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História da Filosofia

do Cardeal Fr. Zeferino Gonzalez, OP

Tomo Primeiro – Volume III


Sumário
Terceiro Período da Filosofia Grega ..................................................................................................... 168
§ 53 A Restauração Socrática ........................................................................Erro! Indicador não definido.
§ 90. Crise e decadência na Filosofia Helênica........................................................................................ 168
§ 91. Ceticismo pirrônico .......................................................................................................................... 169
§ 92. Ceticismo acadêmico ........................................................................................................................ 171
§ 93. Ceticismo positivista. Enesidemo ..................................................................................................... 172
§ 94. Sexto Empírico.................................................................................................................................. 174
§ 95. A Filosofia entre os romanos ........................................................................................................... 176
§ 96. A escola peripatética entre os romanos ........................................................................................... 177
§ 97. A escola epicurista entre os romanos............................................................................................... 179
§ 98. A escola acadêmica entre os romanos. Cícero ................................................................................ 181
§ 99. O estoicismo entre os romanos. Sêneca ........................................................................................... 184
§ 100. Epicteto e Marco Aurélio ............................................................................................................... 188
§ 101. Movimento de transição ................................................................................................................. 189
§ 102. Os novos pitagóricos ...................................................................................................................... 191
§ 103. Movimento intelectual em Alexandria ............................................................................................ 192
§ 104. Origem da escola greco-judaica .................................................................................................... 195
§ 105. Fílon ............................................................................................................................................... 196
§ 106. Crítica ............................................................................................................................................. 198
§ 107. O gnosticismo ................................................................................................................................. 199
§ 108. Gnosticismo panteísta .................................................................................................................... 200
§ 109. Crítica ............................................................................................................................................. 202
§ 110. Gnosticismo dualista ...................................................................................................................... 202
§ 111. Gnosticismo antijudaico ................................................................................................................. 202
§ 112. Gnosticismo semipagão .................................................................................................................. 203
§ 113. O gnosticismo e a Filosofia mais recente....................................................................................... 203
§ 114. A escola neoplatônica..................................................................................................................... 203
§ 115. Plotino ............................................................................................................................................ 203
§ 116. Crítica ............................................................................................................................................. 203
§ 117. Porfírio ........................................................................................................................................... 204
§ 118. Neoplatonismo místico ................................................................................................................... 204
§ 119. Escola filosófico-teosófica do neoplatonismo ................................................................................ 204
§ 120. Crítica geral do neoplatonismo e da Filosofia pagã...................................................................... 204

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Terceiro Período da Filosofia Grega
§ 90. Crise e decadência na Filosofia Helênica

O grande e fecundo movimento filosófico iniciado por Sócrates, desenvolvido e completado por Platão,
Aristóteles, Zenão e Epicuro, entrou em manifesta e rápida decadência com a morte de seus últimos
representantes. Quando estes desapareceram, quando morreram Zenão e Epicuro, o cetro da Filosofia Grega
que eles sustentavam em suas mãos, embora não com a elevação de ideias nem com a verdade com que
sustentaram Platão e Aristóteles, esse cetro caiu por terra em pedaços. Careciam de vigor e força para
sustentar levantado no alto esse cetro os braços débeis dos discípulos e sucessores de Platão, que se
entregaram a um ceticismo estreito; os braços dos discípulos e sucessores de Aristóteles, que se
precipitaram nas correntes do materialismo; e também os dos discípulos e sucessores de Zenão e Epicuro,
que nem sequer souberam preservar a grandeza relativa das concepções estóicas e atomistas, consideradas
como concepções mais ou menos originais, embora imprecisas e errôneas no fundo. Pode-se dizer que o
esforço gigantesco, as grandes produções do espírito helênico, realizadas por Platão e Aristóteles, Zenão e
Epicuro, haviam esgotado suas forças e vitalidade.
Mal se tinha passado um século desde a morte de Sócrates, mal se tinha extinguido o eco da voz desses
grandes representantes e atores do movimento socrático, quando vemos a Filosofia Grega entrar em um
período de visível decadência, degenerar rapidamente, agitar-se em lutas estéreis, caminhar com passos
vacilantes e inseguros, e adotar direções múltiplas, mas infrutíferas até que, posta em contato com o
elemento oriental e com o elemento cristão, obedecer a um movimento sincrético e produzir a concepção
neoplatônica, a qual representa os últimos resplendores da Filosofia Grega considerada em si mesma,
considerada como doutrina independente e isolada do Cristianismo. E dizemos isso porque, ao lado do
movimento neoplatônico, devido principalmente à combinação do elemento filosófico grego com o
elemento filosófico ou, melhor dizendo, teosófico oriental, acontecia outro movimento paralelo, devido à
combinação da parte mais racional e elevada da Filosofia grega com o elemento cristão. Essa combinação
primitiva, essa síntese inicial continha a semente do grandioso e belo edifício que os Padres da Igreja e os
Doutores escolásticos iriam construir ao longo do tempo, conhecido na história como Filosofia Cristã.
A História nos ensina que sempre que em determinado ponto surgem e se desenvolvem vários sistemas
filosóficos, esse surgimento e desenvolvimento geralmente dão origem a um movimento [1] cético e [2]
eclético. E a manifestação desse duplo movimento é natural e lógica; porque a luta e os ataques recíprocos
dos diferentes sistemas produzem e desenvolvem, em certos espíritos, [1] dúvidas e desconfianças em
relação a todos eles. Essa desconfiança se transforma e se converte facilmente na ideia de que a verdade
não existe ou é inacessível para nós, enquanto em outros espíritos o exame crítico dos diferentes sistemas
gera [2] a ideia ou convicção de que a verdade se encontra fragmentada e dispersa nos mesmos. Daí decorre
que os primeiros dirigem seus esforços para estabelecer a falsidade de todos os dogmatismos e mostrar a
impotência mais ou menos radical da compreensão humana em conhecer a realidade das coisas, em atingir
a consciência certa e reflexa da verdade. Os esforços dos segundos visam a reconhecer e separar a verdade
e o erro parciais nos diferentes sistemas, para alcançar a posse da verdade integral, da consciência absoluta
e perfeita.
Tal deveria suceder, e sucedeu efetivamente, durante o período socrático, cuja história acabamos de
esboçar, mas principalmente quando havia dado à luz seus sistemas mais originais e importantes, ou quando
havia terminado seu ciclo criador. Ao lado e após os sistemas dogmáticos e mais ou menos contraditórios
de Platão, Antístenes, Aristipo, Aristóteles, os estóicos e Epicuro, surgem [1] o ceticismo e [2] o ecletismo,
apresentando por sua vez variedade de escolas, fases e graus em relação a seus fundadores e principais
representantes, ao caráter dos dogmatismos que motivaram sua origem e até mesmo às cidades que serviram
de centro de irradiação para sua doutrina. Nem Atenas nem Roma, por exemplo, apresentavam condições
tão favoráveis quanto Alexandria para o movimento eclético e sincrético, que teve seu assento e foco
principal na cidade de Alexandre e dos Ptolomeus.

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Portanto, o período cuja História vamos traçar é um período de crise, transição, decadência e
fermentação, sendo assim bastante difícil classificar e ordenar seu conteúdo com rigoroso método. Para
tentar alcançar isso o máximo possível, falaremos sobre:

a) o movimento cético que durante este período se apoderou da Filosofia grega e de suas principais fases,
o ceticismo pirrônico, o acadêmico e o positivista;

b) a propagação e os representantes da Filosofia helênica e de suas diferentes escolas entre os romanos;

c) o movimento eclético e sincrético do próprio, e dos sistemas ou escolas que foram resultado desse
movimento da Filosofia grega, principalmente de seu contato e fusão com as ideias científicas e tradições
religiosas do Oriente.

(Serapeu – Complexo da Biblioteca de Alexandria)

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§ 91. Ceticismo pirrônico
EPOCHÉ
a) Pirro (Πυρρος), de quem recebeu o nome este ceticismo, era natural de Élida, contemporâneo de
Aristóteles, e acompanhou Alexandre Magno, em suas expedições pelo Egito, Pérsia e Índia.
Ao retornar à sua pátria, começou a dogmatizar no sentido cético e a viver e agir em
harmonia com sua teoria, se damos crédito a Diógenes Laércio, que relata várias
anedotas1 que confirmam isso. Foi muito respeitado por seus concidadãos e morreu
numa idade avançada de noventa anos.
De acordo com os testemunhos mais fidedignos, Pirro negava apenas ao
homem o conhecimento da verdade objetiva e da essência das coisas, mas não
negava a realidade subjetiva nem o valor dos sentidos como norma de conduta prática
no processo da vida. O homem deve agir de acordo com as prescrições da lei, da qual
emana a distinção entre o bem e o mal; mas deve abster-se de afirmar ou negar qualquer
coisa sobre a realidade objetiva do mundo externo, das coisas sensíveis e, com maior
razão, das coisas espirituais. Os efeitos e impressões que ele experimenta em si mesmo
não dão direito ou meio ao homem para afirmar algo a favor ou contra a existência e a
natureza das causas. Nessa quietude de julgamento [epoché – εποχη] e na execução cega
das leis reside a felicidade do homem.

b) A escola de Pirro durou pouco tempo após sua morte, e o representante mais notável foi seu
compatriota e amigo, o médico Timão (Τίμων), que escreveu um poema satírico com o objetivo exclusivo
de destacar as contradições em que os metafísicos ou dogmáticos de todas as escolas haviam incorrido,
desde Tales até seu contemporâneo Arcesilau. Tanto nesse como em outros escritos céticos, Timão se
esforça para provar que ao homem é dado apenas conhecer o que as coisas parecem a seus sentidos e seu
entendimento, mas não lhe é dado conhecer sua natureza ou realidade objetiva. O que os filósofos e
metafísicos costumam nos oferecer como uma tese certa ou como conclusões demonstradas não passam e
jamais serão mais do que hipóteses mais ou menos plausíveis. Como se vê, o ceticismo de Timão, assim
como o de seu mestre, é um ceticismo objetivo, mas não absoluto ou subjetivo.

Diógenes Laércio indica que o fundador do ceticismo em questão não escreveu obra alguma (Pyrrho
quidem ipse nullum reliquit opus) para ensinar e difundir sua doutrina, deixando isso a cargo de seus
discípulos, entre os quais destaca-se o já mencionado Timão, a quem se deve principalmente a consolidação
e propagação do ceticismo pirrônico, seja pelos elogios que presta ao fundador dessa doutrina2, comparando
sua vida com a dos deuses (solus ut in vivis gereres te Numinis instar), seja pelo desenvolvimento que deu
às razões e argumentos em favor do ceticismo.
Embora tenha sido o principal ou mais célebre, Timão não foi o único discípulo e sucessor de Pirro, pois
também o foram Euríloco, acérrimo inimigo dos dogmáticos – ou sofistas, como os chamavam os pirrônicos
–; Fílon, muito experiente e habilidoso em disputas dialéticas contra os dogmáticos; Hecateu, natural de
Abdera; e Nausífanes, que foi professor de Epicuro, de acordo com alguns autores antigos, o que está em
perfeita consonância com as tendências cético-sensualistas desse filósofo e com o desprezo ou nenhuma
importância e valor que ele concedia à dialética, se devemos acreditar em Cícero, quando escreve que
Epicuro totam dialecticam et contemnit et irridet (desdenha e ridiculariza toda dialética).

1
Diógenes Laércio conta e afirma, entre outras coisas, que Pirro não se desviava dos carros, cães e precipícios que encontrava em
seu caminho, tendo seus discípulos que cuidar para afastá-lo desses perigos, baseando-se no fato de que não se deve dar crédito
algum ao testemunho dos sentidos. Em uma ocasião, passou ao lado de Anaxarco, que havia sido seu mestre e que havia caído em
um lamaçal, sem parar para lhe prestar auxílio para sair.
2
No já citado poema diz, entre outras cosas, dirigindo-se a seu mestre e em louvor do mesmo:
Miror qui tandem potuisti evadere Pyrrho.
Turgentes frustra, stupidos vanosque sophistas.
Atque imposture fallacis solvere vincla.
Nec fuerit curae scrutari, Graecia quali.
Aëre cingatur, neque ubi aut unde omnia constent.
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§ 92. Ceticismo acadêmico

O ceticismo acadêmico deve sua origem a uma transformação da escola platônica. Arcesilau
(Ἀρκεσίλαος), natural de Pítane, na Eólia, discípulo sucessor de Crates na Academia, foi o autor dessa
transformação. Com a intenção de opor uma barreira e correção ao dogmatismo exagerado de Zenão e
Crisipo, ressuscitou e reintroduziu o método socrático nas controvérsias filosóficas, empregando a ironia,
a interrogação e a dúvida. Os procedimentos céticos por parte do método levaram-no ao ceticismo objetivo,
e seus ataques às ideias claras dos estoicos como critério da verdade levaram-no a exagerar as ilusões dos
sentidos e a impotência da razão para assegurar-se da realidade objetiva das coisas e chegar à posse
científica e refletida da verdade. Sócrates havia dito: só sei que nada sei; e Arcesilau, desenvolvendo o
gérmen cético do mestre de Platão, adicionou: nem mesmo sei com certeza que nada sei. No entanto, seu
ceticismo não se estendia à ordem moral, cuja fixidez ele admitia com os estoicos, limitando-se à ordem
especulativa e metafísica. Seus discípulos e sucessores imediatos foram Lácides de
Cirene, Evandro de Fócida e Hegesino de Pérgamo. Seu sistema é geralmente
conhecido na história da Filosofia pelos nomes de Academia Média,
Academia Segunda, para distingui-la da

b) Academia Nova ou Terceira Academia, que deve sua origem ao filósofo


Carnéades. Ele nasceu em Cirene, dois séculos antes de Jesus Cristo; e, tendo
sido enviado a Roma como embaixador em 155 a.C., chamou a atenção dos
romanos com sua eloquência e, ainda mais, com sua doutrina filosófica, que parece diferir pouco no fundo
da de Arcesilau. Ambos opunham à percepção compreensiva (catalepsia) dos estoicos a
incompreensibilidade (acatalepsia) objetiva das coisas, ou seja, a impossibilidade de conhecer com certeza
e evidência o que as coisas são em si mesmas, sua realidade objetiva.
Alguns deles, no entanto, e especialmente os representantes da Academia Terceira ou Nova,
reconheciam o valor relativo e a legitimidade prática dos sentidos, assim como reconheciam a possibilidade
e suficiência da verossimilhança ou probabilidade racional para a orientação da vida. Erram, de acordo com
Cícero, aqueles que pensam que os acadêmicos negam absolutamente o testemunho dos sentidos; pois o
que eles realmente lhe negam é a razão de critério, ou a nota própria para discernir o verdadeiro do falso.
Eles também não negam todo tipo de afirmação e negação, mas sim aquela que se refere à realidade objetiva
das coisas, ou melhor dizendo, à cognoscibilidade certa e evidente dessa realidade objetiva. No entanto,
podemos formar julgamentos prováveis sobre as coisas3, que são suficientes para a direção e ordem da vida,
embora seja admitido que o homem conhece com certeza e compreende verdadeiramente a natureza ou o
ser das coisas como são em si mesmas, cuja realidade ou essência e atributos permanecem incompreensíveis
à razão humana.
O argumento fundamental com o qual eles se apoiavam para chegar a essa conclusão é a impossibilidade
de reconhecermos com certeza e evidência se nossas percepções e ideias são ou não conformes aos objetos
aos quais se referem nossas representações. Assim, poderia ser dito que, na verdade, a doutrina de Arcesilau
(Academia Média) e a de Carnéades (Academia Nova) representam uma doutrina mais idealista do que
cética, ou pelo menos que seu aspecto cético é uma dedução e resultado de sua concepção idealista. O
ceticismo acadêmico tem bastante analogia com o ceticismo idealista de Berkeley e com o ceticismo crítico

3
Merece ser lida a passagem em que Cícero expõe e resume o pensamento académico a que se alude no texto: “Vehementer errare
eos, qui dicant, ab Academia sensus eripi, a quibus nunquam dictum sit, aut colorem, aut saporem, aut sonum nullum esse; illud sit
disputatum non inesse in his propriam, quae nusquam alibi esset, veri et certi notam.
“Quae cum exposuisset, adjungit, dupliciter dici assensum sustinere sapientem: uno modo, cum hoc intelligatur, omnino eum rei
nulli assentiri; altero, cum se a respondendo, ut aut approbet quid, aut improbet, sustineat, ut neque neget aliquid, neque ajat. Id
cum ita sit, alterum placere, ut nunquam assentiatur, alterum tenere, ut sequens probabilitatem, ubicumque haec aut accurrat, aut
deficiat, aut etiam, aut non respondere possit. Nam, cum placeat, eum, qui de omnibus rebus contineat se ab assentiendo, moveri
tamen et agere aliquid, reliquit (Carneades) ejusmodi visa, quibus ad actionem excitemur. Non enim lucem eripimus, sed ea quae
vos percipi comprehendique, eadem nos, si modo probabilia sint, videri dicimus.» Lucul., cap. XXXII.
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de Kant nos tempos modernos. Mais ainda: a analogia entre Arcesilau e Kant se torna mais notável se
considerarmos que, assim como o filósofo de Koenisberg colocou a ordem moral fora do princípio cético
por uma feliz inconsequência, o filósofo grego não estende nem aplica ao ordenamento prático o rigor
acataléptico que professa no âmbito especulativo.
Afora isso, a diferença entre Carnéades e Arcesilau, entre a Academia Nova e a Academia Média,
consiste mais no método de procedimento e aplicação. Carnéades, além de acentuar de forma mais idealista
a doutrina de Arcesilau, distingue-se pela crítica sutil e universal dos sistemas filosóficos, especialmente
do estoicismo, que ele perseguiu sem trégua, refutando e demolindo uma por uma todas as suas afirmações
dogmáticas.

c) Clitômaco (Κλειτόμαχος), natural de Cartago, discípulo e sucessor de Carnéades, limitou-se a


continuar o ensino de seu mestre e a colocar por escrito seus argumentos e ataques contra os estoicos.

d) Seu discípulo e sucessor Fílon de Larissa (Φίλων), no entanto, não seguiu seu exemplo e iniciou, no
seio da Academia platônica, um movimento de restauração anticética, esforçando-se para restabelecer o
dogmatismo moderado da antiga Academia. Segundo Sexto Empírico, este Fílon reconhecia a possibilidade
de conhecer os objetos com certeza e evidência, admitindo também certas proposições lógicas como
absolutamente certas e verdadeiras.

e) Esse movimento de restauração dogmática, que Fílon havia apenas iniciado, recebeu desenvolvimento
e complemento nas mãos de Antíoco de Áscalon (Ἀντίοχος), que admitia a evidência intelectual ou
percepção clara da razão como critério da ciência4 e, ainda mais, reconhecia a evidência dos sentidos5 como
razão e fonte de juízos certos e verdadeiros.

Considerando as profundas diferenças doutrinárias que separam esse filósofo das teorias cético-
idealistas professadas por Arcesilau e Carnéades, alguns deram ao seu grupo o nome de Academia
Novíssima. Mas a verdade é que a doutrina de Antíoco não é nem cética nem acadêmica; sua solução para
o problema crítico participa ao mesmo tempo da solução platônica, da estoica e da peripatética. Fílon de
Larissa e, especialmente, Antíoco de Áscalon representam a transição do ceticismo para o sincretismo e
preparam o caminho para o ecletismo mais elevado e sistemático da escola de Alexandria.

§ 93. Ceticismo positivista. Enesidemo

Enquanto no ceticismo acadêmico ocorria um movimento de restauração, no qual ele se transformava


em dogmatismo eclético, surgia uma nova escola de céticos positivistas e empiristas, que não apenas
ressuscitava o antiquado pirronismo, mas também lhe dava uma extensão e um desenvolvimento nunca
antes alcançados. O primeiro representante notável desse ceticismo foi Enesidemo (Αἰνησίδημος), natural
de Cnossos, em Creta, o qual parece ter ensinado em Alexandria, embora se desconheça a época exata em
que floresceu – alguns o consideram contemporâneo ou pouco posterior a Cícero, enquanto outros
acreditam que viveu no primeiro século da era cristã. Seja como for, é certo que em seus Oito livros sobre
o pirronismo – dos quais possuímos apenas fragmentos e o extrato conservado nas obras de seu
correligionário Sexto Empírico –, ele expõe e desenvolve as principais razões em que se baseia o ceticismo
positivista e empirista. Os céticos chamavam essas razões ou motivos de dúvida universal de “tropos”, e
são em número de dez, sendo as principais as seguintes:

4
Assim se depreende da doutrina que Cícero lhe atribui por boca de Lúculo, quando escreve nas suas Questões Acadêmicas: “Et
cum accessit ratio, argumentique conclusio, tum... eadem ratio perfecta his gradibus, ad sapientiam pervenit. Ad rerum igitur
scientiam vitaeque constantiam, aptissima cum sit mens hominis, amplectitur maxime cognitionem.”
5
Eis as palavras que quanto a este ponto põe em sua boca o citado Cícero: “Ordiamur igitur a sensibus, quorum ita clara judicia et
certa sunt... Meo judicio ita est maxima in sensibus veritas, si et sani sunt et valentes, et omnia removentur quae obstant et
impediunt.” Acad. Quaest., lib. II, cap. X.
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1º A diversidade de organização observada entre os seres sensíveis e a consequente diversidade e
oposição das impressões produzidas pelos objetos nesses seres.

2º A diversidade na organização humana, da qual deve resultar e resulta a diversidade de impressões,


ideias e inclinações, que deveriam ser idênticas se não houvesse diversidade na organização dos indivíduos.

3º A variedade e oposição de sensações produzidas pelo mesmo objeto. Um pássaro com plumagem
bonita e canto desafinado produz uma sensação agradável para a vista e, ao mesmo tempo, desagradável
para o ouvido. Por outro lado, é muito possível que esse objeto, que nos parece uno apesar das impressões
contrárias que causa em nós, seja na realidade múltiplo e composto de elementos essenciais que nós não
percebemos por falta de sentidos adequados, assim como a visão não percebe a música por não ser um
sentido adequado para perceber essa realidade.

4º A dependência e a mutabilidade de nossas percepções em relação à distância, situação e outras


circunstâncias que cercam o objeto. O mesmo elefante que parece muito grande quando visto de perto
parece pequeno a uma certa distância. Isso significa que, embora possamos conhecer e afirmar o que esses
objetos são para nós em determinada situação, em determinada distância, em determinada condição, não
podemos afirmar nem conhecer o que esses objetos são em si mesmos e independentemente dessas
condições.

5º As modificações ou mudanças do sujeito que percebe. O objeto que nos causa tal sentimento ou
emoção na juventude nos causa algo diferente na velhice; na doença, vemos e sentimos as coisas de maneira
diferente do que na boa saúde, de modo que a natureza do juízo e do sentimento em relação ao objeto
mudam e se relacionam com o estado do sujeito.

6º A quantidade das coisas modifica e muda completamente suas qualidades e, portanto, essas
qualidades não podem nos orientar no conhecimento de sua verdadeira natureza. Certas substâncias
venenosas, em pequenas doses, servem como remédio, e as mesmas, em maior quantidade, causam doença
e morte.

7º Podemos conhecer e sabemos o que é uma coisa em relação a outra e as impressões que ela causa em
nós; mas não sabemos o que ela é em si mesma, ou em relação à sua essência íntima; porque nada nos
assegura que a relação de uma coisa com outra, ou a impressão que ela causa em nós, seja a norma e a
medida de sua realidade objetiva.

8º A influência do costume, da educação, da sociedade e da religião. Um eclipse, ou o aparecimento de


um cometa, chama nossa atenção e nos impressiona vivamente, porque não são frequentes, enquanto a visão
do sol não nos impressiona nem chama nossa atenção, pois estamos habituados a ela. O judeu educado na
religião de Moisés considera IHWH como o verdadeiro Deus e Júpiter como um ídolo vão.

Enesidemo não se contenta em basear o ceticismo nessas razões gerais; ele submete a uma crítica
minuciosa, sutil e implacável as principais concepções da Filosofia dogmática, e especialmente a ideia de
causalidade, que é talvez a mais essencial e transcendental no campo da ciência. Sexto Empírico expõe nos
seguintes termos a crítica que o filósofo de Cnossos faz à ideia de causa:
Um corpo não pode ser causa de outro corpo; pois se age por si mesmo imediatamente, só pode produzir
o que já está em sua própria natureza. Para agir através de outro corpo, seria necessário que dois se
tornassem um, e além disso, essa produção intermediária se estenderia ao infinito. O que é corpóreo não
pode ser causa de um ser incorpóreo, porque os seres só podem produzir o que contêm e, por outro lado,
o que é incorpóreo não pode ter contato, agir ou experimentar ação. Um corpo não pode ser causa de
um ser incorpóreo e vice-versa, porque um não contém a natureza do outro...

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As coisas que coexistem não podem ser a causa uma da outra; porque cada uma delas teria igual direito
de exercer essa prerrogativa. Uma coisa anterior não pode ser causa de outra que vem depois, pois a
causa não existe se o efeito não existir ao mesmo tempo, já que ele deve estar contido naquela, e além
disso, constituem uma relação cujos termos são simultâneos e correlacionados. Seria ainda mais absurdo
dizer que a causa pode ser posterior ao efeito.
Aceitaremos uma causa perfeita, absoluta, que age por sua própria energia e sem qualquer matéria
externa? Nesse caso, agindo por sua própria natureza e em posse permanente de seu poder, ela deveria
produzir seu efeito incessantemente, sem se mostrar ativa em alguns casos e inativa em outros.
Afirmaremos, com alguns dogmáticos, que a causa precisa de uma matéria externa sobre a qual ela age,
de forma que uma produza o efeito e a outra o receba? Nesse caso, a palavra causalidade expressará
apenas a relação combinada de dois termos, sem haver motivo para atribuir a propriedade de causa a um
mais do que ao outro, uma vez que um dos termos não pode prescindir do outro.

Depois de atacar a ideia de causa com esses e outros argumentos metafísicos, Enesidemo recorre aos
argumentos empíricos provenientes da experiência e observação dos fatos. A brevidade que nos
propusemos não nos permite expor esses últimos argumentos, então basta lembrar que o filósofo de Cnossos
pode ser considerado um legítimo precursor de Hume no campo metafísico, e também um legítimo
precursor dos materialistas de nossos dias no campo empírico e positivista. Entre Enesidemo e os
positivistas de nosso século, há ainda outro ponto de contato e afinidade, que é sua predileção e tendência
comum para a física atomista-naturalista.

§ 94. Sexto Empírico

Entre os sucessores de Enesidemo, além de Favorino, natural de Arles, na Gália, cujo ceticismo é
conhecido apenas pelos títulos de suas obras e por indicações mais ou menos vagas de Galeno, distinguiram-
se Agripa e o médico Sexto, que recebeu a denominação de Empírico devido à escola médica a que
pertencia6, e que floresceu no final do século II da Igreja.
O primeiro destes, ou seja, Agripa, reduziu a cinco os dez tropos ou motivos de dúvida que costumavam
ser alegados pelos pirrônicos, a saber: (1º) a discórdia e contradição nas opiniões e sistemas dos filósofos;
(2º) a necessidade de proceder in infinitum no que é chamado de demonstração, uma vez que as premissas
de toda demonstração precisam, por sua vez, ser demonstradas; (3º) a relatividade, ou melhor, a
subjetividade de nossas sensações e ideias; (4º) o abuso da hipótese, ou seja, a conversão de hipóteses em
teses; (5º) o uso frequente do círculo vicioso.
O segundo assumiu a missão de reunir, desenvolver e condensar respectivamente
todos os argumentos aduzidos a favor do ceticismo desde Pirro até seus dias. Suas
Hypotyposes pyrrhonicae e seu tratado Adversus mathematicos podem ser
considerados como uma compilação e um comentário geral dos trabalhos
anteriores em favor do ceticismo, e como o arsenal comum dos céticos que o
seguiram até os dias de hoje. São obras que contêm apenas poucos traços de
originalidade, mas que possuem o caráter de verdadeiro monumento literário erguido
ao ceticismo, devido à extensão, universalidade e ao método de seus ataques. Porque
Sexto Empírico, além de agrupar e expor em suas obras todos os argumentos do ceticismo, dirige ataques
especiais e diretos contra cada uma das ciências. Sua obra Adversus mathematicos, embora tenha esse título,
contém capítulos ou tratados especiais contra os astrônomos, contra os aritméticos, contra os lógicos, contra
os físicos, contra os matemáticos, contra os moralistas, de forma que poderia muito bem intitular-se
Adversus omnes et singulas scientias.

6
De acordo com Galeno, naquela época, floresciam duas escolas de medicina, cujos seguidores se distinguiram pela preferência
dada às [1] teorias racionais ou à [2] observação e experiência: os primeiros eram conhecidos como [1] metódicos, e os segundos
como [2] empíricos.
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Na verdade, Sexto Empírico merece ser considerado como o principal representante da escola cética-
positivista que nos ocupa, e que parece ter florescido durante os dois primeiros séculos da nossa era. Sexto
é o grande vulgarizador dessa escola, porque em suas duas citadas obras, expõe, resume e desenvolve
respectivamente as teorias e argumentos de seus antecessores e companheiros. Assim, embora seus escritos
não se recomendem pelo método, pelo estilo ou pela originalidade, serviram como arsenal e foram como
uma fonte geral na qual os defensores do ceticismo sempre beberam.
Devemos, ainda, ao autor das Hypotyposes pyrrhonicae o conhecimento exato e concreto da natureza,
dos procedimentos, das aspirações e dos fins do ceticismo empírico ou positivista. Para Sexto, o ceticismo
é uma espécie de arte ou disciplina essencialmente dubitativa, uma faculdade ou força inquisitória, por sua
vez hesitatória sempre e por natureza (dubitatoria vel haesitatoria, aut inde quod de re omni dubitet et
quaerat, aut propterea quod haesitans, suspenso sit animo ad assentiendum aut repugnandum), de modo
que em nenhum caso e por nenhuma razão produz assentimento ou discordância no homem. O verdadeiro
cético permanece sempre na dúvida; nunca se inclina para nenhum lado, isso não apenas no caso de um
assentimento certo, mas também no caso de um assentimento provável ou verossímil, no qual o verdadeiro
cético difere e se separa do cético acadêmico, que admite probabilidades, ou seja, que em seus juízos se
inclina para um lado mais do que para o outro: isso sem mencionar que o ceticismo acadêmico afirma que
todas as coisas são ininteligíveis, afirmação da qual se abstém o verdadeiro cético, que nem afirma nem
nega7 a incompreensibilidade das coisas.
O objetivo ao qual o cético deve aspirar, como objetivo final e bem supremo do homem, e um objetivo
alcançável, na medida do possível, por meio do ceticismo, é a imperturbabilidade da mente, a ataraxia
(αταραξία), a perfeita tranquilidade da mente; porque quando a alma, na ordem especulativa, nada afirma
e nada nega; quando não julga nada como realmente bom ou mau em si mesmo, e na ordem prática ou
moral se limita a satisfazer as necessidades naturais (sede, fome, calor, etc.) e a seguir simplesmente as
indicações do costume e da lei, é quando possui a tranquilidade acessível, a imperturbabilidade da mente
que se pode ter. Em suma, o cético tem como objetivo e única felicidade suprema a imperturbabilidade
(dicimus autem finem esse Sceptici imperturbatum mentis statum) da alma; para consegui-la: a) duvida de
tudo e não afirma nada sobre o que é bom ou mau, e, portanto, não persegue, nem busca, nem foge de coisa
alguma com intensidade (qui ambigit de his quae secundum naturam bona aut mala sunt, nec fugit
quidquam nec persequitur acri studio, proptereaque perturbatione caret); b) segue na prática as correntes
da vida comum (observationem vitae communis), ou seja, se conforma aos costumes e às leis, sem ser
levado por afetos ou paixões tumultuosas e obedecendo às necessidades da natureza, como obedece ao
costume e às leis, com total indiferença e sem formar nenhum julgamento acerca de sua bondade ou malícia:
Nos autem leges, et consuetudines, et naturales affectiones sequentes, vivimus citra ullam opinationem.
Além de seu conteúdo cético, os livros de Sexto Empírico contêm informações abundantes e geralmente
precisas sobre os sistemas e opiniões dos filósofos antigos.
Já mencionamos antes que as obras de Sexto Empírico são as fontes das quais todos os céticos beberam
desde a época do médico empírico até os nossos dias. E agora devemos acrescentar que dificilmente será
encontrado um argumento de alguma força entre os alegados pelo ceticismo em suas diferentes fases
históricas, que não esteja desenvolvido, ou pelo menos indicado, nos escritos de Sexto Empírico. A
existência de Deus e a noção de causa são objetos preferenciais dos ataques do cético alexandrino, que
dedica seus esforços para rejeitá-los e destruí-los nos primeiros capítulos do livro terceiro de suas
Hypotyposes Pyrrhonicae. Entre os outros argumentos normalmente alegados contra a existência de Deus,
encontra-se ali exposto e desenvolvido, com certo luxo de palavras e detalhes8 , aquele que se refere à
providência divina em suas relações com a existência e origem do mal.

7
Jam vero – escreve Sexto Empírico – et novae Academiae alumni etiamsi incomprehensibilia esse dicant omnia, differunt tamen
a sceptis fortasse, et in eo quod dicunt omnia esse incomprehensibilia; de hoc enim affirmant, at scepticus non desperat fieri posse
ut aliquod comprehendatur, sed apertius etiam ab illis in bonorum et malorum dijudicatione discrepant. Aliquid enim esse bonum
et malum dicunt Academici... persuasi verisimilius esse, id quod dicunt bonum, bonum esse quam contrarium, cum nos nihil bonum
aut malum esse dicamus… sed sine ulla opinatione sequamur vitam, ne nihil agamus.» Hypot. pyrrhon, lib. I, cap. XXXIII.
8
Copiaremos, em confirmação do que foi dito no texto, uma parte somente da passagem aludida, que é por demais extensa: “His
autem istud addendum est: Qui dicit esse Deum, aut providere eum dicit rebus quae sunt in mundo, aut non providere: et si quidem
175
§ 95. A Filosofia entre os romanos

A educação, o caráter, a história e o gênio dos romanos não eram os mais adequados para cultivar o
estudo da Filosofia. A vida ativa constituía o tema principal de sua educação, e o gênio da especulação
científica tinha e podia ter muito pouco espaço na educação de um romano, que era essencialmente político-
militar. Toda a atenção deles estava voltada para o amor à pátria e toda a sua atividade estava concentrada
no desprezo pela morte, na paixão pela glória e, como meio de afirmar esses sentimentos e ideias, na
austeridade de costumes, no culto às tradições dos antepassados, na simplicidade de vida, na constante
vigilância pelo bem público, na liberdade da pátria e no poder da república. Para o romano antigo, para o
romano dos bons tempos da república, não havia mais escola além do Fórum e do Campo de Marte, nem
mais liceu além da tenda de campanha. Os literatos, os oradores, os filósofos eram considerados como
pessoas insignificantes, que pouco ou nada significavam ao lado do guerreiro e do homem político.
Assim vemos que nem o brilho da escola pitagórica, nem as especulações audaciosas dos eleatas, nem
as viagens de Platão à Sicília, nem os trabalhos de Empédocles e outros filósofos encontraram acolhida em
Roma, nem chamaram a atenção de seus habitantes, apesar de terem entrado em contato frequente com as
escolas e filósofos da Sicília e da Magna Grécia, devido às suas contínuas guerras e conquistas. Mais ainda:
quando, com o passar do tempo, ou seja, durante o consulado de Estrabão9 e Messala10, alguns filósofos
fizeram tentativas tímidas de abrir escolas, surgiu um decreto do Senado reprovando e censurando com
rigor tais inovações, contrárias aos costumes e instituições dos antepassados.
Outra prova evidente de que o espírito do povo romano era completamente refratário às especulações
filosóficas é o que aconteceu por ocasião da célebre embaixada que os atenienses enviaram a Roma, na qual
figuravam o estóico Diógenes, o acadêmico Carnéades e o peripatético Critolau. Apesar de a sociedade
romana, naquela época, estar longe de ter a antiga severidade de costumes; apesar da segurança e confiança
em seus destinos que suas conquistas recentes deveriam inspirar; apesar dos patrícios romanos já
começarem a levar filósofos como acompanhantes e apesar de a língua e a literatura gregas já terem sido
assimiladas em Roma e em suas províncias, Catão, o Antigo, assustou-se ao ver a juventude romana acudir
para ouvir os discursos e disputas dos embaixadores filósofos. “Temeroso – diz Plutarco – de que a
juventude buscasse no estudo uma glória que só deveria adquirir mediante o valor e a habilidade política,
censurou os magistrados por permitirem que esses embaixadores, depois de concluídas as questões que
motivaram sua viagem, prolongassem sua permanência na Urbe, ensinando a defender igualmente todo tipo
de opiniões. Por isso, propôs que eles fossem imediatamente despachados para ensinar os filhos da Grécia,
pois os de Roma não deveriam ter outros mestres além dos magistrados e das leis, como fora praticado até
então”.
No entanto, se os esforços de Catão e os decretos do Senado puderam atrasar, não puderam impedir que
a Filosofia grega ganhasse terreno, espalhando-se e enraizando-se entre os romanos, porque tal não era
possível, tendo em vista o crescente relaxamento moral e a mudança radical dos costumes públicos e

providere dicit, aut omnibus, aut aliquibus. Sed si quidem omnibus provideret, non esset neque malum ullum, neque vitiosus ullus,
neque ulla vitiositas: atqui vitiositate plena omnia esse clamant: non ergo omnibus providere dicetur Deus. Sin aliquibus providet,
quare his quidem providet, illis vero non item? Etenim, aut vult et potest providere omnibus; aut vult quidem sed non potest: aut
potest quiddem sed non vult; aut neque vult neque potest.
“Sed si quidem et vellet et posset, omnibus provideret; atqui non providet omnibus, ut apparet ex supradictis: ergo nequamquam et
vult et potest omnibus providere. Quod si vult quidem, sed non potest, ejus vires superabit illa causa propter quam non potest
providere illis quibus non providet. Non ergo providet Deus iis quae sunt in mundo. Ex his autem ratiocinamur, impietatis crimen
fortassis effugere non pose illos qui asseveranter Deum esse dicunt.” Hypotyp. pyrrhon., lib. III, cap. I.
9
Estrabão (Στράβων) (64 a.C. – 24 d.C.) foi geógrafo, filósofo e historiador grego que viveu na Ásia Menor durante o período
de transição da República Romana para o Império Romano. Na filosofia era de corrente estóica e na política, proponente do
imperialismo romano. [N.T.]
10
Marco Valério Messala Corvino (Messalla Corvinus) (64 a.C. – 8 d.C.) foi Cônsul da República junto a Otaviano, em 31 a.C.
Além de General, foi escritor e grande patrono da literatura romana e ficou famoso pelo chamado Círculo de Messala, no qual
reunia grandes literatos como os poetas Álbio Tíbulo e Lygdamus e a poetisa Sulpícia. Foi educado com Horácio e Cícero; e foi
ele próprio o autor de várias obras – todas perdidas – as quais incluíam Memórias das guerras civis após a morte de César, utilizadas
por Suetônio e Plutarco; Poemas bucólicos em grego; Traduções de discursos gregos; Versos ocasionais satíricos e eróticos; e
Ensaios sobre os pormenores da gramática. Como orador, seguia a Cícero em vez da escola ática, mas com estilo afetado e artificial.
Críticos posteriores consideravam-no superior a Cícero, e Tibério adotou-o como modelo. No final da vida, escreveu uma obra
sobre as grandes famílias romanas – muitas vezes confundida com o poema De progenie Augusti Caesaris do século XII d.C. [N.T.]
176
privados, dado o desenvolvimento do luxo e o refinamento de uma civilização que não podia prescindir de
unir os prazeres do espírito com os do corpo, e, por conseguinte, buscar o complemento de seus prazeres
sensuais no cultivo das letras e das ciências. Por isso, nos últimos tempos da República, os romanos, que
até então mal haviam cultivado mais ciência além da política e da moral, e mesmo esta última mais pela
prática ou ação do que pelas letras (bene vivendi disciplinam vita magis quam litteris persecuti sunt) ou o
ensino, começaram a se interessar pelos estudos filosóficos, interesse que se consolidou e cresceu
gradualmente, até tomar forma, por assim dizer, em Lucrécio e em Cícero. Este último pode dizer com boa
fundamentação que, até sua época, a Filosofia havia permanecido abatida ou negligenciada entre os latinos:
Philosophia jacuit usque ad hanc eatatem, nec ullum habent lumen litterarum latinarum.
Por outro lado, não era possível evitar a introdução e propagação da Filosofia grega entre os romanos,
que estiveram, por séculos a fio, em contato constante com os representantes dessa Filosofia primeiro na
Sicília e na Itália e, depois, nas diversas províncias da Grécia e da Ásia. As conquistas de Múmio11, Paulo
Emílio12 e Sila13; as expedições militares de Pompeu14, César, Marco Antônio e Augusto; a posse, enfim,
de Rodes, Atenas e Alexandria, centros e focos do movimento filosófico da Grécia, tornaram inevitável a
propagação da Filosofia Grega entre os romanos.

§ 96. A escola peripatética entre os romanos

De fato, foi como se deu. Entretanto, os romanos se limitaram a expor as especulações da Filosofia grega
e adotar seus diferentes sistemas, sem produzir nenhum que seja original o suficiente para ser digno de
atenção. Embora quase todas as escolas gregas tivessem seus seguidores e representantes entre os romanos,
seu gênio eminentemente prático os levou a preferir a doutrina de Epicuro, a da Academia em suas últimas
manifestações ou tendências ecléticas, e aos princípios rígidos do Estoicismo.
No entanto, também houve alguns que filosofaram no sentido peripatético e deram preferência à doutrina
de Aristóteles. Plutarco menciona Marco Crasso entre os peripatéticos, e Cícero fala do napolitano Staseas,
a quem supõe ser partidário e mestre da Filosofia de Aristóteles. Discípulo de Staseas foi Pupio Pisão
(Marcus Pupius Piso Frugi Calpurnianus), que aparece nos diálogos filosóficos do orador romano como
partidário e admirador da doutrina de Aristóteles e dos peripatéticos. Em um desses diálogos, Pupio Pisão,
depois de elogiar os escritos e instituições dos peripatéticos, e depois de afirmar que na doutrina aristotélica
se inspiraram imperadores e príncipes e até mesmo matemáticos, poetas, músicos e médicos, conclui
recomendando e elogiando o método seguido por Aristóteles e seus discípulos, que na investigação das
coisas procedem discutindo e examinando os argumentos a favor e contra15, sem adotar, por isso, o caminho
cético dos acadêmicos.

11
Lúcio Múmio Acaico (Lucius Mummius Achaicus) foi Cônsul da República em 146 a.C. Distingue-se pela Batalha de Corinto,
a qual marcou o fim da independência grega e o início da dominação romana. À Batalha, seguiu-se o Saque de Corinto, no qual a
cidade foi arrasada e todos os seus tesouros e obras de arte foram saqueados e levados para Roma. Só no ano de 44 a.C., a cidade
foi refundada por Júlio Cesar como Colonia Laus Iulia Corinthiensis. [N.T.]
12
Lúcio Emílio Lépido Paulo (Lucius Aemilius Lepidus Paulus) (77–14 a.C.), mais conhecido como Paulo Emílio Lépido, foi
Cônsul da República Romana (34 a.C.) e pertencia à família dos Lépidos, da gens Emília. Em 42 a.C., com a morte de Brutus,
Paulo Emílio juntou as tropas republicanas remanescentes de Creta e velejou para o mar Jônico, firmando paz com os triúnviros.
Participou ao lado de Otaviano da expedição contra a Sicília de Sexto Pompeu. Durante seu consulado, reconstruiu e dedicou
a Basílica Paula ou Emília, que tinha sido originalmente erigida por seu pai. [N.T.]
13
Lúcio Cornélio Sila (Lucius Cornelius Sulla Felix) (138–78 a.C.), apelidado pelos gregos de Epafrodito (Επαφρόδιτος), foi,
por duas vezes, Cônsul da República, em 88 e 80 a.C., e o primeiro Ditador desde o séc. III a.C., no ano de 82 a.C. Quanto ao
domínio dos gregos, nos anos 87 e 86 a.C., sitiou Atenas e Pireu, então governadas pelo tirano Aristião. Embora a intenção inicial
fosse arrasar a cidade como na Batalha de Corinto, voltando à razão, convenceu-se de que a fama universal de Atenas era como
um título que dava a esta cidade o direito de ser respeitada. Posteriormente, ele poderia invocar entre seus maiores feitos o fato de
ter sido clemente com Atenas: Plutarco, louvando-o, diz que Sila foi grande entre os romanos como entre os gregos, quando decide
perdoar os vivos por respeito aos mortos. [N.T.]
14
Cneu Pompeu Magno (Cnaeus Pompeius Magnus) (106–48 a.C) foi por três vezes Cônsul da República, em 70, 55 e 52 a.C.
Fez parte do primeiro Triunvirato, com Licínio e Júlio César, com o qual romperia posteriormente. Sua última derrota e assassinato
são marcantes para a transformação da República Romana em Império Romano. [N.T.]
15
“Qua ex cognitione facilior facta est in investigatio rerum occultissimarum, disserendique ab iisdem non dialectice solum, sed
etiam oratiore praecepta sunt tradita; ab Aristoteleque principe de singulis rebus in utramque partem dicendi exercitatio est instituta,
ut non contra omnia semper, sicut Arcesilas, diceret, et tamen ut in omnibus rebus, quidquid ex utraque parte dici posset,
177
Na mesma época de Cícero, e posteriormente, floresceram também vários filósofos peripatéticos, que
merecem figurar entre os representantes greco-romanos da escola peripatética, pois ou viveram e ensinaram
em Roma, ou foram mestres de literatos e filósofos romanos. Nesse sentido, pertencem à escola peripatética
greco-romana, além de Andrônico de Rodes, que ordenou e popularizou as obras de Aristóteles entre os
romanos e o já citado Critolau, Nicolau de Damasco e Jenarco de Selêucia. Destes, sabe-se que ensinaram
em Roma no tempo de Augusto: Alexandre de Égina, do qual se diz que foi mestre de Nero; Crátipo, mestre
de Quinto Cícero; Arístocles de Messina, impugnador fervoroso do ceticismo positivista de Enesidemo;
Âmonio de Alexandria, que ensinou em Atenas, onde teve como ouvintes vários patrícios romanos,
Sosígenes, e sobretudo o médico Galeno, que embora natural de Pérgamo, passou a maior parte de sua vida
e ensinou em Roma. Seus trabalhos científicos e descobertas, relacionados com grande parte das ciências
físicas e naturais, são inspirados pela doutrina de Aristóteles, sendo digno de nota também que se atribui a
ele a invenção da quarta figura do silogismo.
Devido ao seu contato e relacionamentos doutrinários, científicos e educacionais com os romanos,
também se poderiam listar entre os representantes do peripatetismo romano Menéfilo, Adrasto, Temístio,
Alexandre de Afrodisia e vários outros comentadores das obras de Aristóteles que floresceram em Atenas,
Alexandria e outras cidades do Oriente e da Grécia, quando a dominação romana já se estendia por essas
regiões.
O último, ou seja, Alexandre de Afrodisia, é talvez o mais notável dessa época, e não foi em vão
chamado por antonomásia de O Comentador. Seus comentários sobre as obras de Aristóteles,
principalmente as que tratam dos livros metafísicos, se destacam pela clareza de exposição e por uma certa
originalidade, e nesse último aspecto pode-se dizer que
eles serviram de modelo para os escolásticos em
seus comentários, seja sobre as obras de
Aristóteles, seja sobre as de Pedro
Lombardo, seja sobre as de Santo
Tomás.
A questão dos universais, que tanto
ocupou os escolásticos, foi tratada por
Alexandre de Afrodisia com bastante
detalhamento, pois ele não apenas explica a
noção geral do universal 16 e seu conceito
específico, mas também discute cada um dos cinco
modos de universalidade. As doutrinas do
comentador de Afrodisia sobre esse assunto talvez
tenham exercido tanta influência nas disputas posterio-
res sobre os universais quanto a Isagoge de Porfírio.
Supõe-se geralmente que Alexandre de Afrodisia tenha comunicado uma certa tendência materialista à
psicologia de Aristóteles, ensinando que a alma humana deve ser considerada como forma puramente
informante do corpo e não como forma subsistente, como uma verdadeira substância intelectual. É verdade
que existem passagens que apoiam essa interpretação materialista, interpretação que, com o tempo, serviu
de ponto de partida para a famosa teoria averroísta da unidade da alma humana; no entanto, também há
textos que parecem excluir e negar essa interpretação materialista psicológica, uma vez que atribuem à
nossa compreensão o epíteto de substância, atribuindo-lhe a sua essência intelectual própria; ele busca a
razão suficiente para a diferença entre a compreensão humana e a divina, em relação à maneira de entender,
em que a primeira envolve certo grau de potencialidade, enquanto a segunda é pura atualidade, razão pela

expromeret.” De Finib. bon. et mal., lib. V, cap. IV.


16
“Universale enim appellatum de omni significat, nam quod de omni dicitur, totum quoddam esse videtur. Totum igitur ad hunc
modum dictum atque universale, idcirco dicitur universale et totum quoniam in se multa continet, deque his singulis univoce
praedicatur, et omnia unum sut secundum praedicatum, et ipsorum quodque hoc est quod praedicatum, propterea quod omnia pariter
communis et se complectentis rationem admittant. Nam illud significat ea (universalia) unitatem haber non continuitate, sed quia
eorum quodque eamdem rationem admittit; equus enim, homo, canis et bos, omnes unum sunt, quoniam eorum quisque animal
est.” Comment. in 12 Arist. libros de prima Phil. Joan. Gen. Sepulveda interp. ed. 1536, lib. V, pag. 212.
178
qual a intelecção em Deus se realiza sem nenhum esforço, algo que não pode ocorrer no homem, cuja
compreensão envolve certa potencialidade17, o que não lhe permite compreender de forma permanente e
sem nenhum esforço.

§ 97. A escola epicurista entre os romanos

Embora sem grande importância científica, houve muitos seguidores e defensores da doutrina epicurista
em Roma. Os nomes de Cássio18 (Catius Insubrus) e Amafânio19 (Gaius Amafanius) são os primeiros que
surgem na história do epicurismo romano, seguidos pelos nomes mais conhecidos e importantes de C.
Casio, de Pompônio Ático, de Veleio e, sobretudo, de alguns dos principais poetas, entre os quais se destaca
Horácio, que se chama com desprendimento notável e franqueza não menor a si
mesmo como Epicuri de grege porcum.
No entanto, o representante mais genuíno, autorizado e completo da
escola epicurista entre os romanos foi, sem dúvida, o famoso Lucrécio
(Titus Lucretius Carus), que nasceu, segundo a opinião mais provável, em
99 a.C. e morreu aos quarenta e quatro anos de idade. Os historiadores
geralmente concordam que ele cometeu suicídio, e Eusébio de Cesaréia o
afirma categoricamente, pois escreve em sua Crônica sobre Lucrécio:
Propria se manu interfecit, anno aetatis quadragesimo quarto.
Seja como for, é indubitável que em seu famoso poema didático dirigido
a Múmio, seu amigo, intitulado De rerum natura, Lucrécio expõe,
desenvolve e enfatiza de forma materialista e ateísta a doutrina de Epicuro, a
quem deseja seguir e imitar (te imitari aveo), tomando-o como mestre e guia,
chamando-o de ornamento da nação grega e reconhecendo-o como o primeiro e mais ilustre dos filósofos:
E tenebris tantis tam clarum extollere lumen, qui primum potuisti... te sequor, oh grajae gentis decus.
Basta passar os olhos pelo poema de Lucrécio para se convencer de que é um verdadeiro comentário
sobre a doutrina de Epicuro, mas um comentário escrito para desenvolver e consolidar a tese ateísta e outras
conclusões negativas da escola. Assim vemos que, embora o fundador desta tenha falado sobre deuses e
seu culto, para o poeta latino não há mais Deus nem causa dos seres além da rerum natura creatrix, e
compraz-se em declarar guerra aberta aos deuses e a toda Religião20, orgulhando-se de ter conseguido calcá-
la aos pés (religio pedibus subjecta) e cantar vitória sobre o céu ou a divindade.

17
“Sic in Intellectu primo sese res habeat oportet, nec ei cum labore intellectio perpetua contingat, siquidem intellectus est et
intellectio. Caeterum quidnam esse causae putemus, cur cum intellectus nostri substantia in eo sita sit quod sit intellectus, huic
tamen laboriosum est continenter intelligere? An intellectus noster non est actu intellectus, neque actus, ut ille, sed potestae?
Primum igitur, si non est intellectus sed potentia, continuatio intellectionis laborem ipsi suppetet.” Comment. cit., lib. XII, pag. 396.
18
Nascido na Insubria, donde o epíteto de Insubro, escreveu um Tratado em quatro livros sobre o mundo físico e sobre o bem
supremo (De rerum natura et de summo bono). Cícero lhe atribui, juntamente com o estilista de prosa menor Amafânio, a escrita
de textos acessíveis que popularizaram a filosofia epicurista entre a plebe. Faleceu em Roma, cerca de 50 a.C., uma vez que, em
carta de 45 a.C. a Cássio Longino, Cícero informa que o epicurista Cássio havia falecido há pouco tempo. Afirma Quintiliano que
“entre os epicuristas, Cássio é agradável de ler, ainda que careça de gravidade”. [N.T.]
19
Caio Amafânio viveu no século I a.C. e foi um dos primeiros a traduzir o termo grego “átomo” para o latino “corpúsculo”
(corpusculum). Em suas Questões Tusculanas, Cícero o critica por falta de estilo e regra na escrita. [N.T.]
20
No princípio mesmo de seu poema, e mal terminada sua invocação a Vênus, escreve:
Humana ante oculos faede cum vita jaceret
In terris, oppressa, gravi sub religione,
Quae caput a coeli regionibus ostendebat,
Horribili super aspectu mortalibus instans;
Primum Grajus homo mortales tollere contra
Est oculos ausus, primusque obsistere contra
Quem nec fama Deum, nec fulmina, nec minitanti
Murmure compressit coelum...
Quare religio, pedibus subjecta vicissim
Obteritur, nos exaequat victoria coelo.”(De rerum nat., lib.I.)

179
Embora Lucrécio fale de mente ou espírito e alma, ele ensina que eles são verdadeiros corpos (corporea
natura, animum constare animamque), e tanto a mente – que é apenas uma manifestação da alma – quanto
a alma em si são meras combinações de corpos pequenos, lisos e redondos: Constare necesse est corporibus
parvis, et laevibus atque rotundis.
Em consonância com essa concepção sobre a origem e a natureza da alma, e seguindo seu mestre
Epicuro, o poeta romano nega terminantemente a imortalidade da alma, zomba dos vãos terrores que a
morte inspira ao vulgo das pessoas, pois, depois de morto, o homem não pode mais sentir dor ou pena
alguma (tu quidem, ut es letho sopitus, sic eris aevi. | Quod superest, cunctis privatus doloribus aegris), e
seu sentimento pela morte de seus entes queridos só pode e deve se referir à ausência ou perda da vida
presente e de seus prazeres. Como materialista e ateu, Lucrécio não podia ignorar a importância
fundamental da doutrina da imortalidade da alma e, por isso, dedica grande parte do terceiro livro de seu
poema a combater e rejeitar essa imortalidade, atacando-a em diversos terrenos e pontos de vista, inclusive
o mitológico.
O conhecimento ou percepção das coisas ocorre na alma por meio de certas imagens em forma de
membranas sutis (quasi membranae) que, saindo dos corpos, se espalham pela atmosfera (volitant ultro
utroque per auras), chegando assim aos órgãos dos sentidos e produzindo na alma a representação e
percepção dos objetos de onde essas imagens corpóreas se desprendem.
Assim como os seguidores recentes do materialismo e do darwinismo, Lucrécio, depois de explicar a
origem do homem por meio de combinações atômicas, procura explicar seu desenvolvimento tanto no
sentido natural ou físico quanto suas propriedades morais, instituições sociais, religiosas e políticas, bem
como a origem e desenvolvimento da linguagem e das artes, por meio de um processo espontâneo da
natureza, que, após diferentes tentativas, produz séries cada vez mais perfeitas, abandonando ([a seleção
natural do] darwinismo) ou deixando perecer as menos perfeitas. A humanidade, com todas as suas
manifestações, representa um processo indefinido, uma cadeia cujo primeiro elo é o homem rudimentar
com qualidades puramente físicas: o homem semisselvagem.
Não é preciso dizer que, para Lucrécio, assim como para seu mestre Epicuro, os átomos ou corpos
simples, geralmente chamados por ele de principia, primordia rerum, são eternos e indestrutíveis, assim
como eterno é seu movimento, e infinito é o vazio no qual se movem.
É digno de nota que Lucrécio supõe que o mundo atual acabará e se dissolverá com o passar do tempo,
e também antecipa o darwinismo moderno ao apontar as imagens e visões percebidas nos sonhos (in somnis
quia multa et mira videbant efficere) como origem das preocupações humanas sobre a existência dos
deuses.

180
§ 98. A escola acadêmica entre os romanos. Cícero

A doutrina de Platão não foi a que obteve maior número de seguidores entre os romanos. Bruto e Varrão
são os que apresentam certa predileção pela doutrina do mestre de
Aristóteles, ou seja, pela primitiva Academia. Por outro lado, a Academia
Nova está brilhantemente representada entre os romanos por Cícero (Marcus
Tullius Cicero); pois, se é verdade que sua Filosofia é uma espécie de
sincretismo que envolve os principais sistemas da Filosofia grega,
não é menos verdade que no fundo de seus escritos
filosóficos pulsa o pensamento, ao mesmo tempo
cético e eclético, da Academia Média e Nova.
O célebre orador filósofo nasceu em Arpino, 106
anos antes de Jesus Cristo, e morreu aos sessenta e Renascimento de Cícero
quatro anos, vítima das disputas civis e das A redescoberta das cartas de Cícero por Petrarca é
vinganças do Segundo Triunvirato. Ele participou considerado um dos marcos fundantes do
ativamente do governo da República como questor, Renascimento, no século XIV. Nesse mesmo século,
pretor e cônsul, e talvez tenha influenciado ainda começa a observar-se uma transformação de
mais seus altos e baixos durante os tempos mentalidade que, ao longo do século XV, cresce cada
turbulentos em que viveu, com sua eloquência e vez mais em nitidez. Segundo a expressão de Zielinski,
magníficos discursos. “o Renascimento era, sobretudo, um renascimento de
Na juventude, Cícero seguiu as lições do Cícero e, apenas depois dele e através dele, do resto da
Antiguidade Clássica” (Cicero Im Wandel Der
epicurista Fedro, do peripatético Filão de Larissa,
Jahrhunderte). Essa observação é, em parte real, dada a
dos estoicos Diógenes e Posidônio e do acadêmico substancial unidade do sensível e do racional no
Antíoco. Sua Filosofia é o reflexo de sua educação homem: o apetite dos prazeres terrenos se vai
literária. Todos os grandes filósofos e todos os transformando em ânsia. Tal clima moral, penetrando
sistemas mais notáveis encontram graça em sua nas esferas intelectuais, produziu claras manifestações
presença e atraem seu olhar. Pitágoras, Sócrates, de orgulho, como gosto pelas disputas aparatosas e
Platão, Aristóteles, Zenão o estóico, todos eles vazias e pelas argúcias inconsistentes, pelas exibições
merecem seus elogios: apenas Epicuro e sua escola fátuas de erudição, e lisonjeou velhas tendências
lhe inspiram repugnância. filosóficas, das quais triunfara a Escolástica, e que já
agora, relaxado o antigo zelo pela integridade da Fé,
Os trabalhos filosóficos de Cícero estão
renasciam em aspectos novos. O tipo humano inspirado
relacionados e em consonância com a trajetória e as
nos moralistas pagãos, que aqueles movimentos
vicissitudes de sua vida política. Sua ação como introduziram como ideal na Europa, bem como a cultura
filósofo é a expressão, ao mesmo tempo que e a civilização coerente com este tipo humano, já eram
complemento, de sua atividade como homem os legítimos precursores do homem ganancioso e
público, e preenche, por assim dizer, o vazio ou os sensual, laico e pragmático de nossos dias, da cultura e
intervalos desta última. Assim, é fácil observar em da civilização materialistas em que cada vez mais
Cícero, considerado como filósofo, as mesmas vamos imergindo. O ápice de autoridade e prestígio
qualidades e defeitos que são atribuídos a ele e que ciceroniano se deu durante o Iluminismo do século
ele realmente possui, considerado como homem XVIII, manifesto em seu impacto sobre Locke, Hume e
Montesquieu.
político. As vacilações, a fraqueza e as contradições
que mancham a vida pública de Cícero, ao lado da impetuosidade, patriotismo e energia do grande
adversário de Catilina, reaparecem igualmente em Cícero como filósofo, ao lado de suas brilhantes
qualidades.
Em harmonia com essas indicações, Ritter observa com razão que “se quisermos ser imparciais e justos
com relação aos serviços prestados por Cícero à Filosofia, é preciso não esquecer que toda a sua formação
tinha um fim político e, consequentemente, também o tinha na Filosofia... Suas obras filosóficas refletem
sua posição em relação aos negócios públicos: facilmente se percebe que eram como uma espécie de
entreatos que preenchiam seus descansos forçados, e se observa que foram publicadas nos intervalos entre
os momentos mais perigosos e o desfrute da honra e do poder. Sem contar os trabalhos filosóficos de sua

181
juventude, que apenas apresentam traduções do grego ou escritos oratórios sobre Filosofia, que podem ser
vistos como preliminares para sua carreira oratória, Cícero compôs obras filosóficas apenas em dois
períodos, [1º] o primeiro dos quais foi quando o Primeiro Triunvirato manteve o Estado em uma agitação
tão febril que Cícero desesperou de sua vida; [2º] o segundo se refere ou abraça a ditadura de César e o
consulado de Antônio, época em que ele não via uma posição honrosa para si nos assuntos públicos. Suas
obras sobre [1º] a República e suas leis pertencem ao primeiro período; [2º] o restante de seus escritos
filosóficos, que correspondem a uma idade mais madura, pertence ao segundo. Durante esses dois períodos,
nem a necessidade, nem a ambição, levavam Cícero a tomar parte ativa na política, pelo contrário, desde o
momento em que ele vislumbrou a possibilidade de exercitar novamente seu talento nos assuntos públicos,
e assim que Pompeu se colocou à frente dos grandes, durante a guerra civil e após a morte de César, ou
desde que ele já não temia muito por si mesmo e por sua família, ele parou de se ocupar com a Filosofia.
Portanto, ele a considerava como um
Morte do Latim Cristão refúgio nas agitações da vida, como
uma distração, como um meio de
O latim cristão foi-se constituindo não como uma corrupção do
latim clássico, uma cópia inferior deste, mas como expressão viva e
preencher seus vazios e intervalos.
dinâmica da fé e da cultura cristãs, num uso consciente e legítimo da Quando vê ou considera que o barco
língua com características únicas: “totalmente conscientes do fato de do Estado está em perigo, ele
estarem lidando com textos consagrados, onde cada palavra tinha seu comunica ao seu amigo Ático a
significado (…) [os cristãos] deliberadamente abandonaram o sistema resolução adotada de se dedicar de
de tradução livre, defendido por Cícero entre outros, e seguiram palavra maneira fundamental ao estudo da
por palavra, conservando assim o máximo possível as peculiaridades Filosofia em meio às vaidades deste
estilísticas e linguísticas dos textos originais. Para os latinos, isso mundo; mas ao mesmo tempo busca
significa uma reprodução tão fiel quanto possível, em latim
informações detalhadas sobre a
extremamente não tradicional, de textos gregos que já eram um tanto
situação dessas mesmas vaidades”.
exóticos. Esse respeito reverente ao texto impede o tradutor de correr
qualquer risco, de modo que, mesmo nos casos em que não pareça De fato, percebe-se que a
estritamente necessário, eles transcreviam diretamente a palavra grega. intensidade de seus interesses
Esse sistema de tradução continua uma antiga tradição dos [Setenta].” filosóficos e ocupações científicas
(Mohrmann, C. Liturgical Latin: Its Origins and Character). diminuem à medida que suas
A partir do Renascimento, contudo, o critério mudou e, mesmo no esperanças de voltar a participar do
culto divino, o que não fosse ciceroniano era considerado barbarismo: governo do Estado e dos assuntos
quando Urbano VIII, Papa Barberini, na década de 1630, reformou os públicos reaparecem. As alternativas,
hinos do Breviário, fê-lo segundo o novo critério. A partir de então, o
as hesitações e a situação expectante
processo se intensificou, culminando na reforma que Pio XII
e indecisa de sua mente e de sua vida
encomendou para o saltério: longe de respeitarem as antigas traduções
latinas – como fizera o próprio S. Jerônimo –, os especialistas no campo político geram em seu
produziram um saltério perfeitamente ciceroniano, “vestindo-o numa espírito uma situação análoga no
linguagem pré-cristã” (Ibidem). campo filosófico. Daí suas
O latim passou de uma língua viva para uma língua morta com o afirmações e idéias contraditórias
renascimento de Cícero, precisamente porque os humanistas do sobre a importância e a utilidade da
Renascimento insistiram que apenas a perfeição literária ciceroniana, Filosofia, já que às vezes proclama a
em oposição à chamada “barbárie” medieval-escolástica, seria completa ineficácia da Filosofia e de
aceitável. seus consolos nas desgraças da vida,
concedendo-lhe apenas uma eficácia
suficiente para produzir um pequeno esquecimento (exiguam doloris oblivionem) ou adormecimento da
dor, ao passo que outras vezes a considera como o verdadeiro bem e o maior da vida presente, chamando-
a também de mãe ou princípio de todos os bens representados pela palavra e pela obra do homem: Matrem
omnium bene factorum beneque dictorum.
A Filosofia de Cícero, considerada como um todo, é como o reflexo da situação vacilante, indecisa,
desigual de seu espírito e de sua vida, tanto na ordem política quanto na ordem científica, e também é o
reflexo de sua educação literária, que foi essencialmente eclética, como apontamos acima. Portanto, não é
estranho, mas bastante lógico, que o pensamento fundamental, a idéia matriz do orador romano no campo
filosófico, seu sistema geral como filósofo, ou talvez melhor, como escritor de Filosofia, esteja representado
182
pela Nova Academia combinada com o ecleticismo probabilista: o homem não pode conhecer a verdade
com certeza e evidência; ele tem que se contentar com juízos mais ou menos prováveis21, mais ou menos
verossímeis, e é a eles que o homem prudente deve se ater em tudo, mas especialmente nas coisas práticas
da vida. Isso explica a discordância e as contradições constantes que são observadas em seus escritos. Às
vezes, parece que ele abraça o dogmatismo teológico de Platão e a teoria ética de Aristóteles; escreve
passagens magníficas para demonstrar a existência de Deus; argumenta profundamente sobre sua natureza
e atributos; apresenta argumentos sólidos a favor da imortalidade da alma; mas na página seguinte ele
derruba toda essa estrutura dogmática, chamando às portas do ceticismo e afirmando a acatalepsia da
Academia Nova.
Ao lado da direção cética-acadêmica, prevalece em Cícero a direção eclética, dando preferência a
determinadas escolas em determinadas matérias e adotando a opinião deste ou daquele filósofo como mais
provável, dependendo do objeto em questão. A Nova Academia e o estoicismo servem-lhe como guia
geralmente nas questões dialéticas e físicas: na psicologia, ele mostra predileção pelas teorias de Platão;
Aristóteles e Zenão fornecem a maior parte de seus princípios morais, e em política ele pode ser considerado
discípulo do primeiro.
São, de certo, notáveis as demonstrações e provas apresentadas por Cícero a favor da espiritualidade e
da imortalidade da alma humana e a favor da existência de Deus22, demonstrações e provas que parecem
pertencer a um dogmático propriamente dito, em vez de um adepto da Academia Média. Com base nisso,
nos grandes e repetidos elogios que ele tributa a Platão, a quem chama e considera como uma espécie de
Deus dos filósofos – quasi quendam deum philosophorum –, e também na preferência que ele dá ao
discípulo de Sócrates em muitas questões, e principalmente em quase todas as que se referem à psicologia,
alguns suspeitaram que, na verdade, Cícero era um defensor da Filosofia de Platão, e que suas dúvidas ou
manifestações céticas têm mais de aparente do que de real. Até alguém poderia suspeitar que essas
manifestações céticas devem ser consideradas ardis literários, cujo objetivo é apenas ocultar sua convicção
pessoal para refutar e rebater com maior liberdade as opiniões dos outros.
A verdade é, no entanto, que tais suspeitas, apontadas por alguns historiadores, não parecem muito
fundamentadas, se considerarmos a insistência com que muitos lugares de sua obra afirmam e alertam que
a verdade está quase sempre misturada com o erro, e que é difícil distingui-los; que, embora admita muitas
coisas como prováveis, não se atreve a afirmá-las ou segui-las como absolutamente certas (nos probabilia
multa habemus, quae sequi facile, affirmare vix possumus), reivindicando ao mesmo tempo sua liberdade
e independência completa para seus julgamentos (liberiores et solutiores sumus), e sobre as opiniões e
doutrinas de todas as escolas. Em consonância com isso, Cícero reprova energicamente a conduta daqueles
que abraçam sistemas determinados sem ao menos poder julgar sua veracidade e daqueles que, orientados
pelo acaso e pelas circunstâncias, mais do que pelo estudo e julgamento das doutrinas, aderem fortemente

21
No livro segundo de seu tratado De officiis, expõe e resume seu pensamento cético-académico nos siguintes termos: “Non enim
sumus ii, quibus nihil veri esse videatur, sed hi, qui omnibus veris falsa quaedam adjuncta esse dicamus, tanta similitudine, ut in
iis nulla insit certa judicandi et assentiendi nota. Ex quo existit et illud, multa esse probabilia, quae quamquam non perciperentur,
tamen quia visum haberent quemdam insignem et illustrem, his sapientis vita regeretur.” Não há necessidade de acrescentar que
esta idéia se encontra a cada passo de suas obras: “Omnibus fere in rebus – escreve no livro primeiro De Natura Deorum – et
maxime in physicis, quid non sit, citius, quam quid sit, dixerim”.
22
Na impossibilidade de aduzir nem citar todas essas provas, dadas as condições deste livro, transcreveremos aqui por via de
amostra e de exemplo, uma das que se encontram nas Quaestiones Tusculanas, não porque seja a mais completa, mas porque abarca
ao mesmo tempo a espiritualidade e imortalidade da alma e a existência de Deus: “Animorum nulla in terris origo inveniri potest.
Nihil enim est in animis mixtum atque concretum, aut quod ex terra natum atque fictum esse videatur: nihil ne aut humidum quidem,
aut flabile aut igneum. His enim in naturis nihil inest quod vim memoriae, mentis, cogitationis habeat, quod et praeterita teneat,
et futura provideat, et complecti possit praesentia; quae sola divina sunt. Nec invenietur unquam, unde ad hominem venire possint,
nisi a Deo. Ita quidquid est illud quod sentit, quod sapit, quod vult, quod viget, coeleste et divinum est, ob eamque rem aeternum
sit necesse est. Nec vero Deus ipse, qui intelligitur a nobis, alio modo intelligi potest, nisi mens soluta quaedam et libera segregata
ab omni concretione mortali, omnia sentiens et movens, ipsaque praedita motu sempiterno...
“Haec igitur et alia innumerabilia cum cernimus, possumus ne dubitare, quia his praesit aliquis vel effector, si haec nata sunt, ut
Platoni videtur; vel, si semper fuerint, ut Aristoteli placet, moderator tanti operis et muneris? Sic mentem hominis, quamvis eam
non videas, ut Deum non vides, tamen ut Deum agnoscis ex operibus ejus, sic ex memoria rerum, et inventione, et celeritate motus,
omnisque pulchritudine virtutis, vim divinam mentis agnoscit. Nihil sit animus admixtum, nihil concretum, nihil copulatum, nihil
coagmentatum, nihil duplex. Quod cum ita sit, certe nec secerni, nec dividi, nec discerpi, nec distrahi potest: nec interire
igitur.” Tusculan., lib. I, cap. XXVII, XXVIII, XXIX.
183
a alguma delas como a uma rocha: Ante tenetur adstricti, quam quid esset optimum, judicare potuerunt...
Ad quamcumque sunt disciplinam quasi tempestate delati, ad eam, tanquam ad saxum adhaerescunt.
É justo observar aqui que essa tendência ou direção cética é acentuada principalmente nas questões de
cosmologia e física, o que não o impede, no entanto, de rejeitar energicamente as teorias físico-
cosmológicas e psicológicas de Epicuro e seus discípulos. Assim, depois de mencionar algumas dessas
teorias, ele diz com certo desprezo: Puderet me dicere non intelligere, si vos ipsi intelligeretis, quia ista
dicitis (Poder-se-ia dizer que eu não entendo, se vós mesmos entendêsseis, porque dizeis tais coisas).
Cícero, que contribuiu efetivamente para o movimento filosófico entre os romanos com seus numerosos
escritos, tem também o mérito de ter popularizado entre eles a História da Filosofia, expondo com maior
ou menor precisão as diferentes teorias das escolas filosóficas, e indicando ao mesmo tempo os primeiros
passos e a origem da Filosofia entre os romanos, sendo importante observar que ele parece atribuir essa
honra a Pitágoras23 e sua escola.
Resumindo: a direção geral de Cícero na Filosofia coincide com a Academia Nova, mas modificando e
atenuando o ceticismo rígido desta, ou seja, moderando seus princípios, embora sem rejeitá-los (quam
[academiam] quidem ego placare cupio, submovere non audeo), segundo ele nos diz.
Nas questões cosmológicas e físicas, ele é mais acadêmico, ou, se preferir, mais cético do que nas outras;
mesmo assim, ele não perdoa a teoria atomista de Epicuro24, à qual declara guerra sem trégua.
Em matéria de metafísica, política e moral, inspira-se alternativa e parcialmente em Platão, Aristóteles
e na escola estóica, dando preferência à moral e à prática dos deveres sociais sobre a ciência (agere
considerate, pluris est quam cogitare prudenter) e a especulação25.

§ 99. O estoicismo entre os romanos. Sêneca

Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio, embora não sejam os únicos26, foram os principais
representantes do estoicismo greco-romano.
Sêneca (Lucius Annaeus Seneca), que floresceu no primeiro século do
Cristianismo, era natural de Córdoba. Seus pais foram Marco Aneu Sêneca, que
ensinou retórica em Roma durante o tempo de Augusto, e Hélvia, que contava
entre seus antepassados a mãe de Cícero. Levado a Roma por seu pai, Sêneca
dedicou sua juventude à eloquência, na qual se destacou. Porém, ao saber que seus
discursos despertavam ciúme e suspeitas em Calígula, abandonou o fórum para se
dedicar ao estudo da Filosofia, na qual teve progressos rápidos. Mais tarde,
participou da vida pública e foi nomeado questor, mas acabou sendo desterrado para
a Córsega, onde permaneceu por sete anos, acusado, com ou sem razão, por
Messalina, de ter tido relações ilícitas com Júlia, filha de Germânico. Agripina o
chamou de volta para Roma para encarregar-se da educação de seu filho Nero, cujos
instintos sanguinários ele logo conheceu, mas não soube ou não conseguiu corrigir.

23
Assim se depreende de várias passagens de suas obras, e entre outras, do seguinte: “Pythagorae autem doctrina cum longe lateque
flueret, permanavisse mihi videtur in hanc civitatem; idque cum conjectura probabile est, tum quibusdam etiam vestigiis indicatur.
Quis est enim, qui putet, cum floreret in Italia Grecia potentissimis et maximis urbibus in ea quae Magna dicta est, in hisque
primum ipsius Pythagorae, deinde postea pythagoreorum tantum nomen esset, nostrorum hominum ad eorum doctissimas voces
aures clausas fuisse?” Tuscul. QQ., lib. IV.
24
Falando em tom de burla, e com o objetivo de por destaque o absurdo de semelhante teoria para explicar a origem e formação do
mundo por meio do encontro fortuito dos átomos, diz, entre outras cosas: “Hoc qui existimat fueri potuisse, non intelligo, cur non
idem putet, si innumerabiles unius et viginti formae litterarum, vel aureae, vel quales libet aliquo conjiciantur, posse, ex his in
terram excussis, anuales Ennii, ut deinceps legi possint, effici.” De Natur. Deor., lib. II, cap. XXXVII.
25
“Omne officium, quod ad conjunctionem hominum et ad societatem tuendam valet, anteponendum est illi officio, quod cognitione
et scientia continetur.” De offic., lib. I, cap. XLIV.
26
Pertenceram a esta escola Musônio Rufo (Caius Musonius Rufus) de Volsínios; Aneu Cornuto (Lucius Annaeus Cornutus) de
Leptis, na África; Eufrates (Euphrates) de Alexandria; Arriano ou Flávio Arriano (Lucius Flavius Arrianus Xenophon) de Niceia,
e alguns outros.
184
Apesar de professae o estoicismo, o comportamento do filósofo cordobês enquanto esteve ao lado de Nero
era mais próprio de um discípulo de Epicuro do que de um estóico. No entanto, nem suas lisonjas e
subserviência, nem suas grandes riquezas, nem os milhares de escravos que possuía, puderam protegê-lo
dos caprichos sangüinários de seu discípulo. Acusado, com ou sem razão, de envolvimento na conspiração
de Pisão, recebeu a ordem de abrir as veias, nem mesmo lhe sendo permitido fazer testamento, e morreu
aos sessenta e cinco anos de idade com estóica ou dramática impassibilidade, ditando um discurso repleto
de máximas morais sublimes e certa magnanimidade própria do orgulho estóico.
O cerne da Filosofia de Sêneca é o estoicismo, especialmente sob o ponto de vista moral. Como os
estóicos, ele divide a Filosofia em (1) Lógica ou Filosofia Racional, (2) Física e (3) Moral. A (1) primeira,
mais do que lógica, é uma simples dialética conforme ele a concebe e expõe, e no que diz respeito à (2)
física, incluindo cosmologia e teodicéia, pode-se dizer que a concepção de Sêneca é uma concepção cética-
acadêmica, semelhante à de Cícero. Para o filósofo cordobês, assim como para o orador romano, a certeza
e a evidência estão além do alcance da razão humana nas coisas físicas e nas ciências especulativas, devendo
nos limitar a consentir no provável e no verossímil.
Isto inobstante, e faltando em certo modo à sua marca, Sêneca investiga, discute e resolve vários
problemas pertencentes à Física em seus escritos, especialmente nos sete livros das suas Questões Naturais,
nos quais ele trata do céu, da terra, dos elementos, dos terremotos, dos fenômenos meteorológicos, dos
cometas etc. Além disso, o filósofo cordobês também aborda, embora nem sempre discuta e resolva, os
principais problemas relacionados à teodicéia e à cosmologia, e, ao fazê-lo, não apenas exalta a nobreza e
importância das ciências especulativas, principalmente aquelas cujo objeto é Deus, mas também parece
dar-lhes preferência sobre a ciência moral, que se refere ao homem, insinuando que a superioridade da
primeira está relacionada à superioridade e distância do homem em relação a Deus (tantum inter duas
interest, quantum inter Deum et hominem), e conclui afirmando que mal vale a pena nascer, se o homem
não puder elevar-se ao conhecimento de Deus e das coisas divinas27, ou superiores, ao conhecimento das
causas e razões primeiras das coisas.
Além disso, as idéias e opiniões de Sêneca em relação a esses problemas, e especialmente em relação à
divindade, geralmente coincidem com as da escola estóica. Para o mestre de Nero, assim como para o
estoicismo, Deus é a mente ou razão do universo, e é ao mesmo tempo todo o universo, considerado em
todas as suas partes, superiores ou inferiores, visíveis ou invisíveis: Quid est Deus? Mens Universi. Quid
est Deus? Quod vides totum, et quod non vides totum.
A virtude é o único e supremo bem ao qual o sábio deve aspirar. Esta consiste em viver de acordo com
a natureza humana (secundum naturam suma vivere), e isso é algo muito fácil por si só, por mais que as
preocupações e a loucura geral dos homens tornem isso difícil: difficilem facit communis insania.
Essa virtude, que torna o homem verdadeiramente sábio, a virtude que resume e representa todas as
virtudes e que traz consigo o bem supremo e a felicidade do homem, é a prudência; pois com ela vêm
necessariamente a temperança, a coragem ou constância, a imperturbabilidade, a libertação da tristeza e,
consequentemente, a felicidade28, tornando todas as outras coisas indiferentes para ele. Portanto, o sábio, o
homem da virtude estoica, “não temerá a morte, nem as correntes, nem o fogo, nem os golpes do destino;
pois ele sabe que essas coisas, embora pareçam males, não o são na realidade”.
O homem da virtude não apenas se assemelha a Deus, mas é superior [!] a Ele de certa maneira, pois
realiza por seus próprios esforços e por escolha o que Deus realiza naturalmente. Est aliquid quo sapiens
antecedat Deum: ille naturae beneficio, suo saspiens est.
Aqui, já surge o orgulho refinado e egoísta do estóico, assim como sua estúpida impassibilidade e suas
aberrações morais, quando afirma que a alma do homem permanece impassível e intrépida, enquanto o
corpo mordetur, uritur, dolet, e, sobretudo, quando ensina que o suicídio não apenas é lícito, mas uma ação

27
“Equidem, tunc naturae rerum gratias ago, cum illam non ab hac parte video quae publica est, sed cum secretiora ejus intravi;
cum disco quae universi materia sit, quis auctor, aut custos, quid sit Deus, totus in se intendat, an ad nos aliquando respiciat; faciat
quotidie aliquid, an semel fecerit; pars mundi sit, an mundus... Nisi ad haec admitterer, non fuerat opere praetium nasci... Detrahe
hoc inaestimabile bonum, non est vita tanti ut sudem, ut aestrum.” Natural. Quaest., lib. I.
28
“Qui prudens est, et temperans est; qui temperans est, et constans; qui constans est, et imperturbatus est; qui imperturbatus est,
et sine tristitia est; qui sine tristitia est, beatus est: ergo prudens beatus est, et prudentia ad beatam vitam satis est.” Epist. 85.
185
conforme à lei interna (nihil melius aeterna lex fecit, quam quod unum introitum nobis ad vitam dedit, exitus
multos), deixando ao arbítrio ou capricho do homem a vida e a morte: Placet? vive: non placet? licet eo
reverti unde venisti.
Esta é uma máxima muito própria de um estóico orgulhoso e também de um filósofo que ensina que o
virtuoso, o sábio estóico, se tem pouco a temer dos homens, nada tem a temer de Deus: scit non multum
esse ab homine timendum, a Deo nihil.
No âmbito especulativo, Sêneca professa certas opiniões que se aproximam muito do materialismo,
embora outras vezes pareça inclinar-se para a opinião contrária. Quod fit, et quod facit, corpus est, escreve
ele, e em outros trechos considera as paixões e os vícios29 e até mesmo a alma como corpos: corpora ergo
sunt, et quae animi sunt; nam et hic corpus est.
Ao lado dessa doutrina tão desanimadora e pouco conforme com a verdadeira moral, Sêneca ensina e
enaltece o culto a Deus e Sua providência paternal para com os homens, e recomenda Sua imitação como
meio eficaz de aperfeiçoamento moral. É justo acrescentar aqui que o verdadeiro mérito de Sêneca como
filósofo moralista reside no que poderíamos chamar de seu princípio humanitário. O filósofo de Córdoba,
sem rejeitar nem condenar absolutamente a escravidão, dirige aos escravos palavras de benevolência e
máximas de doçura e dignidade que não são encontradas nos filósofos anteriores. Sêneca ensina – e ensina
com insistência – a fraternidade ou parentesco universal que une todos os homens entre si – natura nos
cognatos edidit –, e que está enraizada na própria natureza. A partir desse princípio, relativamente novo e
estranho à Filosofia pagã, ele deduz aplicações e máximas que não poderiam ser menos novas e estranhas
para essa Filosofia. Na antiga política, na antiga Filosofia, nos antigos costumes e nas antigas instituições
sociais, era uma doutrina comum e uma prática autorizada considerar-se isento e livre de todo dever de
humanidade e benevolência, não apenas em relação aos escravos, mas também em relação aos estrangeiros,
que, por serem estrangeiros, eram considerados e tratados como inimigos. O filósofo de Córdoba abandona
essas máximas tradicionais e arraigadas para pregar o amor mútuo – haec nobis amorem indidit mutuum –
, que a própria natureza inspira e prescreve a todos os homens, e, além disso, a obrigação ou preceito de
tornar efetivo e prático esse amor por nossos semelhantes, sem distinção de classes ou condições, prestando-
lhes auxílio e ajuda em suas necessidades: Praecipiemus – diz – ut naufrago manum porrigat, erranti viam
monstret, cum esuriente panem suum dividat.
E abordando a questão da escravidão e dos escravos, Sêneca não apenas reconhece que a escravidão não
exclui a humanidade, ou, melhor dizendo, a igualdade de natureza (servi sunt? imo homines), a amizade e
o companheirismo (servi sunt? imo humiles amici; servi sunt? imo conservi), mas também recomenda que
os escravos sejam tratados com clemência e cortesia, admitidos ao convívio familiar e até mesmo como
conselheiros (in sermonem admitte et in consilium) e sentados à mesa, assim como os homens livres30,
sempre que forem dignos em razão de seus modos, pois é com base nestes, e não em seus papéis, que
depende sua dignidade: non ministeriis illos aestimabo, sed moribus.
Em vista de tudo isso, é natural perguntar: de onde vem o fato de Sêneca, não sendo um filósofo de
primeira categoria, não podendo ser comparado a Pitágoras e Sócrates, a Platão e Aristóteles, ensinar, no
entanto, e professar máximas tão superiores às desses grandes filósofos e tão desconhecidas e estranhas em
épocas anteriores? A resposta não é difícil, se levarmos em conta que o filósofo cordobês foi mestre e vítima
do grande perseguidor dos cristãos, aquele que matou São Pedro e São Paulo. Rejeitando como apócrifa a
correspondência epistolar entre o filósofo de Córdoba e o Apóstolo das nações, é preciso reconhecer de
qualquer forma que quando o primeiro desceu ao túmulo, o segundo já havia percorrido ou estava
percorrendo as províncias do Oriente e do Ocidente, anunciando por todas elas e na própria Roma a Boa
Nova, a grande revelação do Verbo de Deus na terra, o Cristianismo, cuja doutrina religiosa, cujas máximas

29
“Non puto te dubitaturum an affectus corpora sint, tamquam ira, amor, tristitia. Si dubitas, vide an vultum nobis immutent. Quid
ergo? tam manifestas corporis notas credis imprimi, nisi a corpore? Si affectus corpora sunt, et morbi animorum... ergo et malitia
et species ejus omnes, malignitas, invidia, superbia... Tangere enim et tangi, nisi corpus, nulla res potest, ut ait Lucretius. Omnia
autem ista, quae dixi, non mutarent corpus, nisi angerent: ergo corpora sunt.” Opera, epist. 106.
30
“Vive cum servo clementer, comiter quoque, et in sermonem admitte, et in consilium, et in convictum... Quid ergo? omnes servos
admovebo mensae meae? non magis quam omnes liberos. Erras, si existimas me quosdam quasi sordidioris operae rejecturum, ut
puta illum mulionem, et illum bubulcum, non ministeriis illos aestimabo, sed moribus... Quidam caenent tecum quia digni sunt;
quidam, ut sint.” Op., epist. 47.
186
e exemplos e cujo espírito de caridade haviam penetrado gradualmente em todas as camadas sociais e
estavam se infiltrando insensivelmente no mundo da ciência, subjugando com a força de sua verdade e
beleza divinas os mesmos espíritos que se rebelavam contra elas e lhes faziam guerra implacável. Somente
dessa maneira é possível conceber e explicar os vislumbres e como que fulgores de moral cristã que,
confundidos e amalgamados com as frias e orgulhosas máximas do estoicismo, aparecem freqüentemente
nas obras de Sêneca. As últimas palavras citadas acima podem ser consideradas como um eco distante e
uma repercussão inconsciente das bem-aventuranças pregadas pelo Homem-Deus no Sermão da Montanha.
Além disso, os acontecimentos históricos devem ter colocado Sêneca em contato imediato ou mediato com
São Paulo. Durante sua estadia na Acáia, o Apóstolo foi chamado e compareceu perante o tribunal de
Galião31, que era irmão de Sêneca. Mais tarde, ele compareceu em Roma perante o prefeito do pretório,
Burro 32 , amigo de nosso filósofo, sem contar que graves autores afirmam que São Paulo também
compareceu duas vezes perante o próprio Nero. Esses fatos demonstram que o filósofo cordobês deve ter
tido, senão uma comunicação direta e pessoal com o Apóstolo das Nações, pelo menos um conhecimento
mais ou menos exato de sua pregação e doutrina.
A elevação que distingue e caracteriza a moral de Sêneca, como resultado e indicativo da influência
latente do Cristianismo, parece observar-se também em alguns outros pontos de sua doutrina, entre os quais
suas idéias sobre o futuro progresso da humanidade merecem uma atenção especial. Sêneca é talvez o único
filósofo da antiguidade que enxergou com certa clareza relativa a existência da lei do progresso humano no
terreno social, no político e, sobretudo, no das ciências e artes. A verdade, diz ele, está patente à
investigação de todos; porém, ninguém a possui completamente, pelo contrário, ainda há muito a descobrir
dela pelos vindouros (patet omnibus veritas, nondum est occupata, multum ex illa etiam futuris relictum
est). Porque chegará o tempo, acrescenta ele, em que, graças a repetidas e diligentes observações, certas
verdades que hoje desconhecemos ficarão evidentes: uma única época não é suficiente para descobrir todas
as verdades: Veniet tempus, quo ista, quae nunc latent, in lucem dies extrahat, et longioris aevi diligentia:
ad inquisitionem tantorum una aetas non sufficit.
Em obséquio à justiça e à imparcialidade, é justo lembrar que o filósofo non semper sibi constat, sendo
muito difícil conciliar entre si algumas de suas ideias, e não sendo raro tropeçar em seus escritos com
afirmações contraditórias. Vários historiadores e críticos, inclusive alguns compatriotas de Sêneca33, se
ocuparam deste ponto, chamando a atenção para a falta de fixidez de idéias que se manifesta no mestre de
Nero.

31
Lúcio Júnio Gálio Aniano ou Galião (Lucius Junius Gallio Annaeanus) foi cônsul sufecto no ano de 56 d.C. e faleceu cerca de
65 d.C. Filho do retórico Sêneca, o Velho e irmão do famoso Sêneca, entrou verdadeiramente para a História por ter participado do
julgamento de São Paulo em Corinto, rejeitando as acusações que os judeus lhe apresentavam contra o Apóstolo. Este episódio de
sua vida é narrado no capítulo 18º dos Atos dos Apóstolos. [N.T.]
32
Sexto Afrânio Burro (Sextus Afranius Burrus) foi, junto com Sêneca, preceptor de Nero. Tornando-se prefeito da guarda
pretoriana, teve papel decisivo na aclamação de Nero como imperador. Nesta mesma função, julgou o Apóstolo das Gentes. Morreu
após uma enfermidade na garganta, que ele mesmo atribuía a um envenenamento a mando do próprio Nero, de quem já havia
perdido as graças. [N.T.]
33
Merece ser citado, entre os últimos, Alonso Núñez de Castro, o qual, em meados do século XVII, pôs em destaque as contradições
de nosso filósofo em um livro publicado ad hoc sob o título de Sêneca impugnado por Sêneca em questões políticas e morais
187
§ 100. Epiteto e Marco Aurélio

Mal Sêneca baixara ao sepulcro, quando começa a chamar atenção Epiteto (Επίκτητος): nascido em
Hierápolis, cidade da Cária ou Frígia, foi levado à escravidão por circunstâncias desconhecidas de guerra
ou de família. Sua paciência e serenidade de espírito eram verdadeiramente estóicas, conforme
testemunham as anedotas sobre este filósofo34 que foi escravo de um liberto de Nero.
A Filosofia de Epiteto é a Filosofia do Pórtico, levada ao último grau de rigor na sua parte ética. Nela
se nota, assim como em Sêneca, a influência vivificante da idéia cristã,
especialmente em suas máximas referentes à benevolência universal, à
obediência e ao culto a Deus, e à conformidade com a vontade divina
diante das adversidades e males da vida presente. Nota-se também esta
influência cristã nos conselhos sobre o controle das paixões e apetites da
carne, e até mesmo no desapego dos pais, parentes e pátria, embora
distorça, ou melhor dizendo, desconheça o sentido cristão nesse último
aspecto, pois Epiteto subordina esse desapego à tranquilidade da mente
e o recomenda apenas na medida em que traz consigo a paz e a
despreocupação, portanto, com um fim essencialmente terreno e egoísta,
coisas que estão muito longe dos fins superiores e das condições próprias
do desapego cristão.
Pascal observa, com razão, que Epiteto é um dos filósofos pagãos que
melhor compreenderam os deveres do homem, mas que, ao mesmo
tempo, desconhecia a fragilidade da natureza humana, o que o levou a
cometer graves erros de consideração.
Além de alguns outros erros gerais ou comuns do estoicismo, Epiteto considera a alma humana como
parte da substância divina; afirma que a dor e a morte não são males e permite ao homem ser o dono e
árbitro de sua própria vida, acrescentando máximas que deixam de ser morais devido às exagerações do
orgulho estóico35, que corrompem e destroem a natureza humana sob o pretexto de segui-la. Distorcer a
ordem moral e negar a natureza humana é aconselhar que, diante da morte de um filho ou cônjuge, o homem
permaneça em completa insensibilidade, como quando se quebra uma jarra: Si ollam diligis, te ollam
diligere (memento considerare); nam ea confracta, non perturbaberis. Si filiolum aut uxorem, hominem a
te diligi; nam eo mortuo, non perturbaberis.
No meio dessas e de outras máximas análogas, mais ou menos inexatas, mas
muito próprias do orgulho estoico, como quando afirma que o homem pode
adquirir por si mesmo todo o mal e todo o bem sem esperar nada de ninguém,
Epiteto apresenta máximas e idéias que parecem mais próprias de um filósofo
cristão do que de um filósofo gentio, como é fácil observar naquelas que se
referem à existência de Deus, sua providência, culto e obediência 36 ,
conforme foi mencionado acima.
A doutrina contida nas Meditações de Marco Aurélio (Marcus Aurelius
Antoninus) coincide com a que acabamos de ver no Manual ou Enchiridion
do estóico de Hierápolis. O que chama a atenção em Marco Aurélio é a
fidelidade, rigor e constância com que praticou as máximas mais rígidas da moral

34
Numa determinada ocasião, quando seu senhor o agredia com muita violência, Epiteto advertiu-o que se continuasse a dar-lhe
golpes tão fortes, acabaria por quebrar-lhe algum membro. O senhor continuou a golpeá-lo com a mesma fúria, resultando nos
golpes a fratura de uma perna do escravo-filósofo, o qual se contentou em dizer ao seu senhor com calma: “Eu já havia dito que se
continuasse assim, iria quebrá-la.”
35
Algumas das máximas e ideias de Epicteto não apenas ultrapassam os limites da verdadeira moralidade, mas também se tornam
ou degeneram em indecentes e ridículas, como quando escreve: “Hebetis ingenii signum est, in rebus corporis immorari, velut
exerceri diu, edere diu, potare diu, cacare diu... nam haec quidem facienda sunt obiter.” Enchiridion,cap. LXIII.
36
“Religionis erga Deos immortales praecipuum illud esse scito, rectas de eis habere opiniones; ut sentias, et esse eos, et bene
justeque administrare universa, parendum esse eis, et omnibus iis, quae fiant, acquiescendum, et sequenda ultro, ut quae a Mente
praestantissima regantur.” Enchir., cap. XXXVIII.
188
estóica em meio à corrupção que o cercava, tendo diante de si os exemplos daqueles imperadores romanos,
monstros de maldade e todo tipo de vícios, cercados por desordens, guerras e conspirações. Este grande
estóico nasceu no ano 121 da era cristã: foi adotado por Antonino, a quem sucedeu no governo do Império,
destacando-se por sua prudência, coragem e firmeza, e morreu em Sirmio, no ano 180 d.C. Pode-se dizer
que com Marco Aurélio a escola estóica baixou ao túmulo, que não demorou a desaparecer assim como as
outras escolas filosóficas, envoltas nas ruínas que as tribos e nações lançaram sobre elas, enviadas pela
Providência para punir os crimes do povo rei e para abrir os alicerces e desimpedir o terreno sobre o qual,
no decorrer do tempo, dever-se-ia erguer o grande edifício da Civilização Cristã.

§ 101. Movimento de transição

Enquanto as antigas escolas filosóficas se chocavam entre si, e se espalhavam pelo Império Romano;
enquanto prolongavam-se suas seculares lutas e se esvaneciam os rudes ataques do ceticismo contra as
escolas dogmáticas; enquanto os germes do ecletismo teosófico entravam em fermentação, brotando com
força e começando a se desenvolver na cidade de Alexandria, apareceram em diferentes tempos e lugares
certos filósofos, ou, melhor dizendo, escritores eruditos e mais ou menos filosóficos, que, sem pertencer
terminantemente a nenhuma escola, seguiam diversas direções e amalgamavam várias tendências. Alguns
seguiam uma direção positivista; dominava em outros uma espécie de ceticismo satírico; alguns se
orgulhavam de despreocupação religiosa, e nos escritos de outros se descobria um fundo diversificado de
doutrinas e tendências, sem lógica alguma de conexão. São aqueles que poderíamos chamar os eruditos e
livres-pensadores da época. Entre eles, podem-se citar como exemplares:

a) O médico Galeno (Claudius Galenus), natural de Pérgamo, e que floresceu em Roma sob o império
de Marco Aurélio. Seu método é a experiência, e sua direção o empirismo com tendência ao materialismo.
Depois de analisar anatomicamente os órgãos do homem e de compreender sua estrutura e finalidade – no
que se distingue do materialismo e eleva-se acima dos positivistas modernos –, acaba por negar a
espiritualidade e a subsistência da alma humana, que, para o médico de Pérgamo, não passa de matéria
refinada e uma substância perecível, ligada às vicissitudes e destino final do corpo. Em relação a outros
pontos e a certas questões de física, psicologia e, principalmente, lógica, Galeno muitas vezes segue as
ideias e soluções de Aristóteles, como mencionado acima.

b) Por volta da metade do século primeiro da nossa era, surgiu, em Queroneia da Beócia, Plutarco
(Πλούταρχος). Ensinou publicamente em Roma sob o império de Trajano e se retirou para Queroneia, sua
terra natal, nos últimos anos de sua vida. Sua obra Vidas Paralelas dos grandes
homens da Grécia e da Itália tornou seu nome popular entre os estudiosos; mas
para conhecer suas idéias filosóficas é preciso recorrer aos pequenos tratados
que ele escreveu, mais ou menos relacionados à Filosofia. Plutarco se
mostra inimigo das superstições populares: quer depurar o politeísmo das
ficções poéticas, refundindo-as e amalgamando-as no que há de essencial.
Em termos morais, ele é em parte epicurista, em parte estoico, em parte
platônico e em parte aristotélico, mesclando todas essas idéias morais
com especulações demonológicas, crença em oráculos e interpretações de
sonhos e presságios, caindo por um caminho nas mesmas superstições que
ele havia combatido por outro. Em suma: Plutarco, mais do que um filósofo,
é um estudioso, um amante de estudos históricos, um escritor com
inclinações crítico-teosóficas.

189
A Morte de Peregrino c) Pouco depois do escritor de Queroneia, entrou em
(Luciano de Samosata) cena Luciano de Samosata (Λουκιανὸς ό
“Foi então que [Peregrino] aprendeu a Σαμοσατεύς), que se encarregou de generalizar e
maravilhosa doutrina dos cristãos, ao se associar fortalecer os ataques parciais que Plutarco havia
com seus sacerdotes e escribas na Palestina. E (...) dirigido contra algumas manifestações do politeísmo.
eles o veneravam como um deus, tomavam-no por O autor dos Diálogos dos mortos e da Assembleia dos
legislador e o consideravam como protetor, logo deuses persegue com seus sarcasmos todos os cultos,
após Aquele outro, obviamente, a Quem ainda esforçando-se para estender sobre todas as religiões o
adoram, o Homem que foi crucificado na Palestina sopro dessecante de seu sorriso irônico. Luciano é o
por introduzir este novo culto no mundo. (...)
Voltaire do politeísmo greco-romano37.
“Bem, quando ele foi preso, os cristãos,
Parece desnecessário dizer que o escritor de
considerando o incidente como uma calamidade,
não pouparam esforços para o resgatar. Mas, como Samosata confunde o Cristianismo com as demais
isso era impossível, manifestaram-lhe toda forma religiões; porque seu espírito, tão frívolo quanto
de atenção, não ocasionalmente, mas com corrompido, não estava em condições de reconhecer e
assiduidade, e, desde o romper do dia, viam-se apreciar a sublime grandeza e as características
viúvas idosas e crianças órfãs esperando perto da extraordinárias e divinas da Nova Religião. A distinção
prisão, enquanto seus líderes chegavam mesmo a entre a verdade e o erro, entre o bem e o mal, são
dormir lá dentro com ele, após subornar os guardas. palavras sem sentido para Luciano, cuja crítica ligeira
Então, refeições elaboradas eram-lhe trazidas e e mordaz, cuja sátira amarga e por vezes cínica, tendem
liam-lhe em voz alta os livros que lhes são sagrados,
a aniquilar toda moral e toda religião.
e ao excelente Peregrino – pois ainda se apresentava
por esse nome – chamavam ‘novo Sócrates’.
“De fato, vinham pessoas até mesmo de cidades d) Contemporâneo de Luciano, e não muito
da Ásia, enviadas pelos cristãos às custas comuns, diferente em termos de doutrinas e tendências
para socorrer, defender e encorajar o herói. Eles filosóficas, foi o famoso Apuleio (Lucius Apuleius),
mostravam uma velocidade incrível sempre que natural de Madaura, na África. Frequentou escolas em
alguma ação pública desse tipo era tomada; em Cartago, Roma e Atenas, e depois de percorrer vários
pouco tempo, eles gastavam tudo o que tinham. países, retornou à sua terra natal, onde abriu uma escola
Assim foi então no caso de Peregrino: muito pública. A parte filosófica de sua doutrina é uma
dinheiro chegava até ele por causa de sua prisão, e
mistura informe de certas teorias de Platão e
ele conseguia uma boa receita com isso. Os pobres
Aristóteles. Além disso, o que caracteriza sua doutrina
coitados se convenceram, antes do mais, que sejam
imortais e viverão por toda eternidade, em
é a predileção que ele manifesta pela demonologia,
consequência do que desprezam a morte e até uma predileção que o leva a negar a providência divina,
mesmo se entregam voluntariamente à prisão, em confiando o governo do mundo em geral e dos homens
sua maioria. Além disso, o seu primeiro Legislador em particular aos demônios ou gênios que habitam a
persuadiu-os de que todos são irmãos uns dos região média da atmosfera. O autor do Asno de Ouro
outros, desde que, uma vez por todas, reneguem os (ou Metamorfoses), que também escreveu um tratado
deuses gregos, adorem Àquele Sofista Crucificado especial para discutir a origem e a natureza do gênio ou
e vivam sob as Suas leis. Portanto, eles desprezam deus (δαίμων) de Sócrates (De Deo Socratis),
todas as coisas indiscriminadamente e consideram-
aconselha e recomenda prestar culto e honra ao gênio
nas propriedade comum, recebendo essas doutrinas
ou demônio responsável por nossa pessoa, nossa vida e
tradicionalmente, sem nenhuma evidência
definitiva. Então, se algum charlatão e impostor,
nossas ações. Fazendo isso, cada pessoa pode
capaz de se aproveitar das ocasiões, se mistura entre conseguir que seu demônio ou gênio familiar lhe
eles, rapidamente adquire riqueza repentina ao prepare benefícios e evite infortúnios que possam
enganar essa gente simples” (A morte de Peregino, ocorrer, por meio de sonhos, sinais e até mesmo
11-13). aparições visíveis, caso necessário. É bem possível que

37
Não sem razão, o entusiasmo por seu tom satírico e suas críticas ácidas encontrou eco na mentalidade e nas obras de diversos
autores, desde sua redescoberta na Renascença (período em que havia tantas traduções latinas de seu texto quanto de Platão e
Plutarco), influenciando fortemente a obra do humanista Erasmo de Roterdan, do livre-pensador Rabelais (o qual pretendia libertar
as pessoas da superstição medieval, do espírito de cavalaria e da escolástica), do novelista Miguel de Cervantes (autor do famoso
Dom Quixote, em que satiriza a cavalaria), do satirista Jonathan Swift (autor do panfleto satírico Argumento contra a Abolição do
Cristianismo, em que advogava pela manutenção da Igreja Anglicana – o “cristianismo” – como salvaguarda para os ingleses não
190
na teoria demonológica de Apuleio tenham influenciado ideias e reminiscências cristãs mais ou menos
confusas e distorcidas, adquiridas durante suas viagens pela Grécia e Ásia, sem contar sua relação com os
cristãos africanos. A força poderosa e incontestável da palavra divina que carregava em seu seio o
Cristianismo se fazia sentir em todos os sistemas e escritos da época, mesmo contra a vontade de seus
próprios autores.
Nas questões propriamente filosóficas, Apuleio geralmente segue Platão e Aristóteles, como foi
mencionado. Em seu tratado Sobre a disposição das doutrinas e o nascimento de Platão (De Platone et
dogmate eius), dedica um livro a expor os dogmas ou doutrina de Platão: usa outro livro para expor a lógica
e a teoria do silogismo de Aristóteles, cujo tratado De Mundo ele também traduziu do grego para o latim.

§ 102. Os neo-pitagóricos

Para este movimento de transição que se verificou por este tempo no seio da Filosofia – e principalmente
para o movimento sincretista e teosófico que caracteriza as escolas alexandrinas e o neoplatonismo
(expressão mais elevada da Filosofia Grega em seu terceiro período) –, também contribuíram os neo-
pitagóricos que floresceram em Roma e em outras regiões do Império nesse período. A combinação ou
fusão de certas ideias teóricas e práticas dos antigos pitagóricos com algumas doutrinas e princípios de
outras escolas filosóficas é o que constitui o neo-pitagorismo, cujos representantes mais notáveis – fora
Moderato de Cádiz38, contemporâneo de Sêneca, e Nicômaco de Gerasa39, que parece ter vivido na época
dos Antoninos – são:

a) Sextio (Quinti Sextii Patris), que floresceu sob Júlio César e Augusto, e cuja escola parece ter sido
muito frequentada, de acordo com as indicações de Sêneca, que também revelam que na doutrina e ensino
de Sextio, ao lado do elemento pitagórico [razão pela qual S. Jerônimo o chama Xystus Pythagoricus
philosophus], predominava o elemento estóico;

b) Sótio (Sotio Alexandrinus), natural de Alexandria, e um dos preceptores de Sêneca (Sotio philosophus
alexandrinus, praeceptor Senecae), de acordo com o testemunho de Eusébio de Cesareia, ensinou e
defendeu mais amplamente do que Sextio a doutrina e as práticas pitagóricas, incluindo a transmigração
das almas (animas in alia corpora atque alia describi, et migrationem esse, quam dicimus esse mortem), e
a abstinência de carne, se devemos acreditar no testemunho explícito de seu discípulo Sêneca;

c) Apolônio de Tiana (Απολλώνιος ο Τυανέας), famoso pseudo-taumaturgo que, durante o séc. I d.C.,
fez muito barulho no Império Romano com seus truques e falsos milagres, historiados pela primeira vez,

caírem na prostituição, na bebedeira ou no catolicismo), de Fénelon (o “Cisne de Cambrai”), do próprio Voltaire, Diderot, Júlio
Verne, entre outros: similis simili gaudet. [N.T.]
38
Moderato Gaditano (Μοδερᾶτος), natural de Cádiz ou Gadira, na Hispania – por isso Moderatus Gaditanus, em latim –, foi
um neo-pitagórico do século I d.C. Embora pouco se saiba de sua vida, é certo que ensinou em Roma no tempo de Nero. Chamado
vir eloquentissimus por São Jerônimo, Moderato Gaditano tenta fundir numa única doutrina o pitagorismo e o platonismo. Admitia,
para além da matéria, três princípios das coisas: [1] a unidade primeira, superior ao ser e a toda essência; [2] a unidade segunda,
que é o verdadeiro ser, o inteligível, as idéias; e [3] a unidade terceira, que é a alma, e que, como tal, participa tanto da unidade
primeira quanto das idéias. No que tange à matéria, tentava ligá-la ao princípio divino: “A razão universal – escreve –, querendo
dar origem a todos os seres, separou da sua essência a quantidade, afastando-se dela e privando-a de todas as formas e idéias que
lhe pertencem. Essa quantidade, essa idéia separada, por privação, da razão universal (que contém em si mesma as razões de todos
os seres) é o modelo (o tipo) da matéria corpórea. Portanto, a matéria não é outra coisa senão a quantidade ideal destacada da
unidade divina e que se torna, por sua separação, em quantidade real, informe e sem unidade, dividida e dispersa até ao infinito.”
(cf. PELAYO, M. M. Ensayos de crítica filosófica) Essa matéria de Moderato não se distingue muito da matéria prima informe de
Aristóteles. [N.T.]
39
Nicômaco Geraseno (Νικόμαχος), natural de Gerasa, na Jordânia, foi um neopitagórico que viveu e atuou na passagem do
primeiro para o segundo século da era cristã e se dedicou a expor as místicas propriedades dos números. A Aritmética (De
Institutione Arithmetica) do Beato Severino Boécio é uma paráfrase latina e uma tradução parcial da Introdução à Aritmética
(Ἀριθμητικὴ εἰσαγωγή) de Nicômaco; e sua De Institutione Musica fundamenta-se no Manual Harmônico (Manuale
Harmonicum em sua versão latina ou Ἐγχειρίδιον ἁρμονικῆς no grego) do mesmo autor. [N.T.]
191
corrigidos e aumentados por Filostrato Ateniense (Lucius Flavius Philostratus), quando já haviam passado
mais de cem anos sobre o túmulo de Apolônio. Discípulo do pitagórico Euxeno, Apolônio parece ter tomado
por modelo a Pitágoras, reproduzindo suas doutrinas e, sobretudo, praticando seus preceitos. Seguindo o
exemplo de seu mestre e modelo, Apolônio não usava roupas de lã, abstinha-se de comer carne e beber
vinho, andava descalço, levava uma vida austera e rejeitava certas práticas grosseiras do culto idolátrico.
No campo doutrinário, além da importância que dava às fórmulas aritméticas de Pitágoras, recomendava e
praticava o estudo da música, matemática e astronomia.
As práticas pitagóricas, juntamente com a teurgia e a magia, muito em voga na época de Apolônio,
principalmente no Oriente, representam e constituem a base das ações de prestígio e das fábulas atribuídas
a ele por Filostrato. A Vida de Apolônio, como aponta corretamente Haas, “não passa de uma paródia da
vida de Cristo e do Evangelho40, como comprovam, por exemplo, o nascimento milagroso, a reforma do
mundo, os milagres realizados, a expulsão de demônios e a ascensão atribuídos ao suposto taumaturgo”.

Embora tenham sido os principais, ou pelo menos os mais conhecidos, esses não foram os únicos
seguidores do pitagorismo nessa época. As tendências sincretistas e orientalistas predominantes não
puderam deixar de favorecer a ressurreição do antigo pitagorismo. Assim, vemos que São Justino, o mártir,
ao nos contar em seu famoso Diálogo com Trifão suas peregrinações pelas diferentes escolas filosóficas,
enumera, entre os mestres que teve em sua juventude, um pitagórico, que lhe prometia a posse da suprema
felicidade e da verdade, sob a condição de estudar antes a música, a geometria e a astronomia, ciências que
representam o caminho seguro e único para elevar-se ao mundo inteligível, à região da realidade pura e da
verdade perfeita.

§ 103. Movimento intelectual em Alexandria

Temos indicado, mais de uma vez, que a característica dominante, ainda que não exclusiva, do segundo
período da Filosofia grega é o pensamento antropológico, do mesmo modo que o pensamento cosmológico
predomina no primeiro período. Já no terceiro período – e principalmente suas últimas etapas que vamos
percorrer –, o pensamento filosófico assume um caráter teosófico muito pronunciado, a ponto de
predominar, em maior ou menor escala, em quase todas as escolas, sem prejuízo das diversos – e, por vezes,
contraditórias – correntes teológicas que as constituem.
Entre as diferentes causas que contribuíram para a origem e desenvolvimento desta Filosofia teosófica,
ou, se se preferir, eclético-teosófica do terceiro período, não é menos importante a condição geográfica da
cidade que serviu de centro e foco do movimento intelectual em questão: aos 332 a.C. e a caminho do Egito,
o vencedor de Dario, cujo gênio político andava a par com seu gênio bélico, lançou os alicerces de uma
cidade que deveria perpetuar até nós o nome e a glória de seu fundador. Banhada pelas ondas do
Mediterrâneo; tocando, por outro lado, o lago Mareotis; e se comunicando com o resto da África pelo Nilo,
Alexandria tornou-se em pouco tempo o depósito geral do comércio do mundo então conhecido, a cidade
mais populosa do Império Romano, depois da capital, o centro para o qual convergiam o Oriente e o
Ocidente, a Grécia e a África, e o ponto onde se encontravam os sábios, artistas, filósofos, poetas,
gramáticos, astrônomos, matemáticos e até teólogos e sacerdotes; pois todos eles encontravam acolhimento
favorável e proteção no famoso Museum41, fundação verdadeiramente régia dos sucessores de Alexandre.

40
Já Porfírio (séc. III d.C.), em seu Adversus Christianos (Κατὰ Χριστιανῶν), contrapunha os milagres de Cristo aos de Apolônio;
e o prefeito Hierocles (séc. IV d.C.) chegava a sustentar que os de Apolônio eram ainda maiores. Eusébio de Cesaréia contra-
arrestou afirmando, no seu Contra Hieroclem, que Filostrato era um fabulista e que Apolônio era um mago sustentado pelos
demônios (tese comum a Lactâncio). A comparação entre Cristo e Apolônio se tornou lugar-comum nas polêmicas anti-cristãs dos
séculos XVII e XVIII: o deísta inglês Charles Blount publicou, em 1680, uma primeira tradução da Vida de Apolônio para o
vernáculo; o sádico Marquês de Sade, em seu Diálogo do padre com o moribundo (1782), chama a ambos “falsos profetas”. [N.T.]
41
O Museum Alexandriae (Μουσεῖον τῆς Ἀλεξανδρείας) era uma instituição pública de natureza religiosa e científica: dedicado
às Musas – deidades inspiradoras e protetoras das artes ou técnicas e das ciências –, o Museu tinha por finalidade fomentar e
custodiar as mesmas artes e ciências, razão pela qual costumava conter um repositório de livros ou biblioteca. O Museu de
Alexandria, fundada por Ptolomeu I Sóter (séc. III a.C.), compreendia a famosa Biblioteca de Alexandria, era sustentado pela
192
O astrônomo e o sacerdote, o matemático e o filólogo, o sábio e o filósofo tinham igual espaço nesta grande
instituição, onde, ao lado de um liceu para ensinar Filosofia, havia um gabinete astronômico e um depósito
geográfico, e um templo para cultuar todos os deuses, e havia, acima de tudo, uma biblioteca, a mais
apropriada para promover e aperfeiçoar o estudo das ciências. Pois é sabido que esta grande fundação de
Ptolomeu I Sóter já continha, após poucos anos, mais de duzentos mil volumes, segundo o testemunho
autorizado de Josefo. No reinado de Ptolomeu III Evérgeta (246-221 a.C.), o edifício destinado a esse fim,
no famoso Brucheion [o bairro real], já não conseguia conter os volumes adquiridos, sendo necessário
colocar uma parte deles no templo de Sérapis: e não é necessário lembrar que, quando na época de César
(48 a.C.), foi em grande parte reduzido a cinzas, continha quatrocentos mil volumes42, relacionados com
todos os tipos de conhecimento. Não é difícil compreender o forte impulso que todas as ciências receberam
com a ajuda de uma biblioteca desse tipo, equipada também com uma multidão de copistas, calígrafos,
gramáticos e sábios ocupados em copiar e corrigir os textos.
Além disso, o Museu de Alexandria não era nem uma escola especial de Filosofia – como a Academia
platônica ou o Pórtico dos estóicos – nem um colégio de sacerdotes-astrônomos – como os de Mênfis e
Babilônia – nem, tampouco, uma instituição político-moral – como a de Pitágoras – ou uma escola de
gramática e filologia ou uma Academia de Medicina, mas era tudo isso ao mesmo tempo: era uma
verdadeira universidade [sic], ou seja, uma instituição muito semelhante àquela que conhecemos hoje por
este nome, e mais ainda à Universidade da Idade Média43.
Daí essa série de trabalhos e publicações de todos os gêneros que apareciam sucessivamente em
Alexandria. Euclides escreve seus Elementos de Geometria, o bibliotecário real Eratóstenes publica
notáveis escritos sobre astronomia e geografia; os Setenta intérpretes traduzem a Bíblia para o grego;
Aristilo e Timocaro fazem avançar a astronomia; Apolônio de Pérgamo aperfeiçoa a geometria com o seu
tratado sobre as Seções Cônicas; Ptolomeu escreve o seu famoso e popular Almagesto; Hiparco descobre a
precessão dos equinócios; Estrabão cultiva e aperfeiçoa a geografia astronômica e política; Erasístrato e
Herófilo desenvolvem e aperfeiçoam a medicina através do estudo da anatomia, enquanto Eudóxio de
Cízico e Dioscórides contribuem para o mesmo resultado com suas publicações e trabalhos sobre botânica
e outros ramos da história natural. Os nomes de Tiranião e Dídimo, os de Ctesíbio e Heron, os de Amônio,
Ápio e Eratóstenes, os de Duris de Samos, Aristarco, Políbio e Manetão mostram que em Alexandria eram
cultivados com ardor a gramática, a filologia, a retórica, a crítica, a História, sem negligenciar as ciências
físicas, exatas e naturais.
Ao mencionado Aristarco de Samotrácia alguns atribuem a primeira idéia ou afirmação acerca do
movimento da Terra. Mas a verdade é que, segundo um trecho explícito de Cícero44, essa honra pertence
por justiça a Hicetas ou Nicetas de Siracusa, que deve ter conhecido e ensinado a teoria copernicana
moderna em seu aspecto essencial.

dinastia ptolemaica (e posteriormente pela República Romana e pelo Império) e era administrado por um sacerdote nomeado pelo
Faraó, como os demais templos egípcios. Os membros do Museu (os filólogos) eram remunerados, isentos dos impostos e recebiam
moradia, alimentação e servos. Durante o Império, a filiação ao Museu passou a ser uma distinção antes militar que acadêmica.
Quando Caracala, aos 216 d.C., suprimiu o Museu, as antigas atividades já não se exerciam lá, mas no Serapeu. [N.T.]
42
Por sorte, este desastre foi em parte reparado pouco tempo depois, pois Marco Antônio mandou colocar em Alexandria a
biblioteca que Átalo, rei de Pérgamo, havia legado ao Senado romano. Assim, esta grande fundação dos lágidas ou ptolomeus foi
preservada com bastante esplendor, até que foi reduzida a cinzas pelo fanatismo dos muçulmanos, os protegidos e amigos de Draper
[John William Draper, da Universidade de Nova York].
43
Neste ponto, a apreciação do Cardeal centra-se sobre a similitude (para apresentar a peculiaridade desta instituição na
Antiguidade) e não sobre a essencial distinção da Universidade, como nascida da Cristandade: enquanto a Universidade Medieval
– erigida simultaneamente sobre a unidade de todos os saberes sob a égide do Verbo (ou Lógos) Unigênito e sobre a unidade do
intelecto humano – favorecia a síntese, a Biblioteca de Alexandria – fundada na confluência de todas as correntes – tendia ao
sincretismo. [N.T.]
44
Eis o curioso trecho: “Hicetas Syracussus, ut ait Theoprastus, coelum, solem, lunam, stellas, supera denique omnia, stare censet;
neque praeter terram rem ullam in mundo moveri; quae cum circum axem se summa celeritate convertat et torqueat, eadem effici
omnia, quasi stante terra coelum moveretur.” Lucullus, cap. XXXIX.
Se o que Cícero supõe aqui é verdade, é necessário reconhecer que o cerne da teoria copernicana foi ensinado por Hicetas ou
Nicetas de Siracusa alguns séculos antes da era cristã. Em todo caso, parece certo que o trecho de Cícero foi como a faísca que
acendeu o gênio de Copérnico, como ele mesmo confessa no prólogo-dedicação a Paulo III, que colocou em sua famosa obra:
“Reperi apud Ciceronem, primum Nicetam sensisse terram moveri... Inde igitur occasionem nactus, coepi et ego de terrae
mobilitate cogitare.”
193
Como não poderia deixar de acontecer, a Filosofia grega tomou parte no grande movimento intelectual
alexandrino, e por isso vimos que, no período que acabamos de percorrer, todas as grandes escolas da
Filosofia helênica e greco-romana tiveram professores e representantes mais ou menos autorizados em
Alexandria. Mas chegou uma hora em que as lutas dessas escolas entre si e com o ceticismo, e por outro
lado, a grande fermentação produzida pelo choque de correntes intelectuais muito diversas e contraditórias,
mas não menos poderosas e enérgicas, produziram uma das manifestações mais notáveis do pensamento
filosófico. Já dissemos que Antíoco de Áscalon, o herdeiro da Academia cético-idealista de Carnéades,
realizara uma espécie de compromisso entre o dogmatismo e o ceticismo, compromisso que os sábios e
filósofos de Alexandria logo estenderam às diferentes escolas da Filosofia grega, e depois aos diversos
sistemas teogônicos, morais e religiosos que, do Oriente e do Ocidente, da Grécia, da Ásia, do Egito e da
Palestina, haviam acorrido à cidade dos Ptolomeus. Os sistemas filosóficos e as teogonias dos brâmanes, o
ascetismo de Buda e seus discípulos, o dualismo mazdeísta e as tradições zoroástricas, o monoteísmo
judaico e as reminiscências dos profetas de Israel durante o cativeiro babilônico, o hieratismo dos egípcios,
as máximas tradicionais da escola pitagórica, a mitologia inesgotável da Grécia e o politeísmo greco-
romano eram outras tantas correntes que se cruzavam e colidiam entre si e com a Filosofia grega em
Alexandria. Quando todos esses elementos estavam em fermentação e começaram a se manifestar escolas
e tendências filosófico-teosóficas em relação à natureza daqueles elementos, o eco distante da palavra do
Verbo de Deus, que ressoava às margens do Jordão, de repente chegou ao Museu e essa palavra não
demorou a ressoar dentro dos muros e nas proximidades da cidade de Alexandre, causando uma sensação
extraordinária pela novidade, pela elevação de doutrina, pela pureza moral, pelos suas testemunhos ou
mártires, pelas suas obras maravilhosas, pela sua propaganda extraordinária. Rejeitada e tratada com
desprezo no início pelos sábios e filósofos alexandrinos, eles logo se viram obrigados a levar em conta a
Nova Religião e, enquanto alguns deles persistiam em sua hostilidade e concentravam todas as dispersas
forças do paganismo para erradicá-la, outros tentaram fundi-la e conciliá-la, seja com a Filosofia grega, seja
com as teogonias e religiões do paganismo.
As precedentes indicações explicam a origem e o caráter fundamental do movimento filosófico neste
terceiro período da Filosofia, e ao mesmo tempo contêm a razão suficiente para a diversidade relativa de
escolas que vemos surgir durante ele. O movimento filosófico deste período é essencialmente eclético e
teosófico, pois isso é exigido pelas condições e elementos que o originaram. Preparado de longe pela
Filosofia greco-romana, favorecido em suas tendências ecléticas e ético-religiosas pelos representantes do
movimento de transição, pela fermentação intelectual de Alexandria e pelo neo-pitagorismo, do qual
falamos em parágrafos anteriores, este movimento filosófico adquire e revela decididamente seu caráter
eclético-teosófico nas escolas que preenchem suas últimas etapas e que ora vamos percorrer. O número e
classificação das principais escolas que representam esse movimento estão relacionados com a natureza e
o predomínio relativo de seus elementos filosóficos e teológicos.
Em harmonia com essas indicações, reduziremos a três as escolas a que nos referimos, serão: [A] escola
greco-judaica, [B] escola gnóstica e [C] escola neoplatônica.

194
§ 104. Origem da escola greco-judaica

Os setenta anos de cativeiro babilônico colocaram os judeus em contato com a doutrina zoroástrica, bem
como com as teorias e práticas religiosas da Caldéia e da Índia, e a influência dessa comunicação se fez
sentir na nação hebraica após o retorno aos locais pátrias. Fruto em parte e resultado dessa comunicação
foi, sem dúvida, o amálgama informe de paganismo e mosaísmo que tomou forma entre os samaritanos, e
é de se acreditar que tal comunicação influenciou o surgimento e desenvolvimento das seitas que dividiram
os judeus, especialmente os essênios e terapeutas, nos quais não se pode ignorar a influência do misticismo
oriental e budista, das tradições astronômico-religiosas dos caldeus e assírios. Segundo Porfírio, certos
judeus que moravam na Síria se dedicavam exclusivamente à contemplação da Divindade, a examinar o
curso dos astros durante a noite, a oferecer sacrifícios a Deus, a quem também dirigiam frequentes preces.
Fílon escreve, ao falar dos terapeutas ou judeus místicos que povoavam o Egito em seu tempo: “Sua
doutrina, transmitida sob a forma de iniciação secreta, contém investigações filosóficas sobre a existência
de Deus, sobre a geração do mundo e sobre a moral; envolvem essas doutrinas em fórmulas alegóricas e
simbólicas e pressupõem que é necessária uma certa inspiração divina para atingir seu conhecimento”.
Apesar de suas vicissitudes e das perseguições frequentes de que foram alvo e vítimas, é um fato
histórico indubitável que os judeus se dispersaram e se espalharam grandemente pelas províncias do Egito,
da Ásia Menor e da Grécia, e que a colônia judaica de Alexandria era tão importante em número quanto
em riqueza. Suas escolas e idéias não puderam deixar de sofrer a influência do helenismo, com o qual
estavam em antiga e permanente comunicação, especialmente desde a versão da Septuaginta. Daí a origem
e o caráter peculiar da escola greco-judaica que floresceu em Alexandria, e cujo principal representante foi
Fílon, embora seu primeiro ensaio sistemático seja devido a Aristóbulo de Panias (Αριστόβουλος του
Πανέα).
A filosofia greco-judaica é uma concepção sincrética do mosaísmo e helenismo; é uma tentativa de
conciliação, ou melhor, de fusão e identificação entre a Bíblia e a Filosofia grega. Para alcançar o resultado
desejado, Aristóbulo, inventará ou usará versos supostamente de Orfeu, Hesíodo e Homero que expressam
a doutrina contida no texto bíblico; tentará provar que Pitágoras e Platão receberam dos judeus suas
O Judaísmo dito Helênico principais teorias; buscará relações entre a
mitologia grega e a narrativa mosaica do
O judaísmo alexandrino deste período era, na expressão de Pentateuco e, finalmente, interpretará de
Wolfson, “do mesmo tronco do judaísmo farisaico, que então
prosperava na Palestina, ambos tendo brotado daquele judaísmo forma alegórica os trechos doutrinários e
macabeu que fora moldado pelas atividades dos escribas.” (Philo: históricos do Antigo Testamento,
Foundation of Religious Philosophy. t. I p. 56). O grego era falado procurando harmonizá-los com as teorias
nas sinagogas por todo o Mediterrâneo, como se torna evidente
da Filosofia grega.
pelo exemplo de Fílon, que não escreveu o seu grego literário
para um público de gentios, mas para os seus compatriotas judeus Embora São Clemente de Alexandria e
altamente cultivados. O próprio texto bíblico que ele comenta é Eusébio de Cesareia listem Aristóbulo entre
a tradução grega dos Setenta, a Septuaginta, que se em algo os peripatéticos, é mais provável que ele
difere do texto grego que possuímos deve-se não pelo uso da
chamada Bíblia Hebraica, mas pelo fato de nossa recensão ser de não tenha seguido exclusivamente
origem posterior. nenhuma escola em particular, pois seu
Contudo, suas idéias e seus métodos não lançam profundas pensamento era apenas conciliar e até
raízes no judaísmo pós-cristão: após a destruição do Templo e mesmo estabelecer identidade doutrinária
dispersão dos judeus palestinos, do chamado Concílio de Jamnia
(no qual se excluem do cânon judaico sete livros canônicos dos entre o mosaísmo e o helenismo filosófico.
cristãos) e da compilação dos dois primeiros Talmudes na Este filósofo judeu viveu em Alexandria
Babilônia, a postura judaica se move num círculo de idéias bem durante o reinado de Ptolomeu VI
diverso e a própria comunidade de Alexandria, outrora
Filométor, segundo a opinião mais
florescente, já quase não é mais mencionada pela História. A
filosofia greco-judaica como um todo desaparece rapidamente provável. Infelizmente, suas obras não
sem deixar atrás de si qualquer impacto permanente sobre o chegaram até nós, das quais apenas alguns
judaísmo, e é somente através dos cristãos que Fílon, Josefo, e a fragmentos e trechos preservados e citados
literatura não-talmúdica ou não-canônica dos hebreus deste
período sobreviveram.
nas obras de São Clemente de Alexandria e
Eusébio de Cesareia são conhecidos.

195
§ 105. Fílon

O filósofo hebreu Fílon (Φίλων ο Αλεξανδρινός ou ‫ )פילון האלכסנדרוני‬nasceu em Alexandria,


provavelmente 25 ou 30 anos antes de Jesus Cristo. Eusébio e São Jerônimo
afirmam que ele pertencia à família sacerdotal e que um de seus irmãos era
prefeito ou juiz dos judeus de Alexandria 45 . Devido às perseguições e
massacres sofridos pelos judeus de Alexandria e províncias vizinhas, ele
foi enviado por seus correligionários como embaixador a Roma (De
legatione ad Caium), onde se encontrava por volta do ano 40 da era
cristã.
O pensamento filosófico de Fílon é uma tentativa de conciliar e
harmonizar a Filosofia grega com a doutrina contida nas Sagradas
Escrituras vetero-testamentárias. Seu ponto de partida, bem como seu
método para chegar a esse resultado, é a interpretação alegórica desses livros.
Quando a alegoria não é suficiente, o filósofo judeu recorre à interpretação mística, sem deixar de expor e
interpretar à sua maneira as teorias da Filosofia grega, a fim de harmonizá-las com a doutrina judaica. Daí
seu ecletismo filosófico, que o leva a recorrer a Zenão, Pitágoras e Aristóteles quando Platão não se adapta
às suas ideias, e daí também a obscuridade e contradições percebidas em seus escritos filosóficos. Às vezes
ele fala de Deus como se fosse apenas uma idéia, um ser abstrato e impessoal, o ser genérico; enquanto em
outros trechos ensina que Deus é um ser pessoal, ativo e vivente, superior e diferente do mundo. A julgar
por alguns trechos de suas obras, o Logos – Verbo ou palavra de Deus – seria, para ele, [1] um ser
intermediário entre Deus e o mundo, o arquiteto do Universo, o instrumento da criação, um ser produzido
por Deus imediatamente e anteriormente à produção do mundo; porém, a julgar por outros trechos do
mesmo, esse Logos, ou [2] se identifica com o Universo e é uma espécie de alma universal do mundo,
análoga à do estoicismo, ou [3] se apresenta como uma personificação simbólica da virtude divina enquanto
criadora.
Não são menores as contradições e variações que o pensamento do filósofo judeu apresenta quando se
trata de resolver o problema do conhecimento, ou melhor, da cognoscibilidade de Deus. Apoiando-se
algumas vezes na finitude do homem, na imperfeição de suas forças ou faculdades de conhecer, no abismo
profundo e insondável que separa Deus do mundo, o ser infinito de todo ser finito, ele concede apenas ao
homem um conhecimento imperfeito, enigmático ou metafórico e indireto e obscuro de Deus. A inteligência
humana pode elevar-se até Deus por meio de seus efeitos, por meio das obras divinas; mas não pode
conhecer mais do que sua existência e de forma alguma sua essência, nem seus atributos e perfeições.
Porém, em outras ocasiões, Fílon parece abandonar todas essas afirmações e idéias para ensinar que Deus
se manifesta e revela ao homem por meio de iluminações superiores, que o colocam em posse de Deus, em
sua essência, em seus atributos e até em seus efeitos; porque, a julgar por alguns trechos de suas obras, ele
não só admite esse tipo de conhecimento supremo e intuitivo da Divindade, como supõe que essa intuição,
esse conhecimento superior de Deus, implica simultaneamente o conhecimento das coisas ou seres
inferiores a Deus: Emergens [intellectus] supra creata omnia manifeste increatum contemplatur, ut et
ipsum per se comprehendat et umbram ejus, hoc est, et verbum ejus, et mundum hunc universum.
As mesmas dúvidas e obscuridades reinam nos escritos de Fílon, seja em relação aos anjos, que às vezes
aparecem como substâncias espirituais e inteligentes e outras vezes como meras forças da criação e da
natureza, seja em relação à alma humana, ou seja, ao homem, cuja liberdade ele reconhece em alguns
trechos, enquanto em outros afirma que o pecado é inato e necessário no homem e que a liberdade é um
atributo peculiar e exclusivo de Deus.

45
Alexandre Lysímaco, irmão de Fílon, é referido por Josefo em suas Antiquitates iudaicæ e Bellum iudaicum. Fora aprisionado
por ordem de Calígula e libertado por Cláudio, com quem mantinha proximidade. Um seu filho, Marcos Júlio Alexandre, desposou
Berenice, filha de Herodes Agripa; e outro, Tibério Júlio Alexandre, abandonando o judaísmo, torna-se procurador da Judéia e
governante do Egito, participando ativamente das campanhas contra Jerusalém. A este Fílon dirige seu tratado Alexandre (De
animalibus), do qual só foi preservada a tradução armênia. [N.T.]
196
Sem perder de vista essa obscuridade relativa, a doutrina filosófica de Fílon pode ser resumida nos
seguintes termos, que abrangem o mais certo e provável de sua Filosofia:
(Deus)
a) Deus é o Ser universal, o Ser como ser: sua essência é incompreensível para nós, pois só sabemos que
Ele existe ou é, mas não o que é. Todos os nomes que empregamos para significar seus atributos devem ser
tomados em sentido impróprio, porque, na realidade, Deus não tem atributos, é puro Ser. Deus está no
mundo, não com a presença da essência, mas com a presença da operação, ou seja, na medida em que age
nele. Deus é incorpóreo, invisível, superior à virtude, à ciência, ao bem e à beleza. Deus possui apenas uma
liberdade perfeita, que se estende à criação do mundo, pois todas as outras coisas estão sujeitas à
necessidade.
(Lógos)
b) O mundo foi criado livremente por Deus, mas essa criação não é obra imediata de Deus, mas do
Lógos, ser intermediário entre Deus e o mundo, ser anterior e superior a este, mas inferior e posterior
Àquele, embora seja chamado de filho de Deus, porquanto seja sua obra mais perfeita e seu efeito imediato.
A sabedoria de Deus é a mãe do Lógos, que é como o filho primogênito, e o mundo visível é o filho segundo
ou posterior de Deus. Esse Lógos também é o lugar das Idéias, ou seja, o mundo inteligível e ideal de Platão.
Essas Idéias contidas no Lógos são as espécies e os gêneros, e também são os anjos, demônios e almas
racionais personificadas, e assim Deus se revela e se manifesta no mundo por meio do Lógos, que aplica,
sensibiliza e encarna as Idéias na matéria, sobre a qual o Lógos só pode agir como ser relativamente
imperfeito em relação a Deus. Este último, por ser puro ser e perfeitíssimo, não pode agir nem ter qualquer
contato com a matéria, uma vez que esta é essencialmente imperfeita, má e a origem do mal.
(iluminação)
c) A felicidade consiste na contemplação intuitiva de Deus; uma intuição que o homem não pode
alcançar por seus próprios esforços e que é apenas resultado de uma iluminação divina. Essa iluminação
intuitiva é recebida na inteligência, como uma faculdade superior da alma racional, à qual também
pertencem a sensação e a palavra.
(incompreensibilidade da alma)
d) No entanto, nossa inteligência é de tal condição ou natureza que, embora possa compreender outras
coisas, não pode conhecer-se a si mesma: Mens quae inest nostrum unicuique, caetera potest
comprehendere, seipsam nosse non potest.
No seu tratado De Gigantibus, Fílon supõe a existência de almas racionais na atmosfera, que são as
mesmas que Moisés chama de anjos, e outros filósofos chamavam de gênios: Quos alii philosophi genios,
Moyses solet vocare angelos: hi sunt animae volitantes per aerem.
(antropologia)
e) A teoria antropológica de Fílon coincide com a de Platão. Assim como o fundador da Academia,
Fílon supõe que o homem é apenas a alma racional, e não a combinação da alma e do corpo, opinião que
ele atribui a Moisés46, influenciado por sua idéia favorita de conciliar e identificar a doutrina de Moisés
com a de Platão. O filósofo judeu também adota as opiniões de Platão sobre a divisão e a residência ou
assento da alma humana no corpo47, assim como adentra o terreno da teoria platônica ao considerar Deus
como a alma do universo: Deus enim anima hujus Universitatis intelligitur.
No campo moral, Fílon segue os passos de Platão. Assim como ele, coloca o maior bem do homem na
virtude e a verdadeira felicidade da vida na aproximação ou assimilação a Deus por meio da prática do bem
racional ou honesto. Ele também concorda com o filósofo ateniense em relação à natureza, número e efeitos
das virtudes morais, assim como em relação às recompensas e punições na vida futura. Mesmo na influência
especial e decisiva que Platão concede à purificação moral do homem para conhecer a Deus, Fílon se
aproxima do filósofo de Atenas, ensinando que o vício impede o perfeito e verdadeiro conhecimento da
divindade: In malo homine, opinio de Deo vera obscuratur celaturque, est enim plena tenebris.

46
“Hominis autem animam nominat (Moyses) hominem, non hoc, ex utroque concretum, ut dixi, sed illud divinum opificium, quo
ratiocinamur.” Philonis op., pag. 132, ed. 1613.
47
“Animadvertendum igitur tripartitam esse nostram animam, habereque partes, rationalem, irascibilem et concuspicibilem;
quarum rationalis regionem capitis inhabitat, irascibilis vero pectus, sicut concupiscibilis inguina” Op. Legis Alleg., lib. I, pag. 43.
197
No desejo e propósito pré-concebido de conciliar, Noé e Deucalião
refundir e identificar a doutrina de Platão com a de Fílon, De Praemiis et Poenis, 23
Moisés, deve-se encontrar a razão suficiente do
Pois o Criador considerou digno que a mesma
alegorismo filoniano, um alegorismo que, como se
pessoa fosse tanto o fim da geração condenada
sabe, influenciou bastante a exegese alegórica seguida quanto o início da geração livre de culpa, ensinando
posteriormente por Orígenes e outros representantes da com obras, não palavras, àqueles que dizem que o
famosa Escola cristã ou catequética de Alexandria. mundo é desprovido de Providência, que, conforme
a lei que Ele introduziu na natureza do universo, as
Para Fílon, por exemplo, a serpente das Escrituras é a miríades todas dentre os seres humanos que viveram
volúpia ou prazer; Adão é a compreensão; Eva é o com a injustiça não são dignas de um só homem
sentido; os dois querubins da arca representam os dois [ἑνὸς ἀνδρὸς] que convive com a justiça. Este, os
hemisférios do mundo; a espada de fogo que o gregos o nomeiam “Deucalião”, mas os caldeus,
“Noé”, em cujo tempo, aconteceu de sobrevir o
querubim do paraíso possuía significa o sol: Igneus grande dilúvio.
vero gladius solem significat.

§ 106. Crítica

Além de seu caráter eclético, a Filosofia de Fílon é essencialmente teosófica, não apenas em termos de
conteúdo, mas também em relação ao método e procedimento. A teodicéia preside todas as outras partes da
Filosofia filônica e serve como norma para a solução dos problemas psicológicos, morais e cosmológicos.
Mas não é só isso: enquanto a Filosofia grega geralmente caminha do mundo para Deus, elevando-se à
concepção divina por meio do estudo e observação da natureza, reflexão e deduções lógicas, Fílon caminha
de Deus para o mundo e para o homem; ele toma a Religião como causa e premissa da Filosofia, e só pensa
em resolver os problemas da ciência em harmonia com a idéia divina pré-concebida a priori.
É evidente, por outro lado, que o elemento platônico é predominante na Filosofia de Fílon, embora ele
recorra ocasionalmente a outros representantes da Filosofia grega em busca de idéias adequadas à sua
concepção filosófico-bíblica.
Os escritores que afirmaram que o Verbo do Evangelho de São João, ou o Filho, Segunda Pessoa da
Trindade cristã, tem sua origem na doutrina de Fílon, ou agem de má-fé flagrante, ou desconhecem
completamente o verdadeiro conteúdo da Filosofia filônica. Sem mencionar a obscuridade, as hesitações e
os trechos duvidosos e contraditórios do filósofo judeu sobre esse ponto, é evidente que mesmo
considerando e interpretando esses trechos da forma mais análoga ao Verbo ou Lógos do Cristianismo, e,
portanto, no sentido mais favorável às alegações dos escritores mencionados, há uma distância imensa entre
o Lógos de Fílon e o Verbo ou Lógos do Evangelista. O Verbo de São João é igual, coeterno e
consubstancial a Deus; é incriado e necessário em sua existência como o próprio Deus; possui a mesma
essência, com identidade e unidade numérica e individual; seus atributos são os atributos de Deus; seu
poder é o poder infinito de Deus: sua causalidade é a causalidade de Deus, sem separação ou divisão, seja
específica, acidental ou individual.
Pelo contrário, o Lógos ou Verbo de Fílon é um ser posterior a Deus; um ser cuja natureza, longe de ser
consubstancial à de Deus, não é nem mesmo idêntica à essência divina, uma vez que é inferior a Deus,
como ser intermediário entre o mundo e Deus. Por outro lado, a inferioridade substancial e essencial do
Lógos filônico está evidentemente demonstrada pelo próprio objeto e razão suficiente de sua existência. A
existência do Lógos é necessária, segundo o “Platão judeu”, porque Deus, devido à perfeição e pureza de
sua própria natureza, não pode agir diretamente e imediatamente sobre a matéria, que é um elemento
necessário na criação do mundo. Daí a necessidade de admitir o Lógos, uma espécie de Deus minor, cuja
natureza, embora ainda relativamente perfeita e mais semelhante à de Deus do que a de outros seres, é
inferior e muito diferente da essência divina, e capaz, assim, de entrar em contato e relacionamento com a
matéria.

198
Essa é a substância e a verdadeira essência do pensamento de Fílon sobre o Lógos divino, que certamente
difere muito do Lógos de São João, ou seja, o Verbo igual a Deus, com igual identidade essencial, e cuja
divindade é a própria divindade de Deus, se é permitido dizer assim: et Deus erat Verbum.
À falta de outros argumentos, seria suficiente considerar a diferença absoluta e essencial entre a
“trindade” filônica e a Trindade cristã, para reconhecer que não há nada em comum entre o Lógos de Fílon
e o Verbo de São João. A Trindade do Cristianismo, com suas Hipóstases ou Pessoas iguais em dignidade,
perfeição, atributos, essência, igualmente eternas, igualmente incriadas, igualmente infinitas, igualmente
criadoras do mundo, igualmente distintas e infinitamente superiores ao mundo por Ela criado do nada, em
nada se assemelha à “trindade” de Fílon, composta por Deus, Lógos e mundo, seres que excluem e negam
qualquer idéia de igualdade e identidade de essência e atributos; “trindade” na qual entram elementos
incriados e criados, eternos e temporais, finitos e infinitos. A concepção “trinitária” do filósofo judeu, assim
como a concepção “trinitária” de Platão, que lhe serve de base e norma, contém apenas uma analogia
distante e como uma sombra da concepção trinitária da Religião Católica; isso pode ser chamado de verdade
axiomática para qualquer pessoa que, sem preocupações sistemáticas, concentre-se nas duas concepções
trinitárias.
Os grandes elogios que ele faz aos terapeutas, e o desprezo com o qual ele fala, em algumas ocasiões,
da Filosofia e da ciência humana, das quais diz que só servem para evitar os erros e enganos dos sofistas
(errores hallucinationesque sophistarum), buscando a verdade em uma espécie de contemplação divina e
intuitiva, revelam uma forte tendência para o misticismo na doutrina de Fílon, e explicam ao mesmo tempo
a influência que ele exerceu nas teorias do gnosticismo e do neoplatonismo, assim como na tendência
alegórica que se manifestou na Escola exegética de Alexandria.
O gnosticismo pôde se inspirar no pensamento, ou melhor, nos livros de Fílon, mesmo em relação à sua
tese fundamental sobre a origem e existência de coisas essencialmente boas e más; pois o filósofo judeu,
obedecendo aqui, como em outras questões, à inconstância e contradições de seu pensamento, depois de
indicar em uma parte que Deus deve ser considerado apenas a causa do bem (Deum bonorum tantummodo
causam esse) e não do mal, conclui por dizer em outro trecho que, entre as coisas criadas por Deus, algumas
são más por natureza e outras boas: Duas naturas invenimus creatas, factas et elaboratas a Deo, alteram
ex seipsa noxiam, reprehensibilem, execrabilem; alteram utilem, laudabilemque... Sunt enim ut bonorum,
ita etiam malorum thesauri apud Deum (“Encontramos duas naturezas criadas, feitas e elaboradas por Deus,
uma delas nociva, repreensível, execrável por si só; a outra útil e louvável... Pois assim como existem
tesouros de coisas boas, também existem tesouros de coisas más em Deus”).

§ 107. O gnosticismo

O gnosticismo é um dos fatos histórico-doutrinários cuja crítica é mais difícil, não apenas porque se
trata de um fato que se apresenta na cena sem antecedentes apreciáveis à primeira vista, mas também pela
complexidade de suas manifestações, não menos do que pela multiplicidade e variedade de seus
representantes. Daqui a diversidade de sistemas e métodos adotados pelos críticos e historiadores para
classificar e expor as fases do gnosticismo. Alguns seguem a ordem cronológica; outros seguem a ordem
lógica; há quem classifique e exponha o gnosticismo sob um ponto de vista geográfico, dividindo em
gnosticismo asiático, egípcio, sírio, etc., enquanto outros subordinam essa classificação à predominância
relativa dos elementos religiosos (judaico, cristão, pagão ou politeísta) que entranham, não faltando também
autores que submetem a classificação sistemática do gnosticismo à predominância desta ou daquela idéia
filosófica.
Como não se trata aqui do gnosticismo sob um ponto de vista dogmático-religioso, nem sob o ponto de
vista de seu significado na História eclesiástica, mas sob um ponto de vista filosófico, parece-nos oportuno
e razoável tomar como base para o estudo, classificação e exposição do gnosticismo a idéia que serve de
ponto de partida geral para todos esses sistemas, e que contribui ou representa o centro de gravitação de
todas as teorias gnósticas. Em nossa opinião, a idéia-mãe dos sistemas gnósticos; o problema fundamental
que o gnosticismo se propõe resolver é o relativo à origem do mal, com o qual está intimamente ligado o
199
problema que se refere à origem do mundo, ou seja, a transição do infinito para o finito. A solução desse
duplo problema constituiria o fundo e o conteúdo real e quase exclusivo de todas as teorias gnósticas; seria
o objeto constante e preferente de suas especulações, e, consequentemente, a distinção e variedade de suas
escolas estão relacionadas com a natureza da solução dada a esse duplo problema. Essa solução – uma vez
rejeitada a solução cristã, baseada na criação ex nihilo – ou é a solução panteísta ou a dualista. Ambas estão
presentes na heterodoxia gnóstica, na qual, portanto, distinguiremos dois ramos ou duas escolas
fundamentais, que são a panteísta e a dualista. Esta última pode ser subdividida em outras duas, onde
predominam as tendências práticas e morais, prevalecendo em uma delas o sentido anti-judaico ou o
exclusivismo “cristão”, e na outra o sentido pagão ou materialista.
Em resumo: o movimento heterodoxo gnóstico, em nossa opinião, está representado e condensado nas
correntes:

a) panteísta;

b) dualista;

c) anti-judaica; e

d) semipagã ou materialista.

§ 108. Gnosticismo panteísta

O representante principal do gnosticismo panteísta é, sem


Valentino
dúvida, Valentino, que viveu e dogmatizou em Alexandria por volta
Tertuliano, Contra os
do ano 140 da nossa era; passou depois para Roma e faleceu na ilha
Valentinianos
de Chipre no ano de 160. Reunindo, desenvolvendo e
sistematizando as correntes panteístas parciais que até então haviam Valentino esperava se tornar
Bispo, pois era um homem habilidoso,
se manifestado no seio do gnosticismo durante a primeira época de tanto no intelecto quanto na
sua fermentação, esse gnóstico alexandrino formulou um sistema eloquência. Indignado, porém, que um
mais completo e acabado, embora não mais racional ou verdadeiro outro obteve tal honra por causa de
uma reivindicação que um confessor
do que o de seus predecessores. Aqui estão seus principais traços:
havia lhe feito, deixou a Igreja da fé
(pleroma – igualitarismo quietista | paz amorfa) verdadeira. Assim como outros
(1º) Desde a eternidade e antes de todas as outras coisas, e como espíritos incansáveis que, quando
princípio de todas elas, existia o Abismo, acompanhado pelo atribulados pela ambição, são
finalmente inflamados pelo desejo de
Silêncio. Após inúmeros séculos, o Abismo concebeu a idéia de se vingança, ele se dedicou com todas as
manifestar, e, tendo depositado essa idéia em seu companheiro, o suas forças em exterminar a verdade;
Silêncio, surgiram simultaneamente a Inteligência e a Verdade, as e encontrando a pista de uma certa
quais, em união com os dois primeiros, constituem os quatro éons opinião antiga, ele trilhou um caminho
para si com a sutileza de uma serpente.
(αιών) primitivos, as quatro manifestações primordiais da
Divindade ou do Ser. Essa tétrada primitiva passou a ser ogdoada,
porque a Inteligência e a Verdade produzem a Palavra (Lógos) e a Vida, e estas, por sua vez, produzem o
Homem e a Igreja. Essa ogdoada primordial dá origem a outros vinte e dois éons, dez dos quais emanam
da Palavra e da Vida, e os doze restantes do Homem e da Igreja. A emanação de uns e outros é feita por
sizígias ou pares, e todos recebem denominações mais ou menos estranhas e obscuras. Os doze pares de
éons que emanam do Homem e da Igreja são Parakletos (o Paráclito ou consolador) e Pistis (a fé); Patriklos
(a paternidade, o que pertence ao pai) e Elpis (a esperança); Metriklos (o que se relaciona com a mãe, a
maternidade) e Agape (o amor); Aeinous (o que sempre entende ou é inteligente) e Synesis (a prudência);
Eclesiastikos (o eclesiástico) e Makariotes (a bem-aventurança); Thélétos (o voluntário ou vontade) e
Sophia (a sabedoria).
200
(pleroma)

Bythos Sigê
(Abismo) (Silêncio)

(tetrada)
(ogdoada)
Nous Aletheia
(Mente) (Verdade)

Lógos Zoé
(Palavra) (Vida)
década
Anthropos Ecclesia
(Homem) (Igreja)
Parákletos Pistis
(Consolador) (Fé)
Patriklos Elpis
(Paternidade) (Esperança)
Matriklos Agape

(dodecada)
(Maternidade) (Amor)
Aeinous Synesis
(Inteligente) (Prudência)
Eclesiástikos Makariotes
(Eclesiástico) (Beatitude)
Theletos Sophia
(Vontade) (Sabedoria)

Matéria e
Demiurgo

Mundo

É fácil reconhecer que essa coleção de éons, sendo politeísta, ou melhor, mitológica em sua forma, é
essencialmente panteísta em seu conteúdo real, pois todos esses éons são fases e emanações do Ser, que,
antes inativo e silencioso, sai de seu descanso e silêncio para se manifestar e se desenvolver em Inteligência
e Verdade, em Palavra e Vida, em Humanidade e Igreja ou Cristianismo. O mesmo pode ser aplicado aos
outros éons inferiores, emanações mediadas do Ser e imediatas à ogdoada. Através da diversidade de nomes
e do processo por pares, que pode ser considerado como uma reminiscência e reprodução dos deuses
masculinos e femininos do politeísmo, o pensamento panteísta se revela com toda clareza, pensamento que
aparece mais indubitável e evidente quando se considera que, segundo o gnóstico alexandrino, esses trinta
éons constituem o Pleroma, ou seja, a totalidade, a plenitude do Ser primitivo e absoluto.
(sabedoria: causa da diversidade e do mal)
(2º) A Sophia, éon feminino e último dos trinta cujo conjunto forma e representa o mundo inteligível ou
superior, tendo concebido um desejo violento de compreender o Pai (o Ser primitivo ou divino), causou
uma perturbação e desequilíbrio no pleroma, perturbação e desequilíbrio que cessaram quando o Filho
único do Pai (a inteligência, o segundo éon do pleroma) produziu um novo par de éons, a saber, o Cristo e
o Espírito Santo, destinados a restabelecer o equilíbrio e a paz entre os éons do mundo superior. No entanto,
devido ao seu desejo desordenado de se unir ao Abismo e compreender seu ser, Sophia foi exilada do
Pleroma e precipitada no caos, transformando-se em Sophia Achamoth, ou seja, sabedoria de ordem
inferior, e gerando com suas paixões, crises e agitações o mundo material e visível, que é, portanto, uma
degeneração do mundo inteligível ou superior e tem sua origem imediata na paixão, no movimento
desordenado e mau de um dos éons que constituem o pleroma. A matéria e o Demiurgo são as primeiras
produções da Sophia inferior, que, através do Demiurgo, como a alma universal e o princípio ativo do
mundo, produz todos os seres mundanos, incluindo o homem, que recebe seu corpo da matéria, sua alma
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do Demiurgo e sua parte espiritual da Sophia inferior, que recebeu esse poder do Espírito Santo enviado
por Cristo.
(espírito – alma – corpo)
(3º) Na constituição do mundo existem três princípios fundamentais: [1] a matéria pura (princípio
hílico), [2] a vida animal (princípio psíquico) e [3] a vida espiritual (princípio pneumático), e as diferentes
substâncias que compõem este Universo correspondem a esses três princípios. Todos os três entram em
partes iguais na constituição e integração do homem, e conforme ele cultiva, desenvolve e faz predominar
um desses três elementos constituintes, resulta a classificação dos homens em [1] homens hílicos,
[2] homens psíquicos e [3] homens pneumáticos ou espirituais. Estes últimos manifestam, incorporam e
representam o princípio divino no mundo, e a missão de Cristo e a redenção do homem consistem
precisamente no conhecimento do Pai, na ciência perfeita (gnosis) do pleroma, que Jesus Cristo revelou aos
homens. Portanto, o Cristianismo ou a Igreja representariam o reinado, ou seja, o predomínio relativo dos
homens pneumáticos, assim como o reinado dos psíquicos ou homens interessados, e flutuando entre a vida
material e espiritual, corresponde ao mosaísmo, e o reinado dos hílicos ou homens entregues à vida terrena
e material corresponde ao paganismo, embora isso não negue a existência de alguns homens pneumáticos
no judaísmo e no paganismo, assim como a existência de homens hílicos no Cristianismo.

§ 109. Crítica

O período (1º) cosmológico que acabamos de descrever foi seguido na Filosofia Grega pelo que
podemos chamar de período (2º) psicológico, ou melhor, antropológico, porque nele são cultivadas com
preferente esmero as ciências relacionadas ao homem considerado como um ser inteligente, moral e social,
as quais mal haviam sido tratadas no período anterior. Este novo e fecundo direcionamento da Filosofia
deveu-se principalmente aos labores, ensinamentos e exemplos de um gênio extraordinário em muitos
aspectos, cujo nome está justamente ligado a essa evolução do pensamento filosófico, e daí os nomes que
geralmente são atribuídos a esse movimento: período socrático e restauração socrática.

§ 110. Gnosticismo dualista

O período (1º) cosmológico que acabamos de descrever foi seguido na Filosofia Grega pelo que
podemos chamar de período (2º) psicológico, ou melhor, antropológico, porque nele são cultivadas com
preferente esmero as ciências relacionadas ao homem considerado como um ser inteligente, moral e social,
as quais mal haviam sido tratadas no período anterior. Este novo e fecundo direcionamento da Filosofia
deveu-se principalmente aos labores, ensinamentos e exemplos de um gênio extraordinário em muitos
aspectos, cujo nome está justamente ligado a essa evolução do pensamento filosófico, e daí os nomes que
geralmente são atribuídos a esse movimento: período socrático e restauração socrática.

§ 111. Gnosticismo antijudaico

O período (1º) cosmológico que acabamos de descrever foi seguido na Filosofia Grega pelo que
podemos chamar de período (2º) psicológico, ou melhor, antropológico, porque nele são cultivadas com
preferente esmero as ciências relacionadas ao homem considerado como um ser inteligente, moral e social,
as quais mal haviam sido tratadas no período anterior. Este novo e fecundo direcionamento da Filosofia
deveu-se principalmente aos labores, ensinamentos e exemplos de um gênio extraordinário em muitos
aspectos, cujo nome está justamente ligado a essa evolução do pensamento filosófico, e daí os nomes que
geralmente são atribuídos a esse movimento: período socrático e restauração socrática.

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§ 112. Gnosticismo semipagão

O período (1º) cosmológico que acabamos de descrever foi seguido na Filosofia Grega pelo que
podemos chamar de período (2º) psicológico, ou melhor, antropológico, porque nele são cultivadas com
preferente esmero as ciências relacionadas ao homem considerado como um ser inteligente, moral e social,
as quais mal haviam sido tratadas no período anterior. Este novo e fecundo direcionamento da Filosofia
deveu-se principalmente aos labores, ensinamentos e exemplos de um gênio extraordinário em muitos
aspectos, cujo nome está justamente ligado a essa evolução do pensamento filosófico, e daí os nomes que
geralmente são atribuídos a esse movimento: período socrático e restauração socrática.

§ 113. O gnosticismo e a Filosofia mais recente

O período (1º) cosmológico que acabamos de descrever foi seguido na Filosofia Grega pelo que
podemos chamar de período (2º) psicológico, ou melhor, antropológico, porque nele são cultivadas com
preferente esmero as ciências relacionadas ao homem considerado como um ser inteligente, moral e social,
as quais mal haviam sido tratadas no período anterior. Este novo e fecundo direcionamento da Filosofia
deveu-se principalmente aos labores, ensinamentos e exemplos de um gênio extraordinário em muitos
aspectos, cujo nome está justamente ligado a essa evolução do pensamento filosófico, e daí os nomes que
geralmente são atribuídos a esse movimento: período socrático e restauração socrática.

§ 114. A escola neoplatônica

O período (1º) cosmológico que acabamos de descrever foi seguido na Filosofia Grega pelo que
podemos chamar de período (2º) psicológico, ou melhor, antropológico, porque nele são cultivadas com
preferente esmero as ciências relacionadas ao homem considerado como um ser inteligente, moral e social,
as quais mal haviam sido tratadas no período anterior. Este novo e fecundo direcionamento da Filosofia
deveu-se principalmente aos labores, ensinamentos e exemplos de um gênio extraordinário em muitos
aspectos, cujo nome está justamente ligado a essa evolução do pensamento filosófico, e daí os nomes que
geralmente são atribuídos a esse movimento: período socrático e restauração socrática.

§ 115. Plotino

O período (1º) cosmológico que acabamos de descrever foi seguido na Filosofia Grega pelo que
podemos chamar de período (2º) psicológico, ou melhor, antropológico, porque nele são cultivadas com
preferente esmero as ciências relacionadas ao homem considerado como um ser inteligente, moral e social,
as quais mal haviam sido tratadas no período anterior. Este novo e fecundo direcionamento da Filosofia
deveu-se principalmente aos labores, ensinamentos e exemplos de um gênio extraordinário em muitos
aspectos, cujo nome está justamente ligado a essa evolução do pensamento filosófico, e daí os nomes que
geralmente são atribuídos a esse movimento: período socrático e restauração socrática.

§ 116. Crítica

O período (1º) cosmológico que acabamos de descrever foi seguido na Filosofia Grega pelo que
podemos chamar de período (2º) psicológico, ou melhor, antropológico, porque nele são cultivadas com
preferente esmero as ciências relacionadas ao homem considerado como um ser inteligente, moral e social,
as quais mal haviam sido tratadas no período anterior. Este novo e fecundo direcionamento da Filosofia

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deveu-se principalmente aos labores, ensinamentos e exemplos de um gênio extraordinário em muitos
aspectos, cujo nome está justamente ligado a essa evolução do pensamento filosófico, e daí os nomes que
geralmente são atribuídos a esse movimento: período socrático e restauração socrática.

§ 117. Porfírio

O período (1º) cosmológico que acabamos de descrever foi seguido na Filosofia Grega pelo que
podemos chamar de período (2º) psicológico, ou melhor, antropológico, porque nele são cultivadas com
preferente esmero as ciências relacionadas ao homem considerado como um ser inteligente, moral e social,
as quais mal haviam sido tratadas no período anterior. Este novo e fecundo direcionamento da Filosofia
deveu-se principalmente aos labores, ensinamentos e exemplos de um gênio extraordinário em muitos
aspectos, cujo nome está justamente ligado a essa evolução do pensamento filosófico, e daí os nomes que
geralmente são atribuídos a esse movimento: período socrático e restauração socrática.

§ 118. Neoplatonismo místico

O período (1º) cosmológico que acabamos de descrever foi seguido na Filosofia Grega pelo que
podemos chamar de período (2º) psicológico, ou melhor, antropológico, porque nele são cultivadas com
preferente esmero as ciências relacionadas ao homem considerado como um ser inteligente, moral e social,
as quais mal haviam sido tratadas no período anterior. Este novo e fecundo direcionamento da Filosofia
deveu-se principalmente aos labores, ensinamentos e exemplos de um gênio extraordinário em muitos
aspectos, cujo nome está justamente ligado a essa evolução do pensamento filosófico, e daí os nomes que
geralmente são atribuídos a esse movimento: período socrático e restauração socrática.

§ 119. Escola filosófico-teosófica do neoplatonismo

O período (1º) cosmológico que acabamos de descrever foi seguido na Filosofia Grega pelo que
podemos chamar de período (2º) psicológico, ou melhor, antropológico, porque nele são cultivadas com
preferente esmero as ciências relacionadas ao homem considerado como um ser inteligente, moral e social,
as quais mal haviam sido tratadas no período anterior. Este novo e fecundo direcionamento da Filosofia
deveu-se principalmente aos labores, ensinamentos e exemplos de um gênio extraordinário em muitos
aspectos, cujo nome está justamente ligado a essa evolução do pensamento filosófico, e daí os nomes que
geralmente são atribuídos a esse movimento: período socrático e restauração socrática.

§ 120. Crítica geral do neoplatonismo e da Filosofia pagã

O período (1º) cosmológico que acabamos de descrever foi seguido na Filosofia Grega pelo que
podemos chamar de período (2º) psicológico, ou melhor, antropológico, porque nele são cultivadas com
preferente esmero as ciências relacionadas ao homem considerado como um ser inteligente, moral e social,
as quais mal haviam sido tratadas no período anterior. Este novo e fecundo direcionamento da Filosofia
deveu-se principalmente aos labores, ensinamentos e exemplos de um gênio extraordinário em muitos
aspectos, cujo nome está justamente ligado a essa evolução do pensamento filosófico, e daí os nomes que
geralmente são atribuídos a esse movimento: período socrático e restauração socrática.

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