 15-16) (Zeií-
schrift für kaíholische Theologie, 1949), p. 318 e segs-, atribui a eleição a
uma incumbência especial de Jesus.
No cap. 3 êle efetua o milagre da cura do coxo. De modo
sobremaneira singular, João é mencionado ao lado de Pedro nes­
sa narração. Todos os manuscritos o citam. Contudo, a maneira
como êle é apresentado e como faz o papel de pouco mais que um
figurante, poderia dar lugar à suposição de que seu nome tenha
sido anexado ao de Pedro posteriormente. Particularmente sin­
gular a êsse respeito é o v. 4; “ Pedro fitou o coxo com João” (2).
Caso 0 anônimo discípulo amado tivesse sido identificado já então
como João, poder-se-ia peirguntar se aqui a menção do seu nome
ao lado de Pedro não corresponde a uma tendência semelhante à
que constatamos no Evangelho de João (3). Não é possível, no
entanto, dizer algo exato sôbre essa questão, pois Paulo demonstra
que, dfepois de Pedro, João realmente ocupou uma posição um tan­
to autoritária na comunidade prirriitiva. Em G1 2.9, juntamente
coní Tiago e Cefas, é uma das “ colunas” da comunidade (4).
No restante da narração é Pedro quem defende a causa do
evangelho quando as autoridades entram em ação contra os após­
tolos (caps. 4.8 e 5.29 ). Após a cura do coxo só Pedro fala, não
obstante estar escrito no cap. 4.1 ; “ falavam êles ainda...” , e apesai
de João ser mencionado mais uma vez ao lado de Pedro, no v. 13,
sendo que (mais uma vez) a menção do seu nome como que vem
com atraso, assemelhando-se a um acréscimo. Segundo tôda essa
narrativa, não se pode negar que, como membro da comunidade de
Jerusalém, Pedro esteja na posição excepcional de dirigente.
Particularmente no caso de Ananias e Safira (cap. 5.1 e segs.)
(5) êle faz valer a disciplina eclesiástica na comunidade. Especial­
mente aqui a autoridade de Pedro torna-se patente. Seja qual
fôr o veredicto sôbre a autenticidade ou inautenticidade de
Mt 16.16 e segs. e seja qual fôr o significado das palavras “ ligar”

(2) Atenísas dè Pétros eis auíònsyn tõloáme.


(3) V. acima p. 29 e segs.
(4) V. adiante, p. 42 e seg.
(5) PH.-H. M ENOUD, “ La mortd’Ananias et de Saphira (Actes
5, 1 - 1 1 ) ” . Aux sources de la tradition chrétienne. Mélanges offerts à M.
Ooguel 1950, p. 146 e segs., acredita que tôda a pericope tenha a intenção de
expUcar o fato da morte dos primeiros membros falecidos da comunidade
— Ananas e Safira — ^ partindo dos seus pecados. E. TROCM É, Le livre
des Actes et l’Histoire, 1957, p. 197, acentua, ao contrário, que o caráter
especial do pecado é que está em primeiro piano e, com J. SCH M ITT,
Les Manuscrits de la Mer Morte. Colloque de Strasbourg, 1957, p. 93 e segs.,
supõe qu€ o casai tencionara pertencer ao grupo dos “ perfeitos” , como o
existente em Qumran. E. HAENCHEN, Die Apostelgeschichte, 2.^ ed.
1959, p. 197, argumenta, ao contrário, que Pedro nâo âge nesse caso como
um “Mebaqquer” de Qumran. Êle supõe que a história de Ananias (nâo
de Safira) se reporte a uma antiga tradição hierosoUmitana-
e “ desligar” (6), é Pedro que, como instância terrena, efetua um
julgamento em nome de Deus. De acôrdo com o v. 2, êle o faz,
ao que tudo indica, na presença dos outros apóstolos. Também a
narrativa de Simão, o mágico (cap. 8. 1 8 e segs.) pressupõe que
Pedro toma a decisão.
Além disso, os Atos dos Apóstolos acentuam a crença do povo
justamente na fôrça milagrosa de Pedro, cuja “ sombra” era consi­
derada capaz de operar milagres (cap. 5.15). Também dos outros
apóstolos é dito que por suas mãos acontecem milagres (cap. 5 . 1 2 )
e que ensinam (caps. 2.42; 4.33). Mas, conforme os primeiros
capítulos, os mesmos atos são praticados por Pedro, de tal forma,
que 0 apresentam de maneira especialmente representativa, tal qual
nos tempos de Jesus. Porém, na situação modificada, após a morte
de Jesus, isto só pode significar que êle desempenha um papel
liderante frente à comunidade, de que êle é o dirigente.
Tal autoridade estende-se até à região missionária de Sama­
ria, nos primeiros tempos dependente de Jerusalém. Essa terra
é, por assim dizer, o primeiro campo missionário cristão. Seus
verdadeiros missionários são cristãos expulsos de Jerusalém, pro­
vàvelmente por motivos relacionados ao martirio de Estêvão, e que,
possivelmente, defendiam um ponto de vista idêntico ao dêle. Em
At 8 .1 consta expressamente que os doze não foram expulsos na­
quela oportunidade (7). Os refugiados são, pois, ao que tudo
indica, helenistas da comunidade, e os doze parecem ter tomado
uma posição diferente da sua. Do contrário não poderiam ter
pemanecido em Jerusalém. Êsses membros da comunidade, expul­
sos de Jerusalém, são mencionados (cap. 8.4) como os primeiros
missionários de Samaria. Entre êles só Filipe é citado especial­
mente, apesar de ter, provàvelmente, compartilhado dêsse trabalho
com outros refugiados helenistas, cujos nomes não são citados.
A pregação missionária dêsses homens culminou com um sucesso
total: “ Samaria recebeu a palavra de Deus” (cap. 8. 1 4) . Tanto
mais surpreendente é que os apóstolos que permaneceram em Je­
rusalém não se contentaram com isso, enviando posteriormente Pe­
dro e João a Samaria. Os Atos dos Apóstolos explicam êsse fato
dizendo que o Espírito Santo ainda não viera sôbre os samarita-
nos (cap. 8. 1 6) , apesar de já terem alcançado a fé, e terem sido
batizados, como foi dito no v. 12. Assim, Pedro e João tiveram
subseqüentemente de impor as mãos aos batizados, e só então os

(6) V. adiante p. 234.


(7) DÍèn tõn apostólon.
samaritanos convertidos receberam o Espírito Santo (cap. 8 . 1 7 (8).
Dessa maneira, evidencia-se claramente que imposição das mãos e
participação do Espírito eram consideradas vinculadas à função
dos doze, e que tôda atividade missionária era tida, de início, co­
mo totalmente dependente da comunidade de Jerusalém (9). Aliás,
isso também é importante para a problemática originada da mis­
são de Paulo.
Essa dependência é evidentemente pressuposta. A exposi­
ção apenas insinuante dos Atos dos Apóstolos que, no entanto,
deixa transparecer nitidamente o estado de coisas, desperta o
pressentimento de que aquêles homens, expulsos de Jerusalém e
atualmente agindo como missionários, deveriam ser admoestados
expressamente, na sua posição inferior, pelos apóstolos de Jeru­
salém. Parece-me provável que o quarto evangelista quer, ao
contrário, realçar o trabalho daqueles homens, em pai-te anôni­
mos, apresentando, em conexão com a missão de Samaria, uma
palavra de Jesus sôbre “ os outros que trabalharam” , enquanto
que 'OS apóstolos “ entraram no seu trabalho” (Jo 4.38) (10).

Para o nosso problema é importante notar que, também nes­


sa oportunidade, Pedro foi enviado para Samaria, pelos doze em
Jerusalém. Contudo, João o acompanha mais uma vez, sem que
com isso sua individualidade se destaque, de uma maneira ou de
outra.
A menção especial dos helenistas nos Atos dos Apóstolos, as
suas idéias peculiares, bem como a sorte singular que lhes coube,
provam que já na própria comunidade primitiva havia diversas
correntes. Pedro e, enfim, os doze parecem ter tomado uma po­
sição mediadora entre judaizantes e helenistas. Pedro conse-
(8) Vide O. CULLMANN, D ie Tauflehre des Neuen Testaments,
Erwachsenen- und Kindertaufe (A. Th. A. N. T .), 1948, p-7 e seg.
(9) P. GAECH TER, “ Jerusalem und Antiochia, ein B eitrag zur ur-
kirchlichen Rechtsentwicklung” {Zeitschrift für katholische Theologie
1948), p. 1 e segs., acentua com razão a dependência da região m issionária,
da comunidade de Jerusalém. Por outro lado, não é possível justificar
as conseqüências que êle tira do fato de Pedro deixar Jerusalém a partir
de um determinado momento, relacionando-as com a cessação da posição
de primazia da comunidade de Jerusalém. V. adiante as notas (34), (35),
(36), (53), deste cap.. E. SCHW EIZER, “ Geist und Gemeinde im N. I. und
heute” {Theol. Existenz, 1952), interpreta a ligação com Jerusalém só no
sentido histórico-soteriológico.
(10) V ide O. CULLM ANN, “ La Samarie et les origines de ia mission
chrétienne” {Annuaire 1953/54 de l’Ecole pratique des Hautes Etudes) ;
além disso; “ L’opposition contre le Temple de Jerusalem” (N T S. 1953,
p. 157 e segs.)-
guia, portanto, conservar unidos os diversos elementos ( 1 1 ) . Tão
logo Tiago assuma a direção da Igreja, isso mudará.
Após 03 acontecimentos em Samaria, Pedro surge, exercen­
do igualmente atividades missionárias em Lida, Jope e Cesaréia,
onde faz muitos milagres e batiza o pagão Cornélio (At 9. 1 0).
A partir de então, não existiu uma missão judeo-cristã só entre
os judeus, mas também entre os gentios e, de acôrdo com essa
exposição, Pedro ocupa o primeiro lugar também como missioná­
rio dos gentios, justificando expressamente tal missão. O pa­
pel desempenhado por Pedro na comunidade primitiva de Jerusa­
lém, conforme os Atos dos Apóstolos, não foi sèriamente pôsto
era dúvida por parte dos pesquisadores. Como veremos, é con­
firmado indiretamente pelas epístolas de Paulo. Mas já surge
uma certa contradição no que diz respeito à sua atividade mis­
sionária. Hoje, como antigamente, essa história que alude a Pe­
dro como o pioneiro da missão entre os gentios é atribuída total
ou parcialmente ao autor dos Atos dos Apóstolos, que teria a ten­
dência de, sob qualquer aspecto, equiparar Pedro a Paulo. Ainda
assim, trabalhos mais recentes sôbre a realidade histórica da con­
versão de Cornélio por intermédio de Pedro transferem-na para
outra ocasião ( 1 2) , embora atribuam uma parcela mais ou menos
grande da narrativa às atividades redatoriais do autor, delimita­
das por tendências teológicas (13).

(1 1 ) V ide W . QRUNDMANN, Das Problem des hellenistischen


Christentums innerhalb der Jerusalemer Urgemeinde (ZN W 1939, p. 45
e segs.).
(12) V. o núcleo histórico que W . QRUNDMANN, Die Apostol
zwischen Jerusalem und Antiochia (ZN W 1940, p. 132 e segs.) descobre.
Êle trasnfere a história, em oposição à cronologia dos Atos dos Apósto­
los, para o período dos acontecimentos posteriores a At 12, quando Pedro
já havia deixado Jerusalém.
(13) M. DIBELIUS, “ Das Apostelkonzil” (Theol. Literaturzeitung,
1947, p. 193 e segs.); além disso, “ Die Bekehrung des Cornelius” (Co-
niectanea Neatestamentica in honorem Antonii Fridrichsen, 1948), p. 50
e segs.; atualmente, Aufsätze zur Apostelgeschichte, editado por H. OREE-
VEN, 2.®' ed. 1953, p- 96 e segs., encara como histórico só o fato da con­
versão de Cornélio como tal, bem como uma visão pertencente a outro
contexto. Tôda a dissertação em tôrno das questões de princípio acêrca
da admissão de gentios na comunidade e da comunhão com os judeu-cris-
tãos à mesa remontaria ao autor dos Atos dos Apóstolos e suas tendências
V. também O. BAUERNFEIND, Die Apostelgeschichte, 1939, p. 1943.
J. R. PO RTER , The “Apostolic Decree” and Paul’s second Visit to Jeru­
salem (J. T . St. 1946, p. 169 e segs.) e E. TROCM É, Le livre des Actes
et rHistoire, 1957, p. 170 e segs.
Uma boa visão em E. HAENCHEN, Die Apostelgeschichte, 1959, p.
301 le segs. file não reconhece qualquer evento histórico na narração, mas
só a convicção da fé que empolgava Lucas, de que só Deus teria operado
a missão aos gentios.
Após ser aprisionado por Herodes e pôsto em liberdade, e
em conexão com êsses acontecimentos, Pedro abandona a cidade
santa; mas não há nos Atos dos Apóstolos qualquer informação
sôbre o lugar, para o qual êle se dirige. O autor se exprime de
modo um tanto misterioso (At 1 2 . 1 7 ) : êle se retirou “ para um
outro lugar” (14). Os exegetas católicos, porém não todos, cos­
tumam identificar êsse “ outro lugar” com Roma (15). Um ar­
gumento, recentemente revalidado (16), poderia realmente apoiar
essa identificação ; a estrutura paralela de ambas as partes dos Atos
dos Apóstolos. A primeira parte (cap. 1 . 12) conclui com o aprisio­
namento de Pedro. A segunda (cap. 12. 28), com o de Paulo,
culminando com a chegada do mesmo a Roma (cap. 28. 1 4) (17).
Poder-se-ia, pois, perguntar, se a viagem de Pedro a Roma
não representa também o auge da primeira parte: “ êle se
retirou para um outro lugar” (cap. 1 2 . 1 8 ) . O sentido literal,
no entanto, não permite a identificação do “ outro lugar” com Ro­
ma. Que 0 nome de Roma teria sido omitido devido ao temor
das autoridades pagãs, para que ficasse incógnito o paradeiro
do dirigente da comunidade (18), seria uma posibilidade de ex­
plicação. É, no entanto, puramente hipotética. Pressuporia que
os Atos dos Apóstolos tivessem sido escritos, estando Pedro ain­
da vivo. Também é possivel em si que êle tenha partido ern se­
guida para Antioquia, mas não está escrito. Êle realmente se
encontra em Antioquia, segundo G l 2 . 1 1 , mas sôbre o momento
de sua chegada a essa cidade não há referência alguma (19).
O certo é que aquêle “ outro lugar” pode ser identificado com qual-

(14) eis éteron tópon


(15) J. D U PO N T, Les problèmes du livre des Actes d’après les
travaux récents, Î950. p. 88: “ Se o apóstolo tivesse viajado nessa ocasião
para Roma, poder-se-ia explicar o fato de que Lucas não quis mencionar
tão cedo a cidade que deveria representar o ponto final de sua história
da propagação do Cristianism o.” — ^ J. BELSER, Die Apostelgeschichte,
1905, p. 156, apresenta outro argumento; êle indica Ez 12, 3 “ do lugar
onde estás parte para outro lugar” , que seria Babilônia.
Ao contrário, U. HOLZM EISTER, Commentarius in ep. S. S. Petri et
fudae (Cursus Script. Sacr.) 1937, p. 62: “ Nullum argumentum probat
Petrum anno 42 Palaestinam reliquisse, a fortiore nullo modo demonstran­
dum est eum iam eodem anno Romam attigisse” ; C- CECCHELLI, Gli
Apostoli a Roma, 1938, p. 100: “ Certo è che la presenza di Pietro in
Roma non sembra potersi ammettere prima dei 63.”
(16) R. GRABER, Petrus der Fels. Fragen um den Primat, 21.
(17) V. também J. D U PO N T, acima, obs. 15. R. GRABER, op. cit.,
p. 21, estriba-se em A. HARNACK, Mission und Ausbreiiung des Christen­
tums, 3.^ ed., 1915, vol. I, p. 95 s.
(18) E sïa é a tese de R. GRABER, Petrus der Fels, p. 16 e segs.
(19) V. adiante p. 58.
quer cidade do Império Romano (20). É de se esperar que nem
mesmo o próprio autor dos Atos dos Apóstolos tenha tido em
vista um lugar determinado (21). Nesse caso, a nota diria
simplesmente que, a partir de então, Pedro renuncia à sua resi­
dência fixa e com isso à sua posição naquela comunidade, provà­
velmente para, entre outros motivos, fugir a perseguições dos judeus.
Daqui para diante Pedro aparece nos Atos dos Apóstolos só no
cap. 15, no chamado Concilio dos Apóstolos, do qual falaremos
mais tarde, e então eclipsa-se totalmente da narração, de modo
misterioso. A nota há pouco mencionada, em At 1 2 . 1 7 , “ êle se
retirou para um outro lugar” , assinala evidentemente uma etapa
na ativ.dade de Pedro e, simultâneamente, na sua posição na co­
munidade primitiva.
Perguntamos, a seguir, até que ponto as informações, obtidas
dos doze primeiros capítulos dos Atos dos Apóstolos, sôbre a
sua função como cabeça da comunidade primitiva de Jerusalém,
encontram uma confirmação nas epístolas de Paulo. A esta al­
tura é necessário observar que, como fonte direta e mais antiga,
as epistolas de Paulo merecem naturalmente o maior valor do­
cumentário. Visto que, no entanto, tôdas pertencem a uma épòca
posterior aos eventos de At 1 . 1 2 , não podemos esperar que en­
cerrem muitas alusões aos primeiros acontecimentos na comuni­
dade primitiva. Além disso, Pedro é citado por Paulo principal­
mente em conexão com ocorrências que só se deram no período
posterior de sua vida e sôbre as quais os Atos dos Apóstolos nos
contam tão surpreendentemente pouco, com exceção do Concilio
dos Apóstolos. Como paralela direta entre a exposição de Paulo
e ã dos Atos dos Apóstolos só entra em consideração o já men­
cionado Concilio dos Apóstolos. Veremos quão grandes são os
problemas resultantes da confrontação de ambos os textos.

(20) As vêzes com Alexandria: S. G. F. BRANDON, The Fali of


Jerusalem and the Christian Church, 1951, pp. 211 s-, 225, 232, 242, é de
opinião que Pedro se teria dirigido para Alexandria. Mateus, que esta­
ria em contato com Alexandria, teria, em vista disso, glorificado a Pédro,
enquanto que Lucas, que estaria a lançar Paulo contra Alexandria, teria
afastado Pedro para a segunda piana, pelo mesmo motivo.
(21) A. FRIDRICHSEN, “ Sprachliches und Stilistisches zum Neuen
Testament” (Kungl. Human. Vetenskaps-Samfundet i Uppsala, Aorsbok,
1943),p. 28 ss., supõe que se trate de uma maneira estereotipada de se
expressar. — D. F. ROBINSON, Where and when did Peter die? (Journal
of Biblical Literature, 1945, p. 255 e segs.) apresenta uma tese duvidosa,
digna de manção: eis éteron tópon seria idêntico ao “ lugar da glória” ,
i.e ., Pedro teria falecido naquela ocasião, no ano 44, em Jerusalém. Esta
seria o núcleo histórico sôbre o qual estaria baseada a narraç.úo de
At 12. 1-19.
No entanto, a epístola aos Gálatas, na qual Paulo faz comu­
nicações autobiográficas em função da tese teológica ali defen­
dida por êle, contém uma breve informação, que se refere àquele
período anterior, e que confirma, pelo menos indiretamente o que
observamos nos primeiros capítulos dos Atos dos Apóstolos, sô­
bre a posição liderante de Pedro na comunidade de Jerusalém.
Em Gl 1 . 1 8 e segs. é dito que, três anos após sua conversão,
durante sua primeira estada em Jerusalém, Paulo quis conhecer
Cefas. De acôrdo oom essa passagem, também se encontra em
Jerusalém, já nessa época, o irmão do Senhor, Tiago, que poste­
riormente, como veremos, assumirá a sucessão de Pedro na dire­
ção daquela comunidade. Na ocasião em que Paulo chega a Je­
rusalém pela primeira vez, Tiago certamente ainda não ocupa
uma posição especial. Mas na sua qualidade de irmão carnal de
Jesus, parece desempenhar um certo papel ao lado de Pedro, pois
Paulo não fôra a Jerusalém com o intuito de encontrar-se com
êle, e mesmo assim o vê, como único além de Pedro. Ao que
tudo indica, era já naquele tempo, i. e., três anos após a conver­
são de Paulo, impossível permanecer em Jerusalém como cristão,
sem entrar em contato com Tiago.
Para a posição de Pedro, porém, é característico que Paulo,
que ainda não o conhece pessoalmente, empreenda a viagem só
por sua causa. Talvez também tenha sido incentivado pelo de­
sejo de obter de Pedro recordações pessoais da sua convivência
com Jesus. No entanto, outros apóstolos em Jerusalém poderiam
igualmente tê-las transmitido. Se êle quis, pois, conhecer justa­
mente a Pedro, isto se deve, provàvelmente, ao fato de saber, co­
mo todos os convertidos, que êsse homem exercia a liderança da
comunidade-mãe em Jerusalém. É evidente que a direção de
Pedro ainda não tinha o caráter do episcopado “ monárquico”
posterior. Para tanto, a autoridade dos seus colegas dentre o
grupo dos doze e, quiçá, também a de Tiago, era bem relevante.
O papel dos apóstolos em Jerusalém não pode ser confundido com
0 dos posteriores colégios de presbíteros, assessôres dos bis­
pos (22). Isso talvez nos lembre o acréscimo do nome de João

(22) H. von CAM PENH AUSEN , Kirchliches Amt und geistliche


Vallmacht, 1953, p. 15 e seg- e E- SCHW EIZER, Gemeinde und Gemeinde­
ordnung im Neuen Tesfament, 1959, p- 41 e seg-, põe sèriamente etn dúvida a
suposição de que os doze tivessem exercido a direção da comunidade como
um grupo. Por outro lado, está sendo indicada recentemente a analogia
do “conselho” dos doze na seita de Qumran (negada por E. HAENCHRN,
Die Aposfolgeschichte, 1959, p. 129). Acêrca da questão, vide B. REICKE,
nas já citadas passagens dos Atos dos Apóstolos. Só com essa res­
trição é que se pode falar de um episcopado de Pedro em Jeru­
salém.
É na epístola aos Gálatas que Paulo reconheceu a autoridade
de Pedro, fato tanto mais significativo quando se considera que
a epistola foi escrita por Paulo em condições especiais, que o le­
varam a provar a sua independência dos apóstolos de Jerusalém.
A descrição do conflito irrompido em Antioquia entre Pedro e
Paulo (Q1 2 . 1 1 e segs.) o demonstra claramente.
Na época em que Paulo redige a Epístola aos Gálatas, a si-
tuãção em ferusalém é outra. Naquela ocasião Pedro já deixara
Jerusalém havia muito tempo e estava incumbido da direção da
missão judeu-cristã, enquanto em Jerusalém Tiago assumiu a
sua sucessão (23). Tanto mais imoortante é que, apesar disso,
Paulo torna patente no relatório sôbre o temoo da sua primeira
viagem a Jerusalém, que Pedro ainda era então o líder daquela
comunidade.

2 °) A Missão a Serviço da Comunidade Primitiva Judeo-Cristã

Vimos que, segundo At 8. 1 4. iá nos primeiros anos da co­


munidade primitiva Pedro se dirigia ocasionalmente para a região
missionária de Samaria. Assim ê!e poderia ter chegado pau­
latinamente á conclusão (principalmente por ocasião das expe­
riências em Lida, Jope e Cesaréia, relatadas em At 9. 1 0) de que
a sua verdadeira função apostólica, provàvelmente também seu
carisma, residia mais na atividade missionária do que na direção
da comunidade (24). Em todo caso é realmente digno de nota
que 0 apóstolo que mais tarde é reconhecido como a personi­
ficação do govêrno organizado da Igre'a, na verdade exerceu tal

Die Verdassung der Urgemeinde im Lichte jüdischer Dokumente (Th. Z.


1954, p. 95 e segs.) e Glauben und Lehen der Urgemeinde, 1957. p. 21 e
sesfs., que acentua a simultaneidade da posição liderante de Pedro e da
autoridade dos doze.
(23) F. M. BRAUN, Neues Licht auf die Kirche, 1946, p. 70, já men­
ciona ness€ ponto a “ sucessão apostólica” . Mas, v. mais adiante p. 45
e seg..
(24) De acôrdo com W. GRUNDMANN, Die Aoostol zwischen Je­
rusalem und Antiochia (ZN W 1940, p. 123 e segs.), Pedro teria chegado
a fope, Lídia e Cesaréia só após os eventos relatados em At 12. Os Atos
dos Apóstolos teriam, portanto, fixado essa viagem erradamente quanto
à sua cronologia.
função por breve tempo, e a trocou pela de missionário. Redro
não é 0 tipo do h'der eclesiástico, mas do missionário (25). Es­
sa separação de ambas as funções, nas quais se desdobram
Tiago e Pedro, administração eclesiástica e obra missionária, não
está, de modo algum, ligada a uma deliberação ou ato especial,
como poderíamos ser levados a crer pela tradição posterior. Se­
gundo esta, os apóstolos teriam abandonado Jerusalém por 12
anos após a ressurreição, em obediência a uma ordem do Se­
nhor (26), o que não está fora de cogitação. A separação, no
entanto, processou-se antes numa evolução sucessiva e natural.
Quanto a isto, chama atenção o fato de que enquanto Pedro ainda
é o cabeça da comunidade, Tiago já exerce um certo papel lideran­
te ao seu lado, como vimos em Gl 1.18 e segs. Conforme At 1 2. 1 7 ,
Tiago já deve ter substituído a Pedro naquela ocasião, quando
da sua ausência motivada pelas circunstâncias, pois no v. 17
Pedro diz: “Anunciai isto a Tiago e aos irmãos” , exatamente
como foi dito em At 2. 37, correspondendo àquela situação: “ Pe­
dro e os demais apóstolos” . Com certeza, a transmissão defini­
tiva da direção a Tiago relaciona-se com o aprisionamento e li­
bertação de Pedro, que teve como conseqüência o seu afastamen­
to de Jerusalém (27). É muito provável que a atitude de liber­
dade em relação à lei, por parte de Pedro, tenha influenciado a
alteração da direção (28). Tal possibilidade impõe-se, se con­
siderarmos que, após o martirio de Estêvão, que era inimigo
do templo, seus adeptos, os helenistas, tiveram de deixar Jerusa­
lém. Enquanto isso, os doze que não compartilhavam do seu radi­
calismo, puderam permanecer na cidade, como é observado ex­
pressamente em At 8. 1 . Não teria acontecido algo semelhante

(25) Êsse fato, que fundamentaremos no Nôvo Testamento, também


é confirmado nas Pseudo-Clementinas, que evidentemente só citamos como
testemunho secundário: nenhum mestre é reconhecido sem ser legitimado
por T ia g o (Rec. IV, 35); Pedro é enviado a Cesaréia para combater S i­
mão, a mando de T iago. Nada é dito, portanto, acêrca de uma transfe­
rência da direção geral de Jerusalém para Roma. — P. G AECH TER, “ Je­
rusalem und Antiochia” {Zeitschrtít für katholische Theologie, 1948), p.
1 e segs-, não leva em conta o verdadeiro papel desempenhado por Tiago etn
Jerusalém-
(26) KERYG M A PETRI, segundo Clemente de Alexandria, Strom,
VI, 5, 43. A. HARNACK, Geschichte der alfchristHchen Literaíur, II, 1,­
1897, p. 234, considera essa tradição muito antiga.
(27) Assim, com razão, R. GRABER, Petrus der Fels, p. 23; tam­
bém W. GRUNDMANN, Die Apostei zwischen Jerusalem and Antiochia
(ZN W 1940, p. 129).
(28) E- SCHW EIZER, Gemeinde und Gemeindeordnung. im Neuen
Testament, 1959, p. 37, também concorda com a minha suposição.
dessa vez? Pedro teria sido então forçado a deixar Jerusalém,
mas Tiago, que defendia o ponto de vista judaico, mais rígido,
teria podido ficar.
A informação vaga da mesma passagem (At 1 2 . 1 7 : “ êle
retirou-3e para um outro lugar” ) quer simplesmente indicar que,
após a libertação de Pedro, deu-se em definitivo a sua transfe­
rência para a exclusiva atividade missionária, depois de se ter
êle preparado pouco a pouco, anteriormente.

Á única coisa que pode ser conservada como fundamento


histórico nos posteriores e apócrifos Atos de Pedro é que na se­
gunda metade do exercício de seu apostolado êle empreendeu lon­
gas viagens missionárias.
Essa nova função de Pedro também é confirmada nas epís­
tolas de Paulo. Em I Oo 9.5, êle diz que “ os demais apóstolos,
e os irmãos do Senhor e Cefas” , “ faziam-se acompanhar" de
suas esposas, e a comparação com Barnabé e Paulo denota que
deve ser acrescentado: “ nas suas viagens missionárias” (29).
Portanto, já há muito tempo Pedro deve ter começado a concen­
trar-se no serviço missionário. Êle mesmo, pois, bem como Pau­
to e Barnabé, teve de interromper as suas viagens missionárias
para dirigir-se a Jerusalém, à conferência apostólica.
Por ocasião do chamado Concilio dos Apóstolos, como Paulo
0 apresenta, i. e., por ocasião da separação de ambas as regiões
missionárias, judeu-cristã e gentilico-cristã, baseada no acôrdo
pacifico (G1 2 .1 e segs.), a transmissão da direção da comu­
nidade a Tiago, o irmão do Senhor, deve ter sido um fato con­
sumado, visto que já naquela oportunidade Paulo lhe atribui in­
diretamente a presidência entre as “ colunas” . Pois, segundo a
maioria dos manuscritos antigos, Paulo enumera as “colunas”
aqui na seguinte seqüência: Tiago, Cefas, João. Isto poderia ser
casualidade. Porém, num texto como êsse, no qual a autoridade
dos que se confrontam não é sem importância, a seqüência tem
um certo significado (30). Também os antigos copistas o perce-

(29) Não se pode, portanto, falar de uma transferência da sede de


Jerusalém para Roma, como E. STAU FFER , op. cit-, p. 32, a sugere (V.
também P. OAECH TER, o artigo citado acima, obs. 9). Trata-se de
viagens missionárias que talvez tenham conduzido a tôda a parte, evi­
dentemente também a Roma. V. adiante, p. 77 e segs.
(30) P. O AECH TER concentra acertadamente a discussão acêrca
do meu livro sôbre Pedro na subordinação de Pedro a T iago, que tanto
acentuámos. 0 seu argumento, porém, com o qual tenta, no seu artigo
“ Jakobus von Jerusalem” in Petrus und seine Zeit, 1958, p. 278, enfra-
beram corretamente. Vêm daí as variações textuais, no que diz
respeito justamente a essa seqüência. O texto designado com D
coloca Pedro antes de Tiago (31 ). Partindo do princípio de que
a variante “ mais difícil” é a mais antiga, temos que encarar a tes­
temunhada por D como secundária. Pois compreendemos que pos­
teriormente poder-se-ia estranhar a colocação de Tiago antes de
Pedro (32).
Em todo caso, concluímos da seqüência, na qual são enume­
radas as “ colunas” em Gl 2.9, que por ocasião do acontecimento
aqui mencionado não era mais Pedro, mas sim, Tiago, quem ocu­
pava a direção em Jerusalém (33).
Pedro era o cabeça da missão judeo-cristã, subordinada a Je­
rusalém. Por isso Paulo menciona só a Pedro na mesma pas-

quecer a posição de prim azia de T iag o , não convence; Paulo teria men­
cionado T iag o em primeiro lugar, em G l 2.9, só para fazer uma con­
cessão aos contraditores judaizantes que evocavam T iago.
Além disso, P. GAE CH TE R , op. cit., p. 278 e 430, bem como outros
eruditos católicos, acreditam poder deduzir que Paulo teria encarado a
Pedro e não a T ia g o como dirigente, do fato de êle dar a Simão o nome
“ Rocha” (Cefas, Pedro). Mas, por um lado, essa designação, que du­
rante a vida de Jesus não era mais o cognome de Pedro, tornara-se
seu nome fixo a partir do momento em que Cristo lhe apareceu e, por
outro lado, êle sig n ifica mais do que “ dirigente” da Igreja.
(31) Poderia também parecer suspeito que D apresenta correspon­
dentemente, nos versículos 7 e 8, Pétros e não Kephãs, como Paulo o em­
prega comumente. Mas também pí®, que, além do mais, coloca T iago em
primeiro lugar, tem Pétros.
(32) Por outro lado, o Codex Alexandrinus nem sequer menciona
Pedro, talvez sob a influência de uma tendência antipetrina.
(33) Contra E. FASCHER, in Pauly-W issow a, col. 1342. — Por in ­
termédio das Pseudo-Clementinas está confirmado que T iag o realmente
exerceu a direção geral de tôda a Igreja. V. em relação a isso H. J.
SCH OEPS, Theologie und Geschichte des Judenchristentums, 1949, p. 125;
id.. Aus Frühchristlicher Zeit, 1950, p. 120 e segs.; H. v. CAM PENH AU ­
SEN, ZKG 1950/51, p. 137 e Kirchliches Amt und geistliche Volmacht in
den ersten drei Jahrhunderten, 1953, p. 21, também acentua que T iago
assume com o tempo a direção em Jerusalém; além disso E. LOHSE,
Ursprung und Prägung des christlichen Apostolates (Theologische Zeit­
schrift 1953), p. 265, obs. 25. Quanto à questão das Pseudo-Clementinas,
V. também adiante p . 255 e a literatura mencionada na obs. 21 da mesma
p ag - No entanto, queremos observar expressamente que só citaremos as
Pseudo-Clementinas nesse contexto como fonte secundária. Nós o acentuamos,
visto nos ter sido objetado injustamente, da parte de católicos, que es­
tribamos nossa afirmação de que T iag o teria assumido a direção ainda
durante a vida de Pedro, em fontes tão turvas como as Pseudo-Clemen­
tinas. (Vide, p. ex., P. G AECH TER, Petrus und seine Zeit, 1985, p. 271).
sagem (G1 2 .7 e seg.), como organizador da missão judeo-cris­
tã, do mesmo modo que a si mesmo considera como o organizador
da missão gentilico-cristã. “ Os que pareciam de maior influên­
cia viram que o evangelho da incircuncisão me fôra confiado,
como a Pedro o da circuncisão; pois aquêle que operou eficaz­
mente em Pedro para o apostolado da circuncisão, também operou
eficazmente em mim para com os gentios” .
Em todo caso, Pedro, na sua posição de dirigente da missão
judeo-cristã, está sujeito a Jerusalém. Daí é que se explica que,
segundo 0 1 2 . 1 2 , êle teme “ alguns da parte de Tiago” e vê-se
forçado a “ dissimular” por sua causa (34). Entre outras, a di­
ferença entre a sua missão e a de Paulo reside no fato de que
êle, como missionário, se encontra em estreita subordinação a Je­
rusalém enquanto Paulo (com o consentimento das “ colunas” de
Jerusalém) faz a sua pregação entre os gentios, com maior liber­
dade (35).

(34) P. OAECH TER, jerusalem und Antiochien (ZKTh. 1948),


p. 42 e segs. (recentemente Petrus und seine Zeit, 1958, p. 290) está incli­
nado a fazer com que Jerusalém encerre a sua atuação com a ausência de
Pedro e a transmita a Antioquia. Êle tenta separar de T ia g o os “ da
parte de T ia g o ” e menoscabar o seu papel em Antioquia. Pedro só teria
cedido a êles “por causa da querida paz” . Isso, porém, está em contra­
dição com o que Paulo escreve expressamente: Pedro teve mêdo (phoboy-
menos) dos da circuncisão. Êle tem de temer essa gente! Não é possí­
vel desconsiderar êsse temor, como tem acontecido seguidamente nas cri­
ticas católicas ao meu livro, como se fôsse só o temor de que poderiam
advir “ dificuldades” com os da parte de T iag o (que estão subordinados
a Pedro). Pois em Paulo êsse verbo sign ifica quase sempre temor diante
de autoridades. No mais essa significação adapta-se ao que os evan­
gelhos nos dizem acêrca de Pedro (negação). Mais, sôbre o conflito de
Antioquia, v. adiante p. 50 e seg.
(35) P. OAECH TER, Petrus und seine Zeit, 1958, p. 258 e segs.,
no capítulo já mencionado, “ Jakobus von Jerusalem” (surgido pela pri­
meira vez in Z .K .T h . 1954, p. 130 e segs.), procura principalmente en­
fraquecer a importância do testemunho de Paulo sôbre o Concilio Apos­
tólico, em Q1 2 .7, a fim de me rebater. Êle me acusa (p. 284) de ter
pintado “ Paulo segundo Paulo” , por isso o teria pintado mal. Paulo
teria feito um relatório “ muito parcial” , (V. também o duro juízo de
O AECH TER quanto à atuação de Paulo no conflito de Antioquia, op.
cit., p. 432; e ainda, abaixo, obs. 45, p. 52). Essa atitude tão critica
frente aos textos de Paulo surpreende tanto mais quanto se sabe queG AE C H -
TE R deposita tão grande confiança nos relatórios dos Atos dos Apósto­
los, que são posteriores. Nos casos em que a exposição dos Atos dos
Apóstolos diverge da de Paulo, como no relatório do Concilio Apostólico,
êle, sem mais nem menos, dá preferência aos Atos dos Apóstolos. Par­
tindo do fato de que em 01 2,7-9 Pauio menciona só a si e não a seu
cooperador Barnabé, em conexão com a missão aos gentios, êle deduz
(p. 266 e seg.) que Paulo também teria mencionado injustamente só a
Pedro, em conexão com a missão aos judeus. Dessa maneira P. GAECH-
De acôrdo com as epístolas paullnas existe, na verdade, se­
gundo 0 pacto em G l 2.9, um laço frouxo também entre a missão
gentílico-cristã de Paulo e a Igreja primitiva de Jerusalém: a co­
leta que êle organizou fielmente em tôdas as comunidades missio­
nárias por êle fundadas, para aquela comunidade. Tal coleta
não era só um empreendimento humanitário, mas, em primeiro lu­
gar, um testemunho da unidade da Igreja, assim como no judaís­
mo o imposto para o templo de Jerusalém representava o laço ex­
terior da unidade para todos os correligionários judeus, dispersos
pelo Império Romano. A missão paulina que, ao que tudo indica,
teve por centro Antioquia, permanece subordinada, pelo menos
por êsse laço, ã direção em Jerusalém (36).

TE R acredita refutar a minha afirmação de que Pedro estivesse, a partir


daquele momento, na direção da missão aos judeus (dependente de Jeru^
salém). Por outro lado, baseando-se em uma argumentçaão bastante com­
plicada, deduz de At 15 que, no Concilio, Pedro não teria falado como
dirigente da missão, mas “ como cabeça da Igreja” , visto que, em última
análise, êle diz a favor dos gentios o que Paulo e Barnabé deveriam ter
dito, apesar de não ter êle próprio convertido nenhum gentio, com exce­
ção de Cornélio). — E. LOHSE, op. cit., p. 265, atribui, como nós, gran­
de importância ao fato de que Pedro se tornou m issionário após haver
deixado Jerusalém.
(36) A avaliação de P. G AE CH TE R acêrca dessa coleta é bastante
duvidosa e provàvalmente também inadmissível para muitos exegetas ca­
tólicos (V. especialmente Petrus und seine Zeit, 158, p. 283 e segs.).
Êle nega totalmente a interpretação que eu apresento, juntamente com
HOLL, LíETZM AN N e a grande maioria dos pesquisadores- Ela não
teria nada a ver com o impôsto do templo, mas sua finalidade seria me­
ramente caritativa e limitada temporàriamente. De maneira alguma pode
valer o argumento que êle apresenta na p- 285; Caso a coleta tivesse
sido instituída conscientemente com base no impôsto do templo, teríamos
de explicar “ por que Roma que já se evidenciava por volta da transição
do século como centro da Igreja e, pelo menos em continuidade temporal,
como sucessora de Jerusalém, não continuou essa instituição que lhe era
sobremaneira proveitosa” . O que é pressuposto aqui acêrca da suces­
são romana deveria ser provado- No mais, a expressão leiíourgéo, Rm
15.27, e a maneira pela qual o apóstolo fala da coleta em todo êsse
trecho (Rm 15. 25-33) demonstram que Paulo a considerou uma demons­
tração da unidade- Se êle pede especialmente aos cristãos romanos que
orem para que a coleta seja aceita pelos hierosolimitanos (v- 3 1), é por­
que conta, pelo menos em princípio, com a possibilidade de uma rejeição,
o que significaria que os hierosolimitanos não o reconheceriam como per­
tencente à Igreja. A grande preocupação de Paulo é que tal não venha
a acontecer. O mesmo trecho demonstra que para Paulo a Igreja de
■Jerusalém é importante como centro histórico-soteriológico (Vide v- 27).
Só partindo da depreciação da coleta, pode GAECH TER, Petrus und seine
Zeit, 1958, p. 21, afirmar que, no pensamento de Paulo, Jerusalém não
desempenha nenhum papel ou, talvez, um papel bem secundário! Êle
procura demonstrar que, no Cristianismo primitivo, jam ais foi atribuída
«ma missão à comunidade de Jerusalém como tal. Chega mesmo a expri-
A coleta, como liame visível, era tanto mais necessária, por
existirem, em virtude do pacto de Jerusalém, dr.as organizações
missionárias (37). Pois segundo G1 2.9, tinha sido decidido pe­
los apóstolos, em Jerusalém, que Paulo e seus colaboradores de­
veriam dirigir-se aos gentios (38), os de Jerusalém, aos circunci­
dados. Portanto, já no Cristianismo primidvo ocorreu um cisma
decisivo, por mais pacífico que tivesse sido. Ao contrário das
dissidências posteriores, principalmente da que remonta aos Re­
formadores do século XVI, 0 espírito de união se expressava
então naquela obra, a coleta, apesar de tôda a liberdade irres­
trita reciprocamente reconhecida (39). Se posteriormente ocor­
reram conflitos, é porque a separação não era exeqüívej na
prática, visto que provàvelmente tôdas as comunidades eram

mir-se de maneira exagerada: “ Tudo que e!a Ca comunidade de Jerusa­


lém) possuía em autoridade era uma irradiação do seu dirigente” (op.
cit., p. 269). Êsse é realmente o nó do problema e é meritório que GAECH-
TE R tenha expressado tão claramente o que para tantos exegetas católi­
cos é mera pressuposição. Mas nem mesmo O AECH TER apresenta tex­
tos que realmente comprovem essa concepção. Não está provado que,
depois de Pedro haver partido de Jerusalém, aquela comunidade deixou
de ser centro, tendo êste sido transferido automàticamente por Pedro para
onde quer que êle fôsse.
(37) V. acêrca disso J.-L. LEU BA, L’institution et Pévénement, 1950,
p. 62 e segs.
(38) E. HAENCHEN, Die Apostelgeschichte, 1959, p. 408, e seg. explica
a passagem, sem ver nela o texto oficial, corretamente, no sentido da
concessão aos de Antioquia, de abandonar a circuncisão na missão aos
gentios. A separação (pacífica), porém, sobreveio e a questão teológica
não estava resolvida. Êsse detalhe está um pouco apagado em HAEN ­
CHEN.
(39) Seja-nos permitido, aqui, sair um pouco do quadro histórico que
é determinante no presente trabalho, e fazer a seguinte pergunta de bas­
tante atualidade: Não se deveria procurar também hoje um vínculo se­
melhante, por meio de uma coleta comum, entre a Igreja Católica Ro­
mana e a grande comunidade eclesiástica cristã independente de Roma,
sob uma expressa renúncia a um acôrdo no terreno da dogmática e
do direito canônico? Seria necessário abandonar o objetivo mais alto
da união orgânica como sinal de que ambas as grandes Igrejas separa­
das invocam o nome do mesmo Senhor. Pois a ausência inevitável da Igreja
Católica Romana em tôdas as conferências ecumênicas não romanas demons­
tra que, segundo as previsões humanas, uma verdadeira união não é mais
possível, pelo menos no tocante ao motivo daquela ausência, embora jamais
deva cessar o esforço por convicções comuns em questões principais.
Com a proposta de uma coleta mútua, que deveria manifestar expressa­
mente a afinidade, evidentemente não está dito que a situação atual seja
a mesma que na época do Concílio Apostólico. Lamentàvelmente, o abis­
mo entre as Igrejas separadas de hoje é muito mais profundo, pois a
separação não se processou em paz, nem sob apêrto da “ destra da comu­
nhão” , nem sob reconhecimento da liberdade do grupo contrário, em em­
pregar os seus princípios teológicos, como em Jerusalém. Também na-
mistas já na sua origem. De natureza não existia nenhuma co­
munidade puramente gentíiico-cristã, já que em todos os cen­
tros maiores existiam judeus, e sabemos que Paulo até costumava
dirigir-se sempre a êles em primeiro lugar. Por outro lado,
não existia nenhuma comunidade puramente judeo-cristã, pois
em tôda parte ex-gentios aderiam àquela já existente. Tal
não tinha sido observado quando da separação deliberada em Je­
rusalém, e por isso já em Antioquia surgiram os conflitos.
Dessa forma, missionários judeo-cristãos podiam basear-se
sempre no fato de existirem membros judeo-cristãos nas Igrejas
fundadas por Paulo, para justificar a sua intervenção nas comuni­
dades paulinas. Paulo poderia ter feito o mesmo nas comunidades
fundadas pela organização judeo-cristã. No entanto, era Rm
15.20 , êle esclarece expressamente que, no seu entender, não fa­
zê-lo é uma questão de honra. Isto correspondia provàvelmente
ao espirito ‘do pacto de Jerusalém, ainda que a interpretação ver­
bal do mesmo permitisse uma intervenção em comunidades mistas.
Em vista disso, Paulo sempre considerou um “ imiscuir-se” infun­
dado, por parte da missão de Jerusalém, quando aquêles intervi­
nham nas comunidades fundadas por êle, provàvelmente alegando
que lá existiam elementos judeo-cristãos pelos quais se julgavam
responsáveis. Paulo abriu só uma exceção: frente à comunidade
de Roma. Por isso êle se sente constrangido a desculpar-se tão
enfáticamente, alegando a necesidade de dispor de um ponto de
apoio na capital, para as suas posteriores atividades no Oeste
(Espanha). Êle teme, mais do que em qualquer outra parte, que
disso poderiam advir conflitos em Roma. Ainda veremos quão
justificados foram êsses temores (40).

quela discussão dos cristãos primitivos acêrca da circuncisão, tratava-se,


apesar disso, de uma diferença dogmática, que não foi superada embora
se referisse a um ponto principal, qual seja a concepção de graça. Pois
a questão da possibilidade de comer em comunhão com os gentílico-cris-
tãos incircuncisos poderia ser negada pelos da parte de T iago. Já na­
quela época não se chegou a uma convicção comum acêrca dessa questão,
como mostram a efetiva separação e as continuadas discussões dogmáticas
sôbre êsse tema nas cartas de Paulo. O fato de que apesar disso se­
guiu-se, com o apêrto da “destra da comunhão”, a decisão e urtí trabalho
separado, deveria dar-nos o que pensar. Em nosso escrito “ Katholiken
und Protestanten. Ein Vorschlag christlicher Solidarität” , 1958, precisa­
mos com mais exatidão essa nossa proposta que já apresentara na 1.^
edição e desde então seguiram -se já concretizações satisfatórias em tôda
a parte.
(40) As circunstâncias sob as quais ocorrerá o martírio de Pedro
{zÊlos, I Ciem. 5) explicam-se a partir dêsse ponto- V. adiante p. 100 e seg.s-,
116 e segs.
Quer me parecer que, em geral, as exposições mais recentes«'
não consideram suficientemente o fato de que o pacto de Jerusa­
lém não previra a inevitável composição mista das comunidades.
Só isso torna compreensível tôda a trágica polêmica, cujo eço'
constatamos em tôdas as epístolas de Paulo. Já aqui se deve fri­
sar que em tôda essa controvérsia Pedro mesmo estava possivel­
mente mais próximo de Paulo do que os outros membros da mis­
são de Jerusalém (41). Isto se deduz claramente da maneira comtf
Paulo se refere a êle, e justamente também como o censura. Na
verdade, Pedro estava comprometido pela sua posição de dirigen­
te encarregado da missão de Jerusalém. '
No tocante á questão de Pedro, temos que compreender per­
feitamente que, a partir do Concilio dos Apóstolos, existiam dUaS'
organizações missionárias: uma, liderada por Pedro e dependente
diretamente da comunidade primitiva de Jerusalém, dirigida por
Tiago; a outra, a de Paulo e Barnabé, independente de Jerusalém,;
e que só mantinha uma conexão frouxa e externa, na forma da co­
leta comum, com a comunidade-mãe. Vimos que no tempo em
que Pedro ainda lá se encontrava, a comunidade primitiva de Je­
rusalém reivindicara a superintendência da missão em Samaria.
Visto daí, 0 pacto em G l 2.9 redundava em que os de Jerusalém
renunciavam por princípio a uma reivindicação de inspecionar a
missão paulina, e continuavam a dirigir só a judeo-cristã, ministra­
da por Pedro.
Isto significa, no entanto, que, em princípio, Paulo não era só
independente da comunidade-mãe de Jerusalém, para com a qual
tinha, em todo caso, o compromisso da coleta, mas antes de tudo,
de Pedro. Assim também se explica que, por ocasião do confli­
to, relatado em Gl 2. 1 1 e segs., e motivado por ter Pedro se assen­
tado à mesa com gentios convertidos em Antioquia, êste não se
apresenta diante de Paulo como superior, mas que, ao contrário, é
repreendido por êle. É provável que, na sua polêmica con­
tra Roma, os reformadores tenham acentuado demasiadamente o
significado dessa repreensão a Pedro (42). No entanto, também

(41) J.' L. KLíNK, Het Petrustype in het Nieuwe Testamení en de


oudchristelijke Letterkunde, 1947, é mesmo de opinião que Pedro teve de
abandonar Jerusalém em vista da sua posição liberal frente à mis«ão aos
gentios.
_ (42) Vide K. HOLL, “ Der Streit zv/ischen Petrus und Pauius zu An­
tiochien in seiner Bedeutung für Luthers innere Entwicklunk” (Ges. Aupi
III, 1928, p. 134 e .çegs.
0-s Padres da Igreja reconheceram sua importância (43). Tam­
bém é certo que, apesar dêsse conflito, Paulo não cessou de qua­
lificar Simão pelo cognome Cefas, Rocha (44); ainda assim es­
sa passagem demonstra que, a partir do tempo em que ambos ope­
rara paralelamente em sua missão, um “ primado” de Pedro, em re­
lação a Paulo está fora de cogitação (45). Em Corinto, Paulo
se interessa tão pouco pelo partido de Cefas oomo por qualquer
outro partido (46). Estaria êle recusando no partido de Rocha-
Cefas quando escreveu em 1 Cor 3 . 1 1 , que ninguém pode lan­
çar outro “ fundamento” , além do que foi pôsto, o qual é Jesus
Cristo?
Para a apreciação do importante evento que foi o Concílio
dos Apóstolos, e da separação das regiões missionárias, então
deliberada, baseam-nos, na exposição acima, exclusivamente nas
declarações de Paulo, na epistola aos Gálatas. Como já foi men­
cionado, Pedro surge nos Atos dos Apóstolos, posteriormente aos
acontecimentos do cap. 12, só mais uma vez, a última, antes de
desaparecer completamente da narração. E isso, Justamente no
cap. 15, por ocasião do Concilio dos Apóstolos ali descrito. Ve­
rifiquemos se o papel desempenhado por Pedro confere com o que
deduzimos das epístolas de Paulo.

(43) CRISÓSTOM O, Hom Gal 2 .1 (Migne, P, G. L., col. 371 e segs.).


e JERONIMO (Ep. 86-97 e Comment. Gal.) estranharam tanto essa ocor­
rência que lançaram mão da seguinte interpretação que é mais do que
artificiosa: Pedro e Paulo teriam encenado tôda a contenda astuciosa­
mente para instruir os crentes! Já AGOSTINH O (Ep. 8-19) protestou
contra essa interpretação. Vide J. A. MÖHLER, “ Hieronymus und Augus­
tinus im Streit über Gal. 2, 14” (Ges. Aufs., editado por J. DÖLLINGER,
1839, p. 1 ss.); F. O VERBECK, Die Auffassung des Streites des Paulus
mit dem Petrus bei den Kirchenvätern, 1877; A. M. VÖLLM ECKE, Ein
neuer Beitrag zur alten Kephasfrage {]ahrb. von St. Gabriel 1925, p.
69-104).
(44) É o que acentua F. M. BRAU N , op. eit-, p 84, também P.
G AECH TER, Petrus und seine Zeit, 1958, p. 278 e 430. V. acima obs. 30
p. 45.
(45) A maneira pela qual G AECH TER, op. cit-, p. 432, procura
contornar essa conseqüência não deixa de ser uma solução de embaraço:
“ No tocante ao aspeto legal, devemos em todo caso ponderar, se está
totalmente fora de cogitação que Paulo, no seu entusiasmo, não tenha
arrogado para si algo que na verdade não lhe competia.” A expressão
empregada pelo próprio Paulo em G l 2. 11, “ resistir face a face” , sig n i­
ficaria “ fazer cena” (G A E C H T E R ib .). Isso insinuaria que êle teria
agido frente a Pedro “ num entusiasmo exagerado” !
(46) WILHELM VISCHER, Die evangelische Gemeindeordnung,
1946, p. 18, escreve até mesmo: “ Com essa doutrina (de que Pedro deve
ter um sucessor em sua função única) a Igreja papal dilatou o cisma do
partido de Pedro em Corinto, a ponto de êste se tornar uma ruptura
enorme no fundamento.”
Antes, porém, perguntemo-nos se o encontro dos Apóstolos fíàri
rado em At 15 é o mesmo que o Gl 2 . 1 1 e segs.Asseveramos de
antemão que a resposta a essa pergunta quetanto tem sidodeba­
tida, não tem, para o problema de Pedro, a mesma importância-
fundamental que naturalmente lhe cabe nas intermináveis discus­
sões, em estudos especiais, bem como em exposições gerais da
História do Cristianismo primitivo (47). ,
De qualquer maneira, a questão deve ser apresentada. Os
pormenores são, tanto lá como aqui, tão idênticos, que quase ex-
pontâneamente se incute a suposição de que se trata necessària­
mente do mesmo acontecimento. Dessa suposição, no entanto, re­
sultam contradições inegáveis entre a exposição de Paulo em
Gl 2 .1 e segs. e a dos Atos dos Apóstolos, no cap. 15. São di­
fíceis de se contornar. Basta que citemos dois pontos: segundo
G l. 2 . 1 , Paulo dirigiu-se para Jerusalém devido a uma “ revela­
ção” , segundo At 15.1 e segs., porém a cargo da comunidade. Além
disso (e essa é a diferença mais importante), de acôrdo com
G l 2.6, não se impõe a Paulo qualquer regulamento ritual para
a sua missão gentilico-cristã (48). Não é regulada teologica­
mente a questão primordial da necessidade da circuncisão, mas
simplesmente se delibera sôbre a tantas vêzes citada separação das
regiões missionárias, que permite a Paulo converter cristãos sem
exigir dêles a circuncisão. A conferência de At. 15, no entanto^
conclui com a determinação do chamado decreto apostólico (cap.
1 5 . 1 9 e seg.), que exige dos gentios convertidos a observância
de um mínimo de prescrições, principalmente rituais, no que di^
respeito às refeições (49).
A dificuldade surgida com essa última contradição agrava-
se pelo fato de que ainda nos Atos dos Apóstolos o mesmo “ de­
creto” é participado a Paulo muito mais tarde (cap. 2 1 . 2 5 ) , a
saber, na sua última vinda a Jerusalém, e de uma maneira que
realmente não pressupõe que êle tenha sabido algo sôbre isso pre­
viamente, ou mesmo que tenha tomado parte na deliberação. Além
dissOj trabalhos mais recentes apontam em especial dois proble­
mas que nos Atos dos Apóstolos não estão dispostos lado a lado
mui harmoniosamente. Por um lado, a questão da conversão dos

(47) Para orientação Vide E. HAENCHEN, Die Aposteígeschíchtey


1959, p. 396 e segs.
(48) emoi gàr . ■. oadèn prosanéthento-
(49) H. SCHLIER, “Der B rief an die Galater” (Meyers Komrnentar,
10.® ed.), 1949, ad loc., procura resolver a contradição, acentuando o emoi:
Só a Paulo, pessoalmente, não teria sido impôsto nada.
gentios, ou se|a, a aceitação de incircuncidados na comunidade.
Por outro, a questão de sentar-se à mesa com êles.
Tôdas essas e ainda outras constatações provocaram as mais
v^áríádas tentativas de solução, que não exporemos aqui. Mencio-
flarettios as principais categorias de explicação, nas quais as hipó­
teses mais recentes podem ser classificadas (50). Segundo uma,
não sé acha nos Atos dos Apóstolos qualquer paralela para G l
2.1 e segs. Conforme a outra, o encontro de Gí 2.1 e segs. é rela­
tado nos Atos dos Apóstolos, mas não no cap. 15, e sim, no cap.
1 1 . 2 7 , onde é descrita uma viagem anterior de Paulo e Barnabé a
Jerusalém, oportunidade em que prestaram assistência aos irmãos
colhidos pelo flagelo dá fome. De acôrdo com a terceira inter­
pretação, 0 acontecimento de Gl 2.1 e segs. é idêntico ao de Aí 15.
Mas, nesse caso, as contradições têm de ser explicadas alegando-
se, quer inexatidão cronológica nos Atos dos Apóstolos, quer uma
tértdência consciente do seu autor, quer uma combinação de fontes
diferentes, efetuada por êle. Citamos assim só as soluções mais
importantes. Na verdade existe ainda um sem número de va­
riantes (51 ) . Ao que tudo indica, jamais será possível chegar­
mos a uma certeza, e sem uma hipótese nada conseguiremos. A
mais provável é, no meu entender, aquela que reconhece em G l
2 .1 e segs. o mesmo acontecimento que em At 15 e que, além disso,
considera certa a sua classificação cronológica em At 15 trans­
ferindo, no entanto, a apresentação do decreto apostólico para
urtíà ocasião posterior e aceitando-a como anexada errôneamente
â exposição do Concilio dos Apóstolos, pelo autor dos Atos dos
Apóstolos (52).

(50) Uma boa visão sôbre o conjunto apresenta, além de HAEN-


CHEN, também Dom J. D U P O N T , Les Problèmes du livre des Actes d’après
les travaux récents, 1950, p. 51 e segs., além disso, W . O. KÍJMMEL, “Das
Urchrisetntum” {Theologische Rundschau, 1942, p. 81 e segs.; 1948, p. 3
e segs.; 103 e segs-; 1950, 1 e segs.).
(51) Seguidamente acontece que na terceira interpretação o evento
de At l î . 27 e segs. seja identificado simultâneamente com o de At 25.
1 e segs, Surge, no entanto, a seguinte pergunta: Deve ser dada prefe­
rência ao período de At 11.2 7 e segs. ou ao de A t 15 .1 e segs.?
(52) 0 mesmo dizem, embora também com diversas variantes, prin­
cipalmente no tocante à cronologia: H. SCHLIER, Der Brief an die Ga­
later, 1949, p. 66 e segs., M. DIBELIUS, “Das Apostelkonzil” {Theologische
LiteraturzePung, 1947), p. 193 ss., M. GOGUEL, La naissance du Chris­
tianisme, 1946, p. 323 e segs., W . G. KÜMMEL (V. principalmente Theo­
logische Rundschau 1950, p. 27 e segs.). V. também M. DIBELIUS —
W. G. KÜMMEL, Paulus (Goeschen), 1951, p. 118. Essa explicação é
refutada por E. HAENCHEN, Die Apostelgeschichte, 1959, p. 410 e segs..
: Para nós essa questão é de interêsse sòmente no quê diz res­
peito ao problema de Pedro. Supondo-se que o acontecimento de’
At 15 é o mesmo de G l 2 .1 e segs. temos de averiguar se o pa­
pel de Pedro corresponde ao que êle desempenha no encontro des­
crito por Paulo em G l 2 .1 e segs.
Primeiramente constatamos que Pedro se nos apresenta na
sua qualidade de missionário, e não mais de dirigente de uma
comunidade. Isto corresponde exatamente ao quadro resultan­
te da Epistola aos Gálatas. No relatório dos Atos dos Apóstolos
(cap. 1 5. 7) Pedro ergue-se em primeiro lugar para falar de
suas experiências missionárias, antes que Paulo e Barnabé tomem
a palavra. Mas é Tiago que, evidentemente, preside a reunião,
pois êle tira as conclusões do que é relatado e também formula o
“ decreto” (53). Apesar de ter o autor dos Atos dos Apóstolos
apresentado tal decreto erroneamente em conexão com êsse con­
cílio, frisou que agora Tiago é o cabeça da Igreja-mãe de Jeru­
salém. E isto se torna tanto mais importante se considerarmos
que nos primeiros capítulos dos Apóstolos êsse papel cabe a Pedro.
Apuramos mais que em At 15 Pedro fala exclusivamente como
representante da missão subordinada a Jerusalém, o que confere
com a suposição a que chegamos em ponderações anteriores, de
que Pedro, bem como Paulo e Barnabé, interrompera suas ativi­
dades missionárias para tomar parte no concílio em Jerusalém.
Entre os missionários presentes, no entanto, cabe-lhe o papel
principal, pois está a representar a missão procedente de Jerusa­
lém. Sob êsse aspecto, as palavras iniciais de Pedro em At 1 5. 7
são carcterísticas: “ Irmãos, vós sabeis que desde há muito Deus
me escolheu dentre vós (54) para que, por meu intermédio, ouvis­
sem os gentios a palavra do evangelho e cressem” . Sabemos que
Pedro, a partir de G l 2. 1 4, estava intimamente muito mais próxi­
mo de Paulo do que de Tiago, no tocante á questão de assentar-
se á mesa com gentilico-cristãos, e talvez quanto á posição em si,

que não atribui as quatro exigências e nenhum documento antigo, mas á


uma tradição viva durante a época de Lucas, atribuída erroneamente aòs
apóstolos.
(53) T ia g o é, portanto, só uma das “ figuras principais” do Con­
cílio, como escreve P. O AECH TER, “ Jerusalem und Antiochie” (Zeit-
serift für katholische Theologie 1948), p. 41.
(54) De acôrdo com FOAKES JACKSON -KIRSO PP LAKE, The Be­
ginnings of Christianity, ad loc., p. 172, deveria ser traduzido: “que Deus
nos escolheu” . (Segundo C. C. TO R R EY , o en corresponderia aqui a
b(e) aramaico indicando um objeto direto). V. também II Ed 1 9 .7 = N e
9 .7, exelexo en Abraám: tu escolheste Abraão.
frente à lei. Mesmo que aquelas palavras não tenham sido ditas
por Paulo dessa maneira, correspondem perfeitamente à situa­
ção. Nessa conferência, que estuda uma atitude quanto ao
problema da circuncisão, Pedro não alude à sua experiência
como apóstolo dos Judeus, mas aos casos, apesar de raros, em que
converteu gentios. Apesar da presença de Paulo e Barnabé, êle
pode reivindicar o direito de ter sido eleito para pregar o evange­
lho aos gentios. Na missão iudeo-cristã tal direito lhe deve ser-
outorgado, caso não levemos a história da conversão de Corné­
lio totalmente para o campo da lenda, ou a atribuamos, em exage­
rada observância do principio da “ Escola de Tubinga” , à tendên­
cia evidentemente inegável do autor, de extinguir o contraste en­
tre judeus-cristãos e gentilico-crístãos, mas, em todo caso, reco­
nheçamos a sua essência histórica. Já antes da efetiva separação
deliberada em Jerusalém, êle simplesmente pertence a uma outra
organização missionária que não aquela da qual faz parte Paulo,
0 mais independente apóstolo.

Realmente, êle defende um ponto de vista que não está muito


afastado do de Paulo. Contribuiremos para grandes confusões
nas concepções do Cristianismo primitivo e conduziremos a apre­
sentações de hipóteses desnecessárias, caso não consideremos de­
vidamente 0 fato de que, no tocante à administração, Pedro está
subordinado às autoridades de Jerusalém e, por isso, precisa “ te­
mer” “ os da parte de Tiago” . Na questão da posição frente ao
aspecto gentílico-cristão e à lei, cie está, na verdade, muito mais
próximo de Paulo do que de Tiago (55). O fato de que justa­
mente Pedro, o dirigente da missão nomeado por Jerusalém, te­
nha apoiado tão veementerhente os seus colegas Paulo e Barnabé,

, (55) A exposição demasiadamente simples de que Pedro não teria


sido mais dd que um representante do ponto de vista hierosoümitano
está sob a influência da “escola de Tubinga” , que continua a agir, p. ex.,
em H. LIETZM AN N , “ Zw ei Notizen zu Paulus” (Sitzmgsberícftí der Berí.
Ak. d. Vi/zss. 1930, n.® 8) bem como nasua Geschichte deralten Kirche.
(V. por outro lado E.HIRSCH, Petrus und Paulus, ZN W 1930, p. 23).
N a Antigüidade, essa exposição errônea foi propagada principalmente
pelas Pseudo-Clementinas, em especial pela antiga fonte dos Kerygmata
Pétra, adotada por elas- V. a respeito disso H. J. SHOEPS, Theologie
und Geschichte des judenchristentums, 1949, p. 118 e segs. — Acredito
que na concepção da morte expiatória de Jesus, justamente Pedro estava
muito próximo de Paulo. Isso é indicado pelo fato de que os Atos dos
Apóstolos parecem recordar, nos primeiros capítulos, que Pedro classifi­
cava a Jesus de pais, i.e., o sofredor servo de Deus, de Isaías. V. a
êsse respeito, adiante, p. 73. e segs.
quando do concílio, sem dúvida cooperou grandemente para a
regularização pacifica do conflito (56).
Que êle mais tarde, em Antioquia, “ dissimula” , movido pelo
mêdo, contra a sua consciência (Gl 2 . 1 1 e segs.), é algo talvez
típico do aspecto psicológico dêsse discípulo impulsivo, por de­
mais zeloso em jurar fidelidade ao seu Senhor, negando-o, con­
tudo, na hora do perigo, como concluímos dos sinóticos. Por ou­
tro lado, deve ser dito, para seu descargo, que, como dirigente de
uma missão, subordinado à comunidade de Jerusalém, êle se en­
contra numa posição infinitamente mais difícil que o independente
Paulo, e que êsse conflito colocou a Pedro, o primeiro e ex-cabe­
ça da comunidade, frente a um dilema especialmente doloroso.
Não podemos mais que imaginar tal dilema, visto que não se
conservou dêle uma coleção de cartas tão volumosa como a de
Paulo e que além disso êle, justamente devido à sua dependência
de Jerusalém, mal poderia ter, como Paulo, a oportunidade de
expressar-se tão abertamente sôbre o assunto (57). Não deve­
mos perder isso de vista para compreendermos os próximos acon­
tecimentos.
Em todo caso, êsse aspecto não pode ficar esquecido se quiser­
mos ter uma imagem correta de Pedro, o apóstolo. Temos que
pensar nisso também, ao tentarmos obter uma visão das duas via­
gens sôbre as quais tão pouco sabemos. Mediadores sempre se
acham numa situação especialmente difícil e, como vimos (58),
Pedro provàvelmente já desempenhara tal papel desde o princípio
na comunidade primitiva entre helenistas e judaizantes.
No tocante ao Concílio dos Apóstolos, que tem lugar na pri­
meira metade dessas atividades, chegamos à conclusão de que as
informações dos Atos dos Apóstolos, com referência à posição de
Pedro conferem, em seus pormenores, de um modo geral, com as
observações anteriores, feitas independentemente de At 15, seja
qual fôr de resto a relação entre Gl 2 .1 e segs. e os Atos dos Após-

(56) O louvor que E. HAENCHEN, Die Apostelgeschichte, 1959,


p. 409, tributa à comunidade de Jerusalém, em virtude do Concilio Apos­
tólico, cabe, provàvelmente, em prim eiro lugar a Pedro: “ Êsse reconhe­
cimento da missão de Antioquia aos gentios era algo admirável, que
muito honra os hierosolimitanos” .
(57) Em I Clem 5 poderia estar guardada uma lembrança a êsse
respeito. Lá se lê que Pedro teria “ sofrido não só um ou dois, mas
diversos tormentos, por causa de ciúme injusto” . Não está insinuado que
Pedro era jogado constantemente de um lado para outro? V. adiante
p. 116.
(58) V. acima p. 38 e seg.
tolOs. Todavia, a suposição de que o Concilio dos Apóstolos
(sem 0 decreto) fôra classificado cronològioamente com exa­
tidão pelo autor dos Atos dos Apóstolos, encontra confirmação,
a partir dêsse ponto.
Como já foi dito, nada sabemos, por assim dizer, sôbre tôda
a segunda metade das atividades missionárias de Pedro, exceto
0 fato em si. O início da Primeira Epístola de Pedro (I Pe 1 . 1 ) ,
quer autêntico quer não, parece pressupor que êle missionou na
Ásia Menor. Nada sabemos de concreto sôbre isso. Mas o seu
nome está, antes de tudo, ligado especialmente a três centros mis­
sionários: Antioquia, Corinto e Roma.
Vimos que, no incidente relatado em Gl 2.11 e segs. êle se en­
contra em Antioquia, onde é repreendido por Paulo. Talvez êle já
tivesse estado lá antes, porém, quanto a isso não temos certeza.
Os Atos dos Apóstolos só narram que os que foram dispersos, de­
vido à perseguição a Estêvão, foram para a Antioquia (At 1 1 . 1 9 ) .
Visto que no cap. 8 .1 é dito que os apóstolos não foram incluídos
naquela dispersão, a hipótese de que Pedro tenha fundado Antio­
quia não está diretamente fora de cogitação, mas não é exatamen­
te provável (59). Quando muito, poder-se-ia perguntar se Pedro,
como em Samaria, na sua então qualidade de cabeça da comuni­
dade primitiva de Jerusalém, não confirmou posteriormente a con­
versão dos habitantes de Antioquia, e assim, indiretamente, a fun­
dação da comunidade. Acêrca disso, no entanto, não possuímos
qualquer informação. Contudo, encontramos a afirmação de que
Pedro fundou a Igreja de Antioquia relativamente cedo, em Orí­
genes, subseqüentemente em Eusébio, Crisóstomo e Jerônimo (60).
A Igreja da Antioquia tem, pois, todo o direito de reportar-se a
essa bem antiga tradição. Já agora deve ser acentuado que, a
êsse respeito, Antioquia pode, em princípio, apresentar a mesma
reivindicação que Roma; portanto, essa tradição de Pedro está,
no mínimo, igualmente bem, senão melhor testemunhada para
Antioquia. Será preciso lembrá-la na segunda parte dêste livro,
pois esta questão não é sem importância diante da exclusiva exi­
gência do bispo de Roma quanto a Mt 1 6 . 1 6 e segs. Ünicamente

(59) Ela também é negada por H. K A T ZEN M A YE R , “ D ie Beziehun­


gen des Petrus zur Urkirche von Jerusalem und Antiochien” {Internatio­
nale kirchliche Zeitschrift, 1945, p. 116 e segs.).
(60) O RÍGEN ES in Lucam hom. VI, c (M^sne P. G. X Ill, coL 1814
e segs.); EUSÉBIO, H. E. III, 36, 2 e 22; CRISÓSTOM O, Hom. in Im at.
(Migne P. G. L., col. 591); JERÔNIMO in Gl. 2, 1 (Migne P. L. XXVI,
col. 3 ^ ) ; id., De vir. ill. 1 (M igne P .L . XXIII, col. 637).
sob êsse aspecto é que nos interessa a afirmação de que Pedro
fundou Antioquia. Por outro lado, ela não pode ser fundamen­
tada históricamente. .
Já constatamos que é arbitrário identificar o “ outro lugar”
de At 1 2 . 1 7 com Antioquia (61). O certo, pois, é só o fato de
que Pedro demorou-se em Antioquia e que, provàvelmente, man­
teve estreitas relações com essa comunidade, como pressupõe o
incidente de Gl 2.11 e segs. Sua posição como dirigente da missão
judeu-cristã forçosamente fêz com que entrasse em contato mais
íntimo com essa congregação, a qual, dada a sua constituição,
não era só centro da missão gentilico-cristã, mas também da
judeu-cristã.
Teria Pedro chegado a Corinto em suas viagens missioná­
rias? Nem os Atos dos Apóstolos nem as epístolas de Paulo aos
coríntios o mencionam. Em todo caso, os Atos do Apóstolos pa­
recem nada saber de uma participação de Pedro na fundação
dessa comunidade. 0 seu relato no cap. 18 refere-se só à con­
versão dos coríntios por intermédio da prédica de Paulo, deixan­
do pouco espaço para uma ação simultânea de Pedro. Os da­
dos da Primeira Epístola aos Coríntios também excluem a coo­
peração de Pedro na fundação da comunidade. Em I Co 3.6
Paulo escreve: “ Eu plantei, Apoio regou, mas o crescimento
veio de Deus” ; e em I Co 4 . 1 5 : “ Porque ainda que tivésseis
milhares de preceptores em Cristo, não teríeis, contudo, muitos
pais; pois eu (62) pelo evangelho vos gerei em Cristo Jesus” .
Paulo considera-se, pois, claramente, como o único fundador da
comunidade.
Por outro lado, na Primeira Epístola aos Coríntios, é pos­
sível encontrar eventualmente um apoio para a afirmação fre­
qüentemente advogada, de que Pedro teria vindo posteriormen­
te a Corinto e agido lá como missionário, pois os primeiros ca­
pítulos da Primeira Epístola aos Corintos versam sôbre os par­
tidos que lá se formaram. No cap. 1 . 1 2 é citado, além dos
partidos de Paulo e de Apoio e o problemático “ partido de Cris­
to” , também o de “ Cefas” . A existência dêsse partido de Ce­
fas não pressupõe a estada e a pregação de Pedro em Corinto?
Nessá epístola dirigida aos coríntios, a menção esipecial do
exemplo de Cefas que, nas suas viagens missionárias, se faz
acompanhar de sua espôsa (I Co 9. 5), poderia amparar essa

(61) V. acima p. 40.


(62) egó
hipótese. Em último caso poder-se-ia, talvez, alegar o íato es­
tranho de que Paulo, como êle mesmo o afirma (I Co 1 . 1 5 e
segs.), batizou só Gaio, Crispo, bem como Estéfanas e sua ca­
sa. Seria êle de opinião que o batismo espiritual compete aos
doze, como em Samaria (At 8 .14 e segs.)? (63)
Sôbre referências tão parcas, no entanto, pode-se edificar,
na melhor das hipóteses, só uma suposição. A afirmação de
que Pedro estêve em Corinto foi, como se disse, defendida atra­
vés dos anos por pesquisadores de renome, mas também depa­
rou com enérgicos opositores (64). Na Antigüidade ela sur­
ge pela primeira vez por voltado ano 170 numa carta de Dio­
nisio de Corinto aos romanos, citada por Eusébio (65) :“ Co
essa exortação, vós unistes intimamente a árvore dos coríntios
à dos romanos, as quais foram plantadas por Pedro e Paulo.
Pois ambos (os apóstolos), plantando aqui em nossa Corinto e,
da mesma maneira ensinando, após terem ensinado juntamen­
te na Itália, padeceram juntos o martírio” . O que de antemão
deprecia êsse testemunho é a alegação evidentemente falsa, e
refutada não só pelos Atos dos Apóstolos, mas também por
Paulo, de que a comunidade de Roma foi fundada por Pedro
iuntamente com Paulo.
Independentemente da afirmação de Dionisio, uma posição
deve ser tomada, frente à conclusão, baseada na existência dc>
partido de Cefas em Corinto, de que Pedro se tenha demorado
nessa cidade. No entanto, essa conclusão não é, de modo al­
gum, definitiva. Pois todos os missionários judeu-cristãos en­
caravam Pedro como o cabeça da sua missão e o confrontavam
com Paulo de preferência como o “ verdadeiro apóstolo” , pro­

ies) V. acima p. 37 e segs.


(64) Entre os que defendem a tese da permanência de Pedro em
Corinto menciono principalmente: EDUARD M EYER, Ursprung and An­
fänge des Christentums, vol. 111, p. 441, obs. 1, 498 e segs.; A. HAR­
N ACK, Mission und Ausbreitung des Christentums in den ersten Jahr­
hunderten, 4.^ ed., 1915, p.63, obs. 2; H. LIETZM ANN, “ D ie Reisen des
Petrus” {Sitzungsbericht der Berliner Akademie der Wissenschaften, 1930,
p .l5 3 e segs.); J. ZEILLER, “ L’E glise prim itive” {Histoire de l’Eglise,
vol. I, p .2 4 7); recentemente, H. K ATZEN M A YE R , “ Das Todesjahr des
Petrus” {Internationale kirchliche Zeitschrift, 1939, p.85) e especialmen­
te id., “W ar Petrus in Korinth?” {Internationale kirchliche Zeitschrift
1943, p 20 e segs.). Entre os que a negam devem ser mencionados prin­
cipalmente: W . BAUER, Rechtgläubigkeit und Ketzerei im ältesten Chris­
tentum, 1934, p -117 ; M. OOQUEL, “ L’apôtre Pierre a-t-il joué un rôle
personnel dans les crises de Grèce et de G alatie?” {Revue d'Histoire et
de Philosophie religieuses 1934, p . 461 e segs.); id., La naissance du
Christianisme, 1946, p .335 e segs.
vàvelmente devido à sua relação particular com Jesus, fato que
pode ser concluído indiretamente das Epístolas de Paulo. Por
isso, Paulo se vê constrangido a protestar, afirmando que tam­
bém êle “ viu a Jesus” (cap. 9 .1 ) . Contudo, o próprio Pedro
certamente não pertence àqueles, contra os quais Paulo se volta
nas Epistolas aos Coríntios com especial vigor. Êle não é dos
que Paulo classifica, em outra ocasião de “ falsos irmãos” , e que
o seguiram a tôda parte e depreciaram a sua pessoa e princi­
palmente sua autoridade (66).
Também a polêmica na Epístola aos Gálatas não visa a
Pedro e nem é necessário supor-Se aqui que Pedro tivesse esta­
do na Galácia, o que tem sido afirmado por diversos historiado­
res. Nada indica que o incidente em Antioquia tivesse resulta­
do em ruptura do acôrdo hierosolimita, i. e., entre Paulo e
Pedro (67). De acôrdo com tudo o que constatamos sôbre a
atitude de Pedro, êle próprio provàvelmente não deve ser res­
ponsabilizado diretamente pela contra-missão dos falsos irmãos,
que em tôda parte tentaram sabotar a obra de Paulo, não obs­
tante usarem, com predileção, o nome de Pedro, apresentando-o,
de qualquer maneira, talvez, como comitente. Basta, pois, su­
por que essa gente penetrou na comunidade de Corinto, funda­
da por Paulo.
Com isso, no entanto, não deve ser cortada a possibilidade
de que alguma vez Pedro tenha visitado, em suas viagens. Co­
rinto (e também a Galácia). Estando êle na direção da missão
judeu-cristã, deve-se contar com essa possibilidade. Porém, nem
a existência do partido de Cefas nem outros indícios o provam (68).
A permanência em Corinto, por conseguinte, não pode ser afir­
mada nem negada, mas pode ser considerada possível.
Vemos, pois, que nada de certo pode ser dito acêrca de tô­
da a atividade missionária de Pedro, considerando as parcís-

(65) H. E. II, 25, 8.


(66) Assim, acertadamente, E. HIRSCH, Petrus und Paulus (ZNW
1930, p .63 e segs.), contra H. LIETZM ANN, op. cit., acima, obs. 64
à p. 60. V. a êsse respeito também acima p . 32.
(67) Isso é acentuado acertadamente por M. GOGUEL, contra H.
LIETZM ANN (op. cit.)
(68) H. KATZEN M A YE R , “W ar Petrus in Korinth?” (V. também
a obs. 64, na pág. anterior), estriba-se entre outros em I Clem 47,
onde está escrito que Apoio foi aprovado pelos apóstolos. Êle «ó
poderia ter-se encontrado com Pedro em Corinto. No entanto, não está
dito: I.®) se êsse trecho se refere a Pedro, 2°) se êle só poderia ter-se
encontrado com Apoio em Corinto.
simas informações de nossas antigas fontes. O que em especiaF
acarreta más conseqüências é que essas fontes (as epístolas de
Paulo e os Atos dos Apóstolos) silenciam totalmente também no
tocante à permanência de Pedro em Roma, que foi de um modo
geral, posteriormente aceita. Ventilaremos, no entanto, essa
questão, só em conexão com o capitulo dedicado a Pedro, o
mártir.
Por enquanto verificamos, pois, que o apóstolo Pedro diri­
ge a comunidade primitiva de Jerusalém nos primeiros tempos
que se seguiram à morte de Jesus, que êle deixa então Jerusa­
lém, cuja direção passa para Tiago, e que, a partir de então,
dirige a missão judeu-cristã, a cargo da comunidade primitiva e
dependente da mesma.

3.®) A Questão da Vocação Apostólica

Resta-nos ainda responder à pergunta que fizemos no ini­


cio dêste capitulo: origina-se a ação apostólica de Pedro em
ambos os aspectos sucessivos — a direção da comunidade e a pre­
gação missionária — de uma ordem especial, que Pedro teria
recebido de Jesus?
Vimos que quanto à posição especial de Pedro durante a
vida de Jesus não é mais possível apurar até que ponto ela pro­
vém das qualidades especiais de seu caráter, e até que ponto, da
distinção outorgada por Jesus com a concessão do nome “ Ro­
cha” . Constatamos que devemos contar com ambas as possibi­
lidades; além disso, que naquele tempo, a sua posição especial não
assume o aspecto e uma superposição sôbre os outros discípu­
los. No entanto, para o período após a morte de Jesus, em que
Pedro efetivamente dirigiu a comunidade de Jerusalém por cer­
to tempo, a pergunta sôbre a incumbência assume outro aspecto.
A comunidade primitiva está consciente de que tudo que se
passa dentro dela e junto a ela está vinculado ao evento central
da salvação, que se processa em Cristo, e é parte do plano de
salvação de Deus. Explica-se assim a elevada consciência apos­
tólica de Paulo, que, em tudo o que faz, tem a convicção de
ser um instrumento do evento de Cristo, determinado por Deus.
Não estamos informados, de maneira idêntica, sôbre a cons­
ciência de nenhum outro apóstolo. Porém, no que diz respei­
to à avaliação própria dos primeiros cristãos em geral, que
se consideravam o verdadeiro povo de Deus, podemos admitir,
a priori, que também Pedro tiniia consciência de agir em nome
de Cristo. .
Essa profunda convicção fundava-se, no caso de Paulo, na
experiência de uma vocação especial Seria o mesmo no caso
de Pedro? Ou pertence, segundo a concepção cristã primitiva, ao
apostolado? (69) Se fôr êsse o caso, surge sôbre Pedro mais ou­
tra pergunta: ocorreu a sua verdadeira vocação para o apostolado
por intermédio de Jesus encarnado, embora se reporte ao período
após a sua morte? Ou partiu sòmente do Cristo ressurreto?
Ou deve-se contar com ambas as possibilidades?
Só na segunda parte dessa obra discorreremos detalhada­
mente sôbre a palavi'a da Igreja (Mt 16 .16 e segs.), dirigida ^
Pedro. Por ora ela deve ser citada só por apresentar uma fun­
damentação para a incumbência do Jesus histórico, a qual Pe­
dro deve executar após a morte daquele. O procedimento de
Pedro na condenação de Ananias e Safira (At 5 .1 e segs.) seria
interpretado muito bem como cumprimento da promessa de Mt
16 .19 .
No entanto, por ser essa passagem tão discutida, só a men­
cionamos incidentemente, como no primeiro capítulo. Tanto lá
como aqui deve ser dito que, mesmo sem a consideração dessa
palavra, o resultado permanece o mesmo; quase ninguém nega
a autenticidade da incumbência de Jesus a Pedro, (Lc 2 2 .3 1 e
segs.), de “ fortalecer os irmãos” (70) além disso, é inegável o
fato da concessão do nome “ Pedro” (mesmo sem a fundamenta­
ção acrescentada em Mt 1 6 .1 7 e segs.). Ora êstes fatos bastam
para reconhecer que a posição especial de Pedro como dirigente
da comunidade de Jerusalém foi uma incumbência dada pelo
Jesus histórico.
Firmamo-nos na opinião de que, mesmo independentemen-'
te de Mt 16 .16 e segs., existe a possibilidade de a posição li­
derante, ocupada por Pedro na comunidade primitiva, provir da
distinção ou da incumbência que Jesus lhe atribuiu, quando ain­
da em carne, e que êle só teve oportunidade de cumprir após a
morte do Senhor.

(69) V. adiante p. 244 e segs. e a literatura mencionada nas refe­


ridas observações, além disso, A. FRíDRíCHSEN, The Apostle and his
Message (Uppsala Universitets Arsskrift, 1947).
(70) V. acima p. 28. .
Na verdade, -também já ae disse que aquela palavra
èm Lc 2 2 .3 1 e segs., bem como tôdas as passagens que, nos
sinóticos, realçam Pedro, não passam de uma criação da co­
munidade, que, dessa maneira, teria produzido posteriormente
uma legitimação, pelo Jesus histórico, do papel efetivamente li­
derante que Pedro desempenhou na Igreja. No entanto, já
vimos que a distinção de Pedro, pelo nome Cefas, como tal
(sempre, de inicio, independentemente da fundítmentação em
Mt 16 .17 e segs.) não pode, de maneira alguma, ser explicada
dessa maneira. Ao contrário, deparamos aqui com um fato
quase incontestável.
Por outro lado, nos trabalhos mais recentes é aceita uma
incumbência especial, transferida, porém, para o período que
se segue à morte de Jesus, quando o Cristo ressurreto, numa
visão, a impõe a Pedro. Tal incumbência teria sido então an­
tecipada posteriormente, pela tradição dos Evangelhos, para a vi­
da de Jesus. Voltaremos a essa interpretação, em conexão com
Mt 1 6 .1 7 e segs. Por ora, no entanto, deve ser dito também
em relação a ela, que pelo menos a concessão do nome não po­
de ser atribuída dessa maneira à comunidade primitiva ( 7 1).
Evidentemente, possuímos também informações certas, que
testemunham uma distinção e uma incumbência especiais do Cris­
to ressurgido, a Pedro. Aqui, em todo caso, pisamos terra fir­
me e, apesar de termos de contar com uma distinção especial,
jáT^pelo Jesus histórico (fato de que estou convencido), não sen­
do absolutamente necessário que a questão assuma a forma de
uma alternativa, a incumbência por parte do Ressuscitado merece
uma significação maior e mais direta para a fundamentação do
apostolado de Pedro. Consideremos que o fato de ter visto
o Senhor ressurreto (1 Co 9 .1 ; At 1.2 2 ) (72) não constitui
a condição exclusiva (73), mas uma condição importante para
o apostolado. Nesse caso, parece ser quase necessária uma vo-

(71) K. Q O E TZ e E. DINKLER chegam a opinar que a concessão


do nome foi criação da Igreja primitiva. A êsse respeito, v. p. 22.
(72) H. V. CAM PENH AUSEN, “ Der urchristliche Apostelbegriff”
(Studia theologica Lund, 1948, p. 112 e seg.), acentua com razão que a
identificação total de apóstolo e testemunha da ressurreição é insufi­
ciente, já porque em 1 Co 13.3 e segs. nem tôdas as testemunhas da
ressurreição enumeradas por Paulo chegaram a ser apóstolos. (Cf- o “ mais
de quinhentos irmãos” , em 1 Co 15.6 ).
(73) V ide K. H- REN G STO R F, artigo Apóstolos in Theologisches
Wörterbuch zum N- T. de G- Kittel. V-, em referência a essa questão,
adiante, p. 244-
cação para um apostolado especial, pelo ressurgido. E isto,
até mesmo em casos nos quais já houve uma distinção pelo je ­
sus terreno, como provàvelmente acontece com Pedro.

Dada a grande importância para o apostolado, conferida à


aparição como tal, surge a pergunta se cada aparição do Ressus­
citado não era considerada de per si, simultâneamente, como
uma “ vocação” . Para Paulo, em todo caso, é certo que a
aparição do Ressuscitado, que lhe advém na estrada para Damas­
co, coincide com sua vocação. Porém, nas fontes que temos à
nossa disposição sôbre as aparições do Senhor vistas por Pe­
dro, ambos os fatos são relatados separadamente e não com­
binados. Por um lado vemos em I Co 15 .5 e em Lc 24.34
que Cristo apareceu a Pedro; por outro, em Jo 2 1, que, por
ocasião de uma aparição, à qual estão presentes além dêle, ou­
tros apóstolos, lhe é dada a incumbência esoecial de “ apas­
centar as ovelhas” de Cristo. Já tem sido afirmado que aqui
se trata do mesmo acontecimento. Antes de tomarmos posição
quanto a essa hipótese, apreciaremos inicialmente só o fato re­
latado em I Co 15 .5 e Lc 24.34, quanto à sua importância pa­
ra o papel de Pedro na comunidade primitiva.

Antes de tudo, não é possível salientar suficientemente que,


de acôrdo com I Co 15 .5 , Pedro é o primeiro a quem o Se­
nhor apareceu (74). Pois com isso, o Cristo ressurgido, por
assim dizer, selou a distinção pelo nome de Cefas, que iá lhe
conferia quando vivo. A passagem (I Co 15 .5 ) que se refere
a Pedro como a primeira testemunha da ressurreição é, tal­
vez, o texto cristão mais antigo que possuímos. É anterior às
epístolas de Paulo, sendo mencionado expressamente como uma
citação da tradição mais antiga, que lhe foi transmitida (75).

(74) F. K A TTE N B U SC H , Die Vorzmstellmg des Petrus und der


Charakter der Urgemeinde zu Jerusalem, Festgabe für K. Müller. 1922,
p .328 e segs.; id., “ Der Soruch über Petrus und die Kirche bei IVlatth.”
(Studien und Kritiken, 1922, p. 130), o nega injustamente, tentando não
interpretar o eiía cronològicamente. Na enumeração de I Co 15.5, no
entanto, a seqüência é evidentemente de imoortância. A. HARNACK,
“ D ie Verklârungsgeschichte fesu” {Sitzungsbericht der Preussischen Aka­
demie der Wisaenschaften 1922, p .68), K. G O ETZ, op. c it, p . 4 e segs.
€ E. STAU FFER , op. cit., p .6 e segs., atribuíram a devida consideracão
ao fato de que Pedro é o nrimeiro aue vê o Ressuscitado, K. G O E T Z
frisa acertadamente contra F. K A T T E N B U SC H que as palavras ésqaíon
dè pánton, em 1 Co 15.8 afirmam o elem«nto cronológico na enumeração.
(75) De acôrdo com o que dissemos até êste ponto, é imoossível
afirmarmos, como E. STAU FFER , op. cit., p .6, obs. 14, que “ quem aí
Ê de estranhar que os Evangelhos omitam essa aparição a
Pedro., Nem Lucias a relatá, mas alude brevemente ao fato.
Os onze comunicam aos discípulos de Emaús; “ o Senhor real­
mente ressurgiu a apareceu a Simão” (Lc 24.34).
Teria essa aparição sido narrada no final de Marcos, que
está desaparecido? A pergunta se impõe ao constatarmos que
em duas passagens, e justamente nos últimos versículos que se
nos conservaram, o Evangelho se reporta a Pedro de maneira
especial em conexão com a ida à Galiléia, anunciada por Je­
sus para o período após a sua ressurreição (76). De inicio^
0 próprio Jesus diz, em Mc 14 .2 8 : “ Depois da minha ressur­
reição irei diante de vós para a Galiléia” . É exatamente Pe­
dro quem, no versículo seguinte, toma a palavra, com relação a
essa promessa. Além disso, o jovem vestido de branco anun­
cia, no túmulo: “ Dizei a seus discípulos, e a Pedro, que ê!e
vai adiante de vós para a Galiléia” (Mc 1 6 .1 7 ) . Partindo daí,
pode-se realmente perguntar se não deveria ser mesmo postu­
lado um relato sôbre uma aparição de Jesus a Pedro, no fina?
do Evangelho de Marcos (77).
A suposição de que o final de Marcos estivesse perdido e
de que tivesse contido a narrativa da aparição a Pedro, men­
cionada em I Co 1 5 .5 e Lc 24.34, continua sendo uma hipóte­
se. Mas há muitas razões a favor de sua exatidão. Pois é
deveras estranho que não possuamos qualquer relato sôbre um
acontecimento de tal importância, como a primeira aparição do
Senhor, e justamente ante o discípulo que um pouco antes o ti­
nha negado. Por isso, também é justificável perguntar se aque-

fala não é um partidário, mas um adversário de Pedro” . Nem os auto­


res da citada fórmula nem Paulo, que o cita, podem ser classificados de
adversários -de Pedro.
(76) A suposição defendida por E- LOHMEYER, Galllâe und Jeru­
salem, 1936, de que a aparição a Pedro tivesse ocorrido em Jerusalém,
estaria então dificultada.
(77) Assim E. STAU FFER , op. cit., p. 11 s. Também K. G O E T Z,
op- cit., p-73, conta com essa possibilidade. Igualmente N. HUFFMAN,
“ Emmaus among the Resurrection Narratives” (Journal of Biblical Lite­
rature 1945, p .205 e segs-), que procura, aliás de maneira bastante ar­
bitrária, identificar o discípulo sem nome da história de Emaús com
Pedro e responsabiliza Lucas pela transferência da cena para Jerusalém.
Por outro lado, K. L. SCHMIDT, Kanonische und apokryphe Evan­
gelien und Apostelgescliichten, 1944, p .27; N. B. STO N EH O U SE, The
Witness of Matthew and Mark to Christ, 1944, p . 86 e segs.; W- C. A L ­
LEN (Journal of Theological Studies 1946, p . 201 e segs.) negam que o
final de Marcos original se tenha extraviado. Antes, acreditam serem
as palavras ephoboúnto gár o finai do Evangelho.
la ocorrência não deixou outros vestígios nos textos existentes^
além das duas breves notas, na Primeira Epístola aos Corin-
tios e no Evangelho de Lucas.
Em primeiro lugar acredita-se que, no capítulo anexo 2 1,
do Evangelho de João, dispomos até de mais de um vestígio, a
saber, uma ampliação da narrativa (78). É até surpreendente
como Pedro é projetado, na segunda parte da história, para a
primeira piana, sendo então realmente apresentado em posição
paralela à do discípulo amado, do mesmo modo que nas pas­
sagens correspondentes dos capítulos anteriores. A tríplice asse­
veração de amor ao Senhor e a tríplice incumbência contrastam
conscientemente com a tríplice negação (79). É possível que tam­
bém a pesca maravilhosa, narrada na primeira parte dessa his­
tória, se refira à história da vocação, de Mc 1 .1 6 e segs., querendo
indicar o cumprimento daquela promessa, sôbre os “ pescadores
de homens” . É certo que, na sua forma atual, o capitulo en­
cerra, em ambas as suas partes, principalmente na segunda, um
caráter “ joanino” . Também é possível que a narração se te­
nha baseado numa descrição de Marcos sôbre a aparição de
fesus a Pedro (80). No entanto, deve ser admitido que tam­
bém essa idéia não passa de hipótese, uma vez que justamen­
te tôda essa narração, tal qual ela se nos apresenta no Quarto
Evangelho não versa sôbre a primeira aparição, nem sôbre
uma que teria sobrevindo a Pedro. Se realmente fôsse com­
provado como certo que a ligação entre a incumbência confia­
da a Pedro e as palavras referentes ao discípulo amado devem
ser atribuídas só ao autor do capítulo anexo, também essa hipó­
tese poderia atingir um maior grau de probabilidade. E isto, con­
siderando-se ainda que também fontes orientais posteriores in­
dicam uma incumbência especial em conexão com uma apari­
ção de Cristo a Pedro (8 1).
A êsse respeito, jamais alcançaremos plena certeza; tam­
pouco no tocante à próxima suposição. Segundo esta, o acon-

(78) Assim já ARNOLD M E YER, Die Auferstehung Jesu Christi,


1905, p. 168.
(79) Essa explicação, dada já por Ambrósio e Agostinho, é nega­
da por M. GOGUEL, UEglise primitive, 1947, p-192; id., Jésus, 1950,
p .390. V., por outro lado, J. BERNHARD, A Criticai and Exegetical
Commentary on the Gospel according to St. John, 1928, p .690.
(80) E. STA U FFE R , op. cit., p. 16, escreve até mesmo; “ O autor de
Jo 21 conheceu e eiaborou o final de Marcos extraviado.” — V. também
A. HARNACK, Lukas der Arzt, 1906.
(81) V. adiante obs. 92 dêste capítulo.
tecimento tão importante, que foi a aparição de Cristo só a Pe­
dro, teria sido antecipado pelos Evangelhos para a vida terrena
de Jesus, manifestando-se na narrativa da pesca maravilhosa no
lago Genesaré (Lc 5 .1 e segs) (82); a!ém disso, na narração
em que Jesus anda sôbre o lago (Mt 14.28 (83), mas princi­
palmente na história da Transfiguração (84), finalmente tam­
bém (e sôbre isso ainda falaremos mais tarde) na palavra di­
rigida a Pedro, sôbre a Igreja (Mt 1 6 .1 7 e segs,,) e na in­
cumbência (Lc 2 2 .3 1) (85).
Mas não é sem razão que I Pe 1 .3 e II Pe 1 .1 6 e segs., são
relacionados com a visão de Pedro (86).
E se tôdas essas hipóteses fôrem corretas, continua enig­
mático que a lembrança da aparição a Pedro se tenha conser­
vado só em vestígio. Com razão tem sido procurada a expli­
cação dessa lacuna misteriosa na nossa tradição. Que interês­
se poderia ter existido para deslocar êsse acontecimento extraor-
dináriamente importante para segunda plana? Tem-se pensado
que um.a controvérsia entre os partidários de Tiago e os de Pedro
fôsse uma explicação (87). Mas isso provàvelmente não teria
ocasionado o silêncio dos manuscritos nos quais se espera encon­
tra r referência a êsse incidente. É mais provável que se tivesse

(82) Assim J. BERNHARD, op. cit., p .690, e E. ST A U FFE R , op.


cit., p. 17.
(83) H. SASSE, “ Die erste Erscheinung des Auferstandenden” {Theo­
logische Blätter 1922, p.59).
(84) Já W ELLH AU SEN , Das Evangelium Marci, 1909, p .7 1 ; além
disso, R. BU LTM AN N , Geschickte der synoptischen Tradition, 2.® ed.,
1931, p.278, e K. G O E TZ, op. cit-, p.76 e segs., supõem que a cena da
transfiguração tivesse surgido da lembrança de uma cena de aparição.
P or outro lado, A. HARNACK, “ Die Verklärungsgeschichte Jesu, der Be­
richt des Paulus und die beiden Christusvisionen des Petrus” {Sitzungs-
heríchí der Preussischen Akademie der Wissenschaften 1922, p.76 e segs.),
bem como E. M EYER, Ursprung und Anfänge des Christentums, vol. 1,
1921, p .15 2 e segs., consideram a história da Transfiguração de boa
tradição e acreditam que êsse evento da vida terrena de Jesus tivesse
sido o motivo da visão de Pedro após a morte do Senhor. — E, LOH­
M EYER, “ Die Verklärung Jesu nach dem Markus-Evangelium” {ZNW
1922, p.18 5 e segs.), nega igualmente a dedução da história da transfi­
guração de uma visão, mas não é de opinião que a transfiguração seja
histórica, derivando essa narração de concepções judaicas:. V ide H-
BALTEN SW iELER , Die Verklärung ]esu- Historisches Ereignis und syn­
optische Berichte, 1959.
(85) Vide E. STAU FFER , op. cit., p,20 e segs., 18 e segs.; R.
BULTM AN N, Theol. N. T. 1953, p.46.
(86) Comumente vê-se aí alusão á história da Transfiguração. Acer­
tadamente contra essa concepção K. G O E T Z, op. cit., 89.
(87) A. HARNACK, op. cit., p .70.
dado preferência à menção das aparições a grupos, porque,
fatos ião importantes como as aparições do Ressuscitado,, pCt.
dem não uma, mas duas ou mais testemunhas (Dt 19 .1 5 ) . A êsse
respeito, porém, também têm sido lembradas as discussões entre
círculos judeu-cristãos e gentílico-cristãos, testemunhadas. já no
princípio do século II e que provàvelmente remontam a tempo mais
remoto. Deduzimos das Pseudo-Clementinas que em círculos
judeu-cristãos a dignidade apostólica de Paulo era negada, por
basear-se em só uma visão (89). Assim, a importância das vi­
sões em geral é negada pelo próprio Pedro (90). Se tais pon­
derações já foram empregadas na polêmica entre Paulo e os
judaizantes, pode-se contar realmente com a possibilidade de
que a tradição evangélica judeu-cristã tinha a tendência de fun­
damentar a autoridade de Pedro, de preferência não em uma
incumbência que partisse só do Ressuscitado. Com isso poderia
estar relacionado o fato de ter sido diminuída a importância atri­
buída às visões em geral e principalmente àquela primeira, ocor­
rida na vida ulterior de Pedro. Pesquisadores mais recentes
acreditam verificar em Pedro uma disposição especial para vi­
sões (9 1).
Seja como fôr, apesar do seu pouco ressalto nos escritos
cristãos primitivos (92), está fora de dúvida o íato de que Pe­
dro viu 0 Ressuscitado em primeiro lugar. Isso, em todo caso.

(88) V ide LYD ER BRUN, Die Auferstehung Christi, 1925, p.22; K.


O O E TZ, op. cit., p.74.
(89) Hom. 17, 19. — Vide 0. CULLMANN, Le problème littéraire
et historique du roman pseudo-clémentin, 1930, p. 248 e seg. — Já C.
H OLSTEN , Die Messiasvision des Petrus und die Genesis des petrinischen
Evangeliums, 1867, p. 120, explicou a partir dêsse ponto o deslocamento
do relatório sôbre a aparição de Cristo a Pedro.
(90) Rec. II, 62. — Pedro narra que, quando no Lago de Genesaré,
acreditara ver Jerusalém e Cesaréia em espírito e quando posteriormente
chegou a Cesaréia a realidade não correspondia ao que vira.
(91) K. G O E TZ, op. cit., p .98 e seg., lembra nesse contexto At 10
e 11; 12.9; além disso, a já mencionada passagem nas Pseudo-Ciemen-
tinas, Rec. 1!, 62, bem como especialmente o Apocalipse de Pedro, o qual
pressupõe igualmente que Pedro tivesse sido considerado “vidente” e a
conhecida história “ Quo vadis” dos A C T U S VERCELLEN SES, cap. 35. —
V. também W. GRUNDMANN, “ D ie Apostel zwischen Jerusalem und An­
tiochia” {ZNW 1940, p .l3 5 ) .
(92) Como testemunhos de época posterior mencionamos: Evangelho
de Pedro, O Apocalipse de Pedro, etiope, P istis Sophia, a Gueniza siria
do tesouro (tradução para o alemão de C. BEZOLD, 1883, p .71) e espe-
ciaimente o escrito da Idade Média, do árabe A SCH -SCH AH R ASTANI
sôbre “ Os partidos religiosos e as escolas filosóficas” (tradução para o
deve ter contribuído grandemente nos primeiros tempos, para a
-sua posição de autoridade na comunidade primitiva (93), pois na­
quela época não havia com certeza razão para que se menospre­
zassem visões, como fundamento de autoridade apostólica. A
enumeração das aparições, que constitui o conteúdo do docu­
mento cristão mais antigo, conservado até hoje (I Co 1 5 .3 esegs,).
prova, exatamente ao contrário, a grande importância atribuída a
tais acontecimentos para testemunho da ressurreição. Dessa
forma também as próprias testemunhas foram especialmente dis­
tinguidas. É evidente que aquêle a quem coube a dignidade de
ser a primeira testemunha daquele grandioso fato foi, já devido
à prioridade cronológica, considerado um encarregado especial
de Cristo, de transmitir êsse testemunho. Por isso, a primeira
aparição de Jesus, atestada suficientemente por documentos, já
bastaria para que se fundamentasse nela a posição de autoridade
de Pedro como dirigente da comunidade (94). Acontece, porém,
como vimos, que em jo 21 possuímos realmente uma tradição, se­
gundo a qual Pedro foi incumbido expressamente pelo Ressuscita­
do, de “ apascentar as suas ovelhas” . Quer se trate aqui do mes­
mo acontecimento quer não, a incumbência especial a Pedro, em
Jo 2 1, já está implícita no fato da aparição, em I Co 15 .5 , no
sentido mais profundo.
É mister que também consideremos o sentido literal da in­
cumbência, formulada em Jo 2 1 . 1 6 e segs. “ Apascenta as mi­
nhas ovelhas” . Com razão tem sido lembrado (95), que o texto
de Damasco (96), encontrado em 1896, o qual atinge, em cone-

alemão de T . HAARBRÜCKER I, 1850, p . 260 e seg.). V. nesse tocante


F. HAASE, Apostei und Evangelisten in den orientalischen Überlieferun­
gen, 1922, p.208 e sesr.; além disso, K. Q O E T Z, op. cit., p.89 e seg.
Segundo A. HARNACK, “ Petrus im Urteil der Kichenfeinde des A l­
tertums” {Fegtschrift für Karl Müller, 1922, p .2 e seg.), até Celso teria
tido conhecimento da aparição de Cristo a Pedro. Êle relaciona ORIGE-
NES, Oontra Cels-, II, 55, com Pedro.
(93") E- SEEBERO, “W er w ar Petrus?” (Zeitschrift für Kirchen-
geschicthe 1934, p .571 e segs.) reconhece igualmente a importância da pri­
meira anarição de Cristo para o problema de Pedro. Também J. K LA U S­
NER, From Jesus to Paul, traduzido do hebraico, 1943, a acentua forte­
mente. Êle atribui a Pedro o papel irrestrito de Kder na formação da
Igreja primitiva.
(94) Um ato esneoial de vocação, indeoendente da aparição, como
o postula A. FRIDRICHSEN, oo. cit. (V. acima obs. 69, p. 63), não seria
por isso absolutamente necessário.
E. STAU FFER , on. cit., p .4 e seps.
(ge-) Publicado em 1910 oor SCHECH TER. W- STAE R K , Die in­
dische Gemeinde deu neuen Bandes in Damaskus, 1922; L. RO ST, Die
Damaskusschrift, 1933.
xão com as mais recentes descobertas de manuscritos na Palesti­
na uma importância especial (97), refere-se ao dirigente da con­
gregação, como ao “ pastor do rebanho” , que tem de pregar a pa­
lavra, explanar as Escrituras e manter a disciplina na comunida­
de (cap. 13 .9 ).
A ordem de apascentar as ovelhas encerra ambas as ativi­
dades, que constatamos como sendo as conseqüências cronológi­
cas consecutivas do apostolado de Pedro: a direção da comunida­
de primitiva em Jerusalém e a pregação missionária. Das con-
:epções nas quais se baseia Jo 10 concluímos que não só a di­
reção da comunidade, mas também o trabalho missionário perten­
cem ao pastorado. O uso idiomático, que classifica os judeus de
“ ovelhas” , demonstra que ambas as funções visam em primeiro
lugar os judeus. Nesse sentido Jesus alude, nos Sinóticos, às
“ ovelhas perdidas da casa de Israel” (JVlt 10 .6 ), às quais êle se
sabe enviado, o que não exclui mas motiva, a responsabilidade
ante as “ outras ovelhas” não pertencentes a êsse rebanho
(Jo 10 .16 ) .
Vemos, pois, que é possível aplicar a incumbência do Res­
suscitado às funções de fato exercidas consecutivamente, em co­
nexão com a comunidade primitiva judeo-cristã, pelo apóstolo
Pedro.
Chegamos assim à conclusão de que a saa posição se baseia^
em primeiro lugar, numa incumbência do Senhor ressurgido, mas
que, simultâneamente, também a distinção especial pelo nome Ce­
fas, procedente do Jesus terreno, e o papel de representante do
então discípulo de Jesus, contribuíram para a sua legitimação
como dirigente da comunidade e como missionário. Já aqui de­
vemos salientar que em Jo 2 1 a predição do martírio de Pedro
está ligada à incumbência de apascentar as ovelhas. E isto sig­
nifica que a incumbência ao apóstolo Pedro está limitada cronolò­
gicamente, a saber, ao período de fundação da Igreja. Conside­
raremos êsse aspecto na segundo parte dêste livro (98).

(97) Dentre a volumosa literatura cito os artiíjos bastante comole-


tos de R. de V A U X in “ Revue biblique” (desde 1949) e de W . BAU M ­
G AR TN ER, “ Der palästinische Handschriftenfund in Theologische Rund­
schau” (desde 1948/49), que servem como boa orientação. Aléra disso,
as compilações de H. B A R D TK E , Die Handschriftenfunde am Toten Meer
1952; 2.® vol. 1958, e A. DUPONT-SOM M ER, Les écrits esséniens découverts
près de la Mer Morte, 1959.
(98) V. p. 237 e segs.
4 .°) As Concepções Teológicas do Apóstolo

Levando-se em conta a condição das fontes, seria empreen­


dimento arriscado apresentar uma “ teologia” do apóstolo Pedro.
A base é por demais parca, mesmo se considerarmos a Primeira
Epístola de Pedro como redigida diretamente por êle. Alguns
pontos muito importantes, porém, podem ser apurados com re­
lativa certeza.
Em várias oportunidades lembramos que, teològicamente, Pe­
dro não está muito afastado de Paulo (99). Chegamos a ir além,
e afirmar que, dentre os doze, êle é o que, sob êsse aspecto, lhe
esíd mais próximo.
Já frisamos o seu universalismo. Êste, ao contrário de um
engano muito difundido, está realmente testemunhado, e não só
pelos Atos dos Apóstolos, considerados, a êsse respeito, desde os
dias da “ Escola de Tubinga” , como tendenciosos (e isso com
uma certa razão). Querem inclui-los, em vista disso, como com­
provantes. Mas Paulo também testemunha êsse universalismo.
Justamente em conexão com o conflito de Antioquia, Paulo reco­
nhece expressamente que, em teoria, Pedro defende a mesma con­
cepção universal que êle próprio. Em Antioquia êle o acusa sò­
mente de se íer tornado infiel à sua convicção, por temer o pes­
soal de Tiago. É bastante provável que a procedência de Bet­
saida (10 0 ), impregnada de elementos helénicos,, tenha exer­
cido influência sôbre a orientação liberal de Pedro. Mas a sua
causa é, provàvelmente, mais profunda. .
Ao que tudo indica, Pedro aprendeu do seu Senhor que a
eleição divina do povo Judeu para uma determinada função não
significa que a ação da graça de Deus esteja prêsa exclusivamen­
te a êsse povo. Pedro não foi em vão uma testemunha ocular.
Êle compreendeu as palavras de Jesus sôbre os que vêm do Ori­
ente e do Ocidente e que tomarão lugar à mesa com Abxão, í sa­
que e Jacó no Reino dos céus (Mt 8 .1 1 ) . Percebeu o signifi­
cado da cena com o centurião de Cafarnaúm. Assim êle exer­
ceu, na comunidade primitiva de Jerusalém, um papel concilia-

(99) V. acima p .5 !, 55 e segs. Nesse sentido, E. HIRSCH, Petrus


und Paulus (ZN W 1930), p.63 e segs.
(100) V. acima p.24 e seg.
dor entre o grupo dos judaizantes e dos helenistas, e, enquanto
Estêve na direção, soube conservar unidas ambas as partes ( 10 1).
Seu universalismo, porém, parece-me estar teologicamente
enraizado ainda mais fundo, e isto pelo fato de ter êle com­
preendido, provàvelmente em primeiro lugar após a ressurrei­
ção, a morte de Cristo como morte expiatória (10 2). Evi­
dentemente tornou-se um hábito encarar o apóstolo Paulo como
0 criador da teologia da cruz. É certo que êle pôs o seu magnifico
carisma sistemático vigorosamente a serviço da pregação da cruz.
É evidente que Pedro jamais obteve a instrução rabínica de um
Paulo. Mas não creio que Paulo tenha entendido primeiro a morte
de Jesus como morte expiatória para o perdão dos pecados. Antes,
astou inclinado a atribuir essa compreensão tão fundamental a
Pedro, destinando-lhe assim, apesar de ter sido êle tudo menos
teólogo, também a êsse respeito, um lugar de honra à frente de
tôda a teologia cristã.
Quero lembrar, antes de tudo, a importância da mais antiga
cristologia que possuímos: a explicação da pessoa e obra de Jesus
através da figura do “ sofredor servo de Deus” , profetizado pelo
Dêutero Isaías, uma explicação que certamente procede, ao lado
da cristologia do Filho do homem, do próprio Jesus.
Acredito, realmente, existirem indícios de que essa mais an­
tiga solução cristológica seja de autoria de Pedro.
Os Atos dos Apóstolos provam que nos primeiros tempos do
cristianismo primitivo existia uma explicação da pessoa e obra
de Jesus, a qual poderíamos classificar, usando uma expressão
ligeiramente incorreta, de cristologia do servo de Deus, “ Ebed
Jahve” , em grego “ pais theou", ou mais correto, de “ paidolo-
gia” . Podemos ir além, e afirmar que esta é provàvelmente a
solução mais antiga ;da questão cristológica. Contudo, só a
narrativa da conversação do eunuco etíope (cap. 8.26 e segs.) de­
monstra que Jesus foi identificado posteriormente com êsse “ ebed
Jahve” , sendo que conservou-se muito fracamente a lembrança
de que o próprio Jesus compreendeu dessa maneira a sua mis­
são divina.

(101) V. a êsse respeito W. GRUNDMANN, “ Das Problem des hel­


lenistischen Christentums innelhalb der Jerusalemer Urgemeinde” {ZNW
1939, p.45 e seg.); “ D ie Apostel zwischen Jerusalem und Antiochia”
{ZWN 1940, p .lIO e seg-). W . GRUNDMANN diferencia, parcialmente
em conexão com E. LOHM EYER, Galiläa und jerusalem, 1936, três grupos
na comunidade prim itiva: o galileu, o judaizante e o helenístico.
(102) Quanto ao que segue, vide 0 . CULLM ANN, Die Christologie
des Neuen Testaments, 2.® ed. 1958, p . 68 e segs.
Além dessa narrativa existem, no entanto, nos Atos dos
Apóstolos, outras passagens. Mesmo que nem tôdas elas contenham
uma citação do livro de Isaías, são extremamente importantes para
a nossa questão. A Jesus é conferido abertamente, por assim
dizer, o titulo de “ Ebed Jahve” , servo de Deus, em grego “ pais
tou theoú” , que é, na Septuaginta, a tradução da expressão usa­
da pelo Dêutero-Isalas para o servo sofredor de Deus, o qual
toma sôbre si, como substituto, os pecados do povo. Trata-se de
quatro passagens e o importante é que tôdas se encontram no
mesmo trecho, nos capítulos 3 e 4. E em nenhum outro livro
do Nôvo Testamento Jesus é classificado de “ pais tou theou” .
Nessa qualidade êle aparece pela primeira vez em At 3 .1 3 , re­
ferindo-se a Is 5 2 .13 , e em At 3.26 , onde se trata realmente de
um título cristológico. Aí lemos: “ Jesus-Po/s” , da mesma ma­
neira como mais tarde se dirá correntemente: Jesus-Cmío. Da
mesma forma, no próximo capítulo (4.25 e segs. e 4.30), tem-
se claramente a impressão de que “ pais” é usado quase como
um “ terminus technicus” , que tem a tendência de transformar­
-se em nome próprio, como aconteceu com Cristo. Isto confirma
a existência de uma cristologia antiqüíssima, que serviu de ba­
se para que Jesus fôsse denominado “ Ebed Jahve” . Ela de­
saparecerá no período subseqüente, mas deve reportar-se à mais
remota época.
Não será casualidade que, das quatro passagens menciona­
das, as únicas que !no Nôvo Testamento qualificam Jesus de
“ pais” , duas estão numa expressão atribuída ao apóstolo Pedro,
e as outras duas em uma oração comum, pronunciada pela comuni­
dade dos discípulos de Jerusalém, onde Pedro se achava presente.
Mesmo os Atos dos Apóstolos, que têm 28 capítulos, não empregam
essa expressão em nenhuma outra passagem. Não seria ousa­
do demais concluir-se daí que o autor se lembra exatamente de
que foi o apóstolo Pedro quem, com predileção, classificou Je­
sus de “ sofredor servo de Deus” (10 3). Isto coincide com o
que sabemos de Pedro. Segundo Mc 8.32, foi exatamente êle que
em Cesaréia de Filipe mostrou tão pouca compreensão da ne-

(103) Ensaios para uma tal explicação também em W- G RU N D


MANN, ZNW 1939, p .53. De acôrdo com R. BU LTM AN N , Theol.^^N.T.
1953, p-51, essas passagens não se referem ao sofredor, mas ao “ Filho
de David” (4.25).
Contra essa suposição poder-se-ia frisar a influência da_ teologia
de Lucas nos discursos dos Atos dos Apóstolos. Mas, em primeiro lugar,
a cristologia do pais não é a de Lucas, e, em segundo, deve ser consi-
ce&sidade da paixão de Jesus, chegando a levá-lo à parte, para lhe
dizer; “ que isso não aconteça contigo” , o que fez que Jesus,
que via nêle 0 mesmo tentador que já uma vez quiserá desviá-
lo do seu caminho, 0 repelisse com as palavras; Arreda-te,
Satanás! Percebemos que 0 mesmo apóstolo, o qual, segundo I Co-
15 .5 , viu o Ressuscitado primeiro, prega, a partir de agora, sob
a luz da ressurreição, também primeiro, justamente a necessi­
dade do sofrimento e morte do Senhor, fato que não quisera
aceitar durante a vida de Jesus, fazendo da paixão e morte do
Senhor 0 centro de sua explanação da obra terrena do Mestre.
Jambém o reexame da negação 0 torna especialmente inteligí­
vel, uma vez que, já antes, a passagem em Lc 5.8 parece pres­
supor em Pedro consciência particularmente séria dos seus pe­
cados.
Nesse contexto é interessante lembrar que a Primeira Epis­
tola de Pedro, cita com ênfase as passagens do livro de Isaías
que se referem ao “ Ebed Jahve” (I Pe 2 .2 1 e segs.). Essa ve­
rificação mantém a sua importância para 0 nosso problema, com­
pletamente independente da questão da autenticidade dessa car­
ta. Pois mesmo não procedendo ela de Pedro, 0 autor anônimo
que lha atribuiu era conhecedor da predileção com que 0 após­
tolo adaptava a concepção do sofredor servo de Deus a Jesus.
A cristologia do apóstolo Pedro, se é que realmente pode­
mos fazer uso dessa expressão era, muito provàvelmente, regida
pelo conceito do “ Ebed Jahve” . Nesse caso, aquêle que tentara
desviar Jesus do caminho do sofrimento e que o negara no mo­
mento decisivo da história da paixão, foi, após a Páscoa, 0 pri­
meiro a compreender a necessidade dêsse escândalo. Não lhe
era possível expressar melhor essa convicção do que pela deno­
minação de “ Ebed Jahve” , e isso tanto mais por estar ciente da
grande importância que Jesus atribuíra ao pensamento relacio­
nado à mesma.
Assim, pode-se dizer acêrca da orientação teológica de Pe­
dro (aliás com certa precaução) 0 seguinte: O apóstolo-Ro-
cha, que dirigiu a primeira comunidade, e que provàvelmente foi
0 primeiro a lhe pregar Cristo, não é sòmente o organizador,
como costumamos imaginá-lo, 0 qual só teria tido interêsses prá-

derado 0 que B. REICKE, Gíaube und Leben der Urgemeinde, 1957, p .40,
escreve a êsse respeito: “ Sem ex igir 0 impossível dêsse historiador e
da tradição sôbre a qual êle se apoia, devemos no entanto, admitir que,
os discursos revelam um esfôrço considerável por uma caracterização
IndividuaL”
ticos. A imagem do príncipe de Igreja é incorreta também nes­
te sentido. Na fundação da teologia cristã certamente lhe ca­
be uma significação bem maior do que supomos. Tivéssemos
dêle uma volumosa coleção de epístolas, como de Paulo, e certa­
mente se produziria, nesse respeito, uma outra imagem. Êle não
possui a instrução técnico-teológica de Paulo, que estudou com
os rabinos. Contudo, o grande pensamento que Paulo soube ela­
borar sistemàticamente como centro de sua teologia, provàvel­
mente surgia em primeiro lugar, ao que tudo indica, na mente
do pescador Pedro.
Esta é a verdade, apesar de ter sido revelado o mesmo co­
nhecimento a Paulo, independentemente de Pedro, pois nêle de­
vemos crer, quando escreve na Epístola aos Gálatas, que não
recebeu o Evangelho dos homens e nem por intermédio de um
homem (Gl 1 .1 2 ) . Com o têrmo “ evangelho” Paulo só se pode
ter referido ao âmago de tôda a sua teologia, a palavra da cruz.
A época posterior tem sido, freqüentemente, injusta para com
Paulo, colocando-o à sombra de Pedro. Em todo caso, teològi­
camente, a pesquisa parece-me injusta em relação a Pedro, ao
colocá-lo totalmente à sombra de Paulo ou mesmo ao conside­
rá-lo como 0 seu adversário, que não teria tido compreensão para
reconhecer as grandes verdades paulinas.
c a p ít u l o III

PEDRO, O MÁRTIR

1.®) O Problema

já na apresentação das atividades missionárias de Pedro


dependíamos de deduções e hipóteses, dadas as lacunas de nossas
fontes. Em grau ainda maior vemo-nos constrangidos aos mes­
mos processos ao indagarmos das circunstâncias em que o após-
lo morreu. A única fonte antiga, da qual poderíamos esperar
informações, o livro dos Atos dos Apóstolos, silencia sôbre a
morte de Pedro como também sôbre a de Paulo, e não existem à
nossa disposição outros textos antigos que relatem êsse aconte­
cimento, tão importante para a igreja primitiva. Discorreremos, no
entanto, acêrca dos testemunhos indiretos, dos quais são tiradas
conclusões sôbre o martírio de Pedro. Êste capítulo examinará
se tais deduções são razoáveis ou não.
A questão é tanto mais importante por estar intimamente
ligada ao problema da permanência de Pedro em Roma. A so­
lução dêsse problema relaciona-se, por sua vez, com a interpre­
tação, historicamente de tão graves conseqüências, dada pela Igre­
ja Católica Romana até hoje à palavra de Jesus (Mt 16 .17 e segs.)
acêrca da rocha sôbre a qual deve ser edificada a Igreja.
Vem daí a paixão que caracteriza tôda a discussão desde
que pela primeira vez, os valdenses, na Idade Média, e em tem­
pos mais recentes os pesquisadores protestantes, puseram em
dúvida a estada de Pedro em Roma. É lamentável que demasia­
das vêzes se imiscuam nesse debate, consciente ou inconsciente­
mente, ponderações de caráter confessional, pertencentes ao âm­
bito da polêmica entre católicos e protestantes. Em oposição a
isso deve ser salientado, de antemão, que a questão em pauta é
puramente histórica, e só pode ser tratada com os meios objeti­
vos de ciência histórica. E tanto mais, visto que a controvérsia
sôbre a justificação da reivindicação da autoridade papal sôbre
a Igreja cristã é muito mais complexa e não pode ser resolvida
simplesmente com a solução do problema da possível estada de
Pedro em Roma. Na, realidade o assunto é muito mais complexo,
e sòmente com a ajuda de outras considerações, particularmente
da interpretação de Mt 16 .18 e segs., poderá ser esclarecido.
Caso fôsse realmente possível provar que Pedro jamais teria
pôsto os pés em Roma, como foi e ainda é afirmado por muitos,
certamente não se poderia de antemão fundamentar hisiòricamente
a reivindicação papal, satisfazendo-se com uma justificação pu­
ramente dogmática ( 1) , o que, no critério católico, é freqüente­
mente considerado suficiente (2). A questão teológico-eclesiásti-
ca relaciona-se só nesse sentido com o resultado da pesquisa his­
tórica. Em todo caso, para os adversários da reivindicação pa­
pal, ipoderia ser grande a tentação de simplificar o caso, tencio­
nando solver todo o problema relativamente depressa, dessa ma­
neira radical. Por outro lado, é preciso dizer que, se as pesquisas
científicas confirmarem a tradição de que Pedro esteve em Roma,
só isso não será suficiente para fundamentar a reivindicação
papal.
Felizmente, com o tempo, aquelas ponderações polêmico-con-
fessionais desapareceram, por isso, em grande escala, do debate
científico. Nos últimos anos são, com efeito, pesquisadores pro­
testantes e confessionalmente independentes que debatem entre si,
sendo que alguns afirmam a estada de Pedro em Roma, enquanto
que outros a negam (3). Delinearemos, a seguir, abreviadamen­
te a história do problema, e então examinaremos se é possível
deduzir, dos testemunhos arqueológicos e literários, pelo menos
informações indiretas sôbre uma permanência do nosso apóstolo
em Roma.

2.“) História do Problema da Estada de Pedro em Roma

É compreensível que a questão tenha sido aberta na Idade


Média pela primeira vez, por aquêles que tinham na Biblia a úni­
ca norma: os valdenses. Como vimos, o Nôvo Testamento não
menciona em ocasião alguma que Pedro tenha ido à capital do

(1) No mais, já foram expressas, desde sempre, dúvidas cautelo­


sas em maior ou menor grau por parte de pesquisadores católicos. O
mais ousado nesse sentido é ELLENDORF, “ Ist Petrus in Rom und Bischof
der römischen Kirche gewesen?” , 1841 (citado por F. C. BAUR, Paulus,
2.“ ed., 1867, vol. II, p.322).
(2) V. abaixo p.208 e seg.
(3) Acêrca da parte mais antiga da história do problema, indica­
mos K. HEUSSl, War Petrus in Rom?, 1936, p .8 e segs., e F. C. BAUR,
Paulus, 1845, p . 671 e segs., 2.^ ed., 1867, vol. II, p . 316 e segs.
Império e permanecido lá. O silêncio da Bíblia era decisivo para
os valdenses (4). Posteriormeníe, no ano 1326, Marsilio de Pá-
dua duvida cautelosamente, no seu Defensor Pacis, que Pedro
tivesse estado em Roma. Alega que, com base nas Escrituras Sa­
gradas, nada pode ser provado sôbre o assunto, Provàvelmente,
êle teria ido a Roma e lá teria sido bispo; no entanto, só a res­
peito de Antioquia tal fato se pode afirmar com certeza.
Durante os duzentos anos subseqüentes nada ouvimos acêrca
de um ataque efetivo à tradição. Só nos anos 1519 /2 0 um autor
anônimo escreve num folheto “ que o apóstolo Pedro jamais es-
têve em Roma” (5). Como para os valdenses, seu principal ar­
gumento é 0 silêncio das Sagradas Escrituras. Êle não se sa­
tisfaz em manifestar dúvidas, mas passa à contestação, como
aquêles. Sebastião Frank adota sua tese e sua argumentação (6).
Poderia, no entanto, parecer estranho que os reformadores não
se tivessem interessado em especial por êsse problema. Na sua
luta contra o papa não se apoiaram nesse cômodo argumento. Isto é
tanto mais digno de nota, considerando-se que êles, evidentemen­
te, pelo menos também vacilaram quanto à permanência de Paulo
em Roma (7). Lutero escreve (8) ; “ Há, na verdade, eruditos
que afirmam que São Pedro jamais tenha ido a Roma. E o
Papa passará maus bocados para defender-se de tais eruditos.
Não quero julgar se São Pedro estêve lá ou não. São Paulo
estêve, com certeza, como escreve Lucas nos Atos dos Apóstolos
e êle próprio, nas suas cartas, e é possível que tenha ordenado a
Igreja e o bispo de Roma.” Mais adiante relata ter visto e ouvi­
do em Roma que os túmulos de Pedro e de Paulo não são conhe­
cidos (9), mas acrescenta que “ quer os apóstolos São Pedro e
São Paulo repousem em Roma ou não, isso não vem ao caso” (10 ).

(4) A respeito da contestação dos valdenses Vide P. M O N ETA de


CREMONA O. p., Adversus Cath. et Wald. V, 2, Ausg. Rom 1743, p .411.
(5) Seu pseudônimo é Ulricus Velenus Minhoniensis. Vide M EL­
CHIOR G O LD A ST, Monarchia S. Romani Imperii, tom. 111, 1613. O
conteúdo do folheto está impresso nas pp. 1-16.
(6) Vide H. ONCKEN, “ Sébastian Franck ais Historiker” {Histo­
rische Zeitschrift, 1899, p . 412).
(7) Em todo 0 caso, J. ZEILLER, “ L’ Eglise prim itive” {Histoire
de í Eglise, vol. I, 1946, p .227), está errado quando escreve que a con­
testação da permanência de Pedro em Roma surgiu de parte da polêmica
protestante contra o primado papal, na época da Reforma.
(8) M. LU TERO , Wider das Papsttum vom Teufel gesiiftet, 1545
(W A 54), citado segundo E. M U LH AU PT, Luthers Evangelien-Auslegung,
1947, tom. 11, p .551.
(9) V. adiante p. 145 e seg.
Flácio 1lírico^ historiador eclesiástico protestante da segunda me­
tade do século XVI escreve cautelosamente em 1554, que “ não
é absolutamente certo” que Pedro tenha estado em Roma ( 1 1 ) .
Contudo, na sua grande obra, as “ Centúrias de Magdeburgo” , êle
menciona o martírio de Pedro e de Paulo em Roma ( 12 ). Só
ao final do século XVII o erudito reformado Friedrich Spanheim
( 13 ) expõe uma contestação cientificamente fundamentada con­
tra a tradição romana acêrca de Pedro. Seus argumentos são
ainda hoje, parcialmente, dignos de atenção. Não obstante o
seu espírito crítico, o século XVIII não se preocupou intensiva­
mente com 0 problema. Na sua grande obra sôbre a decadên­
cia do Império Romano (14 ), Lord E. Gibbon põe em dúvida o
martírio de qualquer discípulo de Jesus fora da Palestina. Em
1804 0 filólogo de línguas clássicas /. G. Eichhorn, de Goettin­
gen, advoga a opinião de que a estada e o martírio de Pedro em
Roma não são históricos, mas foram deduzidos erroneamente de
I Pe 5 .3 (15 ) . Prelecionando História Eclesiástica, F. Schleier­
macher se considera entre os que “ duvidam de tôda notícia sôbre
a estada de Pedro em Roma” (16 ). Na sua “ Einleitung in das
Neue Testament” (17 ), também W. M. de Wette classifica o fato,
que como tal é improvável, de “ lenda” . Todavia, no comêço do
século XIX a maioria dos teólogos protestantes testificam a esta­
da de Pedro em Roma, principalmente os dois grandes historia­
dores eclesiásticos A. Neander e /. Gieseler. O primeiro clas­
sifica a sua negação como “ hipercrítica” (18 ), o último, como

(10) Em continuação escreve (M Ü LH AU PT, p. 552): “ Êles men­


tem e inventam acêrca de São Pedro, desde o mínimo até o máximo, de
modo que cheguei à conclusão de que nem São Pedro nem São Paulo
lançaram a primeira pedra da Igreja de Roma. É passível que um discí­
pulo dos apóstolos tivesse ido de Jerusalém ou de Antioquia para Roma...”
(1 1 ) iHistoria certaminum inter Romanos Episcopos etc., de prima­
ta sea potestate Papae bona fide ex authenticis monumentis collata, p . 267.
Mas no escrito “ Ob Petrus in Rom gewesen sei” êle nega totalmente
que Pedro tenha estado em Roma.
(12) Cent. I, livro 11, pp. 28 e 527.
(13) “ Dissertatio de ficta profectione Petri apostoli in urbem Ro-
mam deque non una traditionis origine.” V ide Op. T . II 1703, col.
331 e segs.
(14) Decline and Fali of the Roman Empire, 1776 e segs.
(15) Einleitang in das Neue Testament, tom. I, 1804, p. 554 e seg.
V. também tom. fU, 1812, p. 603 e seg.
(16) Obras completas, parte I, voL XI, editado por E. BONNELL,
1840, p. 69.
(17) p. 314.
(18) Geschichte der christlichen Religion and Kirche, tom. I, 1826,
p. 317.
expressão de uma “ polêmica partidária” (19 ). Tanto mais im­
pressionante foi o ataque que o teólogo de Tubinga, F. C. Baur,
empreendeu em 1836 contra a tradição, em conexão com a sua
exposição geral do cristianismo primitivo, inspirada em Hegel(20).
Contudo, a polêmica contra êsse exagêro da oposição entre judeo-
cristianismo e gentio-cristianismo, dificultou o debate. Conseqüen­
temente, a tese de Baur foi quase por todos rejeitada.
No período subseqüente foi abandonada quase por completo
a oposição à tradição romana em tôrno de Pedro. Um homem
oomo Ernest Renan aceitou a estada de Pedro em Roma como
fato. E, em 1897, justamente o crítico, teólogo e historiador
protestante A. Harnack escreveu que a negação da permanência
romana de Pedro era “ um engano, hoje evidente para todo pes­
quisador que não se deixe perturbar” . Tinha-se assim a impressão
de que a tradição estava definitivamente consolidada. Harnack era
de opinião que “ o martírio de Pedro em Roma tinha sido com­
batido outrora devido a preconceitos tendenciosamente críticos”
( 2 1) . Para a maioria, a questão parecia resolvida e, apesar dis­
so, o historiador francês, confessionalmente indej>endente, C.
Guignebert, a levantou mais uma vez em 1909 no seu livro “ La
primauté de Pierre et la venue de Pierre à Rome” , concluindo
pela negativa. Enquanto isso C. Erbes (22), na Alemanha, e P.
W. Schmiedel (23), na Suíça, refutavam igualmente a conclusão
de Harnack.
A última palavra, no entanto, surgiu mais uma vez em favor
de Harnack e da tradição católica, quando seu sucessor, o teólogo
protestante H. Lietzmann, em 19 15 , publicou seu importante livro

(19) Lehrbuch der Kirchengeschichte-, tom. I, 2.® ed., 1827, p. 189.


(20) “ Die Christuspartei in der Korinthischen Gemeinde, der G e­
gensatz des petrinischen und paulinischen Christentums in der ältesten
Kirche, der Apostel Petrus in Rom” (Tübinger Zeitschrift für Theologie
1831, p. 137 e segs.). V. também Paulus, der Apostel Jesu Christi, 1845
p. 212 e segs.
(21) D ie Chronologie der altchristlichen Literatur bis Eusebius, tom.
I, 1897, p. 244, obs. 2-
(22) “ Petrus nicht in Rom, sondern in Jerusalem gestorben” (Zeit­
schrift für Kirchengeschichte 1901), pp. 1 e segs., 161 e segs. Nas suas
publicações sôbre os dias do falecimento dos apóstolos Paulo e Pedro (T .
U. 1899) e sôbre os túmulos dos apóstolos em Roma (ZKG 1924. p. 38
e segs.) êle se mostra muito mais comedido no seu juízo acêrca da questão
da permanência de Pedro em Roma.
(23) “W ar der Apostei Petrus in Rom?” (Prot. Monatschefte 1909,
p. 270 e segs.) ; além disso, in Encyclopaedia Biblica IV, p, 459 e segs.
de T. K. CH EYN E.
“ Petrus und Paulus in Rom” (2.® edição em 1927). Lietzmann
pôs suas noções arqueológicas e especialmente seus amplo^. eonhe-
cimentos litúrgico-históricos a serviço do diálogo acêrça,. dessa
questão. Ele chega à conclusão de que o testemunho datado de
170, sôbre os túmulos de ambos os apóstolos em Roma, tem de
estar certo. Isto significa: ambos os apóstolos teriam sido real­
mente sepultados em ambos os locais de Roma, que hoje são
venerados com suas sepulturas, Pedro no Vaticano e Paulo na
estrada para Ôstia.
A disputa, porém, não se apaziguou e foi continuada princi­
palmente entre teólogos protestantes, em prosseguimento à publi­
cação de Lietzmann. Em 1930 publicamos um artigo sôbre 1 Clem
5 ( 2 4 ) . Baseando-nos nos pormenores dos martírios de Pedro
e de Paulo, deduzidos indiretamente dêsse texto, concluímos que
Roma foi 0 palco dêsses acontecimentos. E. Mo/tond (25) con­
cordou conosco, e também A. Friedrichsen aceitou nossa explica­
ção, com alguns acréscimos (26).
Por outro lado, a conclusão de Lietzmann foi combatida por
Adolf Bauer em “ Wiener Studien” (27), por C. Guignebert (28)
e por H. Dannenbauer (29). Este último chegou a formular o
resultado de seu exame dizendo que “ qualquer pequena localida­
de da Palestina poderia reivindicar ter sido o palco da morte de
Pedro, com maior direito do que justamente a capital do Impé­
rio” . Outros opositores à tese de Lietzmann são /. Haller (30)
e E. Merril (31), enquanto que G. Krüger (32) advoga a tese
tradicional, apoiando-se principalmente na I Epístola de Clemente.
Na sua brochura “ War Petrus in Rom?” , dirigida contra
Lietzmann em 1936, Karl Heussi reuniu os principais argumentos

(24) 0. CULLM ANN, “ Les causes de la mort de Pierre et de Paul


d’après le témoignage de Clément Romain” {Revue d’Histoire et de Philo­
sophie Religieuses 1930, p. 294 e segs.).
(25) Theologische Literaturzeitung 1937, col. 439 e segs. (ai tam­
bém boa dissertação acêrca da controvérsia LIETZM AN N -H EU SSL).
(26) Propter invidiam. Note sur 1. Clém. V (Eranos Rudbergianus
1946), p. 161 e segs.
(27) “ Die Legende von dem Martj'rium des Petrus und Paulus in
Rom” {Zeitschrift für klassische Philologie 1916, p. 270 e segs.).
(28) “La sépulture de Pierre” {Revue historique 1931, p. 225 e segs.),
(29) “ Die römische Petruslegende” {Historische Zeitschrift 1932, p.
239 e segs.). — Id-, “ Nochmals die römische Petruslegende” {Historische
Zeitschrift 1939, p. 81 e segs.).
(30) Das Papsttum, tom. I, 2.® ed-, 1950, pp. 1 e segs., 472 e segs.
(polêmica em tom lamentàvelmente inamistoso).
(31) Essays in Early Christian History, 1942, p. 267 e segs.
(32) “ Petrus in Rom” {ZNW 1932, p. 301 e segs.).
dos opositores da tradição. Essa publicação proclama, çpmo con­
clusão certa, que “ Pedro jamais pisou a cidade tiberina” , cau­
sando grande sensação e incitando o próprio Lietzmann a entrar
em cena com sua contra-publicação “ Petrus roemischer.^Maerty-
rer" em 1936 (33). Nos anos seguintes K. Heussi tentou mais uma
vez defender a sua tese de que a afirmação, que diz ter Pedro pade­
cido 0 martírio em Roma, não passa de uma lenda (34).
A guerra não pôs fim ao debate. Contudo, Lietzmann, que
faleceu em 1942, não mais pôde participar dêle. Em publicação
de 1942 sôbre “ Roma e os Cristãos no Século T’ (35), M. Dibelius
discorre principalmente sôbre a principal testemunha indireta do
martírio de Pedro, 1 Ciem 5. Coloca-se ao lado de Lietzmann,
mas busca encontrar a causa da escassez de notícias nas parti­
cularidades literárias do autor. Também do lado católico conti­
nuou 0 exame principalmente de 1 Ciem 5 em conexão com o
nosso problema (36). Dignos de nota são ainda os diversos tra­
balhos sôbre o problema, publicados pelo veto-católico Katzen­
mayer durante e após a guerra, no periódico Internationale Kirch­
liche Zeitschrift. Além de aceitar também a estada e a morte de
Pedro em Roma, êle tenta precisar a data de maneira bastante
peculiar fixando o ano 55, muito anterior à perseguição nero­
niana (37).
Finda a guerra, volveu-se o interêsse principal, compreensi-
velmente, para as escavações sob a Basílica de São Pedro em
Roma, e o estudo das fontes literárias tornou-se, no momento, um

(33) Sitzungsbericht der Berliner Akademie de Wissenschaften 1936,


p. 392 e segs.
(34) “ W ar Petrus w irklich römischer M ärtyrer?” (Christliche Weit
1937, col. 161 e segs.). — “ Neues zur Petrusfrage” , 1939. — Eine fran­
zösische Stimme zur römischen Petrustradition” (Christliche Welt 1939, col.
596 e segs.). — Acêrca de tôda a controvérsia H EU SS-LEITZM ANN v.
também R. D R AQ U ET in Revue (PHistoire ecclésiastique 1938, p. 88 e segs.
(35) “Sitzungsbericht der Heidelbergern Akademie der Wissenschaf­
ten”, Philolog. hist- Kl. 1942.
(36) M. SCHULER, “ Klemens von Rom und Petrus in Rom” (Trierer
Theol. Studien I, 1941, p. 94 e segs.)- — L. SANDERS, L’hellénisme de S.
Clément de Rome et le paulinisme, 1943 (V. adiante p. 108 e segs-)- — O-
PERLER, “ Ignatius von Antiochien und die römische Christusgemeinde”
(Divus Thomas, 1944, p. 442 e segs.). — S. SCHM UTZ, “ Petrus w ar den­
noch in Rom” (Benedikt. Monatsschr. 1946, p. 122 e segs.). — B, A L T A -
NER, “ Neues zum Verständnis von L Klem. 5, I — 6, 2” . (Histor. Jahr­
buch 1949, p. 25 e segs.). ,
(37) Surgidos já antes da guerra: Zur Frage, ob Petrus in Rom war,
1938, p. 129 e segs.; Das Todesjahr des Petrus, 1939, p. 85 e segs. Já men­
cionamos acima, obs. 64 (parte I, cap. 2, o artigo “W ar Petrus in Korinth?”
1943, p. 20 e segs. — Die Schicksale des Petras von seinem Aüfenthalt
tanto moderado, visto que se esperava a publicação oficial do
resultado das escavações. Contudo, uma vez que estas permitem
diversas interpretações, das quais nenhuma é aceita de um modo
geral, encetou-se, com maior ímpeto novamente, o exame das fon­
tes literárias. O próprio Heussi apareceu com novos trabalhos,
tomou posição em relação às mais recentes escavações e tentou
demonstrar a sua tese, partindo principalmente do imperfeito em
G1 2 .6 (38), Respondendo à primeira edição do nosso livro
sôbre Pedro (19 5 2 ), e posteriormente ao importante artigo de
K. Aland sôbre Pedro em Roma, publicado em Historische Zeit­
schrift (19 57) (39), 0 qual juntamente com outros já tentara
demonstrar a impossibilidade daquela interpretação de G1 2 ,6 (40),
Heussi defende até agora o seu ponto de vista, numa nova série
de artigos polêmicos, muito seguro de si e com mais preconceitos
do que na primeira fase da discussão provocada por Lietzmann
(4 1). Num trabalho maior, “Der Tod des Petrus in Rom, Bemer­
kungen zu seiner Bestreitung duiSch Kart Heussi” (19 55), K.
Aland procede a um estudo do conteúdo e do método da polêmica
de Heussi. Após nôvo e minucioso exame de todos os argumen­
tos chega à seguinte conclusão: “ ...q u e é que nos resta, quanto
ao método, senão admitir como fato o martírio de Pedro em
Roma? É êsse o resultado que sèriamente se nos impõe, se nos
servirmos dos métodos e pontos de vista empregados ho- traba­
lho histórico-crítico àcerca dos acontecimentos do I e II secs.
da era c ris tã ”

in Korinth bis zu seinem Mãrtvrertod, 1944, p. 145 e segs. — Die


biehungen des Pefnts zur Urkirche von Jerusalem und zu Antiochien, 1945,
p- 116 e segs. — Em outros artieos do mesmo periódico o autor nrr
demonstrar a ausência de um primado de Roma ou de seu bispo até o
firn do século HI. — Lamentàvelmente a argumentação, nos artigos que
interessam para a nossa questão, é seguidamente um tanto forçada e às
vêzes baseada também em argumentos e silentio.
(38) “ Das Grab des Petrus” (Deutsches Pfarrerhlatt 1949. p. 82),
— “ Papst” . Anenkletus I. und die Memoria Petri auf dem Vatikan (ib.
p. 301). — Die Nachfolge des Petrus (ib, p. 420). — Der Stand der Frage
nach dem römischen Äufenthalt des Petrus (ib. p. 501). — 2 und der
Lebensausgang der jerusalemischen Urapostel” (Theol. Literaiurzeihmg
1952, col. 67 e segs.). — “D ie Entstehung der römischen Petrustradition”
(Wissenschaftliche Zeitschrift der Univeristät Jena 1952/53, p. 63 e segs.),
(39) p, 497 e segs.).
■ (40) “ Wann starb Petrus? Eine Bemerkung zu Ga! 11, 6” . (New
Testament Studies 1956, p. 267 e segs.).
(41) Em um artigo totalmente parcial e sem dar maior atenção aos
meus argumentos êle procura primeiramente desacreditar nosso liv ro : “ O s­
car Cuiimanns Petrusbuch” (Deutsches Pfarrerblatt 1953, p .79 e seg.).
Na sua brochura “ D ie römische Petrustradition in kritischer Sicht” (1955)
Com referência aos testemunhos literários, a tendência, tam­
bém nas apresentações gerais do Cristianismo primitivo, dirige-se
no rumo da aceitação da estada de Pedro em Roma (42). Como
estudo isolado, temos a mencionar especialmente o exame do di­
namarquês /. Munck “ Petrus und Paulus in der Offenbarung Jo­
hannis” (1950), que faz a interessante mas problemática tenta­
tiva de encontrar em Ap 1 1 .3 - 1 3 o mais antigo testemunho do
martírio de ambos os apóstolos.

3.“) Fontes Literárias


Que fontes entram em cogitação para o problema da presen­
ça e do martírio de Pedro em Roma? Os documentos cristãos
mais antigos, as Epístolas de Paulo, não contêm quaisquer indica-

torna-se mesmo cansativo observar como HEUSSI, abusando da palavra


“ crítico” , acusa a todos quantos, nessa questão puramente cieyJífica, não
compartilham da sua opinião, de estarem “ presos à tradição” e “ decain­
do quanto ao seu sentido histórico-crítico” (V. prefácio). Isso tudo,
como se um verdadeiro sentido crítico não devesse valer frente a dogmas
científicos e especialmente frente às explicações próprias. Nossa inter­
pretação de I Ciem 5 (1.® edição desta obra, p. 96 e segs.) não é
nem sequer discutida, nem comunicada ao leitor, mas “liqüidada”
com um observação que nada, diz em uma nota de rodapé (p. 23,
obs. 26). (V. abaixo p. 118). — Embora declare nesse brochura que
com ela encerra definitivamente o debate, continua a discussão, prin­
cipalmente para a contestação de K. ALAN D : “ Petrus und die beiden
Jakobus in Galater 1 - 2” (Wissenschaftliche Zeitschrift der Universität
Jena 1956/57, p. 147 ss.). — “ Ist die sogenannte römische Petrus tra­
dition bereist im Lukas-Evangelium und schon kurz nach dem Jahre 70
bezeugt?” (ib. p.571 e segs.). — “ Zur Abwehr gegen Aland” (Deutsches
Pfarrerblatt 1958, p.224 e seg-). — • “ Drei vermeintliche Beweise für das
Kommen des Petrus nach Rom” (Histor. Zeitschrift 1958, p.240 e segs.).
--- V. finalmente também a sua crítica ao livro de T. KLAUSER, já men­
cionado abaixo diversas vêzes. “ D ie römische Petrustradition im Lichte
der neuen Ausgrabungen unter der Petruskirche” (Theolog. Literatur­
zeitung 1959, p.359 e segs.) .
(42) Assim C. T . CRAIG, The Beginning of Christianity, 1943,
p .266. P. GARRIN GTON , The Eearly Christian Church 1957, vol. I,
pp. 186 e segs.; 106; 205 e segs. e historiadores eclesiásticos de renome,
como H. V. CAM PENH AUSEN (p. ex. Verkündigung und Forschung
1946/47, p .230) e C. KING. “ The Outlines of New Testament chrono­
logy” (Church Quarteiy Review 1945, p. 149) manifestam-se a favor de
que se admita a permanência de Pedro em Roma. M. GO GU EL, na sua
grande obra sôbre a origem do Cristianismo (L’Eglise primitive, 1947,
p . 203 e segs., boa apresentação do problema) inclina-se a urn forte ceti­
cismo em relação à tese tradicional, sem, no entanto, decidir-se. G.
M IEGGE defende um ceticismo idêntico, embora, ao final, se mostre
m ais favorável à suposição de uma tardia chegada de Pedro a Roma e
do seu martírio naquela cidade. É o que êle escreve no seu livrinho
Pietro a Roma, que tem caráter propositadamente popular, mas constitui
excelente iniciação.
ções, diretas ou indiretas, sôbre uma estada de Pedro em Roma e
sôbre a sua morte. No momento em que Paulo escreve a I Epís­
tola aos Coríntios, Pedro se encontra em plena viagem missioná­
ria em companhia de sua espôsa (í Co 9 .5 ). Isso é tudo o que nos
contam as Epístolas de Paulo daquela época, sôbre Pedro. Dêsse
silêncio, por si só não podemos tirar deduções contra a possibili­
dade de uma estada de Pedro em Roma e de seu martírio. Tam­
bém não é de estranhar que a sua morte não seja citada nas Epís­
tolas de Paulo, pois não é admissível que Pedro tivesse falecido
tanto tempo antes de Paulo (43) que êste tivesse podido aludir
ao fato nalguma de suas cartas. Mas no tocante ã estada de
Pedro em Roma, o caso é outro. Por ora também não é neces­
sário postular que Paulo tivesse de se referir ao fato. Acontece,
porém, que possuímos uma carta sua, dirigida justamente à comu­
nidade romana. E mesmo que nos devamos mostrar cautelosos
em relação aos chamados argumentos e silentio, temos de estra­
nhar que, com tantas saudações suas, nessa carta aos cristãos de
Roma, citados nominalmente, Paulo não tivesse mencionado Pe­
dro, caso êste estivesse, naquela ocasião, na Igre'a da capital (44),

Uns afirmam que Pedro foi omitido intencionalmente, visto


que com sua iprédica judaizante êle agia em Roma num sentido
diverso do apresentado por Paulo na doutrina contida na Epísto­
la aos Romanos. Tal hipóteste malogra frente ao fato, com­
provado anteriormente, de que Pedro não pode ser simoksmente
classificado de judaizante, visto que, na realidade, estava muito

(43) K. HEUSSI é de oüinião que Pedro faleceu no ano 55. Nesse


caso, quando Paulo escreveu a carta aos Gálatas, Pedro não estaria mais
vivo. Èle sublinha o emnrearo do imperfeito eram em G! 2.6, Theolo­
gische Litera*urzeifune' n .67 e se^s- V. a êsse resneito, a obs.
53 dêste canítulo. H. KATZH N M AYFR (V. acima p .40) também acredita
ter ocorrido em 55 a morte de Pedro.

(44'> Mesmo que o canítulo 16 não pertencesse à carta aos Roma­


nos ("novos e importantes argumentos a favor da antigra tese de Éfeso,
princinalmente sob o nr'sma do paniro pí«, conhecido desde 1953. V,
também em T . W . MANSON, “ St. P aul's Letter to the Romans — and
others” , in Bulletin of the John Ryiands Library 1948, p .3 e segs,), 'o
silêncio acêrca de Pedro nos outros capítulos continuaria sendo sur­
preendente- A hipótese de Graber (V. p, 40) tampouco pode explicar isso.
mais próximo da teologia de Paulo que da de Tiago (45). O com­
bate aos judaizantes, contido na Epistola aos Romanos, não pres­
supõe a presença de Pedro em Roma. Nem tampouco a po­
lêmica anti-judaizante das Epístolas aos Corlntíos e da Epistola
aos Gálatas pode ser compreendida exclusivamente pressupondo-se
uma estada pessoal de Pedro em Corinto ou na Galácia, apesar
de não ficar excluída a possibilidade de uma estada anterior de
Pedro naquelas localidades (46). Em todo caso vemo-nos obri­
gados a negar a presença de Pedro na comunidade romana, no
tempo em que lhe foi enviada a Epistola aos Romanos, visto que
êle não poderia ter sido omitido entre os destinatários.
Note-se bem: dessa premissa ainda não deduzimos que a tra­
dição da estada e martírio de Pedro em Roma deve ser totalmente
refutada. A conclusão a que chegamos é válida sòmente para a
época da redação da Epístola de Paulo aos Romanos. Em prin­
cípio, é possível que Pedro tivesse estado algum tempo em Roma
antes do envio da carta de Paulo e tivesse voltado outra vez, sen­
do então martirizado. Contudo, não é provável (47). O escrito
de Paulo nos leva, por conseguinte, à seguinte conclusão: Quan­
do a Epístola Paulina aos Romanos foi escrita Pedro não se en­
contrava em Roma. Se êle foi a Roma, só pode ter sido ou an­
tes ou, 0 que é mais provável, depois da redação dessa carta.
Uma passagem dessa epístola, entretanto, (Rm 15.2 0 ) ad­
mite apoio à possibilidade de uma ou mais viagens de Pedro a
Roma. Vimos anteriormente (48) que Paulo se escusa por diri­
gir-se a uma comunidade não fundada por êle. Evitara tal procedi­
mento até então, já que o considerava incompatível com a honra
apostólica, em conformidade com o espírito do pacto de Jerusalém.
Baseando-nos nisso e em conexão oom o que deduzimos de Gl 2.9,
podemos contar com o fato de que a missão judeo-cristã para-

(45) H. LIETZM AN N , “ Zw ei Notizen zu Paulus” {Sitzmgsberichí


der Berliner Akademie der Wissenschaften 1930, n.° 8), apresentou a se­
guinte tese que orovàvelmente não pode ser mantida: Paulo teria escrito
a Epístola aos Romanos para contestar a propaganda judeu-cristã leva­
da Dor Pedro a Roma e para prevenir contra o peripo de que seu evan­
gelho encontrasse de antemão as portas fechadas. E. HIRSCH, “ Petrus und
Paulus” {ZNW 1930, p .63), faz amplas concessões a essa tese, mas reage
contra a exposição de Lietzmann que quer fazer de Pedro um simoles
judaizante. Êle contesta assim simultâneamente a hipótese de E. M EYER,
que vê Pedro por detrás dos falsos doutrinadores gálatas.
(46) V. acima p .61.
(47) Também C. CECCHELLI, Gli apffsáoli a Roma, 1938, p.64,
exclui essa possibilidade.
(48) V. acima p.50 e seg.
leia de Jerusalém encarava a comunidade romana como seu ter­
ritório. Aquela comunidade, nascida exponíâneamente, ao que
tudo indica, era composta incialmente de judeo-cristãos (49).
Dado o número elevado de judeus em Roma (avaliado entre 30.000
e 40.000) (50), isto é perfeitamente compreensível; principalmente
se considerarmos que, na época da Epístola de Paulo aos Ro­
manos, os judeo-cristãos se achavam fortemente representados ao
lado dos gentílico-cristãos, na Igreja romana ( 5 1) . Partindo da­
qui, ainda não é possível afirmar com certeza que Pedro foi a
Roma ou que mesmo fundou a comunidade. Contudo, não seria
provável, nesse caso, que na qualidade de dirigente da missão
judeo-cristã de Jerusalém, êle próprio tivesse vindo, em alguma
ocasião, a essa instituição judeo-cristã, composta de tantos ju­
deus, sobretudo em se tratando da capital? Mesmo tendo existido
aí uma missão judeo-cristã, e ainda que Pedro tivesse sido dela
incumbido, não seria isso bastante para provar sua ida a Roma,
mas tão sòmente para admití-la, principalmente quando se notam
indícios de problemas internos durante certa época (52).
Nada mais podemos deduzir das Epístolas de Paulo, tanto
positiva como negativamente, pois a declaração dêsse apóstolo
no relatório da Epístola aos Gálatas, sôbre a reunião dos apósto­
los (G1 2.6 ) : “ quais tenham sido os de influência” , não nos per­
mite chegar à conclusão de que, na época da redação da Epístola
aos Gálatas (ano 56), Pedro já não mais vivia, pois do con­
trário o apóstolo não teria empregado a forma do passado! (53)

(49) Caso os judeus romanos presentes à festa de Pentecostes em


Jerusalém ( A t 2,10) tivessem levado o evangelho à capital, também isso
indicaria uma origem judaico-cristã. Assim F. J. FOAKES-JACKSON,
Peter: Prince of Apostles, 1927, p. 196.
(50) J. JUSTER, Les Juifs dans l’empire romain, 1914, p .209 e seg-,
fala até de 50— 60-000.
(51) M. J. LAGRANDE, Epitre aux Romains, p- XXIX seg-, consi­
dera como tendência principal da carta, o seguinte: Instruir os gentílico-
-crisitãos acêrca do papel histórico-soteriológico do judaísmo e adver­
ti-los contra qualquer vangloria frente aos judeo-cristãos-
(52) V. adiante p -117 e seg.
(53) K. HEUSSI apresenta essa explicação como interpretação evi­
dente da nossa passagem. Depois de publicá-la já em Theologische L i­
teraturzeitung 1952, col. 67 e seg-, êle a repetiu em “ Die römische Pe­
trustradition in kritischer Sicht” 1955, p. 1 e segs. Negada também por H.
V. CAMPENHAU'SEN, Kirchliches Amt und geistliche V-allmacM, 1953,
p.2 1, obs. 5, e especialmente por K. ALAND, ‘W ann starb Petrus? Eine
Bemerkung zu Gl. ü ” ,6 {New Testament Studies 1956, p.267 e segs.)
e Petrus in Rom (Hisior. Zeitschrift 1957, p-506). ALAN D salienta com
razäo que no versículo seguinte (7) Paulo faz uma declaração acêrca
de si próprio, no pretérito composto, a qual in d u i Pedro: “qwe a pre-
Na realidade, Paulo só queria dizer nessa passagem que é indife­
rente aos acontecimentos ali relatados quais “ tenham sido”
os da parte de Jerusalém que firmaram acôrdo. Esta observa^-
ção é tanto mais oportuna, ao verificar-se que na direção
da comunidade primitiva, como vimos, a situação não era sem­
pre constante.
Se alguma de nossas antigas fontes deveria dar-nos alguma
informação sôbre os últimos dias da vida de Pedro, esta seria
certamente o livro dos Atos dos Apóstolos. Mas a realidade é
que êste não contêm nem sequer a mínima alusão a uma estada
dêsse apóstolo em Roma, pois já vimos que é arbitrário interpre­
tar a notícia de 1 2 .1 7 dessa maneira (54). De antemão deve­
mos reconhecer que o silêncio dos Atos dos Apóstolos enfraquece
a opiniã© tradicional visto que assim se elimina uma das fontes
mais antigas para o testemunho da tradição. No entanto, nada
mais podemos deduzir dêsse silêncio. Também não é admissível
que nos precipitemos, usando-o como apoio para a prova da im­
possibilidade do fato advogado pela tradição. Principalmente os
oponentes da estada de Pedro em Roma, mencionados na nossa
rápida exposição da história do problema, recorrem a êsse silên­
cio para dar mais ênfase à sua tese (55).
É realmente estranho que uma “ história dos apóstolos” , em
cuja primeira parte Pedro desempenha um papel tão importante,
não contenha uma palavra sôbre o fim de sua vida. E êsse fato
surpreendente deve ser explicado de qualquer maneira. No en­
tanto, dêsse silêncio não se pode chegar a conclusão alguma
quanto à questão da presença de Pedro em Roma, pois não só
essa discutida permanência como até mesmo tôda a sua atividade
missionária sôHdamente estabelecida em 1 Co 9.5, fôram omiti­
das dêsse livro, tanto quanto a referência à sua morte.
Além do mais, nada é dito sôbre o martírio de Paulo, que
mesmo assim não é contestado. O livro finda abruptamente coru
a menção da chegada de Paulo a Roma e com a observação

gação do evangelho aos incircuncisos me tem sido confiada, como a


Pedro a pregação aos circuncisos” . — Totalmente arbitrário é também
o fato de que K. HEUSSI (op. cit., p .4 e seg.) identifica o T ia g o men­
cionado nessa passagem com o filho de Zebedeu. Arbitrário, uma vez
que está evidentemente subentendido, çomo em 01 1 .1 9 e 2.12 , o irmão
do Senhor, que certamente ainda vivia quando da redação da Epístola
aos Gálatas-
(54) V. acima p . 40 e seg.
(55)_ K. HEUSSI, porém, não pertence a êsses. Pois êle admite
com razão in War Petrus in Rom?, p . 17 e segs., que não é possível che­
gar-se a um resultado certo, partindo dos Atos dos Apóstolos.
de que permaneceu lá por dois anos. Levando-se em conta a des­
crição tão minuciosa das viagens de Paulo nos últimos capítulos,
torna-se ainda mais surpreendente o silêncio do livro em tômo
de Pedro, e uma explicação parece ainda mais urgente. Todavia,
nenhuma das soluções para o enigma do final abrupto dos Atos
dos Apóstolos resolve o problema da presença de Pedro em Roma.
É preciso admitir que ou o autor nada sabia sôbre o omitido
fim da vida de Paulo, e quiçá, também da de Pedro, ou não o quis
relatar. No primeiro caso é de se pressupor que êle concluiu o
seu livro justamente ao final dos dois anos após a chegada de
Paulo a Roma. Existiria assim a possibilidade, mas só a possi­
bilidade, de que Pedro tivesse chegado lá posteriormente e, como
Paulo, padecido o m.artírio.
Mas a suposição de que o autor concluiu sua obra exata­
mente dois anos após a chegada de Paulo a Roma não é pro­
vável. Muitos motivos, que não mencionaremos aqui, nos levam
a crer que o livro foi escrito mais tarde, após a perseguição ne-
roniana e após a morte de Pedro e de Paulo. Nesse caso, deve­
mos supor que o autor conhecesse o fim dos dois apóstolos. É
quase impossível que êle não possuísse informações acêrca de
tais acontecimentos. Só nos resta, assim, a explicação de que êle
nada queria relatar. O motivo para tal poderia ser de natureza
literária. Muitos realmente presumem Que a sua intenção era
conduzir o seu livro precisamente até aquêle ponto, a cheeada de
Paulo a Roma, quer tenha planejado um terceiro livro (56), quer
não (57). Ou então o motivo seria de caráter teológico, sendo
que a participação dos acontecimentos omitidos não corresnonde
de uma forma ou de outra, à finalidade teológica do livro. Tam­
bém nesse caso não podemos tirar, de momento, uma conclu‘5ão
pró nem contra a estada e o martírio de Pedro em Roma, pois,
em principio, permanecem ambas as possibilidades: Pedro fale­
ceu como mártir em Roma, após aquêles dois anos (eventual­
mente também antes).

(■56) Assim T . ZAHN, Einleitnnçr in rirff; Npue Tesfamenf, 4.“ ed-,


19'^4. n n .l6 e sep-s., SRl e sep-.. e M. GO G U EL, Jnfroduction au Nouveau
Tesfamenf, P. III, 1922, Le Livre des Actes, p .340-
Í57) W . MICHARLíS, Einleitung in das Neue Tesfamenf, 1946,
p. 133, conta com a possibilidade de que o autor podia lim itar tanto o
seu ohietivo uma vez que seus leitores estariam instruídos acêrca do
desenrolar dos acontecimentos-
(58) Pois, “ a nriori” , não é absolutamente necessário que se acei­
tem, no tocante a Pedro, os mesmos motivos para o silêncio, como em
felação à morte de Paulo.
O silêncio do autor poderia até ser talvez interpretado como
confirmação indireta da suposição de um martírio de Pedro em
Roma. Isto, porém, sòmente se fôsse possível demonstrar, no
decorrer do estudo, que para êle existia um motivo teológico
especial em não mencionar os últimos dias de Pedro, precísa-
samente no caso de terem êstes transcorrido em Roma. E nós,
realmente, apresentaremos tal hipótese, pelo menos em forma de
proposição (59). Tal, no entanto, sòmente será possível com o
auxílio de outros textos. Por ora, limitamo-nos a afirmar que,
quanto ao nosso problema, os Atos dos Apóstolos só merecem
ser citados para a constatação de que uma de nossas fontes
mais antigas silencia a respeito da questão de Pedro, o mártir.
Podemos deduzir algo de positivo das cartas que no Nôvo
Testamento figuram como Epístolas de Pedro? Não cabe aqui
0 problema da sua autoria. Mesmo que alguém as tivesse es­
crito e atribuído a autoria a Pedro, importaria descobrir se tal
escritor sabia algo a respeito da presença do Apóstolo em Roma
e se, conseqüentemente, escreveu como se fingisse fazê-lo da
capital.
A Segunda Epistola de Pedro não contém qualquer alusão
a Roma, porém sòmente ao martírio de Pedro, no cap. 1 . 1 4 :
“ Certo de que estou prestes a deixar o meu tabernáculo, como
efetivamente nosso Senhor Jesus Cristo me revelou” . Entretan­
to, como a literatura apócrifa posterior acêrca de Pedro, êsse
escrito não nos interessa aqui. Visto tratar-se do documento
mais recente do Nôvo Testamento, provém de um período pos­
terior (não anterior à metade do século II), quando a tradição
da estada de Pedro em Roma começa a surgir também em outros
lugares. O que nós queremos são testemunhos antigos.
Temos então a Primeira Epístola de Pedro. O seu capitulo
final encerra uma saudação que, independentemente da autenti­
cidade do texto, pressupõe, para muitos, a estada de Pedro em
Roma: “ Saúda-vos a comunidade de Babilônia, também eleita,
como igualmente meu filho Marcos” . (1 Pe 5 . 1 3 ) .
O certo é que nem isso nos leva a absoluta certeza. No
meu entender, a explicação mais provável é interpretar Babilô­
nia oomo figurativa de Roma. Visto que, se o autor escreve de
Roma, pode ter tido uma razão para substituir Roma por Babilô­
nia, como acontece no Apocalipse de João. E êle o teria feito
por temer as autoridades romanas, ou, o que é mais provável,

(59) V. adiante, pp. 95 e segs., 110 e seg.


porque a cidade da Babilônia, que desempenhou papel tão im­
portante nas profecias do Antigo Testamento, tinha se transfor-
formado numa idéia teológica, constituida de tudo quanto havia
significado para o povo de Israel, e sem dúvida tal noção se
aplicava perfeitamente à Roma dos dias do autor (60).
Sabemos da literatura cristã antiga com quanta freqüência
se empregava a tipologia dos nomes geográficos. Pensemos em
G1 4.26, onde a Igreja é classificada como a “Jerusalém lá de
cima” , ou em Hb 12 .2 2 que nos fala da “ Jerusalém celestial” .
Da mesma forma, “ Babilônia” poderia significar “ exílio” para
o autor da 1.°' Epístola de Pedro, em conexão com o seu pensa­
mento teológico como no cap. 2 . 1 1 (v. também 1 . 1 ) , onde êle
classifica os leitores de “ peregrinos e forasteiros” , significando
simultâneamente a corrupção da metrópole resultante do poder.
Tudo de conformidade com a tradição profética do Antigo Tes­
tamento, como, por exemplo. Is 4 3 . 1 4 e Jr 50 e 51 (61). A fór­
mula de saudação deve referir-se simultâneamente a uma cidade
concreta. Para a época do autor, Roma seria, pois, o único lu­
gar cogitável, ao qual se poderia aplicar o significado simbólico
da velha Babilônia.
Contudo, devemos pressupor que o emprêgo da palavra é sim­
bólico. Para tal, vem a favor o fato de que essa pressuposição,
justamente em relação a Roma, é testemunhada com segurança em
outros documentos. E isto, principalmente no Apocalipse de João,
caps. 14. 8; 1 6. 1 9; 1 7 . 5 e segs.; 18. 2 e segs., onde não paira
a menor dúvida de que “ Babilônia” subentende Roma. A expres­
são “ Sodoma e Egito” talvez seja também, de maneira idêntica,

(60) K. HEUSSI, War Petrus in Rom?, p. 38, não reconhece a razão


de um tal jôgo de esconder. Mas que o autor do Apocalipse de João
não quis mencionar Roma, isso está claro.
No mais, o capítulo que K. HEUSSI dedica à nossa passagem não
é satisfatório, visto que só a discute, partindo da pressuposição de que
por 1 Clem. 5 já está certamente provado que Pedro não estêve em
Roma. Não é possível interpretar I Pe 5 .1 3 a partir dêsse resultado
incerto (como ainda veremos), em vez de considerar a fonte separa­
damente. ■
M ais literatura sôbre I Pe 5 .1 3 : H. W INDISCH, Die katholischen
Briefe, 3.“ ed., 1951, revista por HERBERT PREI'SKER, p.82, além
A. SC H LA TTE R , Geschichte der ersten Christenheit, 1926, p-299 e segs.,
e B. W . BACON , Is Mark a Roman Gospel?, 1919, p.23 e segs. Ainda
o artigo de Q. KUHN “ Babylon” in Theologisches Wörterbuch zum
Neuen Testament, tom- I, p .5 12 ss.
(61) Princip.almente E. G. SE L W YN , The first Epistle of St. Peter,
1949, p. 303 e segs. indica êsse fato.
pseudônimo para Roma (62). Além disso, também encontramos
“ Babilônia” (Ap 1 1 . 8 ) como designação simbólica de Roma, na
literatura pseudo-epigráfica judaica ulterior. Assim em Sib. Or.
V, 159, onde lemos: “ arderá o mar profundo, a própria Babilônia
e a terra da Itália” , em Ap. Bar 1 1 . 1 e IV Esdr. 3 . 1 e segs.;
28. 31 (63). É certo que tanto o Apocalipse de João como os
textos judaicos ulteriores são documentos pouco mais antigos que
a nossa I Epístola de Pedro (64), mas, mesmo assim, pertencem
àmesma época (65). Além disso, a palavra “ mistério” em Ap 17.5,
que alude à expressão referente à Babilônia-Roma, parece insi­
nuar que essa maneira disfarçada de se expressar já era conhecida
pelos cristãos (66). Se nos aproximarmos da passagem imparcial­
mente, sem considerarmos de antemão a controvérsia sôbre a es­
tada de Pedro em Roma, notaremos por tôdas essas razões que
a interpretação da palavra “ Babilônia” , em I Pe 5 . 1 3 , como refe­
rindo-se a Roma, é a mais acertada. Até Pápias interpretou o ver­
sículo dêsse modo (67).
Apesar disso, não é absolutamente certo que essa expressão
deva ser entendida simbolicamente. Com efeito, não está fora de
cogitação que o texto se referia realmente à Babilônia situada na
Mesopotâmia, tão famosa na Antigüidade. Josefo (68) e Filon
(69) nos relatam que essa localidade ainda era povoada na épo­
ca do Nôvo Testamento, muito embora tivesse perdido tôda
importância, e apesar de terem os judeus, segundo outra no-

(62) Assim T. M UNCK, Petrus und Paulus in der Offenbarung


Johannes, 1950, p. 30 e seps., contra a m aioria dos intérpretes que pensam
encontrar Jerusalém por detrás da expressão.
(63) V. a êsse respeito H. FUCHS, Der geistige Widerstand gegen
Rom, 1938. As passagens rabínicas em STR AC K -B ILLE R B EC K , Kom­
mentar zum Neuen Testament, tom. 111, p.816.
(64) E. Q. SE L W Y N , op. cit., p p .243 e 303, acredita que a nossa
passagem seja o primeiro testamento dêsse emprêgo da palavra, B abi-
lônia= R om a, o qual também êle admite.
(65) Êsse emprêgo da oalavra Babilônia torna-se corrente entre
os Padres da Igreja: em TE R T U LIA N O . Adv. fudaeos 9; Actv. Marcio-
nem 3, 13, e em especial em O RÍGEN ES e AGOSTINH O . V. nesse to­
cante H. FUCH S, Der gdsfige Widerstand gegen Rom, 1938, p. 74 e segs.,
e B. ALTAN ER, artigo “ Babylon” in Reallexikon für Antike und Christen­
tum, I, col. 1131 e segs. — Digno de mençãoé também que dois manus­
critos de minúsculas substituíram, no texto, Babilônia por Roma. (Vide
T . ZkViH, Einleitung ins Neue Testament, 3.^ ed., vol. II, p .I 7 e segs.).
(66) Assim E. G. SE L W YN , op. cit., p.243.
(67) EUSÉBIO, H. E. II, 15, 2. Posteriormente, encontra-se mais
seguida essa explicação. V. JERÔNIMO, De viris illustribus 8.
(68) Ant. XV, 2, 2.
(69) Legatio ad Caium' 282, p . 587.
tícia de Josefo, deixado Roma por volta da metade do sé­
culo I, para se radicarem na cidade de Selêucia (70), que entre­
mentes tinha ultrapassado a velha Babilônia. Até já se supôs
que Pedro tivesse ido até Babilônia, na Mesopotâmia, em suas
viagens missionárias, ou, pelo menos, até à região da Babilônia.
Lá teria então escrito a nossa Epistola (71 ). Não podemos ex­
cluir essa possibilidade. Ela, no entanto, não é apoiada pela
tradição cristã posterior, que nada conhece a respeito de uma
atividade missionária de Pedro naquelas regiões. Essa missão
é atribuída a Tomé. Acontece também que o Talmude babilô-
nico acusa a presença de cristãos naquela área só a partir do
século in.

A suposição de que o autor, que atribuiu sua carta a Pedro,


nada tivesse sabido de exato sôbre o local das atividades do após­
tolo, e que por isso tivesse escolhido a Babilônia, distante e um
tanto nebulosa (72), não encontra confirmação e é improvável,
dada a menção concreta de Marcos. Em vista disso deve ser ne­
gada também a afirmação recente de que a palavra não suben­
tende uma cidade concreta, mas que deve ser intepretada, como
a “ diáspora” , no cap. 1 . 1 , no sentido figurado de “ situação de
expatriado” (73).

(70) Jos. Ant. XVIII, 9, 8- V. a êsse respeito T . ZAHN, Einlei­


tung ins N. T„ voL II, 2.=' ed., 1900, p. 17 e segs., e H. W INDISCH, “ D ie
katholischen B riefe” , {Handbuch zum Neuen Testament, editado por O-
BORNKAM M ), 3.=' ed-, revisada por H. PREISKER, 1951, p.82.
(71) A. SC H LA TTER , Geschichte der ersten Christenheit, 1926
p.299; H. D AN N EN BAUER, “ D ie rümische Petruslegende” iHistorische
Zeitschrift 1932), p.249, e outros; em época mais antiga, ERASMO- Se­
guidamente se alega que a tendência da carta, que é antes favorável ao
Estado, depõe contra a identificação de Roma com Babilônia. (Vide J.
HALLER, Das Papsttum, tom. I, 1951, p .477).
(72) K. HEU SSl, op. cit-, p . 38, obs. 6.
(73) Assim K. HEUSSI in “ Die Entstehung der römischen Petrus­
tradition” {Wissenschaftliche Zeitschrift der Universität Jena, 1952/53,
e Die römische Petrustradition in kritischer Sicht, 1955, p. 36 e segs- —
Em relação a êsse e outros textos (V. abaixo Obs. 96, pág. 102, HEUSS
sugeriu, uma após outra, diversas explicações, para excluir de qual­
quer maneira a interpretação de Roma. A petitio principii sôbre a
. qual se baseia êsse processo está em notória contradição com o “ ponto
de vista crítico” , que o autor reivindica para o seu exame do problema,
mas que tenciona negar aos trabalhos dos que contestam a sua tese-
(V- também acima obs- 41, pág. 84)- Também K- ALAND, Petrus
in Rom” {Histor- Zeitschrift 1957, principalmente p .510), e especialmen­
te o artigo de K. ALAN D sôbre tôda a literatura polêmica de Heussi
em relação a essa questão, “ Der Tod des Petrus in Rom. Bemerkungen
zu seiner Bestreitung durch. K. Heussi” (volume compilado 1959).
Em princípio, entraria em cogitação uma outraBabilônia,
o acampamento militar no Egito, próximo ao Cairo atuai, cita­
do por Estrabão (73) e Josefo (75). Mas não é de se espéi-ar
que alguém cometa o disparate de afirmar que I Pe. 5 . 1 3 se re­
fere a essa Babilônia mais ou menos obscura. Só mesmo o fato
de que o Evangelho e o Apocalipse de Pedro, ambos apócrifos, são
de origem egípcia, poderia apoiar essa hipótese. .
As outras cidades sugeridas, Jerusalém (76) e até Jope (77),
entram ainda menos em cogitação. Pois é impossível explicar por
que teriam sido classificadas de “ Babilônia” . Tanto mais que
a passagem, Ap. 1 1 . 8 , sôbre a cidade “ que, espiritualmente, se
chama Sodoma e Egito” , citada como analogia para Jerusalém,
segundo já mencionamos, não alude necessariamente a Jerusalém,
mas talvez a Roma (78). Mais fantástico é acreditar que se trate
de uma certa senhora muito respeitável, de nome Babilônia, per­
tencente a uma comunidade da Ásia Menor. Tal hipótese bâ-
seia-se totalmente na afirmação de Clemente de Alexandria, de
que a II Epístola de João tivesse sido dirigida a ela (79).
Chegamos, pois, á conclusão de que a I Epístola de Pedro
(autêntica ou não), ao mencionar o nome “ Babilônia” , refere-se
muito provàvelmente a Roma, pressupondo assim a presença de
Pedro naquela cidade. Todavia, outra interpretação dessa passagem
não seria totalmente impossível.
Há outra passagem da 1.^ Epístola de Pedro, cap. 5. 1 , a ser
citada, a qual se refere sòmente à questão de como Pedro morreu.
O autor denomina-se aí “ testemunha dos sofrimentos de Cristo e
co-participante da glória que há de ser revelada” . Também êsse
têrmo não é inequívoco; entretanto, justifica a suposição de que
o autor (seja êle Pedro ou um outro) sugere uma participação
do sofrimento de Cristo, inclusive de sua morte, pois o testemu­
nho não se relaciona sòmente ao ato de ter visto e de anunciar,
mas se refere ao ato de dar testemunho.

(74) XVII, 30, p . 807.


(75) Ant. II, 15, 1.
(76) A. HARNACK, Chronologie der altchristlichen Literatur bis
Eusebius, 1897, p.459. '
(77) SYN C E L LU S ad a-m. 5540 (ed. Bonn 627), que sem dúvida pen­
sou em At 9.36 e segs.
(78) V ide J. M UNCK, op. cit-, p.30 e segs.
(79) Sugerido por K. HEUSSI, op. cit., p.39, obs. 6, mas pôsto
em dúvida por êle próprio. '
conforme o uso idiomático da palavra grega, já comprovado era
tempos antigos (80).

Dos livros do Nôvo Testamento que temos a considerar, deve


ser citado, nesse contexto, o Evangelho de João. No cap. 2 1 . 1 8
e segs. lemos: “ Quando eras moço, iu te cingias a ti mesmo e
andavas por onde querias; quando, porém, fôres velho, estende­
rás as tuas mãos e outro te cingirá e te levará para onde não
queres” . Essas palavras são tidas quase que geralmente por uma
profecia do martírio de Pedro, apesar de serem, talvez, basea­
das em um ditado que dizia simplesmente: “ Os jovens vão para
onde querem, os velhos precisam ser levados” (81). O próximo
versículo declara que isso indica o gênero de morte pelo qual
Pedro “ havia de glorificar a Deus” . Portanto, não resta dúvi­
da, de que essa “ glorificação” só pode subentender o martírio.
João 1 3. 36 e segs. talvez também se relacione a isso: “ Para onde
vou, não me podes seguir agora; mais tarde, porém, me segui­
rás (82).

Não se sabe ao certo se as “ mãos estendidas” , em Jo 2 1 . 1 8 ,


dizem respeito à maneira especial de execução pela crucifica-

(80) Assim também R. KN O PF, Die Briefe Petri und ]udä, 1912,
p. 188; H. WINDISCH - H. PREÍSKER, Die katholischen Briefe, 3.“ ed.,
Í951, p.79; também o proprio K. HEUSSI, War Petrus in Rom?, p.31,
obs. 21; igualmente H. LIETZM ANN, “ Petrus römischer Märtyrer”
{Sitzungsbericht der Berliner Akademie der Wissenschaften, 1936, p- 399).
— Os que, ao contrário, relacionam a expressão só com o apostolado:
F. HAUCK, Das Neue Testament Deutsch, tom. 111, 1930, p . 203, e C.
BIGO, The Epistles of St. Peter and St. Jade, 2.® ed., 1910, p. 186. —
H. STRATH M AN N , Theologisches Wörterbuch, Q. Kittel, tom. IV, p. 499,
aceita uma “ participação no sofrimento do C risto” , mas nega “ o sentido
técnico 'de m artírio” . Quanto a tôda a questão: O. MICHEL, Prophet
and Märtyrer, 1932; H. v. CAM PENH AUSEN , Die Idee des Martyriums
in der alten Kirche, 1936; H. W . SU RKAU , Martyrien in jüdischer und
frühchristlicher Zeit, 1938; E. G Ü N TH ER, Martys, 1941.
(81) Assim R. BULTM AN N, Das Evangelium des Johannes, 2.^ ed.,
1950, p.552.
(82) O relacionamento dêsse versículo com o martirio é negado
por R. BU LTM AN N , op. cit. ad loc, e E . DINKLER, “ D ie Petrus-Rom­
Frage” {Theologische Rundschau 1959, p .205). K. ALAND, “ Petrus in
Rom” (Histor. Zeitschrift 1957, p.502 ss.) acrescenta mais um testemu­
nho do século 1, Lc 22.33: “ Senhor, estou pronto a ir contigo, tanto
para a prisão como para a morte.” E. DINKLER, op, c it, p .206, con­
sidera um êrro indubitável querer encarar isso como um vaticinium ex
eventu. Sem excluir totalmente a interpretação sugerida por K. ALAND,
parece-nos também que êsse testemunho não está suficientemente ga­
rantido.
ção (83). 0 têrmo grego 0 insinua acentuadamente (84). A pro­
fecia não precisa o local do martírio. Apesar de 0 cap. 21 ter
sido acrescentado posteriormente ao Evangelho de João, é um
texto relativamente antigo (85).
Temos assim dois testemunhos bastante antigos para 0 fato
do martírio de Pedro como tal; Jo 2 1 . 1 8 com certeza, e talvez
I Pe 5 . 1 , acrescentado à II Epistola de Pedro (cap. 1 . 1 4) , por
meados do século II. Isso não vem provar a “ historicidade” dêsse
gênero da morte de Pedro, mas simplesmente torná-la provável(86).
Para a questão da estada de Pedro em Roma, não é insignificante
saber se êle afinal morreu como mártir. Pois na Antigüidade as
notícias dos martírios não costumavam ser transmitidas, sem a
indicação do local (87). Devemos pelo menos admitir que aquêles
que revelam conhecimentos sôbre a tradição do martírio de Pe­
dro, nos textos mencionados, também não ignoravam 0 local,
apesar de não haver motivo para mencioná-los nessa passagem.
Isto será considerado quando do exame de I Clem 5.

(83) Isso é negado por R. BU LTM AN N, op. cit., p.552. Porém,


já TE R TU LIAN O , Scorp. 15: “tunc Petrus ab altero cingitur, cum cruci
adstringitur” .
(84) “Ekteínein”. V. a êsse respeito W. BAUER, “ Das Johannes­
evangelium” {Handbuch zum Neuen Testament), 3.^ ed., 1933, p.238.
Êle também indica que de acôrdo com essa suposição a seqüência do
“ estender as mãos” e do “ ser cingido” não está errada (assim R. B U L T ­
MANN, op. cit., ad loc.), visto que “ 0 delinqüente era obrigado a car­
regar a cruz para 0 lugar de suplício, com os braços estendidos e presos
à mesma” . Também E. DINKLER, op. c it, p. 203 supõe que se sabia
acêrca da crucificação de Pedro.
(85) K. ALAND, “ Petrus in Rom” {Histor. Zeit&chr. 1957, p. 502
e segs.), salienta contra K. HEUSSI, o testamento textual do papiro 52,
que teria contido êsse capítulo, para provar a antigüidade.
_ (86) K. HEUSSI põe em dúvida que Pedro tivesse morrido como
mártir. No entanto, a maneira pela qual êle tenta depreciar 0 testa-
munho de Jo 2 1.18 e segs. não é convincente: essa tradição (e êle admi­
te que 0 autor deve tê-la encontrado na sua forma definitiva) não seria
m.ais do que uma transferência do martírio de Paulo ao seu rival Pedro
{War Petrus in Rom?, p .30, obs, 21; Neues zur Petrusfrage, 1939, p . 24;
V. nesse sentido: ,Der Stand der Frage nach dem römischen Aufenthalt
des Petrus” in Deutsches Pfarrerblatt 1949, p.503). — ■R. BU LTM AN N,
op. cit., p.553, escreve quanto a isso: Se, por um lado não pudéssemos
deduzir a historicidade dêsse martírio, dessa profecia, por outro lado
também não poderíamos provar que 0 versículo 18 e seg. tem 0 objetivo de
impor a lenda. — V. também K. ALAN D , op. c it, p .502 e segs-, contra
0 ceticismo de K . HEUSSI frente aos testemunhos neotestamentários
acêrca do martírio de Pedro.
(87) É 0 que acentua corretamente H. LIETZM ANN, Petrus und
Paulus in Rom, 2.“ ed., 1927, p .235 e seg.
Como último texto do Nôvo Testamento a ser discutido em co­
nexão com 0 nosso problema, citemos o Apocalipse de João 1 1 . 3 e
segs. Segundo hipótese recente, “ as duas testemunhas” citadas
nessa passagem e que, após terem concluído o testemunho, são
combatidas, subjugadas e mortas pela “ bêsta que surge do abis­
mo” , referem-se aos apóstolos Pedro e Paulo. No mesmo trecho
se diz que os cadáveres de ambas as testemunhas ficarão estirados
na rua da “ grande cidade” , onde anteriormente foi crucificado o
seu Senhor. Por “ três dias e meio” pessoas de tôdas as nações os
vêem estirados e não permitem que sejam sepultados. Ambas as
testemunhas atormentaram tanto os habitantes da terra, que estes,
aíegrando-se com as suas mortes, enviam presentes uns aos outros.
O espirito de vida, vindo da parte de Deus, penetra em ambos os
mortos; e êles sobem ao céu em uma nuvem.
Essas testemunhas, que sempre haviam sido interpretadas an­
teriormente como sendo Moisés e Elias, poderiam realmente ser
Pedro e Paulo(88). Se essa hipótese fôr correta, teríamos aqui
talVez a mais antiga tradição sôbre ambos os mártires. Nesse caso
a “ grande cidade” deveria ser Roma(89), e teríamos de admitir

(88) Essa hipótese, expressa claramente pela primeira vez pelo je ­


suíta JUAN de MARIANA, Scholia in Vetus et Novum Testamentum, M a­
drid, 1619, p. I-IOO e seg., foi fundamentada cientificamente por J. M UNCK
na monografia Petrus und Paulus in der Offenbarung Johannes, surgïda
em 1950. Independente de J. M UNCK, essa tese também é defendida
pelo professor bruxelSs, L. HERMANN, “ 14’Apocalypse johannique et
l’histoire romaine” (Latomus 1948, p.23 ss.) e o exegeta católica M.-E.
BOISMARD, “L ’Apocalypse” (La Sainte Bible, Jérusalem), 1950, p p .21
e seg., 53 e seg., sendo que êle vê na ressurreição e na ascensão de am­
bas as testemunhas um símbolo para o seu “ triunfo junto a Deus" ou
mesmo a sua “ ressurreição na pessoa dos seus sucessores” .
G. B A V A U D (Friburgo) lembrou-nos amàvelmente um texto litiirgi-
co do século XIV, comemorativo da festa de Pedro e Paulo (29 de ju­
nho), empregado na missal de Lausanne, antes da Reforma, e que pode
ser encontrado em D REVES, BLUM E, DAN N ISTER , Analecta hymnica
medii aevi 1886/1922, voL 40, p . 321. Pedro e Paulo, as “ duae primi-
tivae radices Ecclesiae” , são classificados de “ duae olivae” , com refe­
rência a Zc 4 .3 e 11 e provàvelmente às duas testemunhas e Ap 11.3 ,
Nesse caso essa explicação é bem mais antiga do que a sua verificação
por Mariana, no século 17.
(89) V. acima p. 92, a respeito de “ Sodoma e Egito” .
No entanto, as palavras “onde também o seu Senhor fo i crucifica­
do” são de difícil interpretação. J. M UNCK, op. cit., p . 34 e segs.,
não vê outro recurso senão encarar as palavras como interpolação ou
não interpretá-las geograficamente, mas em sentido figurado, podendo
ser adaptadas em última instância a Roma. M.-E. BOISMARD, op. cit.
acima, obs. 88, considera as como interpolação que teria sido inspirada
por Mt 23.37- Os manuscritos, no entanto, não justificam a supressão
das referidas palavras.
que ambos os apóstolos teriam estado ao mesmo tempo em Roma,
para missionar, ou pelo menos, para padecer o martírio. Ao con­
trário do que foi relatado posteriormente, êles não teriam sido se­
pultados, pois os seus cadáveres ficaram estirados em plena rua,
em Roma. Além disso, essa tradição nos falaria de uma ascensão
dos dois mártires ao céu, o que nos Atos de Paulo talvez também
já esteja testemunhado em relação a êsse apóstolo.
A época dêsses acontecimentos só poderia ser a da perse­
guição neroniana, uma vez que outros traços do Apocalipse de
João também foram considerados sempre como muito prováveis
alusões a Nero.
Embora alguns argumentos apoiem a nova hipótese com res­
peito a essa passagem, não podemos considerá-la um fundamento
garantido para a conjectura de uma estada de Pedro em Roma.
Qualquer interpretação histórica terá de permanecer sempre pro­
blemática quando se tratar dêsse livro de linguagem velada e
obscura. Em nosso caso faltam os nomes das “ duas testemunhas” ,
bem como a designação “ apóstolo” , se bem que em outras passa­
gens decisivas do Nôvo Testamento os apóstolos sejam denomi­
nados “ testemunhas” (96). Além disso é precisamente omitido o
nome da “ grande cidade” onde foi crucificado o Senhor, e, ade­
mais, a interpretação de que se refere a Roma não é convincente, e
até acarreta dificuldades. A passagem admite outras versões. Por­
tanto, temos aqui também só uma possibilidade. Contudo, caso um
outro texto nos conduzisse mais claramente à certeza, quanto a uma
tradição antiga de estada e martírio de Pedro em Roma, também
essa interpretação, que é em si provável, adquiriria posterior­
mente maior importância como testemunho.
Até aqui ainda não encontramos um fundamento seguro. O
Nôvo Testamento só testemunha o fato do martírio de Pedro. No
tocante ao local, a explicação de I Pe 5 .!3 nos proporcionou só uma
probabilidade, embora grande. E o silêncio da Epístola aos Ro­
manos permitiu sòmente a conclusão de que durante um certo
período, Pedro de maneira nenhuma se encontrava em Roma.
Possuímos ainda dois textos que oontêm breves alusões a
Pedro e Paulo e que em todo caso, pertencem contemporaneamente
à esfera do Nôvo Testamento. São êles: a I Epístola de Clemente,
que provàvelmente data de fins do século I, e a carta de Inácio
de Antioquia aos romanos, de princípios do século II. A / Epis­
tola de Clemente é índubitàvelmente a mais importante das duas

(90) Vide J. MUNCK, op. c it, p. 17 e seg.


para a nossa questão. E tanto os que apóiam oomo os que
contradizem a tradição da estada de Pedro em Roma a conside­
ram, com razão, o testemunho literário decisivo. Em vista disso
demorar-nos-emos mais no seu exame, pois, se houver algum
texto em que possamos alcançar um grau de probabilidade relativa­
mente alto, num ou noutro sentido, será êste do cap. 5 dessa
epístola.
Ao que tudo indica, o documento provém ainda do fim do
século L Até já se tem afirmado que, da Antigüidade cristã, é
êsse 0 documento que pode ser datado com maior certeza, consi­
derando-se ter sido publicado no ano 96 (91).
Já de antemão é necessário acentuar alguns itens com res­
peito a êsse importante texto, que também considero como me­
lhor ponto de partida para uma nova e ainda não ponderada so­
lução do assunto (92) : por um lado, 1er o trecho decisivo sem
qualquer preconceito; por outro (e isso quer me parecer parti­
cularmente importante), não deslocá-lo de seu contexto, como sem­
pre acontece, mas explaná-lo, observando-o estritamente. Por isso
resumirei de início, antes de dissertar sôbre o trecho que nos in­
teressa diretamente, o teor dos capítulos que o precedem.
O cap. 5, que examinaremos mais detalhadamente, acha-se
em um contexto que compreende os cap. 3 a 6. Poderíamos inti­
tular todo 0 trecho da seguinte maneira: Das Conseqüências do
Ciúme. 0 tema é formulado ao final do cap. 3, onde, citando
Sabedoria 2.24, o autor deíine o ciúrne da seguinte maneira:
“ O ciúme injusto e ímpio, pelo qual penetrou a morte no mundo.”
No cap. 9, 1, fala-se mais uma vez da discórdia e do ciúme, “ que
conduzem à morte” .
Partindo de exemplos, deve ser provado que o ciúme entre
irmãos é de conseqüências desastrosas. Há dois grupos de sete
exemplos (93). O primeiro refere-se à Antigüidade e encontra-se
no cap. 4. São exemplos extraídos do Antigo Testamento: 1.“)
Caim e Abel, 2.“) Jacó e Esaú, 3.") José e seus irmãos, 4.°) Moisés

(91) A- HARNACK, Chronologie, tom. I, p. 255: “ entre 93-95” .


C. EGGEN BERGER, Die Quellen der politischen Ethik des I. Klemens­
briefes, 1951, é de opinião que se deva retroceder até o início do govêr­
no de Hadriano. Essa tendência relaciona-se com a perspectiva por de­
mais parcial, na qual todo o escrito é encarado como “ apologia da côr­
te” . Tudo 0 que é dito acêrca da situação em Corinto seria ficção!
A. LO ISY, Naissance du Christianisme, 1933, p .33, transfere o escrito
para os anos 130— 135, com outra fundamentação.
(92) V. prefácio à 2.® edição dêste livro.
(93) V ide R. KN OPF, “ D ie Lehre der Zw ölf Apostel; die zwei
Klemensbriefe” {Handbuch zum Neuen Testament, volume complementar),
1923, p .48 e segs.
e 0 judeu que o acusa de ter morto o egípcio, 5 °) Moisés, Arão
e Míriam, 6 °) Moisés, Datão e Abirão, 7.°) Davi (os filisteus)
e Saul.
O segundo grupo compreende os exemplos do passado re­
cente. Também contém sete divisões e está nos caps. 5 e 6. Che­
gamos agora à passagem tão discutida, cuja tradução citarei in­
tegralmente, dada a sua importância:
Capítulo 5 : “ Mas, deixando de lado os exemplos antigos,
queremos passar aos combatentes do passado mais recente. Aí
estão os nobres vultos de nossa geração. Devido ao ciúme
e à inveja as colunas maiores e mais justas foram perseguidas e
lutaram até a morte. Contemplemos os nossos bons apóstolos (94) :
Pedro que, em virtude do ciúme injusto não teve de padecer só
um, mas muito tormentos e, após dar o seu testemunho, dirigiu-se ao
lugar da glória que lhe cabia. Por causa do ciúme e da discórdia
Paulo conquistou o prêmio da perseverança: sete vêzes foi acor­
rentado, teve de fugir, foi apedrejado, tornou-se o arauto no Este
e no Oeste, e granjeou glória tão magnífica por sua fé. Após
haver ensinado justiça a todo o mundo, ter chegado até o ex­
tremo limite do Oeste e haver dado testemunho perante os deten­
tores do poder, foi libertado do mundo e se dirigiu ao lugar
santo, como o maior exemplo de perseverança” . Capítulo 6: “ A
êsses homens que viveram uma conduta santa, associou-se uma
grande multidão de eleitos, a qual, devido ao ciúme, sofreu hu­
milhação e tormentos e se tornou o mais magnífico' exemplo
entre nós. Por causa de ciúme, mulheres foram perseguidas, co­
mo as Danaides e Dirces suportaram horríveis e abomináveis maus
tratos, alcançando a meta segura da carreira da fé, recebendo um
grandioso prêmio, elas, as amàvelmente débeis. O ciúme afastou
esposas de seus maridos, invertendo a palavra do nosso pai Adão:

(94) A tradução verbal c.^pende da maneira pela qual relacionarmos


0 emõn, com apóstoloi ou com opMhalmoí- A tradução seria então: co­
loquemos os bons apóstolos ante os nossos olhos ou: coloquemos os
nossos bons apóstolos ante os olhos. P. M ON CEAU X, “ L’apostolat de
Saint_ Pierre à Rome, à propos d’un livre récent” (Revue (fHisioire et
de Littérature religieuses 1910, p . 225 e «eg.), acredita ser a tradução
“ nossos bons apóstolos” a única possível e pensa dever entender a ex­
pressão no sentido de “ os apóstolos que pregaram em Roma e Corinto” .
No cap. 44 .1, porém, a expressão “ nossos apóstolos” designa os apósto­
los em geral.
M. DIBELIUS, “ Rom und die Christen im erstne Jahrhundert”
{Sitzungsbericht der Heidelberger Akademie der Wissenschaften 1942,
p.20), interpreta agathoi no sentido de fortes, corajosos. V. a êsse res­
peito comprovantes em B. ALTAN E R , Neues zum Verständnis von L
Klem 5 .1 — 6 .2 {Historisches Jahrbuch 1949, p .2 5 ).
êsse é osso dos meus ossos e carne da minha carne. Ciúme e
discórdia destruíram grandes cidades e exterminaram grandes po­
vos.”
É êste 0 único texto antigo, que fala expressamente da morte
de Pedro, e se deve admitir de antemão que não é muito o que
nos tem a dizer. Portanto, temos de verificar até que ponto nos
é permitido deduzir algo mais do contexto.
Mais uma vez foram agrupadas sete vítimas do ciúme (95) :
1.") as colunas, 2.“) Pedro, 3.°) Paulo, 4.°) a grande multidão de
eleitos, 5 ° ) as mulheres torturadas, 6.°) os cônjuges separados,
7.®) as cidades destruídas. Dêsses sete exemplos o primeiro, o
sexto e o último têm um sentido muito geral e não nos permitem
pensar em acontecimentos especiais e concretos. Os últimos dois,
evidentemente só foram incluídos para completar o número de
sete. Para a explicação temos de considerar a divisão intencio­
nalmente artística dêsse trecho (99), bem como observar as difi­
culdades com que se deparou Clemente em encontrar para o pe­
ríodo relativamente curto do passado mais recente, i.e., cristão, o
mesmo número de exemplos, correspondente ao grupo do An­
tigo Testamento. Talvez nem o primeiro exemplo queira aludir
a nomes especiais, quando fala das “ colunas'’ (provàvelmente em
conexão com Gl 2 .9 ). O autor parece referir-se aqui a após-

(95) Assim, acertadamente, R. KN O PF, Handbuch zum Neuen Tes­


tament, volume complementar, 1923, p .49.
(96) Já por essa razão devemos refutar a tese posterior de K.
HEUSSI, apresentada surpreendentemente no seu segundo escrito contra
H. LIETZM AN N , Neues zur Petrusfrage, 1939, de que o trecho sôbre
Pedro, ou seja, os parágrafos 3 e 4, seriam uma interpolação. Devemos
refutá-la porque desse maneira estaria destruída tôda a disposição que
Clemente conseguiu realizar com tanto esforço.
Independente disso, essa tese apresentada posteriormente, testemu­
nha certa vacilação de HEUSSI em relação aos seus próprios argumen­
tos, expressos em obra mai" antiga: Wcr Petrus in Rom?, 1936, com
os quais êle justame ite tenta provar, no capítulo principal, que Clemen­
te comunica naquela passagem as coisas mais gerais, vagas e que não
dizem nada, acêrca de Pedro e que martyrésas não se refere ao martírio.
No escrito de 1939 êle diz surpreendentemente: Caso o parágrafo
sôbre Pedro seja uma interpolação, martyrésas deveria ser entendido no
sentido de martirio, correspondendo ao martyrésas referente a Paulo!
M ais adiante, porém, êle explica: Quem não puder aceitar a tese
da interpolação, apegue-se àqueles outros resultados a que chegara o-
seu estudo anterior acêrca da passagem! Em vista disso tem-se real­
mente a desagradável impressão de que se quer provar a qualquer preço
que a carta de Clemente não pode entrar em consideração como compro­
vante para o martírio de Pedro em Roma.
V. o procedimento análogo de HEUSSI na explicação de I Pe 5.13,.
acima, obs- 72 e 73 (p- 94).
los e líderes em geral, da Igreja primitiva, que sofreram o martí­
rio. Em todo caso, a “ luta até a morte” subentende o martí­
rio (97). É possível que o autor também conte Pedro e Paulo
entre êsses homens. Mas, para preencher o número dos sete, êle
os mencionou primeiramente juntos com as outras colunas cita­
das coletivamente, antes de se referir a cada um em particular.
Ambos os casos, e principalmente o de Paulo, lhe parecem espe­
cialmente apropriados para provar a tese em que estava interes­
sado: nue a inveja e n ciúm e levam à ruína, lá agora Quere­
mos fixar que a menção de Pedro e de Paulo só se deve ao |a^to
de 0 autor empregar exemplos da História do Cristianismo
mitivo (e justamente sete, para preservar a simetria) com
de dar maior ênfase à sua admoestação contra a invejai"^
xas, feita à comunidade de Corinto. ^
Lamentàvelmente, êle é muito breve nas JM iW jdedícadas
a Pedro. E particularmente lastimável p á j^ ( a ( 3 w a questão é
que, justamente o que nos interessa enr\esroi^fâÍ5^ ^ o c a l em que
Pedro sofreu tantos tormentos, não está^çi&k^^ “msim, êsse úni­
co texto antigo, que finalmente cainâtn)íMma alusão segura à
morte de Pedro, também se^4orM~raticênte. Nem se diz com
bastante clareza que o apósíoíà pereceu como mártir. Tal como
0 texto se apresenta, só seNíSima que Pedro padeceu muitos
suplícios em alguma ocáião, em algum lugar, que êle “ deu tes­
temunho” e que ^h^sDilW^o ao lugar da glória.
Se lermos es^k^dèelarações isoladas do seu contexto, real­
mente não Ckav£^á^^^ernativa, senão negar, juntamente com os
oponentes^^laX^t^a de Pedro em Roma, que essa passagem alu­
da a utft^E^i^io naquela cidade ou mesmo a um martírio como
tak jHncípio, as sentenças referentes a Pedro permitem a
■ Interpretação: padeceu uma grande variedade de sofri-
^tM durante a sua vida, deu testemunho (por meio da prédi-
i), e faleceu em alguma ocasião e em algum lugar de morte
natural, sendo finalmente acolhido no lugar da glória, como re­
compensa pela sua perseverança.

(97) A observação de K. HEUSSl, War Petrus in Rom?, p.25, é


correta; no cap. 4.9 é dito acêrca 'de José que êle foi perseguido méchri
thanátou. Mesmo assim êle escapou com vida. Conseqüêntemente, de
acôrdo com HEUSSI, também a “ luta até a morte” no capítulo 5 .2 não
pode ser interpretada como martírio. Mas, em conexão com athléo as
palavras éos thanátou não são só veemência retórica, como no exemplo
de José. Nesse último caso, aliás, o autor evidenciou que não se referia
realmente à morte- Pois êle acrescenta expressamente méchri doaleias.
O patético méchri thanátou anterior é expresso aqui só em vista da tese
principal manifesta no capítulo 3 .4 ( 9 .1 ) .
Tem-se lembrado, e com tôda razão, que o autor apresenta
a seqüência dos exemplos do Antigo Testamento desde Caim e
Abel em ordem cronológica. Por isso, há os que acreditam poder
concluir dal que Pedro faleceu antes do martírio de Paulo. Que
0 autor relate tão pouco acêrca de Pedro, enquanto narra muito
mais sôbre Paulo, explicar-se-ia pelo fato de êle não saber nada
mais que os mencionados e confusos dados sôbre aquêle apósto­
lo (98).
Quanto ao martírio em si (excluindo-se o local), deve ser
lembrado que, como vimos, êle é testemunhado, na época da re­
dação da I Epístola de Clemente, pelo menos em Jo 2 1 . 1 8 ( 1 3 . 36
e segs.), talvez também em I Pe 5, 1. Ignoraria Clemente o acon­
tecimento? Não parece provável.
Além disso, o contexto mostra que ambas as notícias sôbre
Pedro e Paulo são construídas de maneira inteiramente análoga,
apesar de ser a de Pedro muito mais breve. Em geral, é ad­
mitido que a nota sôbre Paulo se refira a seu martírio (99). No
seu caso a expressão “ dar testemunho” completa-se nas palavras
‘‘a s s im ... se dirigiu ao lugar santo” . Da mesma forma é difí­
cil interpretar de outra maneira o que é dito anàlogamente sôbre
Pedro: “ e assim dirigiu-se, após dar o seu testemunho, ao lugar

(98) Essa é, grosso modo a tese desenvolvida por K. HEUSSI, War


Petrus in Rom?. — H. D AN N EN BAU ER, “ D ie römische Petruslegende”
(Histor. Zeitschrift 1932, p.246 s.) admite a total ignorância da I Epís­
tola de Clemente acêrca da sorte de Pedro e o explica, baseado no fato
de que a perseguição neroniana teria destruído totalmente a comunidade
romana e rompido a seqüência de tôdas as tradições cristãs vivas. Con­
trário a isso, 0 . KRÜGER, “ Petrus in Rom” (ZNW 1932, p . 303 e seg.).
Também G. G U IGN EBERT, op. cit., p . 275, e K. HOLL, Gesam­
melte Aufsätze, J928, tom. II, p,65, obs. 1, afirmam que Clemente não
sabia nada de certo acêrca de Pedro. O segundo, no entanto, admite
que Pedro tenha chegado a Roma, mas só após a morte de Paulo, per­
manecendo lá por breve espaço de tempo. íjessa maneira êle explica o
fato de que justamente em Roma tivessem existido tão poucas lembran­
ças de Pedro, como se nota através de I Ciem 5 (Gesammelte Aufsätze,
1918, tom. II, p .6 7 ). Em vista disso, é bastante surpreendente que em
J. HALLER, Das Papsttum, tom. I, p. 476, se leia o seguinte: “ ...q u e m
sabe quantos não protestaram silenciosamente (contra a aceitação de
uma permanência de Pedro em Roma, por parte da ciência moderna),
sem levantar a voz! Sei que o historiador eclesiástico mais erudito e
perspicaz dos últimos 50 anos, Karl Holl, não compartilha a “opinião
dominante” .”
(99) Também K. HEUSSI o aceita, mas nem nesse caso entende
martyrésas no sentido de martírio- (War Petrus in Rom?, p-25).
da glória que lhe cabia.” (100). Por outro lado, deve ser ob­
servada a correlação martirológica da palavra grega doxa (gló­
ria), testemunhada em outros documentos. 0 grego martyrein
(dar testemunho), em todo caso já está pelo menos a caminho do
sentido técnico do martírio ( 1 01 ) .
Não como prova, mas como confirmação, poderíamos lem­
brar que, segundo o tema formulado no final do capitulo 3, jus­
tamente a morte deve ser considerada como conseqüência do
ciúme(10 2 ). É certo que, na maioria dos exemplos do primeiro
grupo, as consequências não resultam em morte, mas o autor pre­
fere os casos que findaram dêsse modo. Por isso, o primeiro
exemplo de todo o trecho, a história de Caim e Abel, é tratado de
uma forma especialmente extensa (10 3).
Se tivermos de admitir a grande probabilidade de que Cle­
mente aluda ao martírio de Pedro, também teremos de repetir que
êle próprio, em todo caso, deve ter conhecido o local. As notí­
cias dos martírios não costumavam ser transmitidas sem designa­
ção de lugar (10 4). No nosso trecho, Clemente não precisa men-

(100) Êsse “ dar testemunho” provàvelmente não compreende o “ pa­


decer muitos, tormentos” anterior, mas apresenta o martyrein como mais
um ponto especial- Pois é melhor relacionar outo com eporéuíhe, assim
como 0 outos da nota de Paulo pertence a apelláge. Assim H- v- CAM­
PEN HAUSEN , Die Idee des Martyriums in der alten Kirche, 1936, p.54,
0 qual demonstra que se trata de uma referência “ m artirológica” , rela­
cionada nesse caso com Pedro e Paulo e em EUSÉBIO, H .E -II, 23, com
T ia g o ; além disso, H. LIETZM AN N , Petrus römischer Märtyrer, 1936.
Contra K. HEUSSI, op. cit., p . 24, obs. 12. No seu último escrito, Die
römische Petrustrßdition in kritischer Sicht, 1955, p .22. obs- 2, HEUSSI
procura refutar v. CAM PENH AUSEN, acusando-o de haver intercalado
um “ e” antes de “ assim” e de häver atraído a oração prinfcipáj para
dentro da secundária, na notícia de Paulo. A objeção, em si correta,
não enfrequece, no entanto, o paralelismo constatado por v. CAM PEN ­
HAUSEN.
(101) Assim J. B. LIO H TFO O T, The Apostolic Fathers I, 1-2, 2.^
edição, 1890, ad loc. TamL ím R. KN O PF, Handbuch zum ^^euen Testa­
ment, volume comglementar, 1923, p .5 1, interpreta martyré r no senti­
do de martírio. Igualmente H. D ELEH AYE, Sanctus, Essai le culte
des Saints dans 1’antiquité, 1927, p.79, e H. v. C A M P E N H A U ^ N , op.
cit., p.54. E. GÜNTHER, Martys. Geschichte eines Wortes, 1941, p.
117 e segs., nega a significação de “ ser mártir” e H. STRATH M AN N ,
Theologisches Wörterbuch, Kittel, tom. IV, p .5 11, é muito reservado.
L . SAN D ERS, L’hellenisme de S. Clément de Rome et le paulinismo, 1943,
p-21 e seg., quer dar à palavra o mesmo sentido que E P IC T E T O lhe
atribui.
(102) V. acima p. 100 e seg.
Ü03) É 0 que acentua corretamente R. KNOPF, Handbuch zum
Neuen Testament, vol. complementar, 1923, p .49.
(104) Assim H. LIETZM ANN, Petrus and Paulus in Rom, 2-® ed.
1927, p. 235 e seg. V. também acima p. 97.
cloná-lo, pois pode pressupor que todos o conhecem e, afinal, não
está a fornecer um relatório sôbre o martírio, mas um exemplo
para as consequências da inveja e da discórdia (10 5).
Acontece também que os exemplos 1, 3, 4 e muito provàvel­
mente o enigmático exemplo 5 (106) relacionam-se com cristãos
que padeceram o martírio. O quarto exemplo é bastante claro,
nesse sentido: A grande multidão de eleitos, a que se refere essa
passagem, é constituída, segundo a opinião geral, dos cristãos
que sofreram o martírio sob Nero, pois não sabemos de outra
perseguição de uma “ grande multidão” (10 7 ), durante aquela épo­
ca, a não ser esta de que fala Tácito (Ann X V .44), o qual
usa a mesma expressão empregada por Clemente “ multitudo In­
gens” .
A notícia sôbre êsse quarto exemplo contém ainda uma indi­
cação de grande importância para o nosso pi’oblema: “ .. . e se
tornaram assim os mais magníficos exemplos entre nós” (108).
Visto que Clemente escreve de Roma, possuímos a indicação de
lugar, pelo menos para essa categoria: Roma. Isto comprova que
se trata de mártires da perseguição neroniana (109). Os que
advogam a tradição romana acêrca de Pedro, na verdade trans­
ferem muitas vêzes precipitadamente deduções concernentes ao
quarto exemplo, para os anteriores, nos quais, como vimos, nada
se diz sôbre o local. Caso os exemplos do segundo grupo estejam
realmente dispostos em ordem rigorosamente cronológica, como os
dos primeiros, tanto menos poderíamos atribuir o “ entre nós” sim-

(105) B . ALTAN ER, “Neues zum Verständnis von 1. Klem. 5,1 —


6,2” (Histor. Jahrbuch, 1949, p.25) demonstra que o capítulo 9 da carta
de Policarpo utiliza quase que verbalmente I Clem 5. Êle tenta mostrar
que Policarpo subentendeu que Paulo, Inácio, Zózimo e álloi apóstoloi
teriam padecido o martírio em Roma.
(106) Comumente pensa-se em crueldades, especialmente execuções,
sob a forma de representações mitoló; \cas (TE R TU LIA N O , Apol. 15). b o
corresponc’ "ia também às ludibria testemunhadas por T Á C IT O , Ann. ’ ,
44, relacic-.adas com a perseguição neroniana. Outras explicações: L.
van LIEM PT, Handelingen van het veertiende nederlandsche Philologen-
Congress te Amsterdam, 1931, p . 37 e seg., seguido por M. DIBELIUS,
op. cit., p .24: as mártires seriam denominadas aqui pelos nomes das
heroínas mitológicas, para expressar a grandeza do seu sofrimento, não
o caráter do seu castigo: “ elas são verdadeiras Dirces e Danaides” . A
m ais recente e interessante conjetura, A. DAIN, Rech. Sc. rei. 1951/52,
p. 353 e segs-: êrro ortográfico do copista em neanides paidiskai.
(107) poly plêthos.
(108) en emin.
(109) K. HESSI, op. cit., também o reconhece, embora, p. 21, obs.
9, não queira excluir a possibilidade de que en emin signifique “ em nos­
so meio” , i.e ., “ dos cristãos” .
plesmente a Pedro e Paulo. Especialmente se as “ colunas” do
primeiro exemplo não foram todas “ perseguidas e lutaram até à
morte” , em Roma.
Também não é possivel que a forma “ êles (a grande multi­
dão) se associaram ( 1 1 0) a êsses homens (Pedro e Paulo)” seja
completada com “ em Roma” , como se fôsse necessário pergun­
tar onde êles se associaram. A associação citada não tem neces-
sàriamente sentido geográfico. Também não significa, conforme
interpretação costumeira dos oponentes da tradição romana: “ no
lugar da glória” . Em conexão com essa expressão a pergunta pelo
“ onde” , na verdade, não tem razão de ser ( 1 1 1 ) . A forma “ êles
se associaram” , de início, não significa mais do que alinhar obje­
tivamente o exemplo da grande multidão, que evidentemente deve
ser localizada (dados outros motivos mencionados acima) em Ro­
ma, como mais um comprovante dos martírios cristãos concretiza­
dos no passado mais recente, padecidos em razão de ciúme.
Partindo justamente dêsse ponto de vista objetivo, pergunta­
mo-nos se nos exemplos 2 até 5 não se apresentam condições ex­
teriores idênticas. Nesse caso, a fragmentação em quatro casos
especiais poderia estar relacionada à determinação do autor em
obter 0 número sete, também nesse segundo grupo. Constatamos
que os exemplos 6 e 7 só foram apontados por essa razão. Será
preciso contar com a possibilidade de a sequência de 2 a 5 não
estar em ordem cronológica ( 1 1 2 ) .
Existe, pois, a possibilidade de os quatro exemplos se
reportarem à perseguição neroniana. É certo que a expressão
“ mais próximo de nós” no capítulo 5. 1 ( 1 1 3 ) , só tem sentido tem­
poral, a fim de separar o segundo grupo do primeiro. As pala­
vras “ nossa geração” também o indicam. No entanto, o fato de Cle­
mente empregar pelo menos no quarto exemplo as palavras “ entre
nós” , prova que tinha interêsse em apresentar no segundo grupo
exemplos que estivessem situados em local mais próximo.
Em to io caso, não podemos simplesmente dilatar as palavras
“ entre nós” à notícia sôbre Pedro, a não ser que possamos provar

(110 synethroísthe
(1 1 1) Contra K. HEUSSI, op.cit-, p . 22; mas também contra M. D l-
BELIUS, Rom und die Christen im ersten jahrhundert, 1942, p .23, que
apresenta a tese de que Clemente queria, apegando-se ao esquema popu-
lar-filosófico da competição, produzir exemplos de “perseverança” e “ atle­
tismo” cristãos. Em conexão com essa tese êle escreve; “ o lugar de
encontro entre os dois grupos é antes a arena im aginária, na qual têm
lugar os combates dos “ atletas” cristãos” .
(112) Nesse caso, cai o argumento mencionado acima, p. 106.
outros indícios objetivamente importantes, os quais combinem os
exemplos 2 a 4 (talvez também 5) de maneira tal que tenhamos
de admitir o mesmo período de tempo e o mesmo cenário para
todos.
Mais uma vez queremos lembrar as finalidades dessa enume­
ração. Que é que há em comum entre os dois grupos, o do Antigo
Testamento e o cristão? Cada um foi introduzido, com monotonia
intencional, com as palavras: por causa do ciúme, ou por causa do
ciúme e da inveja, ou por causa do ciúme e discórdia. A citação
de cada exemplo contém no mínimo uma dessas palavras. O que
une todos êsses casos tão diversos é, pois, o seguinte: Ciúme, in­
veja e discórdia sempre causaram desgraça. Ora são os justos, i. e.,
as vítimas, os que sofrem, ora os culpados, i. e., os autores do
ciúme, inveja e discórdia, como acontece nos exemplos 5 e 6.
Isto deveria ser tomado em consideração, não só em geral, mas
também na interpretação particular. Recentemente muito se in­
sistiu que Clemente foi influenciado fortemente pelo helenismo e
que sua intenção era aplicar artifícios literários e conceitos da
filosofia cínico-estóica à Bíblia e à história dos primórdios da
Igreja ( 1 1 4) . E isto está indubitàvelmente certo. Por outro lado,
não é possível considerar essa tendência com finalidade principal
das exposições de nosso trecho. Como se Clemente quisesse apre­
sentar uma contemplação moral-filosófica sôbre a perseverança,
a qual teria encoberto as imagens da competição. É certo que
Clemente emprega êsse esquema para as imagens, na descrição
dos sofrimentos dos apóstolos. Mas afirmar que o seu intento
era demonstrar o exemplo da perseverança dos apóstolos, seria
compreender mal o seu objetivo. O “ leit-motiv” do trecho não é
a perseverança, mas a inveja, o ciúme e a discórdia ( 1 1 5 ) .

(113) éggista
(114) M. DIBELÍUS, “ Rom und die Christen im ersten jahrhundert”
{Sitzungsbericht der Heidelberger Akademie der Wissenschaften, Phil. —
hist- KL, 1942), o demonstrou em um estudo minucioso. V. acima obs.
35 (pág. 83) e obs- 111 (pág. 107) (antes dêle já E. D U BO W AY,
Kemens v. Rom... 1914). Ainda mais amplo é o trabalho do teólo­
go católico L. SANDERS Uhellénisme de S- Clément de Rome et le
pauíinisme, 1943, surgido independentemente de M. DIBELIUS- Quanto
à imagem da competição, empregada com predileção pela filosofia popu­
lar, V- também P- W END LAN D , Die urchristlichen Literaturformen, 1912,
p . 357, obs.
(115) Também no artigo de K. ALAND, “ Petrus in Rom” {Histor.
Zeitschrift 1957, p .510 e segs-), mencionado seguidamente, isso não é
considerado suficientemente. É evidente que o esquema filosófico em­
pregado por Clemente não se ajusta ao motivo do ciúme. Isso, no en-
Dessa forma, a parcimônia da exposição sôbre Pedro, com­
parada com a de Paulo, que é muito mais minuciosa, poderia rela­
cionar-se com 0 fato de que o exemplo de Pedro era menos abun­
dante nesse sentido ( 1 1 6) .
0 já citado “ leitmotiv” talvez até admitisse conclusões indire­
tas e posteriores acêrca do local dos acontecimentos. A palavra,
ou melhor, as palavras empregadas por Clemente, ao dirigir-se à
anteriormente tão exemplar comunidade de Corinto, para designar
03 vícios nela reinantes, tão assoladores e de tão trágicas conse­
quências na Antigüidade bíblica e no recente passado cristão, não
significam de um modo geral “ ódio do mundo contra os filhos de
Deus” ( 1 1 7 ) . Dessa maneira se tem tentado fugir à única conse­
qüência possível, resultante de nosso texto, que afirma terem Pedro

tanto, não muda nada no fato de que é êsse e não aquêle o tema prin­
cipal do trecho. Lamentavelmente, nem K. ALAND (como HEUSSI) toma
sequer posição quanto à interpretação de I Clem. 5, que sugeri na pri­
meira edição dêste livro. Até mesmo E. DINKLER, no seu excelente
relatório documentado de pesquisas; “ Die Petrus-Rom -Frage” {Theologi­
sche Rundschau, 1959, p . 210 e segs.), passa por cima do assunto com
algumas frases, só mencionando a observação complementar à minha tese,
de A. FRIDRICHSEN. '
(116) M. DIBELIUS, op. cit-, p. 28, explica essa escassez da seguin­
te maneira; Clemente não entrou em mais pormenores acêrca do mar­
tírio de ambos, por motivos políticos: para não expor o Estado romano
como adversário dos atletas cristãos, preferindo, em conexão com o seu
esquema filosófico do atletismo cristão, permanecer junto aos pónai e
érga. Nesse respeito, no entanto, haveria muito mais a ser relatado acêr­
ca de Paulo do que acêrca de Pedro que provàvelmente só teria vindo
a Roma para a execução, talvez prêso como Inácio. Parece-me que tôdas
as explicações até o presente são falhas porque não partem do fato de
que 0 “ ciúme” é o tema principal. Embora também Pedro se tornasse
vítima do ciúme, há mais a ser relatado sôbre Paulo, justamente sob
êsse ponto de vista. Também a menção de sua vinda para o Ocidente,
se é que ela merece atenção especial, poderia estar relacionada com o
ciúme temido pelo próprio Paulo (Rm 15.20). Ciúme que ameaçava ser
provocado pela sua atividade na comunidade romana, a qual não fôra
fundada por êle(V . acima p. 50 e seg.). No entanto, seja como fôr, de ma­
neira alguma podemos concluir, com K. HEUSSI, Die römische Petrustra­
dition in kritischer Sicht, 1955, p.28 e seg., que, sendo Paulo classifica­
do de “ arauto rto Ocidente e no Oriente”, só se tinha conhecimento de
uma atuação de Pedro, no Oriente. Na nota acêrca de Pedro não é men­
cionado o Ocidente nem na nota acêrca de Paulo, o Oriente.
(117) Assim L. SANDERS, op. cit., p .5, o b s .l, e J. M UNCK, op.
cif., p .58 e segs. Ambos julgam ter de refutar a partir dêsse ponto a
minha tese, defendida in: “ Les causes de la mort de Pierre et de Paul
d’après le témoignage de Clément Romain” {Revue d’Histoire et de Phi­
losophie religieuses 1930), p .294 e seg. R. KNOPF, Handbuch zum. Neuen
Testament, vol. complementar, define na p .47, onde examina o capítulo
3, 2, zelos corretamente como “ ciúme pelo prestígio, posição e vantagens
e Paulo sofrido, devido ao ciúme e discórdia. As três palavras gre­
gas são sinônimas e significam: ciúme, inveja, discórdia. A pala­
vra que traduzimos por ciúme ( 1 1 8) aparece dezesseis vêzes nesse
trecho; a que traduzimos por inveja ( 1 1 9) , quatro vêzes, e a que
traduzimos por discória (12 0 ), três vêzes.
O primeiro vocábulo que, aliás, é o mais usado, exprime pri­
meiramente “ zêlo” , no sentido positivo e como tal ocorre até como
quaUdade divina ( 1 2 1 ) . Mas justamente a mudança do signifi­
cado, da qualidade boa para a má, demonstra que o vício, desig­
nado por essa palavra, não é primariamente um simples ódio, mas
um ciúme nascido do zêlo (12 2 ). O têrmo pode, sem dúvida, al­
cançar também o sentido mais geral de “ ódio” . No entanto, a dis­
posição conjunta das três palavras demonstra que justamente o que
há em comum entre elas deve ser projetado para o primeiro plano,
e isso é inveja e ciúme, não só ódio (12 3 ).
Parece-nos deveras inexplicável que se possa chegar a propor
o significado geral de ódio. Clemente introduziu êsse trecho justa e
únicamente devido a êsses vícios que ameaçam tudo destruir na
comunidade à qual se dirige. É o que êle escreve bem claramente

do outro” . A isso, porém, não corresponde que êle escreva na p .50


acêrca de “ódio, inveja e ciúme do mundo contra os filhos de Deus” . —
Correto em P. MEINHOLD, “ Geschehen und Deutung im 1. Clem ensbrief’
(Zeitschrift für Kirchengeschichte 1939, p .9 0 ); “zetos e éris são empre­
gados por Clemente em um sentido semelhante ao empregado por Paulo
em Rm 13 .13 ; I Co 3 .3 ; II Co 12.20; QI 5.20. Tante em Clemente
como em Paulo, essas palavras significam as fraquezas m orais do ciúme
e da inveja, que emergem do mínimo da paixão sôbre o homem não mais
guiado pelo Espírito” . P. MEINHOLD, no entanto, não tira daí as con­
seqüências para a explicação de I Clem 5.
(118) zelos
(119) phthónos
(120) éris
0 2 1 ) Vide A. STUM PFE, Theoíogisches Wörterbuch, Kittel, tom. II,
p-879 e seg.
(122) C- EGOENBERGER, Die Quellen der politischen Ethik des
1. Klem-, 1951, p.36, pensa em “zelotes” . Semelhantemente, mas com me­
lhor fundamentação, BO REICKE, Diakonie, Festfreude und Zelos in Ver­
bindung mit der altchristlichen Agapenfeier, 1951, p.373 e segs.
(123) 0 comprovante apresentado por J. M UNCK, op. cit., p.60 e
seg., baseado em I Clem 45.4 não seria um contra-argumento frente à
esmagadora m aioria de exemplos claros para zelos ~ ciúme nos capítu­
los 3 e 4, mesmo que nesse caso se trate excepcionalmente de ódio do
mundo. Mas, como êle mesmo admite, um dos dois exemplos citados
no capítulo 45.4 e segs. certamente subentende ciúme. E também no
caso dos três homens no fôrno não devemos esquecer que o ponto de
partida é a denúncia de alguns caldeus contra alguns judeus, a quem
Nabucodonosor confiara o govêrno da província de Babilônia (Dn 3 .1 2 ).
no inicio da carta, nos três primeiros capítulos que precedem ime-
dítamente o nosso trecho. Aí não se trata de “ ódio em geral” ,
mas de ciúme, inveja e díssenções, surgidos entre os membros da
comunidade cristã de Corinto (cap. 3.2 ,4 ). Por isso, e só por isso,
Clemente se refere, nos capítulos seguintes, a êsses vícios, pelos
quais “ penetrou o pecado no mundo” (cap. 3 .4 e 9 . 1 ) , em alusão,
à inveja do diabo nos primórdios do mundo (12 4 ).
Além disso, é evidente que os exemplos do Antigo .Testamen­
to denunciam inveja e ciúme entre irmãos, como o exige a mencio­
nada finalidade da Epístola. É certo que, segundo a passagem de
Sabedoria 2.24, citado no cap. 3.4 , quem está em ação é o poder
inimigo de Deus, o diabo, causador da morte. Mas só entre
irmãos! Em vista disso o paradigma Caim e Abel, que inicia tôda
a série, ocupa um espaço excessivamente grande, pois é especial­
mente típico. Só um exemplo do Antigo Testamento poderia ser
encarado como exceção, o de Davi e os filisteus. Mas está vin­
culado ao de Davi e Saul, e é mencionado só em conexão com
êste, para salientar que Saul pertence ao mesmo povo que Davi.
Clemente escreve; “ Por causa de ciúme Davi teve de suportar não
só inveja de estranhos, mas também foi perseguido por Saul, o rei
de Israel” . É o fato mencionado por último que merece ser sa­
lientado.
A êsse respeito os outros exemplos não deixam dúvidas:
Caim tem ciúme de seu irm ão Abel; Esaú, de seu irmão Jacó; os
filhos de Jacó, de seu jovem irmão. 0 quarto é especialmente
interessante. O autor acentua expressamente que Moisés teve de
fugir de faraó devido ao ciúme de um patrício (125). Ambos os
exemplos restantes da Antigüidade também têm êsse ponto em
comum com os outros.
Com exceção do de Paulo, os exemplos do segundo grupo
não são conhecidos, ou o são muito pouco, por meio de outras fon-

(124) Indicando B. N OACK, Satanas und Soteria, 1948, p .43 e seg.,


0 próprio J. M UNCK, op. cit., p . 60, o b s .84, reconhece que também nessa
citação de Sap 2.24 refere-se à inveja do diabo. No entanto, o decisivo
é a inveja e como conseqüência a morte, não o fato do ódio dos “ podê-
res inim igos de Deus” . Lá, no princípio da criação, aparece a inveja
na sua pura forma prim itiva como poder do diabo, inim igo do Deus. Mas
é justamente característico dêsse vício diabólico que desde o seu ingres­
so no mundo êle opera entre irmãos. Isso pertence ao caráter de zelos,
phtHónos e éris. Isso é demonstrado na comunidade de Corinto e é o
que Clemente quer provar com os seus exemplos, com uma ampla expo­
sição do exemplo de Caim e de Abe! no início.
(125) homophylos.
tes, e por conseguinte não podem apoiar e tão pouco enfraquecer
essa conclusão. Só o fato de os cônjuges não terem sido nomea­
dos especificamente comprova cabalmente a atual verificação. Mas
também quanto aos outros temos de admitir, já de antemão, que
Clemente escolheu os exemplos cristãos de modo que não só com­
binassem com o Antigo Testamento, mas fossem convincentes para
o leitor quanto à finalidade da carta. Que é que adiantaria apre­
sentar simplesmente nessa carta exemplos gerais de perseguições
aos cristãos e da perseverança dêstes? Aqui interessa provar aos
cristãos de Corinto, divididos pelo ciúme e pela inveja, as conse­
qüências dêsses vícios. Portanto, temos de supor que também nesse
segundo grupo estão em pauta o ciúme e a inveja entre membrcs
da mesma comunidade.
Daí resulta uma dedução importante para os exemplos que
nos interessam. Se Clemente escreve também nessa passagem que
Pedro sofreu “ por causa de iníqua inveja” , Paulo “ por causa de
inveja e dissenções” , a grande multidão de eleitos “ por causa do
ciúme” , isto só pode significar, no contexto da nossa Epístola,
que fôram vítimas do ciúme daqueles que se contavam a si mes­
mos na Igreja Cristã. Não quer dizer que tivessem sido tortura­
dos ou até mortos por outros cristãos. Mas sim que, devido ao
procedimento de alguns membros da comunidade cristã, talvez
mesmo a denúncia, fôram as autoridade"; encorajadas a agir con­
tra os civis acusados. Da mesma forma, no exemplo do primeiro
grupo, Moisés foi obrigado a fugir do rei egípcio, em vista da
inveja de um compatriota.
De inicio não podemos apresentar minúcias acêrca do caráter
dessa inveja. No entanto, dá o que pensar o fato de que também
os exemplos do primeiro grupo seriam em parte bastante obscuros
se não possuíssemos o Antigo Testamento. Em todo caso depara­
mos com ciúme e inveja de outros cristãos, e não das autoridades.
Naquela época realmente não existiam motivos para que estas
ahmentassem inveja e ciúme contra os cristãos. Havia, no en­
tanto, no entanto, razões para agir contra êles (126).
Como temos visto, o que ?e diz de Pedro e Paulo concerne
tanto à sua vida como à sua morte. Tem-se afirmado que a men­
ção do ciúme refere-se só ã vida, não ã morte de ambos os após­
tolos (127).

(126) Nesse caso não podem ser os judeus os originadores da in­


veja, pois na época de Clemente êles não eram m ais considerados como
pertencentes à mesma comunidade.
(127) J. M UNCK, op. cit., p. 61 e segs.
Na referência a Pedro, as palavras “ por causa da inve­
ja” , que iniciam a oração relativa, relacionam-se gramàticalmente
tanto com a primeira parte ( “ padece muitos tormentos” ) como
com a segunda ( “ dirigiu-se para o lugar da glória” ). Visto que
esta segunda parte do período representa, por assim dizer, o pon­
to culminante dele, é de se esperar que as palavras “ por causa
da inveja” tenham maior ligação com êle. E constatamos que o
“ entrar no lugar da glória” pressupõe, incontestàvelmente, a mor­
te. O resultado, pois é que Pedro chegou ao martírio “ devido ao
ciúme” . Ademais, as palavras “ por causa de ciúme e dissensões”
estão dispostas de tal maneira na referência a Paulo, que visam
claramente o final, o recebimento do prêmio da vitória. E isto,
apesar de os sofrimentos, os esforços e os seus feitos gloriosos,
mencionados posteriormente, e que precederam sua morte, se com­
pletarem na coroação com os louros da vitória, como sua premissa.
Gramàticalmente, a descrição citada acima não mais depende das
palavras “ por causa de ciúme e dissensões” . Visto que êle descre­
ve a atividade de Paulo com certa riqueza de fundo e de forma,
talvez nos seja difícil repetir a propósito de cada pormenor: isto
é “ por causa do ciúme” . Na verdade, porém, é preciso salientar
que, em 2 Co 11.2 6 , Paulo menciona especialmente os “ perigos
entre falsos irmãos” na enumeração dos seus tormentos (12 8 )!
Sem levar isso em consideração, resta lembrar que Clemente tem
de interessar-se, segundo o tema do trecho citado em 3.4 , justa­
mente por casos em que a inveja “conduz à morte” ( 9 .1) .

Essa interpretação da nossa passagem é confirmada no cap.


47, que se refere diretamente à finalidade da carta. O autor lem­
bra as desavenças que tinham ocorrido em Corinto e que haviam
ameaçado não só a unidade da Igreja, mas até a sua existência,
e que naquela ocasião Paulo os advertiu contra as separações,
quando alguns declararam pertencer ao partido que usava o seu
próprio nome, outros, ao de Cefas, outros, ao de Apoio. Clemente
conclui essa admoestação com as palavras decisivas, que são como
que um comentário ao nosso cap. 5, provando que é impossível in­
terpretá-lo de maneira diversa do que a seguida por nós: “As no­
tícias (das vossas atuais desavenças) não só chegaram a nós, mas
também aos crentes de outras religiões, de modo que a vossa
loucura tem por conseqüência que o nome do Senhor é blasfemado

(128) Kíndynoi en pseudadélphois.


e que ela põe a vós próprios em perigo” (perante os que perten­
cem a outras religiões).
Agora compreendemos muito melhor a razão por que Cle­
mente, o bispo romano, lembrou aos coríntios desunidos que, não
havia muito tempo, a inveja e as dissensões entre cristãos haviam
conduzido ós maiores apóstolos e uma grande multidão de eleitos
com êles ao martírio. A situação é a mesma, no sentido de que
o perigo e a morte provêm de gente de fora e, por outro lado, os
motivos dessa sua intervenção são fornecidos pela inveja de
irmãos. O mesmo aconteceu já no caso de Moisés e seu patrício,
perante o rei do Egito, no cap. 4 .10 .
Em todos êsses casos Clemente se contenta em mencionar sem
maiores detalhes o fato da inveja, que, afinal, é o principal. Êle
podia omiti-los, pois pressupunha serem os acontecimentos conhe­
cidos. A morte de ambos os apóstolos não pode ter ocorrido muito
mais do que trinta anos antes da redação da Primeira Epístola
de Clemente. Dessa forma êle pode limitar-se às alusões, bem
como pressupor serem conhecidos, em parte por meio da Biblia,
os pormenores dos exemplos do Antigo Testamento.
Realmente, de modo algum foi dito demais sôbre os porme­
nores especialmente dolorosos daqueles martírios, pois os cris­
tãos que causaram a morte de outros cristãos não constituíam
exemplo edificante. Essa poderia ser também a explicação para o
final abrupto do livro dos Atos dos Apóstolos (12 9 ). Teria o
autor, que quer demonstrar a ação do Espírito Santo na Igreja
de Cristo, receio de falar dessa dolorosa inveja, de tão graves
conseqüências? De qualquer maneira, Clemiente tinha, ao contrá­
rio, razões de sobra para mencioná-lo em sua carta, para mostrar
0 que ameaça, da parte dos perseguidores pagãos, os mais valio­
sos membros de uma comunidade, se esta fôr dividida por causa
da inveja.
A favor dessa interpretação do nosso texto está também o con­
fronto das declarações de Clemente acêrca da inveja, com o que se
acha sôbre o mesmo objeto nas epístolas de Paulo. Fazendo êsse
confronto, seremos até reconduzidos ao problema para nós capi­
tal, que é a questão do lugar dos acontecimentos. Até aqui só
deduzimos da carta de Clemente que Pedro, Paulo e outros se tor­
naram vítimas de perseguidores não cristãos, devido à desunião
causada pela inveja. Perguntamos então; Baseando-nos nas fontes
à nossa disposição, em que lugar poderiam ter-se dado tais ocor-

(129) V. acima p. 110 e seg.


rências? Onde existia no tempo de Pedro e Paulo uma igreja em
que grassasse inveja capaz de conduzir à perseguição e ao mar­
tírio? Essa pergunta, que há já muito deveria ter sido examinada
pela pesquisa não pode ser eliminada com a indicação do fato,
em si correto, de que Clemente utilizou nessa passagem um es­
quema filosófico (13 0 ).

Em uma de suas epístolas, Paulo escreve expressamente que


a discórdia e o ciúme reinavam na Igreja do lugar onde êle se
encontrava como prisioneiro. Está escrito na Epístola aos Fili-
penses, cap. 1 . 1 5 - 1 7 : “Alguns efetivamente proclamam a Cristo
por inveja e porfia; outros, porém o fazem de boa vontade; êstes^
pregam a Cristo por amor, sabendo que estou aqui (prêso) in­
cumbido da defesa do evangelho; aquêles, contudo, por discórdia,
insinceramente, querendo suscitar tributações no meu cativeiro” .
É surpreendente encontrarmos quase as mesmas palavras de 1
Ciem 5 em uma espístola de Paulo, escrita de um lugar onde o
apóstolo se achava encarcerado: inveja, porfia ( 1 3 1 ) .

O local da redação da Epístola aos Filipenses efetivamente


não está comprovado, uma vez que não é mencionado diretamente
-na carta. Antes de pensar no nosso problema, sempre julgamos,
juntamente com muitos pesquisadores, que só podia tratar-se da
prisão em Roma (13 2 ). Vimos que a grande multidão de eleitos
mencionada em 1 Ciem 6 .1 com certeza sofreu o martírio em Ro-
tna devido à inveja (“ entre nós” ). Veremos ainda em particular
que a Epístola aos Romanos contém pontos de referência, que in­
dicam atritos na comunidade romana entre os partidos judeo-
cristão e gentílico-cristão. Sem perigo de cairmos num círculo
vicioso, podemos, pois, combinar essas informações e deduzir que
■só sabemos da comunidade romana, que: 1.°) lá reinou a inveja (I

(130) V. acima p. 107 e seg.


(131) phthónos, éHs, efitheia.
(132) Assim entre outros A. JÜLICHER-E. FASCHER, Einleitung ins
:N. T., 7.“ ed., 1931, p. 120 e seg.; K. HOLL, Gesammelte Aufsätze, tom.
II, 67. — Jamais compreendemos a necessidade de reportar a carta à proble­
mática prisão em Éfeso, como o fazem P. FEINE-BEHM, Einleitung in
das N. T., 1936, p. 174 e seg., W. MICHAELIS, Einleitung ins N. T., 1946,
p. 205 e segs., recentemente também P. BEN O IT, La Sainte Bible (Jeru­
salem), Les Epitres de S. Paul- Aux Philippiens, 1949, p. 11 e seg., em­
bora seja certo que a menção do “ pretório” e dos “ da casa de César”
não se refira necessàrîamente a Roma. A distância entre Roma e F ili-
pos não nos parece uma dificuldade. Quanto ao seu conteúdo, a carta
se enquadra melhor no fim da vida de Paulo.
Clem 6 . 1 ) ; 2”) lá Paulo parede temer dificuldades relacionadas
com a co-existência de judaizantes e cristãos gentílicos (Rm
15 .2 0 ); 3“) lá Paulo permaneceu como prisioneiro do Estado ro­
mano e padeceu, na sua prisão, “ tribulações” (13 3 ) causados por
outros membros da igreja (Fp 1 . 1 5 e seg.).
Devemos lembrar o tom enérgico com que Paulo se ergue, jus­
tamente nesta epístola aos Filipenses, contra os judeo-cristãos que
provàvelmente se contam entre aquêles que êle classifica de “ fal­
sos irmãos” na Epístola aos Gálatas ( 2 .4 ) . Em Fp 3 .2 , chega
a qualificá-los de “ cães” . Essa gente que sempre lhe proporcio­
nou dificuldades em suas viagens, êle a veio encontrar posterior­
mente também em Roma. Pedro certamente não pertencia a êsse
grupo. Ao contrário, estava sempre, como temos visto, muito pró­
ximo de Paulo. E seria errôneo acreditar que após o incidente
de Antioquia houvesse ocorrido um rompimento entre ambos (134 ).
Segundo 1 Clem 5, é de se supor que Pedro tivesse sofrido por
causa daquela gente.
Lembremo-nos de que, partindo de outras ponderações, con­
cluímos no capítulo anterior (13 5 ) que, como delegado da comu­
nidade de Jerusalém, Pedro estava numa situação mais difícil do
que Paulo por causa da sua atitude de liberdade em face da lei
(G1 2 . 1 1 e segs.). Assim, poderíamos atribuir os “ muitos tor­
mentos” , causados pelo ciúme (1 Clem 5 .4 ), a tais dificuldades
com os superiores e seus por demais zelosos auxiliares (13 6 ).
Principalmente a Epístola de Paulo aos Romanos observa que
tal antagonismo já se manifestava em Roma antes da chegada do
apóstolo à capital. Paulo com certeza tinha ouvido algo sôbre
a situação. Só assim é possível explicar o combate ao judaismo
numa carta dirigida a uma comunidade que êle ainda não visitara.
Mencionamos acima (13 7 ) o quanto lhe é importante desculpar-se,
no cap. 15 .2 0 e segs., por dirigir-se excepcionalmente a uma
igreja que êle não fundara. Constatamos ainda que isso o preocu­
pava tanto porque o tornava infiel a um princípio, cujo cumpri­
mento encarava como “ questão de honra” , pois lhe parecia corres-

(133) thllpsin (Fp 1 .1 7 ) .


(134) Isso é contestado com razão por M. DIBELIUS-W . G. KÜM­
MEL, Paulus (Goeschen), 1951, p. 124.
(135) V. acima p. 56 e seg.
(136) W . GRUNDM ANN, “Die Apostel zwischen Jerusalem un An­
tiochien” (ZNW 1940, p. 128), acentua acertadamente que essas dificul­
dades já se tinham iniciado anteriormente para Pedro.
(137) V. acima p .51.
ponder ao acôrdo de Jerusalém (Gl 2 .9 ). O rigor com que Paulo
fala sôbre o assunto no cap. 15, revela que êle não se dirige sem
uma certa angústia à igreja que provàvelmente tinha sido fundada
e continuava a se dirigida por judaizantes. Se é que já teve
de lutar contra a oposição da missão de Jerusalém nas igrejas
por êle fundadas, quanto mais nessa, onde provàvelmente seria
encarado, de antemão, como intruso. Todo aquêle trecho no cap.
15 revela uma preocupação patente, que talvez pressuponha um
conhecimento especial de Paulo acêrca da situação em Roma, evi­
dentemente dominada pelos judeo-cristãos. Eis a razão da des­
crição inusitadamente longa e cuidadosa de sua pessoa, e o teor
especial da carta (138 ).
As ocorrências em Roma demonstram perfeitamente o quan­
to era justificado o temor de Paulo (13 9 ). O antagonismo pare­
ce ter sido tão tenso que também Pedro, que “ tinha chegado'’
provàvelmente naqueles dias à capital, com o fito de remediar
as dificuldades internas, como organizador responsável da mis­
são judeo-cristã, foi combatido e abandonado por alguns dentre
a sua própria gente, em virtude do seu ponto de vista por demais
conciliador. Como dirigente oficial da missão de Jerusalém, cuja
posição era de qualquer maneira, delicada como já fizemos sentir
é agora particularmente atacado pelos extremistas do partido ju-
deo-cristão.
Os conflitos que parecem haver-se agravado após a chega­
da de Paulo a Roma, provàvelmente descambaram para hostili­
dades ostensivas. E talvez tenham chegado mesmo ao ponto de,
durante a época das perseguições, não resistir à tentação da denún­
cia dos lideres às autoridades, quando intimados a fazê-lo. Isto
podederia ser confirmado pelos escritores profanos, que narram a
atividade de Nero contra os cristãos. Em Tácito, Ann. X V .44, le­
mos: “ Os (cristãos) que foram presos em primeiro lugar e fizeram

(138) Já vimos acima que não podemos concluir daí que Pedro
tenha vindo a Roma só para promover agitação contra Paulo, como
quer H. LIETZM ANN (Sitzungsbericht der Berliner Akademie der Wis­
senschaften 1930, n.° 80). Vide p. 55 e seg. A êsse respeito E. HIRSCH,
“ Petrus und Paulus” (ZNW 1930, p. 63 e segs.).
(139) C. CECCHELLI, Gli Apostoli a Roma, 1938, p. 101, chegou
a apresentar a hipótese de que Paulo teria solicitado a Pedro que viesse
à capital, devido à situação da mesma. O fato de que Pedro era, por
assim dizer, responsável pela parte judeo-cristã da comunidade poderia
realmente favorecer essa hipótese. — C. CECCHELLI admite, aliás, tam­
bém uma traição de ambos os apóstolos por um “ nôvo Judas” . V ide op.
cit. p. 06. . I . , j j ,
uma confissão, eram convictos. Depois, após a denúncia, uma gran­
de multidão.. . ” (140 ). Tem-se dito que nada havia de extraordiná­
rio em denúncia dêsse tipo em tempos de perseguição quando se
usava a tortura no interrogatório ( 14 1 ) . Mas Tácito julgou digno
de menção especial êsse pormenor. Evidentemente, não é possí­
vel provar, mas apenas presumir, que os invejosos se encontravam
realmente entre “ os que fôram presos primeiro” . Em todo caso
corresponderia plenamente à palavra de Jesus, em Mt 2 4 .10 :
“ hão d e ... trair-se... uns aos outros” (14 2).
Também poderia acontecer que a atenção do Estado fôsse
desviada para os apóstolos de outra maneira, e não pela denúncia
direta. O que é certo, porém, é que segundo a opinião de Clemente,
0 fato aconteceu como conseqüência da inveja que dividia os
membros da igreja. E uma vez que tal afirmação contraria tôdas
as tendências posteriores, de maneira alguma pode ser tido como
imaginária, e a opinião de Clemente deve corresponder à reali­
dade histórica.
Em princípio permanece a possibilidade de as ocorrências de
Roma terem se dado em qualquer outro lugar. Ou seja, de que
controvérsias na igreja poderiam ser o motivo externo para que
0 Estado executasse membros da família cristã, de modo que não
precisaríamos supor necessàriamente o mesmo ambiente para o
martírio de Pedro, e para o de Paulo e da grande multidão. Mas
isto não é provável O fato é que os únicos documentos que men-

(140) “ Igitur primo conrepti qui fatebantur, deinde, indicio eorum


multitudo in g e n s .. .
Quanto à m ais recente explicação do texto, vide H. FUCHS, “ T a citu s
über die Christen” {Vigüiae christianae, 1950, p. 65 e segs) e A. KUR--
FESS, “Tacitus über die Christen” {Vigüiae christianae 1951, p. 148
e seg.
Segundo C. EG QEN BERGER, Die Quellen der politischen Ethik des
l. Klem, 1951, p. 127 e sag., Clemente estaria nesse ponto dependente de
T ácito. ..
(141) J. M UNCK, op. cit., p. 63. — Êle escreve ainda que a passa­
gem deixa transparecer que a perseguição já estava em andamento- Isso
é correto. Não compreendemos, porém, de que maneira essa constatação deva
refutar minha explicação. Não é necessário admitir que Pedro e Paulo
tivessem que ser presos logo no início.
(142) É evidente que a nossa interpretação de I Clem 5 não depen­
de da passagem de Tácito. Por Isso, o nosso argumento é totalmente
adulterado quando K. HEUSSI, Die römische Petrustradition in kritischer
Sicht, 1955, p. 23, obs- 2, só diz, acêrca da nossa exegese do trecho, que
ela “ parte da premissa” de que Pedro e Paulo teriam sido incluídos n»
processo contra os incendiários, em 64.
cionam a presença de inveja dêsse gênero são os que se referem
à igreja de Roma, isto é, 1 Ciem 6 .1 e ao que tudo indica a Epís­
tola de Paulo aos Filipenses, bem como, indiretamente, a Epís­
tola aos Romanos. Por isso a designação de lugar ( 6 .1) “ entre
nós” , i.e., na comunidade do bispo Clemente de Roma, vale pro­
vàvelmente para todos os martírios cristãos ocasionados pela in­
veja e enumerados pelo autor. Não é possível verificar com cer­
teza se Pedro e Paulo padeceram juntos o martírio, durante a
própria perseguição neroniana, ou se separadamente, algum tem­
po antes. Sua morte pertence, em todo caso, a êsse período de
perseguições.
Além disso, é razoável que Clemente, como admoestação, além
das formações partidárias que anteriormente haviam fragmenta­
do a sua igreja (cap. 47), citasse justamente tais exemplos de
inveja e discórdia que haviam ocorrido na sua própria igreja
em Roma.
Também já se afirmou que, em Mc 15 .10 , a observação de
que “ Pilatos percebia que por inveja (14 3) os principais sacerdo­
tes lhe haviam entregado Jesus” , foi adicionada pelo evangelista
sob influência dos acontecimentos em Roma, pois Marcos teria es­
crito seu Evangelho nessa cidade, sendo, portanto, testemunha dê­
les (144).
Finalmente, parecem se haver conservado outros vestígios
nas lendas posteriores, dos Atos de Pedro. Aí lemos que Pedro
foi executado por ter induzido nobres mulheres romanas a abando­
nar os seus maridos. Nesse caso, pelo menos, o motivo do ciúme
poderia constituir a essência histórica dessa lenda (14 5 ).
Ainda mais impressionantes são duas passagens dos Atos de
Paulo (146 ), que reproduzem lendas, nas quais êle aparece ex­
pressamente como vítima do ciúme. Primeiramente em Éfeso, onde
um certo Diofantos, cuja espôsa era discípula de Paulo e estava
dia e noite a seu lado, teria ficado ciumento e tentado lançá-lo
aos leões (14 7 ). Também é narrado (148) que em Corinto um

(143) diá phthónon.


(144) Essa tese foi defendida por A. FRIDRICHSEN,“ Propter in ­
vidiam, Note sur 1. Clém. Rom. V ” (Eranos Rudbergianus1946) p. 161 e
segs., em conexão com o nosso artigo (V. acima p. 82).
(145) Actus Vercellenses, 33 e segs.
046) A lembrança dêsses devo ao meu colega ERIK PETERSO N .
V. PRAXEIS PAULOU. Acta Pauli nachdem Papyrus der Hamburger Bi­
bliothek, editado por C. SCHMIDT, 1936.
(147) p. 2, linha 8 do papiro.
(148) p. 6, linha 27 do papiro.
homem, tomado pelo espírito, predisse a Paulo que êle partiria
dêste mundo, em Roma vítima do ciúme (149 ). Aí há, provà­
velmente, declarações de Paulo (1 Co 15 .3 2 ) combinadas
com I Clem 5. Seja como fôr, os Atos de Pedro e de Paulo
concluíram corretamente de 1 Clem 5, que a morte de ambos os
apóstolos foi ocasionada pelo ciúme. Mas só podiam imaginá-lo
na forma primitiva do ciúme de um marido pela espôsa cristã.
Nem de longe lhes ocorreria o pensamento de um ciúme entre
membros da igreja, de um “ perigo entre falsos irmãos” (2 Co
1 1.2 6 ) , pois isso contraria inteiramente a sua maneira de ver.
Concluímos; Do exame da Primeira Epístola de Clemente
ver,ifica-se (outra vez .não com absoluta certeza, mas com a
maior probabilidade) que Pedro sofreu o martírio durante as
perseguições neronianas em Roma, na ocasião em que havia de­
sunião na igreja cristã da mesma cidade. Por conseguinte, Pedro e
Paulo tornaram-se mártires aproximadamente na mesma época, não
necessàriamente no mesmo dia, mas no mesmo período das perse­
guições, que provàvelmente se alastraram por um espaço de tempo
mais ou menos prolongado (150 ). Com base na Primeira Epístola
de Clemente não é possível verificar a atividade missionária ou ecle­
siástica de Pedro em Roma. Tampouco se pode determinar, a
partir dêsse texto, a data de sua chegada a Roma ( 1 5 1 ) . As desa­
venças que nos foram narradas nos conduzem à suposição de que
tal aconteceu pouco antes da perseguição, e em conexão com a sua
responsabilidade para com a parte judeo-cristã da comunidade.

Chegamos agora ao último testemunho literário antigo, a


Epístola de Inácio de Antioquia aos Romanos. Êste mártir, no
início do século II, tinha sido condenado a morrer no circo em

(149) zelothénta exelthein.


(150) Um período de tempo maior, como o supõe K. HOLL, Gesam­
melte Aufsätze, tom. II, 1928, p. 67, obs., evidentemente não está fora de
cogitação.
(151) J. M UNCK, op. cit., supõe que ambos foram para lá como
condenados. Êle pensa poder concluir que ambos sofreram juntos o mar­
tírio, do fato de que só a morte em comum poderia ter ocasionado a an­
tiga tradição que menciona os dois apóstolos juntos, embora tivessem
atuado totalmente separados um do outro. Também os atos apócrifos pos­
teriores, sem contar os Acta Petri et Pauli, originários do século V , re­
ferem-se separadamente a ambos. Êle também vê o martírio em comum
confirmado em Ap 11.3 .
Roma. Durante sua viagem como prisioneiro, à igreja da Capital,
que será em breve, seria testemunha do seu martirio.
Lemos no cap. 4 .3 dessa carta: “ Não vos dou ordens, como
Pedro e Paulo (15 2 ). Êles (foram) apóstolos, eu condenado;
êles livres, eu sou agora um escravo; mas quando sofrer o martírio,
tornar-me-ei livre em Jesus Cristo, e nêle ressurgirei como ho­
mem livre” . Assim escreve Inácio à igreja de Roma É digno
de nota que êle faz lembrar justamente a essa congregação os
exemplos de Pedro e de Paulo.
Na verdade, não se diz aí que ambos os apóstolos estiveram
em Roma. Inácio poderia querer estar dizendo, na sentença, sim­
plesmente: “ eu não dou ordens como se fôsse Pedro e Paulo” .
As passagens paralelas na Epistola de Inácio aos Efésios (cap.
3 .1 ) e aos Trales (cap. 3 .3 ) poderiam apoiar uma tal in­
terpretação, pois lá Inácio escreve realmente só em um sentido
geral: “ Eu não vos ordeno, como se fôsse alguém” , “ não como
um apóstolo” ( 15 3 ). Mesmo assim é digno de atenção, que jus­
tamente na carta aos Romanos êle não se satisfaz com uma ma­
neira tão geral de exprimir-se mas cita Pedro e Paulo pelo nome.
De modo algum se pode afirmar que a combinação dos nome^
de Pedro e Paulo tinha de se impor por si, tão logose pro­
curassem nomes de apóstolos. Tal poderia ser o caso posterior­
mente, mas não no tempo de Inácio. E não devemos esquecer
a pergunta: Como se poderia ter verificado a citação simultânea
de ambos, uma vez que êsses dois apóstolos, excluindo-se o en­
contro em Jerusalém e o choque em Antioquia, jamais atuaram
em conjunto, chegando mesmo a presidir, de acôrdo com Gl 2.9,
duas organizações missionárias independentes (154 ) ?
A indicação de seu martírio padecido conjuntamente em
Roma parece-nos a resposta mais plausível, tanto mais que
é possível provar que em outro trecho (cap. 3 . 1 ) Inácio alu­
de à Primeira Epístola de Clemente (15 5 ). Assim, a melhor

(152) ouch os Pétros kal Paulos diatássomai hymin.


(153) K. HEUSSI indica corretamente êsses paralelismos. War Pe­
trus in Rom?, 0 . 40 e segs.
(154) J. M UNCK faz acertadamente essa pergunta, segundo W.
BAUER, Rechtgl. u- Ketzerei, 1934, p. 116. A resposta de H. D AN N EN ­
BAU ER, “Die römische Petruslegende” (Historische Zeitschrift 1932, p.
258), de que ambos os apóstolos tivessem estado juntos em Antioquia, não
satisfaz de maneira alguma.
(155) O. PERLER, “ Ignatius von Antiochien und die römische Chris­
tengemeinde” (Divus Thomas 1944, p. 442 e seg. apresentou essa prova.
explicação para a menção simultânea de ambos os apóstolos
na nossa carta é de que, justamente perante os romanos, Inácio
cita pelo nome os apostolos que foram mártires entre êles, do
mesmo modo como êle próprio agora se dirige para lá
como mártir. É certo que êle acentua a distância entre si e
aquêles. Mas essa comparação negativa só ganha significação,
estando o autor consciente de ter algo em comum com ambos.
E isso não é o apostolado, mas o martírio em Roma. Na passa­
gem paralela da Epístola aos Trales (cap. 3 .3 ) não é men­
cionado qualquer nome de apóstolo. Perante essa comunidade,
que jamais recebeu a visita de um dêles, não há razão para tal.
Por outro lado, na Carta aos Efésios, os quais foram visitados
por Paulo, êle designa o apóstolo pelo nome, se bem que em
um contexto totalmente diverso (cap. 12 .2 ). Classifica os
“ fésios de “ co-iniciados de Paulo” porque êste estêve em Éfeso
como apóstolo. Dessa forma êle menciona Pedro e Paulo na
carta aos Romanos, porque ambos estiveram em Roma (156 ).
É evidente que nem êsses textos de Inácio nos permitem
chegar a uma certeza absoluta. Porém, mais uma vez temos de
concluir ser altamente provável que Inácio sabia que Pedro e
Paulo tinham sido martirizados em Roma.
Permite essa passagem também uma conclusão acêrca de
qualquer atividade de ambos os apóstolos em Roma, anterior ao
martírio? A frase “ dar ordens” (157 ) parece insinuá-lo. Tem-se
afirmado que essa expressão se refere simplesmente às instruções da
Epístola de Paulo aos Romanos. Mas nesse caso Pedro estaria
indevidamente sendo pôsto ao lado de Paulo. Por isso, também
é provável que Inácio tenha aludido a uma atividade missionária
e eclesiástica de ambos os apóstolos. No entanto, o contexto em
que se fala de “ dar ordens” não parece indicá-lo. O capítulo,
em cujo final está a sentença que nos interessa, contém na sua
primeira parte a célebre solicitação aos cristãos romanos de não
intervirem a favor de Inácio junto às autoridades, visto que êle
não quer fugir ao martírio. A menção das ordens de Pedro e
Paulo está, portanto, em um contexto, no qual se fala do martí­
rio de Inácio e do procedimento da comunidade romana frente

(156) É 0 que acentuam fortemente H. LIETZM ANN e recentemente


K. ALAND, “ Petrus in Rom” (Hisforische Zeitschrift 1957), p. 509 e seg.
Nessa passagem êle demonstra de maneira bastante convincente quão in ­
certo é o método com o qual K. HEUSSI procura enfraquecer o teste­
munho dos textos.
(157) diatássesthai
a êsse martírio. O próprio Inácio se vê constrangido a “ dar
instruções“ (158 ) a êsse respeito, no início dêsse capitulo. A in­
terpretação mais natural é, pois, que também as ordens dadas
por Pedro e Paulo estavam relacionadas com o martírio de am­
bos. Nesse caso essa referência não contém qualquer indica­
ção sôbre uma atividade mais longa de ambos os apóstolos, como
pregadores, mas também não a exclui. Basta, portanto, admitir
que ambos os apóstolos tinham, antes de sua morte, a oportuni­
dade de distribuir ordens à comunidade romana, com relação aos
seus martírios.

É muito provável que possamos acrescentar mais um teste­


munho indireto do século I, uma passagem do escrito apócrifo
Ascensão de Isaías (159 ). Bste foi considerado o primeiro e
mais antigo documento que testemunha o martírio de Pedro em
Roma. Trata-se do cap. 4.2-3, onde lemos a seguinte profecia:
“ ...então descerá Beliar, o grande príncipe, o rei dêste mundo,
que é quem o dominou desde a sua origem. Descerá de seu fir­
mamento, em forma de homem, o rei da maldade, assassino de
sua mãe, que é o próprio rei dêste mundo; e êle perseguirá a
plantação que terá sido plantada pelos doze apóstolos do Ama­
do; dos doze um será entregue em suas mãos” . É fora de dú­
vida que êsse Beliar descido em forma de homem, o assassino de
sua mãe, é Nero. A menção de “ um dos doze” - que é entre­
gue em suas mãos não é tão fácil de interpretar. Pedro e
Paulo entram em cogitação como apóstolos que foram víti­
mas de Nero (16 0). O autor não pode ter pensado em Paulo,
visto que no cap. 3 . 1 7 êle emprega a expressão “ os doze” no
sentido restrito ( 16 1) . A passagem referir-se-ia, então, a Pedro.
Mas a declaração é deveras vaga e a menção da “ entrega” ne­
cessitaria de uma especificação mais minuciosa (;162). Antes de
tudo falta também a designação de lugar. Em todo caso, fala-se

(158) Cap. 4, 1: entéllomai; mas a “ tôdas as Igrejas” .


(159) Vide R. H. CHARLES, The Ascension of Isaíah, 1900; E.
TISSE R A N T, Ascension d’lsaie, 1909; J. FLEMMING — H. DUENSING,.
Die Himmelfahrt des Jesaja, in E. HENNECKE, Neutestamentliche Apo­
kryphen, 2." ed., 1924, p. 303 e segs.
(160) De acôrdo com E. ZELLER {Zeitschrift für wissensckaftliche
Theologie 1896, p. 558 e segs.), tratar-se-ia do exílio do apóstolo João.
(161) É o que indica corretamente E. T ISSE R A N T , op. cit., p. 117-
(162) Por êsse motivo A. HARNACK, Geschichte der altchristlichen
Literatur, Die Chranolagie, tom. I, 1897 p. 715, nega que isso se refira
ao martírio de Pedro.
de um apóstolo que caiu nas mãos de Nero, e tal só poderia ter
acontecido em Roma. Até o presente nosso texto ainda não foi
devidamente considerado em relação com o nosso problema, por­
que permanecera em discussão a questão da data do apocalipse
cristão que vai de 3 . 1 3 a 4 .19 , no qual está essa passagem. En­
quanto para uns a sua redação remonta ao período da vida de
Nero (16 3), para outros data do século III (16 4). Independen­
temente do nosso problema a sua colocação no ano 100 pa­
rece a mais provável (16 5 ). A constatação recente de que o
Apocalipse de Pedro conhece a mesma tradição, confirma a sua
data para o início do século II (166). Dessa forma êste teste­
munho não pode ser simplesmente omitido, como acontece na
maioria das vêzes nas mais recentes discussões.
Chegamos ao final do nosso exame dos antigos documen­
tos literários (16 7) e podemos resumir o resultado:
Até a segunda metade do século I I nenhum documento tes­
tifica expressamente a estada e o martirio de Pedro em Roma.
Constatamos, no entanto: 1.®) Possuímos uma antiga tradição
no que diz respeito ao martirio de Pedro em si: Jo 2 1 . 1 8 e segs.,
e ela parece ser pressuposta em outros textos. 2.°) A estada
de Pedro em Rom a na época em que Paulo escreve sua Epístola
aos Romanos não é admissível. Não se encontram testemunhos
de que Pedro tivesse fundado a igreja de Roma, e nem é isso
possível No entanto, uma vez que, de acôrdo com Rm 15.20 ,

(163) C. CLEMEN, “ Die Himmelfahrt des Jesaja, ein ältestes Zeug­


nis für das römische Martyrium des Petrus” (Zeitschrift für wissenchaf-
tliche Theologie 1896, p. 388 e segs.).
(164) A. HARNACK, op. d i , p. 578 e seg.
165) Assim R. H. CHARLES, op. cit., e E. T ISSE R A N T , op. cit.,
p. 60.
(166) Vide E. PETERSO N , “ Das Martyrium des hl. Petrus nach
der Petrus-Apokalypse” (Miscell. G. BELVERD ERl 1954/55, p. 181 e segs).
E. DINKLER, “ Die Petrus-Rom -Frage” (Theologische Rundschau 1959),
p. 215 e seg., que com razão atribui grande valor documental ao nosso
texto, não quer fixar a sua origem antes de 140 devido ao seu paren­
tesco com 11 Pe.
(167) J. ZEILLER, UEgUse primitive (Histoire de VEglise, 1946,
p. 229), acrescenta outro testemunho da primeira metade do século II,
0 de Pápias. Êste comunica, segundo EUSÉBIO, H. E. III, 39, 15, que
Marcos escreveu seu Evangelho de acôrdo com as prédicas de Pedro.
Mas, nesse texto de Pápias, não lemos em nenhum lugar que o Evan­
gelho tivesse sido redigido em Roma ( “composé à Rome” ) e que as pré­
dicas de Pedro tivessem sido proferidas nessa cidade ( “ en cette ville” ),
como afirma ZEILLER.
ela procede de judeo-cristãos, essa seria uma razão plausível para
que 0 apóstolo fôsse à capital como dirigente responsável que era
da missão judeo-cristã. A Primeira Espistola de Pedro talvez
também pressuponha, no cap. 5 .1 3 , que o apóstolo tenha estado
em alguma ocasião em Roma. No tocante à sua atividade na
igreja dessa cidade, nenhum texto antigo nos força a contestá-la.
Por outro lado, ela não é mencionada expressamente em qualquer
documento antigo. Em todo caso, é ditícil acomodar cronologica­
mente uma atividade mais prolongada. Nenhum texto fala de
um episcopado de Pedro. Da maneira como isso foi afir­
mado pela primeira vez no século IV (,168), é históricamente
impossível. Em conformidade com tudo que sabemos das Epís­
tolas de Paulo aos Romanos e aos Filipenses e da Primeira Epis­
tola de Clemente, acêrca de situação interna da igreja de Roma,
sua atividade poderia ter-se exercido no domínio das relações en­
tre 0 partido judaizante e o gentílico-cristão da comunidade como
íoi 0 caso de Paulo. 3:“) Temos dois textos que testemunham indi­
retamente 0 martírio de Pedro em Roma: I Clem 5 e Rm 4 .3 de Iná­
cio. Nenhum diz expressamente que Pedro estêve em Roma. Em
ambos os casos, e principalmente no da Epístola de Clemente, que
pressupõe certas circunstâncias, as quais só correspondem a
Roma, chega-se a uma probabilidade suficientemente grande, para
aceitar o martírio de Pedro em Roma, talvez não como um fato
absoluto, mas como relativamente garantido a ser admitido para
a imagem histórica correspondente à Igreja antiga, evidentemen­
te com a restrição natural, que impomos a todos os outros fatos
da Antigüidade, em geral considerados históricos. Se fôssemos
exigir um grau maior de probabilidade de tôdas as ocorrências
da História antiga, teríamos de cortar uma boa parte dos nossos
livros de História.

O argumento e silentio não pode ser empregado para con­


tradizer 0 martírio de Pedro em Roma. Tanto mais que o mo­
tivo de tal silêncio reside nas circunstâncias especiais do martí­
rio, como deduzimos de I Clem 5. Também o silêncio do bispo

(168) C A TA L O G U S LIBERIANUS (ano 354): “ e depois da ressur­


reição de Cristo, o bem-aventurado Pedro recebeu o apostolado. . . 25 anos,
1 mês e 8 dias foi êle (bispo), durante o período de T ibério César, Caio,
Cláudio e Nero, do consulado de Minúcio e Longino até o de Nerino e
Vero” .
Isso seria entre os anos 30-55. Todos êsses dados estão em contra­
dição muito flagrante com os Atos dos Apóstolos e as cartas de Pauio,
não sendo, por isso, necessário examiná-los nos seus detalhes.
romano Aniceto na primeira controvérsia acêrca da celebração da
Páscoa, por volta da metade do século II, não permite concluir que
naquela época nada se sabia acêrca da passagem de Pedro por Ro­
ma. N a controvérsia, Policarpo, o bispo de Esmirna, apóia-se em
João e outros apóstolos, na defesa que faz da sua maneira de cele­
brar a Páscoa, ao passo que Aniceto se contenta em mencionar
a maneira daqueles que foram “ decanos antes dêle” , sem ci­
tar Pedro (16 9 ). Tal alegação, porém, poderia valer no máxi­
mo contra a hipótese de que Aniceto soubesse algo da ati­
vidade liderante de Pedro em Roma, jamais contra a hipótese de
que êle soubesse algo do martírio (170 ).
Todos os argumentos e silentio devem ser examinados com
cautela, pois, do contrário, o silêncio total de tôda a literatura
cristã antiga sôbre o assunto poderia ser invocado em favor
dos indícios que apóiam um martirio em Roma. Também não
há 0 menor vestígio que indique um outro lugar que entre em
cogitação como local da morte de Pedro. A favor de Roma há pelo
menos indicações importantes (se bem que indiretas) que, com
boas razões, podem ser interpretadas dessa maneira. Sua im­
portância como prova aumenta justamente devido a seu caráter
indireto e alusivo. Outro fato importante é que, nos séculos II
e III, quando certas igrejas rivalizam com a de Roma, nenhuma
delas cogita de contestar a sua reivindicação de ter sido palco
da morte de Pedro. Tanto mais que, justamente no Oriente, a tra­
dição da estada de Pedro em Roma estava firmemente arraigada,
como demonstram as Pseudo-Clementinas e as lendas sôbre Pe­
dro, principalmente as referentes à sua disputa com Simão, o
Mágico. .
A partir da segunda metade do século II a tradição romana
sôbre Pedro começa a ser testemunhada expressamente. Difi­
cilmente se pode provar que a explicação dêsse fato esteja na
defesa contra Marcião que aceitava únicamente Paulo como ver­
dadeiro apóstolo (17 1 ). Antes, basta considerar o empenho ge-

(169) EUSÉBIO, H. E. V, 24, 16.


(170) No restante, Aniceto também não tinha, como Policarpo, re­
lações diretas com os apóstolos. — M. G O G U EL, L’Eglise primitive, 1947,
p. 213, expica o fato de que Aniceto não evoca os apóstolos, pela cons­
ciência da comunidade romana, de que a festa de Páscoa só fôra insti­
tuída há pouco tempo, não chegando a alcançar o período apostólico.
(171) Assim K. HEUSSI, War Petrus in Rom?, p. 56, segundo o
qual a permanência e a morte de Pedro em Roma só teriam sido desco­
bertas, dadas as necessidades dessa luta contra Marcião.
ral em provar a origem apostólica das Igrejas. Mas não é ad­
missível que tendências dêsse gênero contribuíssem para imaginar
em todos os pormenores a estada e martírio de Pedro em Roma.
O que se pode admitir é que tais tendências tivessem contribuído
para levar os contemporâneos a insitir nas tradições já existentes
e a desenvolvê-las.
Por outro lado, históricamente êsses textos posteriores, que
em número crescente afirmam que Pedro estêve em Roma e que
lá pgdeceu o martírio têm para nós, de início, apenas importân­
cia dogmátíco-histórica, como testemunhas da evolução da tradi­
ção. Certamente não está excluída, de inicio, a possibilidade de
que talvez um ou outro escrito se baseie em uma boa e antiga
fonte de informações, que não mais possuímos. Mas, por prin­
cípio, temos de apresentar-nos céticos frente a êsses textos pos­
teriores, ao percebermos como floriu justamente nessa época a
formação de lendas cristãs e como ela tenta preencher justa­
mente as lacunas dos registros do Nôvo Testamento. Os textos
que, além disso, apresentam contradições em relação às fontes an­
tigas não merecem, de antemão, a nossa confiança. No entanto,
considerando tais restrições, é interessante conhecer ao menos
08 mais antigos testemunhos dos séculos 11 e 111.

Primeiramente é necessário que atentemos para o silêncio de


um escritor cristão radicado em Roma; Justino, o Mártir, que
nos legou volumosos trabalhos de meados do século II. Nem
na sua Apologia, nem no Diálogo com Trifão êle se refere à
estada de Pedro em Roma. E isso é tanto mais surpreendente,
considerando-se que êle fala três vêzes de Simão, o Mágico, que
é considerado grande opositor de Pedro nessa época.
Dentre os textos posteriores deve ser lembrada a já mencio­
nada carta dirigida aos romanos pelo bispo de Corinto, Dionlsio,
aproximadamente em 170, e da qual Eusébio conservou alguns
fragmentos (17 2 ). Nós a citamos em conexão com a questão da
permanência de Pedro em Corinto (17 3 ). Ela se empenha em
provar a afinidade das comunidades de Corinto e de Roma, lem­
brando inicialmente a carta da Clemente, lida constantemente em
Corinto, e que estabelecia um laço entre as duas igrejas. Assim, Pe­
dro e Paulo teriam “ plantado” a comunidade de Corinto e teriam en­
sinado lá. Da mesma forma ambos teriam ensinado juntamente
na Itália, e simultâneamente dado o seu testemunho. Já vimos

(172) EUSÉBIO, H. E. II, 25, 8.


(173) V. acima p- 61 e seg.
anteriormente (174) que aqui há pelo menos um êrro histórico;
a afirmação de que Pedro fundou a comunidade de Corinto jun­
tamente com Paulo. 1 Co 4 .1 5 e 5.6 deixa essa hipótese fora de
cogitação. Além disso, Dionisio assevera que ensinaram juntamente
(17 5 ) na Itália, o que certamente subentende Roma. De acôrdo
com os textos antigos, essa pregação em conjunto não é impos­
sível, mas essa informação dificilmente se baseia em tradição
antiga.
Cêrca do fim do século II Irineu (176) escreve primaria­
mente, em conexão com uma explicação da origem dos Evan­
gelhos provinda de Pápias, que Pedro e Paulo teriam pregado
e fundado a Igreja em Roma. Êle repete tal alegação, falando
da comunidade romana, como sendo a “ Igreja mais antiga
e conhecida, fundada e organizada por Pedro e Paulo” ,
Também aqui se nos apresenta pelo menos um engano: a Igreja
romana não foi de maneira nenhuma fundada por Paulo. É o
que revela obviamente a sua Epístola aos Romanos. Isto põe
logo em dúvida a credibihdade histórica dessa informação. Nada
é dito sôbre o martírio de Pedro em Roma. Mas daí não se
pode tirar uma conclusão negativa, pois da mesma maneira não
é mencionado o martírio de Paulo (17 7 ).
Tertuliano (17 8 ), por outro lado, aproximadamente na mes­
ma época, exalta o privilégio de que a Igreja de Roma podia ga­
bar-se de ter sido lá que os apóstolos “ propagaram a sua dou­
trina 0 seu sangue derramando” ; que lá Pedro sofreu um mar­
tírio “comparável à morte do Senhor” e Paulo alcançou a “ pal­
ma do martírio” , como João Batista. No entanto, visto que si­
multâneamente êle acrescenta a lenda de que o apóstolo João foi
mergulhado em óleo fervente e, apesar disso, permaneceu intato,

(174) V. acima p. 61 e seg.


(175) A afirmação de que homòse só significa que êles se teriam di­
rigido ao mesmo lugar na ítália, não ao mesmo tempo, não é sustentá­
vel. Pois nesse caso, como seguidamente, homóse está em lugar de homou-
Vide BLA SS-D EBRU N N ER, Grammatik des neutestamentlichen Grie­
chisch, !?■ ed., 1943, parte II, apêndice, § 103, p. 19. Vide também W.
BAUER, Grieckish-deuísches W örterbuch, art., homóse.
(176) Adversus haereses III. 1 — 2.
(177) É 0 que salienta corretamente M. GOGU EL, L’Eglise primi­
tive, 1947, p. 216, contra C. G U IG N EBERT, “ La sépulture de Pierre”
{Revue historique 1931, p. 225 e segs.).
(178) De praescriptione haer. 36, Scorpiace 15; Adv. Marc. IV, 5.
enfraqueceu também a importância das declarações sôbre Pedro
e Paulo. Falaremos mais adiante de outro texto de Tertuliano
(17 9 ), que provàvelmente se refere ao túmulo de Pedro.
Clemente de Alexandria {\SQ) relata que Pedro escreveu sua
epistola em Roma, designando essa cidade “ por meio de uma ci­
fra, o nome de Babilônia” . Mas tal notícia só terá interêsse para
a história da interpretação de 1 Pe 5 .1 3 .
A declaração de Orígenes sôbre a crucificação de Pedro em
Roma, de cabeça para baixo, é desprovida de valor histórico ( 18 1) ,
se bem que a crucificação como tal já parece testemunhada em Jo
21 .18 e seg.
A declaração do presbítero romano Caio merece, ao contrário,
maior consideração, mas não como se por seu intermédio pudésse­
mos fundamentar a permanência e o martírio de Pedro em Roma.
Essa notícia, provinda da própria Roma, data apenas do início
do século III, e é tão importante, porque proporciona á tradição
romana sôbre Pedro o apoio de uma indicação topográfica que po­
de servir de guia para a busca arqueológica do túmulo de Pedro.
Caio combate, no seu documento, o montanista Proclo que, na
sua polêmica, afirmará que a comunidade de Hierápolis, na Ásia
Menor, possuía os túmulos de Filipe e suas filhas (18 3). Caio es­
creve verbalmente (18 4 ): “ Eu, porém, posso exibir os tropaia(í85)
dos apóstolos, pois, indo ao Vaticano ou pela estrada de Ostia, en­
contrarás os tropaia daqueles que fundaram esta Igreja.”
Podemos deixar de lado a afirmação de que ambos os após­
tolos fundaram juntamente a igreja romana. Apesar da sua
inexatidão histórica, ela tornou-se naquela época uma sólida
tradição. Mas o interessante é saber que no temoo de Caio os
lugares relacionados com o martírio de Pedro e Paulo estavam
localizados com precisão.
No entanto, a interpretação de tropaia por túmulos é duvi­
dosa. A palavra grega também pode significar simplesmente um

(179) V. abaixo p. 132 e se^.


(180) EU SÉBIO, H. E. II, 15, 2.
(181) EUSÉBIO, H. E. III, 1, 2.
(182) A éktasis tön cheirõn designa na tipologia cristã a crucifi-
cíição, TE R TU LIAN O , Scorp. 15, relaciona já o zósei com o amarrar à
cruz.
(183) EUSÉBIO, H. E. III, 31, 4.
(184) EUSÉBIO, H. E. lí, 25, 7.
(185) trópaia ;
“ lugar comemorativo de uma vitória” e não é absolutamente ne­
cessário que assinale um objeto concreto. Pode ser, em geral,
0 local que lembra uma vitória, ou um acontecimento interpreta­
do como vitória (186), e a isso pertence, segundo antiga con­
cepção cristã, 0 martírio. Porém, o sentido mais restrito de
“ sepultura” certamente também está comprovado (187). Há,
pois, duas possibilidades: os dois lugares classificados de tropaia
eram encarados ou como as sepulturas dos apóstolos (188) ou
como os locais de suas execuções (!l89).
Em todo caso é certo que Eusébio entendeu a palavra no
sentido de “ sepultura” , pois êle introduz a citação de Caio com
a observação de que êste, polemizando contra Proclo, fala dos
lugares “ onde os restos mortais dos citados apóstolos (Pedro e
Paulo) estão enterrados” (190). Além disso. Caio menciona os
lugares provàvelmente em paralelo com a alegação do seu opo­
sitor montanista, Proclo, que apela para as sepulturas de Filipe
e de suas filhas, na Ásia Menor, se bem que Eusébio se refira a
esta última em outra passagem de seu livro (171). Nesse caso,
será razoável que, conforme a opinião de Caio, os tropaia de
Pedro e Paulo subentendam as suas sepulturas.

(186) Vide F. LAMMERT, artigo tropaion in P A U LY-W ISSO W A


Reallexikon der klassischen Altertumswissenschaft.
(187) Vide P. M ON CEAU X, “ Enquête sur l’épigraphie chrétienne
d’Afrique. Mémoires prés.” à l’Ac. des Inscr. et Beües-Leitres, vol. 88,
1910, p. 260. Assim também J. CARCO PIN O , Etudes d’histoire chrétienne
1953, p. 99 e segs-, 251 e segs. e C. MOHRMANN, “A propos de deux
mots controversés de la latinité chrétienne: tropaeum-nomen” {Virgiliae
Christianae 1954, p. 154 e segs.)
(188) Assim H. LIETZM ANN, Petrus und Paulus in Rom, p- 210,,
e também K. HEUSSI, War Petrus in Rom?, p. 64. — Igualmente H. DE-
L EH A YE , Les origines du culte des martyrs, 1933, p. 264.
(189) Assim C- ERBES, Das Alter der Gräber und Kirchen des
Paulus und Petrus in Rom” {Zeitschrift für Kirchengeschichte 1885, p. 1
e segs.); idem, Die Todestage der Apostel Paulus und Petrus und ihre
römische Denkmäler, 1899; idem, Die geschichtlichen Verhältnisse der
Apostelgräber in Rom (ZKG 1924, p- 38 e segs.). — Igualmente C.
G U IN GN EBERT, La primauté de Pierre et la venue de Pierre à Rome,
1919, p. 305 e segs- V. também T . KLAUSER- Jahrbuch für Liturgiewis­
senschaft 1924, p. 296, e recentemente Die römische Petrustradition im
Lichte der neuren Ausgrabungen unter der Peterskirche, 1956.
(190) EUSÉBIO, H. E- II, 25, 6-
(191) C. G U IG N EBERT, op. cit., acredita ter de negar essa re­
lação, por êsse motivo.
Só se pode dizer com certeza que por volta do ano 200 eràm
exibidos em Roma os lugares relacionados com uma lembrança
dos martírios de Pedro e de Paulo, pois é inconcebível que Caio
tivesse inventado essa localização só em favor de sua polêmica an-
timontanista. A tradição que designou ambos êsses lugares já
devia ter existido antes dêle.
Isto, no entanto, não vem provar que ela corresponda à reali­
dade em relação às sepulturas. Quase um século e meio separa a
morte dos apóstolos do primeiro testemunho do lugar em que se
deu. Como veremos, dois argumentos são invocados a favor dês­
se testemunho; que, caso se tratasse de uma invenção posterior,
êsses lugares não teriam sido imaginados geogràficamente tão
distantes um do outro, como o são o Vaticano e a estrada para
Ôstia; e que, nesse caso, não teriam sido transferidos para cemi­
térios pagãos, mas sim, em conformidade com uma tendência pos­
terior, para as catacumbas cristãs (19 2). Êsse argumento é real­
mente digno de atenção, mas, por outro lado, não absolutamente
decisivo, pois a tendência de aproximar os dois apóstolos, como
já observamos (19 3), não é corrente na antiga literatura apócrifa.
Contra a veracidade da tradição testemunhada por Caio, sô­
bre a localização dos tropaia, deve-se considerar que, em se tra­
tando de sepulturas, é dificilmente imaginável que os cristãos ro­
manos sobreviventes tivessem podido reconhecer os corpos dos
apóstolos entre tantos cadáveres (provàvelmente carbonizados em
sua maioria), retirá-los então e honrar a Pedro com um túmulo
nos jardins de Nero. Além disso, se se trata da perseguição mo­
vida por êsse imperador, o mais provável é que os restos mor­
tais dos cristãos tenham sido lançados ao Tibre (194). E ’ preci­
so acentuar, ademais, que não é possível provar qualquer sinal de
veneração a relíquias de mártires no século I. Só aproximada­
mente no ano de 150 (19 5), no Martírio de Policarpo, encontrare­
mos pela primeira vez evidência dêsse culto. Na expectativa do
fim do mundo para futuro imediato, a preocupação em tôrno de
relíquias chegou a ocasionar até mesmo um anacronismo em re­
lação aos primeiros sessenta anos do século I, sobretudo no que
se refere à horrível época das perseguições neronianas. Ao dis-

(192) Assim H. LIETZM ANN, Petrus und Paulus in Rom, p. 246


e segs.
(193) V. acima obs. 151. p. 120 e 121.
(194) Vide K. HOLL, Gesammelte Aufsätze, tom. 11, p. 65, obs. 1.
(195) Ou 177, segundo a tese de H. GREGOIRE (V. abaixo, obs.
309, p. 172.
corrermos sôbre os resultados arqueológicos, voltaremos a êste
assunto. E se, finalmente, estivesse correta a mais recente
hipótese, segundo a qual “ as duas testemunhas” de Ap 1 1 . 3
e segs., correspondem aos apóstolos Pedro e Paulo, seus corpos
nem teriam sido sepultados. E o surgimento da tradição acêr­
ca da sua elevação direta para o céu excluiriam o conhecimento
do local de suas sepulturas (196).
Caso 08 tropaia mencionados por Caio não sejam os antigos
túmulos, existirá ainda a possibilidade de que ambos os lugares
representem os locais da execução, considerados posteriormente,
talvez já no tempo de Caio, como locais das sepulturas. Pode-se,
por outro lado, supor que os executados foram sepultados no
lugar de sua execução, ou pelo menos muito próximo (se é que
foram sepultados). Nesse caso, o local dos túmulos estaria pelo
menos aproximadamente assinalado, sem que jamais tivesse sido
possível identificá-los com exatidão e sem que alguém sequer
tentasse fazê-lo nos tempos mais antigos.
Voltaremos a êsse texto de Caio, ao analisarmos os resulta­
dos das escavações sob a Basílica de São Pedro. Por ora que­
ríamos apenas reconhecer a autoridade dêsse testemunho literário
como tal. Apesar de ser datado só do comêço do século III,
merece uma importância maior do que os documentos da mesma
época, que examinamos. Uma tradição puramente topográfica
não está isenta de influências tendenciosas, ainda mais que a
carta de Policrates (197) nos informa que naquele tempo, a
posse de túmulos era considerada garantia para a autoridade de
uma tradição, o que ocasionava também as “ listas de sepulta­
mento” . Apesar disso, essa tradição nos proporciona uma garan­
tia de correção maior do que outra qualquer sôbre os próprios
acontecimentos.
Alguns pensam que essa localização é proveniente de uma in­
terpretação tardia de certa referência de Tácito, na qual êsse es­
critor emite a opinião de que o martírio dos cristãos se execu­
tou nos jardins e no circo de Nero (198). Êste, de acôrdo com
resultados das recentes excavações, não se situava no lugar que
está hoje sob a Basílica de São Pedro, como se pensava, mas sim
nas suas proximidades (199). No entanto, é pouco provável que

(196) V. acima p. 97 e seg.


(197) EUSÉBIO, H. E. V, 24, 2 e segs.
(198) Assim K. HEUSSl, War Petrus in Rom?, p- 66 e M- GO­
G U E L, L’église primitive, p. 214.
(199) V. abaixo p. Î59 e seg.
OS cristãos dessa época tivessem sabido estudar os documeíi*
tos pagãos e tirar dêles conclusões científicas dessa ordéin, de
modo a levar à formação de uma tradição topográfica. Além
disso, no que se refere ao tropaion de Paulo na estrada para
Ôstia, tal suposição não corresponde, de maneira alguma, à
realidade. Ora, a menos que neguemos a priori que Pedro, te­
nha estado em Roma, não é compreensível que mereça menos
confiança a tradição sôbre o lugar onde Pedro foi executado
do que a correspondente tradição relativa a Paulo.

Apesar disso, podemos afirmar o seguinte, como conclusão


certa do texto de Caio: aproximadamente no ano 200 não só era
aceito em Roma o martíno de Pedro e de Paulo, como sucedido
naquela cidade, mas também eram exibidos os lugares conside­
rados como de sua execução, ou talvez ate já como suas, sepulturas.

Nesse contexto deve ser mencionado o conhecido escrito de


Tertuliano üingido, ao que tuao maica, contra o üispo romano
calisto, ou melnor contra um edito seu em que aceitava penricn-
cia também para os pecados de prostituição, o que era contra­
rio ao uso aa Igreja Antiga (20U). in aquela oportunidade l er-
tuliano denuncia a insolência desse bispo ae atriouir a si a pa­
lavra que Jesus endereçara a Pedro, e a êie so, sôbre o ligar e
0 desligar, e, portanto, a “ cada Igreja que esteja proxima a
Piedro” , ad om m m ecclesiam petri pro\pmquam,. Recentemen­
te estas iúitimas palavras têm sido interpretadas corretamente
no sentido de uma proximidaüe puramente local, ou seja, jun­
to à sepultura de Pedro” (2 0 1). Contorme essa interpreta­
ção, Tertuliano acusa Calisto ae atribuir a paiavra oe Mt
16 .18 a si, alegando ser bispo de uma comunidade, em cujas
adjacências está situado o túmulo de Pedro. Nesse caso estaria
expressa aqui a concepção de que, por assim dizer, o poder de

(200) De pudicitia 21. A passagem que nos interessa é a seguinte;


“ De tua nunc sententia quaero, unde hoc ius ecclesiae usurpes. bi quia
d ix en t Petro dominus: “ Super hanc petram aedificabo ecclesiam meam,
tib i dedi claves regni caelestis” vel “quaecunque alliveris vel solveris in
terra, erunt alligata vel soluta in caelis” , idcirco praesumis et ad te deri­
vasse solvendi et alligandi potestatem, id est ad omnem ecclesiam Petri
propinquam — qualis es evertens atque commutans manifestam domini
intentionem personaliter hoc Petro conferentem?”
(201) W . KÖHLER, “ Omnis ecclesia Petri propinqua” (Siizungs-
berichte der Heidelberger Akademie der Wissenschaften, Philosophisch­
historische Klasse, 1938). Anders H. KOCH, Cathedra Petri, 1930, p,
5 e segs.
ligar, e desligar, transmitido a Pedro, jorra fisicamente da se­
pultura do apóstolo, passando para o bispo da comunidade, em
cujo âmbito se encontre o túmulo.
Caso seja correta essa interpretação, pressupõe-se, no início
do sécülò III, que Pedro foi sepultado no lugar do martírio ou
em sua proximidade. Isto não significa necessàriamente que exis­
tiam relíquias ou que o tropaion estava vinculado a um túmulo
real. Pois a tradição sôbre os locais dos martírios encerra em
si uma declaração sôbre os locais dos túmulos, uma vez que os
exiecutados costumavam ser sepultados nas suas vizinhanças.
Apesar da aceitação da hipótese mencionada, não se sabe se era
conhecido o lugar preciso do sepultamento.

Ha mais um documento do século II, os apócrifos Atos de


Pedro, que só entram em cogitação quando se trata da lenda
acêrca de Pedro no túmulo de Marcelo. Esse escrito demons­
tra que aquêle autor do século II nada sabia acêrca do túmulo
no Vaticano. Por isso, quando tratarmos das escavações sob a
Basílica de São Pedro, voltaremos a êsse documento que não tem
sido até aqui devidamente considerado (202).
Entre os testemunhos literários posteriores deve ser mencio­
nada a indicação dada por Macário Magnes (III, 22), que deriva
de Porfirio, o adversário neoplatônico do cristianismo. Aí se
diz que Pedro foi “ crucificado, após haver apascentado as ove­
lhas durante bem poucos meses” , evidentemente com a intenção
maligna de constrastar com as grandes promessas feitas a Pedro
a sua atividade realmente insignificante. Essa informação teve
origem em fins do século III, mas apesar disso é de maior im­
portância do que os testemunhos do século II. Como adversário
dos cristãos, contrariava a tendência que êles demonstravam de
glorificar a Pedro e conseqüentemente, de prolongar ao máximo
as suas atividades em Roma (203).

(202) V. abaixo p. 173-


(203) A. H ARNACK, “Porphyrius gegen die Christen” (D isserta­
ções da Academia Berlinense de Ciências 1916); id. Mission und Aus­
breitung des Christentums in den ersten drei Jahrhunderten, 1924, tom. I,
p. 63, obs- 2, atribui a essa nota um grande valor como fonte. A supo­
sição de CARL SCHMIDT, Die alten Petrusakten, 1903, p- 167 e segs-,
que é mais antiga, de que essa nota teria sido extraída só dos Atos de
Pedro, enfraqueceria tal valor, caso fôsse correta. No entanto, não é
possível prová-lo.
O inimigo dos cristãos, Porfírio, alude, no seu texto, a uma
ordem do Ressuscitado (Jo 2 1 . 1 6 e segs.) e procura demonstrar que
aquêie “ apascentar das ovelhas” não era coisa tão importante, visto
que durou tão pouco tempo. Contudo, Roma não é citada. Mas
é simples constatar que nenhum outro lugar entraria em cogita­
ção. Pois Porfírio só poderia ter imaginado o breve “ apascen­
tar das ovelhas” no mesmo local em que teve lugar a crucifi­
cação, citada na mesma sentença, visto que os “ poucos meses”
não se poderiam referir a tôda a atividade missionária anterior
de Pedro, em outros lugares do Império. Por outro lado, sabe­
mos que na época de Porfírio a tradição do martírio de Pedro
em Roma já estava muito difundida. Em vista disso, êle a teria
m.encionado impreterivelmente, caso tivesse em mente outro
lugar (204). Podemos, pois, concluir dêsse texto que Pedro che­
gou a Roma pouco tempo antes de seu martírio.
Dos testemunhos posteriores que examinamos, e que, a par­
tir da segunda metade do século II, testificam a estada e o mar­
tírio de Pedro em Roma, temos os seguintes textos: a nota de
Caio, 0 escrito de Tertuliano contra o edito de Calisto e a infor­
mação de Porfírio, apesar de sua data recente. Êstes devem ser
considerados como fontes para a nossa questão, porquanto os dois
primeiros apresentam, para a época, por volta do ano 200, uma
tradição topográfica precisa dos locais de execução, ou seja, dos
túmulos dos apóstolos em Roma, e o terceiro fundamenta uma
atividade muito breve de Pedro em Roma antes do seu martírio.

4.°) Fontes Litúrgicas

Resta-nos agora sòmente estudar as fontes litúrgicas antes


de examinarmos os resultados das escavações. Aliás, ambos êsses
tipos de documentos estão intimamente ligados. Por outro lado,
os textos litúrgicos contêm informações acêrca de data e luga­
res dos martírios a propósito das respectivas festas dos mártires,
podendo servir de guia á pesquisa arqueológica. As escavações
ppdem confirmar tais informações ou acusar seu desvalor his­
tórico.
Poderíamos, a priori, esperar que o confronto da história
litúrgica com a arqueologia nos fornecesse as respostas corretas,

(204) Isso é 0 que quero asseverar frente a H. DAN N EN BAU ER,


D ie römische Petruslegende” (Historische Zeitschrift 1932, p. 253), e K.
HEUSSI, War Petrus n Rom?, p. 61.
0 que não conseguimos de nenhuma das outras fontes até aqui
estudadas. Por isso, êsses trabalhos sempre têm sido encetados
com prande esperanças (205).
Os mais interessantes textos litúrgicos para o nosso fim, são
os do calendário romano que Furius Dionysius Philokalus, que
viria a ver secretário do papa Dâmaso, em 354, compilou, servin­
do-se do arquivo episcopal (206). Êle reúne aí três coleções;
1.°) a “ depositio episcoporum” , que contém as datas do sepulta­
mento e da morte dos bispos romanos de Lúcio (t 254) até Sil­
vestre ( f 3 3 5 ) ; 2.°) a “ depositio martyrum” , lista das festas dos
mártires e das festas fixas do ano eclesiástico; 3.°) o “ catalogus
liberianus” , registro minucioso dos papas desde Pedro até Libé-
rio (352-66), com notas sôbre duração e ocorrências especiais
do seu pontificado. Desta surgiu no século VI o “ Liber Pontifi­
calis” .
Consideraremos duas informações da “ depositio martyrum”
sôbre Pedro. (A já mencionada indicação (207) do “ catalogus
liberianus” sôbre o seu piscopado de 25 anos é totalmente destituí­
da de valor).

Uma diz respeito a 22 de fevereiro e reza o seguinte:

V III cal. Martías natale Petri de cathedra. -

A outra refere-se a 29 de junho e diz:

I I I cal. Jul. Petri in catacumbas et Pauli Ostense,


Tusco et Basso consulibus ( = 258).

Não nos ocuparemos por muito tempo da primeira. Ela


quer fixar a data comemorativa da posse de Pedro. Pois essa
é provàvelmente a interpretação de “ natale de cathedra” . Talvez

(205) H. LIETZM AN N edificou a sua obra que marcou época,


“Petrus und Paulas in Rom”, totalmente sôbre a combinação de estudos
litúrgico-históricos com arqueológicos.
(206) Vide T. MOMMSEN, Monumenta Germaniae Histórica. Auc-
tores antiquissimi 9, 1892, p. p. 15 e segs. — L. DU CH ESN E, Le Hber
Pontificalis 1, 1886, p. 10 e seg- — C. KIRCH, Enchiridion fontium his-
íoriae ecclesiasticae antiquae, 1923, p. 331. — V. também H. L IE T Z ­
MANN, “ Die drei ältesten M artyrologien” (Klein Texte), 3.“ edição, 1921,
p. 2 e segs. — H. ACHELIS, “Die M artyrologien, ihre Geschichte und
ihr W ert” {Abh, der Ges. d. Wiss. Gött., Phil.-hist. K l N. F. III, 3, 1900,
p. 6 e segs.). — Recentemente H. STER N , Le Calendrier de 354, 1953.
(207) V. acima obs. 168 pág. 125.
esteja correta a hipótese de que aqui uma festa pagã de “ cara
cognitió” ou também “ caristia” , na qual os romanos faziam re­
feições junto às sepulturas dos seus finados, foi adaptada a Pe­
dro. Uma vez que essa festa também era assinaladapelotêrmo
grego “cathedra” (fôsse pelo costume de se sentaremà mesa ou
pelo de se reservar uma cadeira para o morto), é possivel expli­
car porque foi relacionada justamente com a suposta “cátedra
episcopal” de Pedro (208).
Também é provável que, apoiando-se no sentido da antiga
celebração da caristia, o 22 de fevereiro era considerado origi­
nalmente 0 d ia da morte de ambos os apóstolos, antes de o 29
de junho ser encarado como tal (209).
Não importa o fato de que o chamado “ martyrologium hie­
ronymianum” designe como cathera Petri o 18 de janeiro, corres­
pondente a uma antiga comemoração celta, e o ponha ao lado do
22 de fevereiro. O 22 de fevereiro era comemorado em regozijo
ao episcopado de Pedro em Antioquia, o 18 de janeiro, ao episco­
pado em Roma, tratando-se de uma harmonização posterior de
duas datas concorrentes para a mesma festa (210 ).
Nada podemos deduzir, quer direta quer indiretamente, das
informações sôbre as comemorações de “ cathedra Petri” para en­
riquecer nossas noções acêrca da questão das atividades de
Pedro.
Mais importante é a nota da “ depositio martyrum” , referen­
te ao 29 de junho: “ Pedro nas catacumbas, Paulo na estrada para
Ostia, sob os cônsules Tuscus e Bassus” . O seu teor está em
conexão direta com as discussões e trabalhos arqueológicos, pois
êle menciona as catacumbas e a estrada para Ostia. Por con­
seguinte, Pedro teria sido celebrado só nas catacumbas (não no
Vaticano), Paulo, na estrada para Ostia. A determinação do
tempo, porém, por intermédio da indicação do consulado de Tuscus

(208) H. USENER, Das Weihnachtsfest, 1911, p. 274, FEDOR


SCHNEIDER, “ Über Calendae Januariae und M aftiae im Mittelalter”
(Archiv für Religionswissenschaft 1920/21, p. 286 e segs.); H. L IE T Z­
MANN, op. cit., p. 19 e segs.; L. D UCHESNE, Origines du culte, 5.^ éd.,
1925, p. 294; C. GU IGN EBERT, “ La sépulture de P ierre” {Revue histo­
rique 1931, p. 225 e segs.). Contra a conexão com a. caristia pagã v. es­
pecialmente P. B ATIFFO L, Cathedra Petri, 1938, p. 123 e segs.
(209) Assim C. ERBES, Die Todestage der Apostel Paulus und
Petrus, 1899, p. 44, e M. GO GU EL, L ’ég/ise primitive, p. 225. ■'
(210) Com grande exatidão H. LIETZM ANN, op. cit., ,p. 29 e
segs-, chegou a êsse resultado.
e Bassus é, de início, obscura, uma vez que aí se trata do ano
258, Ienquanto se espera uma indicação do ano da morte dos
apóstolos. É puramente hipotético identificar um dos cônsules,
Bassus, com outro do mesmo nome, sob Nero ( 2 11 ) . A citada
nota da “ depositio martyrum” , no entanto, tem sido confrontada
com outra indicação semelhante, referente ao mesmo 29 de junho.
Esta encontra-se no “ Martyrologium Hieronymianum” , no manus­
crito posterior de Berna (século VIII), e diz o seguinte:
II!. cal. Jul. Romae, via Aurelia, natale stínctorum Petri et
Pauli apostolorum, Petri in Vaticano, Pauli vero in via Ostensi,
utrumque in Catacumbas, passi sub Nerone, Basso et Tusco con­
sulibus ( = 258). Também aqui o Vaticano é citado como loca!
comemorativo a Pedro.
_ Esta nota, que une o martírio de Pedro ao Vaticano, o de
Paulo, à estrada para Ôstia, mas também se refere às catacum­
bas, parece ser mais completa do que a da “ depositio martyrum”
citada acima, que só menciona por um lado Pedro e as cata­
cumbas, por outro, Paulo e a estrada para Ôstia. Contudo, tal
como se apresenta, ela também não tem sentido algum, pois pri­
meiramente ela afirma que os apóstolos padeceram o martírio
sob Nero, depois nomeia os cônsules Bassus e Tuscus. Como já
dissemos, o consulado dêstes nos conduz ao ano 258., Por isso,
o texto foi mudado de tal maneira que as palavras via Aurelia e
passi sub Nerone foram cortadas e utrumaue transformado em
utriusque (2 12 ). 0 teor resultante é o seguinte:
“ 29 de junho: comemorações do martírio dos santos após­
tolos Pedro e Paulo, de Pedro, no Vaticano, de Paulo, na estrada
para Ôstia; de ambos, em con’unto nas catacumbas. Sob o con­
sulado de Bassus e Tuscus.” (2 13 )
Êsse texto presupõe que a cerimônia comemorativa a ambos
os apóstolos era celebrada, em 258, nas catacumbas. E isto só
pode ser interpretado no sentido de que as relíquias teriam sido

(211') Assim P. M ON CEAU X, “ L’anostolat de S. Pierre à Rome à


pronos d’un livre récent” (Revue d’Histoire et de Littérature religieuses
Î910, ü. 216 e segs.l, aue completa o texto da seguinte maneira: “ nassi
sub Nerone Basso Cet Crasso consulibus: tranointî. in Catacumbas Basso)
et Tusco consulibus” . Também Dom H. OUF.NTIN, “Tusco et Basso con­
sulibus” (Resi conti délia Pontificia Accademia dl Archeologia 1926/24)
atribui a menção dos dois cônsules a um engano dos copistas.
(212) Assim L. D UCHESNE, Liber Pontificalis I, p. CIV e segs., e H.
LIETZM ANN, op. cit., p. 110 e segs.
(213) Semelhantemente J. P. KIRSCH, Der stadtrôm. christl. Fest-
fcalender, 1924.
transladadas posteriormente para as catacumbas e a indicação do
ano 258 referir-se-ia a essa transladação. A catacumba em apre­
ço seria a de S. Sebastião, na Via Apia, onde, como veremos, as
escavações revelaram um recinto de culto. Neste eram celebra­
das no século IV, segundo as inscrições, refeições comemorativas
chamadas “ refrigeria” . Dessa maneira estaria explicado o fato
de que a memória de Pedro era comemorada simultâneamente em
dois lugares, no Vaticano e nas catacumbas: seus ossos estariam
sepultados inicialmente no Vaticano; posteriormente, em 258, te­
riam sido transladados para as catacumbas e finalmente, no século
IV, trazidas de volta para a basílica construída por Constantino
no local original do sepultamento, no Vaticano.
Poder-se-ia explicar a transladação como causada pelo te­
mor dos cristãos de que as relíquias dos apóstolos pudessem ser
vilipendiadas, visto que em 258 teve lugar a perseguição sob
Valeriano. Ou — dada uma proibição imperial — devido à
impossibilidade de se reunirem junto aos túmulos situados em
cemitérios pagãos, por ocasião das cerimônias comemorativas
(214 ).
Essa transladação poderia ser apoiada ainda por uma série
de tradições posteriores mais ou menos lendárias, sôbre as sepul­
turas, que têm em si pouco valor histórico. Mas, apesar disso,
serão consideradas, visto que quase tôdas contam, de modos di­
versos, com uma transferência dos túmulos, ocasionada por cer­
tas ocorrências (2 15 ). Com exceção de Prudêncio (século V),
que desloca ambas as sepulturas juntamente para a “ região pan­
tanosa do Tibre” , e dos Atos do Pseudo-Lino (século VI 2 16 ),

(214) V ide H. LIETZM ANN, “ The Tomb of the Apostles ad C a­


tacumbas” (Harvard Theological Review 1923, p. 157). — Pelo seu livro
Petrus und Paulus in Rom propa^ou-se de um modo s-eral a sua tese da
transladação. Ela já fôra defendida por L. DUCHESNE, Liber Pontifi­
calis, 1886, p. CrV e segs., id. “ La memoria apostolorum de la V ia Anoia”
(Atti della Porcfificia Accademia Romana di Archeologia, 1, 1. 1923. 1
e segs.). Além disso, é renresentada também por J. P. KIRSCH, “ Die
neu entdeckte memoria Anostolorum an der V ia Annia bei Rom” (Jahres­
bericht der Görresgesellschaft, 1921, p. 27); id., D ie “ memoria Anostolo­
rum” an der Anoischen Strasse zu Rom und die liturgische Festfeier des
29. Juni” (Jahrbuch für Liturgiewissenschaft 1923, p. 33 e segs.). V.
abaixo obs. 224, neste capítulo, os nomes dos que se opõem a essa tese-
(215) Vide C. G U IG N EBERT, “ La sépulture de Pierre, “ und M.
G O GU EL, L’eglise primitive, p. 222 e segs.
(216) A. LIPSIUS, Die apokryphen Apostelgeschichten und Apostel­
legenden, 1883/90, tom. II, p. 113.
O qual declara ser a “ Naumachia” o lugar, trata-se principal­
mente do “ Martyrium Petri et Pauli” (século V), que nos fala da
tentativa de orientais piedosos, fracassada por um terremoto, de
raptar as santas relíquias de ambos os apóstolos e levá-las para
o Oriente. A conseqüência foi que os corpos foram sepultados
no local onde os orientais os abandonaram, quando da sua fuga,,
até que um ano e sete meses mais tarde foram transferidos nova­
mente para os seus lugares (2 17 ). Segundo a “ Vita do Papa
Cornélio” (251 — 253), que se acha no “ Liber Pontificalis” , uma
certa Lucina teria tirado os corpos das catacumbas, com o con­
sentimento do papa, e enterrado Paulo nas proximidades do local
de sua execução, enquanto Pedro teria sido sepultado por Cor­
nélio no Vaticano, no templo de Apoio (218 ).
É possível que a única essência histórica nessas tradições
posteriores seja, realmente, a lembrança de uma transladação.
Mas ainda assim não podemos simplesmente aceitar essa trans­
ladação como fato comprovado, pois, na verdade, ela não é men­
cionada em qualquer texto antigo, como datando de 258, na for­
ma geralmente aceita. Antes, temos à nossa frente nada mais
que uma hipótese, baseada aliás na correção do texto do “Mar-
tyrologium Hieronymianum” , que se verificou não ser total­
mente correta (219 ).
Certo é sòmente que a memória de Pedro era celebrada na
Via Ápia e, como ficou comprovado pelo resultado das excava­
ções, simultâneamente a de Paulo. Antigamente era difundida a
opinião testemunhada pelo “ Liber Pontificalis” I. 67, de que os

(217) Em outra íorma encontramos essa história, também, na pai­


xão do mártir sírio SHARBIL (W . CU R E TO N , Ancient Syriac Documents,
1864, p. 61 e segs.). — LIPSIUS, op. cit., vol. II, p. 312, e C. ERBES,
“ Die Gräber und Kirchen Pauli und Petri in Rom” {Zeitschrift für Kir­
chengeschichte 1885, p. 31 e segs.), demonstraram que a origem dessa
história reside em uma falsa compreensão da inscrição de Dâmaso na
catacumba de S. Sebastião, onde está dito que o Oriente teria enviado
os apóstolos. V. abaixo p. 148 e segs.
(218) DUCHESNE, Lib. pont I, p. 150. — C. ERBES, “ Die ges­
chichtlichen Verhältnisse der Apostelgräber” {ZKG 1924, p. 72 e seg.),.
pensa ter na nota referente a Paulo lim núcleo histórico.
(219) Talvez não devêssemos dedicar uma confiança ilim itada ao
texto de Berna, do m artirológio de jerônimo, datado do século VIII. P o is
no nosso caso poderia tratar-se de uma tentativa posterior de explicação
de um copista que não sabia o que fazer com a data da depositio mar-'
tyrum (29 de junho de 258). Em todo caso, o ano 258 não está necessà-
riamente relacionado com as catacumbas. . .
apóstolos estiveram de início ali sepultados e foram posterior­
mente transferidos para túmulos separados. Esta suposição foi
defendida por poucos em época mais recente (220) e posterior­
mente, quase que abandonada por completo. Parece, todavia, es­
tar sendo pelo menos cogitada novamente, em conexão com os
enigmas completamente insolúveis a que conduzem as escavações
mais recentes sob a Basílica de São Pedro (2 2 1). A indicação
do ano 258, no entanto, prova que tôda a informação da “ deno-
sitio” e do “Martyrologium” não se refere à data do sepultamen­
to, mas a uma outra ocorrência relacionada com a memória de
Pedro (e de Paulo).
Todavia, essa ocorrência não precisa ser necessàriamente a
transferência dos ossos, de sepulturas originais para a Via Ápia.
Aquela suposição tornou-se atualmente quase que um dogma cien­
tífico, dada a autoridade de Lietzmann, e é apresentada também
em S. Sebastião, pelos monges que guiam os visitantes. Além
de não ser realmente fundamentada em texto algum, acontece
também que outras ponderações complicam muito a suposição
dessa transladação, se é que não a tornam impossível. Confor­
me a legislação romana sôbre a proteção das sepulturas, retirar
os restos de um defunto da sepultura era considerado crime que
exigia a pena de morte. Uma transgressão dessa lei. oor parte
dos cristãos, seria perigosíssima durante as perseguições de Va­
leriano. Reuniões cristãs eram então proibidas nos cemitérios que
provàvelmente eram vigiados especialmente, para o cumprimento
da proibição (222). Nos últimos tempos tem sido lembrado com
razão que a transladação justamente para a Via Ápia, uma das
estradas de maior tráfego, é tanto mais improvável, visto que a

(220) P. ST Y G E R , Die römischen Katakomben, 1933, p. 350 e sea:-


Idem, Römische Märivrergrüfte. 1935, I, p. 15 e seçs. — F. T O L O T T I,
“ Ricerche intorno alia Memoria Apostolorum” (Rivista Archeol. Crist.
1946, p. 7 e segs-. 1947/48, p- 13 e segs.); id., Memorie degli Apos*oH
in catacumbas, 1953, p. I l l e segs.
(221) V. 0 relatório de A. FERRUA sôbre as novas escavações sob
a Basilica de São Pedro; “ A la recherche du tombeau de S. Pierre”
{Etudes 1952, p. 35 e segs-)- A. FERRU A lembra, aliás, em uma senten­
ça bastante sinuosa, essa antiga tradição. E em um artigo surgido qua­
se que simultâneamente, “La Storia dei sepoicro di san Pietro” (La ci-
vilüà cattolica 1952, p. 15 e segs.), êle só explica que essa tese foi aban­
donada pelos eruditos.
(222) J. R U YSSCH A ER T, “ Réflexions sur les fouilles vaticanes, le
rapport officiel et la critique. Données archéologiques” {Revue ctHistoire
ecclésiastique 1953, p- 573 e segs-), alega, contra êsse argumento, que,
como tôda Ici, também essa podia ser transgredida (p. 626 e seg.).
uns cem metros (junto à sepultura de Caecilia Metella) existia
uma estação da polícia imperial (2 2 3 ). Além disso, não é pos­
sível compreender como os cristãos poderiam ter temido uma
violação dos túmulos, uma vez que essa seria contrária ao sen­
timento romano. E o culto às relíquias também ainda não era
tão desenvolvido naquela época, a ponto de provocar uma ação
do estado contra as sepulturas dos mártires. Na I’ealidade, aque­
la perseguição visava os dirigentes da comunidade. Por essas
razões, há muito tempo, uma série de pesquisadores jamais acre­
ditou em uma transladação dos restos mortais de ambos os após­
tolos (2 2 4 ). Os que apóiam a tese da transladação enfrentam
últimamente os argumentos mencionados, admitindo uma transla­
dação parcial, como, por exemplo, só da cabeça (2 2 5 ). As dificul­
dades citadas são enfraquecidas, dessa maneira, mas não desapa­
recem de modo algum.
A transladação é tanto mais duvidosa, visto que também as
escavações sob a Basílica de S. Sebastião, das quais voltaremos
a falar mais tarde, evidenciam somente que lá teve lugar um
culto aos apóstolos e não, que as relíquias se encontrassem na­
quele lugar.

(223) Devemos essa indicação ao artigo de ALFONS MARIA SCHNEI­


DER, “ Die Memoria Apostolorum an der Via Appian” {Nachrichten der
Wissenschaften in Göttingen, Piiil.-hist. KL, 1951, p. 5).
(224) Assim já J. W ILPERT, “Domus Petri” {Römische Quartals-
chrif!, 1912, p. 121); G. LA PIANA, “The Tombs of Peter and Paul ad
Catacumbas” {Harvard Theological Review 1921, p. 81 e segs-); C. ERBES
in Zeitschrift für Kirchengeschichte 1924, p. 38; especialmente H. DE-
LEHAYE, “Hagiographie et archéologie romaines II, Le sanctuaire des
apôtres sur la voie Appienne” {Analecta Bollandiana 1927, p. 297 e segs-);
id., Les origines du culte des martyrs, 2.^ edição, 1933, p. 264 e segs.
Também A. von GERKAN, no seu relatório anexado à 2.^ edição da Obra
de H. LIETZMANN, Petrus und Paulus in Rom, p. 248 e segs., mostra-se
cético quanto à suposição da tranladação. (Agora, porém, positivo; Basso
et Tusco consalibus, Bonner Jahrbuch 1958, p. 89 e segs.)- E. SCHAFER,
“Das Petrusgrab” {Evangelische Theologie 1951, p. 477 e seg-; assevera
que não haveria motivo para uma transladação, uma vez que a proibição
de Valeriano, de penetrar nos cemitérios cristãos, não data do ano 258,
mas do ano 257, sem contar com o fato de que o túmulo de Pedro nem
fôra localizado em um cemitério cristão, mas gentio. O receio ante uma
profanação do túmulo seria infundado. Também nada se sabe acêrca
de profanação de túmulos cristãos durante os períodos de perseguição.
Finalmente A. M. SCHNEIDER, op. cit., v. observação anterior.
Quanto a tôda a questão v. também, para orientação; H. LECLERCQ,
artigo; “St. Pierre”, in Dictionnaire d’archéologie chrétienne et de litur­
gie, 1939, col. 822 e segs. e L. HERTLING-E. KIRSCHBAUM, Die rô-
triischen Kcdakomben und ihre Märtyrer, 1950, p. 102 e segs.
Mas por que estaria justamente o 29 de junho de 258 liga­
do a êsse culto? no tocante ao dia, observamos primeiramente
que 0 29 de junho era celebrado como dia da fundação de Roma
por Rômulo, circunstância que deveria merecer maior atenção. À ce­
lebração do fundador da cidade correspondia a do fundador da
comunidade (226). Convém lembrar que êsse é também o dia
da deposição do antipapa Novaciano, que faleceu nessa época, vis­
to que em conexão com outras observações, êsse fato torna pro­
vável a apresentação de interessantes hipóteses que poderiam re­
solver muitas dificuldades (227). Por enquanto a melhor expli­
cação é a que segue: Vimos que a indicação do ano 258 não
pode referir-se às sepulturas originais dos apóstolos. Provàvel­
mente, também, não mais que à problemática transladação dos
ossos. Ela alude, antes, ao surgimento de um culto dedicado aos
apóstolos. As fontes litúrgicas não permitem deduzir se o culto
apareceu simultâneamente nos três lugares mencionados, Vatica­
no, estrada para Ósti e Via Apia, ou inicialmente nos dois primei­
ros ou na Via Ápia. Só as escavações nos poderiam ajudar na solu­
ção do problema. A necessidade de uma veneração cultural e de
um local de culto surgiu logo em meados do século III, portanto na
época em que fôra constituída a catacumba de Calisto para os bispos
romanos. É compreensível que então, mais do que nunca, se quis

(225) Assim J. R U Y SSC H A E R T, artigo citado (Revue ifhist. eccí.


1953), p. 627 e seg.; J. T O Y N B E E e J. W . PERKINS, The Shrine of St.
Peter and the Vatican Excavations 1956, p. 182, e especialmente E.
KIRSCHBAUM, Die Gräber der Apostelfürsten, 1957, pp. 141 e segs. e
201 e segs.. Êste baseia-se principalmente em um artigo de E. JOSI,
“ Conferenze della Società dei cultori di archeologia cristiana” (Riv. di
Archeologia crist. 1953, p. 94 e seg.) segundo o qual, de acôrdo com um
texto do jurista romano Júlio Paulo (século III), o túmulo está legal­
mente no lugar em que estiver a cabeça.
(226) Vide C. ERBES, Die Todestage der Apostel Paulus und Petrus
und ihre römischen Denkmäler, 1899, p. 39 e seg.: “o dia comemorativo
do fundador da cidade de Roma era o mais ideal para a celebração co­
memorativa do fundador ou dos fundadores da comunidade romana” . No
Sermo 82, o papa Leão, o Grande, indica o 29 de junho: “ Os apóstolos
fundaram a cidade melhor do que aquêles que ergueram os muros e os
mancharam pelo fratricídio” .
(227) Martyrologium hieronymianum, no texto comemorativo ao 29
de junho, contido na tradição textual total. V ide H. D ELEH AYE-H .
Q U EN TIN , Acta Sanctorum Novembris, P. 1, 1931, p. 342. — Acêrca do
túmulo de Novaciano, descoberto em 1932, e suas conexões históricas,
vide L. C. M OHLBERG, “ Osservazioni storico-critiche sulla Iscrizione
tombale di Novaziano” (Ephémerides Hturgicae 1937, p. 242 e segs.).
Quanto à possibilidade de um culto herético, v. p. 149 e segs.
honrar a memória de ambos os apóstolos que há muito tempo
eram considerados fundadores da igreja. É interessante, tam­
bém, que se tencionou distinguir claramente os fundadores e
os bispos, não escolhendo para êles simplesmente a cripta episco­
pal, dando-se a Paulo a mesma veneração que a Pedro. A teoria
do episcopado exclusivo do príncipe dos apóstolos, portanto, ain­
da não existia ou pelo menos ainda não se impusera.
As duas notícias que citamos sôbre a deposição, relativas ao
29 de junho, referem-se à veneração cultuai. Nesse caso pode­
mos conservar a breve indicação da “ depositio martyrum” , que
é consideravelmente mais antiga, como se acha, e não precisa­
mos mudar o seu texto (228). Compreendemos então porque
Pedro, e sòmente êle, é mencionado só em relação às catacumbas.
Porque na época em que surgiu, i.e. no ano de 354, ainda não
estava concluída a Basílica, consagrada a Pedro, cuia construção
Constantino iniciou no lugar do tropalon do Vaticano (229). Por
isso, o único local de culto para a veneração de Pedro foi ainda,
durante algum tempo, nas catacumbas. Enquanto isso, no que
diz respeito a Paulo, a Basílica 5. Paulo fuori le mura, que é
muito menor, exigindo menos tempo para a sua conclusão, já
fôra entregue ao culto (230).
Partindo das fontes litúrgicas, só podemos, pois, declarar o
seguinte; A memória de Pedro em Roma estava vinculada a di­
versos lugares; ao Vaticano e às catacumbas. O 29 de junho
não é 0 dia da morte dos dois apóstolos ( 2 3 1) , mas relaciona-se
(talvez baseando-se no dia comemorativo ao fundador da cidade
de Roma) a uma celebi^ação cristã do ano 258. Êsse ano íoi de­
cisivo para a origem do culto dedicado a ambos os apóstolos. E
isso, segundo a tese mais corrente, poraue naquela ocasião teve
lugar a transferência dos ossos para a Via Ápia, segundo a tese
mais provável, porque aí iniciou-se um culto a ambos os apósto­
los sem tal transferência e talvez sem a presença física dos seus
restos mortais.

(228) V- acima p. 135 e seg.


(229) V- abaixo p- 156 e segs.
(230) Tão convincente E. KIRSCHBAUM, “ Petri in Catacumbas” ,
Miscellanea liturgica in honorent L. CunibertiMohlberg, 1948, p. 221 e segs.
(231) Assim também P. B ATIFFO L, Cathedra Petri, 1938, p. 174:
“ la íête des deux apôtres sera célébrée le même jour, 29 juin, non que
cette date soit l’anniversaire de leur martyre, mais parce qu’elle est l’anni­
versaire de l’institution d’une même solennité en leur honneur” .
As fontes litúrgicas, portanto, pouco contribuem para a so­
lução do nosso problema. E a discrepância da tradição litúrgi-
ca, que liga a memória de Pedro tanto ao Vaticano como às ca­
tacumbas, de há muito complicou, mais do que nunca o proble­
ma. E êsse fato ocasiona um embaraço entre os cientistas e líde­
res eclesiásticos, que ainda hoje pode ser percebido, quando se
fala dessa discrepância. Daí talvez a razão pela qual já nos
séculos XV e XVI não havia certeza quanto à localização dos
túmulos dos apóstolos. É o que se conclui da seguinte passagem
de Lutero, que é pouco considerada (2 32 ): “ Mas isso posso di­
zer alegremente, porque vi e ouvi em Roma, que lá não se sabe
onde se encontram os corpos de São Pedro e São Paulo e nem se
êles lá se encontram. Papa e cardeais sabem muito bem que
não o sabem.”

5 °) Escavações

Conduzem-nos a algum progresso os resultados das escava­


ções? Se hoje está sendo escavado em dois lugares, no Vatica­
no, sob a atual Basílica de S. Pedro e sob a atual Basílica de
S. Sebastião, na Vila Apia, junto às catacumbas, isto corresponde
totalmente às indicações das fontes literárias e litúrgicas. Uma
terceira tarefa resta ser executada pela pesquisa arqueológica:
organizar escavações sistemáticas também sob a Igreja S. Paolo
fuori le mura. Na verdade, já foram feitas lá diversas observa­
ções arqueológicas após o incêndio de 1823 e em conexão com a
reedificação. Recentemente, porém, ainda não foi levada a efeito
uma pesquisa arqueológica do local (223).
Consideremos primeiro as escavações encetadas sob a Basí­
lica de S. Sebastião, junto ás catacumbas da Via Ápia, em 19 15

(232) M. LU TERO , “W ider das Papsttum vom Teuíel G estiítet” ,


1545 (WA 54), citado segundo E. M ÜLH AU PT, Luthers Evangelien-Aus
legung, tom. 2, p. 551.
(233) Acêrca do túmulo de Paulo Vide C. CECCHELLI, “ La Tom ­
ba di S. Paolo” (Capitolium 1950, p. 115 e seg.).
Escavações sob a Basílica de S. Paolo seriam especialmente instru­
tivas visto que aí há menores probabilidades de serem encontradas pi­
lhagens medievais, do que sob a Basílica de São Pedro.
(2 3 4 ). Essa Basílica era denominada anteriormente “ Basílica
dos Apóstolos” e só posteriormente veio a servir de sepultura
para S. Sebastião, do qual recebeu o nome (2 3 5 ).
Conforme o Liber Pontificalis, o papa Dâmaso teria erigido
uma igreja, no local “ onde teriam descansado os corpos dos santos
apostolos Pedro e Paulo” . Sôbre êles estaria a platonia (plato-
na = lage de mármore). As escavações, porém, não confirmaram
tal afirmação. Revelaram sòmente que, no século I, encontra­
vam-se nesse local uma vila romana, columbaria e sepulturas, e
mais interiormente uma escavação, da qual se extraía terra de
Pozzuoli. Mais importante para a nossa questão foi o achado
de uma “ triclia” , i.e., um recinto de culto que, segundo as inscri­
ções que invocam Pedro e Paulo (236), servia para a veneração
de ambos os apóstolos.
De acôrdo com as mais recentes interpretações dos grafitos,
principalmente segundo a constatação da data consular de 260
em relação a um dêles (237), êsse recinto deve ter surgido an-

(234) V. a respeito disso o já mencionado relatório, de 50 páginas,


de A. von GERKAN, impresso na 2.® edição da obra de H. LIETZM ANN,
Petrus und Paulus in Rom, 1927, p. 248 e segs. V. também J. P. KIRSCH,
“ Das neuentdeckte Denkmal der Apostel Petrus und Paulus “in Cata­
cumbas” an der Appischen Strasse in Rom” {Römische Quartalsschrift
1916-22, p. 5 e segs.); G. M ANClN I-0. M ARUCCI, “ Scavi sotto la b asi­
lica di S. Sebastiane sulla Appia antica” (Notize degli Scavi 1923); R.
CHÉRAM Y, Saint-Sébastien-hors-les-murs, 1925; F. FORNARI, S. Sebas-
tiano “extra moenia" 1934; P. S T Y G E R , Römische Märtyrergrüfte, 1935;
A. PRANDI, “La memoria Apostolorum in Catacumbas” {Romana sotter-
ranea Crist. 2, 1936); ALFO N S MARIA SCHNEIDER, “ Die Memoria Apos­
tolorum an der V ia Appia” {Nachrichten der A. d. Wiss. Göttingen, PhiL-
hist. Kl., 1951, p. 1 e segs.); acêrca das mais recentes escavações: F.
T O L O T T I, Memorie degli Apostoli in Catacumbas, 1953.
(235) V. a respeito disso F. W , DEICHMANN, FrühchristlicheKir­
chen in Rom, 1948, p. 22 e seg.
(236) Foram apurados 191 grafitos, entre os quais 33 gregos. Re­
digidos, em parte, em latim vulgar evocam a intercessão dos após­
tolos: p. ex., Paule et Petre petite pro Victore. Trata-se certamente de
um culto popular- É possível imaginar peregrinos vindo a Roma de­
tendo-se nesse ponto da Via Appia, antes de entrar na cidade.
V. sôbre os g ra fito s: E. DIEHL, Inscriptiones latinae chrisiianaere­
teres, 1924; H. LIETZM ANN, op. cit., p. 163 e segs. A. M. SCHNEIDER,
Refrigeria nach lit. Quellen und Inschriften, 1928; P. S T Y G E R , Die rö­
mischen Katakomben, 1933, p. 341 e segs. Èsses trabalhos estão parcial­
mente superados pela descoberta de R. MARI'CHAL, Les dates des graffiti
de St-Sébasfien, C. R. Ac. Inser. et B. L., 1953, p. 60 e segs., de um
grafito com a data consular de 260.
(237) R. MARICHAL, op. cit., p- 60 e segs.
ies dessa data, talvez no ano de 258, já mencionado em conexão
com as fontes litúrgicas. Sua instalação interna, que apresenta
bancos de pedra ao redor, bem como algumas inscrições, permi­
tem reconhecer que ai eram celebradas “ refrigeria” , refeições em
memória de defuntos, era honra de Pedro e Paulo. Sôbre um
grafito lemos, p .ex., o seguinte; “ Eu, Tomius Caelius, celebrei
um “ refrigerium” em honra de Pedro e Paulo” (238). As refei­
ções realizadas em honra dos apóstolos eram naturalmente con­
sideradas obras meritórias. Êsse abuso parece ter se difundi­
do, como continuação das refeições religiosas pagãs, pois não foi
possível exterminá-las e, na Igreja, foram envolvidas por um
manto cristão, em combinação com o culto aos mártires. Agos­
tinho censurou posteriormente os abusos ocasionados por êsse
mau costume (293). Na sua época já havia decênios que ti­
nham sido proibidos, mas ainda eram celebrados secretamente.
Não queremos contestar que tais “ refrigeria” pressupunham,
em princípio, a presença das relíquias dos homens venerados(240).
E isso, principalmente, serviu de apoio para que se afirmasse es­
tarem os apóstolos realmente sepultados por certo tempo nas ca­
tacumbas (2 4 1). No entanto, considerando-se a proibição de
tais “ refrigeria” , pela Igreja, é possível que estas tenham sido
efetuadas excepcionalmente, apesar de ausentes as relíquias
(242).
Uma inscrição encontrada nas proximidades da cripta da
Basílica de S. Sebastião vem testificar que o culto em memória
dos apóstolos poderia ter surgido ali, mesmo sem a presença dos
seus restos mortais. Esta é uma cópia, produzida no século XIII,
de uma inscrição que remonta a Dâmaso. A tradução do seu

(238) Petro e Paulo Tomius Caelius refrigerium feci XIV kal.


Aprilles-
(239) AGOSTINH O, Ep. X X IX ad Aurelium.
(240) Vide T . KLAUSER, Die Kathedra im Totenkult der heidnis­
chen und christlichen Antike, 1927; A. M. SCHNEIDER, Refrigerium,
1928.
(241) Êsse é para H. LIETZM ANN um dos argumentos decisivos em
favor da suposição da transladação dos ossos no ano 2580. “ The Tomb
of the Apostles ad Catacumbas” , in Harvard Theol. Rev., 1923, p.147
e segs.).
(242) Assim G. LA PIANNA, “ The Tombs of Peter and Paul ad
Catacumbas” {Harv. Theol. Rev. 1921, p. 81 e segs.).
texto é, provàvelmente, a seguinte (243) : “ Sejas lá quem fôres, ívt
que procuras pelos nomes de Pedro e Paulo, deves saber que
outrora habitaram aqui os santos. O Oriente nos enviou os dis­
cípulos, nisso consentimos voluntàriamente. Mas dado o mérito
do sangue (derramado) — pois êles seguiram a Cristo além das
estréias e penetraram até o regaço celestial e o reino dos pie­
dosos — Roma tem maior merecimento em reivindicá-los como
seus cidadãos. Isso, ó novas estréias, Dâmaso quer cantar para
a vossa glória.”
A sentença que contém a “ residência” de Pedro e Paulo, é
geralmente interpretada no sentido de que os seus restos mor­
tais descansaram em S. Sebastião (244). Mas ainda existem ou­
tras possibilidades de interpretação. Poder-se-ia, talvez, cogi­
tar em uma tradição, segundo a qual os apóstolos realmente habi­
taram ali enquanto vivos. Para tal contribuiria o fato de que
naquela região existia um bairro judeu (245). Até se poderia
supor que o inscrição tem em vista uma presença cultural de am­
bos os apóstolos. Ê discutível que no século IV Dâmaso tenha
imaginado uma presença cultual, com a designação de “ habitar” .
Em todo o caso é mais razoável interpretar a origem do culto na
Via Apia, no século III, não pela presença das relíquias, mas
partindo da necessidade de honrar a memória de ambos os fun­
dadores da Igreja romana em um local onde houvesse oportuni­
dade para tal, apesar da ausência das relíquias. Isto é tanto
mais provável, quanto em S. Sebastião, mas não na “ triclia” ,
íoram encontrados possíveis vestígios de um cenotáfio duplo,
i.e., de um túmulo fictício, do tipo dos que eram erigidos fre­
qüentemente na Antigüidade, quando se queria celebrar a me­
mória de um finado em um local no qual não estava a verdadeira

(243) Hic habitasse prias sanctos cognoscere debes, nomiiia quis-


que Petri pariter Paultque requires. Discípulos Oriens misit, quod sponíe
fatemur. Sanguinis regnaque piorum — Roma suos potius meruit defen-
áere eives. Haec Damasus vestras referai, nova sidera, laudes.
(244) V. acima p. 145 e seg.
(245) Segundo JUVENAL, Sat. III, 12 e segs., o bosque santo da
Egéria é arrendado aos judeus. — V ide Q. LA PIAN A, “ Foreign groups
in Rome during the first centuries of the Empire” (Harv. Theol. Rev.
p. 341 e segs.) ; além disso, J. B. F R E Y , “ Les communautés juives à Rome
aux premiers temps de l’E glise” IRech. de S,c. reU 1930, p. 275 e segs.).
Realmente residir, primeiro J. W ILP ER T, Rom. Quartalsschreiben 1912,
p. 117 e segs. Recentemente F. T O L O T T I, Memorie degli Apostoli in
Catacumbas, 1953, o quai admite que Pedro tenha residido nesse local e
tenha batizado em uma fonte encontrada naquele vale, sendo também en­
terrado aí, logo após 0 martírio.
sepultura (246). A escolha da Via Ápia como local de culto pode
ser assim explicada: Nas cercanias imediatas fôra edificada a
catacumba de Calisto, destinada ao sepultamento dos bispos ro­
manos desde Ponciano (235). Para veneração cultual dos após­
tolos fundadores, os romanos queriam reunir-se nas proximida­
des dos bispos posteriores.
Sem uma hipótese é impossível explicar a existência de um
lugar comum comemorativo de ambos os apóstolos, nas catacum­
bas, a s quais continuaram a servir a êsse propósito, m esm o após
serem localizados os túmulos no Vaticano e na estrada para
Ôstia. Muito improvável é a suposição de que as catacumbas
foram as sepulturas originais dos apóstolos (247). Como vimos,
a hipótese da transladação temporária dos restos mortais para
as catacumbas, no século 111, é a preferida, principalmente gra­
ças ao livro de Lietzmann e recentemente ao relatório oficial de
pesquisas sôbre as escavações. Apesar dessa preferência, porém,
apresentam-se tantas dificuldades que, por outro lado, existe com
razão a tendência para abandonar tal hipótese (248). Poder-
se-ia admitir, em principio, que no século III foram procuradas
as relíquias dos apóstolos, que até então não se possuíam. Dessa
maneira ter-se-ia chegado, em 258, a uma tal descoberta {in-
ventio) dos restos mortais — autênticos ou não — , como é tes­
temunhada em relação às relíquias de mártires nos séculos IV e
V (249). Isto, porém, não passa de uma probabilidade não com­
provada e mesmo impossível de se comprovar.
No tocante ao local junto à s c a ta c u m b a s de S. Sebastião,
concluímos que no século III surgiu lá um cu lto em honra de
ambos os apóstolos, apesar da ausência dos despojos mortais
(250). Teria isso acontecido por serem dificultadas as reuniões
cultuais no lugar dos tropaia de Pedro e de Paulo, no Vaticano
e na estrada para Ôstia, que já antes eram venerados como
locais, uma vez que se encontravam emmeio acemitérios pa-

(246) Também H. D ELEH AYE, Les originesda cuUe desmartyrs,


1933, p. 267, admiteum cenotáfio.
(247) V. acima p. 141.
(248) V. acima p. 141-
(249) V ide H. ACHELIS, Die Martyrologien, ihre Geschichte und
ihr Wert, 1900, p. 74e segs., e E. SCHÄFER, Die Epigramme des Papstes
Damasus I als Quellen für die Geschichte der Heiligenverehrung, 1932,
p. 101 e segs., também E. SCHÄFER, “ Das Petrusgrab” (Evangelische
Theologie 1930), p. 474 e seg.
(250) Assim H. D ELEH AYE, Les origines du culte des martyrs,
1933, p. 267 e seg. e ALFO N S MARIA SCHNEIDER, op. cit. (Vide obs.
gâos? Ou teria primeiramente uma das Igrejas cismáticas do
século III criado um local de culto na Via Ápia, antes de ser
êste adotado pela Igreja principal, no início do século IV? Esta
segunda hipótese é favorecida, últimamente, por motivos sérios
(2 5 1). Ou estaria certa uma terceira suposição, segundo a qual
teria surgido na Via Ápia um culto privado popular, em conexão
com uma descoberta de relíquias em 29 de junho de 258 (252).

Certamente já existiam os lugares comemorativos aos após­


tolos no Vaticano e na estrada para ôstia, antes que aparecesse
um culto em honra dos mesmos. Pois, já antes do ano 258,
talvez até mais de meio século, existia a tendência de se possuí­
rem as relíquias dos apóstolos ou pelo menos as suas sepulturas,
No Oriente essa necessidade apresentou-se com muito mais an­
tecedência do que em Roma, onde, como veremos, não ha­
via, antes do fim do século II, qualquer interêsse por relíquias
ou sepulturas, nem sequer pelas dos grandes mártires da capi­
tal (253). E ’ no Martírio de Policarpo que pela primeira vez
temos notícia de culto a relíquias, consagrado à memória do
grande bispo de Esmirna. Ao final do século II Polícrates,
o bispo de Éfeso, escreve ao bispo romano Victor, em referência à
comemoração da Páscoa. Nessa oportunidade êle se baseia ex­
pressamente no fato de que na Ásia grandes astros encontraram
seu lugar de descanso, os quais ressurgirão no juízo final, quan­
do da volta de Cristo (254), e passa então a enumerá-los. À
medida que se distanciava o tempo em que era possível averi­
guar a relação de uma igreja com um apóstolo, estribando-se
ainda em uma tradição viva, crescia no Oriente a necessidade de
se provar de outro modo a apostolicídade de uma igreja, isto é.

223, pág. 142), p. 1 e segs. Bste não crê que tal tenha acontecido
já no ano 258. Êle supõe antes que naquele ano tenha surgido o culto
no Vaticano e na estrada para Ôstia. No entanto, desde a constatação
da data consular de 260, sob o grafito de tricUa, por MARICHAL (V.
acima, p- 145), o ano 258 pode ser considerado como certo-
(251) V- acima p- 143 e seg- Essa tese, recomendada e fundamen­
tada por A. M. SCHNEIDER e C. MOHLBERG, é defendida com espe­
cial expressão por E. DINKLER na sua série de artigos de Theologische
Rundschau, “ Die Petrus-Rom -Frage” , 1959/60, já mencionados repetidas
vêzes.
(252) V ide H. CH ADW ICK, “ St. Peter and St. Paul in Roma; the
Problem of the Memória Apostolorum ad Catacumbas” {Journal of Theol.
Studies 1957, p. 31 e segs-).
(253) V- abaixo p- 171 e segs-
(254) EUSÉBIO, H. E. Ill, 31, 3.
pela posse de sepulturas apostólicas. Com tôda razão presumi­
mos que essa tendência surgiu no Oriente, onde tal argumento
era imprescindível para a polêmica com Roma e suas reivindica­
ções sempre crescentes.

Para não ceder tal título honorífico sòmente às Igrejas orien­


tais, apareceu em Roma, aproximadamente na passagem do
II para o III século, a tendência de fundar-se igualmente
na posse de tropaia apostólicos. Devemos a essa tendência a
nota de Caio sôbre os tropaia no Vaticano e na estrada para
Ostia a qual data exatamente daquela época. A isso se adapta
muito bem a concepção que verificamos estar testemunhada no
texto de Tertuliano, discutido acima, segundo uma interpretação
plausível para essa mesma época (255). Conforme essa con­
cepção, 0 poder conferido ao apóstolo Pedro derrama-se do seu tú­
mulo sôbre o bispo romano. Em vista disso constrói-se aproxima­
damente na mesma época um jazigo para os bispos romanos.
Constatamos, pois, que também a comunidade de Roma in­
teressou-se pela posse de tropaia apostólicos nos decênios que
precederam imediatamente ao surgimento do culto aos apóstolos,
no ano 258. Mas justamente por isso é improvável que tenham
sido transladados do Vaticano e da estrada para Ôstia, depois de
haverem os romanos se baseado nêle havia não muito tempo, como
0 demonstra a nota de Caio. Aquêles locais permaneceram in-
tatos. Certamente foi criado um local de culto na Via Ápia;
contudo aquêles antigos “ locais comemorativos da vitória" con­
servaram a sua fôrça probante a favor da apostolicidade da igreja
romana. Mas, que sabemos acêrca dêsses tropaia e em especial
do tropaion de Pedro no Vaticano?
Chegamos assim à questão atual das escavações sob a B a­
silica de São Pedro. Em 1939 foram encetados aí trabalhos alta­
mente importantes para a Arqueologia. Êstes revelam de modo
sobremaneira claro a constituição e utilização do terreno sob a
atual Basílica de S. Pedro na época cristã-primitiva. Se é que
a Arqueologia pode afinal cooperar para o esclarecimento da
quesfão de Pedro, poder-se-ia esperar que tal acontecesse, par­
tindo daí. E muitos ficaram esperançosos de que de uma vez por
tôdas ficasse resolvido o tão debatido problema histórico do mar­
tírio de Pedro em Roma.

(255) V. acima p. 133.


Aliás, não é a primeira vez que se escava nesse local. Já
em 1615 quando se erigi-u o atual “ confessio” da Basílica, e prin­
cipalmente em 1626, ao serem postos os fundamentos das quatro
colunas sinuosas de bronze do tabernáculo de Bernini, sob a cú­
pula, se realizaram descobertas sôbre os mistérios ocultos no sub­
solo. Constatou-se que o lugar onde atualmente se diz estar o
túmulo de Pedro abrigava apenas sepulturas e camaras sepulcrais
dos anos 150 a 300, em profundidades diversas. Achados idên-
cos foram feitos posteriormente. Há pouco tempo foram exami­
nados minuciosamente os relatórios referentes a essas escavações
do século XVII (256). Mas só os trabalhos sistemáticos depois
de 1939 aclararam definitivamente a topografia sob a Basílica de
S. Paulo, afastando ao mesmo tempo antigas suposições errôneas
baseadas em dados falsos. Apesar de terem sido efetuados sem
que se permitisse o comparecimento do grande público científico,
0 seu resultado, graças a uma série de artigos de origem idônea,
já nos anos 1941 e 1950 (257), tornou-se conhecido exceto o que
se relacionava com as particularidades arqueológicas de um mo­
numento antigo e simples cujos vestígios se encontram debaixo
do presente altar, e de três sepulturas subterrâneas encontradas
debaixo dêle, que se supôs datar do século I. Em palestra ra­
diofônica proferida em 1942, o papa Pio XII aludiu de passagem
a êsse monumento e o identificou com o tropaion de Pedro, men­
cionado por Caio.
Na sua mensagem de Natal de 23 de dezembro de 1950 o
mesmo pontífice afirmou categoricamente que tinha sido desco­
berto “ o túmulo do príncipe dos apóstolos” . Ao mesmo tempo ad­
mitiu lealmente que os ossos achados nas ceranias do túmulo não
podem ser identificados com certeza como sendo os restos mor­
tais de Pedro.

(256) Vide H. LIETZM ANN, Petrus und Paulus in Rom, 1927, p.


191 e segs.
(257) Dentre os trabalhos surgidos antes do relatório oficia! das
pesquisas, mencionamos: C. RESPIGHI, “ La tomba apostolica dei V ati­
cano” {Rivista di Arch, crist., 1942, p. 5 e segs). — ^ E. ROSI, Gli scavi
nelle sacre Grotte Vaticane: II Vaticano nel 1944, p. 189 e segs. — Id.,
Le Sacre Grot‘e: Vaticano, editado por G. FALLANI e M. ESCOBAR
194 B. — E. KiRSCHBAUM , “ Die Ausgrabungen unter der Petruskirche
in Rom” {Stimmen der Zeit, 1949, p. 292 e segs,). — Id-, “ Gli scavi sotto
la basilica de S- Pietro” (Gregorianum 1948, p. 544 e segs.). — P. LE-
MERLE, “ Les fouilles de St-Pierre de Rome” (La Nouvelle Clio 1950,
p. 393 e segs.). — E. SCHAFER, “ Das Petrusgrab” (Evangelische Theo­
logie 1951), p. 459.
A afirmação categórica de que tinha sido encontrado o túmu­
lo só pôde ser examinada pelos arqueólogos, quando um ano mais
tarde, no Natal de 19 51, a publicação oficial sôbre essa parte dss
escavações (258), anunciada há muito tempo e impacientemente
esperada pelo mundo científico, foi divulgada com singular atra­
so. A impaciência era tanto mais compreensível, uma vez que
não era permitido a quase nenhum arqueólogo chegar até
aquêle lugar sob o altar, exceto os dirigentes dos trabalhos, a ser­
viço do Vaticano, enquanto que a parte restante das escavações
já era acessível ao menos aos eruditos. Desde então muitos
arqueológos de todos os campos têm tentado formar um juízo
próprio, não só com base na grande publicação, ilustrada magni­
ficamente em um segundo volume (259), mas no próprio local.
Sôbre os resuhados das escavações que, como veremos, permitem
muitas e variadas interpretações, desencadeou-se uma violenta
discussão. Digno de nota é que os que apóiam e os que se opõem
às conclusões não representam, necessária e respectivamente os
independentes de Roma e os pesquisadores católicos. Ao con­
trário, um grande número de eruditos católicos de renome, tam­
bém teólogos, negam com muita energia as deduções positivas do
relatório oficial, enquanto que, por outro lado — mas só isolada­
mente e com reservas — arqueólogos independentes tomam o seu
partido (260). Em todo caso, apesar de tôda a crítica que deve

(258) B. M. APOLLO N J-QH ETTI, A. FERRUA, E. KIRSCHBAUM,


E. JOSI (prefácio L. K A A S), Esplorazioni sotto la Cofessione dl S. M e­
tro in Vaticano, 2 volumes (um volume de texto e outro de ilustrações),
1951 (citado no que segue: Espl. Vat. 1951).
(259) Os planos contidos nela lamentàvelmente não possuem uma
escala uniforme e faltam cortes transversais, o que dificulta o seu apro­
veitamento.
(260) Quase que simultâneamente com o relatório total das pes­
quisas, A. FERRUA, um dos quatro dirigentes, editou dois artigos em
separado: La storia dei sepolcro di San Pietro {La Civilià cattolica
1952, p. 15 e segs.) e “ A la recherche du tombeau de S. Pierre” (Etudes
1952, p. 35 e segs.). Surpreendemente, as conclusões de A. FERRUA
divergem consideràvelmente, já nesses trabalhos, das da obra oficial, pu­
blicada por êíe inclusive (V. abaixo p. 168 e seg.). A í se vê que a
verificação arqueológica não é inequívoca. Até entre ambos os ar­
tigos mencionados acima existem ligeiras divergências.
Com as conclusões finais do relatório, concordam, entre outros, J.
CARCOPIN O, “ Les fouilles de S. Pietre” {Revue des deux mondes, 1952,
p. 588 e segs.) e Etudes d'histoire chrétienne. Le christianisme secret
du carré magique. Les fouilles de Saint-Pierre et la tradition, 1953. No
entanto, também êle propõe, nos pormenores, soluções originais e essen­
cialmente divergentes. V. adiante p- 161 e 172 e segs., V. CAPO CCI, “ Oli
scavi de) Vaticano” {Stadia et Documenta Historiae ei Juris 1952, p. 199
e segs.); J- R U Y SSC H A ER T, Réflexions sur les fouilles .Vaticanes, le rap­
port officiel et la critique. Données archéologiques. Données épigraphi-
ques et littéraires (Revue d’Histoire ecclésiastique 1953, p. 573 e segs,;
1954, p. 5 e segs.), examina, independentemente e com uma boa apre­
sentação, o relatório das pesquisas e o defende, embora trilhando cami­
nhos próprios em pontos isolados, frente aos seus críticos, cujas teses
êle estuda de maneira leal e minuciosa- — J. TO YN B EE -J. B. PERKINS,
The Shrine of St. Peter and the Vatican Excavations, 1956 (bem ilustra­
do; V. a êsse respeito 0- CULLM ANN, dissertação no Journal of Eccle­
siastical History 1956, p. 238 e segs.), admitem que não é possível che­
gar a qualquer certeza de que se tenha encontrado o túmulo de Pedro,
visto que as efetivas verificações arqueológicas não alcançam além do
fim do século II. Por outro Íado, frisam acentuadamente, como o rela­
tório das pesquisas, que a hipótese que supõe a existência de um
túmulo mais antigo no referido lugar, explica muitas coisas que, do
contrário, permaneceriam obscuras, e que nada contradiz a identificação
com 0 túmulo de Pedro. Enquanto em geral procedem cautelosa e pon-
deradamente e opinam cèticamente até quanto às interpretações dos ra­
biscos nas paredes do mausoléu dos valérios (retrato e evocação de Pe­
dro?), elaboradas por M. G U AR D U CC!, Cristo e San Pietro in un do­
cumento preconstantiniano delia necropali vaticana, 1953, mas/tram-se
menos reservados do que o relatório ®ficial, na avaliação positiva dos
ossos encontrados sob o muro vermelho.
Entre os confessos adversários das conclusões finais dos quatro ar­
queólogos, originalmente incumbidos de dirigir as pesquisas pelo Vaticano
contam-se antes de tudo o teólogo católico A. M. SCHNEIDER, já mencionado
por diversas vêzes, entrementes falecido, o qual contesta decididamente a
descoberta do túmulo no seu artigo “ Das Petrusgrab im Vatican” (Theolog.
Literaturzeitung 1952, col. 32i e segs.); A. v. GERKAN, cujos trabalhos ante­
riores foram mencionados acima (obs- 224, pág. 142), o qual acusa
os dirigentes das escavações de, dentre outras coisas, terem considerado
insuficientemente o terreno: “ Die Forschung nach dem Grab Petri
(Evang.-lath. Kirchenzeitung, 1952, p. 379 e segs.); “ Kritische Studien
zu den Ausgrabungen unter der Peterskirche in Rom” (Trierer Zeitschrift,
1954, p. 26 e segs-); Zu den Problemen des Petrusgrabes, Jb. f. Antike
und Christentum, 1958, p. 79 e segs-; P- LEMERLE, “ La publication des
fouillers de la Basilique Vaticane et la question du tombeau de Saint-
PiTrre” (Revue historique 1952, p. 205 e segs-), que também contesta a
descoberta do tropaion de Caio e não consegue constatar qualquer vestí­
gio cristão antigo sob a Confessio; ERIK PETE R SO N , über das Petrus­
grab (Schweiz. Rundschau 1952, p. 328 e segs-), que encara o tropaion
como cenotáfio; H. I. MARROU, “Les fouilles du Vatican” (Dictionaire
d’archéologie chrétienne et de liturgie 1953, col. 3291 e segs., 3310 e segs-),
0 qual, de modo semelhante como Peterson e nós, nega a descoberta do
túmulo, mas admite que o tropaion (descoberto) de Caio teria sido eri­
gido sôbre o lugar da execução de Pedro; H. TO R P, “ The Vatican E x­
cavations and the Cult of Saint Peter” (Acta archaeologica 1953, p. 27
e segs.), que atribui origem pagã ao monumento identificado com o
tropaion de C aio; igualmente E. SCHÄFER, “ Das Apostelgrab unter
Sankt Peter in Rom” (Evangelische Theol. 1953, p. 304 e segs.); espe­
cialmente T . KLAUSER, “ D ie römische Petrustradition im Lichte der
neuen Ausgrabungen unter der Peterskirche” (Arbeitsgemeinschaft f.
ser feita — um dos dirigentes admite, muito lealmente, enganos
isolados (261) — , deve ser reconhecido que o relatório das esca­
vações esforçou-se por objetividade, caracterizando-se, ao contrá­
rio de publicações posteriores, por uma atitude reservada, sempre
que os achados o exigiam. Recentemente tem-se tentado chegar
a resultados mais palpáveis, partindo-se da epigrafia (262). Si­
multâneamente novas escavações estão sendo levadas a efeito des­
de a publicação do relatório oficial das pesquisas, ou melhor, des­
de 1953, e sem a participação dos primeiros dirigentes que redi­
giram aquêle relatório (263). Ao que tudo indica, nos círculos
vaticanos existe a opinião de que só é possível prosseguir, partin­
do-se de bases totalmente novas. Na realidade, a continuação das
escavações até hoje, por um lado, só confirmou o que há de cor­
reto naquele relatório, por outro, no entanto, ela deveria admoes-

Forsch- des Landes Nordhein-Westj- 1956), que apresenta com A. v. GERKAN


a contestação mais meticulosa da tese oficial, até o momento presente.
Além do já citado trabalho de J. R U Y SSC H A E R T (V. acima, a pre­
sente obs.), especialmente o nôvo livro de E. KIRSCHBAUM, Die Gräb
der Apostelfürsten, 1957, que á de um modo geral acessível e bem ilus­
trado e resume claramente o conteúdo de ambos os volumes oficiais, con­
tém uma resposta às críticas acima mencionadas. KIRSCHBAUM, de­
fende 0 relatório oficial, procurando provar que os adversários fizeram uma
errônea reconstrução do terreno. Simultâneamente contesta discretamente
os trabalhos da nova equipe de erudito GUARDU CCI, PRANDI (V.
abaixo obs. 262 e 263), que se empenha em continuar à procura do
túmulo de Pedro, partindo de outras premissas.
O mais completo relatório crítico de pesquisas, que também inclui
as mais recentes escavações, devemos a E. DINKLER que, no tocante ao
túrnulo de Pedro, chega a conclusões negativas, encarando também com
ceticismo a identificação do monumento comemorativo com o tropaion
{Theolog. Rundschau 1959, p. 289 e segs.).
(261) E. KIRSCHBAUM, op. c it, p. 93.
(262) M. GU AR D U CCI, Cristo e San Pietroin un documento pre-
constantiano delia necrapoli vaticana 1953 (C . acima obs. 260 princi­
palmente, porém, a mais recente publicação da mesma autora: I graffisti
sotto la confessione di San Pietro in Vaticano, 3 volumes, 1959, na qual
ela examina os grafitos, que ainda não haviam sido estudados meticulo­
samente até então e, baseada na suposição ‘de uma escrita secreta dos
cristãos, procura demonstrar diversas vêzes a existência do nome de
Pedro- V. abaixo p. 166 e seg.
(263) A A. PRANDI íoram confiadas as novas escavações, leva­
das a efeito desde 1953, que deveriam apoiar simultâneamente os resul­
tados epigráficos de M. G U ARDU CCI, partindo da arqueologia; V .: La
zona archeologica delia Confessione vüticana. I monumenti dei 77. secolo,
1957. No entanto, ao contrário do relatório de pesquisas dos seus ante­
cessores, êle não situa os túmulos mais antigos no primeiro século,
mas só no segundo, caindo assim um los esteios principais daquele re­
latório.
íar-nos a uma cautela e discrição ainda maiores em relação aos
seus elementos e conclusões duvidosos. Para a questão do tú­
mulo de Pedro entram em cogitação, mas só indiretamente, as
novas descobertas feitas recentemente, quando da construção de
uma garagem, ao norte do Vaticano, em uma distância de apro­
ximadamente 400 m em linha reta, da Basílica de S. Pedro. En­
contraram-se sepulturas de empregados da côrte (entre os quais
nenhum cristão), do período neroniano e talvez até mais antigas.
Êsse cemitério estava situado já fora dos jardins de Nero (264).
A mais recente pesquisa do terreno ainda não está concluída
e a discussão, conseqüentemente, continua. Mas, apesar disso, os
trabalhos até aqui realizados permitem-nos um parecer quanto à
possibilidade ou não de as escavações sob a Basílica resolverem,
num ou noutro sentido, a questão da estada de Pedro em Roma
possível. No entanto, quero observar já agora, expressamente, que,
mesmo que a resposta a essa pergunta seja negativa, não fica ex­
cluída, de maneira alguma, a hipótese de que Pedro tenha estado
em Roma. A questão da sepultura de Pedro e a questão de sua
estada em Roma devem ser estritamente separadas.
Comecemos, porém, com a parte das novas escavações sôbre
a qual já tem sido publicada uma documentação bastante minu­
ciosa. Primeiramente é mister lembrar que sob a atual Basílica
encontrava-se a antiga, erigida por Constantino no século IV em
honra de Pedro. Ela foi totalmente demolida quando da constru­
ção da atual Basílica, iniciada em 1506 e concluída aproximada­
mente 150 anos mais tarde. Lamentavelmente, não há qualquer
texto antigo que narre algo sôbre sua origem. Sôbre a sua for­
ma, porém, possuímos uma velha descrição do canonista Tibério
Alfarano, do século XVI (265). Também existem antigas gravu­
ras. Diversos trabalhos recentes selecionaram já há muito êsse
material (266). A construção da Basílica primitiva foi iniciada pro­
vàvelmente no ano 333 (267) sob Constantino I e talvez concluída

(264) Vide F. MAGI, “ Ritrovamenti archeologici nell’area deli’ au-


toparco Vaticano” (Tríplice omaggio a S. Santiíà Pio XII. P. II, p. 87
e segs.).
(265) Tibério Alfarano, “ De Basilicae Vaticanae antiquissima et
nova structura” (Studi e Testi 1914).
(266) H. GRISAR, “ D ie alte Petruskirche zu Rom und ihre frühes­
ten Ansichten” (Röm. Qaartalsschrift 1895, p. 237 e segs.).
(267) Contra as fixações de datas mais antigas, das quais a pre­
dileta é 0 ano 324 (LIETZM ANN, NICOLOSI, M ARUCCH I), e as mais
recentes, que preferem o ano 325 (T . KLAUSER, Vom Heroon zur Mär­
tyrerbasilika, Kriegsvorträge, Univ. Bonn, p. 22 e F. W. DEICHMANN,
sob Constantino 11 (268), Localizava-se a uns 3 m sob 0 nível da
atual igreja, por conseguinte na autura das atuais grutas do Vati­
cano, nas quais fox’am sepultados muitos papas até quase os nos­
sos dias.
As escavações encetadas em 1939 não tinham, de inicio,
qualquer finalidade cientifica, mas deveriam servir apenas para
ampliar essas grutas e simultâneamente baixar 0 seu nível em
aproximadamente 80 cm. Tal se fêz necessário por causa do sepul-
tamento do papa Pio X I, falecido em 1939, 0 qual havia determi­
nado que seus restos mortais descançassem nas grutas do Vati­
cano. Durante os trabalhos apareceram muros romanos e isto
motivou uma exploração do terreno sob as grutas.
O mais importante é que se deparou com um muro de consi­
deráveis dimensões, acreditando-se primeiramente que fôsse 0 muro
do circo de Nero, pois, segundo um relato enganoso do início do

Frühchristliche Kirchen in Rom, 1948) ou 0 ano 326 (H. von SCHDEN-


BECK, Beiträge zur Religionspolitik des Maxentius and Constantin,
Beihefte Clio 1939, p- 89), W . SEST O N , “ Hypothèse sur la data de la
Basilique constantinienne de Saint-Pierre de Rome” (Cahiers archéologi­
ques 1946, p. 153 e segs.), elaborou, em conexão com as mais recentes
escavações sob a Basílica de São Paulo, simpática hipótese, segundo
a qual a lei promulgada por Constante, em 28 de março de 349, permite-
nos reportar 0 início da construção ao ano 333, sob Constantino 1. Aquela
lei estabelece 0 equivalente das penas para todos os que roubaram partes
de túmulos, e isso com poder retroativo desde o ano 333. Veremos que
Constantino I foi forçado a soterrar tôda uma necrópole para edificar
a Basílica a Pedro. É concebível que êsse ato, levado a cabo força-
damente por Constantino !, na sua qualidade de pontifex maxi mus, deu
mais e mais motivos a profanações de túmulos que eram justificadas
com aquêle procedimento do imperador. Essa hipótese podia ser con­
firmada pelo fato de que justamente no ano 333 o paganismo retrocede
de maneira especialmente evidente das cercanias de Constantino I- Vide
A. PIGANIOL, L’empereur Constantin, 1932, p. 185. Semelhantemente, só que
reportando a alguns anos antes (por volta de 330), E. KIRSCHBAUM,
Die Gräber der Apostelfürsten, 1957, p. 151 e seg. (V. também H. I.
MARROU, Dictionnaire d’archéologie chrétienne, 1953, col. 3327). Isto
é confirmado principalmente pelas m ais recentes escavações: os grafitos
junto ao tropaion apresentam um monograma (V. abaixo p. 161 e seg.),
(268) V. a inscrição de Apsis em Dl'EHL, Inscr. latinae vet., n.°
1753. — ^ Se fôr correta a suposição (V. acima p. 144), de que por oca­
sião da redação da depositio martyrum a Basílica de São Paulo estava
concluída, enquanto que a de São Pedro ainda não fôra entregue ao
culto, a conclusão dessa última deveria ter acontecido depois de 354. Vide
E. KIRSCHBAUM, “ Petri in Catacumbas” . Miscellanea liturgica in hon.
L. C. Mohlberg, 1948, p. 221 e segs.
século XVII (269), os muros sulinos da Basílica de Constantino
assentavam sôbre os muros setentrionais do circo de Nero, de
modo que a Basílica de S. Pedro estaria sôbre êste. Já em 1895
procuraram-se inütilmente vestígios do circo. Mas só hoje é que
se esclareceu a real finalidade dêsse espêsso muro romano, que
evidentemente já fôra notado nos séculos XVI e XVIII, durante
a construção da atual igreja. Verificou-se que não pertencia ao
circo de Nero, mas servia exclusivamente para nivelar o terre­
no acidentado e íngreme, como uma subestrutura para a Ba­
sílica de Constantino. Ficou demonstrado que o imperador
erigira a sua igreja diretamente sôbre o declive. O cume da
coluna encontra-se ao norte da igreja, aproximadamente onde hoje
estão os edifícios vaticanos. A colina descai em dois sentidos:
inclinando-se levemente para o leste, portanto, na direção do al­
tar para a entrada da igreja, para a Praça de S. Pedro e além,
até o Tibre; do outro lado, descai muito mais escarpada e abrupta­
mente para o sul, ou seja, para o lado esquerdo da atual Basílica,
olhando-se da Praça de S. Pedro.
Constantino erigiu sua basílica exatamente sôbre êsse decli­
ve íngreme. O terreno era concebivelmente desfavorável, pois
para planificá-lo era necessário construir altos muros ao sul, os
quais alcançam, no ponto mais profundo do vale, uma altura de
13 m. Ao norte, parte da colina teve de ser nivelada, e grandes
massas de terra se fizeram necessárias para a aterragem. Êsses
imensos trabalhos poderiam ter sido poupados se a igreja fôsse
erigida ao alto, sôbre a colina, ou então mais abaixo, no vale.
Portanto, temos de admitir que havia um motivo especial para
construí-la justamente sôbre um declive íngreme. E êsse moti­
vo só pode ser o seguinte; no tempo de Constantino, não era a
colina do Vaticano considerada de um modo geral como local
da execução ou do sepultamento de Pedro, mas sim precisamente
aquêle declive, e talvez até um ponto especial neie.
Isto é confirmado por mais uma dificuldade a ser vencida
pelos construtores, e que sobreveio porque a igreja foi construída
justamente nesse lugar, Um cemitério inteiro, que se encontrava
exatamente nesse declive, foi a principal descoberta durante essas
escavações. Êle é formado por duas carreiras de mausoléus bem
conservados, separados por uma passagem estreita.

(269) GIACOMO GRIMALDI, Cod. Ambros. A. 178, editado por C.


HUELSEN (Miscell. 1910, p. 257 e segs- — Cod. Barb. lat. 2732, 2733, Bibi.
Vat. H. LIETZM ANN, op. cit., p. 311 e segs.
Enquanto que até então só se tinha conhecimento de câmaras
sepulcrais isoladas sob a Basílica, descobriu-se agora uma vasta
necrópole. As sepulturas datam dos séculos II e III d.C. As
duas primeiras carreiras estão dispostas ao longo do declive,uns
8 m abaixo da atual igreja, na direção doseu eixo longitudinal,
e de tal maneira que ascendem ligeiramente para oeste, ou seja,
para o lugar sob o altar.
O fato de que Constantino teve de destruir todo êsse com­
plexo, onde existiam verdadeiras obras de arte, prova mais uma
vez que um motivo especial o levou a edificar a igreja exatamente
nesse lugar. E isso tanto mais, levando-se em conta que na An­
tigüidade a violação de cemitérios era considerada ato especial­
mente grave e que Constantino só pôde fazê-lo na sua qualidade
de “ pontifex maximus” (270).
Não é possível determinar precisamente qual a distância exis­
tente entre o cemitério e a célebre Via Cornéiia, junto à qual su­
põe-se estivesse situado o túmulo de Pedro (2 7 1). Não há qual­
quer vestígio seu no lugar onde se costumava procurá-la, ou
seja, sob o eixo longitudinal da igreja. Ela passava provàvel­
mente ao norte, acima da fileira setentrional de túmulos, pois
grande parte dos mausoléus dessa carreira é dotada de escadas
que conduzem para cima, de maneira que tinham, além de entra­
da inferior meridional, também um acesso de cima, da colina.
f possível, portanto, que a Via Cornéiia transitasse por ali. Ao
norte dessa estrada, fora do distrito de Nero, ficava o outro ce­
mitério neroniano, para os empregados da côrte, descoberto há
pouco e que foi mencionado acima (272).
Como já vimos, o circo de Nero, ao contrário do que se su­
punha, não se encontrava sob a Basílica, mas deve ter estado sem
dúvida alguma nas imediações, pois, no mausoléu mais oriental,
pertencente a um certo C. Popílio Heracla, uma inscrição expressa
0 desejo dêsse finado pagão de descansar no Vaticano, junto ao
circo, “ in vaticano ad circum” (273).

(270) Vide W. SESTO N , op. cit-, p. 156-


(271) H. LIETZM ANN, Petrus und Paulus in Rom, 1927, p. 178
e seg.
(272) V. acima p. 149 e seg.
(273) Por T Á C IT O , Ann. XIV, 4, e Historia Aug., Heliogab. 23,
bem como PLÍNIO, N at hist. X X X VI, 11, 74, está confirmado que o circo
ficava junto ao Vaticano.
Os mortos sepultados no cemitério sob a Basílica pertenciam
aos cultos mais diversos. Uns poucos cristãos daquela época
também foram enterrados, junto com seus familiares de outras
crenças, nesses mausoléus pagãos. E até todo um mausoléu cris­
tão, ornado de mosaicos com motivos cristãos e datado aproxima­
damente do século III, encontra-se em meio às câmaras sepulcrais
pagãs. É o dos Julianos, de suma importância para o estudo dos
primórdios da arte cristã (274). O importante para a nossa questão
é que êsse recinto está nas imediações, ou melhor, a poucos metros
a leste da “ confessio” . Teria o cristão que mandou edificar o
mausoléu nesse local, o desejo de ser sepultado o mais perto pos­
sível do lugar tido como o da execução ou do sepultamento do
apóstolo Pedro? Naquela época já estava bastante difundida a
tendência de se mandar sepultar junto aos túmulos dos mártires.
No entanto, é surpreendente que o nome de Pedro parece não
ser mencionado nos mausoléus do cemitério vaticano (275).
Mas, e 0 túmulo de Pedro? Ter-se-ia realmente encontrado
uma sepultura, na qual Pedro estivesse sepultado, como o anun­
ciou decididamente Pio XII na sua mensagem de Natal de 23 de
dezembro de 1950? Vimos que na época de Constantino deveria
ter exissido uma firme tradição que de qualquer maneira, neces-
sàriamente, relacionava Pedro com o lugar onde fôra erigido o
altar da Basílica de Constantino. Do contrário, seria inexplicá­
vel a escolha de um terreno tão inadequado e justamente de um
cemitério.
Extraímos as seguintes informações de publicações recentes.
Primeiramente, os dirigentes das escavações tiveram de constatar
que a indicação do Líber Pontificalis I, 176, do século VI, segundo
a qual Constantino teria coberto todo o túmulo de Pedro com
enormes chapas de bronze e sôbre isso teria erigido uma “ con­
fessio” com uma cruz de ouro, pertence ao domínio da lenda.
As excavações não só não descobriram coisa alguma semelhante,

(274) H. SPEIER, Die neuen Ausgrabungen unter der Peterskirche


in Rom (R. HERBIG, Vermächtnis der antiken Kunst, 1950), p. 199 e segs;
O. PERLER, Die Mosaiken der JuUergruft im Vatikan, 1953.
(275) W. SESTO N , op. cit., p. 155, salienta êsse ponto. A inter­
pretação dos rabiscos na parede do mausoléu dos Valérios, como inscri­
ção de Pedro, dada por M. G U AR D U CC l, Cristo e San Pietro in un do­
cumento preconstantiniano della necropoli vaticana, 1952, não é garan­
tida. V. a êsse respeito J. T O Y N B E E — J. B. W. PERKINS, The Shrine
of St. Peter and the Vatican Excavations 1956, e E. KIRSCHBAUM, Grä­
ber der Apostelfürsten, p. 23-
como também não encontraram quaisquer vestígios que pudessem
denotar uma tal ornamentação.
Por outro lado, foram encontrados, na área situada debaixo do
altar, indícios de um pequeno e baixo monumento colunar, de pos­
sível reconstituição (fig. p. 9 1), apesar de restar pouco da sua for­
ma original. Sua parede ocidental é formada pela parte central de
um sólido muro com mais de 7 m de comprimento e aproxima­
damente 2, 50 m de altura, que se estende de norte para sul. A
êsse muro é atribuída uma finalidade múltipla: por um lado,
ampara a chamada “ Memoria” , por outro, apóía uma escada que
sobe paralelamente, atrás dêle, i.e., a oeste. Sob essa escada
passava um pequeno canal de drenagem, coberto de tijolos. No lado
frontal, ou seja, oriental do muro, há um nicho não muito baixo,
de 72 cm de largura e aproximadamente 1,40 m de altura. De
ambos os lados do nicho o muro está pintado de vermelho. Duas
pequenas colunas foram erguidas a uns 74 cm do nicho. Estas
sustentavam uma lage de travertino, que estava encaixada no
muro. Acima dessa chapa acha-se um nicho mais largo e mais
profundo — um como que segundo andar — , cuja recomposição
exata, porém, não é mais possível. Uma vez que muitos tijolos
do canal apresentam o sinête do imperador Marco Aurélio, é pos­
sível fixar a data de origem do pequeno monumento na segunda
metade do século II, se realmente foi construído ao mesmo
tempo que o canal. Isto se enquadraria bem com a data na
qual Caio afirma poder mostrar o tropaion de Pedro no Vaticano.
No entanto, torna-se necessário lembrar que aquêle texto em si
não nos permite decidir se o tropaion é o lugar do martírio ou do
túmulo, ou mesmo só de um monumento (276). Uma vez que
Constantino evidentemente orientou tôda a sua Basílica por êsse
lugar, podemos, partindo das verificações constatadas acima sôbre
0 terreno inadequado, admitir com certa probabilidade que real­
mente estamos perante aquele íropafon de Caio (2772). Isto, na-

(276) Isto não é suficientemente observado na discussão atual. As


escavações talvez possam decidir aquela questão controvertida, mas não
podem partir da suposição de que o texto de C aio em si garante uma oV
outra interpretação da palavra “tropaian”.
(277) Isso também admite T . KLAU SER, Die römische Petrustra­
dition, 1956, 0 qual indica a data de “ o mais tardar 165” ; igualmente A.
V. GERKAN, Zuden Problemen des Petrusgrabes, 1958, que prefere o pe­
ríodo por volta de 180. Está, portanto, definitivamente comprovado que
a nota do Liber Pontificalis, segundo a qual o papa Anacleto teria ed ifi­
cado ainda no século 1 uma memoria para Pedro, está errada. K. HEUSSl,
“ Papst” Anacletus und die Memoria auf dem V atikan” {Deutsches Pfar­
rerblatt 1949, p. 301 e segs.), já frisou a im possibilidade daquela nota.
turalmente, pressupondo-se que as datas da origem do canal e
do monumento coincidam no mesmo ano (Espl. Vat. I, p. 103
e seg.) (278).
Posteriormente, ao final do séc. III, foi edificado um muro
cinzento no lado norte do monumento, providência que se tinha
tornado necesária por causa da ampliação do cemitério e do apa­
recimento de numerosos mausoléus nas imediações. Nesse muro
há um grande número de inscrições de peregrinos, que indicam
uma época relativamente antiga, em que aparece o monograma
do nome de Cristo e se fazem votos de que os defuntos “ vi­
vam em Cristo” (279). É de estranhar que, pondo de lado a
hipótese de um criptograma, a ser ainda mencionada, não se
consiga encontrar em lugar algum o nome de Pedro, ao passo
que os grafitos da Via Ápia invocam Pedro e Paulo. Os que
apóiam a identificação do monumento com o tropaion de Pedro,
mencionado por Caio, explica êsse fato da seguinte maneira; a
relação dêsse lugar santificado admitida com Pedro era sem dis­
cussão, enquanto que as inscrições de Pedro e Paulo na triclia
da Via Ápia, onde eram celebrados os “ refrigeria (280)., não
estavam fixadas a um lugar santo, sendo então necessária a
menção dos nomes. Em todo caso, a existência de grafitos
cristãos nesse muro cinzento setentrional prova que no tempo de
sua inscrição deveria haver uma relação precisa para com a san­
tidade do lugar. A sua data, porém, deveria ser determinada
com mais exatidão. De qualquer maneira, elas não podem da­
tar de uma época muito antiga, como o demonstra o monogra­
ma de Cristo.
No relatório oficial, tais grafitos não foram examinados a
contento. Por isso causa satisfação saber que na já menciona-
íia segunda fase da pesquisa, o exame dos grafitos aparece
em primeira plana, em seguida ao túmulo de Pedro. Tornaram-se

(278) p. LERMERLE, H. T O R P e E. SCHÄFER (V. acima obs. 260.)


admitem que se trata de construção pagã que não tem nada a ver com
0 tropaion de Caio. Ao ceticismo tendem H. LA ST, “ St. Peter, T he Excava­
tions under his Basilica in Rome and the Beginnings of Western Christen­
dom” (Procedings of the Classical Assoc. 1959, p. 50 e seg. e especial­
mente E. DINKLER, Theolog. Rundschau, 19593, p. 315 e seg-
(279) Victor cum sui (s) “ Gaudentia vibatis in Christo. Paulina
vivas, N icasi vibas in Christo” etc. (Espl. Vat. 1951, I, p. 129; II, tav.
LVII a, b; LVIII, a, b).
(280) V. acima, p. 145.
acessíveis graças a uma volumosa obra, repleta de nítidas fotogra­
fias com comentários (2 8 1). A autora pretende provar que os
cristãos se serviram, como ocasionalmente também em outros lu­
gares, de uma escrita simbólica secreta. A existência de dois
pequenos traços horizontais junto à base inferior da letra grega
ro, contida no monograma de Cristo, idêntica ao P latino, resul­
taria na leitura de Pe, ou seja, das letras iniciais do nome de Pe­
dro. Caso essa interpretação fôsse confirmada (282), mediante
cuidadoso exame, ainda coisa alguma ficaria provada acêrca da
real existência do túmulo de Pedro. Apenas se constataria que
os cristãos criam na sua existência, num período que ainda pre­
cisaria ser determinado, mas que, em todo caso não podia ser
muito antigo de acôrdo com o testemunho dos grafitos.
O mesmo se pode dizer do grafito no muro vermelho. Êste
ainda não desempenha qualquer papel no relatório das pesquisas,
uma vez que justamente aquêle pedaço do muro desabou durante
as escavações e só posteriormente foi encontrado entre os escom­
bros por um dos chefes do serviço. Além disso, não há cer­
teza quanto à interpretação das letras nêle contidas. A linha supe­
rior pode ser interpretada como Pedro (283). Para as letras lo­
calizadas abaixo {epsilon, nü, iota), porém, foram sugeridas duas
interpretações diferentes e que se contradizem diretamente (“ Pe­
dro está aqui” , “ Pedro foi embora” — junto à Via Ápia), das
quais a segunda adiciona uma quarta letra (284). Sejam quais
forem as palavras lá escritas, só poderiam estar relacionadas com
a fé ligada ao pequeno monumento, após a sua construção. E
as comunicações das agências telegráficas, de que o grafito dêsse
pedaço de muro vem provar que Pedro está sepultado ali, são
deveras enganosas.

(281) M. GUARDU CCI, I graffiti sotto la confessione di S. Pietro


in Vaticano, 1959.
(282) Ela é negada por J. T O Y N B E E in The Dublin Review 1959,
p. 234 e seg.
(283) A. FERRUA, “ La storia del sepolcro di S. Pietro” {La Civi-
m Cattolica, 1952), p. 25, e E. KIRSCHBAUM, Die Gräber d.
p. 68.
(284) M. GU AR D U CCI lê eni e o interpreta no sentido de énesti,
o que filològicamente é em todo o caso possível. J. CARCO PIN O lê en­
tre « e í um rf e interpreta: endei, êle foi embora, um modo de expres­
são em todo o caso não usual.
■ 'S’',-; i.sh:KáiS,,Jiffiãí

Reconstrução do monumento situado sob o altar da Basílita


de São Pedro.

Chamamos expressamente a atenção para o fato de que se


trata apenas de uma reconstrução presumível, baseada no rela­
tório de pesquisas do Vaticano. Pouco resta do primitivo mo­
numento. V. Espl. Vat. 19 51, I, G. (aí também a tentativa de uma
reconstrução do andar superior) e as fotografias em J, TO IN BEE-
J-B-W . PERKIN S, The Shrine of St. Peter and the Vatican Ex­
cavations, 1956, e E. KIRSCHBAUM, Die Graeber der Apostel-
fiirsten, 1957. Convém notar que a lage não estava a mais do que
1,40 m do chão.
De qualquer maneira, podemos afirmar por enquanto (não
com a máxima certeza, mas, dadas as razões mencionadas, com
probabilidade) que o tropaion de Caio foi encontrado. No to­
cante a Pedro, é êste o único resultado positivo das escavações;
uma confirmação do testemunho literário de Caio, que, porém,
nos conduz só até o fim do século II, e cuja correção — indepen­
dentemente da palavra tropaion — não foi contestada. Até aqui
é duvidoso se Caio entende por tropaion o lugar da execução,
ou um monumento, ou uma sepultura. Caso ficasse provado que
a identificação de tropaion com o monumento colunar é correta,
tal palavra não subentenderia só um lugar, mas uma estrutura
nêle levantada, se não um túmulo, pelo menos um monumento
comemorativo. Nesse caso deveríamos admitir também que sob
a Basílica de S. Paulo se encontra um monumento idêntico, o que,
porém, deveria ser confirmado pelas escavações.
Mas que é que se achava sob êsse tropaion de Pedro, Seria
um túmulo verdadeiro? Esta é outra pergunta que não encontra
resposta na identificação do tropaion, não obstante as notícias
dos diários e revistas ilustradas o afirmarem pura e simples­
mente. É certo que na frente do nicho há uma cavidade de 80
cm de largura por 80 m de comprimento, coberto com uma lage
espêssa. Poderíamos classificar êsse sítio quadrilátero, que H.
Grisar há mais de 50 anos, já tinha visto, de “ túmulo de Pedro” ?
■\s dimensões poderiam levar-nos a supor que suas relíquias fo­
ram posteriormente alojadas nesse local, dentro de uma urna(285).
Não compreendo que se possa falar sem mais nem menos de uma
descoberta do túmulo de Pedro, uma vez que de qualquer ma­
neira não existe mais vestígio algum de túmulo. Na melhor das
hipóteses, poder-se-ia dizer que é possível supor a antiga exis­
tência de uma sepultura normal em profundidade muito maior,
caso esta tivesse sido realmente cortado pelo muro vermelho (Espl,
Vat. I, p. 139). Um dos quatro dirigentes das escavações também
admite, em uma publicação separada, que não se trata da descoberta
de um túmulo, mas de uma “ intrincada colheita de indícios" (286).
Quais são, porém, os motivos que conduzem a essa suposi­
ção? Ao redor do sitio quadrilátero vazio existe uma série de
túmulos subterrâneos, três dos quais a uma certa profundidade.

(285) De acôrdo com J. CARCOPINO, Etudes d’histoire chrétienne,


1953, p. 179 e «eg., os ossos de Pedro teriam sido recolhidos a uma urna
já no início.
(286) E. KIRSCHBAUM, Die Gräber der Apostelfürsten, 1957, p. 9.
O mais profundo (assinalado no relatório por um gama), no qual
fôra sepultado um pequeno menino, cujo esqueleto subsiste, foi
cortado pelo muro vermelho quando êste se construiu, e ficou
danificado. O cálice de libação nêle encontrado demonstra que,
ao que tudo indica, o túmulo não é do tempo de Nero (287). Por
outro lado, procede da metade do século 11 d.C., fato comprovado
por um tijolo do ano 123 d.C. aproximadamente (288). Caso
houvesse um túmulo neroniano, êste deveria estar muito mais
abaixo. 0 outro túmulo, particularmente pobre (assinalado no re­
latório por um theta), está coberto com seis tijolos, dos quais
um apresenta o sinête de Vespasiano, não tendo sido usado, por­
tanto, antes do ano 70. Mas, levando-se em conta a idade do
túmulo g {gama), datado apenas do século II, devemos conside­
rá-lo como tendo sido reempregado posteriormente (289). Con-
cluimos, pois, que nenhum dos túmulos dessas imediações atinge o
período neroniano, e até que dificilmente poderiam datar do sé­
culo I (290). Conseqüentemente não há provas de que êsse es­
paço tenha sido usado como cemitério no tempo de Nero. Os
elementos que foram apresentados em defesa daquela hipótese fo­
ram os seguintes: o desvio da orientação da soleira em frente ao
nicho, em relação à orientação do muro; os restos de um muro
que poderia ter servido para a proteção da parede lateral do su­
posto túmulo; 0 achado de um candeeiro de azeite; e, especialmen-

(287) A indicação do emprêgo de um cálice de libação pelos cris­


tãos, em S- Sebastião, no século IV, que tornaria provável o caráter cristão
dêsse túmulo, está desvalorizada pela constatação de A. v. GERKAN, de
que no século I não existiam cálices de libação nem mesmo em túmulos
gentílicos (Zuáen Problemen des Petrusgrabes, op. cit-, 1948). Também
T O Y N B E E -W . PERKINS, op. cit-, p. 148 e segs., pensam tratar-se de
uma sepultura pagã.
(288) Devemos essa indicação a A. PRANDI, La zona archeologica
della confessione vaticana, 1957.
(289) E. KIRSCHBAUM, Die Gräber der Apostelfürsten, 1957, p.
85 e seg., afirma, ao contrário, que mesmo o homem mais pobre poderia
adquirir seis telhas novas. Nesse caso o túmulo pertencia aos anos de
69 a 79 e, portanto, também não ao período neroniano.
(290) Que se reportem ao século I é negado sob indicação da re­
construção do terreno por A. v. GERKAN, “ Kritische Studien zu den
Ausgrabungen unter der Peterskirche in Rom” {Trierer Zeitshchrift 1954,
p. 26 e s e g s .); Zu den Problemen des Petrusgrabes, op cit., p. 79 e segs.,
e T . KLAUSER, “ Die römische Petrustradition im Lichte der neuen Aus­
grabungen unter der Peterskirche, 1956” (Contra os seus argumentos
V ide E. KIRSCHBAUM, Die Gräber der Apostelfärsten, 1957, p. 98 e segs.).
Também A. PRANDI, La zona archeologica della Confessione Vaticana.
I monumenti del II. secolo, 1957, afirma que nenhum túmulo pertence ao
século 1.
te, 0 fato de que o fundamento do muro vermelho teria passado
sôbre o lugar do suposto túmulo (291). Afirma-se que todos êsses
indícios demonstram que a sepultura de Pedro encontrava-se ai,
em alguma ocasião, e que já no século I cristãos teriam sido se­
pultados junto a ela. Não há provas nem do seu caráter cristão
nem da idade indicada dos referidos túmulos.
No prolongamento subterrâneo do nicho foram encontrados
alguns ossos (Espl. Vat. I, 12 1, fig. 87). Mas não é possível
fundamentar sôbre êles uma prova adicional, como, aliás, admi­
tiu lealmente Pio XII. É claro que não é surpreendente encon­
trar ossos em um cemitério. Além disso, uma sepultura do pe­
ríodo neroniano deveria estar muito mais abaixo daquela em
que foi achada a ossada (292). Nas publicações anexas ao rela­
tório e acessíveis a todos, é lamentàvelmente atribuído aos ossos
um papel muito mais preponderante do que no próprio relató­
rio (293). Posteriormente foram êsses ossos examinados e o re­
sultado reza que, em primeiro lugar, pertenceram êles a um ho­
mem, e, em segundo, a um homem robusto (Pedro, portanto?)
(294). Ao se visitar a Basílica de S. Pedro é provável que se ouça
que os estudos provam que êsses ossos correspondem ao crânio de
Pedro conservando em Latrão. A explicação que se dá de serem
tão poucos os ossos sob o muro vermelho é de que foram aloja­
dos ali às pressas durante a construção do muro. O pequeno nú­
mero de ossos relaciona-se com a translação parcial das relí-

(291) Isso afirma J. R U YSSCH A ER T, “ Réflexions sur les fouilles


Vaticanes” (Revue d’Hîst. eccL, 1953, p. 597), e corn energia especial E.
KERSCHBAUM, Die Gräber der Apostelfürsten, 1957, p. 87. A. PRANDI
(V. obs. anterior), p. 218, indica o fato da elevação. Por outro lado,
T . KLAUSER, Die römische Petrustradition, 1956, op. cit., p. 55 e segs.,
e A. V. GERKAN, Zu den Problemen des Petrusgrabes, 1958, op. cit-, p.
89 e seg., são de opinião que o “ buraco do muro” , existente nesse lugar
não decorre de uma construção intencional, mas de desmoronamento.
(292) Isso é admitido por E. KIRSCHBAUM, Gräber der Apostel­
fürsten, p . 88.
(293) Assim já J. R U Y SSC H A ER T , op. cit., R .H .E . 1953, p . 624
e segs.; desde então principalmente J. T O Y N B E E - J. B. W. PERKINS,
The Shrine of St. Peter and the Vatican Excavations, 1956, e E. KIRSCH­
BAUM, Dse Gräber der Apostelfärsten, 1957, p. 198 e segs. Por outro lado,
não obstante a sua opinião positiva quanto à questão do túmulo de Pedro,
J. CARCOPIN O, Etudes d’histoire chrétienne, 1953, p .229 e seg., mostra-se
bastante cético no tocante à autenticidade dos ossos encontrados. Ela
também não é compatível com a sua tese de que só uma urna teria sido
depositada.
(294) E. KIRSCHBAUM, “Das Petrusgrab” (Stimmen der Zeit, 1952,
p .406), e Gräber der Apostelfürsten, 1957, p.l9 8.
quias, e não total. Cora essa mudança da clássica tese da
transladação pretende-se também levar em conta o argu­
mento de que um efetivo transporte do esqueleto do Vaticano
para a Via Ápia não é concebível (295). A transladação par­
cial talvez seja imaginada sob a forma de transferência do crânio
(296), em conexão com as prescrições do direito romano, segundo
as quais o local de um túmulo é determinado pela presença da cabe­
ça (297), e com a conservação de uma relíquia considerada a ca­
beça de Pedro, na Basílica de Latrão.
Além disso, lembra-se que no muro setentrional, coberto de
grafitos, fôra embutida, sob Constantino, uma urna de már­
more de 77 cm de comprimento por 30 cm de largura e altura,
achada durante as escavações. O seu conteúdo consistia de uma
massa indefinível de terra e todos os tipos de restos imagináveis
(298). A afirmação de que teria contido uma vez os ossos do
apóstolo e que fôra esvaziada em uma certa ocasião, constitui
uma hipótese indemonstrável. A presença dessa urna realmen­
te ocasionou as mais variadas suposições. A mais difundida
diz que Constantino removeu da Via Ápia os restos mortais de
São Pedro, principalmente a cabeça, alojando-o nesse cofre
(299). 0 fato de que atualmente não contém mais quaisquer ossos
é explicado pelo saque dos sarracenos em 846 (300) ou pelo reco­
lhimento da cabeça, naquela época, para a Basílica de Latrão(301).

(195) V. acima, p. 141 e segs.


(296) V. acima, obs. 225 à pag. 143.
(297) Assim principalmente E. KIRSCHBAUM, Die Gräber der
Apostelfärsten, 1957, p. 199 e segs.
(298) Descrição exata: Espl. Vat. 1951, I, p. 162; II, tav. LVII b.
(299) Assim A. FERRUA, “A la recherche du tombeau de S. P ier­
re” (Etudes 1952, p. 44 e se g s.); E. KIRSCHBAUM, Die Gräber der Apostel­
färsten, 1957, p .203; um pouco diferente J. CARCOPINO, op. cit-, 230 e
segs., que conta primeiramente com um alojamento no mausoléu dos Ju­
lianos, ,no qual se encontra a representação do Cristo-Hélios; os ossos, por
assim dizer, só teriam sido escondidos nessa caixinha sob G regório, o
Grande, para protegê-los contra pilhagens, das quais mesmo assim se
tornaram prêsa.
(300) Ann. Bertiniani, no ano 846. — Tanto os godos, no ano 410,
como os vândalos, no ano 455, pouparam os túmulos dos apóstolos. No
entanto, perguntamo-nos se os elefantes que Elagabalo trouxe a Aélio
Lampsídio, (cap. 22) no Vaticano, não teriam destruído o lugar.
(301) Assim E. KIRSCHBAUM, “ Die Reliquien der Apostelfürsten
und ihre Teilung. Zur Geschichte einer alten Überlieferung” (Xenia Piana,
1943, p. 51 e segs. e Die Gräber der Apostelfärsten, 1957, p. 204 e segs. (V .
nesse taconte H. GRISAR, “ Le teste dei S .S . Apostoli Pietro e Paolo” ,
Civtltà Cattolica 1907, p. 444 e segs. J. R U Y SSC H A ER T , Reflexions sur
les foüilles vaticanes, R .H .E . 1953, p. 625, mostra-se cético nesse sentido.
Os próprios cientistas católicos dificilmente alimentavam a
esperança de que se encontrassem autênticas relíquias de Pedro.
E co.ntudo, 0 católico piedoso, homem do povo, entregava-se a
uma esperança ilusória, acreditando, como tantos outros há sécu­
los acreditavam, ajoelhar-se sôbre os restos mortais do príncipe
dos apóstolos, na atual Basílica de S. Pedro. Do ponto de vista
cientifico, só nos resta perguntar se na época de Constantino real­
mente ainda existiam os ossos de Pedro. E sôbre isto, nada sa­
bemos.
Quem ler imparcialmente os relatórios das mais recentes es­
cavações, deve admitir que tôda a questão arqueológica que tem
em mira a sepultura de Pedro torna-se ainda mais complexa do
que já o era quando se supõe que os ossos de Pedro deveriam es­
tar sob 0 monumento encontrado. Um ardgo publicado por um
dos chefes das escavações logo após a divulgação do relatório ofi­
cial, confirma o que acabamos de dizer. Êste chega até a inda­
gar, se bem que com extrema cautela, se os ossos não teriam sido
transladados duas vêzes de Via Ápia para o Vaticano. Dadas as
pequenas dimensões do sítio quadrilátero em frente ao muro im­
punha-se a lembrança de uma antiga tradição, segundo a qual
Pedro não teria sido sepultado originalmente alí, após o seu mar­
tírio, mas na Via Ápia, juntamente com Paulo (302). Caímos,
portanto, na antiga tese negada por quase todos (303). Fôsse
como fôsse, na segunda metade do século II as relíquias de Pe­
dro teriam sido alojados no Vaticano, em uma pequena mma. Aí
teriam permanecido até 258, sendo transferidas (outra vez) para
a Via Ápia. Finalmente, sob Constantino, teriam sido recondu­
zidas uma segunda vez.
Esta e outras hipóteses semelhantes complexas — recente­
mente se tem acreditado que os restos mortais de Pedro foram
sepultados, já sob Anacleto (76-88), em uma urna no Vaticano
(304) — demonstram claramente quantas dificuldades se nos apre­
sentam se admitirmos que os ossos de Pedro hajam descançado
num lugar como o descrito pelo relatório.

(302) A. FERRUA, op. cit.. Etudes 1952, p .43; no artigo da Civiítà


Cattolica, p. 17, mencionado acima, êle parece, ao contrário, aprovar a
negação dessa tese.
(303) V. acima, p. 136. Em outros pontos, os artigos de FERRUA
(principalmente Etudes) são antes mais reservados do que a publicação
oficial.
(304) Assim J. CARCOPINO, Etudes d’histoire chrétienne, 1953,
p. 179.
Em lugar de resolver as antigas questões, as escavações mais
recentes levantam um número cada vez maior de perguntas, se se
pensar que Pedro estava sepultado precisamente nesse lugar.
Teria o muro vermelho realmente cortado a suposta “ sepultura de
Pedro” , como a do menino? Seria concebível tal disposição do
tropaion?

Vimos como é difícil de defender a tese da transladação


(mesmo parcial), por volta de 258, para a Via Ápia, sem pensar
na que advoga o sepultamente original naquele lugar.
Por isso pergunto: Não encontraríamos uma explicação mui­
to mais simples para tudo se considerássemos o monumento co­
lunar como 0 tropaion de Caio, porém primordialmente só no sen­
tido de um monumento comemorativo do lugar do martírio, com
o qual cedo se terá associado a idéia de uma sepultura, apesar
da ausência de relíquias? As vítimas da perseguição nero-
niana devem ter sido sepultadas em algum lugar no Vaticano —
talvez em uma vala comum. A cavidade sob o tropaion não po­
deria ser simplesmente um cenotáfio, semelhantemente ao que su­
pomos talvez existir na Via Ápia (305)? Nesse caso os três lu­
gares comemorativos: no Vaticano, na estrada para Ôstia e na
Via Ápia não seriam sepulturas, mas locais comemorativos e, con-

(305) A denominação de sepuíchrum é dada a cenotáfio; T Á C IT O , Ann


II, 83. Também A. M. SCHNEIDER, op. cit-, Theol. Literaturzeitung
1952, p . 332; E. PETE R SO N , “ Über das Petrusgrab” (Schweiz. Rund­
schau 1952, p . 328 e seg.); H. I. MARROU, Dictionnaire d’archéologie
chrétienne et de lit,, col. 3344, contam com um cenotáfio; também T.
KLAUSER, Die römische Petrustradition im Lichte der neuen Ausgrabun­
gen unter der Peterskirche, 1956, p.71 e seg., explica o fato de que pos­
teriormente procurou-se nesse lugar o túmulo jamais conhecido e jam ais
encontrado, com a suposição dos cristãos romanos, provàvelmente pro­
pagada já nos primeiros tempos, de que os restos de Pedro deveriam
estar em qualquer lugar nas cercanias mais ou menos próximas, vis­
to ter êle sido executado aí. — Os argumentos de J. CARCOPINO,
op. cit., p. 174 e seg., de J. R U YSSCH A ER T, op. cit-, p. 593, de
J. T O Y N B E E - J. W . PERKINS, e de E. KIRSCHBAUM, Die Gräber der
Apostelfürsten, 1957, pp. 87 e 112, não são convincentes. Êles alegam ser
inconcebível que se tenha erigido um simples monumento comemorativo
exatamente nesse lugar, i.e ., sôbre um cemitério, e não antes em ura
outro lugar do Vaticano. Ou, vice-versa, alegam ser inconcebível que
sepultamentos cristãos tivessem sido efetuados posteriormente em um lu­
gar comemorativo sem a presença dos ossos- Ao primeiro argumento res­
pondemos; 0 lugar do martírio poderia ter sido localizado com bastante
precisão por uma tradição; ao segundo basta que, a partir le certo
momento, o lugar do martírio tenha sido identificado como o lugar do
sepultamento para se explicar que cristãos quisessem ser sepultados nesse
local.
der-se-ia explicar o aparecimento de um local de culto comum na
Via Ápia, ao lado dos locais separados, alegando-se que se tinham
tornado difíceis as reuniões nos cemitérios pagãos na colina do
Vaticano e na estrada para Ôstia e que havia necessidade de hon­
rar ambos os apóstolos em um só lugar. Mas poderia acontecer
também que uma das Igrejas cismáticas do século III houvesse hon­
rado aqui a memória dos apóstolos. Pensar-se-ia, nesse caso, nos
novacianos que também evocavam a primazia de Pedro, tanto
mais que as fontes litúrgicas parecem sugerir algo nesse sentido
(306). E então, êsse lugar comemorativo teria sido adotado pos­
teriormente por tôda a Igreja.
Tudo isto, porém, não passa de hipóteses; aliás sem hipó­
teses nada conseguiremos. No entanto, quer-nos parecer que elas
correspondem melhor aos achados arqueológicos, uma vez que só
levam em consideração dados que realmente foram descobertos.
Para provar que os ossos de Pedro de fato foram sepultados
no suposto túmulo sob a atual cúpula, seriam necessários indícios
mais seguros do que os apresentados pelas mais recentes escava­
ções. E afirmamos ainda mais: nesse caso deveriam ser exibi­
dos argumentos especialmente convincentes e absolutamente irre­
futáveis. Realmente, são quase esmagadores os motivos que con­
testam, a priori, a possibilidade de cristãos haverem sepnttddo
Pedro junto aos jardins de Nero. Como poderiam os cristãos le­
var a efeito a construção de uma sepultura justamente nesse local,
nos dias da perseguição movida por Nero (307)? Existia, afinal,
a possibilidade de destinguir os restos de Pedro entre os dos

(306) V. acima p. 141 e 145.


(307) Assim, com razão, K. HEUSSl, “ Das Grab des Petrus” {Deut­
sches Pfarrerblatt 1949, p . 82 e- segs.). E. KIRSCHBAUM, Die Gräber
der Apostelfürsten, 1957, p. 120 e seg., ao contrário, afirma entre outras,
£[ue Pedro não foi executado quando da festa nos jardins de Nero. V i­
mos, no entanto, que a interpretação de I Ciem 5 e segs. favorece essa
suposição. T . KLAUSER, Die römische Petrustradition, 1956, p. 11 e segs.
partindo de I Clem 6 .1 e segs., faz remontar a morte de Pedro da mesma
maneira ZO período daquela festa.
Embora seja certo que não conhecemos com exatidão os limites dos
jardins neronianos (E. KIRSCHBAUM, op. cit-, p .43; também J. R U Y S ­
SCH AE R T, op. c it , p . 614), não há a menor dúvida de que êles se en­
contravam nas mais próximas imediações. Totalmente improvável é a
suposição de que os cristãos tivessem solicitado o corpo de Pedro para
o sepultar! De maneira alguma podemos traçar um paralelo com José
de Arimatéia (assim E. KIRSCHBAUM, op. cit. p. 121), pois naquela oca-
outros? Não deveríamos supor que os corpos dos martirizados
tenham sido lançados em uma vala comum, se porventura não
fôram atirados ao Tibre (308) ?
Como poderia haver entre os cristãos romanos do século I
qualquer interêsse por relíquias? Na época de Nero os cristãos
esperavam o próximo íim do mundo. De qualquer sorte, não pos­
suímos o menor vestígio de um culto a relíquias, antes do martí­
rio de Policarpo, ou seja, o mais cedo possível, antes da metade
do século II, e nem se trata de Roma, mas de Esmirna (309).
Nos primeiros dois séculos ninguém deu atenção aos túmulos dos
mártires em Roma. Mesmo antes do século III não havia inte­
rêsse algum por sepulturas, e as dos bispos de Roma datam só do
início do século III, e isso mesmo, nas catacumbas de Calisto (310 ).
Caso se desse alguma importância ã posse de restos mortais de
mártires e bispos naquela época, em Roma, como se explicaria
que não temos notícia de uma sepultura de Inácio de Antioquia,
cujo desejo de ser totalmente devorado pelas feras (Rm 4 .2 ), di­
ficilmente terá sido cumprido ( 3 1 1 ) , nem do bispo mártir Telés-
foro, nem de Justino, que padeceram o martírio em Roma e eram
grandemente honrados ( 3 12 )?
A afirmação de que o culto aos túmulos deve ser mais antigo
do que o culto às relíquias, visto que tanto judeus como romanos
também celebravam os restos mortais dos seus familiares, não tem
importância alguma, pois é evidente que nos primeiros tempos os
cristãos se distinguiam justamente nesse ponto, do seu ambiente
judeu e pagão. Isto é o que demonstram os fatos mencionados

sião tratava-se, para os romanos, de um criminoso individual e o que


solicitava o corpo não pertencia a uma comunidade que era tida por
um bando de delinqüentes.
(308) Assim T. KLAUSER, op. cit., p . 70.
(309) Segundo a tese mais recente (R. GRÉGOIRE, “ La véritable
date du martyre de S. Polycarpe, 23 févr. 177” , in Anaíecta BoUandiana
1951, p . l e segs.; id., “ Les persécutions dans l’empire romain” , 1951,
p .28, 106 s.), 0 martírio de Policarpo teria acontecido posteriormente:
no ano 177.
(310) V. acima p. 146 e seg.
(311) O fato de que no século IV (CRISÓSTOM O hom. in s. mart.
Ign-, Migne, P .G ., t. 50, 587 e segs. e JERÓNIMO, De vir. ill. 16, Migne,
P .L ., t. 23, 632 e segs.) é dito que os seus restos teriam sido levados
para Antioquia prova sòmente que, numa época em que florescia o cultJ
das relíquias, a questão dos restos de Inácio tomou incremento.
(312) E. SCHAEFER, “ Das Petrusgrab” (Evangelische Theologie
1951, p. 472 e seg.), também salienta com razão êsse ponto que me parece
decisivo.
acima. E, correspondentemente, não é possível provar que se
soubesse algo do túmulo de Pedro no século I e ao menos tam­
bém na primeira metade do século II (3 13 ), pois 0 lugar de se-
pultamento dos familiares era totalmente indiferente aos primei­
ros cristãos (314 ). Dever-se-ia estudar quais as razões dessa
indiferença. Ela relaciona-se com a espera do próximo fim do
mundo, mas também com a concepção singular dos cristãos quan­
to à ressurreição, a qual difere da dos judeus (3 15 ).
Afirma-se que antes do final do século II já era conhecido
um túmulo de Pedro no Vaticano. Contra tal afirmação existe
um fato (que me parece pesar forte na balança) ao qual já
aludi (316 ) e que não foi suficientemente considerado em tôda
a discussão até o presente. Os apócrifos Atos de Pedro real­
mente não contêm dados históricos, mas lendários sôbre o mar­
tírio e sepultamento do apóstolo. Contudo, êles nos permitem
constatar 0 que se falava acêrca de Pedro no tempo em que foram
escritos, isto é, no século II. E nesse sentido é extremamente impor­
tante notar que a lenda nada sabe acêrca de um sepultamento de
Pedro em um túmulo de indigentes junto aos jardins de Nero.
Ao contrário, ela narra (apoiando-se no sepultamento de Jesus
no jazigo de José de Arimatéia que o senador convertido Mar­
celo inumou Pedro em seu próprio jazigo, após cuidadoso prepa­
ro do cadáver, sendo, aliás, repreendido (cap. 40) por isso pelo
apóstolo que lhe apareceu à noite, em alusão à palavra de Jesus,
que só os “ mortos” devem sepultar os seus mortos (Mt 8.22
paral.). Sem levar em conta a localização diferente, está de­
monstrando mais uma vez que ainda naquela época os cristãos
não só se apresentavam indiferentes em relação ao culto âs se­
pulturas, mas até 0 repeliam.

(313) Quando E. KIRSCHBAUM, Die Gräber der Apostelfürsten,


1957, p. 121, escreve “ que desde os prim eiros tempos 0 seu (de Pedro)
túmulo era conhecido no Vaticano, nas proximidades dos jardins nero­
nianos” , tal não corresponde aos fatos.
(314) Embora 0 problema não seja bem 0 mesmo, deve ser indicado
em todo caso, nesse contexto, que nem 0 lugar do túmulo de Jesus foi
reverenciado.
(315) Não está fora de cogitação que também a palavra de Jesus
“ deixa os mortos sepultar os seus mortos” (Mt 8.22 paral.) tenha exer­
cido uma influência. Os Atos de Pedro, apócrifos, em todo 0 caso, in ­
terpretam a frase, partindo da fé na ressurreição, no sentido da con­
denação de um interêsse pelo corpo morto. Quem se preocupa com um
cadáver, é êle próprio um morto-
(316) Journal Eccl. Hisí. 1956, p .238 e segs.
Na realidade, o interêsse cristão pelas sepulturas só se fêz no­
tar em Roma, quando Caio escreveu a Proclo, quando Calisto evo­
cou a proximidade do túmulo de Pedro e quando o bispo Fabião
criou um jazigo para os bispos nas catacumbas de Calisto, portanto,
na primeira metade do século III. E isto, em conexão com a ne­
cessidade de provar a apostolicidade da tradição romana, depois
que tal tendência havia surgido um pouco mais cedo no Oriente
(3 17 ).
Isto, no entanto, refere-se só ã questão da sepultura. Quan­
to ã localização dos lugares de execução, a questão assume outro
aspeto. É compreensível que a lembrança do local da execução
tenha permanecido por muito tempo, principalmente em se tratan­
do de vítimas da terrível perseguição neroniana. E também essa
lembrança talvez desaparecesse com o correr dos anos, se não hou­
vesse surgido no século III um interêsse em descobrir justamen­
te os túmulos de Pedro e de Paulo, considerados há muito tempo
os fundadores da Igreja. Êles naturalmente foram procurados
onde a tradição ainda viva e fixada por escrito por Tácito (no
que se refere a uma parte das vítimas neronianas) localizava a
execução (318 ). As últimas escavações revelaram que naquela
área ou em suas proximidades existia então, i.e., no século I I I d.C.,
e havia mais de cem anos, um cemitério pagão. Assim era tanto mais
lógico unir-se o lugar da execução ao posterior cemitério, como
local de sepultamento (319 ).
Provàvelmente devemos supor uma evolução idêntica para a
tradição do túmulo de Paulo, localizado em um cemitério na di­
reção dos locais de execução das Tre Fontane. Pois S. Paulo
encontra-se também nas cercanias de uma necrópole pagã. Co­
mo cidadão romano, Paulo provàvelmente não foi executado no
mesmo lugar que Pedro e as outras vítimas.
Chegamos assim à seguinte conclusão que pode ser conside­
rada simultâneamente como final de todo êsse capítulo sôbre Pe­
dro, o mártir: As pesquisas arqueológicas não nos permitem re­
solver a questão da estada de Pedro em Roma, quer negativa

(317) Por isso as listas dos bispos de Roma iniciam a deposiüo


martyrum e a deposilio episcoparum na primeira metade do século III-
(318) Ann. X V, 44.
(319) A suposição de H. GRÉGOIRE, “ Le tombeau de Valerius Her­
ma (Hermas) et 1’inscription relative à S. Pierre” (La nouvelle Clio 1952,
p . 399 e seg.), segundo a qual os cristãos, procurando o túmulo de Pedro,
o teriam localizado no mausoléu dos valérios, é hipotética e pouco pro­
vável.
quer afirmativamente. O túmulo de Pedro não pode ser identifi­
cado. As provas efetivas para 0 martírio de Pedro em Roma
provêm ainda dos testemunhos literários indiretos, e concluímos
assim que, ao que tudo indica, Pedro realmente estêve em Roma,
tendo sido executado por Nero. As escavações favorecem a hipó­
tese do suplício de Pedro na área do Vaticano.
Resumindo tôda a nossa parte histórica, cujo final acabamos
de alcançar, devemos dizer que, durante a vida de Jesus, Pedro
ocupou uma posição relevante entre os outros discípulos; que após
a morte de Jesus êle presidiu nos primeiros anos a comunidade
de Jerusalém; que se tornou então dirigente da missão judeo-
cristã, que nessa qualidade chegou a Roma, numa época para
nós indeterminável, mas provàvelmente ao fim de sua vida, vin­
do a falecer como mártir sob Nero naquela cidade, após muito
breve atividade.
Lembrar-nos-emos dessas conclusões históricas, ao passar­
mos agora para a questão teológica do primado de Pedro e da
sua importância para a igreja dos séculos seguintes.
A QUESTÃO EXEGÉTICO-TEOLÓGICA

O Problema

Partiremos da exegese da palavra de Jesus em Mt 1 6 .1 7 e


segs.: “ Tu és Pedro, e sôbre esta pedra edificarei a minha Igre­
j a . . . “ No primeiro capítulo limitar-nos-emos à questão estritamen­
te exegética: Que posição ocupam aquelas palavras nos hmites da
tradição sinótica? São, realmente, autênticas palavras de Je­
sus ou foram-lhe atribuídas pela igreja? No primeiro caso:
Que queria Jesus dizer com elas? Surge um problema espe­
cial, visto que a declaração de Mt 1 6 .1 7 diz respeito ao fu­
turo: edificarei a minha Igreja. Também os imperativos de am­
bas as passagens paralelas, mais próximas à nossa, a ordem
em Lc 2 2 .3 1 e seg., “ fortalece os teus irmãos", e a incumbência
do Ressurreto em Jo 2 1 .1 7 , “ apascenta as minhas ovelhas” , refe­
rem-se ao tempo após a morte de Jesus. Estaria subentendido
com isso que, na sua predição de Mt 16 .18 (16, 17 ), Jesus pen­
sava em séculos? Teria êle em mente a Igreja de todos os tempos
ou só a Igreja que deveria ser edificada então, na época apostó­
lica, i.e., durante a vida do apóstolo Pedro, após a morte de Cris­
to? Também essa questão é, de início, puramente exegético-his-
tórica.
Depois de respondidas essas perguntas, temos de examinar,
num segundo capítulo dogmático-teológico, a seguinte questão:
Supondo-se que a exegese revelasse que Jesus teve em mente só
a época de Pedro, não existiria uma possibilidade legítima de
estender, apesar disso, aquela predição e aquela incumbência para
além do tempo que tinha sido visado por Jesus, isto é, para além
do tempo da fundação da Igreja, e aplicar as suas palavras a
tôda a História da Igreja, até os nossos dias?
O problema da concepção do tempo no Nôvo Testamento, de
que tratei em outro livro tem aqui oportunidade de aplicação bas-
tante concreta. Seria 0 tempo da fundação determinante para 0
período posterior, no sentido de representar o fundamento único
e permanente, sôbre 0 qual se baseia, de uma vez por tôdas, a
construção tôda do edifício futuro? Ou seria ela apenas deter­
minante no sentido de que o que aconteceu no início se repete in-
cessémtemente através de todos os períodos da história da Igre­
ja, de maneira que as predições e ordens pronunciadas por Je­
sus para 0 tempo da fundação apostólica, devessem ser simples-
m.ente retransmitidas, na mesma forma, como ordens aos cristãos
do futuro?
Devemos observar, de antemão, que não temos o direito de
simplificar por demais 0 problema, respondendo precipitadamente
com um simples sim, ou um simples não. Na realidade, o problema
é extremamente complexo, para ser resolvido de um modo tão fácil.
De maneira alguma podemos generalizar de antemão: Tudo 0 que
foi dito por Jesus só se pode relacionar ao seu tempo e ao tempo dos
seus discípulos mais chegados, não sendo válido para as gerações
futuras. Mas, por outro lado, é simplificar ainda mais o preten­
der resolver a questão dizendo que tudo o que Jesus disse a um
apóstolo acêrca da Igreja tem de ser interpretado como sendo vá­
lido simultâneamente para tôda uma cadeia de bispos chamados
sucessores dêsse determinado apóstolo. E ’ concebível uma apli­
cação aos tempos futuros da Igreja na qual se respeite 0 caráter
historicamente único da fundação. Na realidade, o problema
apresenta-se da seguinte maneira: Como estabelecer limites en­
tre 0 que é único e o que se repete?
Isto porém, significa que estamos em face de uma questão
de princípio, isto é, a da diferença de natureza entre o apostola­
do e o episcopado. São a unicidade e a irreiterabilidade, carac­
terísticas do apostolado, compatíveis com a ampliação de uma
incumbência apostólica específica a bispos posteriores? Mais
uma vez queremos abster-nos de considerar a pergunta respondi­
da, de antemão.
Finalmente, temos de examinar ainda êste problema importan­
te: E ’ justificável restringir uma palavra dirigida a um apósto­
lo a uma geograficamente limitada sucessão de bispos? Em ou­
tras palavras: Pode-se estender no tempo a aplicação destas pa­
lavras e limitá-la no espaço?

(1) O. CULLM ANN, Christus und die Zeit, Die urchristliche Zeit
und Geschichtsauffassung 2.“ edição, 1948- Ed. franc.: Christ et le Temps.
Temps et Histoire dans le Christianisme Primitif, 1947.
Não existirá algum princípio de sucessão possível ou simplesmen­
te legítimo, que não seja o comprometido com uma determinada
sede episcopal? Esta é uma pergunta que dificilmente surgiria a
partir da exegese, se a Igreja Católica Romana não proclamasse
dogmãticamente que, como príncipe dos apóstolos, Pedro trans­
mitiu a sua sucessão à série de bispos de Roma. Seria uma tal
ampliação dogmática da palavra de Jesus compatível com o re­
sultado da exegese e com o que sabemos da história do cristia­
nismo primitivo? E ’ possível limitar aquela palavra de Jesus le­
gitimamente aos futuros bispos de uma certa sede, quando justa­
mente sôbre isso a Bíblia não diz uma palavra, e nem sequer
julga necessário mencionar a estada do apóstolo naquela cidade?
Além disso, a tradição histórica sôbre um episcopado de Pedro em
Roma terá o caráter que constatamos?
E, finalmente, até que ponto o papel histórico real, desempe­
nhado pela igreja de Roma e seus bispos nos séculos II e III, jus­
tifica que 0 bispo daquela cidade continue a reivindicar para si a
palavra dirigida a Redro, e a utilizar-se dela teologicamente e
com exclusividade? Está certo que uma situação que só surgiu
no decorrer da história eclesiástica antiga, mas que na época da
fundação apostólica não existia e nem era mencionada tome aquê­
le caráter absoluto? Sabe-se que a igreja de Roma começou —
não no tempo dos apóstolos, mas no princípio do sec. II d. C. —
a desempenhar um papel liderante (aliás não fundamentado teolo­
gicamente) no seio da cristandade de então. Pode-se legitimamente
tirar dêsse fato a norma de que, em tôdas as épocas posteriores,
até 0 fim do tempo da Igreja, só o bispo que está dentro dessa ca­
deia sucessória pode dirigir tôda a Igreja? Poder-se-á, a partir dês­
se fato, dar da palavra de Jesus, a posteriori, uma interpretação
restritiva dêsse gênero, como se não existisse um único meio de
aplicar a referida passagem à atualidade? Deve-se realmente in­
terpretar a palavra de Jesus de maneira que só poderia ser cum­
prida no lugar em que um líder da Igreja exerceu temporaria­
mente um verdadeiro primado, evocando uma corrente de suces­
são a Pedro, compreendida tão parcialmente, e que só poderia
cumprir-se em todo o futuro, de modo que a conexão com o pri­
mado realizado uma vez na história seja estabelecida aa mesma
maneira parcial? , .
Uma questão puramente teológica pode ainda ser posta:
Basta basear-se em um dogma, se, como no caso o primado do
bispo de Roma não é um dogma qualquer, mas o fundamènto da
pi*etensão da Igreja romana de ser a única com o ir e ito de pro­
clamar dogmas. Nessas condições, basta isso para se justificar
êsse primado de se apresentar a si próprio como dogma?
Com estas perguntas apresentamos o problema e mostramos
como 0 aspecto teológico se prende ao exegético.
Comumente considera-se só a atualização católico-romana da
palavra dirigida a Pedro como única possivel, a qual é então
apoiada por uns, negada por outros, com uma certa naturalidade
que não conhece problemas. Examinaremos, no entanto, se a
exegese não conduz a uma outra atualização, de modo que caiba
ao apóstolo Pedro realmente uma importância “fundamental” , no
sentido etimológico, para a Igreja de todos os tempos, mas cor­
respondendo ao sentido e à finalidade daquela palavra, bem co­
mo à concepção básica do Nôvo Testamento.
A QUESTÃO EXEGÉTICA DE A4ATEUS 16, 17-19

Como acontece com a discussão em tôrno da questão histó'


rica da estada de Pedro em Roma, também a interpretação de
Mt 1 6 .1 7 e segs. tem sido perturbada seguidamente por precon­
ceitos confessionais. E ’ inadmissível que se conclúa que Pedro
tenha ou não estado em Roma, partindo-s-e do conceito que se
tenha do papado. Da mesma forma, o exame da questão da
importância da palavra sôbre a Igreja, dirigida a Pedro, não
pode ser sobrecarregada, de antemão, pelo julgamento da rei­
vindicação papal posterior. Tanto lá como aqui se deve reagir
contra a opinião popular, consciente ou inconsciente, que imagi­
na ser o reconhecimento da autenticidade dessa palavra uma
concessão à reivindicação papal ou ser a contestação da auten-
cidade um golpe especialmente eficaz contra essa reivindica­
ção (2).
A história das interpretações, que precederá ao exame do
nosso texto ensina-nos realmente que a opinião confessional se­
guidamente descoloriu a exegese e que na maioria das vêzes o
resultado já está de antemão decidido, e é posteriormente adata-
do ao texto.

1.°) História das Principais Interpretações

Não existe uma história minuciosa da exegese do nosso tre­


cho através dos séculos, desde a Patrística até os nossos tem­
pos. Tal estudo seria de grande valor, tanto para o historiador
dos dogmas como para os da Igreja. E ’ certo que em comentá­
rios antigos, bem como em obras de História eclesiástica, en­
contramos alusões às interpretações dos Padres da Igreja e dos
Reformadores.

(2) Em tempos mais recentes, a “ autenticidade” de Mt 1 6 .17 e


segs. é surpreendentemente muito limitada, justamente também por alguns
exegetes católicos- V. abaixo p. 192 e seg.. Isso é possível, com base no
princípio da tradição.
Por outro lado falta, excetuando-se um trabalho sôbre o período
da Igreja Antiga, (3) uma exposição completa e coerente das ex­
plicações da passagem. No tocante à pesquisa mais recente, foi
compilada sistematicamente pelo menos parte das diversas colabo­
rações dos últimos 50 anos, nos novos comentários e também em
artigos de periódicos (4).
Não apresentaremos uma exposição sequer aproximadamente
completa da história da exegese de Mt 1 6 .1 7 e segs. Das expli­
cações mais antigas só mencionaremos as mais típicas. Exami­
naremos em pormenor as mais recentes. Por enquanto, porém, li­
mitar-nos-emos a indicar os resultados dos estudos. Durante a ex­
plicações do texto aludiremos a argumentos isolados dos exegetas.
As primeiras tentativas de interpretação não sofrem ainda
a influência da política eclesiástica e da sua tendência de utihzar
a passagem a favor ou contra as pretenções do bispo de Roma.
E ’ só no início do século III que o Ocidente começa a atribuir à
palavra de Jesus interêsse dêsse gênero.
De qualquer maneira, poucos são, nos dois primeiros sé­
culos os vestígios de uma aplicação de Mt 1 6 .1 7 e segs. Só no
Diálogo de Justino (10 0 .4 ; 10 6 .3) encontramos uma, com cer­
teza (5), porém, só referente ao vers. 17 ; além disso também nas
Pseudo-Clementinas. Orígenes parte da sua diferenciação entre
letra e Espírito para explicar que a letra dirige essa palavra da
Rocha a Pedro, porém, o Espírito tem em vista cada um que se
torne como Pedro (6).

(3) J. LUDW IG, Die Primatworte Mt 16-18, 19 in der altkirchli­


chen Exegese, 1952.
(4) Vide ]. R. GEISELMANN, Der petrinische Primat (Mt 16-17),
seine neueste Èekâmpfung und Rechtfertigung, 1927, e especialmente K.
L. SCHMIDT, artigo ekklesia in Theolog. Wörterbuch zum N-T., editado
por Q. Kittel, também em separado, em tradução inglêsa, 1950, surgido
sob 0 título The Church (Bible Key W ords from Gerhard Kittel’s Theol.
Wörterbuch zum N .T .) ; no tocante à mais recente literatura, V ide R.
BULTM AN N, “D ie Frage nach der Echtheit von Mt 16. 17 — 19” {Theol.
Blätter 1941, p-265 e segs-) e A- OEPKE, “ Der Herrnspruch über die
Kirche Mt 16- 1 7 — ^19 in der neuesten Forchung” {Studia Theologica,
Lund 1948/50, p. 110 e segs.)-
(5) V ide E. M ASSAU X, Influence de VEvangile de S. Matthieu sur
la littérature chrétienne avant S. Iréné. 1950. Êle admite a possibilidade
de utilização por parte de Inácio e das Odes de Salomâo-
(6) ORîGEN ES ad Mt 16-18 pétra gàr pâs o Christou mathetés.
Irineu (Adv. haereses III. 18) comenta a passagem, mas só
se refere ao vers. 17, sem mencionar a palavra chave, citando, no
entanto, o vers. 21 e segs (7).
Com a interpretação de Tertuliano, já mencionada anterior­
mente (8), chegamos ao terreno da exegese influenciada pela
política eclesiástica. Manteve êle polêmica contra o autor de
um edito sôbre a ampliação do benefício da penitência, o qual,
ao que tudo indica, era o bispo romano Calisto (9). Nega Ter­
tuliano, nesse documento expressamente a explicação segundo a
qual “ o poder de ligar e desligar tivesse sido transmitido a êsse
bispo, i. e., a tôda a Igreja próxima de Pedro” (10 ). Isto sig­
nificaria “ inverter a intenção manifesta do Senhor, que conferiu

(7) W . L. DULIÈRE, “La péricope sur le pouvoir des clefs. Son


absence dans le texte de Matthieu aux mains d’Irénée” {la nouvelle Clio
1954, p .73 e segs.). deduz daî que o texto de Mateus examinado por
Irineu não continha os versículos 18— 19. Procura demonstrar que êles
foram introduzidos no Cânon em Antioquia, por volta de 190.
(8) De Pudicitia 21. V. acima obs- 200 à pág. 133.
(9) As expressões “ pontifex maximus” e “ episcopus episcoporum’%
com as quais TE R TU LIA N O denomina zombeteiramente na mesma pas­
sagem o autor do edito, que classifica de “edictum peremptorium” , ape­
sar de serem irônicas, adaptam-se melhor a Calisto, ao qual também
Hipólito acusa, nos seus Philosophoumena, de praticar displicentemente
a penitência.
Isso é, em todo o caso, muito mais provável do que atribuir o edito
ao bispo cartaginês Agripino, como o faz P. G ALTIE R “ Le véritable
édit de Calliste” , Revue d’Hist. eccl. 1927, p .465 e segs.; “ Ecclesia Petri
propinqua, A propos de Tertullien et de Calliste” , Revue d’Hist. eccl.
1928, p .40 e segs.; L’Eglise et la rémission des pèches aux premiers
siècles, 1932, p. 139 e segs.). (V. também G. B A R D Y , “ L’édit d’Agrippi-
nus, “Revue des Sciences rel. 1924, p . l e segs.). — A grande m aioria dos
pesquisadores identifica o referido bispo com Calisto; assim P. B A ­
TIFFO L, L’EgUse naissance et le Catholicisme, 1927, p . 350; id.. Cathedra
Petri, 1938, p . 175 e segs.; H. KOCH, Kallist und Tertullian, 1920; id..
Cathedra Petri 1930, p .6; E. CASPA R , Geschichte des Papsttums vont den
Anfängen bis zur Höhe der Weltherrschaft, vol. I, 1930, p.26, e especial­
mente A. HARNACK, “ Ecclesia Petri propinqua” {Sitzungsbericht der
Berliner Atcademie d. Wiss. 1927). M. GO GU EL, L’Eglise primitive,
1947, p.194, admite ser possivel a tese de P. GALTIER, mas não se de­
cide definitivamente.
(10) Quanto à expressão “ ad omnem ecclesiam Petri propinquam” ,
V. acima p. 133 a hipótese de V. KÖHLER, “ Omnis ecclesia Petri pro­
pinqua, Versuch einer religionsgeschichtlichen Deuting” (Sitzungsbericht
d. Heidelberger Ak. d. Wiss. 1937/38). — A proposição de HARNACK
(op. cit., observação anterior), de encarar omne como um êrro ortográ­
fico, em lugar de romanam, é puramente hipotética, sendo negada até
pela maioria dos pesquisadores católicos. Vide B ATIFFO L, Cathedra
Petri 1938, p. 178. — Ao contrário, K. ADAM, “ Neue Untersuchungen
über den Ursprung der kirchlichen Primatslehre” (Tüb. Theol. Quartlas-
S c h r i f t 1928, p. 169 e segs.).
aquele poder pessoalmente a Pedro” ( 1 1 ) . E Tertuliano conti­
nua: “ Que é que isso tudo tem a ver com a Igreja, e ainda mais
com a tua, Psíquico? De acôrdo com a pessoa de Pedro, tal po­
der pertence aos homens do Espírito.. . ” E ’ natural que se de­
va concluir dal que Calisto (217-22) atribua o que a Pedro fô­
ra dito em Mt 1 6 .1 7 à sua pessoa ( 12 ), e provàvelmente invocara
a seu favor a presença do túmulo de Pedro ( 13 ) . Tertuliano
nega qualquer referência da palavra aos bispos posteriores a Pe­
dro, não só romanos, mas aos bispos em geral.
Com isto, êle diverge de Cipriano que também se opõe a que
se deduza da palavra de Jesus uma fundamentação do primado do
bispo romano sôbre os demais, porém que considera todos os bis­
pos subentendidos na pessoa de Pedro. Dizendo só a Pedro que
êle é a Rocha, Jesus estaria aludindo simplesmente à necessidade
da unidade da Igreja (14 ). Cipriano desenvolveu seu ponto de
vista, já defendido anteriormente, principalmente em conexão com
a polêmica com o bispo Estêvão (254-57) ( 15 ) . Êste, portanto,

(11) Ver o texto latino na nota n.° 200, à pág. 133.


(12) De outra opinião é K. HEUSSl, “ Die Nachfolge des Petrus”
{Deutsche Pfarrerblatt 1949, p. 420 e seg.). De acôrdo com êle, Calisto
teria invocado Mt 16 só para provar o direito de todos os bispos, de per­
doar os pecados.
(13) De acôrdo com E. CASPAR, “ Primatus P etri” {Zeitschrift der
Savignystiftung für Rechtsgeschichte 1927, p .253 e segs.), Calisto não
teria invocado Mt 16 .17 e segs., mas Tertuliano é que teria dado início
à disputa para contestar aquêle, sem prever que dera com isso impulso
a uma avalancha. Tal qual posteriormente Cipriano, êle teria dado in-
voluntàriamente à cátedra episcopal romana as armas com as quais ela
haveria de defender o seu primado. Frente a essa tese, M. GOGUEL,
UEgtise primitive, 1947, p. 195 e seg., alega que, nesse caso, seria sur­
preendente que o efeito dessa argumentação de Tertuliano e Cipriano só se
tenha evidenciado tanto tempo m ais tarde.
(14) De catholicae ecclesiae unitate cap. 4 — 5. Epístolas 33, 59,
73, 75, 76, 81 e outras. Acêrca de exegese de Cipriano, V ide j. C H A P ­
MAN, Rev. bén. 1902/3, ib. 1910 e K. ADAM, “ Cyprians Kommentar zu
Mtth. 16, 18— 19 in dogmengschichtlicher Beleuchtung” {Tüb. Theol. Quar­
talschrift 1912); H. KOCH, Cyprian und der römische Primat, 1910;
Cypriartische Untersuchungen, 1926; principalmente Cathedra Petri, 1930-
(15) Certamente é possível constatar, através de todos os escritos
de Cipriano, uma interpretação uniforme das palavras d irigidas a Pedro,
sendo que sempre reconheceu o primado dêste como sinal da unidade,
mas por outro lado, sempre negou que se deduzisse daí uma posição de
primazia para os futuros bispos de Roma sôbre os bispos restantes, que
são todos sucessores de Pedro, No entanto, não fica bem clara a ma­
neira pela qual êle combina com isso a “ principalitas” que atribui a
Roma {Epístola 59, 14). P. B ATIFFO L, Cathedra Petri 1938, salienta
em tôdas as partes do seu livro o pensamento de que, segundo Cipriano,
Roma seria a “ ecclesia principalis”, unde unitas sacerdotalis exorta est-
evidentemente também apoiou-se, como Calisto, em Mt 1 6 .1 7 e
segs. para deduzir daí o seu primado sôbre tôda a Igreja, como
bispo de Roma. Firmiliano, o bispo de Cesaréia na Capadócia,
contesia, por sua vez, em uma carta a Cipriano, essa interpretação
de Estêve, segundo a qual o bispo de Roma teria direito à catedra
de Pedro, por sucessão (16 ).
Enquanto essas explicações estavam carregadas de tendências
político-eclesíásticas, a palavra de Jesus dirigida a Pedro desem.-
penhou, durante um certo tempo, um papel insignificante para a
fundamentação da reivindicação papal, até que no início da Idade
Média começou a ser usada regularmente pelos papas, como se uma
outra interpretação fôsse impossível ( 17 ). Mesmo assim é digno
de nota que os eminentes comentaristas da Igreja Antiga, que
examinaram Mt 1 6 .17 e segs., independentemente de questões po-
lítico-eclesiásticas, ponderaram outras possibilidades de interpre­
tação. Crisóstomo explica a rocha, sôbre a qual Cristo edificaria
a sua Igreja, como sendo a fé professada (18 ). Segundo Agos­
tinho, Jesus não teria visado a Pedro com a palavra rocha, mas
a si mesmo, interpretação que também será adotada por Lu­
tero (19 ). Nas “ Retractationes” (20) Agostinho escreve que no
início, sob influência de Ambrósio, êle relacionara a palavra pe­
dra com Simão, mas que não está escrito “ tu és a Pedra” , porém,
“ tu és Pedro” . Só a sentença seguinte se refere à pedra ou rocha
e aí a palavra alude evidentemente a Cristo. Êle acaba deixando a
decisão ao critério dos leitores. Podemos constatar um tal embara­
ço também em outros autores, ü. ex., em Cirilo de Alexandria. Ve­
mos, pois, que a exegese — aliás, problemática, como veremos —
empregada pelos Reformadores não foi criada só na polêmica con­
tra o papado, mas remonta a uma tradição patrística mais antiga.

ÍV. nesse sentido H. KOCH, Cynrien und der römische Primat. 19Í0-,
Cathedra Petri 1930). Se “ orincipalis” realmente deve ser entendido no
sentido de que Jesus teria fundado essa Igreja com o “ Tu es Petrus” , a
interpretação de Cipriano não pode ser considerada totalmente conse­
qüente e uniforme.
(16) Epístola 75, 17 de CIPRIANO.
(17) A exegese medieval da passagem evidentemente ainda não foi
pesquisada. Um trabalho minucioso, ainda em sua fase de preparação,
demonstrará que ela possui uma multiplicidade maior do que supomos.
(18) Vide J. CHAPMAN, Early Papacy, 72 e segs.
(19) AGOSTINH O, Serm. 76, 147, 149, 232, 245, 270, 295-
(20) L 21, 1.
Como já dissemos, é estranho que os Reformadores não te­
nham dado muita importância à questão da estada de Pedro em
Roma, se bem que Lutero revelasse estar em dúvida sôbre o fato.
Por outro lado, encontramos nêles um estudo minucioso da pala­
vra de Jesus em Mt 16 .17 e segs., mas com visitas à polêmica
anti-papal. Para Lutero, como para Agostinho, a Pedra é Cristo;
“ Essa pedra é, pois, o Filho de Deus, Jesus Cristo” . O Refor­
mador acentua que a palavra dirigida a Pedro visa só a sua fé
em Jesus, a Pedra, não a pessoa do apóstolo: “ Tu é s.. . pedra,
pois tu reconheceste o verdadeiro homem, que é a verdadeira Pe­
dra, e 0 denominaste, como a Biblia o denomina. Cristo” (22).
“ Não é na rocha.. . da Igreja Romana que se fundamenta a Igre­
ja, como 0 interpretam alguns decretos, mas na fé que Pedro con­
fessou para tôda a Igreja” (23). Calvino argumenta semelhan­
temente: as palavras que a doutrina romana relaciona com a pes­
soa de um homem se referem, na realidade, à fé que Pedro tinha
em Cristo. Por conseguinte, o têrmo pedra tanto se aplica a Si­
mão como aos outros fiéis. A união na fé em Cristo seria o fun­
damento sôbre o qual cresce a comunidade (24). Da mesma ma­
neira para Zwinglio, Pedro é o tipo do que crê em Cristo, a úni­
ca Pedra (25). Se Melanchthon relaciona a palavra com a pré­
dica e a função de pregador, isto não passa de uma modalidade
de tôdas essas interpretações (26). Em última análise, todos os
Reformadores concordam em explicar que não foi como pessoa,
mas como crente que Pedro foi chamado Pedra por Jesus. A ver­
dadeira Pedra da Igreja é Jesus Cristo.
Deixaremos de lado os séculos seguintes afim de passarmos
diretamente ao período moderno. Diremos primeiramente uma
palavra sôbre duas interpretações típicas, que se aproximam es­
treitamente à dos Reformadores, mas que procuram firmar-se exe­
gèticamente sôbre base m.ais sólida. Inicialmente temos T. Zahn,

(21) “W ider das Papsttum vom Teufel gestiftet” (WA 54, E. M Ü L­


H A U PT, Luthers Evangelien-Auslegung, tom. II, p.545 e seg.).
(22) Ib., M OLH AU PT, p.548.
(23) “ Resolutio Lutheriana super propositione XIH de potestate
papae 1519” (WA 2, E. M Ü LH AU PT, op. cit., vol. II, p.525). Outros
textos em E. M Ü LH AU PT, op. cit., vo l.II.
(24) Vide CALVINO, Commentaire, ad loc.
(25) Entre outras, prédica sôbre a providência (ZW ÍNGLIO , Haupt­
schriften, tom. II, p. 195); “ De vera et falsa religione” (ZW ÍN G LIO ,
Hauptschriften, tom. IX, p. 158 e segs.).
(26) De pcâest. et principatu Papae, c a p .22 e segs.
que acentua, de maneira idêntica à dos Reformadores, a fé do
apóstolo Pedro, mas que, por outro lado, também lembra o fato
de que Pedro é o primeiro a confessar e, por isso, ocupa uma po­
sição especial entre os apóstolos (27). O comentário de Strack­
Billerbeck aproxima-se ainda mais dos Reformadores. Parte da
suposição de que o texto grego foi traduzido errôneamente de um
original aramaico que, na realidade, diria o seguinte: “ Eu te di­
go, a ti, Pedro: sôbre esta Pedra edificarei a minha Igreja” (28).
Nessa passagem a palavra pedra portanto, não se refere a Pedro.
Jesus não teria dito: “ Tu és Pedra” , mas: “ eu te digo, a ti, Pe­
dro” etc. Ao continuar: “ sôbre esta pedra edificarei a minha
igreja” , êle estaria falando da sua dignidade de Messias,
da sua própria natureza de filho de Deus, na qual era preciso crer.
Ao final do século XIX e no inicio do século XX predomina,
porém, na pesquisa protestante, uma outra interpretação: a pala­
vra nem teria sido expressa por Jesus, mas lhe teria sido atribuí­
da em uma época e em um lugar, em que se tinha interêsse em
glorificar a Pedro. Freqüentemente a discussão mais recente
acêrca da nossa passagem gira em tôrno da questão da sua “ au-
tencidade” ou “ inautenticidade” . Pode essa palavra ter sido dita
por Jesus ou foi criada pela comunidade após a sua morte?. Co­
mo já dissemos, essa questão deveria ser independente da ligiti-
midade das pretenções papais. Na realidade, também neste pon­
to as frentes não estão dispostas de tal maneira a ser a autentici­
dade reconhecida só pelos pesquisadores católicos e negada pelos
protestantes. A discussão do problema, como acontece com a
questão da estada de Pedro em Roma, dá-se entre os próprios exe­
getas protestantes. E entre êstes não acontece que só os exege­
tas tachados justa ou injustamente de “ conservadores” defendam
a autenticidade do texto enquanto que os que são chamados justa
ou injustamente de liberais” a neguem. * E ’ mister lembrar que
mesmo críticos tão radicais como D. F. Sírauss e F. C. Baur ad-

(27) Vide T . ZAHN, Das Evangelium des Matthäus, 4.® edição, 1922,
ad loc.

(28) Kommentar z. N .T . aus Talmud und Midrasch, tom. I, p.732


e segs- Jesus teria dito; Garn ani amar lekd aíhá Petros. O tradutor ter a
interpretado, por engano, athá como sujeito de uma nova sentença, en-
’q uanto que de fato seria só repetição do pronome da 2.“ pes. do sing.,
já contido no leká- — Idênticamente G. GLOEGE, Reich Gottes und Kirche,
1929, p . 274 e seg.
mitiram a autencidade como algo evidente. Por outro lado há
exegetas católicos que a limitam bastante.
Só em fins do século passado é que estudiosos do Nôvo Tes­
tamento, principalmente H. J. HoUzmann, negaram decididamen­
te que se deva atribuir a palavra a Jesus, já que é impossível que
êle tivesse falado dessa maneira se não tencionava fundar Igreja
alguma. O trecho parece ter adquirido sua forma atual só no sé­
culo II. A consciência eclesiástica que ai se expressa já seria,
em princípio, católica. Holtzmann vai mais longe e chega a afir­
mar que estaríamos frente ao primeiro sinal da jactância roma­
na (29). Tôda a critica do início do século XX é regida por es­
sa concepção e seria demais enumerar aqui todos os nomes da­
queles que consideram aquelas palavras incompatíveis com a dou­
trina de Jesus. Renova-se cada vez, como motivo principal para
negá-las a Jesus a idéia de que é imprópria a referência à Igreja.
Como poderia Jesus ter falado em semelhante coisa? Êle só
anunciou o reino de Deus. Foi só após a sua morte, que sur­
giu, conforme a famosa expressão de A. Loisy, algo muito dife­
rente disso: a Igreja. “ Jesus a annoncé le royaume de Dieu,
et c’est l’église qui est venue” (30). Teria sido para legitimar
posteriormente essa evolução inesperada que se atribuiu aquela
palavra a Jesus. Assim é que, de Johannes Weiss, E. Kloster­
mann até M. Dibelíus, B. S. Easton, M. Gogueí e muitos outros
representantes da ciência do Nôvo Testamento e historiógrafos
desta geração (3 1) nos dizem que aquela palavra não pode ter
partido de Jesus. Feita abstração dos pesquisadores conserva­
dores T. Zahn (32) e A. Schlatter (33), só A. Schweitzer re­
conhece a autenticidade de Mt 16 .18 . E ’ verdade que êste par­
te da idéia de um contraste idêntico entre a Igreja terrena e o
reino de Deus, igualando, porém, a Igreja aqui com o reino de
Deus e interpretando a passagem de maneira puramente esca-
tológica (34). Entre os adversários da autenticidade há os re-

(29) Hmdkommentar I, ad loc.


(30) L’Evangile et l’Eglise, 1902, p. 111. V. também Les évangiles
synoptiques, 1908.
(31) V. também J. GRILL, Der Primat des Petrus, 1904, p .79; J.
SCHNITZER, Hat Jesus das Papsttum gestiftet?,1910, p . 82; F. HEILER,
Der Katholizismus. Seine Idee und seine Erscheinung, 1923, p.39 e segs.
(32) V. acima p. 185 e seg.
(33) Der Evangelist Matthäus, 1929.
(34) Geschichte der Leben-Jesu-Forschung, 4.“ ed., 1926, p.416.
présentantes da escola histórico-religiosa, p. ex., A. Dell (35),
H. Gressmann e R. Reitzenstein, que procuram explicar a de­
claração de Mt 1 6 .1 7 e segs. não só pelo interêsse de legitimar
a Igreja posterior, mas também para apontar motivos religio­
sos universais.
A Harnack assume uma posição menos radical. E ’ certo
que também êle considera impossível que a predição sôbre a Igre­
ja fôsse da autoria de Jesus. Ao contrário, ela teria tomado corpo
em época posterior precisamente na igreja de Roma que ambicio­
nava o primado. Mas, ao contrário dos seus antecessores, Har-
tiack apenas nega aquela frase sôbre a Igreja, e considera autên­
ticas as outras partes integrantes da promessa dirigida a Pedro.
Com essas palavras Jesus teria prometido a Pedro a imortalida­
de: “ Tu és Pedro e a morte não te subjugará” . Esta seria a
interpretação das palavras sôbre as portas do inferno. Nada te­
ria sido dito a Pedro sôbre a edificação da Igreja. O que sô­
bre isso consta do texto teria sido introduzido posteriormente co­
mo acréscimo à promessa original (36). Para não parecer que
sua interpretação não passava de simples conjetura, Harnack
procurou encontrar um texto original, no qual faltassem as pala­
vras sôbre a Igreja, e só essas. E êsse texto seria o Diatessaron
de Taciano. Entretanto, essa afirmação foi refutada em 1922 pe
los especialistas católicos (37).
Vimos, pois, que foi principalmente a menção da Igreja que
levou os críticos a suspeitarem da inautencidade da passagem.
Assim, partindo-se justamente daí, é que surgiu uma mudança de
atitude no período entre as duas guerras mundiais quando se ten­
tou demonstrar que na verdade Jesus poderia ter falado de uma
Igreja apenas com a condição de não se usar o têrmo no seu ara­
maico, mas no de um judeu daquela época. Nesse ponto devemos
mencionar dois eruditos; F. Kattenbusch que, no seu trabalho
sôbre a origem da Igreja, apresenta a tese de que o conceito do

(35) ZN W 1914, p. 1 e segs- V. acima obs. 17 à pág. 39 e seg.


(36) “ Der Spruch über Petrus ais den Felsen der Kirche” {Sitzungs­
bericht der Berí. Ak- d- Wiss- 1918, p .637 e segs.).
(37) V. principalmente S. EURINGER, Der locus classicus des Pri­
mates (Mt 16.18 e o texto do “Diatessaron de Santo Efraim” (Festgabe
iiir yl. Ehrhard 1922, p .l4 1 e segs.); também A. KNELLER {Innsbrucker
Zeitschrift für kath. Theol- 1920, p .l4 7 e segs.); J. SICKEN BERGER,
“ Eine neue Deutung der PrimatsteUe” (Matth 16.18) {Theol- Revue 1920,
p. 1 e segs.); contra A. HARNACK também E. M EYER, Ursprung und
Anfänge des Christentums, tom. I, p .ll 2 .
Filho do Homem conduz ao de um “ povo dos santos” (38 ); e*K.
L. Schmidt que procura determinar em dois artigos fundamentais
(39), qual a expressão aramaica que serve de base à palavra
grega para Igreja e demonstra daí que a palavra pode ter sido pro­
ferida por Jesus, desde que a tomemos no sentido de povo de Deus,
do “ resto" ou da sinagoga especial.
Dessa maneira parecia afastada a objeção principal contra
a autenticidade ao mesmo tempo que J . /e/emias .acentuava com
outros argumentos o caráter semita da palavra e suas ligações
com a concepção judaica da rocha cósmica (40). Como conse­
qüência, ocorreu uma mudança de posição da maioria dos exege­
tas protestantes, pondo-se a favor da autenticidade. Vê-se isso
no livro de O. L inton, “ Problem der Urkirche in der neuern Fors­
chung” , publicado em 1932. Também o pesquisador ex-católico
do Nôvo Testamento, F. M. Braun, O. P. de Friburgo, verifica
no seu livro muito bem feito “ Neues Licht auf die Kirche” (4 1),
êsse consenso dos pesquisadores protestantes (42). Assim pode­
ria parecer que a questão da autenticidade estava definitivamente
resolvida, no sentido afirmativo.
Mas em 1941 surgiu nova reação iniciada por R. Bultmann.
Nós havíamos feito, em “ Königsherrschaft Christi und~T?ïrchë”
(43), a observação de que a contestação da autenticidade de Mt
1 6 .1 7 e segs. não poderia ser justificada cientificamente. Em lon-

(38) Festgabe für A. Harnack, 1921, p . 143 e segs. — Também T.


W. MANSON, The Teaching of jesus, 1931, p .2 11, e R. N E W T O N FLEW ,
Jesus and his Church, 1938, acentuam a interpretação coletiva do concei­
to de Filho do homem. V. também H. O D EBERG , The Fourth Gospel
1929, p.39 e seg.; N. A. DAHL, Das Volk Gottes, 1941, p .90.
(39) “ Das Kirchenproblem im Urchristentum” {Theol. Blätter 1927,
col. 293 e segs.). — Die Kirche des Urchristentums, Festgabe für A.
Diessmann, 1927, p.259. V. ainda principalmente Theol. Wörterbuch zum
N. T., torn. Ill, artigo ekklesia, 1936. (Tradução inglêsa. V- acima obs. 4,
à pág. 181.
(40) Golgotha 1926, p. 68 e segs.; Angelos 1926, p. 109.
(41) 1946. Tradução alemã de “Aspects nouveaux du problème de
l’E glise” , 1942, ampliada e revisada pelo autor.
(42) F. M. BRAUN, op. cit., p. 85, enumera os seguintes defen­
sores dêsse consenso; F. K A T T E N B U SC H , K. L. SCHMIDT, H. D. W E N D ­
LAND, O. GLOEGE, W. MICHAELIS, J. SCHNIEW'IND, F. LEENH ARD T,
R. O T T O , A. FRIDRICHSEN, R. R. N EW TO N FLEW , O. CU LLM ANN .
A lista poderia ser ampliada acrescentando-se F. M. Q. LIN TO N, J.
JEREMIAS que F. M. Braun cita freqüentemente.
(43) 1941, p . 22.
go artigo em “ Theologische Blätter” (44) Bultmann tentou inva­
lidar 0 nosso argumento e advogou de nôvo a teoria da inauten­
ticidade defendida por êle anteriormente. Para tanto, esforçou­
-se por refutar a F. Kattenbusch e K. L. Schmidt, aludiu à ausên­
cia da palavra “ Igreja” na doutrina de Jesus e procurou provar
que Cristo só falou num futuro reino e não numa Igreja a se
concretizar agora, acreditando, porém, novamente, como os seus
antigos antecessores, ter de contar, em última instância, com uma
interpretação moderna da palavra “ Igreja” . No mais, também
Bultmann admite, como já o fizera em trabalhos anteriores, que
é preciso procurar a origem da palavra e a sua atribuição a Je­
sus, visto que o têrmo tem caráter inteiramente semita, datando,
por conseguinte, do tempo em que a Igreja da Palestina sustenta­
va controvérsias relacionadas com a Lei.
Assim R. Bultmann levantou novamente a questão e no de­
bate que se seguiu, interveio W. G. Kümmel com o seu notável ar­
tigo: “ Kirchenbegriff und Geschichtsbewusstsein in der Urge­
meinde und bei Jesus” (45). Também êle chega á conclusão de
que a palavra não foi pronunciada por Jesus, mas que lhe foi atri­
buída pela Igreja. Os seus argumentos, porém são essencial­
mente diferentes dos anteriores. Partem do fato de que no cris­
tianismo primitivo, como em Jesus, existe uma tensão entre o fu­
turo escatológico e o presente. A tensão é resolvida nos dois ca­
sos de maneiras diferentes: no cristianismo primitivo a Igreja é
considerada 0 cumprimento já presente; em Jesus, por outro la­
do, a realização já está ligada só á sua pessoa. Segundo W. G.
Kümmel, as duas soluções não poderiam ter coexistido no pensa­
mento de Jesus.
Outros combateram a autenticidade com argumentos diferen­
tes: Emmantier Hírsch, adotando a maneira dos críticos mais an­
tigos e sem penetrar no nôvo aspecto do problema (46); J. H al­
ter sob negação maciça dos trabalhos recentes e sem fundamen-

(44) “ D ie Frage nach der Echtheit von Matth. XVI, 17— 19” {Theol-
Blätter [Qi], p .265 e: segs.).
(45) Symbolae Biblieae Upsalienses, 1943. — W. G. KÜMMEL já
havia contestado a autenticidade anteriormente : Die Eschatologie der
Evangelien, 1936, p .l6 . :
(46) Frühgeschichte des Evangeliums II, 1941. p-306 e segs.
tações realmente exegéticas (47); H. Strathmann (48) que consi­
dera a palavra uma criação da Igreja de Antioquia, em conexão com
a sua distribuição um tanto esquemática e geográfica das funções
dos evangelistas (49); E. Stauffer assume uma posição particular,
encarando as palavras como sendo do Senhor, não as atribuindo,
porém, ao Jesus encarnado, mas ao ressurgido que as teria dito
quando da primeira aparição a Pedro (50). H. v. Campenhausen
acha a “ fundação da Igreja sôbre Pedro, partindo de Jesus” , “ in­
concebível” e é de opinião que “ apesar das recentes tentativas de
salvamento” tal não deveria ser pôsto em dúvida” (5 1).
N. A. Dahl (52) e O. Micheí (53) não negam a autenticidade '
de maneira absoluta, mas se mostram muito reservados. R. Liech-
tenham defende, ao contrário, na sua polêmica com R. Bultmann,
remota o pensamento de Kümmel (empregado, porém, de maneira
diferente) o ponto de vista de que a esperança escatólogica de Je­
sus, inclui a fundação de sua Igreja mas adota uma atitude crítica
a respeito do contexto e da forma da palavra (54). Com o seu
notável trabalho, último sôbre êste ponto, A. Oepke (55) defende
mais uma vez, integralmente a autenticidade. Êle acentua princi­
palmente 0 conceito do povo de Deus, que está perfeitamente vincula­
do à concepção judaica; por outro lado, mostra que os versículos
em questão, são ritmados e parte dêsse fato para tentar provar que
a palavra foi colhida na fonte das logias e que está orgânicamente
presa ao contexto tal como se encontra em Marcos.

(47) Das Papsttum, 2.® ed., 1951, p .4 e seg. e p .473 e seg. A


palavra só poderia ter surgido depois do ano 70, quando ficou demons­
trado que a Pedra-templo não tinha estabilidade. J. HALLER chega a
essa inesperada conclusão, partindo da obra de J. JEREMIAS, menciona­
da acima. ,
(48) “ Die Stellung des Petrus in der Urkirche. Zur Frühgeschich­
te des W ortes an Petrus M t 16. 17— 19” . {Zeitschrift für systematische
Theologie 1943, p.223 e segs.).
(49) V. acima obs. 42 p.: 28.
(50) “ Zur V o r-u n d Frühgeschichte des Prim atus Petri” CZ/fG 1943/
44, p..1 e segs.). . . . . -.
(51) Kirchliches Amt und geistliche Vollmacht ln den ersten drei
Jahrhunderten 1953, p .l4 0 e seg.
(52) Das Volk Gottes, Eine Untersuchung, zum Kirchenbewusstsein
des Urchristentums, 1941, p .l6 5 . ......................
{53) Das Zeugnis des Neuen Testaments von der Gemeinde, 1941,
p .9 e seg., 22 e seg. ' ' '
(54) D ie urchristliche M ission” , 1946, {AThANT).
(55) “Der Herrnspruch über die Kirche, Mt 16. 17— 19, in der
neuesten Forschung” {Studia Theologica 1948/50, p .llO e segs.).
A geração mais jovem de estudiosos alemães do Nôvo Testa­
mento, que está sob a influência de R. Bultmann, segue também
nesse ponto o seu mestre, negando decididamente a autencidade.
Assim, a questão está atualmente mais uma vez em movimen­
to e não mais se pode falar de um consenso unânime. Numa esta­
tística de 1950, na qual foram examinados 34 autores modernos
quanto à sua posição a respeito dêste problema, verificou-se que
se dividem em aproximadamente metade de cada lado (56). Des­
de então é provável que a tendência no campo da pesquisa do Nô­
vo Testamento na Alemanha se tenha deslocado, aumentando a pro­
porção a favor da tese da inautenticidade.
Até agora mencionamos apenas pesquisadores protestantes.
Só ultimamente, aqui e ali, começam os exegetas católicos a limitar
pelo menos parcialmente a autencidade do trecho, principalmente
A. Võgtle, em ambos os seus artigos na “ Biblische Zeitschrift”
(1957/58) (57), fundamentados em ampla análise literária. De
resto, porém, os exegetas católicos modernos contentam-se geral­
mente em fazer meticulosa exegese de pormenores. Surpreen­
dentemente, muito pouco se encontra sôbre o ponto que se es­
peraria achar justamente nos seus trabalhos: Estaria no propó­
sito de Jesus que as suas palavras se referissem a bispos como
sucessores? No caso afirmativo, como seria? Só F. M. Braun
na sua obra acima referida (58) aceita a questão no momento de
discutir as bases de K. L. Schmidt. E ’ verdade que não se trata
pròpriamente de trabalho exegético, o que dificilmente lhe permi­
tiria 0 limite do seu livro. Nos comentários católicos a existência
do pensamento da sucessão é, em geraí, pressuposta como fato in­
discutível, em vez de ser examinada. E, contudo, é precisamente
isso que deveria ser provado, pois não é, de maneira alguma, in­
contestável, e quem lê o texto imparcialmente jamais chegará a pen­
sar que Jesus falaria aqui — por assim dizer, profèticamente — a
sucessores de Pedro. Nesse ponto os exegetas católicos devem-nos
realmente explicações mais completas do que as que se encontram

(56) V ide A. OEPKE, op. cit., p. 111, obs. 1.


(57) A. V Ö G TLE , “Messiasbekenntnis und Petrusverheissung. Zur
Komposition Mt 16. 13— 23 Par.” (Biblische Zeitschrift 1957, p.252 e
segs.; 1958, p.85 e segs-).
(58) V. acima p. 189-
comumente em seus comentários. Foi só o exame dêste livro em
sua primeira edição que povocou debate mais sério acêrca desse
problema, o que é motivo de contentamento (59).
A título de exemplo do hábito que já perdura demasiadamen­
te de se passar á margem da questão, escolhemos dois comentaris­
tas católicos mais recentes, que se têm dedicado ao Evangelho de
Mateus: P. Dausch e /. Lagrange. Em Dausch (60) encontramos
só uma òentença sôbre a questáo que nos interessa: “ Uma vez
que a Igreja fundamentada sôbre Pedro conforme a segunda me­
tade do versículo 18, deve ser inabalável na sua estabilidade, na
uuidÇdO, e visto que é admitido quase de modo geral que Pe­
dro foi a Roma e lá faleceu, está assegurado, a partir daí, o prima­
do” . Mas M. J. Lagrange (61) trata do assunto um pouco menos”
sumáriamente. Tendo submetido a tese de Harnack a crítica mi­
nuciosa, menciona o argumento dos “ anglicanos” , segundo o qual
0 texto se refere a Pedro e não a eventuais sucessores. No entan­
to, não vemos bem porque tal argumento é atribuído só aos anglica­
nos, pois, na realidade trata-se de uma questão suscitada há mui­
to, e sempre de nôvo, por protestantes de tôdas as confissões con­
tra 0 postulado católico. Lagrange responde que jesus não limi­
tou, nessa palavra, a duração da Igreja. Enquanto existir uma
Igreja, ela terá o mesmo fundamento, mesmo que se mudem a ca­
beça e os membros. Portanto, existiria uma “ unidade sucessiva”
na direção da Igreja. Jesus providenciaria para que sempre hou­
vesse pastôres da qualidade de Pedro, i. e., da mesma fé, que cons­
tituiriam 0 fundamento da Igreja. A História teria provado que
tal aconteceu, e isto confirmaria a credibilidade da palavra do Se­
nhor (62). No último capítulo falaremos dessa retirada quase ge­
ral dos pesquisadores católicos para a História (63). A verdade
é que a História não poderia ser invocada senão para confirmar,
se fôsse o caso, a exegese; mas nunca para servir-lhe de funda­
mento.

(59) V. nossa brochura surgida posteriormente: Petrus und der


Papsi.
(60) Kommentar z. Mt., 1936, ad loc.
(61) Evangile selon S. Matthieu, 5.* ed., 1941, ad loc.
(62) Também J. SICKENBERQER não examina com maior meti­
culosidade a questão dos sucessores, na sua explicação de Mt 16-17 e segs.
in Biblische Zeitfragen, 1929, p. 16 e segs.
(63) Vide p. ex., K- PIEPER, Jesus und die Kirche 1932, e K- ADAM .
Wesen des Katholizismus, 1934; recentemente, as dissertações católicas
acêrca da primeira edição do meu livro-
2.“ O Contexto de Mateus 16 .17 -19

Ao procurarmos nós mesmos explicar os versículos em pauta,


baseando-nos em rigoroso exame do texto, é mister que considere­
mos com atenção o contexto que os compreende. Justamente êsse
contexto levanta problemas, uma vez que Marcos e Lucas contêm
a mesma narração, mas sem os versículos com os quais nos ocupa­
mos. As palavras acêrca da pedra, sôbre a qual Jesus edificará
a sua Igreja, palavras tão ricas de conseqüências, encontram-se
, portanto, em só um dos nossos quatro evangelhos; no de Mateus.
Êste fato representa para muitos, até hoje, por assim dizer, o pri­
meiro impulso externo para lhes contestar a autenticidade. Esse
argumento, porém, deveria ser abandonado de vez, pois o fato de
uma palavra ocorrer exclusivamente em Mateus, não nos dá o di­
reito sequer de levantar a questão da autenticidade. A quantas
pérolas do Sermão do Monte teríamos de renunciar como inautên­
ticas (para citarmos só êsse exemplo), se nos deixássemos reger
por êsse princípio (64) !
i Afirma-se, aliás, que êsse trecho interrompe de maneira um
\tanto infeliz, em Mateus, a narração contida também em Marcos
e Lucas. Examinaremos, de início, êsse argumento. Combinam
ou não essas palavras com o quadro narrado no Evangelho? Faz-
se necessário observar, de antemão, o seguinte: mesmo que viés­
semos a constatar que o texto com o qual nos ocupamos interrom­
pe a narração ou é cronologicamente incompatível com ela, não
se poderia deduzir daí que as palavras não são autênticas, i. e.,
que não foram pronunciadas por Jesus. A única conclusão plausí­
vel seria que um fragmento da tradição, transmitido isoladamente,
teria sido introduzido por Mateus em um contexto a que original­
mente não pertencia. Antes de mais nada, porém, temos de exa­
minar melhor essa narração. Trata-se da assim chamada confis­
são de Pedro a Jesus, em Cesaréia de Filipe, e queremos ler a
narrativa tal qual se encontra no Evangelho de Marcos. Exce-
tti?ndo-se algumas variantes isoladas, Mateus a reproduz, de um

(64) Também não me parece indicado explicar, como EUSÉBIO fez,


Demonstratio evang. 3, 5, o silêncio do Evangelho de Marcos, baseado
em Pedro, a partir da humildade e da modéstia do apóstolo (assim tam­
bém exegetas católicos mais recentes com P. DAU SCH , Kirche und Papst­
tum — Eine Stiftung Jesu, 1911).
inodo geral, da mesma maneira que Marcos, apresentando, no en-
tnto, dentro desse quadro, a promessa de Jesus a Pedro.
Marcos é dos três sinóticos o que provàvelmente, na sua sim­
plicidade, narra o episódio de modo mais evocativo e emocionan­
te. E ’ justamente nesse Evangelho que êle assume uma posição
bastante central, o que nos inclina a atribui-lo a um participan­
te, ou seja, ao participante principal, a Pedro, se porventura es­
tiver correta a nota de Pápias, segundo a qual o evangelista Mar­
cos teria sido o intérprete de Pedro, narrando no seu Evangelho
os episódios da vida de Jesus citados pelo apóstolo nas suas pré­
dicas como exemplos ilustrativos (65). De qualquer maneira, os
trechos em comum de Mateus e Lucas não deixam transparecer o
mesmo vigor que Marcos, em cujo Evangelho existe, nessa passa­
gem, uma certa vibração através de tôda a narrativa, que, por as­
sim dizer, nos permite tomar parte na emoção daqueles que esta­
vam presentes ao acontecimento.
Marcos está consciente de que naquele momento deve ter ocor­
rido algo de muita importância. Deve ter sido um momento im­
pressionante aquele em que, quebrando o silêncio, até então guar­
dado, quando tudo fizera para impedir comentários sôbre a sua
vocação messiânica, Jesus mesmo estimula, embora no estreito cir­
culo dos discípulos, uma discussão sôbre o problema que cuidado­
samente evitara até mencionar. Agora é êle próprio quem inda­
ga: “ Quem dizem os homens que eu sou?” . E em seguida — e
aqui notamos a emoção interior tanto de quem formula a pergun­
ta como dos que lhe têm de responder — “ e vós, quem dizeis vós
que eu sou?” Então a resposta de Pedro que traduz, em sua dis­
creta concisão, a comoção do discípulo: “ Tu és o Cristo, o Filho
de Deus vivo” , Essa complementação tem, realmente, a aparência de
um enfraquecimento do texto de Marcos. Veremos, porém, que
o acréscimo “ o Filho do Deus vivo” não é só uma paráfrase litúr-
gica e edificante, como era do gôsto de Mateus, mas que o evan­
gelista revela, ao combinar dois títulos cristológicos diferentes
(Messias e Filho de Deus), ter misturado em Mt 16 duas narra­
ções muito diferentes. Em uma. Pedro diz a Jesus: “ Tu és o
Messias” . Isso ocorreu, em Cesaréia de Filipe, e está registrado

(65) EUSÉBIO, H .E. 111, 39. 15 e seg.


em Marcos e Lucas. Na outra, Pedro diz a Jesus; “ Tu és o F i­
lho de Deus” , que é referida só por Mateus (versículos 17-19 ). Na
narração do acontecimento em Cesaréia de Filipe, que Mateus tem
em comum com Marcos e Lucas, a resposta de Pedro consiste em
“ Tu és 0 Messias” , que é mais simples e, nesse caso, mais impo­
nente, como a lemos em Marcos (66). O que o possesso já bra­
dara a Jesus, em Cafarnaum; “ Jesus o Messias” , ouvimos agora
da bôca do discípulo que é o representante e porta-voz dos outros.
Em nome de todos êle expressa a grande palavra que até então
nenhum discípulo ousara articular na presença de Jesus. Entre
si os discípulos talvez já tivessem discutido êsse tema, na ausên­
cia de Jesus, e o que Pedro disse repousa na firme convicção de
todos (67).
Êle3 sabiam que não eram simples discípulos de um rabino
igual aos outros. Êles tinham a certeza de que seu mestre era
mais do que um rabino, e estavam cônscios, como transparece em
outras passagens, da honra de constituírem a comitiva do Mes­
sias. Fala-se freqüentemente da consciência que Jesus tinha de
sua própria pessoa. Poder-se-ia falar também de uma autocons­
ciência dos discípulos.
Segundo Marcos, Jesus nada responde, de início, a essa afir­
mação, e isso é muito significativo. Os discípulos ainda não sa­
bem de que maneira êle encara a sua vocação de Messias. Jesus
não diz sim nem não. Êle simplesmente os adverte de que não
o digam a ninguém, í. e., de que não comuniquem a ninguém ser
êle 0 Cristo. O povo não deverá reconhecer nêle o Messias an­
tes da sua morte. Os discípulos, porém, precisam ser instruídos
quanto ao sentido em que êle é o Messias. Nos vers. 31 e segs.
registra-se essa instrução aos discípulos, depois da determinação
de nada dizerem a ninguém sôbre o assunto. Também essa re­
comendação é explicada. Essa é a seqüência natural da narrati­
va. Em vista da importância do momento, era necessário que
Jesus falasse sôbre o que havia de sofrer e recomendasse tôda
aquela discreção. Essa profecia e o protesto de Pedro não cons-

(66) Em comparação, também, o “ Cristo de Deus” em Lucas é


provàvelmente secundário.
(66) Em comparação, também, o “ o Cristo de Deus” em Lucas é
2.® Parte, 1949 (citado daqui para diante “Mtth.- Komm.” ), p .339, supõe,
ao contrário, que Pedro não teria im aginado nada disso; as palavras
de Jesus pressuporiam uma súbita inspiração. Isto só seria o caso na
tradição que Mateus intercalou nesse ponto (Filho de Deus).
tituem uina nova narração, nem tão pouco uma espécie de epílo­
go, mas são o ponto alto de tôda a ocorrência de Cesaréia de F i­
lipe (68). E agora, quando a palavra “ Messias” foi pronuncia­
da, Jesus, sem declarar que aceitava o título, mas sem o recusar,
passou a mostrar-lhes em que sentido limitado êle o aplica a si:
Messias — sim, mas bem diferente do que vós imaginais: Mes­
sias mas como sofredor, condenado, morto. Marcos acrescenta:
e Jesus falava claramente — êle “ dizia tudo” (69).
E então verifica-se, não uma nova narrativa ou um suplemen­
to, mas o verdadeiro ponto alto da história, onde o protesto de Pe­
dro demonstra que mesmo o mais íntimo círculo dos discípulos
não compreendera o significado da vocação messiânica de Jesus.
O próprio Pedro partilhava sem reservas da concepção satânica
daquela vocação, idéia que o diabo em pessoa lançara à face de
Jesus quando, tentando-o, lhe ofereceu os reinos do mundo. Sa­
bemos como Jesus foi obrigado a mostrar mais de uma vez que o
fanatismo não tinha lugar no seu ideal messiânico, embora êle

(68) Isso é 0 que deve ser salientado etn relação a R. BU LTM AN N,


“ Die Frage nach dem messianischen Bewusstsein Jesu und das Petrus­
-Bekenntnis” {ZNW 1919/20, p .l6 5 e segs-) e Geschichte der synoptischen
Tradition, 2.“ edição, 1931, ad loc. BU LTM AN N afirma que a narração
de Marcos acêrca do evento de Cesaréia de Filipe finaliza com a ordem
de silêncio (nesse, mas só nesse ponto, em concordância com K. L.
SCHMIDT, Der Rahmen der Geschichte Jesu, 1919, p.217 e segs.) e afir­
ma então que a narrativa de Marcos é mutilada. A narrativa original —
aliás só criada pela comunidde — não exigiria, como continuação, a
repreensão de Pedro (versículos 31 e segs-) mas aquilo que lemos em Mt
1 6 .17 e segs- Em vista da sua posição “ antipetrina” (acêrca disso V. acima
p. 27 e seg-), Marcos a teria abreviado nesse ponto, privando a história dc
seu final- — W. MICHAELIS, Das Evangelium nach Matthäus {Prophezei), 2.®
Parte, p-339, é de idêntica opinião — aceitando, no entanto, a autenti­
cidade da narração de Mateus- A. SC H LA TTER , Der Evangelist Matthäus
1929, ad loc-, chega ao ponto de explicar a omissão das palavras de
Jesus de Mt 16-17— ^19 em Marcos, partindo da tendência de apro)4imar
posteriormente a profecia da paixão à confissão de Pedro- Na realidade
os últimos versículos proporcionam a chave para a compreensão não só
do que se passou em Cesaréia de Filipe, mas de todo o assim chamado
“ mistério messiânico” . Daí a posição central da nossa perícope nos
sinóticos. Só em Mateus aparecem os versículos que contêm a profe­
cia da paixão e o protesto de Pedro, como uma espécie de epílogo, que
é mais ou menos separado da narração anterior por apò tóte. justa­
mente isso é que favorece a originalidade da narrativa de Marcos. —
A. V O E G TL E , Messiasbekenntnis und Petrusverheissung, 1957, p . 256,
admite, como nós, que Mt 16-17 e segs- seja uma intercalação na narra­
tiva de Marcos e concorda totalmente com o nosso parecer acêrca de seu
objetivo fundamental- No entanto, êle julga que exageramos ao considerar
o “ retro Satana” como o “ponto alto” da história-
(69) parresía.
próprio tenha sido afinal pregado à cruz como fanático (70). Se­
gundo 0 testemunho de Marcos a idéia de um Messias sofredor
era, para Pedro, completamente estranha, e já lhe era totalmen­
te estranha quando fez aquela confissão: “ tu és o Messias” .
Há que insistir neste ponto: Segundo Marcos, Pedro, já ao fa­
zer aquela confissão, ainda não compreendera o essencial. E
ainda agora não o compreende. Resiste à idéia do sofrimento
do Messias, e é tal a sua decepção e sua emoção que se atreve a
repreender a Jesus. Em nenhuma outra ocasião ouvimos algo
semelhante de um discípulo. Isto demonstra, no entanto, quão
profunda deve ter sido a decepção de Pedro, precisamente no
momento em que Jesus finalmente se decidira a falar sôbre a
sua vocação messiânica com os discípulos, e os levara a confes­
sar que reconheciam nele o Messias. Se Jesus é um Messias so­
fredor, então eles eram, como Pedro, discípulos de um Messias
sofredor e rejeitado, e, por conseguinte era tudo bem diferente do
que tinham suposto.
Jesus, porém, volta-se e, como Marcos observa com muita
finura, ao dirigir as palavras a Pedro, encara simultâneamente
os outros discípulos, pois o que ia dizer também lhes diz respei­
to. Jesus sabe que também êles compartilham daquele falso con­
ceito de sua vocação messiânica e, conseqüêntemente, do discipu-
lado, como o demonstra o exemplo dos filhos de Zebedeu.
E aí Jesus expressa a palavra sobremaneira enérgica: “Ar­
reda, Satanás!” ( 7 1) . Portanto, a mesma expressão que lança­
ra contra o próprio diabo quando da tentação (Mt 4 .10 ) . O
diabo serve-se agora do próprio discípulo de Jesus, Pedro. E ’
essa a sua maior astúcia. Mas Jesus a reconhece e Marcos des­
creve mais uma vez, com especial intuição, como êle endereça es­
sas severas palavras a Pedro, com o olhar pôsto nos outros dis­
cípulos. Quem lhe quiser impor uma vocação de Messias dife­
rente daquela que lhe foi dada por Deus, e o quiser afastar da
rota indicada por Deus, é um instrumento do diabo!
O caráter evocativo dêste relato de Marcos em comparação
com as passagens paralelas em Lucas e Mateus é tão transpa­
rente que revela a anterioridade daquele evangelho. Vários pro-

(70) Vide O. CULLMANN, Der Staat im Neuen Testament, 1956,


p .5 e segs.
(71) Se a hupage apíso mou deve ser entendido verbalmente, i .e .,
no sentido de “ atrás de mim” , como exortação à sucessão, deixamos a cri­
tério de cada um. Não cremos que tenha uma significação essencialmente
diversa do hupage em Mt 4.10.
cessos o demonstram. Assim, tôda essa narrativa não desem­
penha em Mateus o papel importante que lhe á atribuído em
Marcos, pois os discípulos já anteriormente, em outra ocasião,
de acôrdo com o primeiro, haviam feito confissão do caráter
messiânico de Jesus quando o viram andar sôbre o lago (Mt
14 .3 3 ). Fica assim diminuída a importância da história que
êle relata no cap. 16 (72). Em Marcos, a importância singular
dêste episódio reside no fato de que aí os discípulos falam pela
primeira vez com Jesus sôbre o que o Senhor significa para êles.
Vemos assim que a disposição do material que deve ser atribuí­
da aos evangelistas, pode ser de importância para a compreensão
do significado dos trechos isolados. Por assim dizer, a ordem
do material eqüivale a um comentário dos evangelistas.
Particularidades na narrativa parecem indicar também que
Mateus não compreendeu tão profundamente o alcance da ocor-
lência como Marcos. Assim, Mateus formula a pergunta ini­
cial de Jesus de uma maneira que já encerra a resposta: “ Quem
diz 0 povo ser o Filho do homem”, enquanto que de Marcos
(certamente o original) consta; “ Quem dizem os homens que
sou eu?” (73).
Isso não significa que os versículos 17-19, que nos interes­
sam e só se encontram em Mateus, devam ser a priori classifica­
dos como uma criação posterior da igreja primitiva. Entretan­
to, a constatação que acabamos de fazer merece a nossa aten­
ção se quisermos encontrar resposta a uma outra pergunta, re­
lacionada com a análise daqueles versículos: Adapta-se a pa­
lavra de Jesus a Pedro (que em seqüência à declaração de Pe­
dro aparece apenas em Mateus) harmoniosamente a êsse contex­
to? Pertencem os versículos 17 -19 realmente àquele incidente?
Foram as palavras neles contidas proferidas naquela oportunida­
de, ou relacionam-se, ao contrário, originalmente, a um outro
contexto, tendo sido introduzidas neste lugar só por Mateus? Co­
mo já dissemos, essas palavras podem ser autênticas, mesmo nes­
te último caso, i. e., podem ter sido pronunciadas por Jesus,
mas em outra ocasião.

(72) W . MICHAELIS, “Mtth.-Komm.” (Prophezei, p .338), procura


enfraquecer a importância dêsse fato, escrevendo que Mateus estava cons­
ciente de estar antecipando algo, naquela passagem.
(73) A explicação de R. GRABER, Petrus der Fels, 1949, p . 31, que,
ao contrário, dá preferência a Mateus, é muito remota; Marcos e Lucas
teriam substituído a expressão “ Filho do homem” nessa passagem pe!a
1.® pes. sing. porque a menção do “ Filho do homem” com sua alusão
(indicando Daniel) ao povo de Deus, que vencerá os poderes do mundo,
lhes teria parecido muito perigosa nessa passagem.
A maneira pela qual os evangelistas, especialmente Mateus,
ordenaram o material que lhes fôra transmitido pela tradição oral
ou já escrita, demonstra que podemos contar, em princípio pelo
menos, com a possibilidade de que Mateus tenha colocado es­
sas palavras de Jesus a Pedro no contexto dá narração de
Marcos. O mérito permanente dos trabalhos da critica histó­
rica da forma é ter provado que a tradição evangélica oral, como
tôda a tradição oral, só continha trechos isolados, sem conexão
cronológica e geográfica. A obra dos evangelistas que cole­
cionaram êsses trechos isolados da tradição consiste em que,
cada um a seu modo, os compilou. Êles não são, só cole­
cionadores, mas também ordenadores. Verifica-se que ' cada
um executou essa ordenação à sua maneira, sendo especialmente
instrutivo comparar, a êsse respeito, Mateus e Lucas. Mateus obe­
dece, em sua compilação, a um plano de conteúdo teológico, i. e.,
coordena entre si as histórias que lhe parecem ter correspondên­
cia quanto ao seu significado teológico:histórias de milagres, as
palavras sôbre a lei (Sermão do Monte), palavras sôbre João Batista
(Mt 1 1 ) , parábolas (Mt 13 ), palavras contra os fariseus (Mt 23),
etc. A Mateus não interessa primàriamente preservar a ordem
cronológica, pois escreveu seu Evangelho de antemão sob êsse
outro ponto de vista. O evangelista Lucas, ao contrário, esforça-se
por narrar os acontecimentos em disposição cronológica, como
êle próprio o afirma em seu prólogo.
Em vista disso não só é justificável, mas até necessário, não
perguntarmos primeiramente se as palavras que ocupam a nossa
atenção neste trabalho, são autênticas i. e., ditas por Jesus, mas,
sim, se Mateus que é o único a apresentá-las, as dispõe cronolo­
gicamente ou se só simplesmente combinou essa parte com a
afirmação de Pedro sôbre Jesus, em Cesaréia de Filipe, por
lhe parecerem condizentes quanto ao seu conteúdo. Ambas as
vêzes Pedro faz uma declaração acêrca de Jesus: uma que
leva Jesus a repreendê-lo como instrumento do diabo (“ Messias”
no sentido político), outra, ao contrário, que leva Jesus a louvá-lo
como instrumento de uma revelação divina direta (“ Filho de Deus).
De início, faz-se necessário lembrar que em Mateus a con­
cessão do nome Cefas-Pedra parece dar-se só nessa ocasião. Por
outro lado, em Marcos, como vimos (74), lesus confere tal nome
a Simão quando da constituição do grupo dos doze (cap. 3 .16 ) e
no Evangelho de João, já por ocasião do primeiro encontro (cap.

(74) V. acima p. 22 e seg.


1.4 2 ). Certamente é possível afirmar que Mt 1 6 .1 7 só tra­
ta de explicar o nome de Pedro, e não de atribuí-lo, o que já fôra
feito antes (75). Nesse caso não existiria qualquer contradição
cronológica direta entre Mateus de um lado e João do outro. No
entanto, é digno de nota que em nenhuma ocasião anterior Ma­
teus relata a concessão do nome. Êle parece, portanto, ser de
opinião que esta se operou no mesmo momento em que Jesus tam­
bém interpretou o nome, com a intenção de edificar a sua Igre­
ja sôbre aquela “ Pedra” (76). Deveríamos, então, admitir a
inexistência de uma tradição absolutamente segura quanto à oca­
sião em que Jesus conferiu a Pedro o cognome Cefas, apesar de
não haver dúvidas quanto ao fato em si (77).
Seja como fôr, Mateus, ao que tudo indica, conhecia outra
tradição, segundo a qual o referido nome e a sua interpretação
foram proferidas por Jesus após a declaração que Pedro fizera
sôbre o Senhor. Tal, porém, não poderia haver ocorrido simul­
tâneamente com a reprovação a Pedro em Cesaréia de Filipe, pois
constatamos que a narração daquele acontecimento não provoca,
em Marcos e Lucas, essa reação. Ao contrário, Jesus silencia
e exige silêncio. A diabólica idéia messiânica de Pedro real­
mente não lhe poderia haver merecido o título honorífico de Pe­
dra. Mas é compreensível que Pedro, por divina revelação, e em
ocasião totalmente diversa tenha dito de Jesus algo que lhe va­
lesse o honroso cognome. A lembrança dessa revelação conce­
dida a Pedro, que não teria consistido no título de Messias, mas
no de Filho de Deus, conservou-se só em Mateus, no cap. 16 .17 e
segs. Por causa da sua tendência de agrupar fatos segundo os
temas, Mateus combinou ambas as narrativas diferentes e, conse­
qüentemente, ambas as declarações de Pedro sôbre Jesus: “ Mes­
sias” (no sentido político) e “ Filho de Deus” (“ Tu és o Cristo,
o Filho do Deus vivo” ), localizando ambas em Cesaréia de Fili-

(75) É o que acentua principalmente T . ZAHN, Das Evangeliu


Matthäus, 4.®' edição, 1922, ad loc. Diz êsse autor que nessa passagem falta
a fórmula usual das atribuições de nome (Gn 1 7 .5 .1 5 ; 32, 28; Mt 1.21.
25; 2.23; Lc 1.13 , 31, 59^ 63; 2 .2 1).
(76) Também W . MICHAELIS, op. cit., p . 340 e seg., é de opinião
que Mateus quer comunicar nesse ponto a atribuição do nome. Em Jo
1.42 e Mc 3 .1 6 teríamos apenas uma indicação dessa ocasião posterior.
(77) V ide M. j. LAGRANGE, L’Evangile selon S- Matthieu, 5.®
edição, 1941, p .324: “ la tradition sur le changement de nom était attestée
par tous, mas elle était moins ferme sur la circonstance” . V. também a
opinião de LAGRAN G E acêrca da originalidade do contexto da conces­
são do nome, pressuposto por Marcos. V. acima obs. 25 à pág. 23.
pe, onde Pedro teve de ser repreendido como instrumento de Sa­
tanás devido à sua falsa concepção messiânica. Mas o grupo de
palavras, no qual Pedro é louvado, e que só se torna compreensí­
vel na segunda narração não se coaduna com a satânica concep­
ção messiânica revelada por Pedro.
Realmente, vimos que, na sua narração, Pedro desempenha o
papel daquele que não compreende a vocação messiânica de Je­
sus, partilhando, ao contrário, aquela concepção que lesus en­
cara como tentação satânica. E ’ certo que êle diz: “ Tu
Messias” . Mas só a continuação dessa história demonstra o^
entendido abismai que separa, já nesse ponto, Pedro de
Temos que reconhecer que êste é o ponto alto de todo
“Arreda-te, Satanás;” Vimos que o paralelismo da
tentação é evidente: em ambos os casos Sataná^r^m ^to a
Jesus um papel messiânico que é muito d ifo ^ ^ ^ à q ttg fe do qual
Jesus se sabe incumbido.
Dessa forma, o final da n a r r a ç ã o / p A ^ tfa '^ u e aquêle que
fala as palavras; “ Tu é o Cristo”^.,«f^Mjn^strumento de Sstanás,
não por ter feito essa confissão^aó(^Msias, mas devido ao senti­
do que êle dava a essas palw ra^S-üessa vez é servindo-se da
pessoa de Pedro que o diabo s ^ c e r c a de Jesus, e é compreensí­
vel, portanto, que Jesus/^dtM ao seu discípulo: “ Não cogitas das
coisas de Deus, homem".
Se corL^ctóiM ^ a narração por êsse prisma, é realmente
difícil, a tivesse escolhido justamente essa ocasião
para d i^eí^V re^o: Tu fôste inspirado pelo P ai do céu, êle con-
c ^e w ^ú > M especial. Mas é isso que lemos no versí-
que, de forma alguma, confere com o ponto alto da
ão acima verificado. A animada descrição de Marcos pa-
interrompida e mesmo deformada nessa passagem, em que
áurge a palavra de Jesus sôbre Pedro, a Pedra. No relato de Mar­
cos, jesus naaa responae, ae inicio, a essa aeciaração de Pedro,
não tomando posição, o que corresponde totalmente ã atitude que
Êle costuma assumir em tôda a tradição sinótica, frente ao títu­
lo de Messias. Jesus revela sempre uma estranha reserva em re­
lação a êsse título, sem contudo o rejeitar expressamente (78). Is­
so é o que podemos verificar até o interrogatório perante o sumo

(78) JEAN HÉRING, Le Rovaume de Dieu et sa venue, 1937, p. 111


e segs., vai mais além no sentido da rejeição. — Também êle salenta
grandemente, p. 127, obs. 2, a incompatibilidade de Mt 16 .17 e segs. com
a narrativa do contexto em Mc 8.27 e segs.
sacerdote. Êle sabe que a designação de Messias, empregada sem
restrição e sem acréscimo pode conduzir a graves mal entendidos,
ü silêncio de Jesus, como Marcos o pressupõe, dificilmente pode­
ria ser interpretado como uma omissão casual ou consciente de
uma palavra do Senhor. Tal silêncio tem significado teológi­
co (79).
E ’, portanto, exegèticamente muito provável que Mateus te­
nha encontrado em alguma antiga tradição oral as palavras
com que Jesus explica o cognome de Cefas, pelos menos a pri­
meira parte (vers. 17-18, ou 19a respectivamente) (80). E is­
so, como resposta a uma verdadeira confissão de Pedro ao F i­
lho de Deus (não ao Messias). Acreditamos mais que êle pro­
curou, para êsse trecho isolado de tradição, um lugar adequa­
do quanto ao conteúdo, em tôda a sua disposição do material,
crendo havê-lo encontrado na história da admoestação la Pe­
dro em Cesaréia de Filipe. Impõe-se até a pressuposição de
que Mateus procurou demonstrar, através da combinação de
ambas as tradições, que a imagem de Pedro como instrumento
do diabo deve ser corrigida pela de Pedro como instrumento da
revelação divina (8 1). Pedro não estava inspirado pelo Pai,

(79) Em contraste com J. HÉRING, op. cit., p. 125, que conta com
a possibilidade de que Marcos tenha interpretado o silêncio no sentido
de uma irrestrita aceitação do título de Messias, somos de opinião que
Marcos compreendeu corretamente o sentido dêsse silêncio, i.e ., tam­
bém não diretamente como uma brusca rejeição, com J. HÉRING a a tri­
bui a Jesus, mas como reserva. Essa reserva evidentemente já está na
mesma linha do “Afasta-te, Satanás!” , mas nossa narrativa apresenta
uma gradação que vai dêsse silêncio até aquêle auge. Quanto a essa
questão Vide O. CULLMANN, Die Christologie des Neuen Testaments,:
edição 1958, p. 118 e segs.
(80) Quanto a 19b, v. adiante p. 233- Essas palavras sôbre o ligar
e desligar, possivelmente até as das chaves (V. abaixo p. 232), talvez
não pertençam à mesma parcela de tradição que os vv. 17— 18. Só
no tocante a essas palavras podemos concordar com A. V O E G T E , op.
c it , quando êle nega a uniformidade do trecho 17— 19.
(81) E. L. ALLEN, “ On this rock” (/. Th. St. 1954, p .59 e segs.),
perguntou com razão pela intenção com que Mateus intercalou êsse tre­
cho nesse lugar. Êle respondeu o seguinte: Mateus teria visto nas pa­
lavras de Jesus um meio de legitim ar uma situação ocorrida após a morte
de Pedro em uma Igreja local (Antioquia?), segundo a qual esta teria
evocado Pedro. Essa resposta não contradiz necessariamente a que demos
à mesma questão, expressa aqui e em maiores minúcias em nosso artigo
“ L’apotre Pierre, instrument du diable et instrument de Dieu” {New Teskt-
ment Essays for T . W . MANSON, 1959, p. 94). Em nosso trabalho, ain­
da em fase de planejamento, “ Petrus und der Papst” , tomaremos posição
frente à suposição de E. L. ALLEN de que, de acôrdo com a compreen-
em Cesaréia de Filipe, onde deíendeu, ao contrário, a concep­
ção satânica do “ Cristo” , mas em outra ocasião, quando re­
conheceu em Jesus o “ Filho de Deus” . Segundo Mt 1 1 . 2 7 , que,
quanto ao seu conteúdo, pertence a essa segunda tradição, ninguém
conhece o Filho, senão o Pai, de modo que se faz necessária uma
revelação da sua parte (82).
Além disso, poder-se-ia encontrar um vestígio de que origi­
nalmente ambas as tradições não estavam combinadas, no fato de
que no versículo 17 falta o objeto. Não está escrito: isso (i. e.,
0 fato de que eu sou o Cristo) não foi carne e sangue quem to re­
velou, mas meu Pai que está nos céus. O pronome demonstrativo
“ isso” , que comumente adicionamos ã tradução, falta no texto
grego. É claro que na tradição original deveria estar íncluído al­
gum objeto, pois êste não poderia estar omitido, nem mesmo em
um trecho isolado. Em todo caso podemos perguntar se essa omis­
são em Mateus não pode ser explicada pelo fato de que êsss tre­
cho tinha originalmente uma outra introdução.
Contudo, tem-se afirmado, ao contrário, que justamente os vv.
17-19 encontram-se em um contexto que lhes é perfeitamente ade­
quado, até mesmo do ponto de vista geográfico (83). Asseverou-

são de Mateus, Jesus teria tido em vista uma sucessão de Pedro, d iri­
gente da Igreja, a qual estaria contestada em Jo 21. Êsse assunto, usado
na argumentação contra nossa opinião por críticos católicos, freqüentemen­
te, pertence à problemática a ser considerada naquela obra. V. p. 225 e
segs., e, de maneira diferente, obs. 57, (pág. 32). A intenção é explicada
de maneira essencialmente diversa por G. BORNKAMM, “ Enderv\^artung
und Kirche im Matthâus-evangelium” (Festschrift C. H. DODD, The
background of the New Testament and its Eschatology, 1956, agora in
Überlieferung und Auslegung Matthäus-Evangelium, 1960, p. 13 e segs.)
p .256 e segs.
(82) A. V Ö G TLE , op. cit., B ibl Zeitschrift 1958, p .96 e segs. não
quer ligar a promessa a Pedro com a cena de Cesaréia de Felipe hem
corn uma outra antiga tradição sôbre uma confissão de Pedro- Êle con­
sidera êsse “ makarismo” simplesmente um trecho de redação criado por
Mateus, com base nas palavras de Mt 1 1.2 5 e segs-, com cujo auxílio o
evangelista teria intercalado a promessa a Pedro, oriunda de outra trad i­
ção, na narrativa de Marcos sôbre o evento de Cesaréia de Filipe.
(83) Os seguintes consideram o contexto que Mateus dá aos ver-
r-ícuíos, como origin al: O. IMMISCH, “Matthäus 16. 18” {ZNW 1916,
p. 18) (sob indicação da relação geográfica das palavras); além disso,
contestando a tese defendida por nós na primeira edição dêste livro:
M. O V ER N E Y, “ Le cadre historique des paroles de Jésus sur la primauté
de Pierre” {Nova et Vetera, 1953, p . 206 e segs.); B. W ILLAER T, “ La
connexion littéraire entre la première prédiction de la passion et la con­
fession de Perre chez le Synoptiques” {Etudes Lov. 1956, p. 24 e segs.).
-se até que Marcos mutilou a narrativa ao omitir os versos que só
Mateus traz. Já se disse que a explicação de Jesus que lemos em Ma­
teus seria a resposta exigida pela própria narrativa. Visto que o
próprio Jesus provocou a confissão dos seus discípulos ao Mes­
sias, a narração não poderia concluir com a mera proibição
de contar algo a quem quer que fôsse. Mt 1 6 . 1 7 e segs.
apresentaria, por conseguinte, o final original e natural (84). Essa
concepção, no entanto, olvidou que o têrmo da narrativa de Marcos
não é a proibição de falar sôbre o assunto, mas aquelas palavras de
fesus a Pedro; “ Arreda-te Satanás!” , que também foram inseri­
das por Mateus. Argumenta-se ainda que a resposta de Jesus cor­
responde exata e paralelamente à confissão de Pedro. As palavras:
“ Tu és 0 Cristo” , respondeu estas outras; “ Tu és Pedro” . Na rea­
lidade, porém, como temos visto, o “ tu és Pedro” , não pode harmo­
nizar-se com a declaração de sentido satânico “ tu és o Messias” ,
mas só pode referir-se à confissão “ tu és o Filho de Deus” .

Em todo caso, devemos admitir, de acôrdo com o que foi dito,


ser muito provável que os discutidos versículos não pertenciam
originalmente ao contexto no qual Mateus os colocou. Esta opi­
nião nada diz a respeito de autenticidade ou inautenticidade.

É totalmente errôneo classificar a narração da ocorrência em


Cesaréia de Filipe, como a encontramos em Marcos, de “ confis­
são de Pedro” . Só os versículos de Mt 1 6 . 1 7 e segs., que Ma­
teus intercalou, extraindo-os de uma outra tradição, apresentam
uma “ confissão de Pedro” , e ainda assim de Jesus como o Filho de
Deus. A narrativa, ao contrário, deveria intitular-se “ Reprovação
da satânica imagem que de Cristo fez São Pedro” (85).

(84) Assim R. BU LTM AN N, W . MICHAELIS, A. SC H LA T T E R (V.


acima obs. 68, p. 197), também T . ZAHN, ad loc.
(85) V. a êsse respeito a argumentação minuciosa em nosso artigo
“ L’apôtre Pierre instrument du diable et instrument de Dieu” [New Tes­
tament Essays for T . W . MANSON 1959, p . 94). Também A. V Ö G TLE ,
“ Messiasbekenntnis und Petrusverheissung” (Bibl. Zeitschrift 1957, p.252
e segs.; 1958, p.85 e segs.), embora se desvie muito no restante, adere
à nossa conclusão de que os vv. 17— ^19 não pertencem ao contexto da
narrativa de Cesaréia de Filipe, examinando em uma análise cuidadosa
qual a interpretação que é literariamente secundária, a de Marcos ou a de
Mateus- Antes dêle já concordam conosco, nesse ponto (a maioria em
críticas ao nosso livro ); P. B EN O IT {Revue biblique, 1953, p . 5 71); C.
SPICQ {Revue des Sciences Phi. et Theat., 1953, p. 180 e segs-); M. Et,
BOISMARD {Divus Thomas, 1953, p .236); sem aprovar a nossa inclu­
são positiva dos versículos na história da Paixão, também H. LEH-
Se realmente o evento de Cesaréia de Filipe não for o con­
texto original daquelas palavras, surge uma pergunta; Seria
ainda possível — pressupondo-se, por ora, a autenticidade do tre­
cho ■— descobrir o verdadeiro contexto? Admite-se em geral que
foi Jesus quem as pronunciou, não o encarnado e sim o Ressurre-
to, e no contexto de uma aparição só a Pedro. Tôda a cena te­
ria sido inserida posteriormente na vida terrena de Jesus (86).
Muitas razões apoiam essa possibilidade. E ’ realmente estranho
que a primeira, e nesse sentido talvez a mais importante aparição
de Jesus, i. e., a aparição a Pedro, não seja narrada em parte al­
guma do Nôvo Testamento. E entretanto ela é claramente pres­
suposta, como no texto mais antigo que possuímos, o mais velho
resumo da fé cristã, 1 Co 1 5. 3. Vimos que nessa passagem a
aparição a Cefas está em primeiro lugar, em uma enumeração
cronológica daqueles que viram o Senhor ressurreto. Além dis­
so, encontramos em Lc 24 .23 a menção de que o Senhor apareceu
a Simão, feita de tal maneira que deve tratar-se da primeira apa­
rição. Constantamos que êsse fato não pode ser superestimado
em sua importância para a posição de Pedro na comunidade cris­
tã primitiva. Também nós procuramos dar uma explicação dos
motivos por que justamente a mais importante de tôdas as apari­
ções não é relatada (87).

O capitulo 21 do Evangelho de João talvez encerre um vestí­


gio de uma tal narrativa. É certo que temos aí uma aparição a
muitos discípulos, na Galiléia. Mas o diálogo que se inicia no v. 15
desenrola-se principalmente entre o Ressuscitado e Pedro. O discí­
pulo amado manifesta-se, por assim dizer, só intermitentemente.
Por isso tem-se perguntado, com razão, se não se trata da omi­
tida narrativa dessa aparição de Jesus só a Pedro, não repro­
duzida, mas aproveitada, pois na sua primeira parte, o diálogo re-

MANN, “ Du bist P e tr u s ... Zum Problem von Matthäus 16. 13— 26


(Evang. Theol; 1953), p.46 e segs., admite, como nós, que os versículos
17— ^19 não cabem no contexto da história de Cesaréia: idênticamente
Q. BORNKAMM, op. cit. {Festschrift für C. H. DODD, 1956) p .256
e seg. -
(86) Assim principalmente E. ST A U FFE R , “ Zur V or- und Frühge­
schichte des Primatus P etri” {ZKG 1943/44), p . l ss.; R. BU LTM AN N,
Theol. N. T. 1953, p.46. V. acima p.67 e seg., também H. LEHMANN,
op. cit., p.64; G. DORNKAMM, op. c ii, p.260; A VÖ TLE, op. cit., 1958;
p .l0 3 ; “ possivelmente, pois, só com o ressuscitado” .
(87) V. acima p.68 e seg.
fere-se sóà relação entre Cristo e Pedro e à incumbência atribuída
a este.Mencionamos a hipótese, segundo a qual o final desapa­
recido doEvangelho de Marcos seria a base dêsse capítulo (88).
Seria essa narração, aproveitada em Jo 2 1, a mesma ^ — em
uma versão um tanto modificada — que Mateus projeta para a
vida do Jesus terreno combinando-a com a ocorrência de Cesaréia
de Filipe? Justamente o conteúdo dêsse diálogo entre Jesus e Pedro,
em Jo 2 1 . 1 5 e segs., poderia apoiar tal hipótese. Pois trata-se
do mesmo assunto que em Mt 1 6 . 1 7 e segs.: O que é promessa
em Mateus, aparece agora no imperativo, como incumbência do
Ressuscitado a Pedro; “ Apascenta as minhas ovelhas” .
Temos de admitir que essa hipótese é persuasiva e que deve­
mos contar pelo menos com a possibilidade de sua correção. Con­
tudo, não passa de uma hipótese. Pois não possuímos qualquer
final de Marcos que narre a aparição só a Pedro, e em Jo 21 não
está dito que se trate de tal (89).
Por outro lado, parece-me improvável que durante a sua vida
Jesus jamais tivesse interpretado o cognome “ Pedra” , pois é de
se esperar que êle tenha concedido o cognome a Pedro enquanto
vivo. É certo que “ Filhos do Trovão” , atribuído aos filhos de Ze-
bedeu, não é interpretado em parte alguma. Mas isso relaciona­
-se talvez com o fato de que, de acôrdo com sua natureza, a tradi­
ção dos evangelhos interessou-se menos por êles. Por êsse motivo,
não podemos concordar facilmente com a citada hipótese.
Mas, não haveria durante a vida de Jesus uma outra oportu­
nidade, na qual pudesse ter ocorrido a interpretação do cognome?
Supõe-se que poderia tratar-se de uma situação semelhante à de
Cesaréia de Filipe (90). Em todo caso, Pedro não defendeu nela
um ideal messiânico de natureza política, mas fez confissão da fi­
liação divina de Jesus, de mOdo que o versículo 17 está no devido
lugar como resposta de Jesus. Principalmente o episódio de Jo
6.66 e segs. entra em cogitação (91), porque aí realmente, es­
tamos frente a uma confissão de Pedro, que é uma paralela di­
reta aos versículos de Mt 1 6 . 1 7 e segs., ou seja, à tradição espe­
cial de Mateus nesse sentido. À pergunta se também os discí­
pulos querem abandonar a Jesus, Pedro responde: “ nós temos

(88) V. acima p.66 e seg.


(89) V. acima p .67 e seg.
(90) Assim K. L. SCHMIDT, “ Die Kirche desUrchristentums”
(Festgabe für A. Deissmann, 1927), p .283.
(91) Semelhantemente BERNHARD W EISS (Meyefs Kommenfar,
10.® edição, 1910), ad loc.
crido e conhecido que lu és o Santo de Deus” . Visto que a
expressão “ Santo de Deus” significa o mesmo que “ Filho de
Deus” (92), 0 paralelismo com Mt 16.17 e segs., salta aos olhos.
Do Evangelho de João não podemos deduzir qualquer indica­
ção direta, mas só indireta, acerca da ocasião, na qual essas
palavras foram proferidas por Pedro. Elas sucedem à narra­
ção da multiplicação dos pães. Mas essa narração de fato que
ocorre por ocasião da eucaristia é apresentada no Evange­
lho de João juntamente com aquela outra do milagre dos
pães. Isso nos indica a possibilidade de o quarto evangelis­
ta conhecer uma tradição, segundo a qual foi proferida por Pe­
dro a confissão feita por ocasião da última ceia. Concorda com
isso 0 fato de que justamente nesse contexto o Evangelho de
João fala da traição de Judas Iscariotes, que Jesus havia predi­
to, segundo os sinóticos, exatamente nessa ocasião.
Nesse caso, não dependemos de uma hipótese, mas temos, em
um dos evangelhos sinóticos, um texto paralelo. Êste não apre­
senta uma confissão cristológica, mas uma confissão de Pedro a
Jesus, e principalmente um paralelo exato à segunda parte da tra­
dição utilizada em Mt 1 6 . 1 7 e segs., em forma de uma incumbên­
cia a Pedro, de fortalecer os irmãos. E isto, justamente no con­
texto da última ceia. O texto paralelo é a passagem por diversas
vêzes citada, em Lc 22 . 3 1 . Ela não se assemelha literalmente
com Mt 1 6 . 1 7 e segs., mas sim quanto ao sentido. Ela está
incluída na predição da negação de Pedro; “ Simão, Simão, eis
que Satanás vos reclamou para vos peneirar como trigo. Eu, po­
rém, roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; tu, pois quan­
do te converteres, fortalece os teus irmãos” . E Pedro lhe disse;
“ Senhor, estou pronto a ir contigo, tanto para a prisão, como pa­
ra a morte” . Mas Jesus lhe respondeu; “ Afirmo-te, Pedro, que
hoje o galo não cantará antes que me tenhas negado três vêzes"’.
— Também a paralela de Jo 6.66, onde a confissão ao “ Santo de
Deus” é a resposta à pergunta de Jesus: “ Quereis também vós
outros retirar-vos?” , pressupõe a disposição de Pedro de passar
pelo martírio.
O diálogo, em Lucas, contém, portanto, três coisas: 1.®) o
voto de Pedro, de ir com o Senhor até à prisão e à morte; 2.®)
a predição da negação de Pedro; 3.®) a ordem de Jesus a Pedro,
de fortalecer os irmãos após a conversão.

(92) V ide O. CULLMANN, Die Christologie des Neuen Testaments,


2.» edição, 1958, pp. 287, 292.
Não seria êste o verdadeiro contexto também de Mt 1 6. 1 7 e
segs. (93) ? Se assim fôsse, compreenderíamos muito bem como
Mateus poderia ter chegado a combiná-la com a ocorrência de Ce­
saréia de Filipe. Primeiramente trata-se também em Marcos de
uma confissão de Pedro — evidentemente mal interpretada — ,
apesar de ter um caráter diferente do nosso texto, onde adquiriu
a forma de uma declaração em que afirma estar disposto a empe­
nhar-se corajosamente pelo Senhor. Além disso, Jo 6.66 demons­
tra que a tradição sôbre a qual se estribam todos os três textos
combinou a confissão cristológica com o voto de fidelidade. Há
mais uma razão que, nesse caso, poderia ter levado Mateus a situar
a palavra no lugar onde a encontramos. Em Lucas, Simão é
mencionado com os outros discípulos, em conexão com Satanás, e
também em relação ao sofrimento de Jesus Cristo, que é visado in­
diretamente com a predição da negação. Também a paralela em
Jo 6.66 parece haver conhecido a menção do diabo nesse contexto:
“ Um de vós é um diabo” . E justamente aí não é Pedro, mas Ju­
das. Teria isso influenciado a escolha da cena de Cesaréia de
Filipe, em cujo final Pedro é chamado de Satã? Não quereria
Mateus completar uma imagem de Pedro com a outra, através da
combinação de ambas as tradições?
0 que nos inclina a pressupor, também para a palavra repro­
duzida por Mateus, o contexto da história da paixão, indicado por
Lucas, é 0 fato de que, do mesmo modo, o capítulo 21 do Evan­
gelho de João, que em certo sentido entra em cogitação como pa­
ralela ainda mais direta para Mt 1 6 . 1 7 (“ apascenta as minhas
ovelhas” ), parece aludir conscientemente a uma tradição, segundo
a qual teve lugar, durante a vida de Jesus, uma cena como a des­
creve Lc 2 2 .3 1-3 4 . O diálogo entre o Ressurreto e Pedro, em
Jo 2 1 . 1 5 e segs., apresenta uma réplica direta do diálogo em Lc
22 .31-34 , entre o Jesus terrestre e Pedro, e só pode ser compreen­
dido a partir dêsse ponto (94). É surpreendente que encontramos
no nosso texto justamente a mesma combinação de voto, predição e
ordem, como em Lc 22 . 3 1 , com a única excessão de que agora

(93) Semelhantemente, mesmo assim diferente, R. LIECHTENHAN,


op. cit- (cf. pág. 186 dêste volume), p. 9 e segs.
(94) Isso é contestado por M. GOGUEL, VEgUse primitive, 1947,
p- 192, e Jésus, 1950, p. 390 (V. acima p- 67), provavelmente em conexão
com sua tese pouco convincente de que não seria histórica a circunstância
de ter Pedro negado a Jesus. “Did Peter deny his Lord? A Conjecture” ,
Harv. Theol. Rev. 1932, p. 1 e segs.).
essas palavras se situam no contexto da ressurreição. Desde que
a negação de Pedro foi predita, aparece êsse apóstolo pela primei­
ra vez frente ao seu Senhor, mas dessa vez é o Ressuscitado que
tem diante de si. Em lugar da tríplice negação de Pedro figura o
seu tríplice protesto: “ Sim Senhor, tu sabes que eu te amo” . Ao
voto de Pedro de ir com o Senhor até à prisão e até à morte, cor­
responde a predição do martírio. Em lugar da ordem de fortale­
cer os irmãos, temos a ordem de apascentar as ovelhas de Cristo.
Esta demonstra a identidade da mesma tradição com Mt 1 6 . 1 7 e
segs. A imagem das “ ovelhas a apascentar” contém implícita, a
do “ rebanho” , e êsse conceito é, como esperamos demonstrar (95),
muito semelhante ao da “ Igreja” , em Mt 1 6.18.
Vimos acima que alguns pesquisadores supõem que a base de
Mt 1 6 . 1 7 e segs. seria uma cena de aparição a Pedro, que teria si­
do utilizada em Jo 2 1 . 1 5 e segs. (96). Em vista da semelhança
interna e formal entre Mt 1 6 . 1 7 e segs., Lc 22 . 31 e segs., Jo 6.66
e Jo 2 1 . 1 5 e segs., admitimos também uma relação entre Jo 2 1 . 1 5
e segs. e Mt 1 6 . 1 7 e segs., porém, no sentido inverso: o autor de
jo 2 1 . 1 5 e segs. conhecia uma narrativa da história da Paixão,
segundo a qual, após a última ceia, na véspera da crucificação,
quando Pedro declarou que havia de de seguir o seu Senhor até a
morte, Jesus predisse que o discípulo o negaria. Ao mesmo tem­
po a narrativa incluía a predição da conversão de Pedro e a con-
íirmação do rebanho nêle como a Pedra. Essa combinação existe
em Lc 22, 31-34.
Constatamos, portanto, a seguinte relação triangular: Mt 16 e
Lc 22 correspondem quanto à predição do papel liderante de Pe­
dro na futura comunidade dos discípulos; Mt 16 e Jo 6, quanto à
confissão de Pedro: “ Tu és o Filho (o Santo) de Deus” ; Jo 6 e
Lc 22, quanto ao voto de Pedro, de seguir a Jesus, e ao contexto
da última ceia, no qual a cena tem lugar. Além disso há que ob­
servar 0 seguinte: Ao falar da negação de Pedro, Jo 21 pressupõe
0 mesmo contexto que Jo 6 e Lc 22; Jo 2 1, bem como Mt 16 e Lc
22 , pressupõe a predição, ou melhor, a incumbência do papel li­
dei-ante de Pedro na comunidade. A conclusão impõe-se: As três
narrativas em Mt 1 6 . 1 7 e segs., Lc 2 2 . 31 e segs. e Jo 6.66 e segs.
baseiam-se em uma narração, como fonte comum. Esta pertence

(95) V. acima, p. 226.


(96) V. acima, p. 206 e seg-
a uma tradição mais antiga e deve ter sido conhecida pelo autor
Podemos restaurar o seu conteúdo. Quando da última ceia (ou
imediatamente após) Pedro diz a Jesus: Tu és o Filho de Deus,
e lhe promete segui-lo até a morte. Jesus responde que a Deus
deve êle tal revelação sôbre êle e preaiz que havia de negá-lo, acres­
centando que Pedro terá a incumbência especial frente à comu­
nidade dos discípulos, a qual cairá na mesma tentação que êle
próprio.
Aquêle que examinar imparcialmente essas complexas rela­
ções entre os referidos trechos em Mt 16, Lc 22, Jo 6 e Jo 2 1, deve­
rá admitir que a transferência da promessa feita a Pedro para o con­
texto da última ceia não é uma hipótese arbitrária e que ela pode ser
textualmente melhor fundamentada do que a hipótese preferida,
de que as palavras pertencem a uma cena de aparição, se bem que
esta última não seja impossível (97).
Concluímos que a palavra em Mt 1 6 . 1 7 e segs. pertence, muito
provàvelmene, á história da Paixão, e deve ter sido transmitida
originalmente no contexto do aviso da negação de Pedro, mas foi
colocada por Mateus em um outro contexto. Veremos adiante que
a proximidade imediata da morte de Jesus e principalmente a re­
lação com a última ceia tornam a palavra sôbre a “ Igreja”
especialmente compreensível (98). Trata-se de uma probabilidade
exegética muito grande. Apesar disso, devemos observá-lo expres­
samente, a explicação a seguir depende em seu todo, não dessa hi­
pótese sôbre o contexto original.

(97) Esperamos que nossos críticc>s reexaminem a nossa tese na for­


ma que lhe demos no artigo New Testament Essays for T . W. MANSON,
citado acima, obs- 85 (pág. 205), e, de maneira menos minuciosa,
também aqui. Quando A. V Ö G TLE , op. c it., Bibl. Zeitschrift 1958, p. 92,
a negou, êle só conhecia as explanações da 1.^ edição e as alusões na
nossa Christologie des Neuen Testaments- Também H. LEHMANN, op. cit.,
p- 63, SÓ considerou o paralelismo em Lc 22.31 e segs., quando pensou
ter de negar a transferência da cena para a história da Paixão. — Os
seguintes também se expressaram criticamente em relação à nossa tese;
P. G AECH TER {Zeitschrift für hath. Theol. 1953, p. 33 e segs-), F. M.
BRAUN {Revue Thomiste 1953, p. 395 e seg.) ; Y . CO N G AR (La vie in­
tellectuelle 1953, p. 20) e J. DEJAIFRE (Nouv. Revue théol. 1953, p. 220
e seg.), os qu-ais querem, em parte, deixar os vv- 17-19 no contexto da
cena de Cesaréia.
(98) V. abaixo p. 218 e seg. KARL BARTH , Kirchliche Dogmatik II 2.
1942, p. 482 e segs., acentua muito a relação teológica com a Paixão;
aliás, partindo da narrativa do contexto. (Cf. 8.“ vol. de edição franc-; II,
2, *, pág. 433 e segs. N. dos Editores).
3° Autenticidade e Sentido do Texto.

Primeiramente temos de verificar se os motivos contrários


à autenticidade são plausíveis. A liipótese, defendida por an­
tigos opositores da autenticidade, de que os versículos teriam
faltado originalmente também em Mateus, sendo introduzidos
no texto posteriormente, sob influência de pretensões romanas,
é hoje raramente admitida dessa forma (99). Recentemente cons­
tatou-se que é provável que Irineu não tenha conhecido a expres­
são relativa às chaves no seu texto de Mateus. Êsse fato conduziu
à reformulação da referida hipótese, com a idéia de que a men­
cionada promessa teria sido introduzida no texto por volta de 190,
em Antioquia (10 0 ). A tese da inautenticidade é, pois, defendida
hoje em outros têrmos: O próprio Mateus reproduz palavras cria­
das pela igreja, e não proferidas por Jesus. Nesse caso deve-se
pedir, inicialmente, que os defensores dessa tese esclareçam as cir­
cunstâncias e os motivos que teriam ocasionado já na época ante­
rior a Mateus uma tal criação da comunidade.
Isso é tanto mais necessário, uma vez que a antigüidade e a
origem palestina do trecho deveriam estar atualmente fora de co­
gitação. E ’ 0 que demonstra, do ponto de vista lingüístico, o ca­
ráter semítico da passagem. Realmente, quase todos os pesqui­
sadores concordam nesse ponto, quer defendam quer neguem a au­
tenticidade ( 1 01 ) . Constatamos que justamente Bultmann, que ne­
ga com energia que aquelas palavras tivessem sido proferidas por
Jesus, sempre afirmou que já a comunidade palestina deveria ter
criado a expressão. Acentua-se principalmente e com razão, que
ela dificilmente poderia ter surgido na diáspora grega, visto que
no grego, ou seja, no texto dos evangelhos que possuímos, não se
verifica o trocadilho evidentemente visado. Só na tradução é êle
restaurado:“ Tu és Pedra, e sôbre esta pedra edificarei a minha
Igreja” . (*)

(99) K. L. SCHMIDT, Die Kirche des Urchristentums, p. 281, a clas­


sifica, com razão, de muito “ grosseira, para ser levada a sério” .
(100) Assim W. L. DULIÈRE, “ La péricope sur le pouvoir des clefg.
Son absence dans le Texte de Matthieu aux mains d’Irénée” {La nouvelle
Clio 1954, d. 73 e segs-). No entanto, também êle demonstra que Irineu
conhecia o v. 17- (V. acima p- 180 e segs.).
(101) Assim também A. HARNACK, Der Spruch über Petrus ais
den Felsen der Kirche (Maíthaus XVI, 17 e seg..) (Sitzungsbericht d. Berl.
Ak. d. Wiss. 1918), p. 637 e segs. W . DULIÉRE, op. cit., acredita, no
entanto, poder explicar isso satisfatoriamente, aludindo à origem antioquina.
(*) N. dos T. — ^O A. refere-se, no original alemão à tradução para
essa língua: “ Du bist Fels, und auf diesen Felsen werde ich meine Kirche
No grego, o cognome de Simão é Petros, com a terminação
masculina. Portanto, traduziu-se o nome Cefas por Petros. Mas
Jesus diz que quer edificar sua Igreja sôbre “ esta petra” . Justa­
mente o que deveria correlacionar-se não se correlaciona. No
aramaico temos, ao contrário, ambas as vêzes a mesma palavra
“ Kefa” : Tu és Kefa, e sôbre esta Kefa edificarei a minha Igreja.
Nome e objeto são formalmente idênticos. Em vista disso, é de
se supor que a frase tenha sido criada e proferida em aramai­
co ( 10 1) (>^=)-
O seu caráter semítico é coirrirmado por diversos outros por­
menores: a denominação do pai de Pedro, Barjonas ( 1 03) ; a ex­
pressão “ carne e sangue” em lugar de “ homem” (104); as pala­
vras “ ligar e desligar” (105); igualmente o ritmo das estrofes —
três estrofes com três linhas cada uma — que ocorre semelhante­
mente em outras palavras de Jesus, p. ex., em Mt 1 1 . 7- 9 e 1 1 . 25- 30
(106), bem como a imagem da pedra como fundamento, da qual
existe um paralelo exato na literatura rabínica referindo-se a
Abi’aâo como a rocha do mundo (107).
O fato também de que só Mateus apresenta a palavra, indi­
ca igualmente a origem palestina da tradição (108), cuja anti­

bauen” . Cf. a tradução revisada de Almeida: “ Tu és Pedro, e sôbre esta


pedra edificarei a minha igreja” .
(102) L’Eglise primitive, 1947, p. 189, obs.4, não acha êsse argu­
mento decisivo, vito que numtrocadilho a relação mútua não precisa
corresponder totalmente. "
(103) V. acima, p. 23 e seg., quanto à tese de R. EÍSLER, Jesous
basileus ou basileusas, p. 67.
(104) No N. T . I Co 15. 50; G1 1. 16; Ef 6. 12; Hb 2. 14. Freqüen­
temente na literatura judaica (Sir 14. 16), ainda não no A. T.
(105) ’sr e sr’. V. adiante, p. 233 e seg.
(106)Vide J. JEREMIAS, Angelos 1926, p. 107 e segs., e especial­
mente A. OEPKE, op. cit., p. 150 e seg.
(107) V. a explicação rabíninca para !s. 53. STR ACK -B ILLE R -
BECK, Kommentar z- N. T. aus Talmud und Midrasch, vol. í, p, 733; J.
J. JEREMIAS, Golgotha, p. 73; Quando Deus olhou para Abraão que
haveria de nascer, disse: Eis que encontrei uma pedra, sôbre a qual posso
edificar e fundar o mundo. Por isso êle denominou a Abraão, pedra.
(108) Em contraste com H. STRATH M AN N , “ Die Stellung des P e­
trus in der Urkirche” (Zeitschrift filr Syst. Theol. 1943), p. 255 e segs. (V.
acima p. 27), que, em conexão com a sua divisão geográfica dos evan­
gelhos, atribui a palavra à tradição de Antioquia, W. MICHAELIS, op. cit.,
p. 353, argumenta que em Antioquia era falado o grego.
(*) N. dos T . — A mesma figura poderia ser obtida em português
com a palavra rocha que, como em Aramaico kephas, pode ser nome pró­
prio ou comum: “ Tu és Rocha e sôbre esta r o c h a ...”
guidade pode ser demonstrada pela consideração de outro íato. A
história dificilmente seria transmitida na época em que não mais
era Pedro o guia da comunidade, mas sim Tiago. A frase deve
ter sido transmitida numa época em que Pedro ainda estava em
Jerusalém (109). Naturalmente a antigüidade da tradição, com­
provada pelo caráter palestino dos versículos, não demonstra ne-
cessàriamente que a frase tenha sido pronunciada por Jesus, mas
a constatação dêsse fato produz uma importante pressuposição pa­
ra tal hipótese.

Vimos que o principal argumento contra a autenticidade re­


side no uso da palavra igreja. Jesus não poderia ter falado da Igre­
ja, visto que só pregou o reino vindouro de Deus.

Nesse sentido devemos observar, antes de mais nada o se­


guinte: é correto que a palavra igreja (ekklesia) aparece só mais
uma vez nos evangelhos, e essa também no de Mateus, Mt 1 8 . 1 7 :
“ Se êle (o irmão que pecou )não os atende dize-o à Igreja” .
A autenticidade dessa pasagem também é muito compatida; além
disso, 0 significado não é o mesmo.

Mas essa estatística vocabular não pode ser decisiva. 0 que


importa é saber se não falta só a palavra, mas também o objeto,
assinalado pela palavra. Assim é que se deverá inquirir. Nesse
contexto tem sido lembrado com razão ( 110 ) que justamente em
tôda a Epístola de Paulo aos Romanos não aparece a palavra
“ cruz” uma única vez. E no entanto do comêço ao fim da carta
trata da morte expiatória de Cristo. Além disso, tem sido indi­
cado que também no Evangelho de João não se encontra a pa­
lavra {ekklesia). Apesar disso não há a menor dúvida de
que êsse livro fala da Igreja. Mais ainda, a particularidade dêsse

(109) W. MICHAELIS, Mtth.-Komm., p. 350, é mesmo de opinião


que Lucas não apresenta a frase porque esta só se cumpriu nos pri­
meiros tempos. Outros, por outro lado, são de opinião que justamente po­
lêmicas posteriores na Palestina entre Pedro e T iag o (parente de jesus)
poderiam ter originado a expressão. (As&im K- G O E T Z ; R. B U L T ­
MANN pensa em debates acêrca da lei, na Palestina; M. G OGUEL,
em discussões que teriam tido lugar depois de 70). No entanto, muito
pouco sabemos acêrca dessas disputas para usá-las como ponto de partida
para a explicação da origem da frase. De acôrdo com J. JEREMIAS, op. cit.,
também é possível deduzir a idade da frase do fato de que cedo,
no próprio N. T., já encontramos vestígios de seu emprêgo: G1 1.16-18
e G1 2.9.
(110) Vide A. OEPKE, op. c it, p. 114.
Evangelho consiste precisamente em traçar a linha do Jesus his­
tórico para a Igreja ( 1 1 1 ) .
O problema reside em outro ponto. Inicialmente devemos
evitar o êrro cometido pela maioria dos exegeías que pensam ter
de negar a autenticidade do nosso texto, devido ao fato de se
mencionar nele a “ Igreja” . Êles consideram, por assim dizer,
como incontestável, que a palavra Igreja só poderia referir-se a
uma Igreja organizada, segundo o que seria o seu sentido pos­
terior. Em seguida tentam demonstrar que Jesus não poderia ter
êsse conceito anacrônico de Igreja. Um tal procedimento, no
entanto, não pode ser aceito.
Primeiramente deve ser acentuado que o conteúdo da pala­
vra grega ekklesía não designa uma criação cristã, mas pertence
ao âmbito judeu ( 11 2 ) . Mesmo no Nôvo Testamento encontramos
a palavra com o seu significado original em At 7. 38: “ E ’ êste
(Moisés) quem estêve na ekklesia no deserto, com o a n j o . , , ”
Nesse caso, ekklesia subentende o povo de Israel, que Moisés
conduziu através do deserto. N a tradução grega do Antigo Tes­
tamento, a Septuaginta, encontra-se ekklesia aproximadamente
cem vêzes, sendo, na maioria das vêzes, tradução do hebraico
cahal que, ligado ao genitivo Jahve ( “ de Deus” ), designa sempi-e
0 povo de Israel no sentido histórico soteriológico. Existe ainda
uma série de outras palavras hebraicas e aramaicas que podem
ser traduzido para o grego por ekklesia ( I Í 3 ) . Tôdas essas e x ­

i l 1. Vide O- CULLMANN, Urchristentum und Gottesdienst, 2.^ edi­


ção, 1950, p. 39 e segs. (cf. Les sacrements dans l’Evangile johannlque,
1951, p. 9 e segs. Quanto à questão da Igreja no Evangelho de João, V.
também E. GAUGLER, “Die Bedeutung der Kirche in den johanneischen
Schriften” {Internat, kirchl. Zeitschr. 1924), p. 97 e segs.
(112) Vide L. ROST, Die Vorstufen von Kirche und Synagoge im Al­
ten Testament, 1938; também O- Michel, Das Zengnis des Neuen Testaments,
von der Gemeinde 1941, p .5 e segs., J. Y- CAM PBELL, J. Th. St. 1948,
p. 130 e segs.
(113) Equivalentes hebraicos: qehal, edtha, zibbura, kenischtha;
aramaicos: qehalla, z'ibhura e com maior freqüência kenischtha. Quan­
to ao que há de lexicográfico, é suficiente indicar o artigo fundamental
K. L. SCHMIDT, ektdesía, in Theol. Wörterbuch de G. Kittel, o qual con­
tinua a mais antiga, mas já bem orientada compilação de H. CREMER
(H. Cremer-Koegeí, Bibl.-theol- Wôrterb. des neutestamentlichen G rie­
chischen, 11.®' edição, 1923). Há muitos argumentos a favor de kenischtha
como palavra fundamental (K- L. SCH M IDT). Eu não afirm aria com
tanta certeza que deve ser preferida por designar simultaneamente o edi­
fício, pois a imagem do edifício está im plícita no conceito do povo de
Deus, portanto, também por qehal Yahve (V- nesse sentido P. VIELHAUER,
Oikodome, das Bild vom Bau in der christlichen Literatur vom Neuen
Testament bis Clemens Alexandrinus, 1939)- Preferimos deixar aberta a
pressões, das quais algumas também podem ser traduzidas para
o grego por synagoge, referem-se a Israel como povo de Deus.
Uma delas (kenischíha) pode significar também “ sinagoga espe­
cial” .

Temos de partir da significação “ povo de Deus” , ao pergun­


tarmos se Jesus poderia ter falado da Igreja ou não. Coloquemos,
pois, em lugar da muito moderna palavra igreja, a expressão
povo de Deus: sôbre esta pedra edificarei o meu povo de Deus.
Nesse sentido, Jesus não criou um nôvo conceito, pois êste já exis­
tia e era até especialmente corrente no pensamento judeu. Cada
judeu tinha a certeza de pertencer a essa ekklesia. Tão logo um
grupo, no judaísmo posterior, tivesse a consciência de concretizar
em si e por si o papel do povo de Deus (papel, ao qual Israel
como um todo tornara-se infiel), passava necessariamente para o
primeiro plano o conceito ekklesia, na sua forma semítica. Isso,
especialmente na “ comunidade” judaica “ da nova aliança” , que
é hoje tão atual, devido aos novos achados no Mar Morto ( 1 1 4) .
0 antigo conceito profético do “ resto” de Israel (Is 7. 3; 1 0. 2 1 )
conduz diretamente a um tal reavivamento da consciência do povo
de Deus em pequenas comunidades separadas.

Antes de tudo, a judaica expectativa messiânica encerra em si


a idéia de uma comunidade; a designação do Filho do homem, a
que se refere o livro de Daniel (cap. 7.9-28) como o “ povo dos
santos” e, tendo por base o conceito da representação, é apli-

questão de qual a palavra aramaica a entrar antes em cogitação, como o


faz J. LAGRANGE, Commentaire, ad loc. Isso também não é de impor­
tância fundamental, pois o principal é que tôdas essas palavras perten­
cem ao conjunto do conceito do povo de Deus. LAG RAN G E considera
tanto qehalla como kenischíha como equivalentes aramaicos possíveis,
ZAHN kenischtha, BU LTM AN N e MICHAELIS qehalla. SC H LA T T E R in­
dica o hebraico qahal e eãa, aramaico edtha.
(114) Quanto ao achado mais antigo. Vide L. ROST, “ “ Die Damas-
kiisschrift” (Kl. Texte, 1933): eda (VIL 20; X, 4, 8; XIII, 13 em S.
SCH ECH TER, Dok- jüd. Sekt); qahal (VII, 17; XI, 22 em S. SCHECH-
T E R ). V. também O. MICHEL, Das Zeugnis des Neuen Testaments von
der Gemeinde, 1941, p. 17 e segs. Quanto ao achado recente, v. entre
outros K. G. KUHN, D ie in Palästina gefundenen hebräischen Texte und
das Neue Testament” (Zeitschrift für Theol. u. Kirche 1950), p. 194 e
segs. V. acima, p. 70 e seg.
(115) ENOQUE 38. 1; 53. 6; 62. 8; 83. 8; 84. 5.
cada a uma só pessoa. Mas também aos messias da espectativa
judica oficial pertence essencialmente uma comunidade escatoló-
gica.

Tôda vez que, juntamente com tôda a tradição dos evange­


lhos, atribuirmos a Jesus a consciência própria de ser o Messias,
sob qualquer forma especial, deveríamos inclusive postular junto
a êle 0 povo de Deus dos últimos tempos, o qual lhe pertence,
mesmo que não possuíssemos texto algum sôbre o assunto. Se
êle se considerava o Filho do homem de Daniel (Mc 14.62 paral.),
também sabia que, segundo Daniel 7.18-27, o Filho do homem
representa o “ povo dos Santos” ( 1 1 6) . 0 conceito da represen­
tação, indispensável para a compreensão da história da salvação
no Antigo Testamento, é básico para a consciência de Jesus, quan­
to à sua própria obra de salvação. Falando do povo de Deus,
que êle funda, Jesus pensa certamente no “ resto de Israel” , que
representará êsse povo em sua totalidade e em tôrno do qual .se
reunirão os gentios ( 1 1 7 ) .

Frente à antiga concepção judaica do povo de Deus, há algo


nôvo, criado por Jesus nesse sentido; essa ekklesia, êsse povo de
Deus, é reconstituído, em vista do fim, devido à sua ação messiâ­
nica especial, como êle a entende, ou seja, como servo sofredor de
Deus. A sua obra na terra consiste justamente na criação dêsse
nôvo povo de Deus, edificado sôbre essa base.

Nesse sentido judaico já existe uma “ eclesiologia” em Jesus


a qual está fundamentalmente vinculada à sua “ cristologia” . É, por­
tanto compreensível que um pesquisador como Bultmann, que ne­
ga tôda a consciência messiânica de Jesus, se oponha também à
autenticidade da frase sôbre a ekklesia. Aquêle porém, que

(116) O mérito permanente de F. K ATTE N BU SC H , “ Der Quellort


der Kirchenidee” {Festgabe for Harnack, 1921, p. 142 e segs.), é ter des­
locado êsse conceito para a primeira plana. Igualmente T . W . MANSON
e R. N EW TO N F L tW , v. acim.a obs. 38 à pag. 189.
( ! i 7 ) Também K. L. SCH M iD T e F. K A T T E N B U SC H admitem
que o “ resto” , a “ comunidade especial” , representa Israel na sua totali­
dade. Por êsse motivo, a crítica de A. O EPKE (op. cit., pp. 114 e segs.
140), em conexão com R. BU LTM AN N, contra K. L. SCHMIDT e F.
K A TTE N BU SC H , nos parece injustificáveL O pensamento de uma se­
paração farisaica não está implícito no conceito do resto, mas representa
só o perigo ao qual êste pode conduzir. O fato de que a comunidade
de Jesus encerra justamente as ovelhas perdidas exclui qualquer farisaís-
mo. V. pág. seguinte.
acredita ter Jesus se considerado a si próprio o Messias, embo­
ra no sentido especial de Filho do homem e sofredor servo de
Deus, justamente por isso não deveria negar apressadamente a au­
tenticidade de Mt 1 6 . 1 7 e segs., pois, como Messias, Jesus deveria
ter em vista uma comunidade ( 1 1 8) .
0 fato de que o povo de Deus não é mais simplesmente idênti­
co à nação judaica relaciona-se com a maneira especial pela qual
Jesus interpreta a sua obra messiânica. Já o conceito profético
do “ resto” e a prédica de João Batista esclarecem a imagem do
povo de Deus nesse sentido. Jesus sabe que é enviado às “ ove­
lhas perdidas da casa de Israel” (Mt 10.6; 15. 24), mas justamen­
te essa limitação às ovelhas perdidas rompe qualquer restrição na­
cional e exclui simultâneamente tôda a separação farisaico-sec-
tária. E ’ certo que o caminho que conduz à fundação do povo
de Deus passa por Israel. Mas é precisamente êsse caminho de
redução a essa mesma comunidade que leva também à salvação
de tôda humanidade.
A nova aliança, anunciada e fundada por Jesus na véspera
de sua morte, por ocasião da última ceia, visa a reconstituição
messiânica do povo de Deus. Aliança e povo de Deus não po­
dem existir separados ( 1 1 9) . No caso de estar certa a minha hipó­
tese de que Jesus proferiu a profecia de Mt 1 6 . 1 7 e segs. den­
tro do contexto indicado por Lc 2 2 . 31 e seg. isto é, em prosse­
guimento à ceia e às palavras pronunciadas na ocasião, o anun­
cio da edificação da ekklesia adquire um relêvo todo especial nes­
se contexto. 0 liame dessa construção com a obra messiânica
do sofrimento e da morte de Jesus torna-se especialmente evi­
dente. Porém êsse liame persiste mesmo que as palavras sejam
colocadas em contexto diverso.
0 fato de Jesus falar da sua ekklesia não nos parece, como s
tem afirmado, incompatível com a realidade de que no judaísmo
se trata do povo de Deus, o qehal Jahve, a ekklesia do Senhor
(Nm 1 6. 3; Dt 7.6). O Messias-Filho do homem pode real-

(118) Vide p. VOLZ, Die Eschatologie der jüdischen Gemeinde im


neutesiamentlichen Zeitalter, 1934, p. 49. — Isto é o que acentua bastan­
te F. J. LEEN H ARD T, Etudes sur l’EgUse dans le Nouveau Testament,
1940, p. 16. — V. também O. LINTON, Das Problem de Urkirche in der
neuern Forschung, 1932, p. 148: O Messias não é uma pessoa privada, k
êle pertence uma comunidade.
(119) Vide L- ROST, Die Vorstufen von Kirche und Synagoge im
Alten Testament, 1938, p. 18 e segs. — Igreja e Santa C eia; F. K A T -
'i'EN ßU SCH , op. cit.
mente falar da sua ekklesia (120 ) Nessa qualidade êle também
pode afirmar que “ edificará” êsse povo. Não existe contradição
com 0 fato de que essa edificação é obra de Deus ( 1 2 1 ) .
Quem ler Mt 1 6 .1 7 sob o prisma dêsse conceito essencial­
mente judeu, e se der conta de que qahal-ekklesia era, na época
de Jesus, um conceito muito corrente e firmemente arraigado no
pnsamento judeu, na verdade não poderá negar, de maneira al­
guma, a autenticidade das palavras que estamos discutindo. E,
em vista disso, reafirmamos nossa tese, a qual foi empregada por
Bultmann como ponto de partida para nova objeção, e a reafir­
mamos pelo fato de que um verdadeiro método científico impõe
que se interpretem os conceitos, antes de tudo, segundo o senti­
do que têm no ambiente e no contexto em que foram emitidos.
Não é possível partir de; um conceito de ekklesia que só posterior­
mente havia de existir para então deduzir que não pode, de ma­
neira alguma, ser atribuído a Jesus. Inicialmente faz-se neces­
sário perguntar se não existe um conceito de ekklesia que cor­
responda ao pensamento judaico, e cujas categorias tenham sido
adotadas por Jesus.
Além disso, é possível procurar que a imagem da pedra no
judaísmo está vinculada à idéia de comunidade. Com razão se
tem indicado a imagem da rocha santa. No entanto, podemos en­
contrar uma relação mais precisa. O conceito do Filho do ho­
mem do Livro de Daniel, que êle certamente conhecia, é centra!
para Jesus e está ligado á imagem do messiânico, “ povo dos san­
tos” , que porá fim aos reinos terrestres. O mesmo Livro de Da­
niel (cap. 2 .3 4 e segs.; 2.44 e segs.) fala de uma pedra ima­
gem de um reino que esmagará todos os outros (12 2 ). Essa pe­
dra desprende-se do monte, destroça a estátua de Nabucodonosor
e cresce até tornar-se uma grande montanha, que enche tôda a
terra. Já no judaísmo essa pedra virá .a referir-se ao Messias
(12 3 ). Para nossa questão, porém, é mais importante verificar
que a palavra de Jesus em Lc 2 0 .17 e segs. certamente tem em

(120) Mt 13. 41 se refere ao “ reino do Filho do homem” .


(121) Não reconhecemos a dificuldade que K. L. SCHMIDT, Dle
Kirche des Urchristentums, p. 288, vê nesse ponto. No entanto, também
E. KLOSTERM AN N, Matth. Komm., p. 140, estranha que Jesus diga “mi­
nha” Igreja.
(122) 0 mérito de JOACHIM JEREMIAS; V. Golgotha, p. 77 e
segs., é ter demonstrado essas conexões.
(123) STR AC K -B ILLE R B EC K , Komm. z. N. T. aiis Talmud unã
Midrasch, tom. I, p. 877.
vista essa passagem de Daniel: “ Que quer dizer, pois “ A pedra
que os construtores rejeitaram, esta veio a ser a principal pedra
angular. Todo o que cair sôbre essa pedra, ficará em pedaços;
e aquêle sôbre quem ela cair, ficará reduzido a pó” (12 4 )? Na
denominação de pedra atribuída a Abrão anteriormente (12 5 ), ve­
mos um degrau, entre os judeus, para a aplicação da mesma figu­
ra a Jesus e depois também aos apóstolos (126).
A idéia da aplicação da mesma imagem a uma comunidade
também é perfeitamente compreensível, tendo-se em mente o modo
como os judeus pensavam e se exprimiam (12 7 ). 0 Antigo Tes­
tamento fala da casa de Israel (Nm 1 2 .7 ; Rt 4 . 1 1 ; Am 9 . í l , etc.)
e mesmo Jesus emprega essa expressão em Mt 10 .6 e 15.24. Por
isso, essa figura é muito corrente entre os autores dos livros neo-
testamentários, os quais a atribuem à comunidade, especialmente em
1 Tm 3 .1 5 , que se refere à casa de Deus, a ekklesia: do Deus vivo,
e ainda em 1 Pe 2 .5 (a casa espiritual), Ef 2 .2 2 ; Hb 3 .2 e segs.
e 1 0 .2 1. Além disso, é preciso lembrar que o conceito de “ edi­
ficar” (128 ) é corrente em referência à comunidade (Am 3 . 1 1 e
segs.; no Nôvo Testamento principalmente em At 9 .3 1) . Tam­
bém Paulo não o emprega originalmente no sentido individualista
e pietista, mas significa com êle .a edificação da comunidade (129 ).
Especialmente importante para a nossa questão é que, como vere­
mos (130 ), 0 próprio Jesus fala, noutra ocasião, sôbre a comuni-

(124) Só podemos explicar o verbo likmãn, partindo de Dn 2. 34


e segs. R. GRABER, Petrus der Fels, 1948, p. 29, demonstra que a re­
lação para com a passagem de Daniel, partindo de Mt 21. 42 e segs. é
mais estreita do que partindo do texto paralelo de Lucas, como o faz
J. JEREMIAS. I s s o , ,no entanto, s ó é possível se o v. 44,, omitido em
boas testemunhas textuais, fôr original. Os argumentos de R. GRABER
talvez sejam justamente apropriados para demonstrar que o referido ver­
sículo se encontra no texto original.
R. BOHREN, Das Problem der Kirchenzucht im Neuen Testament,
1952, p. 32 e segs., acredita ver uma outra conexão, que, no entanto, visa
só o profeta: Jr 1. 18 e seg.: Eis que hoje te ponho por coluna de ferro
e por muros de b ro n ze ... pelejarão contra ti, mas não prevalecerão” .
(125) V. abaixo p. 246 e seg.
(126) V. pág. 213.
(127) Quanto a todos os pormenores, indicamos o estudo cuidadoso
de P. VIELHAUER, Oikodome, das Bild vom Bau in der christlichen Lite­
ratur vom Neuen Testament bis Clemens Alexandrinas, 1939.
(128) oikodomein.
(129) I Co 8.1-10; Rm14.19; 15.2, 20.
(130) V. abaixo p. 226.
dade por êle fundada, empregando imágem análoga, isto é, a do
templo que êle quer edificar.

Nosso texto pressupõe que o povo de Deus se tornará rea­


lidade ainda no presente eon. A forma futura “ edificarei” po­
deria talvez induzir-nos a -associar essa realização do povo com
0 reino prometido de Deus. No entanto, o que se segue, “ ligar
e desligar” , e principalmente a referência à terra e ao céu, indi­
cam que se deve entender um povo de Deus que se concretiza
já neste presente eon.
Ora, é precisamente êsse fato que tem levado muitos in­
térpretes a negarem que essas palavras tenham sido proferidas
por Jesus. Poderia êle, que havia anunciado a vinda do reino
no fim dos tempos, falar da realidade do povo de Deus já neste
presente eon? Em última análise, todo êsse problema do tem­
po está na base mesma de tôda a questão. Devemos distinguir
entre as seguintes questões parciais: 1®) Teria Jesus, duran­
te sua vida terrena, pôsto o fundamento para uma comunidade
messiânica? 2.“) Teria êle entendido que o nôvo eon continua­
ria após sua morte, e que só então seria com todo o vigor, e
antes do fim dos tempos, edificada aquela comunidade?
Começaremos com a primeira questão. Observemos desde
logo que será vista por perspectiva errônea, se for colocada em
forma de alternativa; é a comunidade messiânica presente ou
futura? Justamente a idéia judaica do povo de Deus — qahal-
ekklesia — não pode ser constrangida nos limites dessa alterna­
tiva. Muito pelo contrário, liga presente e futuro, O que, porém,
é ainda mais importante é que Jesus, em virtude da sua cons­
ciência messiânica, não opõe o presente e o futuro, a promessa e
a realização; sem de forma alguma confundi-los, não vê entre
êles contradição; em sua pessoa já se antecipa a realização;
Justamente por causa da comunidade messiânica não existe a
alternativa; presente ou futuro, promessa ou realização ( 1 3 1 ) .
E ’ provável que se deva à posição unilateral de Albert Schweit­
zer 0 fato de que muitos sábios não consigam fugir àquela alter­
nativa, Antes de Albert Schw^eitzer, a tendência predominante
era deslocar para a periferia ou abandonar totalmente a questão

(131) Quanto ao que segue, v. nossa Eschatologie des Neuen Tes­


taments, a aparecer no futuro, na qual examinaremos mais a fundo
êsse aspecto do problema.
da escatologia, considerada caduca “concessão ao pensamento
judeu” , e não reconhecer qualquer valor senão só ao presente eon.
Era, portanto absolutamente necessária a sua reação. No entan­
to, Alberto Schw^eitzer caiu no engano oposto de ver tôda a dou­
trina de Jesus sob uma falsa perspectiva temporal, supondo que,
para Jesus, só valia o futuro. Na realidade, a concepção de tem­
po no Nôvo Testamento caracteriza-se justamente pela tensão
entre “ o já realizado” e “ o ainda não consumado” (13 2 ). Essa
tensão percorre todo o Nôvo Testamento e caracteriza também
a posição de Jesus nos sinóticos (13 3 ). Na pregação de Jesus
como na da Igreja, o Reino de Deus, não está ainda presente e só
aparece no final: e, entretanto, êle já irrompe, ali mesmo onde Jesus
está presente: “ Se eu expulso demônios pelo Espírito de Deus,
certamente já é chegado o reino de Deus sôbre vós” (Mt 12 .2 8 ).
“ Anunciai a João o que estais ouvindo e vendo: Os cegos vêem,
os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem,
os mortos são ressuscitados, e aos pobres está sendo pregado o
evangelho” (Mt 11.4 - 5 ) .
Não pode, portanto, haver dúvida de que o próprio Jesus
conta com tal antecipação do Reino de Deus, embora esperasse a
consumação só no fim dos tempos. Admitir só um ou outro la­
do é desvirtuar a pregação de Jesus. Quem considerar decisi­
vas só as declarações acêrca do futuro, deveria perguntar-se
qual a diferença entre Jesus e os outros profetas. Promessas,
haviam-nas feito já todos os profetas, até mesmo relativas a um
futuro próximo. Mas a novidade, em Jesus, é que também há
0 cumprimento imediato.

Admite-se geralmente que, após a morte de Jesus, verifica-se


já essa tensão entre presente e futuro, promessa e realização,
no Cristianismo primitivo e em Paulo. Porérn, ao contrário do
que afirmam sobretudo os adeptos de Albert Schweitzer, ela não
representa no Cristianismo primitivo uma mudança de interpre­
tação ou afastamento do ensino de Jesus, que só do futuro teria
falado. Não: essa tensão existe também em Jesus. É verdade
que há nesse respeito uma certa diferença entre Jesus e a Igreja
primitiva, Jesus tendo consciência de que nela está presente a
consumação, enquanto que a comunidade primitiva via na Igreja

(132) Vide O. CULLMANN, Crístus und die Zeü, 1948, p. 72 e segs.


(133)V ide W . G. KÜMMEL, “Verheissung und Erfüllung"
{AThANT), 1945.
essa consumação. Mas aí não há, de maneira alguma, uma con­
tradição. Ao contrário, a consumação na pessoa de Jesus con­
duz diretamente para a consumação na comunidade e vice-versa, a
consumação na comunidade lembra a consumação na pessoa de
Jesus (13 4 ). Por isso não basta dizer que, para Jesus, o povo
de Deus começou a formar-se já em sua presença. Deveríamos
até postulá-lo se não possuíssemos textos claros sôbre o as­
sunto.
A contradição direta entre Reino de Deus futuro e povo de
Deus já realizado é criação do pensamento moderno. E’ verdade
que para Jesus êles certamente não coincidem. Mas não se contradi­
zem, como estamos inclinados a crer, partindo de uma esquemáti­
ca moderna. O conceito principal que conserva reunidos ambos os
aspectos, futuro e presente, já é, no judaismo, o do “ povo de Deus".
Êle é empregado simultaneamente para a sua realização presente
e futura, principalmente em havendo a convicção de que o fim
já foi antecipado. Mesmo que falte a consumação, a diferença
perde praticamente a sua importância.
Dessa forma, a fundação do povo de Deus terreno já se dá
no tempo do Cristo encarnado, embora venha a ser realmente
“ edificado” sòmente após a sua morte. Jesus criou a base para
êsse povo de Deus já durante a sua vida. Ao fundamentarmos
tal afirmação por meio de textos, mais uma vez não devemos
cometer o êrro de só considerar como decisiva, a existência
da palavra ekklesia. Compete-nos verificar se a matéria não apa­
rece em passagens onde a palavra não ocorre. Com razão tem
sido lembrada, nesse contexto, a constituição do grupo dos doze.
Tentou-se negá-la a Jesus, atribuindo-a ao tempo da Igreja pri­
mitiva (13 5 ). Mas, nada faz necessária essa hipótese. Mais

(134) Isso deve ser acentuado incontestàvelmente em relação ao mui


acatado artigo de W. G- KÜMMEL, “ Kirchenbegriff und Geschichtsbe­
wusstsein in der Urgemeinde und bei Jesus” , 1943- V. acima p- 190 e seg. Êle
vê nesse ponto um paralelismo incompatível de duas formas afins da cons­
ciência histórica e deduz daí a inautenticidade de Mt 16. 17 e segs. Na
realidade, essas conclusões tiradas por W . G. KÜMMEL, nos parecem
contradizer as suas próprias premissas.
(135) Assim, depois de muitos outros, R. BU LTM AN N, Die Frage
nach der Echtheit . . . , Th. B l. 1941. Por outro lado, a importância dos
doze como fase preparatória da ekklesía é acentuada com especial ênfa­
se por G. GLOEGE, Reich Qottes und Kirche im N. T ., 1929, também
por H. D. W END LAN D , Die Eschatologie des Reiches Gottes bei Jesus,
1931.
do que isso: como admitir que o grupo dos doze só se teria ori­
ginado na Igreja primitiva, quando é sabido que, ao contrário,
esta se empenhou em reconstituí-lo, após a saída de Judas? E
qual seria o significado da constituição dêsse grupo, senão a fun­
dação do povo de Deus, que deve preparar o Reino de Deus?
A relação com a idéia judaica do povo de Deus torna-se bem
evidente. 0 número dos doze tem de referir-se às doze tribos
de Israel.
0 importante, no entanto, não é só a escolha dos doze discí­
pulos, mas, antes de tudo, o fato de serem enviados por Jesus,
i.e., 0 papel que êle atribui a essa comunidade. Não é demais
acentuar que êle os enviou a cumprir funções messiânicas, que o
próprio fesus realiza como o “ aquêle que vem” . E assim se
confirma que o Messias necessita de uma comunidade já no pre­
sente eon para a sua obra preparatória, e que o grupo dos doze
representa pelo menos um comêço para a futura ekklesia mes­
siânica. Na resposta a João Batista, Jesus cita como sinal de
que o período de salvação já irrompera com a sua vinda: “ Os
cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os mor­
tos são ressuscitados, e aos pobres está sendo pregado o evan­
gelho. ” De maneira surpreendentemente paralela Jesus dá a se­
guinte ordem aos discípulos, quando os enviou” : Ide às ovelhas
perdidas da casa de Israel e pregai que está próximo o reino dos
c é u s... Curai enfermos, ressuscitai mortos, purificai leprosos,
expeli demônios.” (Mt 1 1 . 4 e seg; 10 .7 e seg.). Deveríamos
dar mais atenção à analogia dessa ordem com a resposta a João
Batista. Aí torna-se evidente que para Jesus não só a sua vinda,
mas também a exigência e a ação do grupo dos discípulos são
testemunho de que o período de salvação \á está presente. Tam­
bém êles deverão realizar os mesmos feitos que Jesus executa, co­
mo prova da promessa nêle já concretizada (13 6 ). A constitui­
ção e 0 envio do grupo dos discípulos relaciona-se, portanto, es­
treitamente com a sua convicção messiânica. É certo que êle afir­
ma que não acabarão de percorrer as cidades de Israel, até que
venha o Filho do homem (Mt 10 .2 3 ) — palavra que permite

(136) Com isso está relacionado que as metáforas com as quaip são
descritas as funções de Jesus, são transferidas aos apóstolos, isso in­
dica H. RIESENFELD, Ãmbetet i Nya Testamentet, s. a-, p. 17 e segs.
aliás, diversas interpretações ( 13 7 ). Mesmo a ação do grupo dos
doze é ação messiânica, a consumação ocorre já durante a vida
de Jesus, não só na sua pessoa, mas o povo de Deus já come­
çou a concretizar-se nesses homens (13 8 ). Dessa maneira deve­
mos compreender a palavra sôbre os pescadores de homens (Mc
1 . 1 7 paral.) e sôbre o trabalho na seara (Mt 9 .3 7 ). A parábola
da rêde (Mt 13.4 7 e segs.) confirma o caráter preparatório, mas
também antecipante da pesca.
0 local onde se dão os eventos que Jesus enumera na res­
posta a João Batista (Mt 1 1 . 4 e seg.) faz que a pergunta acerca
do reino de Deus futuro ou presente perca tôda a importância
(139 ). A antecipação do reino de Deus ocorre já durante a vida
de Jesus. O fundamento do povo de Deus já está lançado, embora,
a verdadeira edificação venha a ser construída após a morte de
Jesus, tendo por base a nova aliança. Essa ekklesia, a ser “ edi­
ficada” após a morte de Jesus, será antecipação do Reino de
Deus, mas o grupo dos discípulos é, por sua vez, antecipação da­
quela ekklesia.
O fato de que Jesus encara o grupo mais restrito e o mais
amplo dos discípulos como uma comunidade com uma incumbên­
cia especial, que em si já representa uma concretização, deduz-se
também de outras passagens. Assim, p. ex., quando êle fala da
sua verdadeira família (Mc 3 .3 3 e segs.) para!.) e especial­
mente quando chama os discípulos de “ rebanho” , como em Lc
12 .3 2 ; “ Não temais, ó pequenino rebanho, pois vosso Pai agra­
dou-se em dar-vos o seu reino” . Além disso, em Mt 2 6 .3 1; “ Fe­
rirei 0 pastor, e as ovelhas do rebanho ficarão dispersas” . Te­
mos ainda as já mencionadas “ ovelhas perdidas da casa de Israel”
(V. também Mt 9 .36 ). Sabemos do manuscrito de Damasco, que
também na “ comunidade da nova aliança” judaica (atualmente
tornada mais conhecida) era corrente o conceito do pastor. Con-

(137) Vide O. CULLMANN, Le retour du Christ, Espérance de


L’Eglise selon le Nouveau Testament, 1943, p. 23 e seg- e em especial o
nosso trabalho Eschatologie des Neuen Testaments, ainda em sua fase pre­
paratória.
(138) Isso, contra A. LO ISY (Evangiles synoptiques, p. 9) ao quai
R. BULTM AN N, op- cit., col. 275, se associa para acentuar que o fato
de Jésus ter instruído discípulos não tem nada a ver com a Igreja.
(139) Em todos os lugares, onde o reino de Deus é uma realidade
viva, tal acontece. Pensemos em BLUM HARDT.
íorme essa imagem, está dado o conceito da ekklesia (140). Nos
outros escritos do Nôvo Testamento as palavras rebanho, pas­
tor, ovelhas, apascentar quase sempre aludem à Igreja. Antes
de tudo deve ser lembrado o Evangelho de João: Jo 1 0 .1 e sego.;
2 1 . 1 6 e segs., mas também 1 Co 9.7 e At 20.28 ( 14 1) .
A comunidade que jesus criou durante a sua vida aponta
evidentemente para o futuro. Só após a sua morte é que ela se
desenvolverá e será “ edificada” no verdadeiro sentido. Vimos
qu? a consciência de ser o Messias tem de conduzir à fundação da
comunidade. Para Jesus, porém, essa consciência é a da neces­
sidade de sua morte. Por isso, só a sua morte é o verdadeiro
ponto de partida para o nôvo povo de Deus. A instituição da
Santa Ceia (142) só pode significar que a nova comunidade é
fundada pela sua morte. Mas, nesse ponto, uma nova questão
se põe: o tempo da consumação viria, para Jesus, imediatamente
após a sua morte? Ou pensaria êle que iria continuar, durante
certo tempo, o período da antecipação que se iniciará com sua
vida na terra, como período da Igreja? Em Mt 1 6 .1 7 e segs.
está implícita esta segunda suposição. Oportunamente verifi­
caremos se isso é compatível com o que Jesus, esperava, segundo
os sinóticos. Antes, porém, estudaremos uma declaração muito
importante de Jesus, que me parece ser um paralelo exato de Mt
1 6 .1 7 e segs. e que também se refere ao período após a morte
de jesus: a declaração que Jesus fêz sôbre o Templo e que eviden­
temente desempenhou um papel decisivo no que se convencionou
chamar seu proceso (14 3 ). São realmente testemunhas falsas —^
em todo caso de acôrdo com Mc 14 .5 7 — que acusam Jesus de
ter dito: “ Eu destruirei êsse santuário edificado por mãos hu­
manos e em três dias construirei outro, não por mãos humanas” .
No entanto, posteriormente ao pé da cruz, passantes lhe atribuem

(140) V. acima p. 101 e seg.


(141. R. BULTM AN N, op. cit., col. 268, nega que exista o pensa­
mento de grupo nas passagens sinóticas. No Evangelho de João as pa­
lavras teriam além disso uma significação bem diferente-
(142) V. acima p. 218.
(143) M. GOGU EL, Jésus, 2.° ed., 1950, p. 330 e segs-, expressa-se
a favor dessa palavra, sem no entanto, relacioná-la com Mt 16. 17 e segs.
(Por outro lado, relação com a parábola dos trabalhadores da vinha; ex­
pansão aos gentios). Como argumentação a favor da autenticidade, êle
alega que a predição da destruição do templo não poderia ser uma pro­
fecia “ ex eventu” , visto que o templo foi destruído no ano de 70 pelo
afirmação semelhante. AHás, é possível explicar em que consiste o
falso testemunho se considerarmos uma outra palavra de Jesus, que
se encontra em Mc 13 .2 . Nessa passagem, um discípulo diz a
Jesus; “ Que grandes pedras, que grandes construções!; Jesus res­
ponde-lhe; “ Não ficará pedra sôbre pedra, que não seja derruba­
da” . Êle prediz claramente a destruição do Templo de Jerusalém.
Em vista disso, a verdadeira declaração de Jesus deveria soar co­
mo a encontramos no Evangelho de João, quando da purificação
do Templo (Jo 2 .19 ) , onde lhe é realmente atribuída; “ Destruí
vós êsse Templo, e em três dias o reconstruirei” . Nessa declara­
ção atribuída a falsas testemunhas em Marcos, só seria falsa a
troca da pessoa na primeira parte da sentença. Jesus não teria
dito; “eu destruirei, mas: o Templo será destruído.] Por outro
lado, na segunda parte da sentença, a primeira pessoa está no
lugar certo; eu o reedificarei.

Só no Evangelho de Marcos lemos; “ construirei outro, não


por mãos humanas” , mas depois de se dizer sôbre o Templo de Je­
rusalém, que êle fôra “ edificado por mãos humanas” . Seja essa
precisão original ou não — não há pròpriamente motivo para que
ela não seja — , de qualquer maneira, Jesus tinha em vista uma
comunidade, ao anunciar que reedificaria o Templo destruído. Vi­
mos anteriorm.ente que já pertence à terminologia judaica adap­
tar ao povo a imagem do edifício. Na esfera do Nôvo Testa­
mento êsse emprego é muito corrente; A comunidade é o templo
ou a “ casa espiritual” , como consta em 1 Pe 2 .5 e segs. (144).
E ’ possível que também o autor do Evangelho de João tenha pen­
sado simultâneamente na comunidade, ao interpretar posterior­
mente a palavra sôbre o templo, como sendo o coroo de Cristo
Í14 5).

íogo, não pot um abalo, como o prevê a palavra rie Jesus ( “ não ficará
pedra sôbre pedra” ); além disso, o fato de que também a Estêvão é atri­
buída uma palavra semelhante (At 6. 10 e segs.). M. G O G U EL é de opi­
nião que Judas teria participado êsse dito de Jesus à autoridade judaica.
— Uma boa apreciação da palavra sôbre o templo e sua importyncia para
o pensamento cristão prim itivo em M ARCEL SIMON, “ Retour du Christ
et reconstruction du Temple dans la pensée chrétienne prim itive” (Aux
sources de la tradition chrétienne. Mélanges M. GOGUEL, 1950), p. 249
e segs.
(144) V. acima p. 220.
((145) Vide O. CULLMANN, Urchristepium und Qottesdiensi, 2.'’
£d., 1950, p. 72 e segs.
Em todo caso, devemos admitir, conforme a tradição dos
Evangelhos sinóticos, que Jesus anunciou a edificação de um
templo não construído por mãos humanas. Tal só pode subenten­
der o nôvo povo de Deus que êle quer instituir (146 ). A palavra
sôbre o Templo é, para o nosso problema, tanto mais importan­
te, visto que mais uma vez se nos apresenta, como em Mt 16 .17 ,
a imagem do edificador. Temos, portanto, um paralelo direto à
palavra da ekklesia. Se ela desempenha um papel tão insignifi­
cante nas discussões sôbre a nossa questão, é devido ao fato de
que nos teremos deixado persuadir pela estatística vocabular a
não mais dar atenção a essa matéria.
Com a palavra sôbre o Templo, bem como com as da ins­
tituição da Santa Ceia, Jesus anuncia uma nova comunidade
para o período após a sua morte, o que corresponde à passa­
gem de Mt 1 6 .1 7 e segs., onde lemos no futuro: edificarei a
minha ekklesia. Vimos, que, segundo essa paiavra, tal deve
ocorrer ainda durante êste eon, uma vez que, se fôsse o contrário,
a confrontação de céu e terra não teria sentido algum. No en­
tanto, é isto que dá motivo ao último argumento contra a au­
tenticidade da passagem. Se é que Jesus falou de uma con­
cretização futura, do povo de Deus, consecutiva à sua morte,
êle só poderia ter pensado na sua realização definitiva no Reino
de Deus.i As joutras profecias, como a da pklavra sôbre o
Templo, deveriam ser interpretadas como se com a morte de
Jesus já irrompesse a consumação do Reino de Deus. Contudo,
visto que em Mt 1 6 .1 7 e segs. a ekklesia já se concretizaria no
presente eon existe aqui uma contradição. Por isso essa pa­
lavra não poderia originar-se de Jesus (14 7).
A pergunta é, pois, a seguinte; Teria Jesus contado cona
um período intermediário, ,por breve que fôsse,, entre a sua
morte, ou seja, a sua ressurreição e o regresso? Se Jesus real­
mente tivesse esperado que a vinda do Reino de Deus se desse
no momento da sua morte, como afirma Albert Schweitzer, não
haveria mais espaço para o período da Igreja. O povo de

(146) Acêrca do messias judeu e da reconstrução do templo v.


ENOQUE 90, 28 e segs. Além disso J. ENGNELL, Studies in Divine
Kingship 1943, E. Q. KRAELIN G J. B. L. 1928, p. 138, H. RIESENFELU,
Jésus transfiguré, 1947, p 59.
(147) Assim R. BU LTM AN N , Die Frage nach der Echtheit von
Mitth. 16, 17-19. Theologische Blätter 1941.
Deus passaria diretamente para o definitivo Reino de Deus.
Não podemos examinar êsse problema em tôda a sua extensão.
Limitamo-nos a indicar alguns pontos decisivos. Inicialmente,
não possuímos texto algum que apóie realmente a hipótese de
.4. Schweitzer. E’ certo que, para Jesus, a sua própria morte
significa 0 acontecimento central do evento da salvação. Mas
êle vê a tensão entre presente e futuro que existe durante a
sua vida, e sabe que, com a sua morte, ela ainda não esta
anulada (148).
Diversas ocorrências ainda devem ter lugar após a morte
de Jesus e antes do fim: a destruição de Jerusalém e a perse­
guição dos discípulos. Poder-se-ia lembrar também a neces­
sidade, reiteradamente acentuada, da missão entre os gentios,
que deveria ser efetuada só após a morte de Jesus, antes do
fim (Mc 14.62)., Talvez seja justamente esta a incumbência
do pequeno rebanho no período após a morte e antes do fim:
edificar o povo de Deus de tal maneira que os gentios ali en­
contrem admissão. O que Jesus já revelou como pregação, a
inclusão dos gentios no povo de Deus, deve tornar-se realidade
após a sua morte. Em vista disso, o evento de salvação deve
continuar além da sua morte, pois a ordem dada com o envio
dos discípulos ainda não foi executada, e só o poderá ser quan­
do Jesus tiver morrido e ressurgido (149 ). A instituição da
nova aliança por ocasião da Santa Ceia pressupõe, mesmo que
a ordem expressa de repetição não seja original, uma conti­
nuação do período messiânico preparatório iniciado com o agir
terreno de Jesus.
Também a promessa de Mc 14.28, cuja autenticidade não
costuma ser combatida, provàvelmente só será compreensível se Je­
sus não tiver pensado que a sua morte coincidia com a consuma­
ção: ‘‘Mas, depois da minha ressurreição, irei adiante de vós
para a Galiléia” , A êste trecho pertencem também as palavras sô-

(148) V. nesse tocante W . MICHAELIS, Der Herr verzieht nicht


die Verheissung, 1942; W . G. KÜMMEL, Verheissung und Erfüllung, 1945,
p. 38 e segs.; O. CULLM ANN, Cristus und die Zeit, p. 131 e seg.
(149) Com razão E. PETE R SO N vê nisso o verdadeiro caráter da
Igreja, no seu mui acatado artigo “ D ie Kirche” 1929 (impresso in “Theo­
logische Traktate 1951). Semelhantemente também O. CULLMANN,
Christus und die Zeit, 2.^ edição, 1948, p. 138 e segs.; salientamos, aliás,
ainda com ênfase a conservação da escatologia, enquanto que em F. P E ­
TE R SO N esta se dissolve por assim dizer na Igreja.
bre o jêjum (Mc 2 .1 8 e segs.); “ Quando lhes fôr tirado o noi­
vo, poderão jejuar” . Igualmente na sua resposta ao sumo sa­
cerdote (Mc 14.62 paraL), Jesus distingue entre o momento em
que 0 Filho do homem se sentará à direita de Deus, e o outro,
em que retornará sôbre as nuvens do céu. E ’ evidente que Jesus
não supõe uma duração de milênios. Pensa num breve período
entre a ressurreição e a sua volta, como deixam transparecer
suas palavras sôbre a expectativa de um fim próximo. Mas isso
não vem ao caso para a nossa questão (150 ). O importante é que
êle espera um período durante o qual, apesar da sua morte, o Rei­
no de Deus continua em processo de preparação, e, embora já an­
tecipado, ainda não se consumará. Nesse espaço de tempo ocor­
re a edificação da ekklesia, de que Jesus fala em Mt 16 .17
e segs.

Após havermos verificado, sob todos os prismas possíveis,


qual 0 sentido em que Jesus falou da edificação do nôvo povo
de Deus, chegou o momento de explicar o resto dos versos 17
a 19. Adiaremos a questão de identidade da Pedra para de­
pois, visto que nos conduzirá diretamente ao problema dogmá­
tico.

Inicialmente temos que as poi’tas do Hades não prevalecerão


contra essa ekklesia que Jesus edificará sôbre a Pedra. O Hades
subentende antes a morada dos mortos ( 15 1 ) do que o reino do
pecado e da condenação (15 2 ). Êsse é o ponto forte da tese de
que essa passagem se refere à vitória da ressurreição sôbre a

(!50) Vide 0 . CULLMANN, “Das wahre, durch das Ausbleiben der


Parusie gestellte Problem” {Theol. Zeitschrift 1947), p. 177 e segs. e nos­
so trabalho Eschatologie des Neuen Testaments, ainda em preparação.
(151) Assim também E. KLOSTERM ANN, Mtth.-Komm., ad loc., e
A. SCH LA TTER , Mtth.-Komm., ad. loc.

(152) Por outro lado, R. BOHREN, Das Problem der Kirchenzucht


im Neuen Testament, 1952, p. p. 63 e seg., é de opinião que bandos de
espíritos jorram das portas do inferno e atacam a edificação da Igreja.
— W. VISCHER, Die evangelische Gemeindeordnung, 1946, p. 21, con­
juga ambos. Igualmente M. M EINERTZ, Theologie des Neuen Testaments,
vol. I, 1950, p. 75. Quanto ao todo vide W. BIEDER, Die Vorstellung
von der Höllenfahrt jesu Christi, 1949, p. 43 e segs.
morte (15 3 ). Deixaremos em suspenso a questão da possibilidade
de um êrro de tradução onde devia estar “ guarda da porta”
(154 ). É possivel. De fato, a imagem das portas da morada
dos mortos já aparece em escritos judeus e israelitas: Is 3 8 .10 r
SI 9 .14 ; S! 10 7 .18 ; Jó 3 8 .17 ( 15 5 ) ; Sab Sal 1 6 .1 3 ; 3 Mac 5 .5 1 ;
dos mortos, que se fecham por detrás de todos os homens, não são
mais abertas. A habitação dos mortos jamais permite que saiam.
Em Mt 16 .18 se diz, talvez na mesma imagem e em continuação
a ela, que as portas que sempre resistiram a todos os assaltos,
por mais impetuoso que fossem, perdem agora a sua resistência
ante o ataque da ekklesia. Têm de abrir-se diante dela. Nesse
caso, seria a ekklesia a atacante. Poder-se-ia tentar também en­
tender -as portas como as atacantes (156 ). Se considerarmos que
na imagem a ekklesia é representada por um edifício, isso seria tal­
vez o mais provável. No entanto, dificilmente seria possível de­
cidir com certeza se o atacante é a ekklesia ou a morada dos mor­
tos (15 7 ).

Por outro lado, está fora de dúvida que, de acordo com essa
palavra, a ekklesia assume a função de Jesus que, peLa morte e
ressurreição, venceu a morte. A função mes"iânica, atribuída aos

(!53) A. HARNACK, “ Der Spruch über Petrus als den Felsen der
Kirche Mtt. XVI, 17 e seg. (Seitzungsbericht der Berl. Ak. d- Wiss. 1918,
p. 637 e segs.), exclui a palavra sôbre a Igreja e reconhece nessa passa­
gem só uma predição da ressurreição de Pedro, substituindo autés por
sou. (V. acima p. 187). Issú, porém, está fora de cogitação, visto que a
explicação do nome de Pedro exige a imagem da edificação. (Assim
com razão M. J. LAGRANG E, Mtth. Komm., p. 324). Já os Padres da
Iigreja consideraram a possibilidade de autés relacionar-se com ekklesía
ou com pétra. (O rígenes); pétra está muito distante e, de acôrdo com o
sentido, ekklesia tem de ser o objeto. (V ide M. J. LAG RA N G E, Míth-
Komm., p. 327).
(154) R. EPPEL, “ Aux sources de la tradition chrétienne” (Mélan­
ges offers à M. GOGUEL, 1950, p. 71 e segs.), pylai — saarei; pyloroi
= searei.
(Indicação de Jó 38. 17, L X X ). De outro modo E. BRU STO N , Les
promesses de Jésus à l’apôtre Pierre, 1945, p. 10 e segs., supõe que “ tem­
pestades do atiismo” foi traduzido erradamente.
(155) A LXX apresenta pyloroi. V. observação anterior.
(156) R. E PPEL, op. cit., p. 72, reportando-se a J. D U TLIN , “ The
Gates of Hades” (The expository Times 1916, p. 401 e segs.), indica
que 0 verbo katisquo serve antes a um ataque do que a uma defesa.
(157) Quanto à concepção das portas como atacantes, vide T.
ZAHN, Matth.-Komm., p. 542, M. J. LAGRANGE, Mtth.-Komm., p. 326.
discípulos, durante a vida de Jesus (158 ), de combater a morte,
pela cura de doentes ou pela ressurreição de mortos (Mt 10 .7 e
segs,), é prometida, nessa passagem, a tôda a ekklesia. O funda­
mento que é lançado em Pedro tem uma edificação a sustentar,
a quel significa a vitória sôbre a morte. A ekklesia fundada em
Pedro, a Rocha, existirá na época em que a morte ainda reina,
ou seja, no presente eon (159 ). Mas já participará do poder de
ressuscitar, que caracteriza o Reino de Deus. Lembrar-nos-emos
disso ao falarmos do caráter do apóstolo e constatarmos que no
Nôvo Testamento os apóstolos são primordialmente testemunhas
da ressurreição, aos quais é confiada uma incumbência.

A imagem do edifício e a da porta, dão motivo à das chaves


do Reino do céu. É possível que as palavras seguintes não per­
tençam originalmente ao mesmo contexto, tendo sido introduzi­
das só por Mateus. Já conhecemos a sua tendência de reunir
todos os trechos relacionados ao mesmo tema. No cap. 1 1 , p. ex.,
êle também combinou as diversas palavras referentes a João B a­
tista. Mas também nesse caso a palavra sôbre as chaves adapta-se
bem à outra sôbre o edifício. Enquanto antes estavam em pauta
as portas do Hades, pensa-se agora nas do Reino do céu. Da
mesma forma como o Hades é o reino da morte, o reino do céu
é 0 da vida e de ressurreição. Essa imagem das chaves parece
ter sido comum. Em Ap. 1 . 1 8 é dito do Filho do homem que
êle possui as chaves da morte e do Hades: evidentemente para
abrir aos que se encontram lá dentro. Em Ap 3 .7 consta, em
conexão com Is 22.22, que o santos tem as “ chaves de David” ,
com as quais abre e fecha irrevogàvelmente (V. também Ap
2 1.2 5 ) . Mt 16 .19 pressupõe que Cristo é o Senhor da casa,
que tem as chaves do Reino do céu para abrí-lo aos que lá
entrarão. Como em Is 22 .2 2 o Senhor coloca sôbre os ombros
do seu servo Eliaquim a chave da casa de Davi, Jesus entrega a
Pedra a chave de sua oasa, do Reino do céu, instituindo-o assim
como seu administrador (160). Há uma relação entre a casa da

(158) V. acima p. 123 e seg.


(159) Isso confirma que não está subentendido simplesmente o reino
vindouro de Deus.
(160) Quanto à imagem do administrador da casa Vide Mc 13.34;
Lc 12. 41; 16. 1 e segs.; I Co 4. 1; I Pe 4. 10.
T . ZAHN, Mtth.-Komm., ad !oc., dificilmente tem razão ao pensar só
no “ dispor de” câmaras secretas e não no “ deixar entrar” .
ekklesia, de cuja edificação se faia imediatamente antes, e cujo
fundamento é Pedro, e a casa celeste, cuja chave está em suas
mãos. 0 que as relaciona é mais uma vez o conceito do povo
de Deus.
Pedro é pôsto novamente em conexão com a ressurreição. O
chamado poder das chaves faz dêle, por assim dizer, o instru­
mento humano da ressurreição. Êle deve conduzir o povo de
Deus ao reino da ressurreição. Esta é a incumbência que êle te­
rá de executar após a morte e ressurreição de Jesus. Lembre­
mo-nos também da outra palavra de Jesus, que se baseia total­
mente na mesma imagem, a palavra aos fariseus: “ fechais a por­
ta do reino do céu” (Mt 2 3 .1 3 ) . Êles talvez se orgulhassem de,
ao contrário, abrir a porta do céu. Agora, porém, essa função
não compete a êles, mas a Pedro, a Rocha vocacionada. Em pros­
seguimento a Mt 2 3 .13 , a palavra contra os fariseus, Mateus
talvez também tivesse pensado na missão que Pedro levará a efei­
to com a sua pregação e com a qual desimpedirá o acesso ao
reino do céu, enquanto que os fariseus “ rodeiam o mar e a
terra para fazer um prosélito; e, uma vez feito, o tornam filho
do inferno, duas vêzes mais do que êles” (Mt 2 3 .15 ) ( 16 1) . Ca­
racterístico é que em Mateus essa declaração segue exatamente â
outra sôbre o fechar do céu, o que justifica a suposição de que,
em Mt 16 .19 , o próprio Jesus combinou a entrega da “ chave do
reino do céu” com a missão apostólica.
Por outro lado. não é certo que a seguinte palavra sôbre o
“ ligar” e “ desligar” tenha pertencido originalmente a êsse mesmo
contexto. Mateus o apresenta mais uma vez no cap. 18 .18 , como
sendo endereçado a todos os discípulos. Talvez êle conhecesse
uma tradição, segundo a qual Jesus o teria dito só a Pedro. Se
considerarmos a tendência do evangelista de ligar trechos perten­
centes ao mesmo tema, é até provável que só êle tenha introduzido
a palavra (proferida também em outro contexto), nesse conjunto,
anexando-a à sua tradição sôbre o diálogo durante a última ceia.
_ Que é que significam as expressões “ ligar” e “ desligar” ?
De acôrdo com o uso idiomático rabínico (16 2), há duas interpre-

(161) J. SCHNIEWIND, “ Das Evangelium nach Matthäus (Das N.


T. Deutsch), 1937, ad. loc., indicou a conexão com Mt 23, bem como
W. VISCHER, Die evangelische Gemeindeordnung, 1946, p. 24 e seg.
(162) 'sr e sr’.
tações igualmente possíveis; “ proibir” e “ permitir” , ou seja, “ ins­
tituir regras” (16 3) ou “ proscrever” e “ absolver” (16 4). Visto
que a entrada no Reino do céu está, para Jesus, intimamente ligada
à remissão dos pecados (Mt 18 .18 ; Jo 2 0 .2 3), prevalece prova­
velmente em primeiro lugar o último sentido, sem que o outro,
que é igualmente fundamentado em textos rabínicos, seja excluí­
do (16 5 ). Poder educativo e disciplina não podem ser rigidamente
separados. Pedro participa, portanto, do poder de Cristo, de per­
doar pecados. Às funções atribuídas aos discípulos já durante
a vida de Jesus, que são, como vimos (166), idênticas às que
êle mesmo executa (Mt 1 1 .4 e segs., Mt 10 .7 e seg.), é acres­
centada agora também essa alta função de perdoar os pecados.
Tal função só compete a Cristo, mas êle a transmite igualmente
a Pedro, em vista da constituição do povo de Deus na terra. Caso
0 ligar se relacione também às forças demoníacas, resultaria mais
uma conexão com a imagem anterior (16 7).
Lembramo-nos de que essa promessa não foi outorgada só a
Pedro, mas, aproximadamente oom as mesmas palavras, também
aos outros discípulos; “ Em verdade vos digo que tudo o que li­
gardes na terra, terá sido ligado no céu, e tudo o que desligardes
na terra, terá sido desligado no céu“ (Mt 1 8 .1 8 ) ; “ Se de alguns
perdoardes os pecados, são-lhes perdoados; se ihos retiverdes,
são retidos” (Jo 2 0 .2 3). Isso é importante para a questão do
caráter da primazia que sem dúvida distingue a Pedro. Êle par­
tilha 0 “ ligar” e “ desligar” com os outros discípulos; Isto cor­
responde perfeitamente ao que constatamos na parte histórica do
nosso capítulo sôbre o discípulo Pedro e sua posição entre os
doze; Êle é o primeiro entre êles, e seu representante em tôdas
as situações, toma a palavra, falando simultâneamente em nome
dos outros e é necessário dirigir-se a êle para falar simultânea-

(163) Assim G. DALMAN, Worte jesu, I, p. 175, E. KLOSTERM ANN,


Mtth.-Komm., ad loc-, igualmente T. ZAHN, Mtth.-Komm., ad loc. (nega
qualquer conexão com Jo 20- 23) e W . MICHAELIS, Mtth.-Komm., ad loc.
(164) Assim A- Schlatter, Mtth- — Komm-, ad loc-, J- Schniewind,
Mttli. ■— Komm-, ad loc-
(165) V ide STR ACK -B ILLE R B ECK , Mtth--Komm., ad. loc. (I, 738).
(166) V. acima p. 127 e seg-
(167) Assim R. BOHREN, Das Problem der Kirchenzucht im Nenen
Testament, 1952, p. 52 e segs., em conexão com F, HEILER, Urkírche
und Ostkirche, 1937, p. 59- Com pouca diferença A. DELL, op- cit.,
ZNW 1914, p. 38 e segs.
mente a todos os discípulos. Essa posição singular expressa-se
também no fato de que a promessa da eficácia do seu “ ligar” e
“ desligar” não é transmitida só a Pedro, mas também aos outros
discípulos, embora a êle lhe tenha sido dada de maneira especial.
Além disso, de acôrdo com Mateus, essa promessa está ligada
só no seu caso à comunicação de que sôbre êle, como Pedra,
deverá ser edificada a ekklesia. Isto corresponde ao fato histó­
rico ocorrido após a morte de Jesus e por nós constatado, de
que nos primeiros tempos Pedro lidera a comunidade como seu
dirigente a abandona êsse cargo pouco tempo depois, para orga­
nizar com outros apóstolos a missão judeo-cristã, dependente de
Tiago, mas como seu dirigente.

A interpretação dos Reformadores de que a Pedra é só a con­


fissão de Pedro (16 8), não satisfaz. No texto não há qualquer
problema dogmático: Quem tem Jesus em mente ao dizer que
edificará a Igreja sôbre a rocha? A pergunta poderia parecer
supérflua, se a evidente referência a Pedro não tivesse sido ne­
gada, como ainda o é, tanto do lado protestante como do ca­
tólico.
A interpretação dos Reformadores de que a pedra é só a con­
fissão de Pedro (16 8), não satisfaz. No texto não há qualquer
apoio pròpriamente dito, para essa explicação. Ao contrário, o
paralelismo de ambas as sentenças: “ Tu és Rocha, e sôbre esta
rocha e d ific a re i...” , demonstra que a segunda refere-se à pri­
meira (169). No aramaico, onde ambas as vêzes está a palavra
kefa, isso se evidencia com maior clareza. A interpretação, segun­
do a qual Jesus não teria dito: “ Tu és Pedro” , mas: “ Eu te digo,
a ti, Pedro” (17 0 ), é puramente hipotética, apesar do seu re-
tôrno ao aramaico. Certamente pode haver algo de correto na
hipótese de que a rocha se refere, em última análise, ao próprio
Cristo (como em Mt 2 1.4 2 ). Na nossa passagem, porém, não
se trata disso, mas da transferência do papel de rocha, de Jesus

(168) V. acima p. 184.


(169) Por êsse motivo também a tese defendida por G. GANDER
no seu artigo “PETROS-PETRA”, Revue de Théologie et de Philosophie,
1941, p. 5 e seg., segundo a qual kêpha, seria simultâneamente nome de
pessoa e de coisa, de modo a se referir a Pedro só na primeira parte
da sentença e não na segunda, é insatisfatória.
(170) STR ACK -B ILLE R B ECK , ad loc., v. acima p. 105.
a um discípulo ( 17 1 ) . Dessa maneira resta só uma possibili­
dade: a de que com essa palavra Jesus e refere realmente àquele
que êle distinguiu com o nome de “ Rocha” . Se a relação se fi­
zesse com a confissão de Pedro, a conexão com a outorga do
nome não mais seria diretamente evidente. E a palavra quer
referir-se a ela e até explicá-la. A designação daquele nome que
é fato indubitável, diz respeito, independentemente de Mt 1 6 .1 7
e seg^,., à pessoa de Pedro e não à sua fé, da mesma maneira
como 0 cognome “ Filhos do Trovão” também concedido por Jesus
visa os filhos de Zebedeu.
Em vista disso, tôdas as interpretações protestantes, que ten­
cionam desviar, dessa ou de outra maneira, a referência a Pedro,
parecem-me insatisfatórias. Continuamos afirmando que não há
dúvida de que foi realmente à pessoa de Simão, que Jesus se re­
feriu ao dizer que sôbre a rocha edificaria a sua ekklesia. Aquele
mesmo discípulo que durante a vida de Jesus, recebeu aquêles méri­
tos e aquelas fraquezas, de que falam os evangelhos. Sôbre êle, que
era então o seu porta-voz e o seu representante, no bem e no
mal, e que era nesse sentido rocha do grupo dos discípulos, é
que também deve ser edificada a Igreja, a qual, depois da morte
de Jesus, continuará a sua obra na terra.
Temos de dar razão à exegese católica, quando nega aque­
las outras tentativas de interpretação (17 2 ). Entretanto, ao ten­
tar distinguir nesse texto alusão a “ sucessores” , procede ela de
modo ainda mais arbitrário. Aquêle que, imparcialmente, pro­
ceder à exegese, e só à exegese do texto, não poderá chegar a
pensar sèriamente que Jesus tivesse tido em vista sucessores de
Pedro, ao dizer que êle é a Rocha, a qual deverá ser edificada
a comunidade do povo de Deus, que conduz ao reino de Deus.
Posteriormente falaremos do problema dogmático e perguntare­
mos se mais tarde, sob a luz da história eclesiástica, não seria
possível verificar a referência da palavra a certos sucessores.
Por ora, porém, queremos isolar claramente essa questão exegé-

(17 1) H. RIESENFELD, Ãmbetet i Nya Testamentet, s. a. p. 17 e


segs., demonstra como as metáforas que designam as funções de Jesus são
transferidas aos apóstolos.
(172) M. M EINERTZ, Theologle des Neuen Testaments, tom. I, 1950,
p. 74, faz, porém, uma concessão à explicação protestante, quando escre­
ve que “ a confissão de fé proferida por Pedro é a premissa” . Mas é evi­
dente que na sua opinião as palavras são d irigidas à pessoa do confessor.
tica, como costumam fazer todos os exegetas sérios, também os
católicos, quando se trata de outras passagens bíblicas.

Exegèticamente deve-se dizer; 0 trecho não menciona uma


palavra sequer sôbre sucessor. Por um lado êle fala de Pedro,
e por outro, da Igreja. Esta ultima palavra, ekklesia, refere-se a
uma comunidade que deveria ser edificada no futuro, sem men­
ção de limite de tempo. A outra, Pedro, refere-se a uma pessoa
cuja atividade terrena estava necessariamente limitada pela sua
morte. Por isso poder-se-ia dizer: Uma única pessoa humana,
que haveria de morrer algum dia, não poderia ser fundamento
de uma comunidade que deverá perdurar por tempo indetermi­
nado.
É certo que a duração da Igreja não tem limite. Contudo,
ela também não foi expressamente dilatada para o tempo após a
morte de Pedro, e êsse fato merece atenção, pois trata-se de
uma palavi’a dirigida ao Pedro histórico. 0 problema da dura­
ção não foi sequer considerado na palavra, mas permaneceu aber­
to. A expectativa de um fim próximo por parte de Jesus inclui
um breve período intermediário entre a sua morte e o fim, mas
não abrange várias gerações. Uma vez que não é limitado o
tempo da edificação, não é possível, de maneira alguma, concluir
precipitadamente, como costuma acontecer do lado católico, que
na sua promessa a Pedro, Jesus também se i’eferia ao tempo que
se seguiria à morte do apóstolo. “ Conseqüentemente, deveriam
estar incluídos nessa passagem também os sucessores de Pc-
di’o ( 17 3 ) . O apascentar das ovelhas, por parte de Pedro (jo

(173) Mesmo um exegeta tão profundo e prudente como F. M.


BRAUN, Neues Lícht auf die Kirche, 1946, escreve na p. 165, o seguinte:
“ visto q u e ... os apóstolos aparecem dotados de poderes especiais e uma
vez que a ação da Igreja, a qual deve permanecer até a consumação dos
tempos, se estende através de um período de tempo de duração indeter­
minada, seria — sem levar em conta outras ponderações — lógico o “ nôvo
consenso” (V. acima p. 189) admitir que a sucessão dos apóstolos cor­
respondesse à intenção de Jesus e que os apóstolos, após haverem exer­
cido 0 seu poder durante alguns anos, transmitissem a sua autoridade
como chefes da Igreja a outros” . Não quero argumentar un a “successio
prophetica” contra uma “successio apostolica” , em contraste com K- L.
SCHMIDT, que é citado por F. M. BRAUN na mesma página. Reco­
nheço que em outras passagens do Nôvo Testamento existe direta ou indi­
retamente uma successio apostolica, isso, porém, em sentido a ser ainda
determinado (V. acima p. 248 e seg.). Mas nego com tanto mais veemên-
2 1 . 1 6 e segs.) certamente está limitado pelo seu martírio (17 4 ).
Dessa forma, a declaração “ edificarei a minha Igreja” , não pre­
cisa ser estendida além da vida de Pedro. No momento em que
Jesus pronunciou uma promessa diretamente a Pedro, poderia
estar se referindo à edificação que estava por começar imedia­
tamente após a sua ressurreição.
Suponhamos, no entanto, que nessa primeira sentença Jesus
pensava em um período que abrangia muitas gerações (17 5 ).
Impossível, porque a sua expectativa de um fim próximo o con­
testa (176 ). Nesse caso, não estaria dito, de maneira alguma,
que a Rocha-Cefas-Pedro compreendia simultâneamente os suces­
sores de Pedro. Só a obra dessa edificação é que pertence, nessa
sentença, a um futuro ilimitado, mas não a fundamentação da
Rocha, sôbre a qual será edificada! Jesus edificará, no futuro,
sôbre um fundamento que, na época de sua vida terrena e da do
histórico apóstolo Pedro, será lançado na pessoa dêste. Vere­
mos (177) que a imagem do fundamento, que significa o mes­
mo que a da rocha, sempre designa no Nôvo Testamento a fun­
ção apostólica única, cronològicamente possível só no início da
edificação: Ef 2 .20 ; Rm 15 .2 0 ; I Co 3 .1 0 ; G1 2 .9 ; Ap 2 1 .1 4 ,1 9 .
A palavra, em Mt 16 .18 , é dirigida a Pedro na sua qualidade
irreiterável de apóstolo. ’
Tudo 0 que se diz sôbre Pedro, em todo o trecho em pauta,
refere-se realmente ao Pedro que viveu naquela época, mesmo
que se visasse expressamente ao tempo de edificação que conti­
nua depois de Pedro, o que é muito improvável em face da ex-

cia que em Mt 16. 17 e segs. Jesus se tenha referido a uma tal sucessão.
W. MICHAELIS, Mtth.-Komm, p. 354, transforma a omissão de qual­
quer referência à sucessão em argumento a favor da autenticidade; se a
palavra tivesse sido criada posteriormente a sucessão estaria mencionada.
(174) Evidentemente se deve considerar se o autor de Jo 21 já não
atacava uma ampliação da aplicação para a sua própria época, estando
Pedro já morto (sendo que alguns reivindicavam a direção, baseando-se
nêle).
Assim E. L. ALLEN, V. acima obs. 81, pág. 203.
(175) W. MICHAELIS, Aítth.-Komm., p. 346 acredita ter de dedu­
zir da imagem do “ edificar” que Jesus deveria “ter em vista uma evolu­
ção mais prolongada” .
(176) V. a êsse respeito nosso trabalho Eschatologie des Neuen Tes­
taments, que surgirá futuramente
(177) V. abaixo p. 246 e seg-, e H. RIESENFELD, Ãmbetet i Nya
Testamentet, s. a-, p. 17 e segs.
pectativa que Jesus tinha de um fim próximo. 0 conteúdo da
próxima sentença, a entrega das chaves, do poder de ligar e des­
ligar, a Pedro, relaciona-se também com o futuro, certamente não
com um futuro ilimitado, mas com o da vida de Pedro posterior
à morte de Jesus. Aí não mais se fala de uma edificação sem li­
mite de tempo, mas fala-se da própria rocha concreta, do funda­
mento apostólico da Igreja a ser edificada, representado por Pe­
dro. A palavra anterior sôbre a edificação, cujo tempo não é
expressamente limitado, de maneira alguma justifica a idéia de
uma duração de tempo ilimitado também para a administração
(das chaves e do ligar e desligar) atribuída só a Pedro, ro­
cha do edifício. No último capitulo examinaremos se, e até
que ponto, essas palavras dirigidas a Pedro podem ser aplica­
das também legitimamente à Igreja posterior. Exegètica­
mente deve ser dito que não temos qualquer direito de ver aí,
simultâneamente, Pedro e seus sucescores. Para isso seria neces­
sária qualquer alusão a tais sucessores. Em tôdas as passagens
em que Jesus fala das funções a serem exercidas por seus dis­
cípulos, sempre se refere exclusivamente só aos discípulos, não a
sucessores. E se porventura tivesse êle realmente incluído na
primeira sentença que fala da edificação, também o tempo depois
de Pedro, o que seria provável, tal só significaria que a missão
de rocha executada por Pedro — única no tocante à história da
salvação — tem um caráter tal, que opera além de sua morte,
em sua unicidade, de modo que o Pedro histórico, e não os su­
cessores, seria e permaneceria o fundamento também durante
a continuação ilimitada dessa edificação. Se o Cristo joanino
fala, na oração sacerdotal (Jo 17 .2 0 ), das gerações vindouras,
que crerão “ pela palavra dos apóstolos” , êle menciona os pró­
prios apóstolos, e não os seus sucessores, referindo-se àquilo que
a sua palavra única significa para a futura Igreja.

A paralela oe Lucas a Mt 1 6 . 1 7 e segs. tmbém revela que


não são subentendidos os sucessores. Vimos que, naquela pas­
sagem, a ordem de fortalecer os irmãos está intimamente ligada
à negação predita. Antes Pedro terá de se converter. Está claro
que nesse trecho que alude implicitamente também à Igreja futu­
ra, Jesus não teve em vista, simultâneamente, quaisquer suces­
sores. O que aqui está dito refere-se só ao Pedro histórico que
negou a Jesus.

É evidente que, na sentença sôbre as chaves e sôbre o ligai


e desligar, fala-se de funções do Pedro histórico, que continuam
na Igreja. Estas se referem M direção eclesiástica que sempre
deverá existir. Isso, por outro lado, não significa que essa pa­
lavra (Mt 1 6 . 1 7 e segs.) se relacione com a atividade de diri­
gentes posteriores. Ao contrário, tudo se refere à direção da­
quele que, segundo a sentença anterior, assume simultâneamente
a missão singular e, para a Igreja, decisiva e irreiterável, de ser
rocha, de superintender a Igreja como apóstolo, após a morte e
ressurreição de Jesus. „
Cada vez que surge no horizonte, em alguma palavra de
Jesus dirigida aos apóstolos, uma continuação das atividades dês-
tes, logo os exegetas católicos se apressam em falar de sucesores.
Mas é preciso dizer enèrgicamente que continuação de atividades
não significa continuação de atividades por meio de sucessores” .
É evidente que com isso Jesus não exclui a atividade de ou­
tros dirigentes da Igreja para os tempos posteriores. Nessa pala­
vra sôbre a fundação, porém, êle não se refere a êles, mas a
Pedro. 0 Nôvo Testamento alude, realmente, em outras passa­
gens (nós as mencionaremos) (178), a homens que são instituídos
pelos apóstolos como presbíteros. Aqui, porém, na palavra de
Jesus a Pedro, em Mt 1 6 . 1 7 e segs., de maneira nenhuma isso
ocorre.
Portanto, não é legítimo argumentar da seguinte maneira:
a primeira frase, não estabelece limites ao tempo em que Jesus
vai edificar. Ora, o Pedro histórico morrerá. Conseqüentemen­
te, não poderá êle ser só a rocha da Igreja que continuará depois
dêle. Por isso, as palavras dirigidas a Pedro devem referir-se
também a seus sucessores.
Também não é possível partir da segunda sentença, para jus­
tificar exegèticamente a referência a sucessores, dizendo-se mais
ou menos o seguinte; o poder das chaves, além disso o ligar e
0 desligar, confiados a Pedro, devem ser exercidos também na Igre­
ja daí por diante edificada por Jesus. Conseqüentemente devem ser
previstos com Pedro também os sucessores, os quais deverão de­
pois dêle efetuar êsse ligar e desligar e administrar as chaves.
Também essa é, a exegèticamente, uma conclusão precipitada.
Jesus não edificará sôbre as chaves ou sôbre o ligar e desligar,
mas sôbre o apóstolo Pedro, a quem, naquela ocasião êle conce-
cedeu as chaves, o ligar e o desligar.

(178) V. abaixo p. 248. ,


Mais uma vez observamos expressamente que com a consta­
tação exegética, de que essa passagem só fala de Pedro, coisa
alguma se diz sôbre a aplicabilidade da palavra. Talvez pos­
samos indicar, bem à margem da exegese, um ponto decisivo.
0 que os exegetes católicos concluem da continuidade da Igreja
e da continuidade necessária de uma direção eclesiástica, dedu­
zindo daí uma inclusão de sucessores na figura da Rocha-Pedro
mencionada, parece-me estar em conexão com um desconhecimento
da orientação básica de todo o pensamento neotestamentário.
Para o pensamento de Jesus, bem como para todo o pensamento
bíblico, é característico, em contraste com o Helenismo, o arraiga-
mento do permanente no único. Um evento historicamente único
é o evento da salvação, i.e., justamente não pode ser repetido,
mas fundamenta uma situação permanente, que vive constantemen­
te dêsse evento irreiterável. Êsse paradoxo é a base das decla­
rações de Jesus sôbre o futuro e encontra, na imagem da rocha
e da edificação que se segue, uma expressão, na verdade, clás­
sica. Nesse sentido temos de encarar também todo o evento
apostólico, também o ligar e desligar prometidos, a Pedro, como
evento de fundação que pertence ainda ao único, por assim dizer,
à encarnação de Cristo (179).

Mas com isso já ultrapassamos os limites da exegese, "tíosso


exame exegético nos conduziu ao seguinte resultado: Não há ne­
cessidade de negar que a palavra de Mt 1 6 . 1 7 e seg. seja autên­
tica i.e., proferida por Jesus. É muito provável que ela não per­
tença à ocorrência de Cesaréia de Filipe, mas a um outro con­
texto, i.e., ao da história da Paixão. Jesus promete a Pedro
que edificará sôbre êle o povo de Deus na terra, o qual será a
via de acesso ao Reino de Deus, e que exercerá através dêle a
direção missionária e administrativa. Êle provavelmente pensa,
como em Jo 2 1 . 1 6 e seg., diretamente no tempo de Pedro. Mas,
mesmo que tivesse pensado no período após a morte do após­
tolo, como o período de edificação da Igreja, o que é dito sôbre
Pedro, a Rocha, vale só para êle, para o apóstolo histórico, que
representa, de uma vez por tôdas, o fundamento terreno, o comêço
da ekklesia a ser edificada futuramente, e que sustenta o todo.

(179) Utilizando a imagem empregada por nós em “ Cristus und die


Zeit” ; a época apostólica pertence ao meio, ao centro, pelo qual é re­
gulado todo evento de salvação restante que sucede na linha do tempo.
A QUESTÃO DOGMÁTICA
DA APLICAÇÃO DE MT 1 6. 1 7 E SEGS.
À IGREJA POSTERIOR

Deixemos agora o ponto de vista exegético e voltemo-nos para


a questão dogmática. Será próprio combinar os resultados do
estudo exegético com o que se conhece do verdadeiro desenrolar da
história da Igreja cristã até hoje a fim de atribuir à palavra que
vimos discutindo um significado que reside, na melhor das hi­
póteses, no prolongamento da promessa de Jesus? Os exegetas
católicos costumam admitir expressamente que a exegese de Mt
1 6 . 1 7 e segs., em si, não pode fundamentar o primado romano,
e que tal só é possível se Mt. 1 6 . 1 7 fôr combinado com a his­
tória posterior.

É preciso estabelecer, antes de mais nada, um princip io : Te­


mos 0 direito e o dever de aplicar a gerações futuras e à nossa
situação, palavras de Jesus, que tinham por objeto uma situação
única e pessoas determinadas de seu tempo. E ’ certo que já
não se trata de exegese no sentido restrito, mas de sua aplica­
ção. Os pregadores não fazem outra coisa e não ocorre a nin­
guém acusá-los a priori de serem infiéis ao texto. O que
Jesus diz, p. ex., sôbre a oração e as esmolas, no Sermão do Monte,
é dirigido aos díscípulos que viveram em sua época. Mas nin­
guém julgará injustificável ou contrário à doutrina de Jesus apli­
cá-lo a todos os cristãos posteriores. Faz-se necessário, porém,
acrescentar que a aplicação deve estar realmente no prolongamen­
to do pensamento básico contido na palavra, i.e., que ela deve
estar de acôrdo com a exegese e fundamentada no testemunho do
Nôvo Testamento, como um todo (1) .

(1) Nesse ponto é necessária e justificável uma combinação sinté­


tica das concepções teológicas dos diversos escritos do Nôvo Testamento.
Se acontece que, como em Mt 1 6 , 1 7 e segs,, a palavra de
Jesus não se dirige, quanto ao conteúdo, simplesmente ao círculo
amplo dos discípulos (como é o caso das prescrições do Ser­
mão do Monte), mas se refere a funções bem determinadas, deve­
se respeitar o caráter particular dessas funções. E isso, de dois
rnodos: por um lado, a sua importância para o présente não pode
sêr vista na repetição de uma função, se esta fôr, em princípio;
intransmissivel; por outro, não se pode arbitràriamente restringir
a explicação.

Com relação ao primeiro, o papel prometido por Jesus a


um discípulo, não podiè ser transferido a pessoas de épocas futu­
ras, se ao sentido e caráter da referida função corresponder o fato
de que ela só pode ser efetuada pelos que viveram com o Cristo
encarnado, isto é, durante a vida terrena de Jesus. E essa limi­
tação temporal deve ser respeitada até mesmo quando, segundo
a referida palavra de Jesus, tal função tiver uma importância
permanente para a Igreja posterior, até o presente. Perguntar-
nos-emos se tal não corresponde pelo menos a um aspecto da
palavra em Mt 6 1 . 1 7 e segs.

Quanto ao segundo, uma promessa de Jesus não pode sier li­


mitada a uma certa categoria, fixamente determinada, de cristãos
posteriores, p. ex. uma série de bispos, ligada a uma determinada
sede. Isso, em se tratando de uma função que pode e deve ser
assumida por pessoas do período pós-apostólico até o presente,
que, porém, segundo a palavra de Jesus, não está ligada expres­
samente nem alusivamente a uma sede determinada por um
princípio de sucessão especial. Temos de perguntar-nos se essa
especificação pode ser justificada pelo papel que a comunidade
cristã de uma cidade desempenhou e ainda desempenha na his­
tória eclesiástica, frente a tôda a Igreja.

Ambos os pontos de vista mencionados devem ser considera­


dos na aplicação de Mt 1 6 , 1 7 e segs, Pois vimos que a Pedro
são prometidas duas coisas: 1.°) êle é a Rocha da Igreja a ser
no futuro edificada, 2.°) êle assume a direção da Igreja, cuja
edificação se vai iniciar. A isso corresponde o duplo papel que
Pedro desempenha no Cristianismo primitivo: a função única de
apóstolo, e a de dirigente da Igreja, que é de caráter perma­
nente. Embora ambas as riesponsabilidades estejam intimamente
ligadas entre si, devem ser examinadas separadamente no que se
refere à sua aplicação, pois a questão, acima levantada, relativa
aos limites dessa aplicação se põe de maneira diversa para ca­
da uma delas.

1.®) O Fundamento da Igreja.

Constatamos no estudo exegetico que o fundamento tem de ser


compreendido no sentido temporal. Abandonando os limites da
exegese, faz-se ainda mais necessário salientar que, no que con­
cerne a Mt 1 6 . 1 7 e segs., a rocha sôbre a qual se edificará
a Igreja, a palavra de Cristo, é dirigida a um apóstolo, não a
um bispo. No momento em que Pedro recebe a promessa de ser
Rocha dà Igreja vindoura, êle é considerado um dos doze. Mas,
segundo o testemunho do Nôvo Testamento como um todo, o
apostolado, e especialmente o dos doze, é único e intransmissível,
Na Igreja de Cristo sempre deverão existir, no período pós-apos-
tólico dirigentes de comunidades, bispos e missionários. Mas não
haverá mais apóstolos no sentido em que o foram os Doze. No pa­
rágrafo seguinte trataremos do fato de que freqüentemente, nos pri­
meiros tempos, até mesmo um apóstolo pode ser dirigente de uma
comunidade, pelo menos durante algum tempo, e que justamen­
te Pedro, siendo apóstolo, dirigiu a comunidade primitiva, antes
de dedicar-se inteiramente à missão. Mas isto também não exis­
tirá mais: bispos que, como Pedro, dirigem comunidades na sua
qualidade de apóstolos. A função de dirigir e missionar conti­
nua, deve continuar na Igreja, mas a função de dirigir e mis­
sionar como apóstolo não pode continuar. Contudo, a palavra
acêrca da edificação da Igreja sôbre Pedro, a Rocha, designa
um apóstolo como fundamento dessa Igreja a ser edificada. Em
se tratando, como no caso de Pedro, de um cabeça e missioná­
rio, que é simultâneamente apóstolo, o conceito do apóstolo é
necessariamente genérico.
É mister que levantemos agora a questão do apostolado no
Nôvo Testamento (2). O apóstolo é revestido de uma incumbên-

(2) Vide K. H. REN G STO RF, artigo apóstolos in Theol. Wôrier-


biirch z. N. T. de G. Kittel, tom. 1, 1933, p. 397 e segs- e o artigo de H.
V. CAM PENH AUSEN, citado acima obs. 73 pág. 64, bem como seu li­
vro Kirchlíche Amt und geistUche Vollmacht in den ersten 3 Jakrhan-
derten, 1953, p. 24 e segs. Além disso, E. SCHW EIZER, Qemeínde und
Gemeindeordnung ím Neuen Testament, 1959, p. 176 e segs., e T . W .
MANSON, The Church's Miríistry, 1948, p. 31 e segs.
cia especial apontado pelo Jesus histórico e pelo Ressuscitado.
De acôrdo com o costume do judaísmo tardio, êle como o próprio
Senhor, deve a êste uma prestação de contas, ficando obrigado
a devolver-lhe o seu mandato, uma vez realizado, e não tem o direi­
to de passá-lo adiante.
Quanto ao seu conteúdo, a incumbência consiste, durante a
vida de Jesus, no cumprimento da função messiânica, que êle
próprio exerceu: pregação e cura de enfermos (3). Visto que
após a morte de Cristo a pregação é, em primeiro lugar, teste­
munho de sua Ressurreição, o apóstolo tem de ser, a partir de
então, “ testemunha pessoal da Ressurreição de Cristo” (At 1 . 22),
vale dizer, testemunha ocular. Todos nós devemos ser teste­
munhas da Ressurreição de Jesus'. Só os apóstolos podiam ser
testemunhas oculares.
A necessidade de ser, como apóstolo, testemunha da Res­
surreição, manifestase em 1 Co 9 . 1 . Naquela passagem, Pau­
lo se vê forçado a defender o seu apostolado. Ele o faz, lem­
brando que também êle, como os outros apóstolos, viu o Ressur-
reto. Em At 10. 41 Pedro diz: “ Êle (Cristo) se manifestou...
a nós que comemos e bebemos com êle, depois que ressurgiu
dentre os mortos” . Depois da morte de Jesus existem, pois, mais
apóstolos do que os doze. E ’ o que revela claramente a enume­
ração em I Co 1 5 . 5 e segs., onde são mencionados independen­
temente os doze, e também todos os apóstolos.
No entanto, ao fato de “ ter visto” deve sempre ser acrescen­
tada a incumbência (4). É o que sabemos de Paulo (G1 1 . 1 6) .
Também os onze são incumbidos dessa maneira pelo Ressurreto
(Mt 2 8 .19 ), bem como Pedro em especial (Jo 2 1 . 1 6 e segs.).
Entre os doze, porém, há, além disso, mais uma condição espe­
cial a ser preenchida: é necessáro que tenham vivido com o
Jesus histórico, encarnado. Art 1 . 2 1 o diz claramente, a propósito
da eleição do substituto de Judas. Essa passagem enumera evi­
dentemente as condições a serem preenchidas para pertencer ao
círculo dos doze: primeiro, ser, como todos os apóstolos, “ tes­
temunha da Ressurreição de Cristo” ; segundo, ter vivido com
Jesus durante a sua vida. Em outras palavras: Os doze têm
de garantir a continuidade entre o Ressuscitado e o Jesus histó-

(3) Durante a vida de Jesus existe o grupo mais restrito dos doze
e o m ais amplo dos setenta (Lc 10. 1 e s e g s .).
(4) V ide A. FRIDRICHSEN, “ The Apostle and his message” (Uppsa­
la Universitete Arsskrift), 1947, V. acima p. 60, 70-
rico. Nisso consiste a sua função totalmente singular. Eles re­
ceberam duas vêzes a incumbência apostólica; primeiro, do Jesus
- histórico e depois, do Ressurreto. Entre êles, Pedro é o mais
í importante. Só naquele tempo poderiam existir testemunhas ocu-
í lares do Jesus histórico e da Ressurreição. Jamais virá isso a
acontecer novamente. Cristo quer edificar a sua Igreja sôbre
; uma dessas testemunhas oculares.
Jesus elegeu entre os homens do seu tempo aquêles que de­
veriam ser essas testemunhas, e entre êles, Pedro, a cujo teste­
munho atribuiu uma importância especial. Veremos que, partindo
do conceito de apóstolo acima definido, justamente Pedro é real­
mente 0 primeiro dentre os apóstolos. De início, porém, deve
ser dito que, segundo o testemunho do Nôvo Testamento como
um todo, êle partilha dessa função “ fundamental” com os ou­
tros apóstolos. Dessa maneira, Paulo escreve em Ef 2.20, onde
temos exatamente a mesma imagem de edifício que em Mt 1 6. 1 7,
que a Igreja “ está edificada sôbre o fundamento dos após­
tolos e profetas” . O Apocalipse de João 2 1 . 1 4 também alude
aos “ doze fundamentos do muro da cidade santa, sôbre os quais
estão escritos os doze nomes dos doze apóstolos do Cordeiro” .
E mais uma vez, com a mesma imagem, Paulo menciona as “co­
lunas” era G1 2 .9 (5).
Conclui-sie dai que os primeiros cristãos realmente conside­
ravam os apóstolos como o fundamento da Igreja. Sob o pris­
ma da concepção do Nôvo Testamento, que devemos respeitar
nesse capítulo dogmático, não existe arbitrariedade no fato de
entendermos que Jesus, se dirige a Pedro em Mt 1 6 . 1 7 e segs.,
como apóstolo, e também de darmos tanta importância ao con­
ceito de apóstolo. A imagem do edifício em Ef 2.20 e Ap 2 1 , 1 4 ,
está, em todo caso, em conexão com a função apostólica, e isto é
importante. Assim, a imagem do fundamento impõe-se ao após­
tolo Paulo também em Rm 1 5. 20: “ para não edificar sôbre fun­
damento alheio” . (V. também 1 Co 3 . 1 0 ) . As citadas passa­
gens neotestamentárias talvez até aludam à palavra de Jesus em
Mt 1 6 . 1 7 e segs., sôbre a rocha. Nesse caso teríamos aí o
comentário mais antigo ao nosso texto.
Em 1 Co 5 . 1 1 ; 10 .4 ; Mt 2 1 . 4 2 ; I Pe 2. 4 e segs. consta
que 0 próprio Jesus é a pedra fundamental ou angular. Essa é.

(5) Embora não pertencesse aos doze, é muito provável que T ia g o


fôsco considerado como apóstolo. V. abaixo obs. 34 à pág. 261.
provàvelmente, a muda pressuposição em tôdas as outras pas­
sagens. Isso, no entanto, não impede que o fundamento consti­
tuído de instrumentos humanos de Deus, que por sua vez se estri­
ba em Cristo, sejam apóstolos e que entre êles Pedro se desta­
que, para a Igreja de todos os tempos.
Exatamente como em Ef 2 .2 0 e Rm 1 5. 20 o fundamento deve
ser compreendido em Mt 1 6 . 1 7 e segs. no sentido cronológico.
Em Ef 2 .2 0 Rm 15.20, bem como em Ap 2 1 . 1 4 , não é possível
pensar em sucessores dos apostólos, nem mesmo na aplicação do
texto aos nossos dias. Recentemente tem-se demonstrado que, ao
contrário de outras metáforas neotestamentárias, transferidas de
Jesus para os apóstolos e dêstes para ministérios posteriores, a
figura da rocha, do fundamento, só se aplica aos apóstolos. Nisto
se expressa claramente a unicidade e intransferibilidade do apos­
tolado (6).
No fundamento, constituído por todos os apóstolos, Pedro
é a rocha especialmente visível. Mais uma vez se confirma a
nossa verificação histórica anterior, de que êle partilha sua digni­
dade com os outros discípulos, mas é especial representante do
grupo. Justamente em conexão com o conceito de apóstolo, há
pouco definido como testemunha da Ressurreição e objeto de es­
pecial incumbência, fica evidente também que Pedro constitui o
fundamento com os outros apóstolos, representando, todavia, den­
tro dêsse fundamento, a rocha, pois foi Pedro que viu primeiro o
Ressuscitado e teve, ao que tudo indica, confirmada a incum­
bência apostólica (7). Isto é tanto mais importante, uma vez
que foi êle quem negara a Jesus. Êle é, portanto, o apóstolo
par excellence. O quie os outros apóstolos são, êle mesmo o é
de um modo mais eminente, especialmente nessa relação essen­
cial. É interessante observar que a sua posição de líder no cír­
culo dos apóstolos baseia-se justamente, também nesse sentido,
em um distinção cronológica: Êle é o primeiro que viu o Resus-
citado e, segundo Jo 2 1 . 1 5 e segs., é-lhe renovada por êste a voca­
ção apostólica especial que lhe confiara o Jesus histórico. Lem-
Í3remo-nos de que, na relação que Mateus faz dos apóstolos, Pedro

(6) V ide H. RIESENFELD, Ãmbetet i Nya Testamentet, s- a., p- 17


e jsegs.
(7) Assim principalmente se estiver correta a hipótese de que em
Jo 21. 15 e seg. foi utilizado um relatório sôbre a primeira aparição de
Jesus a Pedro, como talvez fôra narrada no final extraviado de Marcos.
V. acima p. 66 e seg., 206 e seg.
recebe a honrosa classificação de “ primeiro” . Isto também acon­
tece com a determinação do caráter do apóstolo Pedro. Êle se
presta especialmente para transmitir a notícia de que Jesus, que
viveu na terra e morreu, morreu e ressurgiu para a salvação do
mundo.
Dessa forma, os acontecimentos que se seguiram imediata­
mente à morte de Jesus confirmam a palavra sôbre a rocha. Se
procurarmos nas ocorrências dessa época confirmação e esclare­
cimentos da palavra de Jesus, devemos procurá-los no fato de
que Pedro é a primeira testemunha da Ressurreição e que a sua
incumbência apostólica é renovada pelo Ressurreto. Isto está
em íntima conexão com o resultado da interpretação exegética da
sentença: “ As portas da morada dos mortos não subjugarão a
Igreja” (8). Sendo Pedro a mais importante testemunha da Res­
surreição, estas palavras recebem uma incontestável confirma­
ção no fato de que a Igreja está fundamentada sôbre Pedro, a
Rocha, do ponto de vista dos eventos pascais. Vimos que a ro­
cha não se refere à confissão de Pedro, como ensinavam os Re­
formadores, mas à sua própria pessoa. E acrescentamos: a êle
que fôra escolhido em primeiro lugar pelo Cristo encarnado e a
quem o Ressuscitado apareceu em primeiro lugar.
Portanto, não é compatível com o conceito de apóstolo no
Nôvo Testamento que se relacione com bispos futuros uma pa­
lavra de fundação da Igreja dirigida a um apóstolo. É certo
que anciãos e bispos tomaram os lugares dos apóstolos, e po-
dier-se-ia chamá-los de sucessores, embora essa designação possa
conduzir a mal-entendidos. De qualquer maneira, porém, não se
pode esquecer um só momento que êles se acham num plano bem
diferente e não podem ser considerados sucessores no sentido
de “ continuadores da função apostólica” . Êles são sucessores no
sentido cronológico, não quanto ao caráter. Sua função segue-se
à dos apóstolos, mas é fundamentalmente divérsa.(9)

O Nôvo Testamiento regista realmente que apóstolos insti­


tuíram ministros: Paulo e Barnabé designaram presbíteros nas

(8) V. acima obs. 53 pág. 191. Só nessa forma poder-se-ia dei­


xar valer um elemerfto de jpi'obabilidade na 'exlploração de A.
HARNACK, refutada acima, segundo a qual estaria predita nesse ponto
uma ressurreição ao próprio Pedro.
(9) Contra o teólogo católico M. MEINERTZ, Die Theologie des
Neuen Testaments, tom. L 1950, p. 79: “ ...a s s im o apostolado exige
atualidade permanente” .
cidades de Listra, Icônio e Antioquia (At 1 4. 23 e segs.) e Paulo
confia o “ rebanho” aos anciãos de Éfeso, quando da sua par­
tida, principalmente por causa das heresias (At 2 0 . 1 7 e segs.).
Realmente, é possível apurar, no Nôvo Testamento, rudimentos
de uma “ sucessão apostólica” — para empregar êsse têrmo dú­
bio (10 ), mas com a expressa ressalva de que essa sucessão não
pode ser compreendida no sentido de uma continuação, no que
toca ao apostolado. Os apóstolos transmitem a direção àqueles
homens, mas não o seu próprio apostolado. Pois êles sabiam
muito bem que nem lhes era permitido transmití-lo, visto que
só podia ser concedido diretamente e sem mediação (G1 1 . 1 2 e
segs.!), pelo próprio Jesus. Por isso não instituíram “ apóstolos”
na direção, mas “ bispos” e “ anciãos” . 0 Nôvo Testamento não
diz de que maneira êstes devem substituir-se sucessivamente.
Visto que a autoridade do bispo não pode ser equiparada à do
apóstolo, nada se pode concluir das passagens neotestamentárias
acima citadas, onde se fala da instituição de dirigentes de co­
munidades através de apóstolos, acêrca da maneira pela qual
futuros bispos devem suceder-se ( 1 1 ) . Na oração socerdotal, o
Cristo joanino fala daquilo que sucederá aos apóstolos. Após
orar por êles, passa a orar pelos que “ crêem pela palavra (dos
apóstolos)” (Jo 17 .2 0 ). Aos apóstolos segue, pois, tôda a Igre­
ja dos crentes. Daí em diante a Igreja dispõe do ofício episcopal
e deve fazê-lo sob a direção do Espírito Santo (At 20.28).

(10) Isso é muito acentuado por W. MUNDLE, “ Das Apostelbild


der Apostelgeschichte” {ZNW 1928, p. 36 e segs.), artigo ao qual ERIK
PETE R SO N atribui importância especial. Vide PETERSO N , “ Theolo­
gische Traktate” , 1951, p. p. 296 {Brief an A. Harnack) e p. 411 {Die
Kirche).
Quanto à questão da sucessão apostólica, V. também K. H. RE N G S­
TORF, “ Das W ort Gottes und die apostolische Sukzession” (Die Kirche
Jesu Christi und das Wort Gottes, editado por W. Zoellner-W. Stählin,
1937), p. 187 e segs. — A. M. RAM SEY, “ The W ord of God and apostolic
Succession Lutherische Kirche in Bewegung, Für Fr. Ulmer z. 60. G e­
burtstag 1937), p. 179 e segs. Vide E. SCHW EIZER, Gemeinde und Ge-
méindeordnung im Neuen Testament, 1959, p. 192 e segs. — T. W . M AN ­
SON, op. cit. (V. acima obs. 2, pág. 244), p. 52, 52. K. E. KIRK,
The Apostolic Ministry, 1946 (principalmente G. DIX, The Ministry in
the Early Church), defendem o ponto de vista anglicano.
(11) Com isso não se diz que as Escrituras condenem o princípio
sucessório. Elas não dizem palavra alguma acêrca da maneira de deter­
minar os bispos sucessores. Só isso está certo: 0 Espírito Santo, ope­
rante na Igreja, é que deve agir. Assim com razão, K. H. REN GSTORF,
no artigo citado na observação anterior, p. 200.
Não se pode confundir fundamento com edificação. Anciãos
e bispos são só guardas que devem zelar para que seja o edifí­
cio realmente levantado sôbre o fundamento dos apóstolos. Eles
próprios não são o fundamento. Cometeríamos tal confusão se
porventura nos baseássemos no fato da instituição de anciãos e
bispos feita pelos apóstolos, para atribuir a um bispo a palavra
que Jesus dirigiu ao apóstolo-rocha. Embora seja justamente a teo­
logia católica que mais acentue a singularidade do apostolado,
entretanto, nesse ponto decisivo da aplicação de Mt 1 6 . 1 7 e segs.,
ela a diminuiu. Jamais existirão homens que, como Pedro, co­
meram e beberam com Jesus, o encarnado, e presenciaram a sua
paixão e morte e aos quais Jesus apareceu, após a negação, co­
mo 0 Ressuscitado, três dias depois de sua morte. Mais abaixo
mencionaremos que jamais poderão existir homens que, como
Pedro, tivessem sido dirigentes da primeira Igreja de Cristo, a
comunidade original de Jerusalém.

Por isso, aquela parte da promessa de Jesus, que alude à


edificação sôbre a Rocha-Pedro, também sob o prisma do teste­
munho total do Nôvo Testamento sôbre o apostolado e dos acon­
tecimentos da comunidade primitiva, só pode ser interpretada,
na aplicação à Igreja posterior, de maneira que essa Igreja pos­
terior repouse de uma vez por tôdas e em cada geração sôbre o
fundamento lançado uma vez, ou seja, no início: no centro dos
tempos, na época da revelação, quando Cristo esteve na terra,
morreu e ressurgiu.
E perguntamos mais: Como pode o fundamento, interpretado
de tal maneira, cronologicamente, continuar a desempenhar êsse
papel para a Igreja de todos os tempos? E como pode Pedro
tornar-se “ atual” para a Igreja em cada geração, no sentido eti­
mológico? Pedro, realmente e não supostos sucessores? Como
pode a Igrejâ esíãr^^ãiffda atualmente fundada na pessoa histó­
rica do apóstolo Pedro?
Isso só se torna possível, se justamente a singularidade tem­
poral do fundamento, constituído pelos apóstolos, fôr respeitada,
i.e., se a fixação de sua pessoa e de sua obra continuar existindo,
na sua singularidade histórica, como evento concreto da época
da revelação, no nosso presente. Esse evento único, que repre­
senta a continuação da vida dos apóstolos no tempo da Igreja,
não é a pessoa do bispo que vive em dada época, e faz parte de
uma corrente sucessória ininterrupta, mas é sim a literatura apos­
tólica. 0 que nos leva a essa constatação não é um preconceito
confessional, mas unicamente o conceito cristão primitiSvo <3e
apóstolo. Nesta literatura encontramos atualmente, em pleno
meiado do século XX, as pessoas dos apóstolos, a de Pedro, o
primeiro entre êles. Dessa forma êles continuam e êle continua
a sustentar o edifício da Igreja. No único texto neotestamen-
tário, que alude expressamente à relação dos apóstolos com
a Igreja que se lhes seguiria, a já citada passagem da oração
sacerdotal (Jo 17 .2 0 ), a continuação da obra dos apóstolos jus­
tamente não é ligada ao princípio de sucessão, mas à palavra
dos apóstolos: “ aquêles que crêem por intermédio da sua pa­
lavra” .

Sem apóstolos, não teríamos o Nôvo Testamento, nem qual­


quer conhecimento sôbre Jesus, o Ressuscitado. Tudo que dêle
sabemos deve-se a êles. E isso toca a Pedro de maneira es­
pecial. Pápias relata que o Evangelho de Marcos foi redigido
de acôrdo com as prédicas do apóstolo Pedro, estribando-se as­
sim no seu testemunho. Se isto fôr correto, também é possível
afirmar históricamente que a tradição verbal anterior aos evan­
gelhos escritos remonta primordialmente ao apóstolo Pedro, prin­
cipalmente se considerarmos o Evangelho de Marcos, de acôrdo
com as mais recentes pesquisas, como o mais antigo.

Ao lermos os evangelhos, estamos em contato com a pes­


soa dos apóstolos e do apóstolo-rocha. Atualmente não nos é mais
possível ouvir as testemunhas oculares da vida histórica de Jiesus
e da sua ressurreição. Não podemos mais ir a Jerusalém para
“ conhecer a Pedro” (G1 1 . 1 8 ) , como o fêz Paulo. Mas, também
não encontramos a testemunha ocular, Pedro, em uma outra ci­
dade, e nem em um bispo que faz parte de uma corrente suces­
sória “ petrina” . Continua sendo, no entanto, para nós a Rocha,
0 fundamento, nos Evangelhos, e numa forma derivada, nos Atos
dos Apóstolos e nas Epístolas que se baseiam totalmente no pri­
meiro testemunho apostólico. Aí é que o histórico fundamento
apostólico da revelação, sôbre o qual Cristo edifica a sua Igreja
de nôvo em cada geração, assume também para nós um aspecto
concreto, conservando mesmo assim a sua forma única. Aí é que
os apóstolos continuam a viver, e por isso tôdas as Igrejas cris­
tãs, e não só as católicas, deveriam escrever à entrada de seus
templos; “ Tu és Pedro, sôbre esta Pedra edificarei a minha
Igreja” . “ Edificada sôbre o fundamento dos apóstolos e profe­
tas” . “ Rogo por aquêles que crêem por intermédio da palavra
dos apóstolos” . Cada Igreja cristã deveria ser “ ecclesia catholica
et apostolica” . Uma Igreja que não fôsse apostólica não seria
mais cristã. Mas é errômeo querer contentar-se com o apóstolo
Paulo, como acontece freqüentemente por parte de Igrejas pro­
testantes. Tornou-se costume associar o apóstolo Pedro à Igreja
Católica Romana e Paulo à protestante (12). Na realidadie, cada
Igreja necessita do apóstolo Pedro, pois, como “ primeiro” entre
os doze, êle tem de garantir a continuidade com o “Jesús“ encar­
nado (1 3).
A aplicação da palavra sôbre a rocha pode acontecer, portan­
to, nesse sentido, em completa harmonia com a exegese, mas tam­
bém com a história dos primórdios da Igreja.
Os católicos levantam aqui a seguinte pergunta: Quem é
que garante, no presente, que a Igreja possa encontrar a base
apostólica por intermédio das Escrituras? Esta pergunta é em si
justificável, mas não deve ser respondida, tendo por ponto de
partida a palavra sôbre a rocha, de Mt 1 6 . 1 7 e segs., que é uma
“ palavra de fundação” . A rocha é e continua sendo única. É
evidente que a Igreja necessita de responsáveis, de vigias, de
pastores e de intérpretes. Mas êstes tornar-se-ão infiéis à sua
função, se atribuirem a si mesmos a palavra relativa à rocha.
São certamente elementos indispensáveis, de que Cristo se serve
para continuar a edificação de sua Igreja. Sua missão é provi­
denciar para que essa rocha permaneça inabalável no lugar em
que Cristo a colocou, e da mesma maneira como êle a colocou.
Dessa forma, os guardas, pastores e bispos são instrumentos da
promessa de Jesus, de edificar sôbre Pedro a sua Igreja (14).

(12) 1'sso é o que costuma acontecer especialmente nas conferên­


cias ecumênicas, sendo que então as Igrejas orientais recebem como pa­
trono o apóstolo João-
(13) Queremos iazer essa restrição também em relação ao livro de
J. j. LEUBA, L’Institution et l’Evénement, 1950, que oferece, de resto,
uma boa base histórica para o diálogo interconfessional.
(14) RICHARD BAUM ANN, Des Petrus Bekenntnis und Schlüsset,
1950, geralmente formula os problemas de maneira bastante correta, mas
os resolve muito depressa no sentido da doutrina católica, estando, po­
rém, empenhado em apoiar-se totalmente nas Escrituras. Contra a con­
cepção de que a Igreja de todos os tempos continua a edificar sôbre o fun­
damento lançado uma vez, no início, de maneira a erguer-se nessa ed ifi­
cação uma “ camada” sôbre a outra, até o fim dos tempos, êle formula,
na p. 49, o seguinte argumento: Nesse caso aquilo “ que aí está com a
primeira camada na primeira festa de Pentecostes” seria “ algo inacaba­
do, mal começado” ; isso não seria “ uma casa nem um templo” . Essa
argumentação, no entanto, não está correta, uma vez que a palavra “ ina-
Segundo a doutrina católica, a conexão com Pedro só pode
ser garantida pela corrente sucessória dos papas, não pelas Escri­
turas. Por isso a questão de Pedro encerra implicitamente o
problema da “ Escritura e da tradição” , que examinei minuciosa­
mente em outro lugar (1 5) . Por ora basta indicar que Mt 16
justifica a corrente sucessória. Além disso, devemos perguntar
ainda: E ’ a corrente sucessória, que inevitàvelmente também é
fonte de adulteração, uma garantia melhor do que o testemunho
das Escrituras, mesmo admitindo-se a possibilidade de êrros de
interpretação?

2.®) A Direção da Igreja

Entre os teólogos protestantes ocorre com freqüência o êrro


de não se dar a devida atenção ao imediato contexto posterior,
que se refere claramente à direção da Igreja. O poder das chaves re-
iaciona-se antes à direção missionária (16), mas o de ligar e des­
ligar pressupõe, segundo ambas as possibilidades de interpreta­
ção, (17) a direção da conlunidade.
Já mencionamos que também a direção da Igreja por Pedro
é direção apostólica, pertencendo, portanto, também ao papel úni­
co da rocha, à fundamentação. Embora Jesus possivelmente não
tenha dirigido a palavra da rocha a Pedro na mesma ocasião que
a das chaves, como admitimos, contudo, na atual combinação das

cabado” é entendida aqui no sentido de “ qualitativamente incompleto” .


No entanto, a edificação não continua porque o edifício seria incompleto
ou porque não constituiria algo de íntegro sem os pavimentos superiores.
Êle é “ inacabado” antes do fim dos tempos, tal não compreende jamais
um juízo qualitativo. O edifício já é um todo completo com o andar
térreo da igreja; o número dos pavimentos só tem significação cronoló­
gica. O fundamento permanece o mesmo, êle está tão firme que suporta
08 andares superiores tão bem como os inferiores.
(15) Por isso não é casualidade que da discussão acêrca da pri­
meira edição do nosso livro sôbre Pedro tenha surgido outra acêrca de
Escrituras e tradição, como a que tivemos com o padre J. D AN iÉLO U
in “Le Dieu vivant” , nos anos 1953 e segs. Ela está anotada no nosso
escrito: Die Tradition ais exegetisches, historisches und theoíogisches
Problem, 1954 (esgotado). Êste deve ser considerado como completaçâo
necessária da explanação acima apresentada e reaparecerá futuramente
em um volume que compilará todos os meus artigos.
(16) V. acima p. 232.
(17) V. acima p. 233 e seg.
paiavras em Mateus, tôda a promessa é dominada pela palavra
da rocha, que constitui, em continuação à concessão do nome, o
ponto de partida. Por outro lado, mencionamos diversas vêzes
que, ao contrário do apostolado, à função de dirigentes da Igre­
ja continua. Devemos considerar, portanto, duas coisas; primei­
ro, o caráter intransmissível da direção da comunidade primitiva
por parte de Pedro, e depois, o fato de que deverá existir uma di­
reção posterior na Igreja, e que, portanto, Pedro é, de certo modo,
o'ôriginaî exemplo para tôda futura direção de Igreja (18).
Em se tratando de aplicação, permitido e necessário com­
binar Mt 16,17 ss. com o que constatamos nos Atos dos Apósto­
los e nas epístolas sôbre o verdadeiro papel que Pedro desempe­
nhou na comunidade primitiva. Se lermos as palavras de Jesus
sob 0 prisma da história do período apostólico, deve ser dito que
Pedro é realmente o cabeça da Igreja primitiva. Como vimos, êle
lidera a comunidade primitiva, embora só nos primeiros tempos.
Pouco depois Tiago assume a direção, em Jerusalém. Pedro, po­
rém, conserva para todos os tempos a grandeza e dignidade únicas
de ter sido dirigente da comunidade primitiva, e assim, de tôda
Igreja, nos primeiros dias da Igreja de Jesus Cristo. Isso deve
ficar estabelecido como um fato da história da salvação, no seu
início, e confere com o resultado da exegese de Mt 1 6 . 1 7 e segs.,
segundo o qual Jesus pensa no período da vida de Pedro, ao pro­
meter-lhe 0 poder das chaves, de ligar e desligar. Aquilo que Pe­
dro fará, pertence ao período da revelação, ao tempo dos apóstolos,
ao fundamento. Por isso o seu desempenho do poder das chaves,
do ligar e desligar, é tio importante.
Só a Igreja orig'nal foi dirigida por êsse apóstolo e isso, só
no primeiro tempo. Logo que se lançou a primeira base dessa di­
reção, Pedro a'abandonou’ era favor de outro. Tiago, que" a as­
sumiu em Jerusalém, enquanto Pedro se concentrou totalmente à
obra missionária, subordinado a Tiago. ‘ , •
Essa subordinação posterior de Pedro a Tiago é um fato im­
portante em todos os sentidos. Ela prova, primeiramente, que,
se Pedro dirigiu a Igreja, essa circunstância tem valor, para nós.

(18) P.-H. M ENOUD, L’Eglise et les ministères selon le Nouveau


Testament, 1949, p. 25 e segs., distingue, com razão, em todo o Nôvo
Testamento, entre a função linica e irreiterável de testemunha, do após­
tolo, e as outras funções por êle exercidas e que continuam na Igreja.
Quanto a isso, E. SCHW EIZER, “ Geist und Gemeinde im N. T . und deute”
{Theol. Ex. heute, 1952).
apenas como ponto de partida. Tiago é o verdadeiro cabeça da
igreja no momento em que Pedro se entrega inteiramente ao tra­
balho missionário. Nesse fato inteiramente claro no Nôvo Tes­
tamento conservou-se a lembrança de todo judeo-cristianismo,
que se empenhou pelas antigas tradições (19). Segundo Hegesipo
“ o irmão do Senhor, Tiago, assume a direção da Igreja, com os após­
tolos” (20), Especialmente importante é que as Pseudo-Clementi­
nas, simpáticas a Pedro, o subordinaram inequivocamente a Tia­
go ( 2 1). Pedro tem de “ prestar contas” a Tiago, “ o bispo da
santa Igreja” . Êle envia suas palestras doutrinárias (22), e Cle­
mente o classifica de “ bispo dos bispos” , “ dirigente da santa Igre­
ja dos hebreus e das Igrejas fundadas em tôda parte pela providên­
cia de Deus” (23). Clemente baseia a incumbência que recebera
de Pedro em uma incumbência que Pedro recebera de Tiago (24).
Essas notícias posteriores correspondem, pois, com o que pode­
mos deduzir sôbre Tiago das epístolas de Paulo e dos Atos dos
Apóstolos (25).
Não é possível argumentar, dizendo que Pedro se dirigiu, na-^
quela ocasião, para Roma, passando por Antioquia, para “ trans­
ferir” com a sua pessoa o primado, de Jerusalém para aquela ci­
dade. Na realidade, Pedro não deixa Jerusalém com a intenção
de transferir o primado para qualquer outro lugar, mas para pro-

(19) M ais uma vez salientamos que baseamos a afirmação de que T iag o
dirigiu a Igreja muito cedo e ainda durante a vid a de Pedro no teste­
munho de Paulo e dos Atos dos Apóstolos e que só recorremos às fontes
judeo-cristãs posteriores como confirmação secundária. (V. acima obs. 33,
p. 45.
(20) E U SêBIO , H. e . II. 23, 4. De acôrdo com EUSÉBIO, H. E.
II, 23, 1, êle a recebe “ dos apóstolos” ,
(21) Vide C, SCHMIDT, Studien zu den Pseudo-Clementinen, 1929,
p, 108 e segs-, 322 e segs, — ^O, CULLMANN, Le problème Uttérdire et
historique du roman pseudo-clémentin, 1930, p, 250 e segs. H. J, SCH O EPS,
Theologie und Geschichte des judenchristentums, 1949, p, 122 e segs. —
G. STRECKER, Das Judenchristentum in den Pseudoklementinen, 1958,
p. 58 e segs.
(22) Rec I. 17; Hom I. 20. Ep. Pe. 1.
(23) Ep. Clem.
(24) Rec. 17; Hom. i. 20. V- também o versículo 12 do evangelho
gnóstico de Tomé (E. Brill) que se reporta a ciculos Judeu-cristâos e
gnósticos. V. a êsse respeito 0. CULLMANN, Th. Literaturzeitung 1960,
col. 321 e segs.
(25) De acôrdo corn CLEM EN TE de Alexandria, que igualmente
salienta bastante a posição especial de Pedro entre os discípulos (Quís
dives salvetur, cap, 2 1), Pedro T iago e João teriam renunciado à pri­
mazia, após a ascensão de Jesus, e eleito T iago, o justo, para bispo de
pagar o evangelho. Mas, oomo foi dito, o importante é que êle
não permanece na sua posição superior frente à nova direção de
Jerusalém, como se Tiago fôsse só o seu representante ou só bis­
po da Igreja de Jerusalém, depreciada talvez ã situação de comu­
nidade de local. Êle se subordina ã autoridade de Tiago, como
govêrno central. Em uma época, na qual Jerusalém ainda ocupa
a posição liderante, e quando tôdas as outras comunidades ainda
se sujeitam a Jerusalém — também as fundadas por Paulo, como
o demonstra a coleta — , o próprio Pedro é dependente da nova
direção em Jerusalém; Em Antioquia, êle temia “ os da parte de
Tiago” (0 1 2 . 1 2 ) !
E ’ certo que não devemos exagerar a importância do choque
entre Pedro e Paulo em Antioquia (26). Mas êle demonstra ine­
quivocamente outra coisa que me quer parecer muito mais im­
portante do que a repreensão de Paulo a Pedro; Pedro não de­
sempenha um papel liderante frente a Tiago, cujos representantes
êle teme. Nada se diz sôbre transferência da direção a outro
lugar, da parte de Pedro.
A tradição católica afirma que Pedro também foi bispo em
Antioquia (27). Mas G1 2 . 1 2 demonstra que, mesmo estando
certa essa tradição, êle não teria dirigido, dessa cidade, tôda a
Igreja; que êle, portanto, também não transferiu a direção de
Jerusalém para a Antioquia e de lá, para Roma. Êle só ocupou a
direção total no inicio da Igreja de Jerusalém e com isso, no
inicio de tôda a Igreja. Efetua, então, o seu apostolado missio­
nário e isso, a serviço da Igreja judeo-cristã de Jerusalém, cuja
direção está nas mãos de outrem.
No que diz respeito ã direção da Igreja por parte de Pedro,
devemos tomar a sério que o apóstolo-rocha dirigiu só uma vez
tôda CL Igreja. Tal aconteceu na época em que êle presidiu a co­
munidade de Jerusalém, nos dias após a ressurreição de Cristo
e na época da participação do Espírito, quando desempenhou lá

Jerusalém. (Hypotyp. EUS., H. E. 11, 1, 3. V ide JERONIMO, Devir. ill-,


cap. 2 ). No entanto,está apagado o fato de que Pedro ocupava a d i­
reção no primeiro tempo. Assim encontramos também em teólogos re­
centes a opinião de que T iag o teria exercido a direção desde o início.
(Vide H. KOCH, Cathedra Petri, 1930, p. 171 e segs.). Isso, no entan­
to, não é mas do que reportar ao início uma situação que ocorreu s ó ' de­
pois de certo tempo. — Corretamente H. v. CAM PENH AUSEN, ZK G
1951/52, p. 136 e seg.
(26) V. acima p. 52 e seg.
(27) V. acima p. 57 e seg., e abaixo p- 261 e seg.
O ligar e desligar, cuja lembrança se conserva na narrativa de
Ananias e Safira (Aí 5 .1 e segs.). Se é que se apela para a his­
tória da Igreja primitiva para atribuir ao primado de Pedro uma
importância atual em relação à direção total da Igreja, isso só
pode acontecer de modo que a Igreja atual reconheça o plano
salvador de Deus no fato de que no seu ponto de partida, e só
no sieu ponto de partida, está o apóstolo ao qual Jesus concedeu
0 nome de “ Rocha” e ao qual anunciou que sôbre êle e
a Igreja.

^ A aplicação da promessa de Mt 1 6 . 1 7 aos tempos posteriores,


/wíísdeve ir além do simples reconhecimento pelo papel desempenhado
por Pedro na história da Salvação. A Igreja está tão necessitada de
direção hoje romo nos tempos apostólicos, e nesse sentido a direção
do primeiro chefe eclesiástico deveria servir de exemplo; mas nada
mais do que isso. A direção de Pedro é protótipo e exemplo
para os dirigentes futuros. 0 próprio Pedro não pode, por as­
sim dizer, ressuscitar em cada nova geração. O “ Cefas” , a Ro­
cha, jamais exercerá, êle próprio, a direção da comunidade. Mas
todos os chefes da Igreja edificada sôbre o apóstolo devem sa­
ber que lhes foram, entregues as chaves e que a êles cabe ligar
' e desligar. ' ' 1
Do fato de que no início um só lidei’ava, como “ rocha” , ertre
as “ colunas” da Igreja, não se deduz necessariamente que tam­
bém em todo o período posterior um ún'co deverá estar na lide­
rança de tôda Igreja. Pois, a Igreja tôda não mais coincide,
como nos primeiros tempos, com uma comunidade local.

Como, então, se determinará a direção da Igreia? A res­


posta tem se baseado num mecanismo quase automático. Com
uma certa ingenuidade, a Igreja Católica Romana tem conside­
rado evidente que não pode entrar em cogitação outro princípio
sucessório que não aquêle lieado a uma cadeia ininterrupta. O
que seria decisivo nesta matéria, em relação com a tese de que
Mt 1 6 . 1 7 visa sucessores, seria; primeiro o fato de que Pedro
teria sido bispo de uma oerta comun'dade, vale dizer, de Roma,
e. segundo, que precisamente essa comunidade de fato “ liderou”
a igreja.
Mas se, de acôrdo com tudo o que foi dito até êsse ponto, a
direção de Redro só entra em consideração como modelo, então
a aplicação exclusiva aos bispos romanos na sua linha sucessó­
ria, torna-se a priori impossível. A seguir examinaremos a
questão do estabelecimento do primado na história, só o faremos,
porque o argumento católico romano sempre apela para a his­
tória para responder à pergunta sôbre onde encontrar, em Mt
1 6. 1 7, a sucessão de Pedro.
Retornemos mais uma vez ao principio da sucessão apostóli­
ca, em conexão com o papel da rocha, isto é, de Pedro. Ao
fazê-lo, temos de considerar especialmente a relação do principio
de sucessão com Roma, como sede histórica da direção total da
Igreja. Vimos (28) que não é possível deduzir a idéia da su­
cessão, no seu aspecto posterior, de Mt 1 6 . 1 7 e segs., mesmo
que acrescentemos as passagens neotestamentárias que se refe­
rem ã instituição de ministros nas comunidades locais pelos após­
tolos. Em Mt 1 6 . 1 7 e segs. não existe a menor indicação de
que o centro da Igreja Universal deveria estar numa Igreja par­
ticular, segundo (29), evidentemente, admitem os defensores da
reivindicação romana ao primado. Êles se baseiam só nesse
têxto, mas acrescentam outras ponderações teológicas, de que fa­
laremos mais tarde. Mas uma questão se põe desde logo, e é
que, mesmo que concordássemos em não nos basearmos só nas
Escrituras, não é pelo menos surpreendente que em tôda a docu­
mentação apostólica, i.e., em todo o Nôvo Testamento, o nome
da cidade de Roma não apareça em uma única passagem re­
ferente a Pedro, faltando, portanto, qualquer alusão a “ uma
transferência” do centro? Tal fato deveria dar o que pensar, se o
princípio sucessório de Mt 1 6 . 1 7 e segs. tivesse de ser legitimado
pela evolução histórica, princípio pelo qual Roma se desloca para
0 centro, como “ cidade santa” .

Vimos que é possível explicar historicamente o silêncio do


Nôvo Testamento quanto a qualquer relação de Pedro com Roma.
Teològicamente, porém, é difícil, no caso de essa relação dever
justificar a reivindicação exclusiva da palavra de Jesus pelos

(28) V. acima p. 237 e seg., 248-


(29) Posteriormente, em “Petrus und der Papst”, tomaremos posi­
ção em relação ao argumento de que Jo 2 L 16 e segs. pressupõe em todo
0 caso uma compreensão posterior, que mesmo assim se refere a um tem­
po antigo, das palavras dirigidas a Pedro. Segundo tal compreensão,
estaria prevista uma sucessão, visto que isso deveria ser ratificado nessa
passagem pelo ressuscitado. V. acima obs. 81 p. 203, obs. 174, à p. 238
(cf. obs. 57, p. 34).
bispos romanos (30). Historicamente, concluímos de diversos ar­
gumentos indiretos ser muito provável que, no final de sua vida,
Pedro tenha chegado a Roma e lá se tenha tornado mártir. Seria
isso suficiente, como ponto de partida, para uma afirmação teolò-
gicamente tão importante quanto à história da salvação, que as­
severa poder só a Igreja, cuja direção vier através dos bispos
romanos, em sucessão contínua, fundar-se em Pedro, sendo ela
a única “ Igreja católica apostólica?” Não deveria especialmente
0 silêncio das Escrituras, em tôrno do bispado de Pedro em
Roma, incitar-nos a refletir se a Igreja realmente poderia ser
dirigida por êsse princípio de sucessão em todos os tempos?
Neste ponto, porém, ultrapassamos, o testemunho das Escri­
turas. Que é que temos a dizer acêrca do pressuposto, admitido
sem qualquer discussão, de que a direção da Igreja tôda deva ser
verificada, no período pós-apostólico, por uma certa sede epis­
copal através da cadeia sucessória dos titulares dessa sede? Acêr­
ca de certas comunidades isoladas é possível dizer, em- todo caso,
que, ao instituírem seus dirigentes (31 ) , os apóstolos criaram, na
sua qualidade única de apóstolos, os primeiros bispos das refe­
ridas congregações. Isso, porém, ainda não determina quem
lerá de eleger os próximos bispos (32).
O apóstolo Pedro, ao contrário, jamais instituiu um bispo,
como dirigente de tôda a Igreja. Antes de mais nada, êle pró­
prio não distinguiu qualquer comunidade, exceto Jerusalém, como
sede de sua dineção de tôda a igreja. Mesmo que, após a direção
da comunidade de Jerusalém, êle tivesse dirigido temporàriamente
outras, como missionário apostólico, o certo é que então não
passava de dirigente de comunidades isoktdas, não dirigindo, de
maneira alguma, tôda a Igreja. Pedro só foi líder de tôda a
Igreja em Jerusalém.

(30) M. M EINERTZ, Théologie des Neuen Testaments, vol. 1, 1950,


p. 79, admite: “ Quanto à sucessão de Pedro, não é possível encontrar
naturalmente qualquer ponto de apoio a êsse respeito no Nôvo T esta­
mento” . Opomo-nos à palavra “naturalmente”. P ois isso de maneira
alguma nos parece natural, se a salvação realmente deve depender dessa
sucessão.
(31) V. acima p. 248.
(32) E. SCHW EIZER, Gemeinde und Gemeindeordnung im Neuen
Tesíament, 1959, p. 192 e segs., acentua que também aquela instituição
pelos apóstolos, nas epístolas pastorais, não aconteceu sem a presença da
comunidade, id. in “ G eist und Gemeinde im N. T . und heute” , 1952, que
em I Tm 1. 18 a instituição só ocorre depois de uma “instrução proféti­
ca precedente” .
Se é que uma Igreja quisesse reivindicar uma posição espe­
cial a êsse respeito, e se o princlp'o cia determinação da suces­
são de Pedro ( por suoessão) não fôsse em si arbitrário, esta só
poderia ser a de Jerusalém. 0 Nôvo Testamento nos diz que só
ela foi presidida por Pedro. Nada de certo sabemos sôbre outros
episcopados seus. Acêrca de Antioquia existe, como já dissemos
€ ainda o repetiremos, uma tradição, surgida pela primeira vez
durante o século II, segundo a qual Pedro teria sido seu bispo. A
afirmação de que êle tivessie sido bispo de Roma aparece muito
mais tarde. A segunda metade do século II nos legou textos que
mencionam a fundação apostólica da Igreia de Roma, que é atri­
buída, nessa época bastante adiantada, a Pedro e Paulo, uma afir­
mação que, históricamente, não node ser sustentada (33). E,
mesmo ass'm, ainda não se fala de um bispado de Pedro. Caso
êle realmente tivesse ocupado uma posição episcooal em Roma,
tal só noderia entrar em cogitação para a comunidade local de Ro­
ma. Pois é certo qise naquela éooca, na década de 60, Roma
ainda não desemnenhava papel liderante para tôda a Içre-a, a
qual jamais foi dirigida por Pedro, de Roma. O que nos inte­
ressa aqui é o problema da determinação da sucesão, no tocan­
te à direção total da Igreia, Por ora o^eiiímos só demonstrar
que não só nas Escrituras, mas também na história do Cristianis­
mo primitivo falta Qualquer indicio ai’e 'demonstre ser a suces­
são de Pedro na direção total determinada ne)o fato de ter êle
sido bispo nessa ou noutra cidade. Na vida de Pedro não há se­
quer um ponto de referência para uma cadeia sucessória na dire­
ção total
O fato de que Pedro, muito provàvelmente, tenha padecido o
seu martírio em Roma, não pode conferir a essa comunidade dig­
nidade que compete unicamente à comunidade-mãe de Jerusalém,
de ter representado durante certo tempo tôda a Igreja e, como tal,
ter sido dirigida no período das revelações apostólicas por aquêle
apóstolo.
Mas é evidente que nem Jerusalém entra em cogitação como
veículo permaniente de uma sucessão da direção total da Igreja.
Aliás, a autoridade de Tiago não deriva de Pedro, mas de suas
relações diretas com Jesus. Êle era considerado apóstolo e como
tal, instituído pelo próprio Jesus. É essa a opinião de Paulo

(33) V. acima p. 128, 51, 87.


(34) e mesmo a tradição poster’or relatava que ê!e fôra designa­
do l3Íspo pelo próprio Jesus (35). Não há, portanto, uma ca­
deia sucessória, na direção de tôda a igreja, que remonte a Pe­
dro e a Mt 1 6 . 1 7 e segs. Fontes fidedignas não demonstram
que Ciementle de Roma, tido em geral por papa romano instituído
por Pedro, tivesse recebido seu cargo dêsse apóstolo e nem mes­
mo que êle tivesse sido dirigente de tôda a Igreja. Não é sufi­
ciente admoestar, por carta, uma comunidade-irmã dividida para
que alguém seja considerado papa. Pedro dirigiu, no início, tô­
da a Igreja, em Jerusalém. Mas o princípio da sucessão não po­
de determinar qual o bispo que tem de desempenhar, depois dêle,
o papel de líder. Nenhuma sucessão da direção total conduz de
Jerusalém para uma outra cidade. Isso é o que deve ser dito em
princípio.
Ademais, existem, além de Roma, outras igrejas (36), prin­
cipalmente Antioquia, que consideram Pedro o seu primeiro
bispo. Vimos que é muito difícil provar historicamente o epis­
copado de Antioquia (37), embora as cartas de Inácio insinuem a
suposição de que o episcopado monárquico evoluiu reiativamente
cedo em Antioquia. Mesmo assim, deve ser acentuado que essa
tradição é muito mais antiga e melhor fundamentada do que a
romana. Na época de Pedro, a comunidadt romana não tinha
maior importância do que a de Antioquia, talvez até menor. Am­
bas eram comunidades locais e, como tal, teriam sido dirigidas
por Pedro, caso as referidas tradições fôssem corretas.
Se admitíssemos o principio totalmente arbitrário, segundo o
qual 0 episcopado de Pedro em sua comunidade fundamentaria
também a reivindicação exclusiva de Mt 1 6 . 1 7 e segs por parte

(34) Isso é o que parece deduzir-se do fato de que êle o considera


um dos styloi (Gl. 2, 9) e principalmente de Gl. 1, 19 (éteron dè apos'
tólon ouk eidon ei mè lákobon), mesmo se H. KOCH, “Zur Jakobusfrage,
G al 1. 19 {ZNW 1934, p. 264 e segs.), pensa poder interpretar a passa­
gem de outra maneira: Paulo não teria visto nenhum outro apóstolo, além
de Cefas; mas teria visto T iago. Também K. HOLL, “ Der Kirchenbe­
griff des Paulus, in seinem Verhältnis zu dem der Urgemeinde” (Ges.
Aufsätze, tom. II, 1928. p. 49), o considera um apóstolo; H. v. CAM PE ­
NHAUSEN, ZK G 1950/51, p. 137.
(35) De acôrdo com as PSEU D O -CLEM EN TIN A S Cont. V e Rec.
I, 43, T iag o foi instituído pelo Senhor. Isso também segundo EPIFÂNIO,
Haer. 78, 7 e CRISÓSTOM O in ep. ad. Cor. hom. 38, 4.
(36) PSEU D O -CLEM EN TIN A S Hom 3. 53, pressupõem que em Ce­
saréia existe uma cathedra Petri.
(37) V. acima p- 58 e seg-
dos seus bispos posteriores, Antioquia poderia fazer valer, com
mais razão do que Roma, a sua candidatura ao primado. No
entanto, como já dissemos e ainda o repetiremos, segundo a opinião
da maioria dos teólogos católicos, só o episcopado de Pedro não
é suficiente, de maneira alguma, para provar o seu primado, e
tampouco a interpretação de Mt 1 6. 1 7 , mas a ambos deve ser adi­
cionado, como critério decisivo do primado, o papel efetivo que a
comunidade desempenhou e desempenha na história posterior. No
entanto, visto que o eoiscooado do apóstolo e a relação de Jerusa-
lém-Roma também costümam entrar em pauta como argumento, em
conexão com a história de Pedro, v'mo-nos coagidos a esclare­
cer a auestão em todos os sentidos chegando ä seguinte conclu­
são: Nenhum texto antigo fundamenta a afirmação de que Ro­
ma tivesse assumido a sucessão legal de ferusalém, em conexão
com 0 bispado de Pedro, e mesmo que Antioania ainda fôsse in­
troduzida como intermediária, em nada melhoraria tal teoria.
Pois, Pedro não dirigiu tôda a Igrem de Roma nem de Antioquia,
mas só de ferusaíém, e anenas dnroMe fm breve período. A
história do Cristianismo orimHivo não iustifica, He maneira algu­
ma, a suDosicão de aup Pedro tivesse chegado a Roma para trans­
ferir para lá o primado.
Em consideracão à falta de nualauer fundamento nara tf»l
afirmação, há teólogos ^'atóltcos de renome nne não tornam o nri-
mado de Roma denendente da estadia de Pedro nnoiiela cidade.
Em prmcípio, acreditam até poder renunciar teologicamente a ês­
se argumento, visto que decisivo é só o fato de que os bisoos de
Roma são sucessores de Pedro e não, como o são, e também por­
que a transmissão da sucessão de Pedro aos bispos de Roma é
concebível mesmo sem que o próprio apóstolo tivesse estado na
cidade da futura sede episcopal (38). Nesse ponto é abandona-

(38) V ide R. GRABER, Petrus der Fels, 1949, p. 3. JOURNET


L ’Eglise du verbe incarné 1941, p. 522 e segs. R. GRABER cita DUNIN-
-BO R K O W SK I, “ “ D ie Kirche als Stiftung Jesu” {Religion, Christentum
und Kirche, 1923, p. 45 e seg-): “ a concepção de que para a apologética
católica 0 papado, como continuação da supremacia de Pedro, depende
necessàriamente da estada do príncipe dos apóstolos em Roma e do
seu episcopado naquela cidade, é um equívoco muito propalado. Ésse
não é 0 caso. Ê evidente que se pode conduzir a prova dessa maneira,
mas não é n ecessá rio ... T ão logo não houver dúvidas de que Cristo
não só determinou a primazia de São Pedro, como também se referiu a
essa prim azia como uma instituição permanente, faz-se necessária apenas
,a prova de que só os bispos romanos reivindicaram os direitos especiais
da, em princípio, a fundamentação na história do Pedro históri­
co. Aliás a doutrina católica não nos parece bem uniforme nesse
ponto, e poder-se-ia perguntar se essa renúncia é realmente com­
patível com 0 que manda o Concílio do Vaticano (39).
Em todo caso, é certo, porém, que a estadia de Pedro em Ro­
ma jamais foi, realmente, o único argumento decisivo para o pri­
mado daquela cidade. Todos os teólogos romanos acentuam, ao
contrário, que posteriormente, a partir do início do século II, Ro­
ma efetivamente desempenhou um papel defstacadamente liderante
na Cristandade de então. Poder-se-ia dizer, portanto, que a evo­
lução histórica da História eclesiástica demonstra ter sido o pri­
mado de Jerusalém transferido para Roma, após a destruição da­
quela cidade.
Quanto a isto, temos de responder que do papel efetivamente
histórico desempenhado por uma Igreja em época pós-apostólíca
não pode ser deduzido qualquer direito divino para todos os tem­
pos, se faltar qualquer conexão com o período apostólico, como
constatamos acima, e se em Mt 16 nada se diz sôbre como aplicar
a palavra dirigida a Pedro ao tempo posterior da Igreja. Não é
possível, para essa fuga à história posterior, estriar-se na fi’a-
dição como fonte de revelação. Pois a única legitimidade da
tradição católico-romana baseia-se na afirmação do primado de
Roma. Não se dá o caso de qualquer evolução histórico-erle-
siástica ser encarada, de antemão, como tradição legítima. Mas
não é possível provar a fundamentação da tradição romana a par­
tir dessa mesma tradição. O que importa é demonstrar que é le­
gítima a tradição do primado de Roma, da qual depende tôda a
tradição católica restante.
A fuga para a História poderia assegurar o primado a uma
certa sede episcopal se: prim ei».-M t-1#. 17 e segs. justificasse

do homem-Rocha” . Além disso, L. K Ö STER , W ar Petrus in Rom, 1938,


p. 50 e se g s.: “ Seria perfeitamente concebível que Pedro tivesse nomea­
do 0 chefe da Igreja romana como seu sucessor no primado recebido de
Cristo, mesmo se êle próprio jamais tivesse estado em Roma” .
(39) V ATICAN U M , 4.* sessão, 18 de julho de 1870, cap. 2; “ ...q u i
(Petrus) ad hoc usque tempus et semper in suis successoribus episcopis
sanches Romanae Sedis, ab ipso fundadas eiusque consacratae smguine,
vivit et praesidet et iudicium exercet.
A importância que se atribui em círculos romanos à descoberta do
túmulo de Pedro parece demonstrar que a opinião compartilhada por
muitos teólogos católicos eminentes e peolis mencionados na observação
anterior não defendida por todos.
que perguntássemos por sucessores no sentido de uma vínculação
a uma' cadeia sucessória episcopal, e se, segundo, fôsse possível
reportar a linha do primado de uma comunidade, exercido, de fa­
to, posteriormente, até o período apostólico, até o Pedro histórico.
Mas nenhuma das duas coisas acontece. Nesse caso, o papel efe­
tivamente desempenhado pelos bispos da comunidade de Roma,
naquela época, como atualmente, não prova que devem exercer o
primado que Pedro exerceu um Jerusalém e que lhe foi prometido
por Jesus.
A comunidade romana alcançou, durante os séculos lí e ÍÍI,
paulatinamente uma posição de supremacia. Nenhuma historiador
ou teólogo duvidará disso. Perguntamos, porém, se essa é a ra­
zão pela qual o primado prometido a Pedro em Mt 1 6 . 1 7 e segs.
realmente exercido por êle no início em Jerusalém, deva ser
transferido de maneira exclusiva aos bispos da comunidade ro­
mana. O fato de uma comunidade ocupar uma posição de su­
premacia ainda não prova que isso esteja em tal relação com Mt
j6 . 17 e segs., a ponto de permitir que se deduza daí um direito di­
vino para todo o futuro. 0 historiador profano interpreta aquela
posição de supremacia “ imanentemente” do fato de que Roma era
a capital do Irnpério. Romano, de modo que a comunidade cristã
daquela cidade tinha de alcançar, por assim dizer naturalmente,
um prestígio especial. Êsse motivo teve, realmente, grande in­
fluência. O teólogo descobrirá além disso motivos internos da
Igreja, baseados na situação de então. Talvez também atribua,
como Inácio da Antioquia, à comunidade romana daquela época
uma “ procedência no amor” (40). Mas mesmo se falarmos de
uma evolução desejada por Deus na história da Igreja de Cristo
não é possível deduzir daí que êsse papel histórico seja um sinal
de que ela é norma desejada por Deus, para todos os tempos, pois,
asseveramos mais uma vez; Mt 1 6 . 1 7 e segs nada diz a respeito
da maneara como deve ser determinada a sucessão de Pedro na
direção total da Igreja. É arbitrário contar a priori com essa úni­
ca possibilidade de que a linha de bispos de uma comunidade, a
qual, aliás, não no período das revelações apostólicas, mas
posteriormente, sobressai dentre as outras Igrejas, tenha de de­
terminar 0 sucessor de Pedro. 0 fato de que bispos dessa comu­
nidade reivindicam, em épocas posteriores, serem os únicos visados

(40) IN ACiO aos Romanos, 1, 1 : prokathcméne tes agápes.


?-,_pela promessa de Jesus em Mt 1 6. 1 7 e segs, não pode ser uma pro­
va da legitimidade dessa reivindicação.
De resto, até o início do século III não ocorreu a bispo ro­
mano algum relacionar a palavra de Mt 1 6 . 1 7 a si, no sentido
da direção de tôda Igreja. É provável que Calisto (2 17 /2 2 ),
segundo outros, Estêvão (254/57) (41), tenha aplicado a si o
“ Tu es Petrus” , o que não aconteceu sem resistência. Tertuliano
protestou relacionando a palavra só à pessoa de Pedro, e a ne­
nhum outro bispo; Cipriano, ao contrário, a todos os bispos pos­
teriores e não só aos de Roma (42). A referência dos bispos
romanos a Mt. 1 6 . 1 7 não prevaleceu nem no século III. O re­
lacionamento exclusivo a Roma torna-se algo natural só em épo­
ca muito mais recente.
Irineu parece falar já no século II da tão citada “ prioridade
mais forte {potentior principalitas) de Roma” (43). Acontece,
que não é certa a relação dessas palavras com Roma. Segundo
a interpretação mais recente (44), filològicamente fundamentada
de modo muito convincente, a Igreja, à qual deveriam aderir tô­
das as outras, não é a romana, mas a “ universal” . Mesmo que
Irineu tivesse Roma em vista, não se teria baseado em Mt 1 6, 1 7
e segs. (45), mas, segundo o principio tradicional dos rabinos e
das escolas filosóficas, introduzido provàvelmente por Hegesipo,
em seqüência aos gnósticos, na Igreja Antiga (46), teria indicado

(41) Assim, p. ex., recentemente K. HEUSSI. V. acima obs- 12, p. 183.


(42) Vide E. CASPAR, Gescliichlc des Papsttums von Anfängen bis
zur Höhe der Weltherrschaft, tom. I, 1938, e a!ém disso, acima, p. 103).
(43) Adv. haer. III, 3, 2.
(44) V. 0 artigo excepcional de P. N AU TIN , o qual até o momen­
to não obteve o merecido reconhecimento, “ Iréné, adv. haer. III, 3, 2,
église de Rome ou église universelle?” (Revue de l’Histoire des Religions
Í957, p. 37 e segs.).
(45) P. B ATIFFO L, Cathedra Petri, Etudes d'Histoire ancienne,
1938, p. 14, acredita que na palavra “ principalitas” , a ser entendida cro­
nologicamente, está implícito o “ Tu es Petrus” . Sua explicação, porém,
não nos parece suficientemente fundamentada. — Vimos acima, p. 103,
que Irineu em parte alguma cita as palavras sôbre as chaves. V. nesse
sentido a tese de W- L. DULÍÈRE (La nouvelle Clio 1954, p. 73 e seg.),
mencionada acima, segundo a quai o seu exemplar de Mateus só continha
0 V. 17, não 18-19.

(46) H. V. CAM PENH AUSEN, “ Lehrerreihen und Bischofsreihen im


2. Jahrhundert. In Memoriam Ernst Lohmeyer, 1951, p. 240 e segs.
a tradição apostólica, muito bem conservada, a qual só estaria
em conexão com a fundação da Igreja romana, por parte de
Pedro e Paulo, não oom o primado de Pedro.
Ademais, porém, tôda a controvérsia sôbre quando se re­
correu, pela primeira vez, em Roma, a Mt 1 6 . 1 7 e segs., não
tem para a nossa questão a importância que lhe é atribuída(47).
Em todo caso, passou-se mais de um século até se fazer uma
conexão entre o primado de Roma e a declaração de Jesus a
Pedro. Deveria dar o que pensar o fato de que em uma época na
quãl a comunidade romana j á estava, até certo ponto, consciente
de sua primazia, esta ainda não era fundamentada em Mt 1 6 . 1 7 e
segs. Há cadeias sucessórias de bispos romanos que poderiam
ser de importância para a Igreja. Não existe uma cadeia suces­
sória de dirigentes de tôda a Igreja, embora a cadeia local ro­
mana tenha pretendido isso posteriormente. Desde Tiago, há
uma lacuna. Na admoestação de Cemente, classificada de 1®
Epístola de Clemente, um bispo fala literalmente a uma comuni­
dade irmã, como também aconteceu em outros lugares, sem que
se deduzisse dai uma conclusão em favor de uma reivindicação pa­
ra um primado.
Existe um círculo vicioso, uma petitio principii, na afirma­
ção: visto que, por um lado, existe a jiromessa de Jesus a Pedro,
e por outro, o fato de que Roma exerceu um primado desde uma
época relativamente antiga, conclui-se que êsse primado se baseia
sôbre aquela promessa, passando a norma para todos os tempos.
Justamente essa relação entre Mt 1 6 . 1 7 e segs. e a posição de
supremacia que Roma ocupa posteriormente é que deve ser pro­
vada.
Contra êsse e outros argumento, os teólogos católicos costu-
nam indicar que a promessa a Pedro deveria ter aparecido visi­
velmente na história, visto que a Igreja é visível e continua na
terra a obra de Cristo. Concordamos com a idéia da continuação
da obra de Cristo na Igreja terrena visível, uma vez que a en­
contramos principalmente em todo o Evangelho de João como afir­
mação central. Não falta, portanto, nesse nonto, pelo menos de
no*'sa parte — não falamos em nome da “ teologia orotestante”
oficial —■ uma base para a discussão. Nossas publicações ante­
riores devem ter demonstrado suficientemente que na realidade

(47) Principalmente A. HARNACK, P. B ATIFFO L, H. KOCH, e


E. C A SPA R tomaram parte nessa controvérsia.
acreditamos que o presente no qual nos encontramos, i. e., o perío­
do da Igreja, não é a própria história da salvação, mas um seu
prolongamento, que deve procurar a sua norma (48) constante­
mente no tempo das revelações apostólicas, como o centro dos
tempos. A promessa de Jesus a Pedro concretizou-se visivelmente
em Jerusalém, nos dias que se seguiram à ressurreição. Mas
daí não resulta que a reivindicação romana de ser a única le-
güima Igreja, esteja correta. Roma realmente ocupou na Cris­
tandade uma posição de primazia a partir de um certo momen­
to, mas só no período pós-apostólico (e também aí apenas du­
rante alguns séculos) o, que, como tal, não é normativo. Não
queremos contestar que essa primazia temporária tenha uma cer­
ta importância para o desdobramento do Evangelho, quanto à
história da salvação, no período da Igreja. Mas da crença na
visibilidade da Igreja, na qual Cristo continua a sua obra, não se
deduz que essa primazia se estribe nas palavras de Jesus a
Pedro, no sentido de ser essa _a razão pela qual o ocupante dessa
sede enis^'onal seja dirigente geral da verdadeira Igreja, para
todos os tempos.
Igreja visível existiu e existe também em outros centros
fora da Igreja romana e cai-se mais uma vez em um círculo vi­
cioso, ao argumentar-se por outro lado que estas não são Igre­
jas, por não estarem dentro da sucessão de Pedro. Além do cri­
tério dessa ligação estreita a uma cadeia episcopal, há outros,
baseados em Mt 1 6 . 1 7 e segs. e no resto do Nôvo Testamento,
que nos permitem reconhecer a ígreia que Cristo continua a edi­
ficar sôbre Pedro, a Rocha. Não podemos examinar aqui tôda
a complexa ques'tâo do critério da Igreia e da tradição (49).
Mas deve-se salientar que é arbitrário afirmar que Cristo conti­
nuou a edificação da sua Igreja só sôbre uma certa sede enis-
copal, cujos ocupantes, durante algum tempo, lideraram a Cris^
tandade.
Por mais importante que seiam as manifestações da história
eclesiástica do período pós-aaostólico para a evolução da história
da salvação na época da lereia, não podemos atribuir a qual­
quer daquelas cidades liderantea uma posição exclusivamente

(48) Em nosso trabalho sôbre a escatologia demonstraremos que H is­


tória da salvação e História da Igreia são tão pouco identificáveis como
Hstória da salvação e História profana.
(49) V ide O. CULLM ANN, Die Tradition als exegetisches, historis­
ches und theologisches Problem, 1954. V. acima obs. 15 pág. 253.
normativa, visto que, segundo a intenção de Jesus o texto de Mt
1 6 . 1 7 e segs. não pode ser compreendido, de maneira alguma, no
sentido de uma sucessão que seria determinada por uma cadeia su­
cessória, e uma vez que também a história de Pedro nada diz a
respeito de uma transferência da cátedra de tôda a Igreja, de Jeru­
salém para uma outra cidade. No período pós-apostólico Roma
não foi 0 centro da Igreja Universal, e nesse tempo centra! para to­
dos os tempos, tão decisivo para os cristãos, nada indica que a sede
episcopal romana ou qualquer outra devesse ser decisiva para a
futura determinação da direção da Igreja Universal. Ao lado
de Roma, outros centros da Igreja visível existiram no período
pós-apostólico, como anteriormente. Existem outros hoje e, ao
que tudo indica, outros mais existirão, sejam êles Antioquia, Co^
rinto ou Éfeso, Alexandria ou Constantinopla, Vitemberga, Can-
tuária ou Genebra, Estocolmo ou Amsterdão.
O verdadeiro poder que exerceram ou exercem êsses centros,
não prova coisa alguma em favor da legitimidade de sua even­
tual reivindicação de estar só na sucessão de Pedro, o primeiro
dirigente de tôda a Igreja, instituído pol’ Jesus. Também o
fato 'de que só uma dessas cidades lideriantes apresentou ou
apresenta uma tal reivindicação, não prova coisa alguma.
A apostolicídade, a conexão com Pedro, pode ser preservada
de outra maneira. Nem da Escritura nem da História da Igreja
antiga é possível deduzir um direito divino para o primado de
Roma.
Em vista disso, a Igreja Romana baseia-se também em uma
declaração dogmática, segundo a qual os bispos de Roma se­
riam os únicos sucessores de Pedro (50). Não mais será necessá­
rio lem^brar de que modo tal declaração não se baseia nem na
Escritura nem na mais antiga tradição. Mas perguntaremos se não
é a última petitio principii, basear justamente essa afirmação tão
eminentemehfè fundamental para a reivindicação romana, em dog­
mas posteriores, pois a reivindição exclusiva de pronunciar

(50) V. a sentença do Vaticano, citada acima, obs. 39 pág. 263.


— A exposição mais profunda da doutrina católica parece propor­
cionar a já mencionada obra de C- JOURNET, L’Eglise du verbe in­
carné, 1941. V. principalmente p. 522 e segs, V. também sua obra sur­
gid a em resposta à primeira edição de nosso livro sôbre Pedro, Primauté
de Pierre dans la perspective protestante et dans la perspective catholique,
1953, a quai pretendemos examinar mais detalhadamente em nossa répli-
ea aos críticos católicos, a surgir futuramente sob o título de Petrus und
der Papsí.
dogmas, ern vista de possuir a única autorização apostólica, de­
pende justamente do dogma da legítima sucessão de Pedro. Não
se trata de um dogma qualquer, mas daquele que deve legitimar
o direito exclusivo da Igreja Católica, de proferir dogmas. Per­
gunta-se; Poderá faltar, nesse caso, qualquer outra base, principal­
mente o testemunho das Escrituras, que nem mencionam Roma
em conexão com Pedro, ou mesmo a antiga tradição, que nada
relata acêrca de uma direção de Pedro da Igreja universal, com
sede em Roma, nem de uma transmissão de sua sucessão aos
bispos romanos?
Concluímos, portanto, desta pesquisa dogmático-teológica:
Pedro é Rocha como apóstolo, no sentido de que, no tempo, fez
parte, da fundação da Igreja. Cristo quer edificar sua Igreja,
de geração em geração, sôbre o fundamento dos apóstolos, e en­
tre êstes Pedro foi mais importante.
Pedro foi o dirigente da comunidade primitiva em Jerusa­
lém 0 que tem, também importância temporal. E o seu alcance
eterno, quanto à história da salvação, reside apenas no fato de
que exerceu, no comêço, a liderança da Igreja primitiva.
Se de Mt 1 6 . 1 7 deduzirmos que, também depois de Pedro,
devia haver uma direção geral na Igreja, à qual cabe administrar
as chaves, ligar e desligar, isso não implica numa limitação ex­
clusiva aos futuros ocupantes de uma determinada sede episco­
pal. Tal princípio sucessório não encontra apoio nem nas Escritu­
ras nem na História da Igreja antiga. Na realidade, a direção
da Igreja universal não pode ser determinada por uma suces­
são, no sentido de ligação a uma sede episcopal. A importância
de comunidades isoladas para a Igreja universal é passageira.
Mas a rocha, o fundamento para tôdas as Igrejas de todos os
tempos, permanece sendo o Pedro histórico, escolhido especial­
mente por Jesus dentre os doze e distinguido como testemunha dc
sua vida e morte e como primeira testemunha de sua ressurreição,
Sôbre êle. Cristo que é êle próprio a pedra angular, edificará a
sua Igreja, enquanto esta existir sôbre a terra.

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