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O pêndulo de Epicuro

Ou a lógica de uma história/tempo sem finalidade

Francisco Verardi Bocca1

Daniel Omar Perez2

SUMÁRIO

Apresentação...................................................................... 02
Introdução...........................................................................10
1. Kant, do progresso como plano da natureza ao entusiasmo pela
república..............................................................................29
2. Freud e o Princípio do prazer como regulador de uma civilização em
declínio................................................................................. 65

3. Darwinismo (evolucionismo) ou a lógica de uma história sem


finalidade................................................................................99
3.1 Darwin por ele mesmo.....................................................99
3.2 De Darwin ao darwinismo (Da evolução ao evolucionismo)...122
3.3 A evolução permite repensar a história........................151
Conclusões............................................................................161
Bibliografia.............................................................................178

1
Professor Titular do Curso de Filosofia e Programa de Mestrado e Doutorado em Filosofia da PUCPR
2
Professor Adjunto do Curso de Filosofia e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UNICAMP
2

Apresentação

Estamos em 2015 e neste momento não atribuímos a nada o repouso ou


a imutabilidade. Tampouco estamos de acordo sobre a maneira como, a
natureza ou as sociedades humanas, se movimentam ou variam. Se já
admitimos com Epicuro o choque aleatório dos átomos, também concedemos
ao fixismo do criacionismo, ao progresso e finalidade de Kant, ao pessimismo
de Freud, de novo ao aleatório com Darwin e, por fim, aos propósitos -
restauradores- do design inteligente, para ficar em alguns exemplos.
Deste cenário prolífico,legado pela filosofia, pela religião e pela ciência,
nos situamos tratando aqui de noções como tempo, história, finalidade,
progresso e declínio, assim como de acaso, de necessidade, de liberdade e
determinismo entre outras. Problematizaremos, como núcleo temático,a noção
moderna de evolução que ensejou do ponto de vista da filosofiae da
ciência,uma perspectiva, a de Kant, por exemplo, sobre a natureza e as
sociedades humanas comoevoluindo nummovimento linear segundo um
processo progressivo e finalista (às vezes declinista, como em Freud).Ponto de
vista que, mais tarde, declinaramsob a forma de um epicurismo restaurado e
que teve em Darwin seu representante maior.Destaquemos que este pêndulo
que ora prestigia o aleatório ora a necessidade, ora a contingência ora a
realização de planos e intenções, tem sua própria história e evolução.
Butterfield (1992) informa que em parte dela, por exemplo, no renascimento
europeu a perspectiva sobre o curso da história humana se deu por meio de
um retrovisor, pelo qual via a antiguidade clássica perdida no horizonte
enquanto almejava resgatá-la (daí a propriedade do termo renascimento)
livrando-se dos prejuízos do medievo. Como se vê, ainda distante da noção
moderna e contemporânea de evolução e progresso, assim como da noção
contemporânea de que a natureza, como as sociedades humanas, constitui o
cenário da abertura ao futuro, para a emergência dos possíveis.
Ao início da modernidade, o próprio ideal a ser alcançado residia no
passado, tudo se dando sobre a superfície imutável do planeta como cenário
semelhante e estável em toda parte e tempo. Nas ciências da natureza, a
tendência adotada era de corrupção e desagregação dos corpos constituídos,
contra a qual lutava toda forma de vida (inclusive as instituições humanas) se
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esquivando do declínio iminente. De modo que a sorte e a habilidade (e o


desejo) de resgatar a sabedoria e a prática antiga (ser sábio como os gregos e
político como os romanos) decorria do fato de que a antiguidade tinha muito a
ensinar pelo estado alcançadoo que justificava imitá-la. Assim, diz Butterfield,
“de acordo com esta visão de universo, o tempo e o curso da história não
seriam geradores fosse do que fosse. Além disso, não havia qualquer
concepção de um mundo aberto a algo maior, a um futuro em expansão, nem
sequer existia a ideia de uma civilização capaz de se desenvolver
indefinidamente” (1992, p. 189).
A história da natureza, assim como a história dos homens, pensadas
como processo dotado de sentido definido e definitivo no qual o homem tem
lugar e responsabilidade criativa teve de esperar algum tempo, pelo menos até
o final do século XVIII. Tudo impulsionado por uma mudança de mentalidade,
mas também pela descoberta e contato com novos territórios e por avanços
tecnológicos e suas vantagens na vida cotidiana (como fartura, segurança,
luxo, possibilidades etc..) que possibilitou a oposição e ultrapassagem da
superioridade dos antigos. Tudo em conjunto explicitando uma mentalidade
que na filosofia progressivamente soterrou Aristóteles enquanto catapultou
pensadores como Bacon e Descartes, mas fundamentalmente Kant, que
constituiu ponto de inflexão na superação da visão retrospectiva do ideal
humano.Com ele, o progresso não só se fez possível no horizonte da
humanidade como se tornou sua responsabilidade. A liberdade com
responsabilidade foi uma dura e indelével marca deixada Kant. É verdade que
também seu declínio sob as mesmas condições e até mesmo a contingência e
o velho choque aleatório -hoje travestido de salto quântico e de mutação
genética- conservaram a responsabilidade humana por seu destino.
Tudo porque, ao menos na filosofia, a tese de que os homens possuem
uma razão natural resultou nas e das discussões sobre seu desenvolvimento,
sempre decorrente de sua libertação e emancipação das tradições e prejuízos.
Assim foi aberta a perspectiva da perfectibilidade humana associada e
dependente da construção de instituições culturais. Além dela, como veremos
adiante, a noção de organização, de complexificação, tempo, de rumo, de
sucessão com sentido e propósito foram fortemente alicerçadas na biologia e
na geologia. Áreas do saber muitas vezes sustentadas (e sustentando) uma
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visão bastante lata de evolução com ingredientes de passagem transformadora


do tempo, rivalizando fortemente com a tradição que sustentava a
imutabilidade dos seres vivos e do planeta.
Na mesma linha, e antes de Kant, Leibniz e Locke, assim como Buffon e
Lamarck, sustentaram às vezes a origem comum, mas sempre a continuidade
da criação, expressa na gradação ininterrupta dos seres na natureza. Tudo
indicando a existência do universo como dada no interior de um tempo poiético,
de uma história por acréscimos, de uma evolução compósita e continua (às
vezes lenta, mas também aos saltos) no tempo segundo uma série linear do
simples ao complexo, que constitui sua finalidade.
Já em plena modernidade, Kant, assim o consideramos, foi o criador do
ponto de vista e da disciplina que recebeu mais tarde o nome de filosofia da
história, ilustrada por um fio condutor,segundo o qual o gênero humano
apresenta uma tendência de progredir constantemente para o melhor. Para
discuti-la, recorremos a Freud, cujas contribuições teóricasforam desenvolvidas
para outros fins, como o de dar conta de fenômenos clínicos. A despeito disso,
sabemos que a certa altura Freud aplicouseus resultados para compreender a
formação e o destino da humanidade e num sentido lato da vida.Por isto e em
analogia, reconhecemostambém nele a presença de um fio condutor para a
humanidade que consiste no controle da sexualidade como orientador tanto da
história do individuo, da formação de grupos, como da história da civilização,
para o que aplicou o conceito de recapitulação emprestado da biologia, por
meio do par conceitual ontogênese e filogênese.Além disso, seu ponto de vista
declinista foi exposto em sua teoria das pulsões, cuja peculiaridade nomeamos
entrópica. Nestes termos nos autorizamos a recorrer e apresentar o que seria
uma teoria declinista psicanalítica da história.Se ambos explicitam um finalismo
ou uma teleologia, divergentes é verdade, aplicável à aceleração dos fatos
naturais e humanos, ao contrário Darwin marcou em relação a ela uma espécie
de ruptura, particularmente na ciência, como mostraremos a partir da história
do evolucionismo. Prescindiu na noção de finalidade e de tempo linear e
irreversível sob o qual a vida se organiza e varia para se conservar.
A simples consideração destas noções até aqui expostas exalta o fato
de que, assim como outras disciplinas, a filosofia da história sempre se
apresentou como um campo de perspectivas divergentes. O aspecto positivo
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disto é que por isso mesmo produziu reflexões, reelaborações e revisões


enriquecedoras. A tal ponto que o que a princípio parece sua fraqueza, acaba
sendo também sua força e mérito. Em linhas gerais lembramosque a reflexão
filosófica acerca da história humana (de que Kant e Freud são exemplares)
percorreu um arco que vai, de um lado, da presunção de sua marcha ao
progresso de toda ordem, à liberdade e à igualdade entre os homens e, de
outro, à presunção de uma tendência ao declínio generalizado, à alienação
entre os homens e a um crescente mal-estar que contabiliza os dias de
sobrevida da civilização. Arco depolos extremados alcançados numa
aceleração segundo um sentido efinalidadeem sentido linear (mas também
assintótico), para Kant, e elíptico (na verdade, bumerangue, como ilustraremos
adiante), para Freud.
Sobre este amplo debate, Michel Meyer, na obra Qu´est-ce que
l´histoire?(2013)amplia a reflexão reconhecendo que devemos à nossa paixão
por nosso próprio passado e cultura o ímpeto de mantê-la na memória, de
compará-la com a de outra pessoas e povos e, por este meio, mantê-la viva e
atuante no presente afim de projetá-la como gloriosa no futuro. O oposto
também deve valer, pois esta mesma paixão pelo passado pode se apresentar
como sua negação e, neste caso, o recordamos no presente como
desfavorável e o projetamos no futuro como decadente. De ambas formas
recorremos, diz ele, aos registros, aos documentos, às autoridades, sempre
justificando nossa paixão. Com o quanto pese a consistência deste argumento,
o fato é que desde a antiguidade grega, período ao qual se atribui o início da
iniciativa de historiar, os acontecimentos históricos, coletivos ou particulares,
foram investigados com o objetivo de evidenciar um sentido, umaarticulação e
mesmo coerência entre eles, apoiado no princípio de causalidade (concebido
por Aristóteles como: material, eficiente, formal e final). Portanto, a reflexão e a
investigação histórica dos fatos humanos muitas vezes se deram sob a
intenção de conectar segundo um princípioe nesta ordem, passado, presente e
futuro, tendo na causa final tanto o progresso como o declínio.
Com este mesmo espírito,os exemplos se multiplicam. Ecoando a
exigência de sentido e progresso, já na modernidade Marx, apoiado
criticamente na lógica de Hegel,reconheceu, segundo Mayer,uma finalidadena
história e a inscreveu em um jogo de forças determinado a ponto de fazer de
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seu desfecho algo previsível, além de inevitável. Uma história acelerada


segundo um plano imanente, necessário e favorável à humanidade. Visando a
condição de ciência e sua objetividade, Marx concebeue compartilhou com
Engels o dispositivo teórico que nomearam materialismo histórico a partir do
qual a história humana se confunde em sua lógica com a da natureza,
orientada pelas mesmas leis necessárias e finalistas.
A partir delespassamos a pensar a luta de classes presente no seio dos
sucessivos modos de produção como motor da história que acelera e conduz
cada variação do modo de produção como sucedâneoem direção ao modo de
produção socialista, para o qual concorrem os fatos humanos. Um típico caso
de reconhecimento e atribuição, otimista é verdade, de uma determinação do
passado sobre o presente, mas fundamentalmente segundo uma
expectativavoltada para o futuro. Contudo, nem mesmo pensadorescom este
nível de comprometimento com um determinismo histórico, deixaram de
perceber e destacar a importância do homem como agente de sua história, cujo
espírito é dotado de mesma lógica, como seu autoprodutor. Esta demanda
pode ser prontamente reconhecida noManifesto do partido comunista.

Ainda na mesma obra Meyer diz que há filosofias da história que avaliam
o seu desfecho com idêntica estrutura finalista, mas segundo resultados
fatalistas, igualmente definidos por “linhas de força” que prevalecem.
Admiteque um filósofo ou historiador assim identificado comodeclinista pode
derivar, pelo menos no aspecto finalista, do mesmo caldeirão teórico que
preparou um progressista. Argumento que ilustrou com referência a
historiadores contemporâneos como Oswald Spengler (1880-1936)e Arnold
Toynbee (1889 - 1975). O primeiro, na obraO declínio do ocidente(1918),
apresentou uma análise da marcha da civilização em analogia com toda forma
de vida na natureza segundo um ritmo cíclico de nascimento, apogeu e
declínio. Escrito ao longo dos anos precedentes, seu livro só foi publicado e
devidamente reconhecido por ocasião da crise alemã causada pela derrota
de 1918.

Spengler sustentou uma visão da história distinguindo em cada ciclo um


período inicial de "cultura" e um período final de "civilização". O período cultural
seria de diferenciação e de afirmação de qualidades específicas. Já o período
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de civilização, seria o de decadência, no qual a afirmação da qualidade é


progressivamente substituída pela pura quantidade, por seu consumo e
esgotamento. Para ele, a degenerescência quantitativa ocorre em todas as
culturas, sendo inclusive biologicamente condicionada. A aplicação de tal ponto
de vista permitiu-lhe reconhecer que a Europa játeria passadopor uma
construção cultural, estando neste (naquele) momento em plena fase
descendente de civilização, por conta do que apresenta apenas
superficialmente progresso material e seu consumo.

Já Toynbee,inspirado em Spengler, na obra Um estudo de história


(1976), apresentou igualmente uma investigação relativa ao ciclo de
nascimento, desenvolvimento e queda de civilizações. Para ele, todo este
processo obedece a um padrão comum, independentemente da época ou do
lugar habitado por homens. Há uma razão para a construção e supressão
de civilizações, aplicável a todas elas. Desse ponto de vista os problemas
históricos foram focados a partir de grupos culturais que se sobrepõem
às nacionalidades.

Dissecou a história de vinte e seis civilizações para concluir que são


mais bem sucedidas as que conseguem responder com mais eficiência,
embora com limites, aos desafios de diversas naturezas que confrontam. Sobre
o declínio e o fim das civilizações, afirmou que suas causas primárias são
sempre intrínsecas, nascidas no seio delas próprias (numa espécie de
dialética negativa), ainda que a causa imediata seja externa, como uma
invasão estrangeira ou um desastre natural. Segundo ele, civilizações
morrem por suicídio, vale dizer, por causas internas, como bem observou
Freud mais tarde (1929), embora a partir de outras justificativas.

Além de Meyer há outro historiador contemporâneo que nos auxilia


nestes esclarecimentos. Trata-se de François Hartog, que em Regimes de
historicidade(2003)e Croireen l´histoire(2013) reflete igualmente sobre a
finalidade e a categoria de tempo na história. Para ele, a categorização
prevalecente na modernidade, particularmente no século XVIII, esteve apoiada
na predominância da categoria de futuro, pelo qual se esclarecia o presente e o
passado. De modo que a experiência cotidiana do tempo era a da aceleração
rumo a um futuro (idealizado) que ilumina retrospectivamente o passado e que
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acelera o presente, desempenhando a função de orientador e organizador do


devir da vida enquanto fim. Trata-se, contudo, do caso em que a noção detelos
permite considerar a história e sua aceleração tanto da perspectiva do
progresso quanto do declínio.
Fazendo referência ao classicismo, diz ele, ecoando as teses de
Butterfield, que igualmente o passado foi tomado como categoria dominante
para compreender o presente e o futuro e neste caso funcionava como mestre
da história. Trata-se de um regime de historicidade marcado pela valorização
de um modelo fundante, de um fato histórico exemplar balizador do presente e
do futuro3. Na primeira obra, Hartog apresenta a noção de presentismo
indicando o tempo presente como a categoria dominante na perspectiva
histórica da contemporaneidade. Sua peculiaridade é justamente a
desarticulação do passado e do futuro pela mediação do presente. A categoria
de tempo presente se define, como diz, enquanto diferença e atualidade. De
modo que, por conta de sua desconectividade, já é em si considerado histórico.
O que implica uma redefiniçãodo papel da memória, não maiscomo elemento
de transmissão e conservação da tradição e do ideal, mas antes como fator de
propulsão dos fatos e das ocorrências a partir de sua contingência.
Em resumo, estas poucas referências já ilustram o fato de que a filosofia
da história, a consideração acerca do encadeamento dos fatos, de sua
causalidade e de sua finalidade, constitui um campo de dissenso. De tudo isto
resta em comum asobrevivência e a insistência do propósito de atribuir
inteligibilidade à história humana. Tomadosigualmente por esta demanda,
podemos dizer agora que nossa intenção ao incluir o que chamamos de
darwinismo (com que pese as diferentes acepções que recebeu após a
publicação de A origemdas espécies) é de atendê-lalonge de categorias
opositivas que indicam o sentido do progresso ou do declínio, da estrita relação
causal entre eventos(passados, presentes e futuros), mas especialmentelonge

3
Em algum aspecto reconhecemos também esta perspectiva em Freud, lembrando, por exemplo, de sua
apresentação do caso Dora (1901) em que definiu a análise como uma técnica que resgata mutiladas
relíquias do passado e com isso ressalta seu papel de referencial na determinação da vida presente da
paciente, o que justifica todo o papel etiológico que atribuiu à reminiscência. Apoiado na famosa e
recorrente tese de que a histérica sofre de reminiscência, sustentou a categoria de tempo passado, de
início povoado de eventos, depois acrescido de fantasias, como aporte da constituição psíquica.
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de hipóteses metafísicas como a de finalidade. E, no limite, longe da


consideração da história humana como universal.
Sabemos que Darwin concebeu sua teoriavisando a causalidade na
produção dos seres da natureza investigando insistentemente as leis da
variação.Concebeu-a sob a lógica especial da descendência comvariação a
partir do princípio deseleção natural, a primeira como causa formal e o segundo
como causa eficiente.Ointeresse que despertou reside numafilosofia que com
toda sua particularidade ofereceude modo simples e econômicouma
compreensão racional daevoluçãosegundo um processo natural habitado pela
imprevisibilidade, pela contingência e, no limite, pelo desvio mais do que pela
derivação.É verdade que a tese da variação como mutação, vale dizer, como
salto descontínuo, não foi de responsabilidade exclusiva de Darwin. Dele
nasceu, de fato, a concepção de que o princípiode seleção naturalatua sobre
as variaçõese assim impulsiona a evolução acumulando-as,opera segundo um
processo causal sem teleologia.Trata-se de uma perspectiva teórica que ao se
ocupar da condição atual dos seres vivos, os relaciona eosinserena história
contingente de suas próprias variações(favoráveis ou desfavoráveis, ou mesmo
neutras)sem uma finalidade, que não seja a de se reproduzir e se
conservar.Ponto de vista que identificamos como emergência prestigiosa do
pêndulo epicurista.Sua fertilidade, entre tantas variáveis que veremos adiante,
foi representada, mais de um século depois, por François Jacob (1970, 1979 e
1981)que ilustrou a natureza e seu modo de operação como um trabalho de
bricolage, já que opera a partir de materiais disponíveis, de seu reuso e
reorganização. De modo que a evolução operana verdade uma grande
redistribuição, um verdadeiro jogo de possibilidades sem engajamento a uma
direção de mudança ou de resultado. Portanto,imensamente rica em sentidos,
mas não em finalidade.
De toda forma, o mecanismo devariação (mais tarde definido como
mutação)constituiu um dispositivo de compreensão da história, sualógica
particular. Lógica que permitiu a Darwin reivindicar a responsabilização do
homem por sua própria história(considerada no interior da relação entre ser
vivo e meio ambiente).Assim, com a introdução da noção de vontade(1859)
Darwin ofereceu as condições de pensarmos uma possibilidadede autonomia
(e de ação política) reservada ao homem fora dos quadros de uma orientação
10

naturalmente dadaquando emancipado do princípio de seleção natural.


Curiosamente, uma possibilidade de emancipação oportunizada pela própria
seleção natural, que Patrick Tort (1997) chamou de seu efeito reversivo.
Bem,quanto aos autores e obras, de Kant destacaremos, dentre todas
as oportunidades em que se dedicouà este tema,História geral da natureza e
teoria do céu (1755);o artigo Idéia de uma história universal de um ponto de
vista cosmopolita (1784); outro do mesmo ano, Resposta à pergunta: que é
esclarecimento?;depois, Apreciação da obra de Herder: Ideias em vista de uma
filosofia da humanidade (1785). Em seguida, Começo conjectural da história
humana(1786). Para finalizar a década, Sobre o uso de princípios teleológicos
em filosofia(1788). Da década seguinte, A religião nos limites da simples
razão(1793);A paz perpétua (1795); Antropologia de um ponto de vista
pragmático(1797); ainda do mesmo ano, Doutrina do direito e, por fim, O
conflito das faculdades (1798). De Freud, nesta ordem, as seguintes obras: O
futuro de uma ilusão (1927);Conferência XXXI (1932);Totem e tabu
(1913);Moisés e o monoteísmo (1938); Formulações sobre os dois princípios
do funcionamento mental(1911);Moral sexual civilizada e doença nervosa
moderna(1908); O mal-estar na civilização(1929);Reflexões para os tempos de
guerra e morte (1915) e, para concluir,Além do princípio do prazer, (1920). De
Darwin investigaremos especialmenteA origem das espécies (1859);
secundariamente A descendência do homem e a seleção sexual (1871), além
de A expressão das emoções no homem e nos animais (1872).Do darwinismo
recorreremos a seus comentadores e intérpretes.
Passemos à introdução de nossa pesquisa.
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Introdução

Pois bem, investigarei a filosofia da história de cada um dos três autores


a partir de um conjunto de temas, a saber: finalidade;progresso e
declínio;acaso e determinação; categorização do tempo e, por fim, a noção de
sujeito (autônomo) da história. Retomopara explicitá-los, alguns resultados
anunciados acima. De Kanta perspectiva da autonomia e do progressocomo
finalidade e resultado de uma ação racional humana; de Freud, determinismo e
declínio (com produção de mal-estar crescente na civilização)como finalidade e
resultado de uma determinação naturale, dodarwinismo, autonomia
(ressignificada) em relação à variação e seleção naturalcomo propulsores de
uma históriaa ser construída de maneira contingente e sem finalidade.
Os leitores de Kant sabem queo sentido da história não pode ser
encontrado nas coisas mesmas ou nos fenômenos de sua intuição, mas na
forma como sãoorganizados a partir de princípios racionais que, de maneira
finalista,indicamsua tendência e constroemseu sentido. Claro, isto segundo a
estrutura da razão concebida e justificada a partir de sua filosofia crítica
(transcendental), de onde obteve as condições de possibilidade dos juízos
sintéticos a priori históricos. No entanto, veremos que a ordenação e
vinculação dos fatos históricos a uma finalidade concebida inicialmente como
plano da natureza, evoluíram para a condiçãode tendência aproximativa.Tudo
redimensionando sua noção de sujeito histórico.
Já segundo Freud, por caminhos até certo ponto estruturalmente
assemelhados aos de Kant, a história dos homens segue uma orientação
teleológicamente negativa. Me permitoreconhecer a condição de entrópica,
particularmente a partir do modo de operação que atribuiu à pulsão de morte e
ao princípio do prazer que a orienta. Apesar disto, explorando as nuances de
seu pensamento me sinto entusiasmado para reconhecerdestinos
alternativos(para a pulsão) a partir da possibilidade de atuação deliberada dos
homens. Por exemplo, em favor desta possibilidade Freud chegou a afirmarna
Conferência XXXI(1932), que o superego é “o advogado de um esforço
tendente à perfeição,é, em resumo, tudo o que podemos captar
psicologicamente daquilo que é catalogado como o aspecto mais elevado da
vida do homem” (p. 72). O que permite reconhecê-lo como fiel depositário
12

deum movimentoascético da humanidadeimpulsionado pelos homens. Somado


a outros aspectos que igualmente atribuiu a esta instância, enquanto veículo da
tradição e de sua transmissão, de modo que, neste aspecto, alimentou a
esperança de que a humanidade resista de sua marcha para o mal-estar
crescente e para o inorgânico.
Levando isto em conta, considerou a possibilidade da conservação da
vida e do progresso civilizatório da humanidade.Para o que teria contribuído a
própria psicanálisepela via do esclarecimento (dos destinos da pulsão) que
proporciona. Condição pela quala humanidade (no caso o paciente)passa a
dispor da possibilidade de reverter (até algum limite)a produção de mal-estar,
interromper, ou ao menos resistir, a seu destino rumo ao inorgânico,
estendendo sua existência na forma de um prolongamento contínuo, similar ao
movimento assintótico histórico concebido por Kant. Isto indica a possibilidade
de quetoda produção de mal-estar pode ainda ser enfrentada, suportada e, no
limite, sublimada. Sugiro uma ilustração recorrendo a um tipo de gráfico
cartesiano para comentá-la em seguida.

Por esta ilustração indico que tanto Kant como Freud postularam a
marcha da história segundofios condutores que conduzem a sentidos
contrários (performando um tipo de rebatimento, como mostra a figura). Do
lado esquerdo-kantiano,a história marcha comouma máquina(locomotiva)em
contínua aceleração, de modo que a civilização segue forçando
assintoticamente sua tendência ao progresso. Do lado direito-freudiano,
13

outramáquina que segue freando (postergando ao infinito) evitando igualmente


de maneira assintótica, pelos diferentes destinos da pulsão e pela via de
satisfações substitutivas, o alcance da meta da pulsão. Parafraseando Lacan,
este seria o caso em que Kant com (pleta) Freud.
A despeito de seu aspecto sedutor reconheço que estas possibilidades
(assim como esta ilustração)são no mínimo problemáticas. Sua sustentação
demanda uma investigação mais detida, quanto ao estatuto da pulsão,acerca
de sua satisfação. É verdade que no Projeto para uma psicologia científica
(1895) apresentou a condição de escoamento pulsional do aparelho psíquico
sob forma de tendência ao repouso. Mas os desdobramentos de sua teoria
indicam que resistiu à consideração do abandono definitivo da meta.É verdade
que postulou dos diferentes destinos das pulsões, além doPrincípio de
constância,mas é também verdade que não há um momento ou lugar que
tenha renunciado em definitivo à sua teleologia entrópica, que tenha atenuado
ou revogado a meta do repouso e a marcha ao inorgânico quereconheceu em
toda forma de vida e que subsiste e oriente sua duração.
De fato, há em Freud o reconhecimento de que a própriaexistência já é
em si uma contrariedade que o homem apenas tolera e cada vez menos. Como
entendo, o mal-estar da civilização decorre de uma existênciaque impede a
própria satisfação da meta e finalidade pulsional, mas que é por ela
orientada.Mantidos estes termos, todo progresso cultural, bem como todo
esclarecimentoalcançado, apenas possibilita ao homem uma gestão do mal-
estar a que está submetido. Talvez neste sentido a ilustração acima se
justifique. Mas não nos deixemos seduzir, lembrando do crescente mal-estar e
da doença nervosa moderna que nasceu dela.
Ora, de maneira surpreendente não encontro na teoria evolucionista
concebida por Darwin, bem como no que se seguiu como darwinismo, que
igualmente introduz a perspectiva história na compreensão dos seres vivos,
nem a mesma estrutura argumentativa, nem os mesmos resultados.
Respondendo à pergunta kantiana justamente da maneira que o próprio Kant
considerava impossível, pressupondo uma marcha evolutiva da natureza sem
finalidade.
A despeito do lugar central que Darwin ocupou na história da Biologia, o
ponto de vista que adoto em relação ao seu pensamento corresponde ao que
14

recebeu o título de neodarwinismo, corrente apoiada nas teses do holandês


Hugo de Vries (1848 - 1935) que a partir de The mutation theory (1900) e
Speciesandvarieties: thereoriginby mutation (1905), introduziu na teoria da
evolução a noção de mutação como variação brusca, ruptiva, aleatória e
imprevisível, portanto despojada de uma orientação ou plano da natureza, de
uma perspectiva finalista. Jacob cita Vries (in: Espéces et variétés): «Les
espèces ne se transforment pas graduellement mais restent inaltérées pendant
tout les générations successives. Subitement, elles produisent de nouvelles
formes qui différent nettement de leurs parents et qui, de suite, sont aussi
parfaites, aussi constantes, aussi bien définis et aussi pures qu´on peut
l´attendre d´une espèce quelconque» (p. 241). Endossando assim as
propriedades de estabilidade e variabilidade dos seres vivos, como veremos,
apenas aparentemente contraditórias. Depois dele, o neodarwinismo recebeu,
entre os anos 1930 e 1950 de Julian Huxley em Evolution: The
modernsynthesis (1942) e Ernest Mayr(....) uma reorganização de teses que
recebeu o nome de Síntese moderna, já incorporando os conhecimentos da
paleontologia e especialmente da Biologia molecular4.
De modo que foi na obra de Darwin e especialmente em seus
desdobramentos que encontrei um instrumental teórico que oferece uma
alternativa de explicação econômica por meio da suposição de um mecanismo
que esclarece uma multiplicidade de fenômenos. O próprio Darwin, em carta de
18 de janeiro a Baden Powell, reconheceu que em oposição à teoria de
criações especiais, «ledescentest une explicationpluséconomique, plussimple
et plusefficace que lesmiracles et autresactes de créationsdistincts. Il est une
“cause vraie”, fondée sur de bonnes analogies et permettant d´expliquer um

4Contudo, antes mesmo destes, naobra Vénus physique (1745) P. L. M. de Maupertuis (1698 – 1759) já
se opunha à teoria da pré-formação do embrião então em voga, afirmando que o pai e a mãe tinham uma
influência semelhante na hereditariedade. Maupertuis tratou de explicar os fenômenos genéticos a partir
de uma teoria de atração físico-química.Para ele, a natureza era demasiada heterogênea para ter sido
criada como um desenho. Sua perspectiva materialista e mecanicista (devido a seu conhecimento
dasteorias newtoniana e seu conhecimentos acerca da hereditariedade) lhe permitiram desenvolver uma
teoria da vida muito próxima àquela bastante posterior do mutacionismo deHugo de Vries. Segundo ele,
as primeiras formas de vida apareceram por geração espontânea, a partir de combinações aleatórias de
matérias inertes, moléculas ou gérmens. A partir dessas primeiras formas de vida, uma série de mutações
fortuitas engendrou uma multiplicação sempre crescente de espécies. Ele chegou, inclusive, a postular a
eliminação dos mutantes deficientes, convertendo-se assim num precursor da teoria da seleção natural.
15

grand nombre de phénomènes» (apud Hoquet, 2009, p. 39). Isto por meio de
uma renovada teoria, de uma hipótese explicativonão-finalistaem relação tanto
à origem comum das espécies, à sua descendência modificada,como às
variações que sofrem estabelecendo em definitivo a tese lentamente gestada
desde o século XVIII de que os seres vivos tem uma história 5. Seu sucesso
explicativo permite estabelecer um paralelo entre a lei gravitacional
newtoniana, do mundo físico e a-histórico, e a seleção natural que revela o
mecanismo de conformação dos seres vivos, sua história. De modo a
aproximar, como diz Morange (2011) «la Biologie au temps, de la vie à
l´histoire» (p. 12) ao termo de que a história constitua uma parte da própria
definição científica de vida, que a evolução defina, de maneira muito particular,
a noção de história da vida.
De fato oferece a possibilidade de pensarmos uma marcha da natureza
(adiante a aproximarei da história humana) segundo uma teoria explicativa que
agrega simultaneamente a contingência e determinismo,oferecendo
inteligibilidade ao processo evolutivo, às suas possibilidades de ocorrência.
Sobre sua pertinência, Jacob(1979) diz que «elle integre l´ensemble des
données que nous avons sur le monde vivant, et notamment l´exttraordinaire
diversité des formes que soustend une remarquable unité de structure et de
fonction, par une explication très simple fondée sur deux proprietés
fondamentales des êtres vivants: les échanges avec le monde extérieur et la
reproduction» (p.147).Trata-se de um construto teórico depurado de teses e
argumentos metafísicos, sejam teleológicos ou tendenciais.
A história do conceito de evolução,e por extensão do darwinismo,hoje
mais do que à época justificado empiricamente, fundamentou a hipótese de
que a organização da natureza e a emergência de novas formas de vida se
dásob orientação do acaso.Como disse Jacob,«en 1859, au moment où a paru
L´origine des espèces, on ne connaissait rien encore des mécanismes qui
soustendent l´hérédité puisque les premiers mémoires de Mendel datent de

5
Hoquet (2009) interrogando sobre a força das hipóteses de Darwin, recorre ao argumento do botanista
americano Asa Gray, para quem « la doctrine de l´Origine des espécestire sa force de ce que´elle «montre
la conformité générale de tout un corps de faits à une même hypothèse, et qu´elle rassemble des cas
explicables par cette hypothèse et inexplicables par la conception traditionnelle»» (p. 55).Segundo Gray,
ela tem a virtude de harmonizar os fatos ainda que as causas permaneçam misteriosas.
16

1865.D´ailleures les travaux de Mendel6 sont passes totalement inaperçus à


leur époque: ce n´est vraiment qu´en 1900 que les principes généraux de la
génétique ont été redécouverts par différents auteurs» (p.150). Acredito que foi
justificado pelo acúmulo de novos conhecimentos, o ponto de vista darwinista
sobre a evolução da natureza prescindiu progressivamente da noção de
progresso e depois de finalidade. Por isso mesmo, além de divergir do
finalismo progressista kantiano, diverge também da hipótese de retorno ao
inanimado como finalidade da vida.
Até porque, tanto Darwin, além de biólogos contemporâneos como
Jacob e Monod,recusarama aplicação do ponto de vista entrópico para os
organismos vivos, reservando-o ao mundo físico. Sobre isto, é importante
esclarecer desde já que seleção natural remete a adaptação (permite
compreendê-la mais do que a origem das espécies), em uma palavra,
conservação da vida. Adiante, veremos a conjugação promovida por Darwin de
dois aspectos relativos a ela, a postulação de uma máxima de que “uma
grande diversidade de estrutura pode sustentar maior parcela de vida” (1859, p.
106) orientada por um “princípio de conservação ou de persistência do mais
adaptado” (1859, p. 120) e por meio de uma struggle for life(mas também por
relações -infinitamente complexas- mútuas)que expressa um tipo de conatus,
uma tendência à conservação. A este princípio deu o nome de seleção natural,
princípio que opera em complemento ao poder criador da variação 7.Variação
responsável por uma grande diversificação de estruturas, uma grande
quantidade de vida.
Bem, sabemos que Darwin, ao princípio de seleção natural agregou
temas como origem, espécies, variação,hereditariedade,descendência,
recapitulação,adaptação, uso-desuso e, mais tarde (atribuída às leituras de
Malthus, além da influência de Spencer)luta pela existência, tudo conferindo
maior inteligibilidade à gênese, diferenciação e transmissão de caracteres que
compõem as novas espécies. A formulação desta teoriarecebeu forteinfluência

6
Gregor Mendel (1822 - 1884) finalmente publicou em 1866 seu artigo Experiments in planthybridization
na revistaBrünn Natural HistorySociety.
7
Diferentemente de todo propósito de conservação da vida, por admissão de um vitalismo, encontramos
em Nietzsche uma crítica ao evolucionismo de Spencer e Darwin, no sentido de que o que é característico
da via não é sua conservação, mas sim seu incessante expandir e dominar (vontade de potência), expresso,
por exemplo, em sua teoria das forças, num movimento de superação -e não de adaptação- das condições
de existência.
17

de sua leitura em 1838, após a viagem no Beagle, do Essay on the principle of


population(1798) de Thomas Malthus (1766 - 1834), que expressava a noção
de natureza como seletiva, como palco de relações competitivas e de luta
generalizada entre indivíduos de uma mesma espécie e entre espécies pela
sobrevivência. Tudo sob leis unificadas que governam a natureza animada-
orgânica e inanimada-inorgânica. Expressava ainda uma noção de natureza
dotada deum grande propósito, uma intenção pedagógica de dar forma à
humanidade por meio da competição que conduz ao fortalecimento dos seres
humanos, ao progresso da humanidade.É verdade que Darwin mais tarde se
distanciou (nas sucessivas reedições de seu livro)deste ponto de vista
fortemente teleológico e intencional. Conservou desta influência a concepção
do princípio de seleção naturale variação, como mecanismo pelo qual se dá a
multiplicaçãoa transformaçãoe a transmissão dos seres vivos.
Além disso, sua teoria sofreu reformulações que conferiram contornos
amplamente divergentes dos concebidos inicialmente. Phillip Sloan (2005)
indica que o resultado deste detour foi a construção laboriosa de uma nova
metafísica da natureza sustentada na noção de contingência sobreposta à de
determinismo, que talvez nunca tenha abandonado. Tal iniciativa, diz, “is
claimed to undermine all teleological philosophies of nature of modern period…”
(p. 144). Neste ponto,abalando a metafísica da natureza de Kant, mas
especialmente a de Spencer.
*************
Uma investigação como esta, que tematiza noções como evolução,
progresso e finalidade, não poderia passar ao largo do pensamento de Herbert
Spencer (1820 - 1903). Partindo da definição de que a filosofia consiste na
unificação dos conhecimentos parciais da ciência, concebeu-a coerentemente
com seu postulado evolutivo, como a etapa mais avançada de uma démarche
da razão. Ela faria parte do sentido e seria, além disso, a finalidade da razão.
Sua tarefa seria a de elevar à maior generalidade os princípios da ciência, tais
como a indestrutibilidade da matéria, a continuidade do movimento e a
persistência da força, fundamentos para uma explicação relativa à aceleração
dos fatosem geral e de toda ordem, submetidos a uma lógica reconhecível, a
uma lei da evolução. Justamente a responsável pela forma e estados
sucessivos da matéria, segundo um propósito finalista e progressista, que por
18

um processo necessário passa de um estado de dispersão para um de


integração, uma transformação do homogêneo indefinido e incoerente em
heterogêneo definido, tudo movido por uma força espontânea que conduz de
maneira predeterminada ao progresso.
De fato, uma organização que produz uma complexificação harmônica
crescente que ocorre em toda ordem de fenômeno, de modo que o
desenvolvimento atribuído à natureza concerne igualmente ao home e à
sociedade humana. Por exemplo, o sistema solar que resultou de uma
nebulosa, o mesmo se dando entre os seres vivos (animais e plantas) e entre
as sociedades humanas, compreendidas em suas linguagens, artes,
organizações políticas etc.. Trata-se de um processo necessário e linear de
complexificação por diferenciação que gera produtos novos e diversos do seu
ponto de partida e que atua, por exemplo, na produção de tecidos e órgãos dos
seres vivos. Desta forma, a noção de uma variação que proporcione vantagem
ou benefício decorre de um acréscimo quantitativo de estados em resposta aos
estímulos do meio ambiente. Porque entende por complexificação uma
combinação somatória de elementos, geradora de seres mais sofisticados,
mais perfeitos.
O processo evolucionário decorre, para Spencer, segundo um
movimento evolutivo de conjunto, de modo que as combinações e
recombinações entre partes da matéria viva correspondem a um tipo de
adequação ou adaptação (por meio de formação e diferenciação de tecidos e
órgãos) que um organismo sofre na condição de resposta ao desafio do meio
ambiente, de modo que a história de sua adaptação é o próprio progresso de
sua história. Há aqui uma nítida adesão ao principio transformista de Lamarck,
segundo o qual a função exigida (pelo meio desafiante) impulsiona a criação de
um órgão para dar conta dela, de modo que da melhor adaptação resulta a vida
mais agradável, mais feliz, sua finalidade. Assim, a escolha do modo de vida é
que produz a alteração do organismo.
Por fim, a evolução seria uma aplicação no mundo (conhecível) de uma
força (desconhecida), cuja finalidade é o estabelecimento da maior perfeição e
da mais completa felicidade como estado absoluto (que se finda depois). Por
conta de tudo isso, criou a expressão «seleção do mais apto», que relacionou,
é verdade que de maneira controversa, com o mecanismo de seleção natural
19

de Darwin, recebendo deste adesão (A este respeito, Hoquet informa (p. 337)
que a seleção natural de Spencer foi concebida por Weismann não
verdadeiramente criativa, mas somente destrutiva.). A adaptação, que neste
sentido é crescente, foi por ele concebida como luta, em função de consistir na
produção funcional de órgãos como resposta a desafios do ambiente;
evidentemente que melhores respostas criam melhores condições (aptidões)
de sobrevivência, em princípio para o indivíduo e, após, para a espécie em
função da acumulação e transmissão hereditária. Spencer generalizou e
estendeu esta noção a diferentes domínios como a Psicologia e a Sociologia
(reconhecido como um de seus fundadores). Sua teoria recebeu ainda o nome
de «darwinismo social» ou «teoria organicista».
*************
Acrescentamos que o pensamento de Darwin expressa uma visão de
mundoque podetambém ser ilustrada por umfio, contanto que não seja nem
condutor do progresso e nem do declínio da vida. Um fio que apenas indica o
modo pelo qual a vida está sendo tecida. A partir de Darwin e de seus pósteros
passamos apensar que a natureza não é dotada e nem faz planos para as
formas de vida que engendra e nem delas aguarda resultados específicos. Isto
porquesua “intenção” e seu modo de operar variaçõesé desde sempre
oportunizar novas e variadas formas de vida queresultaram na
biodiversidadedo planeta. O darwinismo não constitui, portanto, um instrumento
teórico que explicita uma intencionalidade da natureza e menos aindaa atuação
de uma inteligência superior. Apenasindica um padrão de geração, evoluçãoe
sucessão entre organismos que interagem em um meio ambiente.De modo que
arrisco dizer que desta visão de mundo não se pode atribuir a uma condição
evolutiva qualquer signo de direção seja de progresso ou de declínio ou caos.
Em acréscimo às já mencionadas encontramos em Darwin, outras
duasnoções que merecem atenção, a demonogenia (ou epigenia8) e a de
parentesco entre espécies (especiação). Ambascontrariam de início a noção à
época corrente de poligenia e de criação especial, segundo as quais as

8
Sobre esta perspectiva, Darwin comenta que “muitos cientistas afirmaram é tão fácil acreditar na criação
de centenas de milhões de seres como na criação de um só; porém em razão do axioma filosófico de a
menor ação, formulado por Maupertuis, o espirito é levado mais voluntariamente a aceitar o menos
número, e não podemos (os cientistas) certamente crer que uma quantidade enorme de formas da mesma
classe tenha sido criada com os sinais evidentes, mas ilusórios, da sua descendência de um mesmo
antepassado” (1859, p. 432).
20

diferentes variedades de espécie teriam sido criadas independentemente uma


das outras. Em seu lugar sustentouumaorigem e descendência comum a todas
(embora haja aqui uma distinção entre a origem de novas espécies que
derivam umas das outras, que pode ser demonstrada com alguma dificuldade,
e a origem ancestral comum de todos os seres vivos). Estas hipótesesderivam,
segundo Kant,dos princípios(racionais) de homogeneidadeede variedade
ouespecificação, segundo afinidade ou continuidade entre as diferentes
espécies da natureza. De modo que de um ancestral comum, todas espécies
teriam sido constituídas segundo uma relação de continuidade e parentesco
entre descendentes9.
Desta forma, todos os seres vivos atuais descenderiamde galhos que
são prolongamentos de um mesmo tronco. Trata-se do que Kant, na Crítica da
razão pura(Apêndice á dialética transcendental -do uso regulativo das idéias da
razão pura,1781), chamou de continuum specierum que pressupõe (a partir da
homogeneidade na extrema multiplicidade) um modo de operação continuísta
na natureza10 (continui in natura(p. 326)), a passagem continuísta e gradual de
uma espécie à outra considerando que todas brotaram de um mesmo tronco.
Vale lembrar tratar-se de uma questão que discutiu também em Sobre o uso de
princípios teleológicos em filosofia(1788).Na aplicação deste princípio algo
surpreendente foi, segundo Jacob, introduzido por Darwin, aconcepção de que
um descendente pode não corresponder a uma cópia11 absolutamente idêntica

9
Kant declarou a este respeito em 1798: “Tudo isso, porém, é uma simples ideia do modocomo a maior
multiplicidade na geração é unificada pela razão com a maiorunidade da origem em uma linhagem. Se
efetivamente há um tal parentescona espécie humana, as observações que dão a notar a unidade da
descendênciadevem decidir. Aqui se vê claramente que se deve ser guiado por um princípiodeterminado
para simplesmente observar, isto é, atentar para aquilo que indicaa linhagem original e não só os
caracteres semelhantes; porque temos a vercom uma tarefa da história da natureza e não com a descrição
da natureza euma nomenclação meramente metódica. Alguém que não tenha disposto suainvestigação de
acordo com aquele princípio, deve novamente investigar, pois,por si mesmo, não se lhe apresenta aquilo
que ele precisa para estipular se háum parentesco real ou apenas nominal entre as criaturas” (p. 221). A
propósito desta concepção, Darwin não deixa dúvida sobre seu caráter heurístico, inclusive reconhecendo
que “toda classificação real é genealógica; a congregação de descendência é o lugar secreto que os
naturalistas sempre procuram, sem disso ter consciência, com o pretexto de descobrir algum plano
desconhecido da criação, enunciar proposições gerais ou coligir coisas semelhantes e separar coisas
diferentes” (1859, p. 379). Adiante voltarei a esta questão discutindo o próprio estatuto do conceito de
espécie.
10
Também G. W. Leibniz (1646 - 1716),no prefácio de Novos ensaios sobre o entendimento humano, já
reconhecia que nada se faz de repente, reafirmando a máxima de que a natureza nunca faz saltos (natura
non facit saltum): denominou-a Lei da Continuidade.
11
Em função das discussões futuras acerca desta noção, esclareço que inicialmente, August
Weismann(1834 - 1914) (biólogo alemão criador da noção de seleção germinal, que enfatiza a
continuidade ininterrupta do idioplasma em oposição à hipótese da transmissão hereditária de caracteres
21

de seu genitor em conformidade com um protótipo da espécie. Isto porque a


evolução pressupõe sempre a emergência de um continuum de seres apenas
similares (que implica uma ascendência comum e uma descendência
modificada), dando sempre lugar, a despeito de toda estabilidade e unidade do
mundo dos seres vivos, a organismos progressivamente diferentes e únicos
(que inclui variações lentas, monstruosidades, metamorfoses, gerações
alternadas etc.).
Sob este princípio, que repousa sobre fundamentos puros
transcendentais e não sobre fundamentos empíricos, sua teoria explicativa da
origem das espécies considera que o processo evolutivo, a exemplo do que já
previa o transformismo de Lamarck e Buffon, pode produzir um órgão como
uma asa a partir de uma pata. Seria o caso em que novas estruturas são
produzidas a partir de preexistentes que variam, seja espontaneamente, seja
em função da pressão seletiva do meio ambiente permitindo uma adaptação do
organismo de modo que uma nova forma cria uma nova função.Neste ponto
distinta da concepção de Lamarck de que a adaptação de um organismo a seu
meio decorre de seus próprios esforços (desejo e vontade) no atendimento de
suas necessidades que criam as formas necessárias para satisfazê-las.Deste
ponto de vista, a variação resulta de uma vontade que promove um
aperfeiçoamento visando adaptação, um tipo de volição que responde pela
própria causa da variação e, por conseguinte, da evolução. Caso em que uma
nova função (alcançar a copa de uma árvore) precede a emergência de um
novo e adequado órgão (um pescoço longo). Concepção recusada por Darwin
e mais tarde em definitivo pela Biologia molecular.
Contudo, se a adoção e uso regulativo dos conceitos de monogenia,
especificação e continuidade aproxima Darwin de Kant, resta um que indica
uma direção contrária. Sabemos que Darwin não reconheceu uma diferença

adquiridos) admitia, ao final do século XIX e início do XX, que um organismo só podia reproduzir (por
seu idioplasma germinativo) cópias iguais a ele próprio, embora essa cópia possaapresentar
irregularidades uma vez que o organismo também reage a influências externas e, desta forma, se desvia
de sua tendência hereditária. Em outras palavras, sustenta que a variabilidade necessária para a seleção
natural, aparentemente postulando um retorno a forças internas, deriva completamente de fatores e causas
internas responsáveis pelas alterações do idioplasma (pondo em questão a tese da variação e herança por
meio do uso e desuso). Assim, para harmonizar sua teoria à de Darwin, introduziu ainda (e além da
influência de fatores externos) a hipótese de que ocorreriam mudanças pequenas e graduais, sempre ao
acaso, nos “bióforos e nos determinantes” (elementos do plasma germinativo) que operam mudanças
contínuas de composição e seriam as causas principais de variações.
22

radical, mas apenas de grau entre corpo e mente, entre natureza e cultura,
aplicandoaos pares o próprio princípio de continuidade. Inclusive, na Origem
das espécies, atribuiu a noção de faculdades mentais (p. 223) indistintamente a
todos os animais como resultado da pressão seletiva. Assim, deste ponto de
vista, a emergência da civilização (ou da cultura)foi por ele explicada sem
pressupordescontinuidade12 com a dimensão natural ou biológica, de modo que
o caráter moral e social do homem, e mesmo sua linguagem e estrutura de
pensamento, diferentemente do que postulou Kant, deriva tão somente de uma
sofisticação de seu instinto animal.
No entanto, por várias vezes, mas particularmente tratandodos instintos
na Origem das espécies, Darwin reconheceu (p. 220)que o exercício da
faculdade racional e especialmente do fator volitivoresulta em modificações dos
próprios instintos (adquiridos e transmitidos), o que autoriza a ação da cultura
sobre a natureza, do homem sobre sua natureza. Em outros termos,
reconheceu neste jogo a possibilidade, por exemplo, de uma ação deliberada
de acúmulo e sustentação de determinadas variações sofridas pelas espécies,
que chamou de seleção artificial. Reconheceu no homem uma possibilidade,
senão ainda de sua produção, já que não cabe ao homem produzir variações,
pelo menos de intervenção sob forma de uma aposta no direcionamento e na
potencializaçãodas próprias variações naturais que sofreu. Um tipo de ação
que fixa, potencializa e tira proveito de uma variação disponibilizada pela
natureza.Na verdade, reconheceu que o homem, se de fato não influencia
imediatamente a produção de variedades de espécies, pode “escolher as
variações que a natureza lhe fornece e acumulá-las como entender” (p. 419).
De modo que faça de uma variação um benefício, uma conveniência, um
recurso de superação de um estado desfavorável, criando um registro próprio
de determinação.

Esta questão surge com toda força quando consideramos que a própria
tese da seleção natural (expressão reconhecida por Darwin como
metafórica)foi inspirada justamente na seleção artificial praticada por criadores

12
Darwin, atribuindo a Lamarck sua posição teórica quanto à mudança gradual das espécies, postulou
cientificamente a unidade da natureza como um contínuo a partir do reino inorgânico através do
reinovegetal e animal até a forma orgânica mais sofisticada ou elevada. Sobre isto, consultar argumentos
de Monod (1970, p. 144) sobre a noção de linguagem humana em relação de continuidade evolutiva.
23

de plantas e de animais domésticos e que foi tomada por ele como modelo
aplicado à natureza. Trata-se de uma prática motivada pelo interesse de
melhoramento de espécies animais e vegetais e justificadana reconhecida
tendência dos seres vivos à reprodução e à diversificação. A esta, os criadores
sobrepunham um tipo de colaboração ou intervenção apenas estimulando as
variações que mais lhes interessavam. Isto porque, reitera Jacob, «n´est
pasl´hommequiagitdirectementsurlaviariabilité» (1970, p. 187), posto que toda
sorte de variação decorre de maneira desconhecida, à despeito de qualquer
necessidade dos seres vivos. No entanto, como Darwin percebeu, os criadores
ampliam as ocorrências de variação e com isso as estimulam e criam a
possibilidade de ao menos escolhê-las.Sobre esta possibilidade, pergunta
François Euvé (2012), «dans quelle mesure une finalité de l´histoire, qu´elle lui
soit imposée de l´extérieur ou qu´elle lui soit immanente, est-elle compatible
avec l´exercice de choix libres?» (p. 91). Questão que não se pode furtar.
Antecipadamente, posso dizer que o resultado do exercício desta
vontade é a possibilidade de ajustar e adaptar as variações das espécies aos
interesses humanos. Variações que podem ser acumuladas justamente na
direção desejada pelos criadores. Evidentemente trata-se de uma operação
que incide sobre um mecanismo da natureza justificada no critério de utilidade
e conveniência e desta maneira o homem se coloca como coadjuvante da
natureza em relação aos fenômenos de variação e evolução. É nesta
circunstância que o homem vislumbra sua emancipação da dependência de
variações como forma de sobrevivência na medida em que pode alterar o meio
ambiente para ajustá-lo à sua condição atual. Sobre isto, Patrick Tort (1997)
reconhece que por ocasião da publicação em 1871 de a descendência do
homem, Darwin constata que a seleção natural não é mais a força principal que
governa o futuro dos grupos humanos, mas «qu`ellea laisséplacedanscerôle à
l`éducation» (1997, p. 53). Fator que agrega aos homens de princípios e
comportamentos que lhes permite evitar os efeitos eliminatórios da seleção
natural. Possibilita ainda aos homens desenvolver comportamentos
(considerando que a seleção natural selecionou instintos sociais) e disposições
éticas, produzir dispositivos legais, com diz, anti-seletivos e anti-eliminatórios.
Tudo de modo que a relação entre biologia e civilização, por trás de uma
aparente ruptura, apresenta um continuum que Tort ilustrou com recurso banda
24

de Moebius. Um continnum reversivo, «impliquant donc um passage progressif


au revers de loi évolutive initiale –la sélection naturelle, en tant que mécanisme
en évolution, se soumettant elle-m~eme, de se fait, à sa propre loi » (1997)p.
53).
Sobre esta questão há uma curiosa reflexão de Jean Piveteau (1979)
que apresenta por fim o homem como «lemaître de sadestinée»(p. 87) no
interior da natureza, secundarizando a importância dos mecanismos de
variação e seleção natural como único fatorpossibilitador de sua sobrevivência.
Sua ponderação surge em meio a uma reflexão sobre a consideração do
destino humano em face da teoria da evolução. Começou por considerar,
sempre recolocando a questão do lugar do homem no interior da natureza, que
diferentemente de outros seres vivos (primatas, por exemplo) que apenas
utilizam, fabrica suas próprias ferramentas. A distinção pressupõe que quando
um órgão corporal tem sua função prejudicada ou alterada, o primata se vê
diante da esperança de se adaptar para não morrer. Espera porvariações que
supramsuas deficiências, que o ajude a superar as alterações desfavoráveis do
meio ambiente.Quanto aos homens, diz Piveteau, «il fabrique des outils
nouveaux» (p. 87), de maneira que funciona como uma providência
emergencial e eficaz que, dependente de suas próprias ideias, prescinde de
variações anatômicas e morfológicas, substituídas por utensílios agregados ao
seu organismo.Por meio destes o homem adapta o meio a ele mesmo e por
isso tem menos necessidade de variações favoráveis, além de se esquivar
mais facilmente das desfavoráveis.
Ele introduz uma possibilidade de autonomia para o homemmais ampla
do que a prevista por Darwin. Conclui que «avec l´homme, ce phénomène
évolutif se développe par l´action même de l´homme. Il doit conduire
maintenant la marche de la vie. [...] l´homme est maintenant responsable de la
vie» (p. 87).Sugere que a adaptação do homem, e com ela sua conservação,
fica cada vez mais dependente dele mesmo.De modo que possa conceber uma
finalidade racional para si mesmo, para sua espécie,sem que implique numa
finalidade da natureza. Consideração que, segundo entendo, até mesmo o
Kant de 1798 concordaria.
Sobre esta questão, na obra Le hasardet la nécessité (1970)Jacques
Monod expôs seu ponto de vista sobre a natureza e sobre o destino do
25

homem. Definindo o homem em todas suas dimensões como produto da


evolução reconheceu que propriedades que chamamos linguagem, mente,
consciência ou mesmo razão, e que ele chama simulation, promoveram um tipo
de revolução na evolução, culminando no advento de um novo reino, celui des
idées, como disse. Não que a natureza não estivesse preparada para
revoluções, mas talvez não contasse com a emergência de seres vivos que
dela se emancipassem, quer dizer, que escapassem aos efeitos da pressão
seletiva. Adiante veremos os argumentos de Wandschneider que reintroduz
estas propriedades no seio e no projeto da evolução.
Trata-se justamente de um reino que proporcionou ao homem uma
causalidade interna que o colocou numa condição de independência e mesmo
de indiferença aos propósitos (ou ausência deles) da natureza. Neste fato
evolutivo, pode-se dizer que o próprio comportamento humano passou a
exercer pressão seletiva sobre a evolução de sua civilização bem como de seu
código genético. Bem, a independência que se seguiu de crescente dominação
(ou pelo menos a ilusão dela) do meio ambiente também produziu a
emergência de uma luta pela vida excepcionalmente dada e intensificada no
interior de sua própria espécie. Fenômeno, como diz Monot, «extrêmement rare
dans l´évolution des animaux» (p. 178). Difícil avaliar a dimensão do papel que
passou a desempenhar na evolução humana. Talvez Kant tenha percebido sua
dimensão em sua consideração sobre a importância da guerra no
aperfeiçoamento das disposições naturais do homem. Talvez Freud tenha
percebido sua natureza reconhecendo a agressividade entre humanos como o
terceiro, e incontrolável, fator de ameaça à vida humana na Terra. Bem,
Monotainda considera que o reino das ideias conserva algumas propriedades
dos seres vivos em geral, como a tendência a se perpetuar e se multiplicar, a
evoluir.
Desta forma a seleção natural foi cancelada para os homens. Doravante
talvez não se trate mais do sonho de Darwin de escolha por variações
favoráveis, mas da realidade de produzi-las. Já àquela época Monod julgava
tecnicamente improvável, particularmente sua incorporação ao patrimônio
genético que resultasse na produção de uma espécie sempre melhorada. A
consequência mais negativa que Monod aponta é a emergência do que
chamou de mal de l´âme decorrente do desafio de decidir o que fazer de si
26

mesmo e de sua relação com o universo. Reconheceu que apartado da


natureza, «L’ancienne alliance est rompue; l’homme sait enfin qu’il est seul
dans l’immensité indifférente de l’Univers, d’où il a émergé par hasard. Non plus
que son destin, son devoir n’est écrit nulle part. A lui de choisir entre le
Royaume et les ténèbres» (p. 195).Sua proposta é que a partir do que chamou
de l´étique de la connaissance os homens possam conduzir sua evolução
calcada no dualismo dos dois reinos a que pertence, prescindindo de uma
explicação total da natureza e de si mesmo sustentada pela velha aliança.
Finalmente define a liberdade humana como responsabilização moral sobre
suas escolhas, enquanto sujeito e criador de seu reino, possibilitada pela
renúncia à ilusão da finalidade natural.
À luz deste argumento, resta investigar o estatuto da faculdade que
Darwin chamou de vontade. Desde já podemos dizer que o caráter utilitáriodas
escolhas humanas, visando talvez a sobrevivência (continuar existindo, fugir da
dor),confere a elas um móbil externo, reduzindo-as à heteronomia. Espero que
o esclarecimento de seu estatuto possa nos revelar sua originalidade e
contribuição no que diz respeito à justificativa de rumos percorridos e escopos
atingidos pela civilização. Isto porque, deste pondo de vista a história humana
pode ser explicada como impulsionada por cada homem no intuitode evitar o
desprazer em meio à variabilidadee sucessão a que está submetido. De modo
que esta motivação utilitáriamotivaria a iniciativa deprodução (racional) de um
plano próprio no interesse comum da humanidade. Conquanto não constitua
um jogo às cegas de interesses particulares.
Por fim, inspirados em Canguilhem, podemos pensar que Darwin e seus
sucessores nos estimulam a pensar a história dos homens a partir de uma
articulação não linear de seus desdobramentos, desvinculada das oposições
entreconservaçãoe desgaste, simples e complexo, cópia e erro, continuidade e
ruptura, progresso e declínio. Isto considerando que uma variação prestigiada
mesmo resultando numa consequência útil não equivale a uma sequência de
fatos para o essencialmente melhor, nem para o pior. Nos convidam ao
abandono de uma estrutura de pensamento que compreende a aceleração da
história (natural e humana) bifurcada entre progresso e declínio, entre plano e
finalidade.
27

Colocadonos termos da utilidade, um fato humano enquanto resultado


de uma escolha pode ser compreendido como declínio se e apenas se se
revelar funesto e vice-versa. De modo que a avaliação de uma aposta só tem
efeito a posteriori. E a história dos homens perde inteiramente sua natureza
universal suportada pela noção de tempo que passa com igual propósito para
todos os povos e lugares. Na verdade, o darwinismocontribui paraparticularizar
o tempo e regionalizar os eventos. De modo que a evolução como forma de
aceleração da natureza e da história não se apoia na categoria de tempo
passado ou futuro nem de intencionalidade. Ao contrário, indica a
predominância da categoria de tempo presente, composto por rupturas e
reconstruções, de contingência tanto quanto de transmissão.
Jacob reconhece que há uma manifestação de que a evolução, uma vez
admitida, apresenta uma direção, particularmente porque já transcorreu cerca
de dois milhões de anos de caminhos percorridos, com muita dificuldade e
resistência justificados pelo acaso, razão pela qual frequentemente é
substituído por progresso ou ainda perfectibilidade. Para ele, trata-se de um
procedimento que envolve desejos, se apoia em antropomorfismos. E neste
ponto Kant emerge com razão, pois seria a própria razão a fornecer as balizas
para a admissão e reconhecimento de uma direção e finalidade da evolução.
Para Jacob, os argumentos em favor do progresso seguem mal definidos,
como adaptação e complexificação.
Reconhece que o que melhor caracteriza a evolução «c´est la tendance
à l´assouplissement dans l´exécution du programme génétique» (p. 329). Seu
sucesso, até aqui, não pode mais do que estimular a crença na capacidade dos
seres vivos de perseverar e reagir, de continuar seguindo uma direção,
pautada não num telos. Para isso a evolução disponibiliza infinitos sentidos. De
modo que a história dos seres vivos deve ser posta como perspectiva e a
sucessão como princípio explicativo.
Sobre isto, Robert Lenoble na obra História da ideia de natureza
(1969), lembra que o mecanismo da natureza que Darwin desenvolveu já se
encontrava em Demócrito e Epicuro, uma noção de que ela não procede de
nenhuma intenção e não de dirige a alguma finalidade, que não quer, nem
prescreve uma ordenação. Enfim, que ela efetivamente não produz algo que
possamos chamar de uma “obra”,pois opera segundo o acaso executando o
28

jogo aleatório dos átomos(clinamen) enquanto declinação em sua trajetória de


choques que ensejam a criação dos organismos vivos. Lenoble continua
esclarecendo que a emergência de órgãos, por exemplo, olhos, boca, orelhas
não ocorreu para atender funções como ver, ouvir e falar, antes que o ver, o
ouvir e o falar resultaram deles, de seus usos.

Sem mais, passemos à investigação que reservei a cada um dos três


autores, na ordem anunciada acima.

Kant, do progressocomo plano da natureza ao entusiasmo pela república


29

No conjunto das obras em que Kant constrói seu ponto de vista sobre a
filosofia da história, apesar de sua forma fragmentária, identificamos o
equivalente de uma quarta crítica, à exemplo das outras três, dedicada à
investigação de um a priori histórico. Nossa suspeita tem ainda apoio na
indagação sobre sua possibilidade que o próprio Kant apresentou em 1798. Na
Dialética de sua Crítica da razão prática(1788), mais uma vez se ocupando da
possibilidade de primazia de uma razão pura prática, Kant considerou,
mediante a fé moral na liberdade do homem, na existência de um Deus criador
todo-poderoso e a imortalidade da alma como postulados da razão prática, sem
os quais a obrigação de aplicar o imperativo categórico que exige a
racionalidade das máximas das ações não pode ser avaliada como racional. A
fé na imortalidade recebeu a finalidade de admissão de uma vida
suprassensível como oportunidade de recompensa, enquanto a crença em
Deus pavimentaria qualquer possibilidade de abismo entre o homem e a
realidade.Por analogia, destacamos os postulados da liberdade da razão, da
existência de uma natureza intencionalmente boa e poderosa e da imortalidade
da espécie, como postulados da razão pura histórica. Igualmente sem os quais
a obrigação de seguirmos o imperativo que orienta as ações históricas não
pode ser avaliada como igualmente racional.

Antes de nos precipitarmos em conjecturas, propomos que o


acompanhamento de tal investigação (da possibilidade de um a priori
histórico)tenhainício por uma consideração mais atenta e detida daobraIdeia
de uma história de um ponto de vista cosmopolita(1784). Nela Kant
considerou que devemos levar em conta que o movimento teleológico
observado na natureza (plantas e animais) deve valer igualmente para os
homens e sua história, de modo quetambém a humanidade progrida
constantemente para o melhor. Lembramos que este ponto de vista já estava
esboçado desde épocas e obras anteriores como História geral da natureza e
teoria do céu(1755), onde combateuas escolas filosóficas gregas nas teses,
relativas à finalidade e à determinação das coisas no mundo, de Demócrito
(460 - 370 a. C.) e Epicuro(341 - 270 a. C.), além de Lucrécio(96 - 55 a. C.).A
relevância deste fato no contexto desta obra demanda a atenção a seus
interlocutores.
30

********

Nesta obra, Kant tratou de combater escolas filosóficas da antiguidade


grega onde o saber sobre a natureza das coisas do mundo consistia no ideal
da ciência que visava a tranquilidade e a realização pessoal, na verdade o bem
como o bom para o indivíduo. Para isto, buscavam identificar, além da própria
natureza das coisas, a posição do homem na natureza e suas possibilidades,
recebendo forte oposição de Kant, como veremos.Epicuro meditou sobre o ser
a partir das teses de Demócrito que conheceu por meio de seu mestre
Nausífanes de Teo. Sua obra, grosso modo, foi composta de uma lógica que
permite discernir o verdadeiro do falso; de uma física, que revela a estrutura da
realidade à qual pertence o homem e, por fim, de uma ética, fundamentada em
ambas.

Por elas postulou que a origem do conhecimento é empírica, sensível,


que oportuniza pela repetição o conceito e o juízo. Operando no produto dos
sentidos reconheceuo movimento e o articulou à evidência racional de que tudo
é constituído de elementos ou átomos, que se movimentam no vazio.
Racionalmente concebidas como unidades eternas, infinitas em número,
indivisíveis, irredutíveis ao nada, imutáveis e móveis por si mesmas, mas
especialmente diferentes quanto ao peso, ao tamanho, à forma, à posição e ao
arranjo. Devido a isto, Epicuro, para quem o universo é corpo (matéria) e
espaço (vazio, vácuo), concebeu estas unidades em movimento de queda
eterno e contínuo, mas em desvio(portanto, não em paralelo entre si e nem
perpendiculares ao planeta) sem motivação ou razão mecânica. Deste modo,
tanto desviam como se chocam em queda verticalsegundo um movimento que
não admite princípio. Antes, movimentam-se por todas as direções (sem
postular um centro do universo)de maneira arbitrária e imponderável13.

13
A natureza deste movimento foi exposta mais tarde porLucrécio no início do Livro II de Da natureza:
“Efetivamente, como erram através do vazio, é fatal que ou sejam os elementos das coisas levados pelo
seu próprio peso ou pelo casual choque dos outros: de fato, quando se encontrem, em direções opostas,
ressaltam de repente e cada um para seu lado; e não há nada que estranhar, porque são duríssimos, de
maciço peso, e nada por detrás lhes levanta obstáculo. E, para que imagines melhor as agitações de todos
os elementos da matéria, lembra-te de que não há no Universo qualquer fundo, e que não há lugar onde
assentem os elementos, porque o espaço é sem fim e sem limites: já mostrei e demonstrei com exato
raciocínio que o espaço imenso se estende de todos os lados e para todas as partes.” Sem dotá-lo de
centro e de bordas que lhe sirva de limites e de restrição na expansão, externou precocemente um tipo de
teoria inflacionária do universo.
31

Recusou assim a necessidade (no plano físico) acolhendo a contingência.


Contingência física que conferiutambém ao homem, em sua dimensão ética,
espontaneidade, arbítrio, autonomia da vontade, liberdade relativa aos rumos
de sua vida, que inclusive permite uma orientação de vidapautada pelo repouso
(ataraxia) e pela insensibilidade (aponia).

Portanto, uma natureza composta deátomos eternos, infinitos em


quantidade e imutáveis na forma, que se organizam do caos sem um plano14
ou uma intenção, tendo no clinamen seu mecanismo constitutivoda ordem,que
conta apenas com a queda espontânea15 dos átomos e o choque entre eles de
acordo com seu peso. Pressuposto obscuro, masnecessário para a introdução
da tese de que a natureza cria com liberdade, tendo na inclinação o que
considerou o movimento primitivo dos átomos, sua causa interna e eficiente, o
que proporciona toda combinação possível de seres finitos a partir de
elementos infinitos, por meio da inclinação e do choque (duas espécies de
movimento -primitivo e secundário, respectivamente).
Lucrécio, se ocupando majoritariamente da física de Epicuro, sustentou
a tese, cara ao evolucionismo do século XIX, de que tudo na natureza tem sua
origem e conformação no jogo eterno da matéria, reservando aos deuses a
atividade contemplativa. Além desta, já sustentava no Livro I de Da natureza
que “nada pode nascer do nada”, assemelhada à tese evolucionista de que “o
semelhante gera o semelhante”. Isto apesar de não compartilhar da tese
complementar desenvolvida pelo evolucionismo moderno, acerca da
especiaçãooucontinui in natura, por exemplo, ao recusar que “tudo pode nascer
de tudo”. Reunindo-as concluiu que “efetivamente os animais não podem ter
caído do céu nem o que é terrestre pode provir das lagoas salgadas” (Livro V).
Antes, reconheceu no mesmo livro que cada ser determinado tem em si

14
Sobre este ponto de vista, quase ao final do Livro II Lucrécio declarou que “não tomes, pois,como
podendo residir nos elementos primordiais e eternos o que vemos flutuar àsuperfície das coisas e nascer
por instantes e subitamente perecer”, como fossem realizações dos primeiros.
15
O reconhecimento da espontaneidade e iniciativa de movimento da matéria (seu impetus) está
associado ao da existência do vazio, que contraria a tese aristotélica do movimento comunicado entre
corpos num mundo sem vácuo, onde tudo esteja repleto de corpos. Lucrécio explicou que “Efetivamente,
são os próprios elementos os primeiros a se moverem por simesmos; vêm depois os corpos cuja
composição é reduzida e que estão, digamosassim, mais perto de forças elementares: movem-se impelidos
pelos choquesinvisíveis destas últimas, e, por seu turno, põem em movimento os que são umpouco
maiores” (Livro II). Tese que expõe sua recusa de qualquer possibilidade de uma causa finalnatural,
particularmente de tudo ter sido criado por um poder benevolente, para uso, gozo e conforto da
humanidade, pelo “favor dos deuses”.
32

possibilidades próprias, além de que tudo o que cresce se mantém na sua


espécie, numa limitação de formas relativa a cada espécie, tudo visando a
conservação da natureza e seus resultados apoiado na tese de que a Terra
contém os germes de cada coisa, tese que guardadas as proporções
sobreviveu sob forma de pangenia até Darwin16.
Do ponto de vista do destino da vida na Terra, reconheceu, nos livros I e
V, que as coisas do mundo estão destinadas a nascer e a perecer num ciclo
(perpétuo) de vida e morte, de arranjo e dissolução das formas no espaço. Isto
porque, como também reconheceu no Livro II, “[...] os movimentos de
destruição não podem vencer para sempre, nem sepultar a vida para a
eternidade, exatamente como os movimentos que produzem e aumentam os
corpos não conseguem assegurar para sempre as suas criações”.
Admitiu assim o que seria o destino do mundo (de fatoum conjunto de
vários mundos criados de vários modos). Embora composto de elementos
eternos, tem sua razão de ser no nascer e morrer, como uma lei da
natureza.De fato um mundo concebido como descontínuo já que sujeito à
criação, à morte e à renovação por substituição incessante. O fim do mundo
decorre, portanto, por ação de uma força secreta que a tudo destrói, por
exemplo, decorrente da luta entre o fogo e a água, o calor e o frio, que produz
exaustão na natureza. De modo que do mesmo choque que ensejou a
emergência das coisas, advém sua dissolução.
Depois de sua origem espontânea, todas as coisas evoluem segundo
uma ordem determinada, sendo que “cada uma surge segundo a sua lei” (Livro
V). Quer dizer que entre a sua origem (embora nem todas as coisas tenham
tido origem ao mesmo tempo) e sua morte tudo se aperfeiçoa, tudo progride
segundo uma legalidade.De modo que háum certo tempo para que cada coisa
atinja seu apogeu, na forma de um limite de crescimento e existência
estabelecida por leis naturais de conservação e identidade de tudo que existe,
impedidas de se renovarem infinitamente(de continuidade), de modo que
tudo o que foi criado varia dentro e até certos limites.
O encontro fortuito de átomos que deu ao mundo sua forma atual
reaparece de certa forma no princípio darwinista devariação e seleção natural.

16
Ver nota 45.
33

Guardam semelhança ainda na medida em que concebem que o elementosjá


teriamrealizado inúmeros ensaios e tentativas (infrutíferas e fracassadas) antes
de alcançar o estágio atual17. Além disso, em acordo com Epicuro, Darwin
admitiu que a ordem derivou do caos18, o sensível do insensível, a vida da não
vida, mas que por fim, não pode voltar ao nada, mas a seus elementos que,
estes sim, podem se transformar infinitamente em um universo que não
conhece bordas que lhe limite.
Nestes termosenfrentou a dificuldade, que permanece até hoje, de
explicação dos fenômenos da vida e da sensibilidade, dada a origem de ambos
a partir de elementos inorgânicos e insensíveis. O ser vivo seria, assim a
consequência de certa modificação do meio ambiente, de uma nova estrutura
alcançada por um certo conjunto de átomos enquanto a sensibilidade nasceria,
portanto, de um certo arranjo, de uma disposição que permite interpenetração,
receptividade. São assim, a vida e a sensibilidade,resultados de conversões e
combinações dos elementos materiais, acrescido da ordem e da legalidade de
seus movimentos posteriores.Trata-se, portanto, da consideração de uma
aleatoriedade que não exclui legalidade, como afirmou Lucrécio no Livro II: “Por
isso o movimento que anima agora os elementos dos corpos é o mesmo que
tiveram em idades remotas e o mesmo que terão no futuro, segundo leis
idênticas; o que teve por hábito nascer nascerá nas mesmas condições; e tudo

17
No Livro V de seu poema Lucrécio voltou a este tema argumentando que “os elementos dos corpos em
número e feitios inumeráveis e batidos peloschoques desde tempos infinitos foram sempre arrastados,
levados pelos seus pesos,a juntar-se de todas as maneiras e a tudo experimentar, tudo o que podia criar-se
pela sua junção; não é, pois, de admirar que tivessem chegado a tais disposições,que tivessem vindo a
movimentos como aqueles pelos quais o Universo,deslocando-se, eternamente se renova”. Para continuar
um pouco adiante: “De fato, não foi por um plano nem em virtude de uma inteligência sagaz queos
elementos das coisas se colocaram por sua ordem; não foram também eles quedispuseram os seus
movimentos: os elementos das coisas, em grande número,abalados por choques de muitas espécies, foram
sempre levados por seus própriospesos e juntaram-se de todas as maneiras e experimentaram todas as
coisas quepodiam criar-se pela sua reunião; é por isso que, tendo vagueado durante um tempoimenso,
experimentando todas as espécies de junção e movimento, finalmenteconstituem aquilo que, depois de
pronto, logo se torna muitas vezes o início dosgrandes objetos naturais, da terra, do mar, do céu e da raça
dos seres vivos”.
18
Lucrécio detalhou-o, no Livro V, nos seguintes termos: “Ainda não se podia ver aqui a roda do Sol
voando pelo alto com sua luzampla, nem os grandes astros do mundo, nem o mar, nem o céu, nem
finalmente aterra e o ar, nem qualquer outra coisa semelhante às nossas. Só havia uma tormentarecente,
uma certa massa formada de elementos de toda espécie, a qual combatiadiscorde, misturando os
intervalos, os caminhos, as ligações, os pesos, os choques,as reuniões e os movimentos, por causa das
formas diferentes e das várias figuras:não podiam, nestas circunstâncias, permanecer juntos nem ter entre
si osconvenientes movimentos.Depois começaram a separar-se as partes deste amontoado, a juntar-se os
iguais aos iguais e a encerrar o mundo, a dividirem-se os membros, a disporem-seas grandes partes, isto é,
a distinguir-se da Terra o alto céu, a ir para um lado o mar,de maneira a ficar, com um líquido, à parte, a
ir para outro o fogo de um céu puro edistinto”.
34

existirá e crescerá e será forte de sua própria força, segundo o que foi dado a
cada um pelas leis da natureza”.Consideração extensiva à vontade humana
cujo espírito dotou de uma “fatalidade interna”.
É importante lembrar que Lucrécio recusou a geraçãodesordenada de
formas até o limite da produção de monstros. Como reconheceu ainda no Livro
II, “Não se deve, porém, aceitar que os elementos se possam juntar de todas
as maneiras. De outro modo, ver-se-ia por toda parte nascerem monstros,
existirem espécies de homens semiferas, brotarem às vezes ramos de um
corpo vivo, unirem-se membros de animais terrestres e marinhos e até
apresentar a natureza, pelas terras de tudo produtoras, quimeras que
exalassem chamas das tétricas goelas”.De fato um tipo de especiação admitido
mais tarde.
Voltando a este tema ainda nos Livros IV e V, admitiu um tipo de
fixismo19 na natureza, considerando que após a emergência das formas, esta
sim aleatória, todos os corpos criados apartir de germes determinados e de
determinada matriz conservam ao crescer, seus caracteres específicos, o que
não pode acontecer sem uma lei específica que a tudo determine. Sua
ausência implicariana própria eliminação da vida, pois é preciso, com efeito,
admitido o fundamento eterno do universo, que permaneça algo de estável
para que não seja tudo reduzido inteiramente ao nada. Também, sendo os
átomos finitos em variedade, não pode deixar de ter limites adiversidade dos
seres que dão formam, o que elimina a possibilidade de que suas combinações
possam ser continuamente arbitrárias e em número infinito.
********
No artigo acima mencionadoKant admitiu20, preservando certo acordo
com o materialismo antigo, uma organização da naturezadada a partir de um
mecanicismo que pressupõe propriedades como matéria (ou força) em

19
Contudo, no Livro V volta a este tema apresentando um ponto de vista mais consistente. Na verdade,
reconheceu que “o tempo modifica a natureza de todo o mundo, um estádio se sucede aoutro, segundo
uma ordem determinada, e nada fica semelhante a si próprio: tudopassa, a tudo a natureza muda e obriga
a transformar-se. Apodrece um corpo e seenfraquece de velhice e logo outro cresce e sai daquilo que se
desprezava. Assim,pois, modifica o tempo a natureza de todo o mundo e passa a terra de um estádio a
outro: acaba por não poder o que já pôde e por ser capaz do que lhe era impossível”.
20
As condições definidas por Kant visaminstaurar as condições para que os fatos humanos possam ser
considerados do ponto de vista de uma história, sem as quais, como diz Thomas, ”a histórianão é
umprogresso, mas uma acumulação inútil” (1992, p. 273) de fatos desconectados, sem sentido e
finalidade, referindo-se à concepção de Marquês de Sade e ao materialismo francés do século XVIII, de
forteinspiraçãoepicurista.
35

movimento sob leis de funcionamento que instituem uma ordem contínua e


perpétua.Nesta época, recusando mais tarde,considerou a natureza como
criação divina a partir da matéria (átomos) que se organiza do caos, mas em
obediência às leis mecânicas de Newton(1643 - 1727), que receberam de Deus
o propósito de dar constituição e orientação à natureza. Isto, segundo
propriedades básicas embutidas na matéria por seu criador (dela e da ordem),
segundo uma intenção e um plano (recusado por Lucrécio), alcançado por um
jogo de forças que produz efeitos. Tudocomo consequência de uma inteligência
superior. De modo que a “revelação” (da natureza) consistiria no conteúdo
descoberto pela ciência, pela obra de Newton. Portanto, trata-se de um
planodivino (de toda forma recusado pelo epicurismo)que introduz uma
finalidade e que conduz a natureza na direção da ordem, da beleza e da
perfeição.

Assim, reunindo mecanicismo, intencionalidade e teleologia (ausente no


materialismo antigo), explicou de uma só vez a organização tanto da matéria
inanimada como dos seres vivos segundo um padrão proposital e planificadode
sua evolução embutido nas leis mecânicas da natureza que, posteriormente
emancipada da ação do criador, se constitui a si mesma, segundo um poder de
constituição infinita, num movimento (jogo de forças) a partir de ordem e
desordem, geração e corrupção, prescindindo da intervenção constante da
recriação dos seres.

Anos mais tarde, distanciando-se ainda mais do epicurismo, dispensou o


recurso a Deus e sua atuação (como criador e mantenedor) para explicar a
beleza, a ordem e a perfectibilidade do mundo. Na obra de 1784 também
recuou do mecanicismo como explicação extensiva à organização biológica,
bem como da história humana. Sem implicar no efeito de uma inteligência
divina, os homensforam concebidos como dotados, por uma doação da
natureza concebida segundo função análoga à de inteligência divina, de
disposições que se desenvolvem segundo uma finalidade.

Em 1784Kantse estendeu em considerações sobre conceitos como


natureza, intencionalidade ou propósito,liberdade, progresso moral e finalidade,
concebendo o homem como objeto da natureza dotado de liberdade para
36

desenvolvertotalmente seus germens e suas predisposições para o progresso.


Dotado, por exemplo, do que chamouinsociável sociabilidade, um dispositivo
de conflito pelo qualultrapassa num movimento involuntário e inexorável(é
verdade que mais tarderedefinido como uma tendência) seu estado de
natureza em direção ao civilizado, deinicial orientação instintual ao racional. De
modo que o homem procede, enquanto espécie, à maneira de todo ser
organizado da natureza21, cumprindo o destino ou finalidade que elaindica
como seu propósito e segundo seus planos.

Nesta obra, a história humana foi ilustrada a partir do conceito de fio


condutor, que orientae ordena o desenvolvimento das disposições naturais do
ser humano culminando no que chamou de cosmopolitismo; uma sociedade de
homens dotados da consciência de que o mundo é a pátria de sua espécie. Um
movimento ascendente possível pela identificação e articulação entre natureza
e história (da humanidade), a partir de uma noção de que a primeira comporta
o conjunto de todos os fenômenos e que os fatos humanoscorrespondem
aseus casos particulares. Estes últimosreconhecidos como manifestação da
liberdade da vontade e o fio condutor histórico como seu roteiro de
desenvolvimento de disposições. Apresentou nove proposições quedescrevem
sequencialmente as etapas dopercursoa ser percorrido pela espécie humana
no exercício da liberdade de sua vontade. Verá o leitor que a noção de
liberdade deste momento destoa fundamentalmente da que foi apresentada
quatro anos mais tarde na Crítica da razão prática22.

21
Nas páginas seguintes mostrarei como ao longo de sua produção filosófica, tendo como ponto de
inflexão, a obra O conflito das faculdades(1798), Kant postulou a possibilidade de autoprodução humana,
deslocando em definitivo o foco da natureza para o homem como sujeito de sua história, o que redefiniu e
reforçou a noção de autonomia, de liberdade, além de flexibilizar a própria expectativa de realização dos
propósitos e finalidades atribuídos à natureza. O que, na verdade, muda as condições de possibilidade e de
alcance do progresso. Portanto, sua própria expectativa, de algum modo afastado do plano natural,
precisou ser reconsiderada e sua justificativa revisada, posto que dependente de uma ação (política)
humana, que pode também não ocorrer. Vale lembrar que esta mudança de foco foi insinuada em 1793 na
obra A religião nos limites da simples razão, onde declarou que não é permitido ao homem se manter
inativo na produção de uma sociedade (segundo valores éticos), ou ainda, que o homem deve proceder
como se tudo dele dependesse para sua consumação.
22
Isto porque, segundo Valério Rohden (1983) em comentário à sua tradução da Crítica da Razão Pura,
na Crítica da Razão Prática(1788) o método e a concepção de Kant foi invertido em relação à
Fundamentação da Metafísica dos Costumes(1785), uma vez que na última a vida moral foi concebida
como uma forma através da qual se toma contato com a liberdade, posto que emancipa o homem. Já na
primeira a ideia de liberdade foi concebida como a própria razão de ser da vida moral, seu fundamento, de
modo que tudo neste campo, como a lei moral, provém dela, é determinante da vida moral e da
37

Em sua abertura, Kant tratou de reconhecer quetudo isto só pode ser


pensadode um ponto de vista metafísico; como se todas as ações humanas
assim como todo acontecimento natural fossemdeterminados por leis naturais
universais.Já do ponto de vista da história, da narrativa histórica, observando
todas estas manifestaçõesos homens podem (esperar) de suas observações,
descobrir nelas um curso regular. Por este meio reconhecendo que os
homensapresentam, sempreenquanto espécie, um devir progressivo e contínuo
do que chamou de suas disposições naturais. De modo que (se)submetidaà
determinação de leis naturaisa espécie humana segue inadvertidamente um fio
condutor, executando lentamenteo propósito da natureza. Argumenta em
defesa desta hipótese que de fato o homem parece, do ponto de vista de seu
poder decisório em muitas situações, não estar submetido “a nenhuma regra
segundo a qual se possa de antemão calcular seu número” (1784, p. 09).

O fato é que, lembra, a despeito de parecer que os homens decidem


sobre seus casamentos e nascimentos de filhos “as estatísticas anuais dos
grandes países demonstram que eles acontecem de acordo com leis naturais
constantes” (1784, p. 10). O mesmo podendo ser estendido às marés, ao
crescimento das plantas, ao clima etc..O caráter hipotético de sua filosofia foi
revestido da impossibilidade de considerarmos que no conjunto das ações
humanas, seus jogos e interesses particulares, possa haver um propósito
próprio racional, restando-nos a possibilidade de tentar descobrir por debaixo
do aparente absurdo das ações humanas, um propósito não seu, mas da
natureza para os homens. De modo queo percursohistórico reservado aos
humanos não foi justificado, como para os demais seres vivos, pela simples
execução de instintos eevidentemente nem mesmo por planos conscientes
concebidos pelos homens. Com a exclusão destas possibilidades, restou
encontrar outro tipo de determinação. Para isto introduziu uma curiosa
articulação entre liberdade e natureza que merece ser cuidadosamente
considerada.

Articulação dependente de um foco dirigido para a espécie humana, à


qual Kant atribuiu a possibilidade de um desenvolvimento continuamente

construção da civilização a seu encargo. Perdendo assim toda “exterioridade” de seu fundamento como a
doação da natureza.
38

progressivo. Isto porque, como observou, no foco restrito dos fenômenos


particulares observáveis o curso se mostra desordenado e caótico. Por sua
vez, a espécie caminha, como disse “segundo um propósito da natureza que
possibilite todavia uma história segundo um determinado plano da natureza
para criaturas que procedem sem um plano próprio” (1784, p. 10). Plano este
que no conjunto os homens executam inadvertidamente, posto que, pelo
menos em princípio, o ignoram (e nem mesmo concordariam prontamente com
ele).

Postulou uma intencionalidade da natureza, um propósito segundo o


qual ela providencia condições aos homens de construírem (sempre
coletivamente) sua própria história. Para compreendê-la,assim como as
condições é necessário acompanhar as nove proposições que compõem a
obra. Começo pelo conjunto das três primeiras que tratam do que chamou de
disposições naturais dos homens. Definiude início que a inteligibilidade acerca
das ações humanas demanda um princípio que regule e determine todas as
disposições naturais admitidas conforme um fim, já que sem ele não se pode
pensar em evolução ou progresso, em história. Sem elea razão humana (e os
fatos perpetrados por ela) executaria um jogo sem finalidade, segundo uma
pura indeterminação e contingência, portanto sem história. Por conta disto, em
sua primeira proposição definiu que “Todas as disposições naturais de uma
criatura estão destinadas a um dia se desenvolverem completamente e
conforme um fim” (1784, p. 11). Trata-se de um princípio necessário que
expressa sua noção de natureza e de homem enquanto espécie infinita,embora
composta de seres racionais finitos.

A segunda proposiçãorelaciona as disposições naturais com o uso da


razão. Considera que seu desenvolvimento e escopo só pode ser
alcançadocompletamenteapenas na espécie, nunca individualmente, por ser
eladotadade uma razão universal em condições de executar os planos da
natureza. Por isto as indefinidas gerações foram reconhecidas como etapas
sucessivas até atingir o “objetivo de seus esforços” (1784, p. 11) que reside ao
menos nas ideias dos homens, sem os quais (esforço e ideia) não conduzirão o
germe da natureza ao seu grau mais elevado. De modo que o desenvolvimento
39

completo23 das disposições deve se dar na espécie, até porque os indivíduos


não possuemtempo de vida suficiente para vê-las desenvolvidas, nem
esclarecimento suficiente para entender e executar todos os propósitos da
natureza de uma vez, por conta do que cada geração colabora continuamente
para o desenvolvimento geral.Esta articulação corrige a possibilidade de que a
razão individualexecute um “jogo infantil” segundo o qual as gerações se
sucederiam numa série aleatória sem apontar para uma finalidade definida no
interesse de todos. Resta anunciar os recursos pelos quais a natureza
comunica seus propósitos aos homens. O que foi feito na terceira proposição.

Disse Kant, “por meio da própria razão” (1784, p. 12), ou seja, “tendo
dado ao homem a razão e a liberdade da vontade que nela se funda, a
natureza forneceu um claro indício de seu propósito quanto à maneira de dotá-
lo” (1784, p. 12). Isto para que, na falta de um instinto suficiente,o homem
possa de si mesmo tudo tirar, para que ultrapasse a ordenação mecânica de
sua existência animal. Para que da primitiva rudeza atinja a máxima destreza e
perfeição do modo de pensar e agir, que alcance um elevado grau de felicidade
e a si mesmo se sinta reconhecido pelo resultado. Tudo isto enquanto espécie
que, ao contrário do indivíduo, deve ser pensada como se fosse infinita e por
isso pode esperar pela realização plena de todas suas disposições naturais e
colher seus frutos no futuro.

Assim, diferentemente de Freud que nunca tematizou a liberdade, senão


para negá-la, e de Darwin que a vinculou a um critério de utilidade e
sobrevivência do indivíduo, Kant concebeu a liberdade da vontadecomo
dotação da natureza fundada na razão, como guia das ações dos homens para
desenvolver e atingir seu fim, a saber, a perfeição da condição material
eespiritualde sua espécie. Tudo isto, tendo como finalidade a construção da
humanidade como sendo sua própria obra, superando, pela revisão dos
argumentos de 1755, a ordem e a causalidade mecânica natural considerada
insuficiente para explicar e dar sentido ao fenômeno da evolução humana.Sem
abdicar da noção de conflito, Kant continuou a postular um jogo de forças, mas

23
Quanto à força deste argumento, que explicita uma expectativa de totalização do progresso, atribuo ao
fato dele estar vinculado a uma dotação da natureza, o que certamente foi relativizado por
reconsiderações que deslocaram da natureza para o próprio homem o compartilhamento da causa
propulsora do progresso.
40

a partir de uma mecânica própria dos seres racionais que dispõem de


liberdade, portanto marcando a distinção entre natureza e civilização, entre
seres determinados por leis físicas e homens dotados de liberdade.

Pois bem, o exercício da vidasegundo uma vontade livre, que em todo


caso consistia neste momento no reconhecimento e submissão aos propósitos
da natureza (redefinida em 1788 na Crítica da razão prática como submissão à
lei moral que determina a liberdade da vontade), deve produzir um resultado
que torna o homem moralmente digno do bem estar e, no limite, da própria
vida. É desta forma que cada geração, quase sempre alheia aos seus
propósitos,executa o propósito da natureza contribuindo com um passo na
direção e no sentido que ela indica,que a razãoreconhece e que as ações
humanas realizam. Natureza, razão e civilização foram assim concebidas sob o
ponto de vista teleológico. Sintetizando, diz Perez, este conjunto de
proposições “leva a uma espécie de passagem do orgânico para o racional e
finalmente moral” (2006, p. 83), na medida em que relaciona natureza, razão e
liberdade da vontade.

Contudo, ainda resta a questão de saber por meio de que dispositivo o


homem finito desenvolve suas disposições naturais e atinge os estágios
superiores de ação moral. Em resposta Kant indicou, na quartaproposição, a
presença de uma oposição, de um antagonismoouincompatibilidade atuando
no interior das disposições humanas, exercendo a função motora do progresso
moral, da identificação entre evolução e progresso. O antagonismo foi
concebido como ummodus operandidas disposições naturais no convívio
social. Consideradas antagônicas inclusiveno que tange a serem tanto
estímulos quanto obstáculos à vida social, como tendência e como oposição.
Nesta proposição Kant articulou desenvolvimento de disposições, uso livre da
razão (através de um progressivo iluminar-se que reiterou na obra que veremos
em seguida) e vida social segundo princípios práticos de convivência, uma vez
que o antagonismo seria “a causa de uma ordem regulada por leis desta
sociedade” (1784, p. 13).

O antagonismo se dá sob forma de conflito entre tendências diversas e


opostas em cada homem e entre os homens em conjunto, num arco que
41

conduz cada indivíduo à reunião na espécie. Reconheceu que cada homem


apresenta uma tendência tanto de associar-se como para separar-se da vida
comunitária, de ser indolente como de ser empreendedor, de ser egoísta como
de apresentar boa índole (uma espécie de generosidade). Sem
necessariamente pressupor um altruísmo, o homem apresenta, ao mesmo
tempo, uma inclinação tanto para associar-se,justificado no reconhecimento
dos benefícios resultantes dos progressos das disposições que experimenta,
como de apartar-se, de atender a seus próprios interesses e buscar proveito
próprio. No limite, trata-se de pensar em homens coexistindo segundo “uma
oposição geral que ameaça constantemente dissolver essa sociedade” (1784,
p. 13) ao mesmo tempo, e talvez por esta mesma ameaça,em que a consolida.

Nestes termos, ao antagonismofoi conferida a condição de móbil da


construção da sociedade civil humana. Por manifestar tanto aderência como
repúdio à vida em sociedade, foi pensado como motivador de sua
regulamentaçãopor intermédio de leis. Neste sentido o antagonismo estimula a
providência de um agenciamento progressivo, interno e externo,de cada
homem sobre si mesmo e entre eles. Isto porque as disposições naturais
expressamentre si uma lógica de oposição e contrariedade, mas nunca uma
relação contraditória, excludente, de supressão de um de seus polos, e nem
mesmo desuperação dialética (sintética)do conflito.

Antes estimulasua gestão ininterrupta e assimo desenvolvimento e


aperfeiçoamento contínuo dos homens. Finalmente, é por meio da insegurança
e do desconforto (que remete à inquietude de Locke) que estimula os homens
a buscar continuamente sua superação. O quejustifica de início que cada
homem atureoutros em nome de tudo o que não pode prescindir e assim
reconhecera importância e o valor da vida em sociedade. E isto, disse Kant, “a
partir de um progressivo iluminar-se” (1784, p. 13). De modo queos argumentos
e ponderaçõesracionais exerçam determinação decisiva em relação às
disposições e seus interesses divergentes.

O antagonismo foi definido como uma insociável sociabilidade e sua


gestãopromovida peloprogressivo uso livre da razão na condução da vontade,
modo pelo qual a espécie humana tira de si sua própria produção, segundo
plano da natureza. Não esquecendo que tudo isto é sempre resultado de sua
42

astúcia que, como disse Kant, “sabe mais o que é melhor para a espécie”
(1784, p. 14).Agiu assim inclusive quando negou ao homem a tutela do instinto
para o alcance imediato de seu objetivo, o que pode ser entendido como
derivado da condição do homem como um ser especial na natureza, a obra
prima da criação, como definiu em 1755.
A esta alturapodemos questionar sedo antagonismo das disposições
pode-se seguramente esperar que além de conduzir a espécie humana a um
progressivo arranjo social, proporcione também a conservação e estabilidade
dos resultados alcançados (o que dependeria de um progresso na formação do
caráter -autonomia, para além do mero aprimoramento do convívio social-
heteronomia).Para responder, proponho avançar na consideração das
consequências que o antagonismo proporciona ao homem.Ele proporciona
uma elevação no grau da percepção da sua própria condição humana, o
reconhecimento do despertar e da efetivação das disposições naturais que só a
vida social possibilita. Proporciona o reconhecimento de que agindo de
maneiraegoísta todo homem permanece obstáculo ao outro, ou seja, que ele
próprio é obstáculo aos demais como estes o são para ele. O antagonismo
proporciona o reconhecimento deuma inconveniência mútua que deve ser
superada de maneira irreversível.
Por fim, as inconveniências da vida social seriamconsideradas como um
mal incontornável se ao mesmo tempo a vida social não fossepercebida como
a oportunidade dedesenvolvimento de todos os talentos e assimda elevação da
rude condição de cada homem isolado às comodidades e recompensas da vida
civilizada. Mas especialmente pelo reconhecimento de que sem a convivência,
disse Kant, os homens “não preencheriam o vazio da criação em vista de seu
fim como natureza racional” (1784, p. 14). Por tudo isto a vida comunitária e
civilizada proporciona a cada homem “uma posição entre companheiros que
ele não atura mas dos quais não pode prescindir” (1784, p.13). Curioso notar
que o antagonismo, á maneira hobbesiana, não produz uma alteração da
natureza humana, da sua própria constituição disposicional, mas sua
gestãodeliberada em vista de um fim a ser alcançado.
Fica assim compreendido que é justamente da oposição ou falta de
coincidência entre os interesses dos indivíduos que nasce a própria condição
civilizadaque experimentam em conjunto, de modo que os talentos e
43

asaptidõesuma vez desenvolvidas corresponderiam a recompensas pelos


interesses individuais contrariados, de modo que os produtos civilizatórios
proporcionam a cada homem a possibilidade de reconhecer-se recompensado
pela renúncia e contrariedade a que se submeteu. Nesta perspectiva, não a
supressão, mas a conquista e regulamentação progressiva de sua
disposiçãoantissocial, a princípio heterônoma, por uma regulamentação de
direito coercitiva, e em seguida autônoma, sob forma de uma comunidade ética
propriamente dita, como definiu em 1793. Este movimentoproporciona a
progressiva harmonia social, o que permite responder positivamente à questão
relativa à possibilidade da construção de uma sociedade estávelsustentada por
meio de leis civis e éticas. Em vista dos incentivos, Kant declarou:

Agradeçamos, pois, a natureza pela intratabilidade, pela vaidade que produz a


inveja competitiva, pelo sempre insatisfeito desejo de ter e também de dominar!
Sem eles todas as excelentes disposições naturais da humanidade
permanecem sem desenvolvimento num sono eterno. O homem quer a
concórdia, mas a natureza sabe mais o que é melhor para a espécie: ela quer a
discórdia. (1784, p. 14)

Contudo, ainda falta enfatizar aúltima etapa do desenvolvimento que o


antagonismo proporciona. Foi apresentada por Kant na quinta e na sexta
proposições, definida comosociedade civil. Apresentada não só como
consequência, mas também como solução para a insociabilidade, como espaço
de consenso, de modo a evitar a coexistência humanasob a condição de uma
“liberdade selvagem”,uma liberdade sem vínculos. De modo que a submissão
inicial a um “estado de coerção”, que caracteriza a união civil entre homens,
também definido como “um artifício imposto” decorre de uma autoimposição.
Justificada justamente porque só ela permite e torna possível ao homem o
desenvolvimento e efetivação, reforçou Kant, “de todas as suas disposições”
(1784, p. 14-15). Sua efetivação implica em uma sociedade “na qual a
liberdade sob leis exteriores encontra-se ligada no mais alto grau a um poder
irresistível, ou seja, uma constituição civil perfeitamente justa” (1784, p. 15),
cuja elaboração consiste na mais elevada tarefa que a natureza incumbiu o
homem. Sua realizaçãocorresponde às condições de êxito de todas as demais
iniciativas da espécie humana em vista da construçãoe manutenção de todas
suas conquistas civilizatórias.
44

Desta forma, a sociedade civil (dotada de uma constituição civil)


seriatanto consequência do antagonismo, assim como solução final para a
insociável sociabilidade na medida em quepossibilita o desenvolvimento
completo das disposições naturais e a consequente garantia das conquistas
civilizatórias. Elaé, portanto um lugar onde as coerções exteriores às más
disposições e inclinações “produzem o melhor efeito” (1784, p. 15) e por isto,
ao contrário do que mais tarde postulou Freud, não éreconhecida como
geradora de mal-estar. Ela é,como visto, tanto produto quanto condição do
desenvolvimento das antagônicas disposições naturais e corresponde à
manifestação da autonomia e da liberdade da vontade. Como Kant definiu mais
tarde em A paz perpétua, ela corresponde ao ato voluntário de consentimento à
regulamentação da sociedade. Ademais, é ela que “permite a máxima
liberdade, e consequentemente, um antagonismo geral de seus membros, e
portanto, a mais precisa determinação e resguardo dos limites desta liberdade
–de modo a poder coexistir com a liberdade dos outros...” (1784, p. 14). A
sociedade civil instaura assim sua nova dimensãode liberdade positiva.

Tendo em vista a sustentação do progresso alcançado, na


sextaproposiçãoKant introduziu umareflexão acerca da necessidade de uma
autoridade que conduza os homens em sociedade civil, um senhor que,
relativamente a cada indivíduo, “quebre sua vontade particular e o obrigue a
obedecer à vontade universalmente válida, de modo que todos possam ser
livres” (1784, p.15-6). Esta necessidade decorre ainda de uma dupla
constatação, a de que mesmo em sociedade e sob leis os homens tendem a
abusar de sua liberdade e o fazem especialmente atribuindo a si próprio a
possibilidade de excetuarem-se da restrição que reconhecem necessária. Por
isto mesmo, esta demandafoi postuladacom cautela, uma vez que este senhor
(ou mesmo uma assembleia)será necessariamente um homem. A dificuldade
reside no fato paradoxal de que, concluiu Kant, “o supremo chefe deve ser
justo por si mesmo e todavia ser um homem” (1784, p. 16).

Com isto tratou justamente de reconhecer a dificuldade e o limite da


tarefa delegada pela natureza, cuja plena execuçãofoi em si reconhecidacomo
limitada, de modo que, continuou, “apenas a aproximação a esta idéia nos é
ordenada pela natureza” (1784, p. 16).É verdade que se temos já aqui um
45

antecedente do progresso assintótico, ele decorre ainda das condições


impostas pela natureza e não da dependência de uma experiência subjetiva. O
fato é que o desafio que a natureza impôs ao homem, segundo sua
intenção,admite apenas realização tardia, além de inúmeras tentativas mal
sucedidas, posto que exigeexperiências históricas e constante aperfeiçoamento
de uma constituição civil, exige paciência para vivenciar as primeiras e
esclarecimento para conceber e acatar a segunda. Tudo realizado, a
humanidade terá dado o primeiro passo para a construção de uma federação
de repúblicas.

A sétima e oitavaproposições trouxeram justamente o tema da


construção desta federação e da elaboração de sua constituição civil. De fato,
Kant reduziu uma tarefa à outra, uma vez que a elaboração de uma
constituição civil cosmopolita ficou dependente do equacionamento das
relações externas entre Estados. Tudo segundo um esquema que transfere a
mesma circunstância vivida entre indivíduos à vivida entre Estados, de modo a
reproduzira vivência dos mesmos antagonismos e das mesmas renúncias, já
que a mesma insociável sociabilidade exerce funções idênticas e visa aos
mesmos fins.

Assim, a natureza teria se servido dos mesmos mecanismos para


promover progressivamente um ambiente de tranquilidade e segurança, por
meio de guerras e devastações, estabelecendo sempre novas relações entre
Estados. Tudo visandoao abandono “do estado sem leis dos selvagens para
entrar numa federação de nações em que todo Estado [...]pudesse esperar sua
segurança e direito [...]desta grande federação de nações de um poder
unificado e da decisão segundo leis de uma vontade unificada” (1784, p. 17).
De modo a poder manter-se a si mesmo como “um estado cosmopolita de
segurança pública entre os Estados” (1784, p. 19). Tudocorrespondendo a um
plano oculto da natureza para incentivar a elaboração de constituições políticas
entre pessoas e o estabelecimento de um Estado, em seguida também entre
Estados. Seu cosmopolitismo como finalidade, enquanto resultado, também foi
cunhado pelo termo quiliasmo, que define um período de redenção e de
restauração de toda desordem ou insociabilidade vivida pelos homens.
46

Visando esta meta, ganhou destaque oque Kant chamou de Aufklärung


e sua relação com a liberdade e autonomia, apresentado naoitavaproposição.
Até porque, conscientes deste projeto os homens não devem esperar
passivamente pelo período adventício. Ao contrário, como disse, “o mais leve
sinal de sua aproximação torna-se muito importante para nós” (1784, p. 20), até
porque, continuou, “podemos, por meio de nossa própria disposição racional,
acelerar o advento de uma era tão feliz para os nossos descendentes” (1784,
p. 20). Na base desta possibilidade está uma condição racional alcançada, o
Iluminismo. Indicou, por fim, que o homem esclarecido, que concebe
perfeitamente a ideia de bem, deve ascender aos tronos ou ao menos exercer
influência sobre seus governantes, especialmente sobre os princípios de
governo. Com isto reconheceu que o progresso humano depende do
antagonismo, mas igualmente de um uso específico e esclarecido da razão.
Além disto, acrescentou que um corpo político desta natureza deve despertar
no conjunto de seus membros “como que um sentimento” (1784, p. 21). Este
retomou mais tarde sob a noção de carátere de entusiasmo,responsáveis
pelavalorização, conquista emanutenção da vida comunitária.

Concluindo as proposições, retomou e esclareceu a função da hipótese


do fio condutor refletindo, não sobre sua veracidade, mas sobre sua utilidade,
já que proporciona a visualização do que, sem ele,a história não seria mais do
que “um agregado sem plano das ações humanas” (1984, p. 22). Reconheceu
que com ele “descobrimosum curso regular de aperfeiçoamento da constituição
política” (1974, p. 23), considerando que cada evento ou período representaria,
sob a condição de signo, a preparação de “um grau mais elevado de
aperfeiçoamento” (1784, p. 23). De modo que a inteligibilidade que
proporciona:

Pode servir, não apenas para o esclarecimento do tão confuso jogo das
coisashumanas (...) mas que abre também uma perspectiva consoladora para o
futuro, na qual a espécie humana será representada num porvir distante em que
ela se elevará finalmente por seu trabalho a um estado no qual todos os germes
que a natureza nela colocou poderão desenvolver-se plenamente e sua
destinação aqui na Terra ser preenchida. (1784, p. 23)

*************

Ainda no mesmo ano, tratando de uma questão intimamente ligada aos


temas que se ocupava, já na abertura do texto Resposta à pergunta: que é
47

esclarecimento?, Kant atribuiu ao próprio homem a responsabilidade pelo


menos por sua menoridade, que corresponde à incapacidade, ou falta de
coragem, de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outros. Ou seja,
retomou a tese de que o homem deve servir-se e tirar de si mesmo tudo o que
precisa em termos de orientação de vida. De modo que a noção de sujeito que
tem como tarefa o protagonismo de sua natureza racional recebeu sua
caracterização final. Declarou que “o homem é o próprio culpado dessa
menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na
falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem direção de outrem”
(1784b, p. 63), o que pode ocorrer devido à prevalência da preguiça e da
covardia enquanto disposições antagônicas ao empenho e à coragem, todas
dotações da natureza. Acrescentou que embora a autonomia seja uma
possibilidade, a dependência exerce seu fascínio pelas comodidades que
proporciona.

Destacou o argumento relativo aos perigos decorrentesdo uso autônomo


da razão. Relativizou-os dizendo que afinal “este perigo na verdade não é tão
grande, pois aprenderiam muito bem a andar finalmente, depois de algumas
quedas” (1784b, p. 64). Isto supondo mais uma vez que a convivência social
seria a oportunidade para a superação da menoridade em direção ao
esclarecimento, parao pleno exercício de uma razão (corajosa) que conduz (na
medida em que toma o fio condutor como baliza) e sustenta pelos resultados o
progresso civilizatório. Mas para isso é necessário liberdade, inclusive
institucional, particularmente a de se fazer uso público da razãoem todas as
questões, uma vez que favorece o esclarecimento entre os homens. Como na
obra anterior, Kant indica finalmente que é pelo uso da razãoem meio e diante
de outros homens, segundo a distinção entre uso privado e público, que
depende todo seu programa de esclarecimento, de progresso e de constituição
da sociedade civil cosmopolita.

Por uso privado da razão, Kant entendeu o realizado por um cidadão no


interior de uma instituição e em nome dela, justamente na condição de seu
membro representante e, nesta circunstância, subordinado em sua hierarquia.
Nela executa uma incumbência e deve, por isso, não raciocinar, mas obedecer
falando em seu nome. No entanto, este mesmo cidadão, enquanto esclarecido
48

em relação aos assuntos institucionais, por meio de suas obras se pronuncia


em seu próprio nome, em sua representação. E é só nesta condição (de
liberdade)que se dirige a um outro tipo de público, não mais aquele restrito às
suas funções institucionais anteriores, mas ao verdadeiro público, ao mundo.
De modo que a própria distinção entre as duas esferas já indica uma etapa,
uma conquista da consciência cosmopolita, do cidadão do mundo. A
importância desta distinção de esferas pública e privada é ainda a de impedir
que a limitação dasegunda faça barreira permanente àprimeira, impedindo o
exercício livre da reflexão e a promoção de uma consciência cosmopolita. Na
verdade a ampliação do horizonte privado para o público, da humanidade
pensada em sua totalidade, é o que impulsiona sua marcha ao progresso e
aperfeiçoamento.

Sua visão progressista e teleológica da marcha histórica dos homens foi


ainda evidenciada quando declarou não viverexatamente numa época
esclarecida, mas de esclarecimento, pois ”falta ainda muito”, reconheceu. De
fato, já recorrendo à noção de signos históricos, retomada outras
vezes,identificouum deles, uma vez que “agora lhes [aos homens] foi aberto o
campo no qual podem lançar-se livremente a trabalhar e tomarem
progressivamente menores os obstáculos ao esclarecimento geral ou à saída
deles, homens, de sua menoridade, da qual são culpados. Considerado sob
este aspecto, esta época é a época do esclarecimento ou o século de
Frederico” (1784b, p. 69-70).

Ao fim Kant deixou explícita a distinção entre o que é da ordem do


desígnio da natureza e o que é da ordem da tarefa humana. Reconheceu que
para o cumprimento desta difícil tarefa a natureza concedeu ao homem “a
tendência e a vocação ao pensamento livre” (1784b, p. 71), para que
progressivamente alcance a possibilidade do agir de acordo com a liberdade e
desta forma conceba princípios convenientes de governo, numa palavra, que
supere a condição natural em direção á dignidade da vida civilizada e vivida
segundo a liberdade da vontade. Esta ultrapassagem, bem como seus
modos,foi por Kant reiteradamente retomadae redefinida em seus termos
essenciais.
49

*************

Nesta tarefa, em circunstância histórica conhecida de seus leitores, Kant


publicou uma resenha intitulada Apreciação da obra de Herder: Ideias em
vista de uma filosofia da história da humanidade(1785). Sabemos por suas
considerações que a noção de progresso concebida por Herder era decorrente
de uma concepção de história como universal,natural e evolutiva. Progresso
dadocomoum produtoda natureza sem distinção (radical) entre instinto e razão.
Ainda segundo Kant, o progresso, assim como a razão,eram para Herder
efeitos de uma força geral orgânica ou, como lembrou Kant, derivado da
unidade da força orgânica formadora da multiplicidade de todas as criaturas
orgânicas.

Kant denunciou a natureza especulativa de sua teoria (lembrando que a


despeito de Herder pretender permanecer fora dela). Denunciou a ausência e a
distância de fatos observáveis que a legitimassem(curiosamente o campo que
Herder pretendeu permanecer). Em síntese, atribuiu a Herder a postulação,
segundo estatuto diverso do seu, de “um fio condutor fisiológico” (1785, p. 145)
totalmente indemonstrável.O fato é que o prestígio concedido por Herder à
natureza e aos seus propósitos fez do progresso histórico seu resultado e da
razão apenas um de seus efeitos24. Deste modo,a razão, do ponto de vista
evolucionista,seria um produto da variação da natureza. Nesta condição, não
seria, como queria Kant, guia e promotor do progresso, incumbida da tarefa de
promovê-lo.

Além disso, sempre segundo Kant, Herder postulou que o homem


teriasido posto em liberdade pela própria naturezana medida em que foi
condicionadoanatomicamente em sua postura ereta. A partir da qual
experimentou os sentimentos de vergonha, desencadeando um processo de
moralização, assim constituído em sua humanidade por ação de uma força
orgânica natural. Evidentemente que o homemoutra coisa não seria do que a
24
Em Resenha do escrito de Moscati: da diferença corpórea essencial entre a estrutura dos animais e a
dos homens, de 1771, Kant já recusava este ponto de vista sustentando que “foi depositado nele (no
homem) um germe [Keim] da razão, através do qual, caso tal se desenvolva, ele é destinado para a
sociedade, e por meio da qual ele assume permanentemente a postura mais apropriada para essa
destinação, a saber, a bípede; através da qual, por um lado, ele leva infinita vantagem sobre os animais,
mas também tem de se resignar com os desconfortos, que a ele acometem pelo fato de ter levantado sua
cabeça tão orgulhosamente acima dos seus antigos companheiros” (1771, p. 3).
50

coroa de toda organização, ápice de um esquema evolutivo e de perfeição


derivado do próprio princípio de organização da natureza. Por isso mesmo,
sem algum mérito pelos resultados. Além disso, enquanto romântico,Herder
evitou o reconhecimento da condição conflituosa própria da natureza. Portanto,
completamente em desacordo com a noção kantiana de natureza e da tarefa
humana de tirar de si tudo que lhe diz respeitosendo merecedor de suas
conquistas. Tarefa para a qual a natureza lhe distinguiu coma razão e o
antagonismo de suas disposições naturais.

Priorizando a geração orgânica como princípio imanente da natureza


Herder concebeu a razão, como Kant definiu, “enquanto mera natureza
espiritual” (1785, p. 144). O que o impediu também de reconhecer que
justamente no princípio pensante do homem reside a possibilidade de
sustentação e de organização da história humana e, em especial, do papel e
responsabilidade do homem nesta construção.

*************

É difícil não reconhecermos o quanto seu debate com Herder foi longo e
profícuo. Seu eco pode ser percebido um ano mais tarde, quando Kant voltou à
tarefa de polemizar com ele na obra Começo conjectural da história
humana(1786). Exatamente por meio de uma obradeclarada já no título
comoficcional, realizou mais uma tentativa de dar conta de uma teoria da
história humana como obra da razão. Nela tomou como objeto de reflexão a
Bíblia, mais precisamente suas páginas iniciais dedicadas ao episódio
deexpulsãodo paraíso protagonizado por Adão e Eva. Nesta obra, mais uma
vez projetou luz sobre o futuro da humanidade conjecturando sobre as etapas
iniciais de sua marcha, considerando a própria vicissitude do casal como
condição de possibilidade do progresso,além de ser seu primeiro signo.De fato
uma alternativa à hipótese de Herder.

Por este meio postulou como teria ocorrido umatransição abrupta, posto
que decorrente de uma queda,uma passagem descontínua da condição de
natureza à de civilização, acompanhada da distinção radical entre instinto e
razão. Evento pelo qual a humanidade teria ultrapassado a rudeza natural em
direção à civilidade e sociabilidade. Deu continuidade, portanto, à construção
51

de uma filosofia que reforça além da rudeza da natureza,a responsabilização


do homem em relação ao seu progresso material e espiritual. Reivindicou a
possibilidade de quea emancipação e a vida civilizadasejam conquistas do
homem no âmbito da natureza e segundo seu propósito, mas como obra sua.

Como reconheceu, tomando o livro sagrado dos cristãos como base,


conjecturou acerca de “uma história do primeiro desenvolvimento da liberdade
com base nas disposições originárias próprias à natureza humana” (1786, p.
13-14) e de sua responsabilização por este passo. Nestes termos, talvez pela
primeira vez, a liberdade humana deixou de ser concebida como uma mera
dotação da natureza, mas derivada de um jogo entre razão e imaginação que
abre progressivamente o campo da escolha. Justificou que uma conjectura
como a que se propôs deve ser construída sob os cuidados da imaginação
desde que acompanhada da razão a fim de conferir-lhe credibilidade. Assim, a
consideração desta obra, particularmente do Gênese e da história do casal que
o protagoniza, foi apresentada com a função de proporcionar o preenchimento
de lacunas impossível por outro meio.Isto porquea postulação de uma causa
naturalpara o advento da racionalidade humana remeteria a uma série causal
infinita.De modo que esta conjectura permitiu a Kant considerar que o casal
primitivoteve de tudo adquirir a partir de si mesmo e por suas próprias mãos,
como por exemplo, a habilidade de pensar, já que por não terem tido genitores,
não puderam herdá-la.De fato, mais uma vez Kant retomou a distinção radical
entre instinto e razão e indicou, aprofundando a descontinuidade entre eles já
postulada, os modos de superação do primeiro que permitiu a atribuição da
tarefa de autoprodução ao homem.

Pois bem, no âmbito do paraíso teria ocorridoa emergência de


paixõescomo a concupiscência e a voluptuosidade, instigadas já numa atitude
em si transgressora, pela cooperação entre as faculdades da razão e da
imaginação. Seu primeiro pecado, na ordem de sentimentos antinaturais,
colocou-os distantes da possibilidade de saciedade que um simples desejo
instintivo comporta. Ora, constituídas fora dos limites dos instintos,sem a tutela
da voz da natureza, as novas paixõescriaram a possibilidade de escolha.
Evidentemente um fato fundamental para o que se seguiu,o advento da
liberdade, uma vez que colocou o casal diante de uma situação inusitada de
52

escolha de conduta visando a satisfação. Escolha mediante uma diversidade


de alternativas abertas pela imaginação. Na verdade, um desafio que os
arremessou progressivamente para fora do jugo do instinto que antes tutelava
suas escolhas. A noção de liberdade, particularmente quanto à sua emergência
e quanto à responsabilidade que traz consigo, ganhou nesta obra, contornos
mais precisos.

Pois bem, ilustrando a marcha da moralização Kant interpretouo recurso


à folha de figueira(diferentemente de Herder que identificou na postura ereta do
caminhar humano a fato causador do tornar-se homem) como “o resultado de
uma manifestação da razão mais importante do que todas as outras por ela
realizadas na primeira etapa de seu desenvolvimento” (1786, p. 19), ou seja,
como uma primeira etapa do desenvolvimento propriamente humano, um
atoinaugural, uma atitude em direção ao controle das paixões e com ele à
mudança de âmbito e domínio,especialmente da sexualidade.

Por meio deste mito Kant explicou o início da prática


dedistanciamentodo instinto. Dadana forma de uma série que conduziu à
justaposição do estímulo puramente sexual-reprodutivo por outro ideale, desta
forma, do apetite exclusivamente animal pelo amor, já na condição
desentimento fundamentalmente humano. Com isto o homem se viu diante da
concupiscência, mas também da decência, das boas maneiras e do respeito
aos demais, verdadeiros fundamentos de toda sociabilidade. Como disse Kant,
o homem esteve por este meiodiante do “primeiro sinal de que era uma criatura
capaz de ser moralmente educada” (1786, p. 20). Desencadeou assim, o gosto
(do belo)pelo próprio homem e pela natureza e, mais tarde, pela sociabilidade.

Por este processo a humanidade, tipificada nas figuras de Adão e Eva,


passou das necessidades imediatas às futuras, a esperar e a se preparar para
o futuro. Passou assim a atentar para a finitude de sua vida como para a
infinitude de sua espécie. Sequência de progressos impulsionadasempre pelo
exercício da razão, cujo ápice foi o de compreender e reconhecer-se como fim
da natureza. Neste estágio, descobriu o privilégio sobre os demais
animais,reconheceu na natureza e em seus produtos meios e instrumentos
colocados à disposição de sua vontade,como se para sua realizaçãotivessem
53

sido disponibilizados. Assim, sua razão conjectura que a própria natureza teria
disponibilizado tais recursos justamente para o sucesso das disposições
humanas e que este seria o propósito da natureza. Em acréscimo, esta
consideração trouxe consigo a indicação de que cada homem se dirija aos
outros homens como iguais e copartícipes nos dons da natureza. Distingua seu
próprio semelhante como fim, fato decisivo para a elaboração e cumprimento
da meta da sociabilidade humana.

Com este último passo, ou seja, munido desta orientação racional de


conduta, o homem pode finalmente abandonar o seio da natureza em direção à
construção de uma sociedade de iguais, mas especialmente em condições de
enfrentar as dificuldades de sua construção e de sua pertença. Disse Kant,
“sem dúvida uma mudança honrosa, mas, ao mesmo tempo, muito perigosa”
(1786, p. 23). Esta noção de ultrapassamento do instinto bem como de um
protagonismo humano nunca mais foi abandonada por Kant.

*************

Voltou a este tema, entre outras ocasiões, na obra A religião nos


limites da simples razão(1793), na qual atendência para o progressofoi
expressasob forma de uma disposição para o bem. Consideramos esta obra
um ponto deinflexãoda passagem da importância dada à determinação e
plano da natureza à responsabilização do homem como agente político de sua
história, seu executor (plenamente anunciado um ano depois em A paz
perpétua), e isto para além do que a natureza intenciona para ele, um agente
concebido agora no domínio prático que aparece para além de agentes como
natureza e providência.Se afasta da noção de uma inteligência superior e de
uma natureza intencional, substituindo-as pela de um homem inteligente que se
organiza pela sua própria razão impulsionado por um sentimento de
entusiasmo.Trata-se da obra do Kant tardio, onde a paz e o bem supremo
político são garantidos pela união entre a liberdade (a doutrina do direito) e a
natureza humana (tendência do gênero humano ao progresso para o melhor),
não mais pelas intenções da natureza nem pela providência.
Preserva a noção de inteligência como forma de justificativa da ordem e
do acontecimento situada no próprio homem, dotado de recursos norteadores
54

que justificam o progresso moral, não mais explicável por uma razão superior,
ou por leis newtonianas, mas especialmente pela interação humana, por seu
agir livre e racional. Desde então, pelo exercício da liberdade a história passa
a ser tudo aquilo que a humanidade faz de si(embora aqui a história ainda
não seja considerada mais do que regional, de grupos, sendo geral da
humanidade, apenas reforçado em 1798), uma progressiva racionalização das
suas ações, sempre na perspectiva de um incremento moral.Partindo do
princípio de que naturalmente o homem não é nem bom nem mal, manifesta ao
mesmo tempopropensão para o mal e disposição para o bem,de modo queo
progresso moral só pode ser alcançávela partir da tensão entre sua propensão
e sua disposição.

Trata-se de uma obraem que Kant tomoucomo objeto de reflexão, mais


uma vez, o texto bíblico tendo em vista sua interpretação moral à luz do que
considerou uma religião natural. Considerou que a religião, enquanto
revelação, pode muito bem ser compreendida como religião racional pura,
admitindo compatibilidade e harmonia entre a razão e a Escritura. Já em sua
primeira parte o pecado original foi concebido como indicador do mal radical
presente em nossa constituição, sob forma de umapropensão, de uma força
natural que nos inclina ao desvio da lei moral. Uma condição que, no entanto,
mediante a liberdade, pode ser vencida por uma sofisticação do raciocínio, que
nos dá condições e coloca ao alcance a obediência à lei moral, dispondo-nos
ao exercício da virtude.Tarefa possível mais uma vez impulsionada
peloantagonismo entre os princípios do bem e do mal nos homens, por cujo
sucesso ou fracasso sãoagora responsáveis.

Lembro que a esta altura a lei moral já havia sido definida como de
conhecimento de cada ser racional, como já indicado na Crítica da razão
prática(1788).Trata-se da concepção de uma razão moralmente legisladora e
por isso criadora de “fatos” morais, aliado ao progressivo esclarecimento que
faz do homem submisso a ela, amplificandosua responsabilidade pela
condução de sua própria história. Tudo a partir de uma noção de razão que tem
objetividade em si mesma, à qual o homem ésuscetível de agir em sua
conformidade, como móbil de ação.
55

Mais uma vez a noção de progresso moralcomo finalidade animou seu


pensamento, com o acréscimo de que sua realização passou a serinestimável.
Refletindo sobre a recomendação religiosa de uma conduta de vida em
conformidade com a santidade, apresentou uma notável mudança de
perspectiva quanto à expectativa de seu alcance, reconhecendoque a
submissão total à lei moral e uma vida pelo menos em conformidade à ela, de
responsabilidade estritamente humana,“não é alcançável em época alguma”
(1793, p. 76), posto que considerou infinita e irredutívela distância entre o bem
(ou a santidade) que almejamose o mal radical de que partimos. Nisto intervém
mais uma vez sua noção de que bem e mal se relacionam na perspectiva do
antagonismo permanente, o que faz de sua concepção de virtude algo muito
menos da ordem de um conjunto de boas ações, massurpreendentemente algo
da ordem “do denodo e valentia”(1793, p. 65), portanto dependente
dedisposição para enfrentar a propensão ao mal. Enfrentamento que demanda
sabedoria, mas, sobretudo coragem.

Reconhece que o homem está pronto para o enfrentamento do vício “só


enquanto a razão sente em si força bastante para o desprezar” (1793, p. 67),
inclusive aos seus constantes incitamentos. Continua, “e não apenas o odiar
como um ser que é necessário recear, e se armar contra ele” (1793, p. 67).
Ora, considerandoque toda ação humana conforme a lei moral é “sempre
deficiente” (1793, p. 77), só resta atribuir-lhe um tipo de progresso ou de
aperfeiçoamento que “continua até ao infinito” (1793, p. 77). Isto a partir de
uma persistência e confiança numa disposição de ânimo que dispõe o homem
incessantemente ao bem.Desta forma, o homem impulsiona a transição do
estado natural ético ao estado ético propriamente dito, no qual o antagonismo
entre os dois princípios, em tese, cessaria.
Reforça a tese de que sua efetivação desembocaria em uma
repúblicauniversalorganizada segundo leis de virtude. Trata-se, portanto de
dois estágios de união entre os homens. De início, sob forma de uma
comunidade civil politica de direito, organizada segundo leis de coerção da
liberdade criadas e obedecidas pelo próprio povo. Em seguida, de uma
comunidade ética, construída sob o reino da liberdade interior dos homens e,
56

portanto, não coercitiva. Ambas pressupõem um estado de natureza (sensível


e instintivo) que as precede e que deve ser superado.
De modo que a menção à república universal foi diretamente associada
à noção de comunidade ética, cuja construção pressupõe liberdade, não
podendo ser produto exclusivo de uma legislação coercitiva. Deste ponto de
vista, uma comunidade em sua dimensão particular não pode ser reconhecida
como ética, mas como uma comunidade que“tende continuamente para a
unanimidade(de princípios) com todos os homens, a fim de erigir um todo ético
absoluto” (1793, p. 112). Trata-se de um compromisso que uma espécie de
seres racionais orientados por uma ideia assume de construir o bem supremo
como bem comunitário, “como república universal segundo leis de virtude”
(1793, p. 113). Assim, é na ideia de república que a expectativa do bem
supremo tem sua morada.

Sua construção constitui “tarefa da pura razão moralmente legisladora”


(1793, p. 116). Por conseguinte, reconheceu Kant, “a ideia sublime de uma
comunidade ética nunca é plenamente alcançável” (1793, p. 116), por tratar-
se de tarefa posta em mãos humanas, igualmente submetida à sua natureza
sensível. Apesar disto, reconheceu Kant, “não é permitido ao homem estar
inativo quanto a este negócio e deixar que a Providência atue” (1793, p. 117),
antes, cabe ao homem proceder “como se tudo dele dependesse” (1793, p.
117). Procedimento que articula máxima moral e sentimento pela lei.De modo
que o progresso moral decorre semprede uma orientação teleológica ideal,
mas também da obediência consentida à lei moral. Por conta do que sua
ocorrência, dada a responsabilização do homem como agente de sua história,
resultou distante de uma determinação natural.Ao contrário, um pouco adiante,
distinguindo entre fé histórica (ou eclesial) e fé religiosa pura, Kant reconheceu
que em favor desta última devemos supor que “a vontade divina é que nós
próprios realizemos a ideia racional de semelhante comunidade” (1793, p.123).

Com isto ficou claro que a realização da história humana e de seu


progresso se torna cada vez mais aproximativa,assintótica em relação a seu
telos, ao mesmo tempo em que a necessidade de uma experiência sensível do
a priori histórico ganhou relevância. Esta condição ficou mais explícita dois
57

anos mais tarde na obra A paz perpétua, onde investigou a possibilidade da


paz (perpétua)ser mais do que uma ideia.

*************

Com subtítulo,Um projeto filosófico, traz os artigos preliminares para a


sua promoção entre os Estados.Nela Kant concebeu o progresso histórico da
civilizaçãoapoiado na ideia decontrato originário,no qual sedeve fundar toda a
legislação jurídica de um povo, a constituiçãorepublicana, mediante leis
externas e coercitivas, de modo que dela derive a paz perpétua.Modo pelo qual
o governo republicano dá início ao caminho para a construção paulatina de
uma federação da paz, uma república mundialque poria fim às guerras para
sempre. Até porque, para Kant a guerra é “apenas um meio necessário e
lamentável num estado de natureza (em que não existe nenhum tribunal que
possa julgar com a força do direito), para afirmar pela força o seu direito” (1795,
p. 8). Tudo pressupondo mais uma vez a tese de queo estado de natureza de
homens que vivem juntos “não é um estado de paz, o qual é antes um estado
de guerra” (1795, p.10).

Deste modo, a superaçãodo estado de natureza ou de guerra (ao menos


de sua ameaça constante) é possívelnum Estado civilque demova os homens
da sensação de ameaça pela simples coexistência, da defesa antecipada por
precaução e, na presença de leis, permiti-la somente em casos de ameaça de
fato.Condição suficiente para que todo homem se disponha e cobre de seu
semelhante a aceitação e o ingresso nos domínios de uma constituição
civil.Esta seria a pré-condição para dar vasão àtendência para a paz
aproximando cada vez mais o gênero humano de uma constituição
cosmopolita. Progresso justificadopelo simples apreço pelo direito que se pode
reconhecer no homem sob forma de “uma disposição moral ainda mais
profunda, se bem que dormente na altura, para se assenhorear do princípio
mau que nele reside (oque não pode negar) e para esperar isto também dos
outros” (1795, p.17).

Uma constituição desta monta, a única que opera a transformação do


súdito em cidadão, da massa um povo (posto que representa sua vontade
geral),deve ser fundada por princípios de liberdadeentendida, de início,
58

comoconsentimento entre membros contratantes que reconhecem


adependência comum em relação à constituição e à sua autoridade e, por fim,
pelo reconhecimento e estabelecimento de igualdade entre os súditos. Nada
disto pode faltar a uma constituição fundada na ideia de contrato originário
ou“constituição republicana” (1795, p. 11).Tal constituição reclama mais do que
nunca a liberdade como seu pressuposto e fundamento, já que concebida
como fato de uma razão legisladora. Portanto ela deve assegurá-la no convívio
entre os homens, o que Kant chamou de liberdade jurídica. Kant a
definiunestes temos: “a minha liberdade exterior (jurídica) deve antes explicar-
se assim: é a faculdade de não obedecer a quaisquer leis externas senão
enquanto lhes pude dar o meu consentimento” (1795, p.13) e assim reforçou a
velha noção de autonomia.De modo que liberdade, reciprocidade e igualdade
compõem as condições de possibilidade do projeto republicano-cosmopolita.

Subjazendo a este cálculo racional, Kant refletiu sobre a formação do


caráter humano, entendido como uma espécie de vinculação coletiva entre os
homens.Isto porque a cada passo reconheceu que a vinculação e o
compromisso do homem com a lei exterior e a lei moral não é obra da
natureza, mas do próprio homem, pois se ela o fizesse ele não seria livre, por
meio do que ele cria um caráter para si como sua obra. Assim, cabe ao homem
construir a paz e viver, aos poucos, uma experiência sensível de sua ideia de
república. Desta forma ocaráterfoi pensado comoderivado de sua disposiçãoà
liberdade (ecoando a disposição para o bem em oposição à propensão para o
mal) e não como uma dotação naturaldo homem.
Elaborada por homens que dispõem de caráter, uma constituição
republicana, por sua pureza de origem, ou ainda, por “ter promanado da pura
fonte do conceito de direito” (1795, p. 12),pode proporcionar a paz perpétua
enquanto resultado. Isto numa perspectiva geral de que há condições para que
o homem dê a si mesmo uma legislação fundada no direito e modelada na
ideia da razão (pura prática) tal como ela prescreve: “ages de tal modo que
possas querer que a tua máxima se torne uma lei universal” (1795, p. 41).

De modo que é a partir da efetivação da união das vontades


universalizadas de todos e do reconhecimento mútuo do dever de executá-
lasque temos a possibilidade de pôr em prática o direito incondicionado e
59

absolutamente imperativo. Seu resultado é a construção de uma federação de


repúblicas não coercitiva, paulatinamente extensiva a todos os Estados. Assim,
é com base no respeito ao direito que podemos “esperar alcançar, embora
lentamente, um estádio em que ela brilhará com firmeza” (1795, p.45). De
modo que a possibilidade de construir uma república que vale para um povo
em particular, deve valer igualmente para todos os Estados, uma república
mundial, particularmente porque, como lembrou Kant, “sem tal fim, toda a
habilidade política é ignorância e injustiça velada” (1795, p.50).Em síntese, se
não há história, sem finalidade, igualmente não há política entre os homens.

Ela seria o telos de um pacto entre povos, uma federação da paz, pondo
termoa todas as guerras, sustentando a paz entre os Estados federados,
portanto distinta de um pacto de paz que teria vigência limitada em
determinada situação litigante.Resulta da própria tendência de todos os
Estados se reunirem numa federação que “englobaria por fim todos os povos
da Terra” (1795, p. 19).Merece destaque a importância que Kant atribuiu à
esfericidade da Terra, ao direito à propriedade comum de sua superfície, ao
livre comércio e à hospitalidade entre as gentes, como elementos
estimuladores da aproximação do gênero humano cada vez mais de uma
sociedade cosmopolita.

No entanto, se uma constituição republicana em ambos níveis já é difícil


de ser estabelecida, mais ainda o é de ser conservada egarantida. Como disse
Kant, “de modo que dependa de uma boa organização do Estado (a qual
efetivamente reside no poder do homem) a orientação de suas forças, a fim de
que umas detenham as outras em seus efeitos destruidores” (1795, p. 29). Ora,
para além de sua própria responsabilidade, o homem conta apenas com
oantagonismo de suas disposições que a natureza o dotou, sem as quais a
razão, ainda que livre,seria impotente na prática para realizar ou mesmo pôr
em marcha o propósito de sua lei moral.

Apenas nestes termos e limites a natureza garante a paz perpétua.


Sobre seu alcance disse Kant, “decerto com uma segurança que não é
60

suficiente para vaticinar25 (teoricamente) o futuro, mas que chega, no entanto,


no propósito prático e transforma num dever o trabalhar em vista deste fim (não
simplesmente quimérico)” (1795, p. 31), especialmente quando livre das
armadilhas (do mau uso) da ilusão transcendental. A paz depende assim da
implantação de um programa político, não resultando de uma ação direta da
natureza, de modo que depende da autonomia do homem que se efetiva como
ação política, depende da articulação entre a ideia da razão com a orientação
de sua vontade no balizamento de suas disposições antagônicas, desuaaçãono
sentido de, diferentemente de Hobbes que convoca um terceiro elemento para
realizar a tarefa, esculpir (laminar) juntos seu próprio caráter, sem o qual não
há história.

*************

Dois anos mais tarde,na obra Doutrina do direito(1797), em suas


últimas páginas, retomou algumas das teses já expostas e aprofundou outras.
Reforçoua natureza ético-política, e não filantrópica, das relações humanas.
Referiu a uma comunidade pacífica perpétua fundamentada numa ideia
racional, portanto num princípio de direito.Retomou a ilustração do domicílio
comum que os homens compartilham por força da esfericidade da terra que
dispõe (a despeito dos mares e desertos que os separam) os homens a uma
reciprocidade de açãoe a um comércio recíproco sob os auspícios da
hospitalidade. De modo que aregulamentação destas relações promova “a
união possível de todos os povos, com relação a certas leis universais de seu
comércio possível, (que) pode ser chamado de direito cosmopolítico” (1797, p.
202).

A realização deste fim foi concebida como dependente de uma


obrigação (instruída pela razão moralmente prática) de agir segundo a ideia
deste fim, e isto apesar de toda dificuldade em alcançá-lo. De modo que sua
observância não constitui por si só garantia derealização da paz perpétua. No
entanto, é dever do homemproceder como se o suposto devesse se realizar.

25
Prever com absoluta certeza, dar como concluído um fato que irá realmente se concretizar.
61

Neste ponto de sua argumentação Kant expõe o limite de suas expectativasem


relação ao progresso moral ao reconhecer “que (ele) talvez não se
realizará” (1797, p. 205). Evidentemente estamos agora diante do
reconhecimento mais realista da tendência para o progresso e, portanto do
reconhecimento dos desafios e obstáculos impostos ao homem como agente
da história.

Na obra seguinte, a aproximação contínua do soberano bem


políticopassou a depender em definitivo de um fator propulsor que não se
encontra nos círculos de operação da razão.

*************

O percurso reflexivo de Kantsofreu uma guinada significativa em 1798


na obra O conflito das faculdades, ondereapresentoua noção de
entusiasmo(já apresentadaem 1790 na Crítica da faculdade de julgar)articulada
à de signo histórico, classificados como rememorativo, demonstrativo e
prognóstico. Um acontecimento como, por exemplo, a Revolução francesa foi
considerada como um signo, desde que relacionado com seus espectadores
que lhe devotam simpatia (enquanto sentimento) e por ele tornam-se agente da
história.

Em suma, reconsiderou a ação humana a partir da concepção de


homem entusiasmado por um signo que o impulsiona a fazer a história por si
mesmo. De modo que um homem nutrido do signo o alimenta em contrapartida
agindo como sujeito produtor dos eventos da história. A simpatia ou
entusiasmo, que não é neste caso racional, é assim um sentimento que
mobiliza os indivíduos a agirem (livremente por autodeterminação) pelo dever,
daí sua importância civilizatória.Deste modo, mais uma vez depositou na razão
a tarefa de nos situar no horizonte da universalidade e do domínio público
impulsionado pela coragem de pensar por si.

Concebeu e atribuiu, mais especificamente a partir da segunda seção da


obra,uma tarefa política especial para o filósofo, a de esclarecer se a
humanidade está de fato em constante progresso para melhor(portanto, nem
em regressão-terrorismo moral e nem em detença -abderitismo). Na verdade
62

colocou a questão de saber algo sobre o futuro moral da humanidade, o que


demanda investigar as condições segundo as quais se pode saber sobre isto. A
resposta só pode ser alcançada por meio de uma “descrição, possível a priori,
dos eventos que então hão-de acontecer” (1798, p. 98), portanto por meio de
uma narrativa histórica divinatória do futuro. Não se trata de uma adivinhação
sustentada em uma sensibilidade privilegiada,antes, decorre da própria
possibilidade de uma história a priori. Ela é possível “se o próprio adivinho faz e
organiza os eventos que previamente anuncia” (1798, p. 98), ou seja, se o
adivinho anuncia e pratica ações segundo a ideia que reconhece em sua
própria razão.Assim confere ao filósofo, homem esclarecido (e não orientado
por deveres, mas por tendências, impostos pela natureza ou pela providência)
a tarefa de condutor da humanidade para um futuro ético melhor, segundo um
progresso real alcançado pelo mesmo mecanismo do conflito, apoiado no que
nomeou como eudemonismo que tem a felicidade como resultado.

O reconhecimento do progresso desta vez se deu por indícios ou sinais


históricos da tendência para o progresso, como a Revolução francesa, um tipo
de acontecimento exemplar na experiência da humanidade que indica a
aptidão humana para o progresso. Por este signo pode-se em seguida olhar a
história no seu todo, reconhecendo a articulação entre passado, presente e
futuro.Fato que autoriza ao filósofo um tipo de predição acerca do futuro das
sociedades humanas, de modo a fazer da ideia de repúblicaalgo mais do que
uma quimera.De modo que um Estado, seja qual for sua forma, seja concebido
em conformidade e graças a puros conceitos racionais. Um tipo de ideal
platônico, que “não é uma quimera vazia, mas a norma eterna para toda
constituição civil em geral, e afasta toda a guerra” (1798, p. 111). O que indica
que a moralidade não implica apenas em uma aplicação imediata de regras
morais dadas, mas o resultado de um deixar-se entusiasmadamente guiar por
elas e com elas tecer sua história.

Ora, é já no interior deste modo de pensar que Kant reconheceu o


caráter moral do gênero humano, que “não só permite esperar a progressão
para o melhor, mas até constitui já tal progressão” (1798, p. 104), ele é o
próprio poder pelo qual se pode atingir tal finalidade. Um modo especial de
participação foi reconhecido na Revolução francesa, pelo ânimo de todos seus
63

espectadores, pelo desejo de participação, pela empolgação vivida por muitos,


que outra causa não explicita do que “uma disposição moral no gênero
humano” (1798, p. 105).Adverte que sua vinculação com o caráter (o vínculo de
minha vontade com as leis, sejam as da razão ou as empíricas) reside no fato
de que “o verdadeiro entusiasmo refere-se sempre apenas ao ideal, decerto ao
puramente moral, por exemplo o conceito de direito, e não pode enxertar-se no
interesse próprio” (1798, p. 106), sob pena de se apresentar como fanatismo.
Neste sentido, foi concebido como a sensificação da lei moral.

. Trata-se assim de um sentimento de ordem superior que revela uma


disposição para melhor que, devido à sua magnitude, jamais cessará de
produzir efeitos sobre o espírito dos homens de todas as partes do mundo.
Ora, este ponto de vistareafirma “a perspectiva para um tempo interminável”
(1798, p. 108). Tempo em que ocorrerá sempre um acréscimo de ações
humanas conforme ao dever, conforme a causa moral que exprime a elevada
condição moral do gênero humano. Novas ações entre as gentes de um povo e
entre os povos em suas relações externas, sempre perseguindo um fim, mas
segundo um movimento assintótico, segundo uma tendência à comunidade
cosmopolita e esta enquanto fim possível que o próprio homem (e não a
natureza) se coloca e, por isso, o produz.

*************

Parafinalizar,visitaremos a obraAntropologia de um ponto de vista


pragmático(1797) (que teve seu conteúdo elaborado por Kant desde 1772,
razão pela qual coteja toda a produção teórica deste período).Ela se justifica
tendo em vista se tratar da produção teórica em que Kant buscou identificar,
mais do que signos do progresso histórico, as manifestações das ideias da
razão, a aplicação dos conceitos puros práticos da razão nas experiências, nas
coisas práticas do mundo. Articulando as possibilidades de conhecer e agir, em
vista do progresso da humanidade, no uso da razão e seus resultados práticos-
políticos. Atingindo ou produzindo uma forma de humanidade realizada na
sociedade mundial civil enquanto princípio regulativo dos fins humanos. Trata-
se do ápice em que o homem, a partir de si e em consideração de si
64

mesmo,promove seu aprimoramento e faz uso da natureza servindo assim a si


mesmo enquanto fim.

Por fim, uma vez apresentadas as questões norteadoras desta pesquisa


com base no pensamento de Kant, procederei da mesma maneira, como
anunciado acima, relativamente aFreud.
65

Freud e o Princípio do prazer como regulador de uma civilização em


declínio (ou, entre o materialismo entrópico26 e o evolucionismo
organizacional)

«En fait, depuis la naissance de la


thermodynamique, la valeur
opératoire du concept de vie n´a
fait que se diluer et son pouvoir
d´abstraction que décliner.» (F.
Jacob, 1970, p. 321)

Para dar início a uma interpretação acerca da teoria de Freud da história


da humanidade, do ponto de vista declinista, propomos estrategicamente partir
de argumentos contrários relativos à criação de condições de possibilidade de
expectativa de progresso e elevação da condição humana. Ela pode ser
identificada, por exemplo, quando Freud compara a fragilidade do homem
diante da natureza ao seu protótipo infantil, quanto à mesma fragilidade diante
dos pais. Condição pela qual, se por um lado uma criança teme o poder de um
pai, que pode aniquilá-lo a qualquer momento, por outro lado confia nele, que
oferece proteção. Nesse sentido Freud relacionou as forças da natureza ao
caráter de um pai.

O desamparo do homem, porém, permanece e, junto com ele, seu anseio pelo
pai e pelos deuses. Estes mantêm sua tríplice missão: exorcizar os terrores da
natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a
que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações
que uma vida civilizada em comum lhes impôs. (1927/1996, p. 26)

Desta forma, o homem depositou nos deuses a confiança que uma


criança deposita num pai. E não eram justamente os deuses os senhores da
natureza? Assim evolui a relação do homem com a natureza, dos deuses com
ela e dele com os deuses.

Indubitavelmente, os deuses eram os senhores da natureza; haviam-na


disposto para ser como era e agora podiam deixá-la por sua própria conta.
Apenas ocasionalmente, no que se conhece como milagres, intervinham eles
em seu curso, como para tornar claro que não haviam abandonado nada de
sua esfera original de poder. Com referência à distribuição dos destinos,

26
En bref, la mort est la cohérence philosophique du libertin.Sur ce point, dansDesejo e prazer na idade
moderna (1995), L. R. Monzani affirmequ’il y a, “em Sade, desde o início até o fim de sua obra, uma tese
reguladora: a de que o prazer não tem outra orientação teleológica que a consumação de si mesmo” (p.
81)26. Ainsi, pour Sade, commedit Thomas, “a história não é progresso mas uma acumulação inútil”
(1992, p. 273).
66

persistia a desagradável suspeita de que a perplexidade e o desamparo da


raça humana não podiam ser remediados. Era aqui que os deuses se
mostravam aptos a falhar. Se eles próprios haviam criado o Destino, então
seus desígnios deviam ser considerados inescrutáveis. Alvoreceu a noção, no
povo mais bem dotado da Antiguidade, de que Moira [O Destino] alçava-se
acima dos deuses e que mesmos estes tinham os seus próprios destinos. E
quanto mais autônoma a natureza se tornava e quanto mais os deuses se
retiravam dela, com mais seriedade todas as expectativas se dirigiram para a
terceira função deles, ou seja, mais a moralidade tornou-se o seu verdadeiro
domínio. Ficou sendo então tarefa dos deuses nivelar os defeitos e os males da
civilização, assistir os sofrimentos que os homens infligem um aos outros em
sua vida em conjunto e vigiar o cumprimento dos preceitos da civilização, a que
os homens obedecem de um modo tão imperfeito. Esses próprios preceitos
foram creditados com uma origem divina; foram elevados além da sociedade
humana e estendidos à natureza e ao universo. (1927/1996, p.27)

Cabe assim ao homem tornar o seu desamparo tolerável, desamparo de


cada indivíduo que é compartilhado a partir de um material comum como as
necessidades e sentimentos da sua própria infância. Assim Freud concebeu a
gênese, a emergência de um pressuposto ideal, à maneira de uma ideia
orientadora e finalista, de que tudo o que acontece em seu mundo está ligado a
um propósito maior, a um sentido que só será completado no futuro e que está
ligado ao aperfeiçoamento da natureza do homem e a uma inteligência
superior. Uma possibilidade que pode representar a salvação da humanidade
de seu destino (ao inorgânico), enquanto espécie.
Neste propósito, nem mesmo a morte é considerada o fim, mas o
começo de uma segunda existência que está no caminho de sua evolução. E
numa ampliação desta ideia, interpretamos o mundo como caminhando para
uma harmonia, onde todos os sofrimentos estariam destinados à supressão,
conquanto a vida após a morte comportaria uma bondade infinita.
“Fundamentalmente, isso constituía um retorno aos primórdios históricos da
ideia de Deus” (1927/1996, p. 28), reconheceu Freud.
*************
Voltando aos meus propósitos acima anunciado,parto da consideração
clássica de Freud de que a história humana não é a de seres que coexistem
harmoniosamente em vista de adaptação e de progresso material e moral27.

27
Segundo Ritvo, Freud “nunca foi suficientemente otimista para acreditar no progresso inevitável. O
melhor que ele podia esperar era a reafirmação de Eros na eterna luta com Tanatos” (1990, p. 251). Em
acréscimo, pensamos que, não fosse a influência de Haeckel sobre a formação científica de Freud, ele
poderia ter desenvolvido outra concepção sobre os destinos da pulsão considerando, a aleatoriedade
radical das variações ; o prestígio da noção de individuo em lugar de espécie; da diferença em lugar da
cópia; do salto na natureza em lugar de continuidade e, por fim, de que o semelhante produz semelhante
67

Antes, considero-a a partir do ponto de vista pulsional, especificamente o


econômico, como dotada de uma orientaçãosegundo os destinos (naturalmente
predeterminado) das pulsões. Destino do qual o homem não foi pensado como
livre para escapar. Conciliando as teses evolucionistas da descendência com
variação e da hereditariedade de caracteres adquiridos, Freud concedeu à
pulsão de morte em sua natureza filogenética que, impregnada no momento
mesmo de seu nascedouro,acompanha e fundamentaum propósito para a
espécie humana e cada um de seus membros.

Uma dificuldade no caminho desta interpretação é a de que Freud


recebeu e conviveu em sua formação acadêmica (particularmente em seus
estágios e disciplinas de física e fisiologia) como princípio dehomeostase
estendido tanto ao sistema nervos quanto às representações psíquicas. Apesar
disso, em sua carreira de teórico e de clínico, assim como de crítico da
civilização, mostrou que o universo das representações assim como da
sociedade não tem como meta seu equilíbrio interno, antes crescem em
desordem.Para justificar recorreu ao modelo entrópico de explicação dos
destinos das forças físicas e inclusive da vida, na perspectiva de reparação da
perturbação da quietude inicial.

Por influência das teses de Darwin, recebidas de seu professor Carl


Claus (1835 - 1899) (diretor do Instituto de Zoologia e Anatomia Comparada
que Freud frequentou por quatro anos na Universidade de Viena) e
popularizadas na Alemanha pelo biólogoErnst Haeckel (1834 - 1919),
compartilhouda noção de recapitulação, de unidade da vida(e especiação)
originada no mundo inorgânico, uma base físico-química como explicação da
origem da vida e de sua evolução e, portanto, sujeita às mesmas leis do mundo
inorgânico. Uma perspectiva que insere todo organismo como parte do
universo físico e sujeito a leis comuns. A ponto de que a noção de pulsão,
desua origem e de sua busca de objeto de satisfação, aparece como um
propósito fatalista regulamentado pela segunda lei da termodinâmica do qual
pode se esquivar prolongando a vida, tornando-a constante, sugerindo à

em lugar do diferente. Talvez Freud, sob influência de um evolucionismo mais afeito à letra de Darwin e
ao espírito de Darwin, fosse menos finalista (em seu caso fatalista).
68

primeira vista uma tendênciade auto-regulamentação, equilíbrio e estabilidade


de suas condições internas em suas relações com o ambiente externo.

Para compreendermos a construção teórica de Freud, consideremos


queela se deu como resultado de uma grande interdisciplinaridade28 científica,
dada as abundantes e díspares influências que recebeu em ambientes que
frequentou. E isto, a ponto de que devemos reconhecer que não se pode
postular com segurança nenhuma fonte exclusiva para as ideias de Freud. Se
isto é verdade, há que se perguntar pela originalidade e coerência de seu
produto final, seja pelos pressupostos adotados e construídos, seja pela
evolução de sua metodologia de investigação e de tratamento das neuroses,
seja finalmente pelo corpus teórico resultante, do qual espero obter
esclarecimentos acerca do que chamei acima sua filosofia da história.Para isto
investigarei de início parte das influências teóricas que Freud recebeu visando
reconhecer a especificidade dos resultados que a partir delas produziu29.

Do vasto campo e do sinuoso movimento em que a psicanálise de Freud


foi forjada, numa espécie de breve reconstrução de seu período inicial,
elencarei rapidamente algumas influências. Pois bem, seus biógrafos remetem
frequentemente ao fato de que sua formação acadêmica em medicina teve
como complemento aulas de filosofia no período de 1874 a 1876, na condição
de aluno de Franz Brentano(1838-1917). Este, enquanto pensador crítico do
idealismo alemão e por este motivo partícipe do vasto campo nomeado
positivismo (aqui considerado no sentido geral de uma ciência livre da
metafísica), postulou a psicologia como ciência natural empírica que se
ocuparia da consciência, vale dizer, dos fenômenos mentais enquanto

28
Dada a falta de consenso quanto ao significado deste conceito, tomo a iniciativa de defini-la como um
“diálogo cooperativo” entre diversas áreas ou disciplinas na produção de conceitos e na resolução de
problemas.
29
Sobre as influências recebidas por Freud e suas consequências na formulação (metapsicológica) de sua
teoria, vale antecipar que sua passagem no período de sua formação acadêmica, pelos laboratórios de Carl
Claus, de Brücke e de Meynert resultaram, como destacou Anna Freud, que “o pensamento psicanalítico,
em termos clássicos, implica a exigência específica de que todo fato clínico fosse abordado a partir de
quatro aspectos: geneticamente, quanto a sua origem; dinamicamente, quanto à interatuação das forças de
que é o resultado; economicamente, no tocante a sua carga de energia; topograficamente (mais tarde,
estruturalmente), no que se refere a sua localização no aparelho mental” (apud Ritvo, 1990, p. 248). De
modo que podemos reconhecer como heurístico, seu ponto de vista genético pela origem e descendência
comum, além do dinâmico e econômico pela noção de força empregada.
69

representações dotadas de intencionalidade, numa perspectiva (que Freud


superou mais tarde) em que o mental e a consciência se equivalem.

Segundo sua tese da intencionalidade, os fenômenos mentais seriam


representações que têm sua realidade não no conteúdo representado, mas no
ato de representar as percepções internas e devem por isto ser abordados na
condição de processo mental. Certamente ensejando o que mais tarde Freud
chamou de realidade psíquica, sua realidade estava limitada à atividade de
representar e ao objeto intencional ao qual está dirigido, o que distingue sua
abordagem do fenômeno mental como psicologia científica.

Certamente o que despertou grande atenção e interesse de Freud, foi a


tese de que no fenômeno mental haveria uma direção, uma intenção da mente
para um determinado objeto do qual não se pode colocar em dúvida sua
existência. Por exemplo, do ponto de vista de uma percepção auditiva
qualquer, pode-se pôr em dúvida a existência exterior de sua fonte, mas não de
tê-la ouvido. De modo que toda representação é considerada real
independentemente do julgamento que recebe, uma vez que a representação
tem sua realidade como objeto na mente e existe independente de algo exterior
que lhe corresponda. Esta tese repousava na concepção de que toda
percepção sensorial externa está imersa no campo da ilusão e do engano sem
possibilidade de superação. Justamente o que Brentano procurou evitar em
relação ao objeto da psicologia. De modo que sua condição de realidade
(mental) indicava, em oposição àquela, a possibilidade de uma ciência segura.
Por fim, de sua psicologia empírica, bem como de suas aulas de história da
filosofia, Freud tomou contato com a íntima articulação da especulação
intelectual com a prática da observação (embora não de experimentação),
como diz Assoun, com a acoplagem da “exigência especulativa e a fundação
de uma ciência empírica” (1978, p. 14).

Adiante, no estágio de seis anos no Instituto de Fisiologia de Ernst


Brücke (1819-1892), Freud consolidou (entre 1876 e 1882) a prática de
pesquisa científica de cunho anatômica, orientada por uma extensão da física
em direção à fisiologia. No bojo das técnicas histológicas desenvolvidas e da
posterior troca pelo instituto de anatomia cerebral de Meynert e mais tarde pelo
70

de Charcot, dirigindo o foco para diferentes terapias, o fato curioso foi a


aproximação com uma física do corpo que proporcionou o convívio com o
princípio termodinâmico de conservação da energia e a consequente
postulação de que todo sistema isolado sustenta de maneira constante uma
determinada soma de energia. Tese, cuja retomada e atualização foi atribuída
Julius Robert von Mayer (1814 - 1878), o primeiro cientista a desenvolver a lei
da conservação de energia, uma das descobertas mais significantes na história
da Física, em 1842, que permitiu a postulação de um princípio energético
único. Influência que se estendeu ainda a Helmholtz (1821 - 1894) e antes
dele aJ. F. Herbart(1776 - 1841).

ComoHerbart (vale lembrar que ele foi o sucessor de Kant na


Universidade de Konigsberg e seu continuador na implementação de seu
projeto epistemológico para as ciências factuais)Freud participou de um
movimento em direção a uma psicologia científica com acento dinâmico e
econômico (que mais tarde incorporaram sua metapsicologia). Isto equivale à
consideração das representações enquanto fatos psicológicos eenquanto
conflito mecânico-representacional. De modo que tais fatos, tomadosna
dimensão afeto/representação, ganharam a condição de unidade de base da
investigação psíquica. Estabelecendo assim um fundamento compreensível em
termos de representação e de força, incluído nisto força suscetível de medida,
de quantificação, plenamente de acordo com uma exigência da psicologia
científica do século XIX (cujo exemplo notável foi Wundt em seu laboratório de
psicologia em Leipzig) munida de pretensões de ciência natural que Freud
compartilhou amplamente.

Assim, para Herbart, adverte Assoun, “a alma é representada como uma


substância simples que tende a autoconservar-se: cada representação constitui
um ato particular pelo qual a alma se conserva” (1983, p. 151).De modo que
uma oposição entre elas se manifesta como força, como impulso e movimento
tanto de afastamento como de associação. Isto implica que a mente outra coisa
não seria do que um composto de cadeias de representações, equipada com
um ego agenciador. A recepção desta tese por Freud não se deu por meio de
uma relação pessoal, informa Assoun, mas supostamente pelo ensino de
Brentano. Ela pode ser reconhecida na própria concepção representacional-
71

fisicalista do psiquismo de Freud, sem que por isto tenha adotado, pelo menos
de maneira intocada e duradoura, a tese da conservação de energia, bem
como daauto-conservação da alma.

De Du Bois-Reymond(1818-1896), não permaneceu alheio ao seu


agnosticismo (Ignorabimus), particularmente quanto ao reconhecimento dos
limites do conhecimento. Entendo neste contexto a frequente recorrência ao
critério da utilidade sustentado por Freud para escolha como para descarte de
hipóteses, o que explicita o caráter sempre aproximativo em relação a uma
realidade incognoscível que suas construções metapsicológicas apresentam.

Além desta tese, que denunciava e identificava os limites de toda


investigação, foi do papel e da importância dada ao conceito de força no século
XX que Freud se alimentou. Como G. T. Fechner(1801-1887), Freud adotou
uma clara opção pelo monismo de Haeckel30. Este, aliado à concepção
quantitativista do psiquismo, estabeleceu uma relação direta entre excitações e
sensações, entre um dado físico e outro psíquico, sustentando uma psicofísica
às voltas com a exigência de medição dos fenômenos psíquicos,
particularmente em seus deslocamentos quantitativos geradores de
estabilidade e de instabilidade, embora sempre guiados por uma tendência
primária à estabilidade.

De fato, a conversão dos fenômenos físico-quantitativos em psíquico-


qualitativos do Projeto de uma psicologia, onde Freud postulou a “tendência”
inicial dos neurônios em desembaraçar-se de toda estimulação, não deixa
dúvida quanto à inspiração fechneriana. Pelo menos por conta de que por este
meio a relação prazer/desprazer, orientada por um princípio regulador do
aparelho psíquico, pode ser economicamente quantificada. De modo que seus
princípios fundamentais, entre eles o de inércia e o de constância, podem ser
em largo aspecto remontados a Fechner. É verdade que ambos, além de
Meynert (em sua obra Psychiatrie), se apoiaram inicialmente no terceiro

30
De fato uma adesão aos postulados monistas de Haeckel, quem, rejeitando a distinção (postulada por
Dilthey e Richert) entre corpo e alma, entre orgânico e inorgânico e entre natureza e espírito, sustentou
que a ciência do espírito é apenas uma parte da ciência da natureza, já que para ele o que é da ordem do
humano não constitui uma matéria específica ou distinta, ou ainda, corpo e alma constituem objetos de
apenas uma ciência e nunca de dois saberes heterogêneos.
72

princípio da expressão das emoções de Darwin, que sustentava a ideia do


transbordamento de excitação excessiva.

A despeito disto, já estava presente no Projeto uma condição fisiológica


do sistema nervoso pela qual trafega energia de modo livre tendendo ao
escoamento pela descarga total de sua soma de excitação, caso não fosse
bloqueada. Assim, fez do princípio de inercia derivar o princípio de constância.
No entanto, este segundo orientaria seu funcionamento apenas
secundariamente, um modo alternativo ao original. De forma que ao final sua
concepção de “constância” pouco ou mal se ajusta à de “estabilidade” de
Fechner.

Foi justamente a partir desta noção de uma constância às voltas com


uma tendência primordial de escoamento total de toda excitação, que a noção
de homeostase, cara a parte considerável dos cientistas da época, foi
“reinterpretada” por Freud de modo a distinguir constância de conservação a
ponto de torná-las irredutíveis. Lembro o quanto a noção de homeostase está
relacionada a uma permeabilidade que possibilita trocas de substâncias com o
meio realizadas pelas células (estas produtoras de energia) que, por este
procedimento evitam a interrupção de suas funções, de seu declínio e
depreciação alcançando sua conservação, o que explicita um verdadeiro
princípio de vida em atuação. Todos sabem o quanto Freud se afastou desta
hipótese.

Foi ainda por meio de H. L. Helmholtzque o princípio de conservação de


energia ganhou contornos reforçados e aplicação aos fatos fisiológicos (assim
como Mayer o fizera em relação à física), articulando de vez a neurologia à
psicologia31, estendendo a fisiologia à esfera fenomenal, resultando numa
psicofisiologia. De modo que nesta perspectiva a “força” foi caracterizada pela
sua variabilidade e indestrutibilidade, ou seja, enquanto causa dinâmica
31
Outro exemploque constituiu uma variante no vasto campo dos energetistas da época, foi o químico F.
W. Ostwald (1853 – 1932). Assumindo um monismo energetista, declarou que tudo é energia. De modo
que se trata de uma noção que pode sem problemas ser aplicada aos fenômenos psicológicos, o que lhe
permitiu formular a expressão energia psíquica, além de postular uma compreensão dos fenômenos
psíquicos como fenômenos da energia nervosa. Sua teoria preservava os ditames da época; submissão à
lei da conservação e capacidade de transformação e mensurabilidade. Seu energetismo, conclui Assoun,
atingiu a identificação do fenômeno psicológico como uma variação de energia ela mesma. Por fim,
sustentando uma continuidade nas ocorrências de sua transformação, suprimiu qualquer abismo ou cisão
entre dois domínios, da alma e do corpo, da matéria e da energia.
73

transforma-se por não poder anular-se, explicitando sua condição indestrutível,


perpétua e constante. Desnecessário lembrar que sua abordagem científica
pressupunha igualmente sua quantificação.

Freud ainda estagiou com J. M. Charcot(1825-1893), um notório


membro e líder da Sociedade de Biologia, de explícita inspiração comteana,
sustentando como objetivo de sua investigação a produção de leis e a redução
explicativa de seus fenômenos à condição de um “fato geral”, a
hereditariedade. Também, enquanto recém formado, assistiu a Joseph Breuer
(1842-1925), adepto de uma fisiologia com dispositivos de circulação e
conservação de energia com a qual explicaram, claro que divergindo, a
conversão histérica na obra conjuntaEstudos sobre histeria, de 1895.

Contudo, a identidade epistemológica da psicanálise recebeu especial


influência do programa científico de Ernst Mach(1838 - 1916), formulado em
terreno pós-kantiano com grande sucesso na passagem do século XIX ao XX.
Com ele Freud compartilhou, como informa Assoun, “um ponto de vista de
continuidade da física à psicologia” (1983, p. 85). Além disso, de sua influência
Freud fundamentou sua metapsicologia a partir da produção de modelos
heurísticos. Por meio dele Freud32 reconheceu que os modelos científicos não
dão acesso a uma realidade independente, não são definitivos e só podem ser
medidos por sua utilidade. Antes, sua característica principal encontra-se na
possibilidade de serem continuamente aperfeiçoados, de modo que uma
ciência natural só pode ser convencional, aproximativa e assintótica em relação
à verdade. Este ponto de vista epistemológico ecoa de alguma forma no
agnosticismo de Du Bois- Reymond.

Como resultado disso tudo Freudfoi em seu percurso de formação, em


excelente sentido, um “infiel” discípulo cuja especificidade epistêmica
ousoformular: Sua elaboração sistemática, e convencional, do que chamou de
32
Para ilustrar este ponto de vista, recordo que os instintos foram classificados por Freud, em 1905,
segundo dois grupos distintos, os do ego (auto preservativos) e os sexuais (representantes dos interesses
da espécie). Tal classificação foi mais tarde reconhecida por Freud, e aqui identifico um aspecto do que
chamou de convencional, como “hipótese de trabalho, a ser conservada enquanto se mostrar útil, e pouca
diferença fará aos resultados do nosso trabalho de descrição e classificação se for substituída por outra”
(Os instintos e suas vicissitudes, 1915, p. 129). Nisto se mostrou coerente com a introdução da mesma
obra, ao declarar que esta classificação dos instintos teria sido resultado da observação atenta de
psiconeuroses que revelaram ou expuseram a presença de um conflito entre demandas do ego e da
sexualidade, mas que outras observações resultariam em outras classificações.
74

psicologia profunda implicou na abordagem do psiquismo levando em


consideração fenômenos representacionais organizados segundo processos
compreendidos a partir de um jogo de representações/forças intencionais
segundo princípios entrópicos. Isto a partir de uma concepção de força/energia
que implica uma circulação e uma transformação aos modos de um gasto, de
um escoamento que faz de toda pulsão, pulsão de morte e de todo processo
representacional produtor de neurose/desordem, de modo que a doença
nervosa e o mal-estar possam ser alçados à condição básica de funcionamento
do aparelho psíquico e, no limite, de sua finalidade.

Estas características do aparelho psíquico postuladas por Freud


demandam a justificação de que toda constituição da subjetividade assim como
toda possibilidade de sustentação ou conservação da vida se dão por uma
articulação entre interioridade e exterioridade que faz barreira, por um período
determinado de tempo, aos propósitos da conservadora pulsão de morte e ao
princípio que lhe orienta. De modo que a vida e sua conservação parecem
estranhas aos interesses iniciais do psiquismo. Sendo assim, a contribuição de
Freud para a história da filosofia, foi a de entrever a consideração de uma
finalidade entrópica, declinista, para o homem e para a civilização, embora
tenha tido na homeostase sua formação.
Por fim, trata-se de uma tese sustentada a partir da articulação sempre
presente em Freud entre indivíduo e espécie, ontogênese e filogênese.
Articulação tão necessária para transpor, entre outas coisas, a distância entre
psicologia individual e de grupo, para estabelecer relação entre neuróticos
atuais e povos primitivos. Visando sustentá-la, entendo que a pulsão de morte
não vitima apenas ao indivíduo, não conduz apenas este à extinção, acerca do
que não há dúvida, mas à espécie, por ser inscrita filogeneticamente, como
supôs Freud, no "momento" em que a vida (um impulso) emergiu.
*************

Após este introito em busca da identificação de uma particular filosofia


da história (concebida a expensas da psicanálise) que fundamenta o
pensamento de Freud, e antes de alcançar conclusões mais incisivas, pretendo
contrabalancear os argumentos até aqui apresentados lembrando ao leitor de
que a despeito do “pessimismo” muitas vezes atribuído a Freud, há pelo menos
75

uma obra em que ele não parece ser inteiramente justificável, trata-se de O
futuro de uma ilusão.

É verdade que também nesta obra seguiu sustentando que “toda


civilização tem de se erigir sobre a coerção e a renúncia ao instinto” (1927, p.
17). Claro que se refere às tendências destrutivas e, portanto antissociais e
anti-civilizatórias que de longa data reconheceu nos homens, por conta do que
se trata desde já de um expediente que visa aos interesses da civilização. Por
conta disto seria adequado postular um tipo de cultura que ofereça aos homens
alguma recompensa, algum reconhecimento acerca dos benefícios advindos da
renúncia.

Contudo, apesar de Freud reconhecer que relativamente aos homens


“os argumentos não tem valia alguma contra suas paixões” (1927, p. 18), o fato
é que nesta obra alimentou a expectativa de que o procedimento de uma
correção das imperfeições nos regulamentos sociais somada a uma educação
que transmita e promova uma opinião elevada acerca da razão, poderá reverter
a produção de mal estar. Reconhecendo o limite desta expectativa admitiu que
“provavelmente uma certa porcentagem da humanidade (devido a uma
disposição patológica ou a um excesso de força instintual) permanecerá
sempre associal; se, porém, fosse viável simplesmente reduzir a uma minoria a
maioria que hoje é hostil à civilização, já muito teria sido realizado –talvez tudo
o que pode ser realizado” (1927, p. 19).

Ele ainda discutiu e reconheceu o papel relevante da religião e da


ciência para esta finalidade. Reconheceu que a primeira já teria desempenhado
grandes serviços em favor da civilização no controledos instintos. O limite de
sua contribuição estaria no fato de que toda forma de ilusão oferecida pela
religião apenas num primeiro momento ofereceu a possibilidade de
harmonização da vida social. Em seguida, passou a constituir obstáculo ao seu
progresso pelo distanciamento da realidade que promove.

Por sua vez, o novo espírito científico confrontou o homem com temas
específicos do mundo e da vidaenfraquecendo a representação religiosa do
mundoe proporcionando o enfrentamento da realidade e de suas implicações.
Esta ocorrência foi pensada como uma possibilidade de reconciliação do
76

homem com o fardo da vida e, no limite, davida civilizada. Claro que este
prestígio da racionalidade foi visto como a oportunidade de reconhecimento do
ganho decorrente da vida em sociedade. Até aqui, parece explícita sua adesão
à perspectiva de uma civilização construída e sustentada com bases em uma
consciência esclarecida, à maneira kantiana.

De modo que, como disse, “sendo a religião a neurose obsessiva


universal da humanidade” (1927, p. 57), seu afastamento permitirá “a fatal
inevitabilidade de um processo de crescimento” (1927, p. 57), de uma gestão
racional de nossa vida instintual. Trata-se de promover a superação da crença
religiosa e do infantilismo que a acompanha. Sobre isso, disse Freud, “os
homens não podem permanecer crianças para sempre, têm de, por fim, sair
para a vida hostil” (1927, p. 64). Esta seria a condição para uma esperança no
futuro da civilização.

Por conta disto, arrisco dizer que esta obra acaba por expressar a
grande expectativa que Freud manteve em relação à Psicanálise, oferecer
alívio ao sofrimento dos homens, na medida em que estes, uma vez
esclarecidos, em lugar de vivenciarem suas ilusões ou fantasias experienciem
a realidade na condição de sujeitos, até onde isso é possível, de sujeitos33 de
suas vidas.

Superada a ilusão religiosa, sempre supondo que o pensamento


científico não estaria construindo outra e nem ocupando seu lugar, adviria uma
ressignificação da vida. Esta seria a condição segundo a qual “a civilização não

33
Neste ponto cabe antecipar uma discussão que deverá ser retomada adiante, sobre os sinais da história e
a presença do homem como agente de sua história. Lembro que em Freud, se não há, a exemplo de Kant,
o “século de Frederico” e nem a “Revolução francesa” como sinais de progresso, tampouco há indicação
explícita de sinais de declínio ou de progresso. No entanto, identifico algo do gênero em seu argumento
acerca do silêncio (e invisibilidade) da pulsão, de seu aspecto subterrâneo. Na verdade Freud não aponta,
a não ser nas neuroses e na compulsão à repetição, um equivalente, se posso assim dizer, dos signos
históricos kantianos. De modo que corresponderiam sim a sinais de uma causa que age permanentemente
na história e produz efeitos visíveis, na forma de acontecimentos. De modo que também aqui um signo
mostra que a causa age na realidade. E nisto temos o segundo ponto de reflexão, pois em Freud o
movimento em direção ao inorgânico não pode ser definido como tendência, mas antescomo um
movimento natural inexorável. É necessário refletir aqui sobre sua noção de finalidade, de teleologia e de
determinação, principalmente quando vista pela ótica do esclarecimento anunciadaem O futuro de uma
ilusão, ou ainda, quando em O mal-estar na civilização, convoca cada um de nós (com auxílio da
psicanálise) a encontrar um modo particular de se salvar, de modo que é preciso investigar o alcance desta
possibilidade que, no limite, deve ou pode por ações humanas fazer resistência à tendência natural ao
decaimento e à infelicidade.
77

mais seria opressiva para ninguém” (1927, p. 64), disse Freud. Admitiu assim
uma curiosa conquista civilizatória, o que faz com que uma nova perspectiva
histórica se instale, já que, como diz, ”as transformações da opinião científica
são desenvolvimentos, progressos...” (1927, p. 70), isto é, um ganho de
consciência que se apresenta como viabilizador da civilização.

Curioso observar que o progresso disparado pelo novo espírito científico,


que supera um período de estagnação, corresponde ele mesmo a um estágio
elevado do decurso das eras. De fato, o espírito científico que hoje impõe
progresso à civilização é ele próprio já resultado de um outroprogresso
observável na história humana. E, neste ponto, encontramos uma filosofia da
história que Freud apresentou em obra anteriorintitulada Totem e tabu,de
1913, particularmente ao capítulo que recebeu o nome de Animismo, magia e
onipotência de pensamentos. Nela apresentou sua concepção acerca da
evolução histórica do espírito humano, vale dizer, das diferentes formas de
representação do universo.

*************

Nesta oportunidade, Freud reconheceu que “a raça humana, se


seguirmos as autoridades no assunto, desenvolveu no curso das eras, três
desses sistemas de pensamento -três grandes representações do universo:
animista (ou mitológica), religiosa e científica” (1913, p.84). Quanto à
autoridade, que Freud referiu, mas não nomeou, trata-se de Auguste Comte e
especialmente de seu Curso de filosofia positiva.

Pois bem, como sistema de pensamento, o animismo fornece mais do


que uma simples explicação de fenômenos, fornece a possibilidade de
“apreender todo o universo como uma unidade isolada de um ponto de vista
único” (1913, p.84), podendo ser por isso tomado como a mais completa e
verdadeira explicação da natureza do universo. Nesta obra, Freud definiu o
animismo como uma “doutrina de almas e, no mais amplo sentido, a doutrina
de seres espirituais em geral” (1913, p.82). No entanto, esta, que chamou de
uma primitiva filosofia da natureza, chegou até nós sobrevivendo entre aqueles
que mantém “apenas uma crença muito limitada na existência de espíritos e
explicam os fenômenos naturais pela influência de forças físicas impessoais”
78

(1913, p.83). Com isto reconheceu que nós, atualmente imersos no espírito
científico, portanto potencialmente esclarecidos e libertos de toda superstição e
ilusão religiosa, não estamos demasiadamente longe de aspectos do animismo
quando acreditamos que os seres humanos são dotados de espíritos ou almas.

Assim já apontava, numa expectativa um tanto divergente da que


apresentou mais tarde em O futuro de uma ilusão, para uma sobrevivência ou
mesmo coexistência de modos de representações pretéritas no estado
contemporâneo. Freud dizia que da primitiva representação “grande parte
persiste na vida moderna, seja sob a forma degradada da superstição, seja
como a base viva de nossa fala, nossas crenças e nossas filosofias” (1913,
p.84). Com isto, longe de abdicar de uma perspectiva de progresso que
anunciou, Freud fez intervir a possibilidade de coexistência entre o estágio
alcançado e o superado. De modo que o progresso percorrido não foi descrito
sob a perspectiva de uma sequência linear e nemmesmo inexorável.
Retomaremos esta reflexão adiante.

Focando agora a possibilidade de superação do recurso prioritário da


imaginação pela observação, que a passagem do mito à ciência promove, nela
mais uma vez encontramos a expectativa de esclarecimento e de consideração
da realidade. Isto porque, relativamente ao processo psíquico que sustenta a
magia, Freud afirmou que seu princípio “consiste em tomar equivocadamente
uma conexão ideal por uma real” (1913, p.85). Em um parágrafo Freud nos
mostrou as condições que acompanham o processo de evolução histórica do
espírito humano. Disse ele que, relativamente ao modo primitivo representado
pela magia, em seu modo de operação...

...trata-se da semelhança entre o ato executado e o resultado esperado. Se


desejo que chova, tenho apenas que efetuar algo que se assemelha à chuva
ou faça lembrá-la. Numa fase posterior da civilização, em vez dessa chuva
mágica, serão feitas procissões até um templo e preces pedindo chuva serão
dirigidas à divindade que nele habita. Finalmente, esta técnica religiosa será
por sua vez abandonada e serão feitas tentativas de produzir na atmosfera
efeitos que conduzam à chuva. (1913, p.88)

O roteiro explicita claramente a superação da imaginação, desde já


associada aos desejos, por conta de levar em consideração as condições
exteriores, essas sim alheias ou indiferentes aos desejos humanos. Isto porque
79

todas as formas de associação elaboradas pelo pensamento primitivo, seja por


semelhança, seja pela tomada de uma parte pelo todo, seja pela contiguidade,
são a princípio imaginadas e presididas pelos desejos humanos. Seu
equívococonsiste em substituir as leis da natureza por leis psicológicas.
Vejamos.

Ele seguiu apontando os motivos que sustentaram, e ainda hoje


sustentam, as práticas primitivas, os desejos humanos, acompanhado da
crença no poder destes. Disse ele, “a razão básica por que o que ele começa a
fazer por meios mágicos vem a acontecer é, em última análise, simplesmente
que o deseja. De início, portanto, a ênfase é colocada apenas no seu desejo”
(1913, p.90). Assim, reconheceu que o modo primitivo de representação e de
ação corresponde à realização de um desejo eexpõe os “métodos pelos quais
os desejos operam” (1913, p.91), sem nenhuma prova objetiva acerca de seus
resultados. Portanto todo progresso que pressuponha a consideração da
realidade tem como condição a renúncia à realização de desejos.

Resta ainda tratar das possibilidades de superação dos três estágios,


algo de suma importância para a compreensão de sua filosofia da história.
Suas pesquisas psicanalíticas mostraram que, por exemplo, nas neuroses
obsessivas há uma sobrevivência da onipotência do pensamento. É nelas,
disseFreud, que “o modo primitivo de pensar mais se aproxima da consciência”
(1913, p.93). Ao analisar a formação da mente primitiva reconheceu que
também o mecanismo da projeção bem como a ambivalência dos sentimentos
são atualmente empregados da mesma maneira num grande número de
situações que conduzem à neurose. Continuou mais adiante, “não obstante,
um pouco da crença primitiva na onipotência ainda sobrevive na fé dos homens
no poder da mente humana, que entra em luta com as leis da realidade” (1913,
p.95).

Freud levou adiante a identificação do neurótico com o homem


primitivo34.Indicou, por exemplo, que “os tabus dos selvagens polinésios, afinal

34
Esta noção, sustentada no evolucionismo de Haeckel, foi utilizada por Freud até seu leito de morte e
inclusive retomada com todas as letras em publicação tardia como Moisés e o monoteísmo. Nela,
convidando o leitor a supor “que ocorreu na vida da espécie humana algo semelhante ao que ocorre na
vida dos indivíduos” (1938, p. 95), aplicou a noção emprestada da biologia de recapitulação. Reforçou a
tese da herança arcaica, que se faz inatamente presente no indivíduo e que tem origem filogenética,
80

de contas, não se acham tão longe de nós como estivemos inclinados a

justificada no fato de que “em todos os acontecimentos de seus primeiros dias (dos indivíduos), têm as
mesmas experiências, eles reagem a elas, também, de maneira semelhante” (1938, p. 112). Nisso
pressupôs uma herançaarcaica em lugar de uma transmissão pela comunicação e reconheceu que,
embora a biologiacontemporânea esteja propensa a recusar a noção de herança dos caracteres adquiridos
por gerações sucessivas, confessou que não podia prescindir deste “fator da evolução biológica” (1938, p.
114), justamente pelo fato de uma vez admitida permitir a construção de uma ponte entre a psicologia de
grupo e a do indivíduo, como foi seu objetivo. Também nesta mesma obra, quanto às referências a
Darwin, Atkinson e Robertson Smith, sobre a horda primitiva e seus desdobramentos, retrucou a violentas
censuras por sustentar pontos de vista àquela altura contestados até mesmo pela biologia contemporânea,
com o argumento de que eles fornecem “valiosos pontos de contato com o material psicológico da análise
e indicações de seu emprego” (1938, p. 145). Deste modo, pode justificar que “os homens sempre
souberam (dessa maneira especial) que um dia possuíram um pai primevo e o assassinaram” (1938, p.
115), uma experiência ancestral que foi herdada, transmitida e repetida por cada indivíduo e que
adicionalmente explica os primórdios da moralidade e da justiça, das instituições humanas na perspectiva
de progressos e avanços culturais, como disse, segundo “modificações na estrutura das comunidades
humanas” (1938, p. 97). Modificações que se deram, por exemplo, por conta da rejeição da magia e do
misticismo, tudo na forma de um “convite a avanços na intelectualidade (espiritualidade), e de seu
incentivo às sublimações” (1938, p. 100). Freud viu nesse movimento que culminou no monoteísmo um
avanço em intelectualidade, avanço que proporcionou resultados psíquicos duradouros. Isto porque ele
trouxe consigo uma concepção grandiosa de Deus. Grandiosa a ponto de deslocar para um segundo plano
sua percepção sensorial enquanto o apresentava como uma ideia abstrata. Como disse, um avanço em
intelectualidade correspondente a um retrocesso da sensualidade, “um triunfo da intelectualidade sobre a
sensualidade, ou, estritamente falando, uma renúncia instintual, com todas as suas consequências
psicológicas necessárias” (1938, p. 127), um extraordinário avanço das superiores atividades intelectuais.
Efetivamente, “um dos mais importantes estádios no caminho da hominização” (1938, p. 128), um passo
momentoso no controle pulsional e na valorização de sua renúncia e consequentemente, por tudo que
sabemos de sua teoria, do incremento da produção de mal-estar. Isto porque, a renúncia pulsional,
segundo sua própria teoria, conduziria a um aumento duradouro e contínuo de tensão, de produção de
desprazer, não fosse a possibilidade de “reduzir a intensidade do próprio instinto mediante deslocamentos
de energia” (1938, p. 131) contemporizou Freud. Este aumento de tensão, tão frequente e evidente quando
se trata de uma renúncia imposta do exterior, foi relativizado por Freud, quando considerado de sua
direção interna, proveniente do superego, cujo resultado é a oferta de um rendimento de prazer (uma
satisfação substitutiva), um tipo de enlevação moral experimentada pelo ego que, neste caso “orgulha-se
da renúncia instintual, como se ela constituísse uma realização de valor” (1938, p. 131-2), uma
experiência de libertação e satisfação derivada de uma progressiva e lenta renúncia instintual capitaneada
pelos avanços em intelectualidade que torna os homens orgulhosos de tê-lo percorrido. Avanço que teve
como consequência “o aumento da auto-estima do indivíduo, tornando-o orgulhoso, de maneira que se
sente superior a outras pessoas que permaneceram sob o encantamento da sensualidade” (1938, p. 129).
Orgulho que, como reconheceu, pode corresponder a simplesmente um “narcisismo aumentado pela
consciência de uma dificuldade vencida” (1938, p. 133). Avanço que carregouconsigo, pelo menos quanto
ao monoteismo, resultado de um elevado nível espiritual e intelectual promotor de uma abstração até
então inesperada, a crença em um Deus universal e único, que “afasta-se inteiramente da sexualidade e ao
mesmo tempo eleva-se para o ideal da perfeição ética” (1938, p. 133), sem se esquecer que a ética é uma
limitação do instinto. Ética, fundada na renúncia instintual, sempre como uma limitação do instinto que
traz consigo, a partir das noções de um povo eleito e de um Deus que escolhe, a inconveniência da
exclusão de outros povos e religiões. Argumento que Freud sustentou a partir da reconstituição histórica
do monoteísmo egípcio (de Amenófis IV) que operando a partir de considerações de exclusividade e
universalismo,constituiu um estágio de onde “nasceu inevitavelmente a intolerância, que anteriormente
fora alheia a o mundo antigo e que por tão longo tempo permaneceu depois dele” (1938, p. 33).
Intolerância que, quando levada ao limite comunga com a tese de que a própria razão é intolerante,
autoriza a expectativa de um “domínio mundial” (1938, p. 100). Certamente, este sim um resultado
psíquico duradouro que mantem, no caso analisado, reunido até hoje um povo disperso, mas em oposição
aos demais. Avanço que, inclusive dando ênfase ao que é moral, no controle da agressividade, consiste
num processo colocado em movimento por um crescente sentimento de culpa, que acompanhou todo
povo civilizado impulsionando o incremento do que Freud já havia chamado em 1908 de doença nervosa
moderna. De modo que mais uma vez aproximou os fenômenos culturais, como a religião monoteísta,
segundo estrutura e propósito, aos sintomas neuróticos.
81

pensar, a princípio” (1913, p.32), ou ainda, “que as proibições morais e as


convenções pelas quais nos regemos podem ter uma relação fundamental com
esses tabus primitivos” (1913, p.32). Com isso lançou uma ponteentre a criança
e o adulto entre o último e o primeiro homem. Reconheceu a sobrevivência do
mecanismo de projeção, dos sentimentos ambivalentes e da onipotência de
pensamento nos estágios sucessivos do progresso da razão. Reforçou assim a
sobrevivência de estágios anteriores, inclusive pela “indestrutibilidade e
insusceptibilidade à correção que constituem atributos do processo
inconsciente” (1913, p.78), deixando clara sua compreensão acerca das
condições de progresso civilizatório, inclusive relacionando diferentes formas
de neurose e instituições culturais.

Em síntese,o psiquismo que de iníciotoma a si mesmo como norma de


realidade, por fim sucumbe ao reconhecimento de uma alteridade. É, pois, o
declínio da onipotência de pensamento que permite a passagem da fase
animista inicial à científica final, com trânsito pela religiosa. Devemos, pois
reconhecer que os fatos culturais vividos nessa démarchecaracterizam
momentos diferentes da oposição entre desejo e realidade. Isto porque os dois
polos colocam cada um dos sistemas de concepção do mundo diante de duas
opções: a do desejo que afirma sua onipotência, como no estado animista, ou,
contrariamente, a do desejo que sofre a limitação da realidade, como no estado
positivo. Devo lembrar que o estado regido pelo animismo, bem como sua
sobrevivência, seria assim a maior resistência a ser ultrapassada pelo novo
espírito científico, inclusive por constituir, como já admitiu Freud, o estado mais
completo e por isto mais desejado de todos.

Contudo, ele não foi somente o primeiro e o mais completo, mas


também, diz Assoun, “o modelo de todas as formações culturais ulteriores
(arte, religião, filosofia), e não será totalmente eliminado, embora eficazmente
neutralizado, na ciência” (1978, p. 98). Por conta disto,a ultrapassagem
definitiva da matriz desejante da representação animista de mundo torna-se
impossível. Ora, Freud apontou para a presença de hábitos animistas em
nossa formação cultural atual, na forma de resíduos que sobrevivem na nossa
prática filosófica, em nossa linguagem cotidiana, em nossas crenças etc., como
se eles de alguma forma reproduzissem e conservassem suas atitudes e
82

concepções, de forma que cada uma das etapas constitutivas dos três
estadosestariam, por assim dizer, construídas uma sobre a outra.

Pois bem, podemos ainda levar a discussão relativa à sucessão destas


etapas a outro termo, o da possibilidade de reversão dos níveis alcançados,
tanto de consciência como de civilidade. Para dar conta desta, háuma outra
noção freudiana, a de que a maturidade científica exige uma progressiva
renúncia ao princípio do prazer, a partir do que o homem pode então se ajustar
à realidade e voltar-se finalmente para o mundo exterior. E isto por advento da
introdução do princípio de realidade na economia psíquica. Encaminharei esta
reflexão separando metodologicamente dois campos dentre os quais a
possibilidade de reversão do funcionamento mental pode ocorrer. O primeiro
deles seria quanto ao próprio funcionamento do aparelho psíquico e o segundo
quanto ao processo de conquista moral da civilização. Passo ao primeiro.

*************

Recorrerei a um artigo de 1911,intitulado Formulações sobre os dois


princípios do funcionamento mentalno qual Freud apresentou o modo de
articulação entre uma espécie de racionalidade (chamou-a processo
secundário) e algo mais primitivo como a“faculdade” de imaginar, fantasiar ou
ainda alucinar (chamou-a processo primário). Dela obteremos esclarecimentos
acerca da sobrevivência, coexistência de estados pretéritos ao lado dos atuais
e até da reversibilidade funcional do aparelho psíquico. Já no início deste artigo
Freud fez referência à neurose como sintoma que tem o propósito de promover
a alienação do paciente em relação à realidade. Considerando que esta,
enquanto fonte de estímulosdeve ser, desde as experiências primitivas do
bebê, sempre algo a ser evitado.

Neste artigo Freud reapresentou algumas de suas teses esboçadas na


obra Projeto para uma psicologia científica, segundo as quais a evolução ou a
sofisticação de nossos processos psíquicos, teria tido como ponto de partida ou
fase inicial um único tipo que chamou de processo primário, orientado por um
princípio que recebeu o nome de princípio do prazer. Referiu ao processo
primário como primeira atividade psíquica, bem como ao princípio do prazer
como seu orientador, indicando a forma de alcance das satisfações esperadas
83

neste estágio, a saber, o alucinar ou fantasiar. Com isto Freud revelou um


modo inicial de funcionamento do aparelho que se dá segundo uma tentativa
de ação autônoma em relação às demandas internas da nutrição, bem como
da realidade exterior.

No entanto, o fato é que o fantasiar demonstra, e seu artigo encarregou-


se de esclarecer, impotente para tanto, uma vez que desta atuação decorre,
como disse Freud, “a ausência da satisfação esperada” (1911, p.238). Por
conta desta frustração, e por insistência especialmente das demandas
endógenas, o aparelho psíquico é impulsionado a empreender novas formas de
atuação tomando em consideração as condições e circunstâncias do mundo
exterior, a partir das quais se habilita para promover e efetuar transformações
que visam o sucesso quanto à satisfação esperada. A satisfação a partir de
agora alcançada traz adicionalmente em seu bojo o alcance e a promoção da
sobrevivência e adaptação do organismo, o que cria, paradoxalmente,
complicadores aos interesses iniciais do aparelho psíquico, o de obter
satisfação pelo escoamento imediato de tensões, determinando assim nova
economia para o funcionamento psíquico.

A implantação desta segunda fase, que proporciona sobrevivência e


adaptação do organismo pela consideração das condições e circunstâncias do
mundo exterior, decorreu da inserção de um novo princípio, agora introduzido,
de funcionamento psíquico, o princípio de realidade. Este, tão somente um
modificador do princípio do prazer ao introduzir orientações para o
funcionamento de um novo processo, o processo secundário, responsável pela
vinculação consciente das catexias anteriormente livres e inconscientes. Vê-se
logo que sua introduçãopromove, como disse Freud, “uma sucessão de
adaptações necessárias ao aparelho psíquico” (1911, p.239), claro que visando
às exigências que se apresentam ao organismo, tanto internas como externas
(numa clara adesão ao postulado evolucionista de valorização do meio
ambiente assim como da pressão seletiva que exerce).O fato é que, segundo
entendo, uma vez transformado, todo acréscimos funcional do aparelho
psíquico passa a atendera ambos princípios.

No entanto, não podemos ignorar que esta transformação instaura ou


84

pelo menos atende a uma tendência de conservação e adaptações


progressivas. Lembremos que as funções introduzidas pelo processo
secundário compreendem, por exemplo, a atenção, cuja finalidade é encontrar
as impressões sensoriais a meio-caminho, e a notação, cuja tarefa é a de
assentar os resultados na memória como atividade da consciência. O resultado
final deste novo modo de operação deveria ser a superação do processo
primário, vale dizer, do processo alucinatório bem como da descarga motora
imediata que, sob a orientação do princípio do prazer, servia como meio de
aliviar as tensões que acometem o aparelho psíquico, transformadas agora em
ação, isto é, empregadas na alteração da realidade segundo um pensamento
organizado e estratégico.
Com base no exposto pode-se considerar a emergência do pensar como
função adaptativa, uma vez que o processo primário não se presta a esta
tarefa. Igualmente pode ser concebido como fator de contenção e gestão
instintual já que estabelece, entre outras coisas, a prudência na realização de
desejos. Contudo, por outro lado, sua ação, como é também de se esperar,
potencializa o conflito instintual justamente pela via da repressão e do
adiamento das prontas exigências de satisfações.

Em outras palavras, sua função adaptativa poderia indicar o caminho da


estabilidade, seja do indivíduo seja da comunidade, na medida em que alivia
carências e recompensa o organismo e a comunidade com sobrevivência, mas
como bem observado por Freud, igualmente não impede a produção de um
progressivo mal-estar. Pode-se dizer que o mal-estar seria a moeda com que
se paga a adaptação e a sobrevivência? De qualquer forma recoloca em
questão a eficiência do pensar em sua função de sustentação e manutenção
dos estágios alcançados,das conquistas civilizatórias. Freud já havia apontado
para esta questão em artigo de 1908, que presentarei em seguida, no qual
atribuiu a origem das doenças nervosas, que chamou modernas, à moral
sexual civilizada, bem como em obra posterior, de 1929, em que atribuiu ao
processo civilizatório o crescente mal-estar produzido pela civilização.

De fato, as noções visitadas no artigo de 1911 não permitem auferir ao


processo do pensar a função de instrumento de realização de desejo, posto
que também se lhe opõe de forma decisivaao fazer intervir a realidade. No
85

entanto, parece razoável considerá-lo provedor ao mesmo tempo que causador


de conflitos que ele mesmo terá a incumbência de resolver. Não me parece
que um aparelho psíquico nestes termos concebido seria adequado para fiar a
sociabilidade, o progresso moral, bem como a paz que de sua atuação se
espera.

E isto, por conta de que nossa vida instintual passa a ter após a
introdução do princípio de realidade e do processo secundário que ele orienta,
uma existência subterrânea queincide e reincide na vida social sob a forma de
neurose, perversão etc., do que se pode concluir que a escalada da razão, em
certo sentido, só faz potencializar o conflito. A existência prudente e virtuosa
que ela recomenda, e até certo ponto proporciona, não restitui ou recompensa
a existência convulsivaque impôs renúncia, adiamento, substituição ou, na
melhor das hipóteses, sublimação. Tudo isto admitido, digo agora que
justamente a partir da situação conflitiva descrita que se abre ao aparelho
psíquico a possibilidade de retomada do modo operacional primário, pela
construção de sintomas neuróticos, pelos sonhos de cada noite e, mais uma
vez na melhor das hipóteses, pela criatividade expressa nas diferentes artes.
Estes aspectos do funcionamento do aparelho psíquico além do próprio
antagonismo entre civilização e vida instintual foram exemplarmente tratados
por Freud em duas outras obras, no artigo de 1908, intitulado Moral sexual
civilizada e doença nervosa moderna, além de O mal-estar na civilização,de
1929, o que justifica apresentá-las nesta ordem.

*************

Embora sua convicção acerca do antagonismo não tenha sido


inaugurada nesta obra, ela é significativa de sua consideração, até porque ele
tomou parte da noção de sexualidade em todas suas etapas. A novidade veio
por conta dos aspectos sociológicos que introduziu. Uma noção curiosa que
aparece nesta reflexão é que o processo de civilização pelo qual passa a
sexualidade humana coloca seus próprios objetivos culturais em risco, ou seja,
atenta contra si mesmo na ânsia de se constituir. De modo que seu
desenvolvimento é confrontado com o risco de seu fracasso, além de prejuízos
86

evidentes. Isto porque, como reconheceu Freud, o mecanismo que possibilita a


produção de resultados culturais é o mesmo que os põe em risco.

Vejamos, Freud avançou reconhecendo que seu dano principal é a


emergência do que chamou doença nervosa moderna.Isto porque as condições
do processo civilizatório, como as extraordinárias realizações dos tempos
modernos, as descobertas e as investigações em todos os setores e a
propulsão do progresso, só foram alcançados e só podem ser conservados por
meio de um grande esforço mental. Reconheceu que o progresso atua como
causa de uma enfermidade que nasce de seu próprio interior, sem a qual, por
sua constituição o homem talvez estivesse livre.

Freud denunciouo modo de vida caótico que construímos e as


consequências que sofremos: “Tudo é pressa e agitação [...] os nervos
exaustos buscam refúgio em prazeres intensos, caindo em ainda maior
exaustão” (1908, p. 170-1), da qual pouca oportunidade o homem civilizado
tem de se recuperar. No entanto, para ele sua etiologia não está exatamenteou
somente no modo de vida resultante da civilização moderna, mas mais
precisamente na repressão nociva da vida sexual dos povos, na moral sexual
civilizada imposta, na verdade auto imposta, aos homens. Portanto,ao
empreender esforços para suprimir a atividade sexual do homem, já que se
nutre da energia que dela retira, a moral civilizada distorce sua finalidade e
exige satisfações substitutivas crescentes.Esta busca, quando por vezes
resulta no que Freud chamou sublimação oferece um valor para a civilização,
mas frequentemente degenera-se no que chamou de anormalidades e assim
atenta contra ela própria.

E foi justamente pelo reconhecimento dos limites de aplicação contínua


do mecanismo saudável de conversão da energia instintual, sob forma de
sublimação, que Freud denunciou a degeneração da civilização em uma
doença nervosa progressiva. Ele revelou que a possibilidade de sustentação
deste processo de deslocamento constante e eficaz do instinto por meio da
sublimação seria a possibilidade de evitar sua perda, de evitar seu desgaste,
mantendo a vida instintiva do homem provida de sua quantidade e acrescida de
87

qualidade. Portanto seria a possibilidade de conservação da vida psíquica e da


civilização.

No entanto, o que se dá é o contrário, pois as outras formas de


transformação do instinto provocam seu desgaste e declínio (inclusive a
sublimação). Quis dizer que toda operação psíquicaproduz o desgaste da
energia instintualdá“da mesma forma que em nossas máquinas não é
possível transformar todo o calor em energia mecânica” (1908, p.
174).Com esta ilustração Freud indicou que todos os demais processos de
deslocamento do instintoresultam, como nos artefatos mecânicos e na própria
natureza, em restrição ou perda de sua quantidade. Com esta formulação literal
do princípio de entropia de Carnot-Clausius,que retomaremos adiante, revela
sua filosofia da natureza distante da homeostase como princípio regulatório,
bem como sua compreensão sobre o modo de evoluir da civilização moderna,
segundo um crescente acúmulo de doenças nervosas e produção de mal estar,
de um caos que conduz à exaustão.A civilização resulta como uma grande
república planetária, diferente da de Kant, desprovida de homeostase.

A contradição interna que anima a relação dos homens regidos pela


moral sexual civilizada foi, ao término do artigo devidamente enunciada. Disse
Freud, “devo insistir em meu ponto de vista de que as neuroses, quaisquer que
sejam sua extensão e sua vítima, sempre conseguem frustrar os objetivos da
civilização, efetuando assim a obra das forças mentais suprimidas que são
hostis à civilização. Desta forma, se uma sociedade paga pela obediência a
suas normas severas com um incremento de doenças nervosas, essa
sociedade não pode vangloriar-se de ter obtido lucros à custa de sacrifícios; e
nem ao menos pode falar em lucros” (1908, p. 186). Sobre isso, segundo
Loparic, “é interessante notar que Freud atribui o mal-estar na civilização não
somente à moral religiosa – à religião enquanto ilusão –, mas também à razão
iluminista. A sua teoria da censura neurotizante trabalha tanto com o conceito
de repressão não-esclarecida quanto com o de repressão esclarecida, uma vez
que a objetificação como tal, pode ser repressiva ao ser intrusiva ou
impossibilitadora da vida humana” (ano, p.?). O fato é que o aumento
progressivo das doenças nervosas foi em definitivo indicado também pelo
crescente mal-estar, exemplarmente apresentado em 1929.
88

*************

Foi na obra de 1929, O mal-estar na civilização, que Freud avançou


corajosamente na análise da natureza e do processo civilizatório.Definiu mais
uma vez o homem como movido pela lógica da satisfação e da renúncia.
Nestes termos, a existência foi mais uma vez marcada pela conquista do
princípio do prazer que, de pronto, não assegura a sobrevivência do indivíduo
nem mesmo da espécie, em função do que demanda uma intervenção do
exterior que chamou de princípio de realidade.

Para Freud esta articulação opositiva dos princípios que é civilizatória e


a visa, no entanto instaura uma outralógicaautodestrutiva na medida em que
não equaciona ou concilia com sucesso os interesses de ambos. Tal conflito, a
princípioremete à noção de insociável sociabilidade de Kant, que permite
pensar os homens coexistindo segundo uma oposição geral que, ao mesmo
tempo em que ameaça constantemente dissolver sua sociedade, ao mesmo
tempo a promove e sustenta, em vista de sua finalidade.No entanto a oposição
visualizada por Freud não atua com a mesma finalidade de motor de
conciliação e progresso. Ao contrário, estimula no indivíduo a produção de
sintomas e nacivilizaçãode providências como formas protetoras, na melhor
das hipóteses,sob forma de satisfações substitutivas.

Nesta circunstância Freud identificou um mal-estar crescente na


civilização. Argumentou com acerto que este resultado se deve à uma parcela
de natureza inconquistável em nossa própria constituição psíquica. Isto parece
ser o bastante para indicar a ineficácia do princípio de realidade somada
resiliência do princípio do prazer. Pois bem, este fato pode com toda
razoabilidade abrir as portas para a consideração de que o conflito possa ser
desequilibrado em favor da realidade ou da civilização por meio de uma
sociedade composta de homens dotados de maior esclarecimento. Antes de
cedermos à sua sedução é preciso reconhecer a natureza e a radicalidade do
conflito, ele próprio tem como finalidade a extinção da vida.

No entanto, não desconsideremos que os problemas decorrentes das


tentativas de regular os relacionamentos sociais passam justamente pela
necessidade de supressão de parcelas da subjetividade de cada homem.
89

Particularmente porque o progresso e as conquistas materiais e morais


civilizatórias correspondem à uma conquista e realização da espécie, em favor
do que o indivíduo deve contribuir. Por conta disto Freud reconheceu que “a
vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria
mais forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra
todos os indivíduos isolados” (1929, p.49). Tal supremacia foi compreendida
como um passo decisivo para a humanidade, tanto em termos de sua
instituição como de sua sustentação. Há na circunstância descrita uma questão
relativa à inevitabilidade de insatisfação e revolta permanente do indivíduo
contra o agrupamento social.

Podemos retomar agora a referência a uma insatisfação e revolta


alimentada por aspectos remanescentes da personalidade original dos
indivíduos, sobre os quais a civilização se mostra em si mesma impotente para
suprimi-los. Enquanto, na verdade a civilização se mostra impotente para impor
uma transformação definitiva em sua natureza. Uma forma de remanescência
pode ser exemplificada no reconhecimento de que o indivíduo “sempre
defenderá sua reivindicação à liberdade individual contra a do grupo” (1929,
p.50). Por aqui já se reconhece a distinção fundamental em relação ao
pensamento de Kant. Pois, para Freud a própria natureza do conflito não lhe
possibilitaa realização de potencialidades nem de superação de aspectos
negativos das disposições humanas. Evidentemente porque para Freud esta
característica do psiquismo não foi pensada como subsumida por uma
finalidade evolutiva da natureza estendida ao homem.

De outra forma, e de outro ponto de vista sobre a natureza e sobre o


homem, Freud concebeu o impasse entre as reivindicações do indivíduo e as
reivindicações do grupo como criador de uma dúvida que incide sobre o destino
da humanidade, a de saber se “tal acomodação pode ser alcançada por meio
de uma forma específica de civilização ou se esse conflito é irreconciliável”
(1929, p.50).Ora, Freud quase nunca se mostrou otimista em relação ao
sucesso dessa equação. Com este ânimo acrescentou que “não é fácil
entender como pode ser possível privar de satisfação um instinto. Isso não se
faz impunemente” (1929, p.52).
90

Avançando nesta argumentação Freud reapresentou sua já conhecida


tese de que os homens são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar
em conta uma imensa e atuante cota de agressividade. Tal inclinação para
uma hostilidade primária entre os homens coloca a civilização em primeiro
lugar diante da impossibilidade de constituição e, em segundo, diante de uma
constante ameaça de desintegração. Nesta circunstância fica evidente a
necessidade de formações reativas que estabelecemresistências e limites para
ela, já que indestrutíveis. Paradoxalmente, sua supressão nem mesmo seria
razoável, uma vez que Freud reconhece que os homens, “sem ela, eles não se
sentem confortáveis” (1929, p.71).

Com base nisto, sob a denominação de narcisismo das pequenas


diferenças, Freud reconheceu que a união de pessoas é bem sucedida
quandoum grupo se opõe a outros grupos para serem objeto de sua
agressividade. Há aqui um paradoxo, já que o agrupamento de alguns só se
sustentaria na intolerância a muitos. Daqui deriva forçosamente a noção de
uma agressividade interna que deve ser dirigida para o exterior, para a vida
social. Isto porque enquanto estiver dirigida em seu sentido preserva o
indivíduo, quando remanescente em seu interior condena-o. Nestes termos a
disposição à agressividade foi concebida como uma disposição instintual
natural, como instinto de morte, por sua vez como resistência à civilização.
Desta forma “a inclinação para a agressão constitui no homem, uma disposição
instintiva original e auto subsistente [...] ela é o maior impedimento à
civilização” (1929, p.81), concluiu Freud.

Ora, Freudassumiu a incumbência de revelar o processo pelo qual a


civilização lida com uma tal agressividade, de modo a torná-la inócua. Com tal
propósito sustentou a tese de que o superego é resultado da introjeção (em
certo sentido, reintrojeção) da agressividade. Ela é “enviada de volta para o
lugar de onde proveio” (1929, p.83), para seu próprio ego. Esse mecanismo
promove uma absorção da agressividade não pelo ego todo, antes por parte
dele, que a exerce contra o restante do aparelho, chamou-a, como disse,
superego. Há aqui o anúncio de uma tensão permanente entre as instâncias
psíquicas, que resulta num sentimento de culpa expresso sob a necessidade
de punição. Desta forma, Freud reconheceu que “a civilização, portanto,
91

consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-


o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele,
como uma guarnição numa cidade conquistada” (1929, p.84). Parece claro que
qualquer instituição civilizadora, só faz potencializar o ressentimento.
Fundamentalmente porque a existência prudente e virtuosa que recomenda e
proporciona não restitui a existência convulsiva a que cada homem teve de
renunciar, adiar, substituir, sublimar.

Pois bem, uma vez apresentadas as teses que anunciam os obstáculos


e as impossibilidades ao progresso civilizatório da humanidade e sua
decorrente produção de mal-estar, pretendo avançar acrescentando um
agravante que já mencionamos acima, que é a própria possibilidade de
funcionamento regressivo do aparelho psíquico. Agorapretendo tratá-lo como
reversão, como retrocesso de estágios atingidos pelo progresso da razão,
como declínio civilizatório, a partir de um artigo intitulado Reflexões para os
tempos de guerra e morte, de 1915.

*************

Redigido no calor da primeira guerra mundial foi organizado em duas


partes que receberam os títulos A desilusão da guerra e Nossa atitude para
com a morte, relativas a duas questões que afligem a humanidade em período
de guerra. A primeira aponta para o fato de que de todos os prejuízos materiais
que a guerra pode causar, nada se compara com a desilusão em relação ao
declínio ético que a acompanha.

Sua reflexão sobre a guerra começou por relatar uma série de


frustrações, repercutindo a perspectiva declinista (embora não
necessariamente cíclica) de Spengler. Primeiro, o desapontamento por conta
das atrocidades perpetradas pelos países beligerantes. Agravadas pela
expectativa que o cidadão europeu se habituoua alimentar quanto ao papel das
grandes nações. Delas esperavam, disse ele, que “conseguissem descobrir
outra maneira de solucionar incompreensões e conflitos de interesse” (1915,
p.286). Evidentemente questionando a entusiasmada expectativa do progresso,
seja pela via do que recebeu na Europa o nome de belle époque, seja pela
expectativa pela via do poder do esclarecimento progressivo que confere poder
92

de domínio sobre os componentes instintuais. E isto especialmente pela guerra


ocorrer entre nações já submetidas a elevadas normas de conduta moral (que
Kant chamou de comunidade civil politica de direito), pelo menos em
conformidade a elas, e com aparente amadurecimento civilizatório, inclusive
pelo crescente deslocamento e intercâmbio de pessoas que já ocorria à época.

A beligerância mostrou em lugar de uma superação do conflito instintual,


sua latência, em lugar da tolerância, preconceito, em lugar do aparente
cosmopolitismo, sectarismo.De fato,Freud descreveu um ambiente europeu em
que a ampliação da circulação e o crescente intercâmbio cultural faziam do
continente um espaço de possibilidade de construção de uma sociedade
cosmopolita, de substituição da noção de estrangeiro (ou inimigo) pela de
hospitalidade. Tudo isto disponibilizando a educação de seus povos por meio
da preservação de “signos históricos”, como disse, verdadeiros “tesouros que
os artistas da humanidade civilizada haviam criado durante séculos sucessivos
e deixado atrás de si” (1915, p. 287), todos indicadores das experiências que
os civilizaram progressivamente.A própria interrupção deste processo, caso um
conflito fosse inevitável, era imaginada sob as normas de um embate de armas
cavalheiresco. Tudo de modo a não interromper a execução de um processo
civilizatório entre os diferentes povos da Europa, parao qual até mesmo uma
guerra, como admitiu Kant, pode contribuir. No entanto, em todo resultado
civilizatório pode-se encontrar a marca de influência (regência) do princípio do
prazer (nada que se crie destrona o destrona).

Diante do desapontamento procurou compreender em função de que


fatores, nações em tão elevado grau civilizatório foram flagradas no exercício
desenfreado da agressividade com que quebraram os laços até então
construídos. Em uma guerra que promove ações de desprezo, ignorância,
esmagamento e corte de relações estabelecidas. Que despreza ainda
restrições já consolidadas, ignora prerrogativas, elimina os inimigos e, por fim,
corta laços entre os povos, em uma palavra, recua ao isolamento inicial. Com a
guerra, observa-se, tanto da parte dos Estados quanto de seus membros, “o
fim à supressão das paixões más, e os homens perpetram atos de crueldade
[...]incompatíveis com seu nível de civilização, que qualquer um os julgaria
impossíveis” (1915, p.290). Até porque, paradoxalmente, toda agressividade e
93

destrutividade exercidas pelos Estados, que deveriam por missão impedi-las,


em lugar de monopolizá-las, se mostra igualmente em aceleração, superando-
se em eficiência a cada confronto.

A contribuição de Freud nesta reflexão parece ser a de mostrar que o


desapontamento que descreveu tem sua razão de ser justamente numailusão
destruída, que encontrou nos episódios da guerra um confronto com a
realidade. Em primeiro lugar, justifica, acolhemos certas ilusões, e nisto
provavelmente refere-se às filosofias europeias do progresso civilizatório, não
porque são mais consistentes, mas porque nos poupam de sentimentos
desagradáveis35. Estes, parece sugerir, seriam evitados ou suportados pela
adoção interessada de uma concepção de natureza humana e de sua história
que aponte outro homem e outra finalidade histórica. De modo a podermos
evitar o reconhecimento de que “na realidade, nossos concidadãos não
decaíram tanto quanto temíamos porque nunca subiram tanto quanto
acreditávamos” (1915, p. 294).

Para explicara ocorrência do circunstancialdecaimento civilizatório,


Freud investigou as condições pelas quais a civilização em questão foi alçada,
segundo um processo educativo, ao plano da moralidade. Para isso considerou
que o desenvolvimento moral (aparentemente) alcançado está fadado ao
fracasso na medida em que consiste na tentativa de erradicação das más
tendências humanas (de sua propensão para o vício em detrimento de
suadisposição para a virtude; com exceção da culpa, que é um efeito do mal,
não cria mais do que ressentimento, jamais de enlevação moral do homem) via
ação pedagógica e regulatória exterior (culpa introjetada), que não proporciona
seguramente um efeito positivo. Ao seu lado, Freud admitiu um fator interno, a
necessidade de amar(ou de ser amado?), atuando como fator de
transformação de impulsos egoístas em sociais.Em termos kantianos, é preciso
verificar se esta propensão para o mal encontra na necessidade de amar uma
disposição para o bem.

35
No mesmo ano, em artigo intitulado Sobre a transitoriedade, Freud retomou a questão da recusa em
admitir a decadência e transitoriedade de todas as coisas pelo anseio de “escapar a todos os poderes de
destruição” (1915ª, p. 317). Expectativa, sem a qual a vida seria destituída de todo valor. Valor que
depende da eficácia do luto do fim, tão necessário para reunir forças para reconstruir tudo o que a guerra
destruiu.
94

Tudo reunido não proporciona mais do que uma conduta em


conformidade com seus interesses, o que resulta em bons hábitos de
convivência, mas não necessariamente em progresso moral. Desta forma, a
civilização convive, concluiu Freud, além da produção incessante de neuroses,
com a “perpétua presteza dos instintos inibidos em irromper, em qualquer
oportunidade adequada, em proveito da satisfação” (1915, p. 293). De fato,
parece que o convívio social em conformidade às leis coercitivas está sempre
no limite de uma regressão (quem sabe cíclica?) à vida em conformidade à
natureza pulsional do homem, esta sim responsável pelo destino da
humanidade.

A impossibilidade de erradicaçãodas tendências instintuais visando a


formação do caráter do homem, como e egoísmo e a agressividade, entre
outros, estaria fadada ao fracasso na medida em que consiste num conjunto de
impulsos de natureza elementar em todos os homens e que visam sempre a
satisfação de necessidades que são confrontadas com as exigências
sociais,irredutíveis às dos indivíduos. Sua impossibilidade de erradicação, sua
indestrutibilidade, foi apontada, mais uma vez, em referênciaaos destinos
sofridos por eles, que são inibidos, mesclados, revertidos, têm seus objetos
trocados, que em lugar de corrigi-los ou suprimi-los, lhes proporcionam
sobrevivência em face de forças reativas.

Eles contam assim, em favor de sua indestrutibilidade, com a


característica da ambivalência, expressa na fusão de impulsos ou sentimentos
opostos que frequentemente são dirigidos à mesma pessoa, como demonstra a
clínica psicanalítica.Este ponto de vista soma-se à sua compreensão do que
caracteriza propriamente o processo de desenvolvimento psíquico e civilizatório
do homem, o fato de que “cada etapa anterior persiste ao lado da etapa
posterior dela derivada; aqui, a sucessão também envolve a coexistência...”
(1915, p.294). Na verdade, tratam-se de etapas primitivas que podem, por sua
natureza imperecível, ser prontamente restabelecidas, seja de forma
temporária ou permanente. Relegando aos tempos de paz à tentativa de
retomada do processo civilizatório.

Bem, em nome de um certo otimismo pode-se pensar quepelo fato de


95

haver sucessão de etapas, concebida no interior de um desenvolvimento por


etapas, um tipo de gradualismo anteriormente sustentado por Goethe, Lamarck
e Darwin, reconheceuFreud, “cada nova geração prepara o caminho para uma
transformação de maior alcance do instinto, a qual será veículo de uma
civilização melhor” (1915, p.294). Nesta possibilidade teríamos uma esperança
e uma possibilidade de progresso.Contudo, a expressão de tal otimismo quanto
aos caminhos da civilização logo foirelativizada quando apontou pela primeira
vez para a possibilidade real de que todas as conquistas psíquicas e morais
possam ser anuladas, já que a lógica de seu movimento de desenvolvimento
não apresenta uma direção ou sentido temporal linear e irreversível, “antes
pode ser descrito como uma capacidade especial para a involução” (1915,
p.295). De modo que, finalmente, o antagonismo pulsional não encontra saída
sob forma de progresso moral. E isto a ponto de que, particularmente no
aspecto moral, mesmo um grau já alcançado, quando abandonadonão
apresenta garantias de que possa ser alcançado novamente.

Seu ponto de vista foi nesta obra mais uma vez sustentadono
pressuposto de indestrutibilidade dos traços primitivos da vida psíquica. Há
aqui um paralelo justificável entre as ações destrutivas da guerra e a doença
psíquica; ambas consistiriam a “um retorno a estados anteriores da vida afetiva
e de funcionamento (mental)” (1915, p.295). De onde a capacidade de
involução, particularmente no sentido moral, estaria inscrita na própria
constituição do aparelho psíquico bem como nos conflitos que dentro e fora
dele se desenrolam.

Nisto é possível identificar mais uma vez a perspectiva finalista de


Freud, segundo o qual o que chamou de processo secundário, outra coisa não
é do que um mecanismo de viabilização da meta do princípio do prazer. Ora, o
resultado deste ponto de vista não poderia ser outro. Reconheceu que a
racionalidade humana, longe de constituir uma força independente e autônoma
da vida emocional, “comporta-se simplesmente como um instrumento da
vontade e fornece a inferência que a vontade exige” (1915, p.296). Portanto
uma racionalidade diferente da concebida por Kant, autônoma e legisladora. De
outra matriz conceitual, o empirismo, Freud apontou a possibilidade de que os
caminhos da civilização seriam indicados por interesses emocionais que
96

resistem, dada sua força, a qualquer razoabilidade, antes se servindo dela para
sua consecução. Isto possibilita inclusive justificar a guerra, apresentar razões
para satisfazer paixões que nada mais seriamdo que o cumprimento de
interesses primitivos de agressividade, destruição e escoamento de tensões.
Com isto ficou estabelecido o papel subsidiário da razão à função norteadora
do princípio do prazer.

Admitida sua filosofia da natureza segundo as características entrópicas


que lhe atribui36, a história da humanidade teria como finalidade sua
consumação e como dinâmica interna (de sustentação do conflito instintual) a
trágica. No entanto, se o telos ou finalidade da natureza, como da civilização, é
sua supressão, isto não equivale a considerar a vida sem sentido, não equivale
a considerá-la sem necessidade. De fato,na obra de Freud ocorre por toda
parte uma espécie de teleologia rigorosa que descreve um fio condutor que
conduz (parece que inexoravelmente e não tendencialmente) do inorgânico ao
inorgânico. Ilustração que pode ser visualizada sem dificuldade na obra de
1920,Além do princípio do prazer.

*************

Nesta obra concebeu um movimento da natureza que perfaz um arco de


retorno à condição original, para o qual contribui o jogo instintual orientado pelo
princípio do prazer. Esteacontecer da vida, que emerge do inorgânico e volta
para ele, evidencia o sentido da vida, uma duração que produz seu
esgotamento.A importância desta obra e de suas teses justifica a apresentação
de algumas de suas teses.

36
A concepção de natureza e de intencionalidade que subsidia e orienta o pensamento e Freud, segundo
entendo, é a da entropia e não a homeostase, que pode ser resumida na noção de que a vida está inscrita
na morte. O conceito de entropia, enunciado pela segunda lei da termodinâmica, foi cunhado em 1850 por
R. J. E. Clausius (1822 - 1888) e recebeu contribuições, entre outros, de Maxwell e Boltzmann. Data da
primeira metade do século XIX, como noção de que todo sistema físico evolui sempre e espontaneamente
para situações de máxima entropia ou desordem, segundo a tendência universal de todos os sistemas
físicos, o que remete à impossibilidade de conservação de alguma forma de energia ou de vida. Considera
que a energia total do universo está sujeita a uma degradação em função de um contínuo desgaste que, por
fim, se estabiliza em definitivo no equilíbrio ou repouso. Movimento responsável pela passagem do
tempo e pelo esgotamento da energia num sentido irreversível. Ao contrário da primeira lei da
termodinâmica, que admite uma homeostase, anuncia o universo como um sistema fechado e subsistente.
Não há dificuldade em postular que o aparelho psíquico e o conflito crescente que apresenta pode
igualmente ser pensado como um sistema de natureza entrópica. Metaforicamente, uma usina de
produção de desordem, cuja meta é a de exauri-la.
97

Freud reconheceu um atributo universal dos instintos humanos


compartilhado com a vida orgânica em geral. Disse que “um instinto é um
impulso inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas,
impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob a pressão de forças
perturbadoras externas, ou seja, é uma espécie de elasticidade orgânica, ou,
para dizê-lo de outro modo, a expressão da inércia inerente à vida orgânica”
(1920, p. 47). De início, fica claro que o aspecto conservador do instinto
contraria as noções correntes de conservação, desenvolvimento e
progresso,de Kant, por exemplo. Em seu lugar postula a hipótese de que
exerçam sua pressão no sentido de uma restauração de um estado anterior
das coisas de que são instintos. Por conta disso apenas apresentam um
aspecto enganador de conduzirem à conservação e ao progresso. A tal
elasticidade orgânica resta como obra das forças perturbadoras externas.

Segundo Freud, buscam um estado de coisas pretérito que toda


substância depois de tornar-se orgânica se afastou e que procura retornar. O
que lhe permitiu dizer que o objetivo da vida é a morte, em função do que,
“tudo o que vive morre por razões internas” (1920, p. 49). Um argumento
desses foi justificado mostrando que a vida só pode ter sido decorrência de
uma evocação na matéria inanimada. Esta passagem, de todo ainda mal
explicada,ensejou um organismo tensionado suscitando, também não sabemos
porque, um esforço por neutralizá-la, escoá-la, exauri-la. Dessa forma, disse,
“surgiu o primeiro instinto: o instinto a retornar ao estado inanimado” (1920, p.
49).

Aqui explicita um jogo de opostos sem síntese, entre um princípio


fundamental a serviço de si mesmo e um representante de forças
(perturbadoras) externas. De todo modo, um dualismo de fato, ou um monismo
fatalista?Já que as forças externas podem ainda ser pensadas como
postergadoras da meta da natureza ou ainda como formas auxiliares
sofisticadas de cumprir a mesma meta. Por conta disto, a hipótese de um
instinto de conservação primário, que atuaria em sua oposição, perde toda
consistência. Na verdade não seria mais do que um veículo garantidor de que
todo organismo vivo atinja por caminhos próprios sua meta de morte. Dessa
forma todo ser vivo se equilibra, enquanto tolera a vida, entre as duas classes
98

de instintos e de princípios. A vida foi compreendida como um período de


convivência litigiosa entre prazer e realidade, de cuja confusão resulta a
satisfação.

Ora, os instintos conservadores da vida, de inícionomeados por Freud


como sexuais, seriam em última instância os responsáveis pela ilusão de que a
luta contra a morte poderia obter êxito e até que pudesse conduzir o ser vivo a
uma condição evoluída, segundo a qual rumariam em direção a um progresso
pela via de ligações constantes. Esta perspectiva foi relativizada por uma
reflexão curiosa, segundo a qual se trata apenas de “uma questão de opinião o
fato de declararmos que determinado estágio de desenvolvimento é superior a
outro” (1920, p. 52). Com isso rechaçou a hipótese de que exista em ação no
homem, e por extensão na natureza, um impulso para a perfeição, responsável
por um elevado estágio de realização intelectual e moral. Declarou
taxativamente: “não tenho fé, na existência de tal instinto interno e não posso
entender porque essa ilusão benévola deva ser conservada” (1920, p. 52). Tal
ilusão seria resultado da própria repressão instintual que alicerça a civilização e
no conflito dela decorrente estaria sua produção.
De modo que a doação da vida não é mais do que receber o encargo de
construir com toda limitação possível a civilização, enquanto com isso atende à
máxima de seu reitor, o princípio do prazer, que, segundo ele, “parece, na
realidade, servir aos instintos de morte” (1920, p. 74), cuja tendência é a de nos
emancipar das excitações, operando a serviço da função de conduzir toda
forma de vida ao repouso do inanimado. Não resta dúvida de que para Freud
toda emergência de estímulos é acompanhada de um reforço da tendência de
sua abolição, de modo que até mesmo o entrelaçamento com outros estímulos
(regidos, por exemplo, pelo princípio de realidade) só produz aumento de
tensão e, diferentemente dos efeitos anti-entrópicos da complexificação da vida
admitidos pelos biólogos, reforça sua tendência a reduzi-la tanto quanto
possível ao limite de sua extinção.
Por fim, formalizando minhahipótese relativa à filosofia da história que
subsidia o pensamento de Freud, sustentamos (cm argumento precariamente
tomado de Kant) a possibilidade de que a própria natureza, pela condição
entrópica que apresenta, comunicá-la aos homens sob forma de um propósito
99

igualmente fatalista e assim dotarsua constituição psíquica de igual propósito,


de características adequadas para executar este propósito. Isto se
confirmando, estariam todos os indivíduos, inadvertidamente cumprindo
coletivamente as determinações da natureza e para elas contribuindo. Neste
caso, o conflito instintual, sua sustentação ininterrupta e inclusive seu
agravamento, estaria em acordo com a produção entrópica de acúmulo de
desordem e visaria assim ao decaimento, ao equilíbrio estático, à morte como
destino, o que pode ser reconhecido na crescente produção de mal-estar na
civilização. Quais seriam seus signos?

Assim, parece que, no limite, Kant e Freud convergem no


reconhecimento de uma teleologia, contando com dispositivos naturais e
culturais de determinação e condução da vida. Seguem, portanto linhas de
pensamento estruturalmente semelhantes, ou seja, partem de uma hipótese
metafísica, e por isto sem referente empírico, cuja função é a de proporcionar
compreensão e acolhimento dos fatos humanos, numa palavra, de lhes dar
sentido.Divergem quanto à topografia, pois se o fio condutor do progresso
kantiano de uma espécie infinita na verdade fica adequadamente ilustrado
como uma curva assintótica sobre um gráfico cartesiano, como apresentado
acima e no campo direito da afigura abaixo, já com Freud sofreu uma torção
que o aproximou do movimento de um bumerangue, ilustrando a história de
seres finitospautada pelo circuito pulsional igualmente finalista, porém
fatalista.Certamente pela adesão de Freud ao postulado de Carnot-Clausius
recusando a consideração de que toda forma de organização ou ordem
biológica (e por extensão psíquica) ocorreria à margem e contra a entropia que
silencia lentamente o mundo físico.
100

Ilustrações à parte, esperamos encontrar em Darwin uma possibilidade


de igual compreensão e acolhimento dos fatos naturais e humanos, mas quem
sabe, dispondo de uma metafísica mínima, ou na melhor das hipóteses, sem
dispor dela. Passemos adiante.

Darwinismo(evolucionismo) ou a lógica de uma história sem finalidade

Darwin por ele mesmo


101

É chagado o momento de nos atermos às obras e teses de Darwin.Para


isso, julgo estratégico começar por uma citação extraída da obra de Lucille
Ritvo (1990) que oferece um bom parâmetro para a compreensão dos
argumentos que serão apresentados. Ela lembra que foi o biólogo alemão Carl
Clausquem reconheceu que a hipótese da seleção natural de Darwin37 rompeu
definitivamente a dependência de doutrinas que até então fundamentavam e
dominavam a biologia. Que ele forjou também uma explicação físico-mecânica
do desenvolvimento orgânico (inclusive dos instintos) por gradação (sob forma
de continuidade, em oposição à criação descontínua) a partir do inorgânico por
relações (de forças) causais dos seres vivos com o meio ambiente, vale dizer,
da síntese de compostos orgânicos (geleia primordial) a partir de elementos
inertes38. Com estas armascombateu e superou:

O dogma da imutabilidade das espécies, das catástrofes com destruição total


da vida, das criações fixas em sucessivos arrancos que muitas e longas
décadas mantiveram as ciências biológicas em rígidas amarras [...] um avanço
ainda maior se obteve [...] para a compreensão da unidade do orgânico e do
inorgânico no mundomaterial; com a ajuda da seleção natural, tornou-se
possível explicar por uma causa mecânica a harmonia da ordem biológica que
anteriormente se pensou ser teleológica e atribuir à necessidade o que
anteriormente se considerou ter sido disposto por uma Providência sábia.
(Claus apud Ritvo, p. 161)

Aos aspectos destacados nesta citaçãosomamossua filiação à tese


fundamental do evolucionismo de que toda criação provém de um
semelhante39, além da concepção básica de que os seres organizados que

37
Na sexta edição da Origem das Espécies Darwin reconheceu que outros - notavelmente William Charles
Wells, em 1813, e Patrick Matthew, em 1831, haviam desenvolvido teorias similares, embora não as
haviam apresentado completamente em publicações científicas notáveis.
38
Para contextualização deste ponto de vista, lembremos que, como nos informa Butterfield (1992),
encontramos em Jean Baptiste Robinet (1735 - 1820) “a tese de que os átomos que compõem todas as
coisas não são mera matéria morta, mas são individualmente possuídos de vida e de alma. A matéria
inorgânica pode organizar-se ela própria em combinações, de modo a formar criaturas, não existindo
qualquer abismo entre o animado e o inanimado” (p. 201), contradição que tanto animou as discussões
científicas e filosóficas do evolucionismo. Tese vitalista que recebeu, posteriormente, contribuições de
autores como Herder e Goethe.
39
Tese necessária para sustentar seu ponto de vista evolucionista de que semelhantes geram semelhantes,
a princípio a serviço da recusa do criacionismo e da hipótese da geração espontânea, sustentando que uma
célula sempre se origina de outra célula preexistente. Argumentando ironicamente contra o criacionismo,
Darwin, na conclusão de A origem das espécies atribui aos criacionistas a crença de que em “inúmeras
épocas da história da Terra, alguns átomos elementares receberam ordem de se agruparem em tecidos
vivos” (1859, p. 431), em tudo ecoando os versos do atomismo antigo de Lucrécio, para quem “Não é por
certo em virtude de um plano determinado nem por um espíritosagaz que os átomos se juntaram por uma
certa ordem; também não combinaramentre si com exatidão os movimentos que teriam; mas, depois de
102

compõem uma espécie sãoportadores de uma afinidade entre indivíduos que,


no entanto, por um desvio gera novo agrupamento com novas afinidades, de
modo a preservar a relação entre identidade e diferença em todo seu processo
degeração, adaptação etransmissão. Por este quadro geral, ganhou
importância o mecanismode variaçãoao lado do princípio de seleção natural,
sendo que pelo primeiro uma espécie tem origem e, pelo segundosobrevive ou
se adapta conservando variações favoráveis e eliminando as nocivas, o que a
torna mais apta para sobreviver, pelo menos até certo ponto ou momento40.
A partir deste ponto de vista, os produtos finais da seleção natural são
assim organismos que, do ponto de vista da descendência41 com modificação
adotado por Darwin,resultam adaptados (em certo sentido selecionado e
regulado pela luta pela sobrevivência) ao seu ambiente atual, de modo que a
própria disputa opera como um mecanismo regulador imanente, em face da
tendência dos organismo de reprodução ilimitada. No entanto, sempre
selecionando variações, o faz prescindindo de qualquer critério (consciente e
utilitário como dos criadores)que opte por direções preconcebidas. Pode-se
mesmo admitir a falta de um agente natural (a analogia com a seleção artificial
manteve consigo a noção de agente, substituído por uma capacidade natural,
um mecanismo regulador, uma astúcia presumida). Vale lembrar que o que

terem sidomudados de mil modos diferentes através de toda a imensidade, depois de teremsofrido pelos
tempos eternos toda espécie de choques, depois de teremexperimentado todos os movimentos e
combinações possíveis, chegaramfinalmente a disposições tais que foi possível o constituir-se tudo o que
existe. E épor assim se terem conservado durante muitos anos, uma vez chegados aos
devidosmovimentos, que os rios saciam o ávido mar com suas grandes águas, que a Terra,aquecida pelo
vapor do Sol, renova as suas produções, e florescem todas as raças deseres vivos, e se sustentam os fogos
errantes pelo céu. De nenhum modo o fariamse do infinito não chegasse sempre mais matéria para reparar
a tempo as perdas sofridas” (Livro I).
40
Para mostrar o caráter pendular da importância atribuída entre variação e seleção natural lembremos de
uma carta a Asa Gray datada de onze de maio de 1863, na qual Darwin declarou sua atual consideração
de irrelevância à seleção natural como carro chefe da evolução em relação à fatores adjacentes como a
variação (ao seu poder criativo e fator fundamental da modificação das espécies) e de outros fatores como
uso e desuso e condições exteriores. Reconheceu que “Pessoalmente, é claro, tenho muito interesse na
seleção natural, mas isso me parece totalmente irrelevante, quando comparado com a questão da Criação
ou da Modificação” (2009, p. 112). Em outras oportunidades, Hoquet (2009, p. 350) lembra que ele
reforçou esta revisão à maneira de um arrependimento, por exemplo, em A descendência do homem, de
1871, reconhecendo que atribuiu muita importância à ação da seleção natural e à sobrevivência do mais
apto, de modo que passa a ter um papel fundamental relativamente à adaptação do que à origem (ou
especiação) das espécies, tarefa atribuída progressivamente à variação individual. Sobre esta relação
pendular, Hoquet (2009) informa que, relativamente ao prestígio da seleção natural sobre as variações,
Darwin varia do otimismo da primeira edição («oùelleréussit à reduirelesparties» (p. 210)), como informa
o subtítulo da obra, para seu descrédito e redução de importância, na sexta edição («ellene fait plus que
tendre à réduire» (p. 211)). Hoquet (p. 353) atribui a Wallace, na obra Darwinismo, de 1889, a insistência
no selecionismo radical.
41
Produzidas pela via da reprodução sexual (como mamíferos em geral), da metamorfose (como o
Axolotl), ou ainda pela partenogênese (como oAcalèphe).
103

recebeu o nome de darwinismo corresponde, segundo nosso entendimento, a


uma retomada da perspectiva epicurista, tão laboriosamente escanteado por
Kant, com consequências notáveis para a ciência moderna. Deste modo,todo
resultado permanece subsumido à hipótese de um mundo dinâmico em
continua e aleatória mudança, das próprias pressões e direções seletivas que
demandaminterações igualmente contínuas. Queremos dizer que a importância
inicial dada à luta pela existência perdeu densidade em relação aos efeitos da
variação. Perda que não invalida a importância da seleção natural nem de seu
corolário a luta pela existência. Esta diz respeito às ocorrências de indivíduos
ou grupos em face de pressões ambientais provindas do mundo inorgânico
(como secas ou inundações) e do mundo orgânico (como predadores), uma
verdadeira concorrência vital pelos alimentos, por exemplo.Já por seu
complemento,é a variação de cada indivíduo favorece e amplia suas
possibilidades (probabilidades) de sobrevivência em relação aos que não
apresentam variações de propriedades, alçada à condição de fato diferencial.

Por conta disto, a seleção natural não envolve progressão para um


objetivo último pré-estabelecido. De fato, a evolução não acelera sempre e
necessariamente para a produção de formas de vida mais complexas, mais
inteligentes ou mais sofisticadas, embora tudo isto possa acontecer. No
entanto, como discutiremos adiante,em várias passagens Darwin descreveu a
produção de formas segundoum sentido finalista particular como um
movimento tendendo à perfeição.Aspecto de sua obra que muitas vezes
motivou sua interpretaçãocomo uma teoria da natureza dotada
deintencionalidade e teleologia. Em outros momentos, ao contrário, reconheceu
que as pulgas (parasitas sem asas) descendem de um ancestral alado
de mosca-escorpião. Outro exemplo que ofereceu foi o de cobras-cegas que
seriam lagartos que já não precisam de membros (e talvez os tenha perdido
pelo desuso). A prevalecerem estes exemplos, os seres vivos são
simplesmente o produto do jogo de variações (nocivas ou benéficas)e de
condições ambientais (igualmente nocivas ou benéficas), que são selecionados
ou preteridos42. De modo que a adaptação, quando recusada sua finalidade

42
Na mesma carta a Asa Gray, Darwin fez referência ao filho caçula a quem chamou “o herói da seleção
natural”. Justificou a expressão descrevendo um diálogo que ilustra perfeitamente a atuação do principio
de seleção natural bem como da contingência de seus produtos: “Há uma quantidade enorme de serpente
104

teleológica, consiste numa coincidência entre a variação e a adequação às


condições locais.Neste caso sua teoria descarta toda personificação da
natureza, toda escolha consciente ou deliberada como ocorre na seleção
(escolha) artificial dos criadores de plantas e animais.

Com este ponto de vista, entendemos que Darwin ofereceu uma


resposta à questão kantiana sem recorrer a finalidade e intencionalidade,
operacionalizando noções como variação e seleção natural segundo estatuto
próprio. O que astransforma em primeiro motor da aceleração da história
natural, mais precisamente em uma lógica de sua história. Em se tratando do
homem, agregou a noção de vontade que restaura uma noção particular de
sujeito e de ação (política). Assim Darwin e o darwinismoapresentam a
estrutura da história num outro modelo enquanto repensam a noção de
sujeito43.Trata-se portanto, de uma lógica racional que responde de modo
econômico à perguntakantiana. Além do mais, nos parece que atendendo às
exigências de Kant além de Freud que indicam a possibilidade de que o
homem escolha caminhos, que se produza (se salve) por conta própria.Mas
isto precisa ser ainda exaustivamente investigado.

*************

Já na introdução de A origem das espécies, como todo naturalista de


sua época, já na introdução, Darwin colocou em discussão a investigação em
torno da origem (na verdade uma questão insolúvel tanto quanto inevitável) das

aqui; mas, se cada um matasse tantas quantas fosse possível, elas picariam menos”. Darwin responde ser
óbvio que isso ocorreria, ao que retrucou: “É obvio, mas eu não quis dizer isso; o que eu quis dizer foi
que as serpentes mais tímidas –as que fogem e não picam- estariam salvas e, depois de algum tempo,
nenhuma delas picaria”. Ao que Darwin retrucou: “Seleção natural!!!” (2009, p. 113). A timidez, de
nenhuma forma um sentimento nobre ou evoluído, como capacitação para a sobrevivência.
.43 A noção de escolha, no limite, de liberdade, indicada por Darwin, recebeu de Jacob a seguinte
reflexão. «On peut même favoriser ces sauts et accroitre la fréquence des mutation en exposant le
sperme des drosophiles à un rayonnement X, comme le fait Muller, ou en traitant les organismes par
certains composés chimiques. Mais qu´elles surviennent « spontanément » ou qu´elles soient « induites
artificiellement », les mutations apparaissent toujours au hasard. On ne trouve jamais aucune relation
entre leur production et les conditions externes, aucune direction imprimée par le milieu » (p. 243).
Evidentemente a consideração da variação por mutação, desconectada de qualquer causalidade ou
propósito reinscreve a discussão acerca da autonomia e da consideração por sujeitos-agentes. Não é por
outro motivo que Jacob declara adiante que o código genético
«...apparaitdonccommeuntextesansauteur...»(p. 307). E continua, «Le gène représente le terme ultime de
l´analyse génétique, mais il n´a aucune autonomie. Son expression dépend le plus souvent des autres
génes qui l´encadrent. C´est le matériel génétique tout entier. C´est la combinaison particulière de génes
réalisée dans un organisme, qui en détermine le développement, la forme et les propriétés » (p. 244).
105

espécies e sua evolução (expressão adotada por analogia ao movimento dos


planetas). De um modo geral estavam em questão a origem das variações, das
espécies e da vida.De modo que em sua dimensão plena destacou a origem
das espécies enquanto“mistério dos mistérios” (p. 19)quando se trata mais de
sua causa primordial, da qual nada se pode saber cientificamente. Por outro
lado, considerou igualmente sua origem como fato situável no interior da ordem
dos fenômenos, portanto como legítimo objeto de investigação científica.
Ocupando-se deste último aspecto, o próprio título confere à epigenia um
sentido articulado ao de especificação, que seria sua consequência.
Tratando desta questão Jacob (1970) descreve os pilares conceituas da
teoria da evolução nos seguintes termos. Ela decorre, primeiro, da proposição
de que todos os seres descendem de um só ou de alguns poucos (e raros)
sistemas que se formaram espontaneamente. De fato que Darwin declarou que
“todos os seres organizados apresentam uma origem comum” (1859, p. 433),
mas depois de admitir paradoxalmente a hipótese que “todos os animais
originam-se de quatro ou cinco formas primitivas no máximo, e todas as
plantas, de um número igual ou mesmo menor” (1859, p. 433), o que abre
espaço para a poligenia, origens múltiplas das formas primordiais 44. Em
complemento, sua teoria reconhece que a partir deste começo as diferentes
espécies sucessivamente derivaram umas das outras por meio da variação e
da seleção natural. Tais proposições não estariam justificadas ou fundadas,
como diz Jacob, «sur l´histoire, ellene se prête à aucunevérificationdirecte» (p.
21). No entanto, diferindo de outras abordagens, ela permanece submetida à
experimentação que, segundo Jacob, lhe desmente ou confirma. Diz ele, « Si
elle n´en a pas moins un caractère scientifique, par opposition au magique ou
au religieux, c´est qu´elle reste soumise au démenti que peut lui apporter
l´expérience » (p. 21).
Desta forma, o conceito de epigenia e o de continuidade entre espécies
compartilha da perspectiva kantiana45, pois não se dirime por confirmação ou

44
De faro, Darwin não deixou de sustentar a tese de uma origem única para o homem a partir de uma
fonte comum (monogenia), inclusive com a publicação, em 1872, da obra A expressão das emoções no
homem e nos animais, apontando uma identidade notável em relação às principais expressões humanas de
emoções, cuja maioria seria hereditária e inata, recusando as teses criacionistas e finalistas do anatomista
Charles Bell.
45
Citação extensa de Kant a este respeito: “Mas, no que concerne à diferença posta em dúvida, pura e
simplesmenterejeitada, entre descrição da natureza e história da natureza, se sob a últimase quis entender
106

refutação pela experiência, mas de uma indicação, por meio de signos, de sua
eficiência organizacional da experiência. Nesta perspectiva, quando Jacob
apresenta o que seriam suas confirmações, o faz sob forma de novas
proposições indicadoras das verdades potencias das primeiras. Por exemplo, a
descoberta de que todos os seres vivos são constituídos de células, de que a
informação genética de todo organismo, sendo universal e imutável, está

um relato dos eventos naturais até onde nenhuma razãohumana alcança, por exemplo, a primeira origem
das plantas e animais, tal coisaevidentemente seria, como diz o Sr. F., uma ciência para deuses que
estivessempresentes à criação ou mesmo que fossem autores, e não para os homens. Todavia,apenas
perseguir regressivamente a conexão de certas qualidades atuais das coisasda natureza com suas causas
em época remota, que nós não inventamos, mas[162] deduzimos das forças da natureza tal como elas
agora se apresentam a nós,meramente recuar tão longe quanto no-lo permite a analogia, seria isso
umahistória da natureza e, na verdade, uma tal que não só é possível, mas também,por exemplo, nas
teorias da terra de naturalistas metódicos (entre as quais a dofamoso Lineu também encontra seu lugar)
foram frequente e suficientementetentadas, quer tenham elas alcançado muito ou pouco com isso.
Também aprópria conjectura do Sr. F. sobre a primeira origem dos negros não pertence àdescrição da
natureza, mas apenas à história da natureza. Essa diferença estáposta na natureza das coisas, e através
disso eu não reclamo nada de novo,mas simplesmente a cuidadosa separação de uma coisa da outra, pois
elas sãocompletamente heterogêneas e, se aquela (a descrição da natureza), em todasuntuosidade de um
grande sistema, aparece como ciência, a outra (a história danatureza) apenas pode indicar fragmentos ou
hipóteses vacilantes. Através dessaseparação e apresentação da segunda como uma ciência própria
realizável, aindaque até agora (talvez também para sempre) mais como esboço do que comoobra (ciência
na qual para a maioria das questões se poderia encontrar marcadoTrans/Form/Ação, Marília, v. 36, n. 1, p.
211-238, Jan./Abril, 2013. 219Traduçãoum Vacat11), eu espero conseguir que não se faça, com pretenso
conhecimento,em proveito de uma ciência algo que, na verdade, pertence tão somente à outra,e chegar a
conhecer mais seguramente a extensão dos conhecimentos reais nahistória da natureza (pois se possuem
alguns da mesma), ao mesmo tempo,também os limites da mesma que se encontram na própria razão
juntamente comos princípios, segundo os quais ela se ampliaria da melhor maneira possível. Háque se
considerar bem esse escrúpulo, já que anunciei ter experimentado noutroscasos tanta calamidade por
causa da negligência de soltar entre si os limites dasciências e não ter agradado precisamente a todos;
além do mais, com isso eufiquei inteiramente convencido de que, pela simples separação do
dissemelhanteque antes se havia tomado num agregado, abre-se frequentemente uma luzinteiramente
nova para as ciências, com a qual, na verdade, se descobre muitamesquinhez, que antes se pôde esconder
por detrás de conhecimentos estranhos,mas igualmente se abrem ao conhecimento muitas fontes
autênticas ondeabsolutamente não se poderia ter presumido. A maior dificuldade nessa pretensainovação
está apenas no nome. A palavra história, visto que exprime o mesmoque a grega Historia (relato,
descrição) já está muito usada e há muito tempo,para que se deva facilmente consentir [163] competir-lhe
uma outra significaçãoque possa designar a investigação natural da origem; uma vez que nesta
últimatambém não se está isento de dificuldade para descobrir uma outra expressãotécnica que lhe seja
ajustável12. Todavia, a dificuldade da língua em discernir nãopode suprimir a diferença das coisas.
Presumivelmente, precisamente a mesmadivergência por causa de um afastamento conquanto inevitável
das expressõesclássicas, também no caso do conceito de raça, tem sido a causa da desuniãosobre a
mesma coisa. Ocorreu-nos aqui o que Sternedisse por ocasião de umdebate sobre fisionomia que, segundo
suas ideias caprichosas, pôs em alvoroçotodas as faculdades da Universidade de Estrasburgo: os lógicos
teriam decidido oassunto, não tivessem eles apenas se deparado com uma definição. O que é uma raça?A
palavra absolutamente não figura em um sistema de descrição da natureza,presumivelmente, portanto,
também a própria coisa não está na natureza. O conceito que essa expressão designa é, porém, muito
bem fundado na razão de cada observador da natureza, o qual, para uma característica herdada de
animais diferentes que se procriam por cruzamento, a qual não está no conceito de sua espécie, faz a
ideia de uma comunidade da causa e, na verdade, de uma causa originalmente posta no tronco da
própria espécie. Que essa palavra não ocorra na descrição da natureza (mas que em seu lugar se
encontre a palavra variedade) não pode impedi-lo de julgá-la necessária em vista da história da
natureza. Ele, decerto, apenas deve defini-la claramente em função disso; e isso nós desejamos tentar
aqui”(1788, p. 220).
107

contida no interior do ácido desoxirribonucleico, de que sobreviveu intacta


desde um ancestral comum etc.. Mas o argumento decisivo mostrando o
caráter hipotético e indemonstrável de sua teoria foi dado por Darwin ao admitir
a impossibilidade prática de reconhecer o que chamou de forma origem de
qualquer espécie modificada, a que seria seu tronco comum. Isto demandaria,
disse, “que possuíssemos a maioria dos elos intermediários e, em razão da
imperfeição dos documentos geológicos, não devemos esperar encontrá-los
em grande número” (1859, p. 417).
No entanto, a expectativa é que os fósseis tendam, progressivamente e
no limite de suas disposições, a preencher as lacunas entre as ordens
existentes. Além deles, a observação, por exemplo, de que “os órgão no estado
rudimentar testemunham claramente que eles existiram, em estado
desenvolvido, em um antepassado primitivo, fato que, em alguns casos, implica
em modificações notáveis nos descendentes” (1859, p. 432), constitui outra
prova indireta. Darwin finalizou declarando que por analogia é levado a crer
que plantas e animais, que apresentam muitos caracteres comuns, derivam de
um único protótipo, mas admite que, porém, a analogia pode ser um guia
enganador” (1859, p. 433). Segue reconhecendo que sendo a epigenia uma
dedução baseada na analogia, “é indiferente que seja aceita ou não. É, sem
dúvida, possível, assim como o supõe o senhor G. H. Lewes, que nas primeiras
origens da vida surgiram muitas formas diferentes...” (1859, p. 433),
reconhecendo seu caráter aporético. Mas, não sem antes contemporizar a
esperança de que nos seres organizados encontremos “(n)as suas
conformações embriológicas homólogas e rudimentares a prova evidente de
que os membros de cada reino originaram-se de um antepassado comum”
(1859, p. 433). Bem, partindo da hipótese da descendência comum dos seres
vivos e da derivação uns dos outros, problematiza as fontes produtoras ou
estimuladoras das variações que resultam em adaptações (por aquisições, mas
também por perdas) de formas (mais perfeitas) que garantam a sobrevivência
do organismo. Sem recusá-las, não se limita às causas ou condições exteriores
como clima, hábitos, alimentação, mas tampouco concede que as variações e
a adaptação sejam efeitos unicamente delas.
Visou assim, para além das causas e finalidades, “esclarecer quais são
os meios de modificação e de coadaptação” (1856, p. 21) dos seres vivos. Para
108

isso recorreu, ou partiu, dos estudos centrados nas variações domésticas,


artificiais, que indicavam em acréscimo que as variações (sejam quais forem
suas causas) se tornam hereditárias depois de fixadas num organismo
(processo parao qual não dispunha de explicação, inclusive pelo
desconhecimento da genética de Mendel). O recurso partiu do trabalho dos
éleveurscomo agentes de seleção artificial, depois transposto para a natureza,
produtora de variações que considerou discretas, lentas e sucessivas.
Observação que permitiu a consideração do que o homem fazia em pequena
escala como algo semelhante ao que a natureza faz em grande escala.
Considera ainda, sob influência admitida de Malthus e Spencer, que há
na natureza uma luta pela sobrevivência que atua como fator produtor de
variações, a ela devemos a ampliação de chances de sobrevivência dos seres
organizados e que os tornam objetos, nesta âmbito, da seleção natural. Aqui, a
fórmula da associação da variação com sua fixação e transmissão hereditária
completa o quadro explicativo da origem, da variação e da propagação da
forma modificada quando melhor adaptada, mais conveniente ao ser vivo, que
neste sentido evolui alcançando, como disse, “uma perfeição de forma e
coadaptação” (1859, p. 20) entre seres vivos, entre espécies mais bem
organizadas. Seu ponto de vista sobre os resultados das variações não
poderiam ser mais claros, “a seleção natural causa, inevitavelmente, uma
extinção considerável de formas menos bem organizadas” (1856, p. 21).
Contudo, antes de levarmos estas considerações a conclusõesequivocadas, é
importante considerá-lasna dimensão que receberam de Darwin. É
importantedistingui-las, segundo Hoquet, de sua aparência ortogenética, esta
uma forma de evolução que não propriamente concebida por Darwin, antes por
Lamarck, inclusive por supor algo como leis de desenvolvimento necessário,
reintroduzindo finalidade na evolução.
Em favor de sua especificidade, para Darwin o sucesso de um
organismo é sempre considerado estatístico e depende da circunstância de
vários fatores que podem resultar em boa ou má adaptação, conquanto não se
pode duvidar da intenção do processo que é o de proporcionar pelo cenário
litigante formas mais competitivas. De modo que a ocorrência dos resultados
positivos se dá pela superação de formas menos adequadas, menos
adaptadas e, portanto, mais primitivas em relação às condições ambientais
109

emergentes. Tudo isto demanda o esclarecimento das leis complexas de toda


variação. Será importante distinguir o que Darwin entendeu por lei em se
tratando de fenômenos biológicos, especialmente sua diferença em relação ao
que seriam causas. É importante destacar que um dispositivo de operação
reconhecidamente tão complexo pode, dito com todas as letras, produzir e
conservar seres por vezes simples, quando isto se mostrar vantajoso.
Seu sucesso explicitaria sob que condições um organismo simples (um
organismo é sempre considerado simples ou imperfeito quando limitado pelas
condições de sobrevivência) alcança a perfeição recebendo constituição,
tornando-se altamente desenvolvido. O que ocorre por um movimento de
descendência modificada pelas variações e pela seleção natural que conduz,
como disse, “a um aperfeiçoamento dos órgãos e dos mais complicados
instintos” (1859, p. 413). Somado à noção de que a luta pela sobrevivência
deixa atrás de si um acúmulo de vantagens aos adaptados, pelo acúmulo de
variações benéficas fixadas e transmitidas. É importante destacar que o
aperfeiçoamento indicado não se dá numa escala de valores medidas por um
fim último a ser atingido, mas um fim contingente, o de sobreviver e produzir
descendentes.
De modo que a luta pela sobrevivência (invariavelmente descrita por
Darwin como relações mútuas de dependência) constitui um fator objetivo, um
fator de estímulo de produção de variações e de pressão competitiva e seletiva,
enquanto a sobrevivência constitui o propósito da disputa: selecionar os
melhores, os mais aptos para sobreviver e não para atingir um resultado ou
conformação específica ao final. De modo que a sobrevivência é uma
consequência possível e visada, o objetivo do processo contínuo.
Destaquemos, para retomar adiante, que sua concepção de que as variações
se dão de maneira contínua admitindo formas intermediárias entre seres
distantes acabou superada pela concepção de variação mutante, brusca e
descontínua, arrastando consigo parte de outras hipóteses que a
acompanhavam.
Inevitavelmente, uma discussão acerca dos princípios, das causas e leis
que governam as variações não poderia deixar de lado a implicação do
homem. De maneira cautelosa, Darwin encaminhou esta questão
reconhecendo que os homens, de fato, não têm influência direta sobre a
110

produção das variações bem como das variedades resultantes. Mas, no


entanto (retomando argumentos do cap. IV, p. 82 e do cap. V, p. 125),
reafirmou que a variabilidade que observamos nas criações domésticas não é
obra direta do homem. Antes, disse, “o homem pode escolher as variações que
a natureza lhe fornece e acumulá-las como entender” (1859, p. 419), além
disso, continua, ele “adapta também os animais e as plantas ao seu uso e aos
seus desejos” (1859, p. 419), reservando-lhe a condição de um fator de
pressão seletiva. No primeiro capítulo, refletindo sobre as variações no âmbito
doméstico, justamente onde a ação do homem pode ser melhor reconhecida e
avaliada, reconheceu mais uma vez que as variações uteis ou agradáveis aos
homens “produzem-se apenas casualmente” (1859, p. 47). Deste modo, ainda
sem conhecer suas leis, o homem pode atuar, inclusive inconsciente, quando
não as deseja, por exemplo, ampliando o número de indivíduos que submete à
criação em detrimento de outros, uma vez que é o grande fator de sucesso de
obtenção probabilística de variações desejadas.
Deixou ainda mais explicito o critério de escolha do homem, por
exemplo, quando relata que, “desde, porém, que começaram a escolher as
plantas que davam o maior fruto, o mais saboroso e mais precoce, a semear os
seus grãos, a adubar as plantas para fazer reproduzir as melhores, e assim
seguidamente, os jardineiros chagaram a obter, auxiliados pelos cruzamentos
com outras espécies, essas numerosas e admissíveis variedades de morangos
que apareceram nesses últimos trinta ou quarenta anos” (1859, p. 48).
Evidentemente que não se trata de um aperfeiçoamento no sentido
lamarckiano, mas de uma conveniência inteiramente justificada no interior dos
valores humanos estéticos e econômicos. Trata-se de uma variação estimulada
e de uma adaptação provocada pelo poder seletivo do homem, adequada às
suas necessidades, proveitos e caprichos, portanto uma perfeição (que implica
em seu oposto como imperfeição e anormalidade) em sua referência.
Chegou a reconhecer que o homem obtém como resultados certas raças
domésticas que apresentam “adaptações que não contribuem em nada para o
bem-estar do animal ou da planta, mas simplesmente para o proveito e
capricho do homem” (1859, p. 40). Éneste sentido que podemos dizer que o
homem criou raças úteis para seu proveito, que atuou como um dos fatores do
princípio de seleção, atuando sobre o mecanismo da variabilidade da natureza
111

cujas leis desconhece inteiramente. Neste ponto, ressurge a noção de


autonomia e maestria humana que discutimos acima a partir de Piveteau.
Desta vez com reservas, pois o próprio Darwin reconheceu que o poder de
seleção e de acumulação que o homem possui consiste apenas “nos efeitos
consideráveis produzidos pela condenação em um mesmo rumo, durante
gerações sucessivas...” (1859, p. 41) sempre considerando que as variações
resultantes são quase sempre imprevistas.
Ocorre neste caso também uma atuação do homem que atua sem
conhecimento das leis da variação, um mecanismo caixa-preta sobre o qual
age e aguarda os resultados, sempre estabelecendo relações entre o estímulo
(sua forma de atuação) e a resposta (o resultado que espera). Consciente
deste déficit teórico Darwin reconheceu que “o homem não pode escolher,
senão, os desvios de configuração que afetam o exterior; quanto aos desvios
internos, poderia somente escolhê-los com muita dificuldade e pouco se
incomodando com isto” (1859, p. 46). De fato, esta perspectiva é bastante
compatível com seu desconhecimento acerca dos mecanismos de variação,
mas antes ainda, acerca dos mecanismos de reprodução, geração e
transmissão hereditária (atente-se para sua teoria pangênica46 sustentada até
1871 em A descendência do homem).
Podemos perguntar se esta seria uma condição limitante circunstancial.
Neste caso teria deixado em aberto uma possibilidade futura de ampliação de
margem de ação na produção e controle de variações, considerando seu ponto
de vista acerca de um conhecimento crescente das leis da variabilidade.
Pensamos que Darwin tratou desta situação tendo em vista evitar atribuir de

46
Curiosamente, Darwin não acolheu a teoria da hereditariedade materialista de Lucrécio apresentada no
Livro IV de seu poema, segundo a qual “quando, na mistura das sementes, a mulher por acaso e de súbito
ganhaenergia e vence pela força a força masculina, então, por causa da semente materna,nascem os filhos
semelhantes à mãe, como o seriam ao pai, da semente paterna.Mas aqueles que se vêem com um e outro
aspecto, pondo juntamente os rostos dospais, esses crescem a partir do sangue materno e paterno, quando
as sementes,excitadas através do corpo pelos estímulos de Vênus, vêm ao encontro uma daoutra e se
misturam com mútuo ardor, de tal modo que nenhuma delas vence ou évencida.Acontece também que
muitas vezes podem ser semelhantes aos avós efreqüentemente reproduzem as feições dos bisavós, visto
que os elementos, emgrande número e de muitas formas, muitas vezes, misturando-se, se ocultam
nocorpo dos pais e transmitem de pais a filhos o que partiu da estirpe primitiva”.Como se vê, a doutrina
da hereditariedade de Lucrécio era frequente entre os antigos e os pontos mais interessantes para
comparação com agenética moderna são o da existência de caracteres que se pode chama dominantes e
recessivos, o do duplogerme e o da transmissão pelos germes dos caracteres hereditários (de modo que o
gene não é mais, nas teorias modernas, do que um átomode hereditariedade).
112

pronto aos homens a possibilidade de causação, de controle e manuseio das


variações após a aquisição dos conhecimentos necessários acerca das leis da
variabilidade em função de uma questão sempre polêmica, a eugenia, que
outros não tiveram pudor em pleitear. Voltaremos a esta questão adiante,
antecipando apenas o comentário de Patrick Tort (1997) de que inventada por
Francis Galton (1822 - 1911) corresponde a uma apropriação ilegítima e uma
aplicação errônea e perigosa de suas teses, que teve ocorrência no período
entre a publicação de a origem das espécies e a Descendência do homem.
Sucintamente podemos dizer que sobre esta questão, Darwin nos
ofereceu um argumento curioso que não pode ficar de fora da reflexão sobre as
escolhas humanas. Ele postulou um modo de seleção de grande importância
que nomeou como princípio de seleção inconsciente. Este, tem por móbil “o
desejo que cada um experimenta em possuir e fazer produzir os melhores
indivíduos de cada espécie. Assim, quem quer possuir cães de caça procura
naturalmente obter os melhores cães que pode; em seguida, reproduz somente
estes, sem ter o desejo de modificar a raça de maneira permanente e sem
mesmo nisso pensar. Todavia, este hábito, seguido durante séculos, acaba por
modificar e aprimorar uma raça qualquer” (1859, p. 43). Certamente é cedo
para aprofundarmos esta discussão, mas é difícil não ver neste argumento a
denúncia de uma natureza eugênica inscrita no próprio homem.
Convém considerar que a analogia entre o que ocorre na escala
doméstica para a natural, que foi objeto do segundo e terceiro capítulos de A
origem das espécies, pressupõe uma diferença radical, pois a natureza atuaa
serviço de um processo de capacitação pela disputa entre membros de uma
mesma espécie e entre elas, segundo uma ação espontânea e não deliberada
da natureza. Na verdade, segundo entendemos, a natureza atua à maneira de
um Leviatã que, como o de Hobbes, devora seus membros, para igualmente
protegê-los, para garantir o desenvolvimento das potencialidades de seus
súditos e a segurança da espécie como um todo.
Certamente é de grande auxílio considerar o que de fato Darwin
entendeu por ação danatureza. Como “somente a ação combinada e os
resultados complexos de um grande número de leis naturais; e, por leis, a série
de acontecimentos que temos aceito” (1859, p. 83). De modo que se cabe à
natureza (e não ao homem) produzir variações, ela o faz segundo leis. De
113

modo ainda que as alterações do ambiente, do clima, do uso e desuso e dos


hábitos “tendem a aumentar a faculdade de transformação” [...] “oferece mais
probabilidade para a produção de variações” (1859, p. 83). De modo que toda
forma de atuação da natureza não é em relação à variação indiferente, mas,
contudo não a precede e tampouco a produz. O que permite concluir que a
variação precede a seleção natural47 que, diferentemente do homem que
escolhe para seu próprio proveito, escolhe para vantagem do próprio ser vivo.
De fato, “dá pleno desempenho aos caracteres que escolhe, o que implica no
fato único de sua seleção” (1859, p. 84). Deixou claro que a seleção natural
esculpe a natureza enquanto trabalha em silêncio.
Estendendo a analogia, reconheceu que “a seleção natural pode obter
os mesmos resultados com mais facilidades, porque a sua ação pode
prolongar-se por um período de tempo considerável” (1859, p. 84). Foi só neste
sentido que Darwin atribuiu ao processo seletivo, nos parece que em ambos
casos, a capacidade de “favorecer o que é bom e rejeitar o que é mau” (1859,
p. 421) a todo ser vivo e favorecer sua descendência e prosperidade pela maior
variabilidade e diversidade possível. É por este meio que a certo momento uma
nova espécie emerge, se destacando em variações de sua antecessora, da
qual é considerada nova e mais aperfeiçoada. Processo pelo qual as espécies
tendem a se tornar mais distintas e bem definidas, sempre numa relação de
continuidade entre indivíduos e espécies. O que implica um esforço de
benefício coletivo e não discriminatório.

47
Esta concepção já encontrava eco no materialismo epicurista e na definição no Livro IV do poema de
Lucrécio. Disse ele que “há nestas coisas um erro gravea que se tem de fugir e que se temde evitar, de
temer, acima de tudo: é preciso que não se julgue que a claraluminosidade dos olhos foi criada para que
possamos ver ao longe; e não é para quepossamos caminhar a passos largos que a extremidade das pernas
e coxas se apóia,articulando-se nos pés; também os braços que temos dotados de fortes músculos eas
mãos que nos servem a um lado e outro nos não foram dadas para quepudéssemos fazer aquilo que é de
utilidade para a vida. Pensar-se seja o que for, aeste respeito, desta maneira, é usar um raciocínio
pervertido, e ao revés: não hánada no nosso corpo que tenha aparecido para que possamos usá-lo, mas é o
ternascido que traz consigo a utilização”. E continuou adiante afirmando que “não existiu a visão antes de
ter aparecido a luz dos olhos, nem o exprimir-sepor palavras antes de ter sido criada a língua; a origem da
língua é, pelo contrário,muito anterior à do falar, e foram criados os ouvidos muito antes de se escutar
oprimeiro som e, segundo creio, existiram, numa palavra, todos os membros antesde terem sido
utilizados. Não puderam, portanto, crescer para serem usados”. Como se vê, Lucrécio negou a existência
de causas finais, muito de acordo com suas idéiassobre omundo, pois num sistema mecanicista como o
seu não pode haver senão causas eficientes. Neste ponto, o raciocínio de Epicuro como o de Lucrécio
estãode acordocom as diretrizes da ciência moderna que afirma que não se pode determinara existência de
causas finais.
114

Em reforço a este ponto de vista, Darwin definiu a noção de variabilidade


como relativa a uma comunidade de descendência. De modo que é pela
ocorrência e pelo acúmulo de variações até certo limite (considerando que uma
variedade bem talhada e definida converte-se numa espécie) que marca a
emergência e a distinção de uma nova espécie, sempre com laços
intermediários detectáveis. Além disto, certos conjuntos de formas individuais
não são mais do que variedades de uma espécie da qual derivam e restam
associadas, o que define a evolução como constituída por graus discretos,
constituindo sempre verdadeiras séries que perfazem o percurso de
constituição de subespécies e, por fim, de nova espécie, em função do acento
de variações48. Em função disso, distinguiu a variabilidade da anomalia, a fim
de evitar principalmente que seus propósitos (e resultados) sejam confundidos,
uma vez que a anomalia exprime um tipo de desvio acentuado de conformação
que em geral é nocivo ou de pouca utilidade para a espécie. De modo que, ao
contrário da variação “normal”, resulta num obstáculo à marcha de sua
perfectibilidade. As anomalias apresentam um estatuo ontológico distinto das
variações individuais que caracterizam cada indivíduo de uma espécie e
indicam sua singularidade.
Tudo isto apoiado na tese de que a natureza evolui numa perspectiva de
conjunto e de continuidade, que foi expressa por Darwin recorrendo à
expressão natura non facit saltum. Expressão que explicita a maneira como se
aferrou à recusa da evolução dada fundamentalmente por meio de
monstruosidades e de aparecimento repentino ou espontâneo de formas de

48
Na tentativa de definir espécie, diz Hoquet (2009), «Darwin préfères´entenir à l´ignorance» (p. 71). Isto
porque, em função das divergências entre os naturalistas de sua época, e mesmo de Lineu e Cuvier,
Darwin considerou, no segundo capítulo, que o termo espécie é dotado de labilidade (de um caráter
indefinível -um termo evidente por si mesmo) e concebido de maneira arbitrária, por razões de
conveniência, agrupando indivíduos que de alguma forma guardam semelhanças entre si, portanto uma
categoria lógica, um conceito heurístico utilizado na organização dos indivíduos, um recurso prático e útil
que possibilita descrever fenômenos naturais. Arrisco estender esta mesma noção ao conceito de instinto,
como definido por Darwin. Hoquet, segue tirando conclusões sobre o fato de que se as espécies (segundo
uma interpretação nominalista de sua obra) têm uma origem, se segue que o próprio termo espécie perde
sua significação, uma vez perdido seu estatuto de essência, de uma criação (origem) independente. Para
ele, a consequência da obra de Darwin produziu «une dissolution de
l´espècedanslesindividusmultiplesquilacomposent» (p. 72), conferindo aos indivíduos a condição de
únicas entidades reais, substanciais. Esta labilidade, esta ausência de uma linha de demarcação, que
obscurece a própria distinção entre espécie e variação (mais tarde, cópia e erro) adiante será explorada e
de grande consequência por Canguilhem que conduz às últimas consequências (acentuando a
incompatibilidade entre a noção de espécie e de indivíduo) a desconstrução da concepção realista
(entidade fixa e definida) das espécies relativamente compartilhada por Darwin.
115

vida49. Definiu a evolução fundamentalmente como um acúmulo de “variações


pequenas, sucessivas e favoráveis, a seleção natural não pode produzir
modificações notáveis ou súbitas, pode apenas agir a passos lentos e curtos”
(1859, p. 422). Todos em função de um mesmo fim geral(p. 422), a
conservação da vida, mas enquanto uma finalidade intrínseca e não
teleológica, como objetivoque se apresenta como um esforço constante de
conservar-se, um esforço dos seres organizados no sentido de produzir
variações contínuas, pequenas, mas vantajosas na luta pela
sobrevivência.Como que um procedimento auxiliar, recusou os argumentos de
interlocutores como Mivart (p. 217) que admitia transformações assombrosas,
como o desenvolvimento repentino das asas das aves e dos morcegos. Darwin
não se deixou convencer acerca destes saltos pelo argumento da falta de elos,
um reconhecido problema da paleontologia, que possam preencher lacunas
entre espécies. Ao contrário considerou a evolução gradual desenvolvendo-se
por ciclos insensíveis50.
Além disso, foi a partir deste desenvolvimento que agregou a tese de
que toda a natureza age ou se dirige segundo “um mesmo fim geral” (1859, p.
422), ao qual tudo se adapta e se conforma numa espécie de esforço lento,
gradual e geral. De modo que em seu esforço a natureza se mostra “pródiga
em variações, sendo muito avara em inovações” (1859, p. 422). Ela não lança
aleatoriamente seus produtos à própria sorte, pois comprometeria seu fim
geral. Ela foi, no limite e na totalidade, como reconheceu o próprio Darwin

49
Sobre isto, divergindo de muitos intérpretes de Darwin, Hoquet reconhece que ele se interessa muito
mais, «à ladéviationqu´à la dérivation» (2009, p. 138). Este ponto de vista foi argumentado indicando que
a frequente metáfora da árvore genealógica que ilustra continuidade entre espécies atribuída a Darwin, na
verdade corresponde a um recurso dos linguistas (especialmente Schleicher; in: Die Deutsche Sprache,
1860; compartilhada com Haeckel) para mostraruma adesão ao evolucionismo que, no entanto, não faz
justiça a Darwin. Este, sem ter recorrido à noção de árvore, galhos ou troncos, apresentou de fato, no
capítulo quatro e dez da Origem, o que chamou de “diagrama” que explica a descendência com
modificação. Neste, não se dedicou a apresentar nem a origem comum, nem o tronco comum e nem
mesmo os galhos de descendência continuada entre espécies. Hoquet aponta que a metáfora da árvore,
«unUrsprungplutôt que d´une Entstehung» (p. 144), portanto sobrepõe uma genealogia (a busca do
primeiro de uma série continuada, tão cara aos linguistas) onde só há a busca de um mecanismo de
originação e especiação. Imprime a noção de continuidade (igualmente cara e demonstrável pelos
linguistas) onde Darwin indicava, ao contrário, irregularidade e aleatoriedade. Equívoco que, segundo
Hoquet, fez do esquema de Darwin uma árvore filogenética. De fato, como vimos acima, Darwin reiterou
que este ponto de vista que busca o primeiro termo (da língua) como a (sua) forma primitiva e sua
derivação, não seria mais do que um hipótese de orientação indemonstrável (apenas alcançável pelos
linguistas).
50
Este mesmo ponto de vista Darwin aplicou à noção de instinto ou comportamento dos seres vivos, cuja
variação e conformação não se produz subitamente, antes por uma modificação lenta e progressiva sob os
cuidados da seleção natural, inclusive submetidos à noção de hereditariedade e de regressão evolutiva.
116

pensada na perspectiva de “perfeição absoluta” (1859, p. 423), segundo o que


nomeou um “princípio de aperfeiçoamento progressivo” (1859, p. 425). Este
princípio encontra atuação inclusive no “fato de a organização de algumas
formas haver retroagido, porque estas formas se adaptaram sucessivamente,
em cada fase de sua descendência, às condições modificadas da ordem
inferior” (1856, p. 426). Subsumindo desta forma inclusive a retroação ao
princípio geral da perfeição absoluta, justificada do ponto de vista da
adaptação, desde que não se confunda com a reemergência literal de formas
uma vez perdidas ou espécies extintas.
Por fim, para não deixar dúvida sobre suas perspectivas teóricas, Darwin
declarou, esbanjando sua concessão a Lamarck, que “a natureza se esforça
por nos revelar, por meio dos órgãos rudimentares, bem como pelas
conformações embrionárias e homólogas, o seu plano de modificações o qual
nos recusamos obstinadamente a compreender” (1856, p. 429). Muito embora
não implique em um plano concebidoa priori.Na verdade, trata-se de uma
intençãoalcançada por meio de um projeto em aberto, que pressupõe
improvisações ilimitadas.Explicitando o caráter objetivo da ciência e a hipótese
de regularidade da natureza declarou que “como todas as formas atuais da
vida descendem em linha reta51 das que viviam muito tempo antes da época
cambriana, podemos estar certos de que a sucessão regular das gerações
jamais foi interrompida e que nenhum cataclismo subverteu totalmente o
mundo. Podemos, pois, contar, com alguma confiança sobre um futuro de
incalculável extensão. Ora, como a seleção natural atua apenas para o bem de
cada indivíduo, todas as qualidades corporais e intelectuais52 devem tender a
progredir para a perfeição” (1856, p. 436).
Por fim, concluiu a obra recapitulando e distinguindo as leis53 (seu
mecanismos) e as causas (tudo que atua em favor delas)da variação e sua
acumulação, vale dizer, causas e leis da produção de novas espécies. A
saber,a lei do crescimento e da reprodução (que expressam mecanismos

51
Segundo a noção de tempo irreversível da termodinâmica.
52
Há dois parágrafos acima Darwin reconheceu que “a psicologia será solidamente estabelecida sobre a
base tão bem definida pelo senhor Herbert Spencer, isto é, sobre a aquisição necessariamente progressiva
de todas as faculdades e de todas as aptidões mentais” (1859, p. 436).
53
Segundo Ritvo (1990), o próprio Claus, enfatizou que “é claramente um mau uso da palavra lei
representar os numerosos fenômenos da hereditariedade parcialmente opostos e limitadores como leis da
hereditariedade, tal como Haeckel faz” (Claus apud Ritvo, p. 173).
117

regrados); a lei da hereditariedade54; a lei da variabilidade. As


variações,verdadeiras reorientações ou reorganizações de um organismo,são
causadaspor numerosos fatores e muitos ignorados,são resultantes da ação
legalista direta e indireta das condições da vida, mudanças de hábitos, do uso
e não-uso, fatores considerados como estimuladores com consequências
hereditárias. São, por fim, regidas por “muitas leis desconhecidas, cuja
correlação de crescimento é provavelmente a mais importante” (1859, p. 49)
Apresentou aindaa lei da multiplicação das espécies, consideradacomo
provocadora da luta pela sobrevivência,por sua vez considerada outra causa, e
não lei,das variações. A luta pela sobrevivência dos descendentes com
variação tem como consequência a seleção natural, definida por Darwin como
um “princípio55de conservação ou de persistência do mais adaptado” (1859, p.
120) que assegura uma certaunidade de tipo. Por fim, no conjunto Darwin
compreende os seres organizados como submetidos a uma lei geral que tem,
“como lema a conservação de todos os seres organizados, ou seja, sua
multiplicação, sua variação, a sobrevivência do mais forte e a eliminação do
mais fraco” (1859, p. 246). De modo que a seleção natural se esforça, á

54
Considerando que Darwin ignorava a genética de Mendel, a hereditariedade aparece em diversos
pontos de sua obra em que declara sua ignorância. Por exemplo, “As leis que regulam a hereditariedade
são geralmente desconhecidas” (1859, p. 28) ou consiste, continua em uma “simples teoria da
probabilidade” (1859, p. 28). A falta da teoria genética de Mendel ficou evidente ao formular, por
exemplo, este questionamento: “Qual a razão pela qual, por exemplo, uma mesma especialidade,
aparecendo em diversos indivíduos da mesma espécie ou espécies diferentes, transmite-se algumas vezes
e outras não se transmite por hereditariedade? Por que é que certos caracteres do avô ou da avó, ou de
antepassados mais remotos, reaparecem no indivíduo?” (1859, p. 29). A esta questão ensaia a formulação
de uma lei: “Uma regra muito mais importante e que apresenta, creio eu, raras exceções, é que, em
qualquer período da vida que uma particularidade apareça de início, tende a reaparecer nos descendentes
em uma idade correspondente; algumas vezes um pouco mais cedo” (1859, p. 29). Deste modo, a
hereditariedade (assim como a variação) deve-se a uma tendência, a uma força (uma relação e não uma
substância) cujo princípio é a consideração de que “o semelhante produz o semelhante” -mas com
descontinuidade. Inicialmente concebida como um ato, o próprio caráter transmitido (por razões ou
fundamentos desconhecidos, embora por leis conhecidas) não é mais do que um resultado, um efeito da
ação de forças, de tendências que após a genética mendeliana passou a ser entendida como transmissão de
um suporte material suscetível de mesclas. E mais recentemente de um código de informações, sofrendo
deslocamento da ação para o conteúdo.
55
De um modo geral, oconceito de princípio está associado às proposições ou verdades fundamentais por
onde se estudam as ciências ou artes, e às normas fundamentais que regem o pensamento e a conduta.
Neste sentido, podemos dizer que a lei da gravidade é um dos princípios da física. Regras fundamentais
admitidas como base de uma ciência, arte etc.. Foi neste sentido que a seleção natural recebeu de Darwin
o estatuto de princípio. Hoquet (2009) lembra (p. 52) que por três vezes Darwin a definiu como vera
causa dos fenômenos de variação e especiação. Sobre tais noções científicas, Hoquet (2009) declara que
«on sait que la variabilité a des causes (effet des conditions de vie, usage et non-usage); la variation a des
lois (corrélations) ; l´hérédité a des règles (apparition de tel caractère chez le descendant de même sexe,
au même âge, etc.); la génération a également des lois. La plupart de ces lois, causes ou régles sont
inconnues ou aperçues seulement confusément » (p. 117).
118

maneira de uma lei da natureza, por promover cruzamentos (seleção sexual)


entre seres vivos e assim ampliar sua diversidade.
Desta forma, o princípio de seleção natural opera sobre a atualização da
luta universal pela sobrevivência, que explica a própria economia da natureza.
Esta luta, ao mesmo tempo em queproduz a divergência de caracteresé
consequência dela, uma vez que resulta da grande emergência de
particularidades extraordinárias, sem as quais os seres poderiam viver em
harmonia eterna. Esta luta produz tambéma consolidação e o aperfeiçoamento
de algumas e a extinção de outras formas menos aperfeiçoadas. Com isto,
Darwin sustentou o que chamou de uma máxima, a de “que uma grande
diversidade de estrutura pode sustentar maior parcela de vida” (1859, p. 107),
cujo resultado é a produção de animais superiores. De modo que a variação é
causa, mas também consequência da luta pela sobrevivência; desencadeia a
competição e dela depende para se produzir e conservar, instaura um
movimento circulare complexificador. Em síntese, Darwin reconheceu que a
seleção natural “atua sempre em razão das lacunas ou de vagas que não estão
perfeitamente preenchidas por outros seres, e isto implica em relações
infinitamente complexas” (1859, p. 110).

************
Sempre considerando a natureza na perspectiva de um conjunto
evolucionário, no capítulo três Darwin avançou na investigação da relação luta
pela sobrevivência com a seleção natural. É verdade que em muitas passagens
esta noção, como dissemos acima, teve seu caráter conflituoso atenuado ao
ser descrita como relações de existência, que não são necessariamente
conflituosas ou litigantes56. Esta articulação expõe o processo de capacitação
(que implicade certo modo um prestigio do ponto de vista progressista
propugnando perfeccionismo e aperfeiçoamento) que estimula e promove a
adaptação dos seres, neste caso regido por um princípio de utilidade. Ela foi
assim considerada causa de tudo o que é produzido em termos ou função da
adaptação.É por ela que as variações, como disse Darwin, “por mais fracas
que sejam e seja qual for a causa de onde provenham” (1859, p. 68),preservam

56
Hoquet (2009) informa (p. 87) que a expressão struggle for lifesempre foi apresentada entre aspas.
119

os indivíduos de uma espécie desde que transmitidas aumentando a


capacidade e as possibilidades de sobrevivência dos descendentes. Assim, as
relações entre os seres vivos são entendidas como disputa que põe em prova
as variações (segundo sua utilidade e adequação) e resulta em vencedores,
em adaptados.
Foi a este processo todo que incita e habilita constantemente para a vida
que Darwin deu o nome de seleção natural, operada segundo um princípio, o
da luta universal pela sobrevivência. Trata-se de um princípio que expressa a
própria economia da natureza, dada por relações mútuas de dependências
entre os seres organizados, sejam da mesma espécie ou entre espécies
distintas e destas com o ambiente. Reconheceu que o emprego do termo não
está apoiado mais do que numa analogia e que de fato seria melhor expresso
porrelações complexasque, esbanjando influência de Malthus, regulam a
sobrevivência do todo a um limite do suportável pelo planeta, evitando ainda a
sobrevivência e povoamento exclusivo ou predominante de uma ou poucas
espécies. Deste ponto de vista, este princípio regula a tendência à reprodução
em progressão geométrica facilmente reconhecível em quase todos os seres
vivos57.
A variabilidade constitui assim um propósito da seleção natural que por
ela amplia as probabilidades de emergência de variações vantajosas e
consequentemente de seu êxito. Mas a este respeito Darwin fez intervir um
questionamento sobre a possibilidade de atuação indefinida e infindável da
seleção natural. Ele aponta, pelo menos duas circunstâncias em que sua ação
encontraria limite; na ausência de fixação e transmissão por herança das
variações vantajosas, além das circunstâncias em que manifesta, como disse,
“a tendência à regressão ao tipo dos antepassados” (1859, p. 99) 58, o que

57
Esta regulação espontânea deixou, ao que parece, de exercer pressão em relação ao homem que, como
discutiremos adiante, parece ter se retraído do âmbito deste princípio. Malgrado os efeitos positivos da
autonomia que parece ter conquistado, como efeito colateral encontra-se diante do desafio de controlar ou
minimizar as consequências de sua reprodução desenfreadamente geométrica.
58
Ainda tratando das leis das variações, Darwin reconheceu que “há uma luta constante, de um lado entre
a tendência à regressão a um estado menos perfeito, assim como uma tendência inata a novas variações e,
de outro lado, com a influência de uma seleção contínua para que a raça se aprimore” (1859, p. 138). Esta
questão foi igualmente tratada por Karl Claus, informa Ritvo, em obra de 1884. Nela declarou que,
“enquanto como regra geral o desenvolvimento do indivíduo é um avanço de uma organização mais
simples e inferior para uma mais complexa, que se tornou mais perfeita por uma continuada divisão do
trabalho entre suas partes [...] no entanto o curso do desenvolvimento pode, em casos particulares, levar a
numerosas regressões, de modo que podemos encontrar um animal adulto com organização inferior á
120

implica em casos especiais de relativização da irreversibilidade do tempo


evolucionário59. Com exceção destes, ela atua sempre em favor da produção
de novos tipos de seres vivos, paradoxalmente, “conservando variações
vantajosas semelhantes, somente pode conceber a uniformidade dos
caracteres” (1859, p. 100), empregando esforços para mantê-las. E é
justamente do interior desta diversidade com homogeneidade que um indivíduo
“escolhe” caminhos adequados para atingir seu fim específico que é o de
conservar-se e perpetuar-se.
Deste modo, sua concepção positiva, de seleção natural equivale à de
êxito e de sobrevivência do mais apto, sendo que todo indivíduo e espécie
adaptada advém mais capaz como resultado da emergência, da incorporação e
da transmissão de variações favoráveis associada à eliminação de variações
nocivas, resultando na modelagem de uma forma adequada e, nestes termos,
perfeita para a vida. Como se vê, todo vocabulário expresso como
melhoramento, perfeição, entre outros, impede a ruptura radical com pelo
menos uma certa intenção ou propósito da natureza, embora não possa ser
confundida com uma meta teleológica definidaa priori. Sustenta a confiança de
que o que é vivo tem como finalidade manter-se como tal, em função do que se
recria incessantemente. Cada ser vivo se forma, se auto constróiem parceria
com o meio ambiente que seleciona seus resultados, segundo um impulso que,
não apresenta contradição interna (só pode ser interrompido do exterior), bem
em conformidade com o conatus de Espinosa.

larva. Este fenômeno [...] corresponde às exigências da teoria da seleção, já que sob condições de vida
mais simples, onde a nutrição é mais facilmente obtida (parasitismo), a degradação e mesmo a perda de
partes pode ser vantajosa para o organismo” (Claus apud Ritvo, p. 203). Creditamos esta concepção da
evolução sob a perspectiva antagônica do progresso adaptativo e da regressão a estados anteriores, que
contraria a noção de tempo evolucionário irreversível,à sua noção da hereditariedade pangênica, que
implica a noção de espermatozoides sob forma de homúnculos, como células pré-formadas (gêmulas) que
representam cada parte do corpo dirigidas aos órgãos de reprodução, que não leva em conta o fator
probabilístico da emergência nos descendentes de características complementares e compartilhadas pelos
genitores (esta sustentada pela teoria cromossômica). Esta teoria permite toda emergência ou
reemergência de características pretéritas explicada como regressão e não como possibilidade
combinatória. Até porque o que Darwin identificou como regressão nada mais é do que a surpreendente
reaparição de caracteres “que desapareceram durante um grande número de gerações, centenas talvez”
(1859, p. 143). Esta reemergência foi explicada, considerando “que o caráter em questão se encontra em
estado latente nos indivíduos de cada geração sucessiva e que, enfim, esta característica se tenha
desenvolvido sob a influência de condições favoráveis, cuja causa nós ignorávamos” (1859, p. 143).
59
Sobre a relação do tempo com a evolução Darwin esclareceu que “a duração do tempo é somente
importante –e nisso não exageraríamos esta importância- porque apresenta mais probabilidade para o
surgimento de variações vantajosas e lhes permite, após fazerem o objeto da seleção, acumular-se e fixar-
se. A duração do tempo contribui, igualmente, para aumentar a ação direta das condições físicas da vida
relativamente à constituição de cada organismo” (1859, p. 101).
121

Mas nem só de oferta de vida atua a seleção natural, ela é igualmente


compreendida como ocorrendo segundo um princípio complementar, o da
extinção.É de sua combinação que deriva o que Darwin chamou de uma
tendência constante (1859, p. 111) entre os seres para eliminar seus
antepassados e concorrentes. Motivada especialmente pela progressão
geométrica de multiplicação dos seres vivos.Tudo isto dito, restou uma palavra
final sobre sua noção recorrentede aperfeiçoamento e de progressodos seres
organizados. Pois bem, não foi com ingenuidade que Darwin abordou esta
questão. Dedicou-lhe um subtítulo do quarto capitulo que intitulou
prudentemente Do possível progresso da organização. De início, pode ser
entendido como resultado das pressões da seleção natural, explicitando uma
tendência a se aprimorar continuamente e cada vez mais em relação a estas
pressões. Uma tendência ao aperfeiçoamento, como disse, que “conduz
inevitavelmente ao progresso gradual da organização de maior número de
seres vivos em todo o mundo” (1859, p. 115). A este movimento, chamou o
ponto final do progresso.
Contudo, este critério de evolução pelo progresso da organização, que
compreende coisas como uma complexificação dos seres vivos acompanhado
da especialização de diversos órgãos, que inclui o aprimoramento (intelectual)
do cérebro, nem sempre se mostra consistente. Darwin mencionou casos em
que animais bem adaptados (certos crustáceos parasitas) alcançam a condição
adulta sem mesmo se diferenciar de sua condição larvar. Há que se considerar
ainda que seres muito simples restam como tal por muito tempo em condições
estáveis, dada a suficiência de seus dispositivos para assegurar sua
adaptação. Lembra também que em certas circunstâncias, a adaptação pode
ser prejudicada na medida em que em dada situação um ser pode encontrar-se
dotado de muitos órgãos que se mostram supérfluos e inúteis na ocasião. Caso
em que a complexificação seguida da especialização pode reduzir a
capacidade adaptativa dos seres vivos.
De modo que, nestes termos, a complexificação e a especialização de
órgãos perde força como critério indicativo do sentido do progresso. De modo
que a situação pode ser invertida e o critério abandonado, já que os
argumentos indicam que a complexificação não resulta, pelo menos não
necessariamente, em ganho adaptativo. Principalmente porque não foi
122

concebida nos padrões conceituais de Lamarck. Atualizado seus termos, ela


pode até resultar inútil e prejudicial. Reconheceu que em certos casos ocorre “o
que nós devemos designar por retrogradação de organização” (1859, p. 117),
na condição de providência útil e vantajosa para a adaptação do ser vivo. Por
fim, por aperfeiçoamento, Darwin definiu a relação que cada criatura de uma
espécie mantém com as condições orgânicas e inorgânicas da sua existência;
um progresso de sua organização, cuja complexidade se relaciona com a
complexidade de suas condições de existência, que é medida com a régua da
adaptação.
*************
A articulação entre variação e seleção natural reapareceu na discussão
do capitulo cinco relativa às leis que regulam toda variação dentre os seres
organizados. Darwin relativizou a natureza fortuita que muitas vezes ele próprio
lhes atribuiu. Encaminhou esta reflexão informando, e ao que tudo indica
recusando, a tese de que alguns cientistas (não nomeados) atribuem ao
sistema reprodutor a dupla tarefa de produzir diferenças individuais, ou inda,
pequenos desvios de estrutura ao mesmo tempo em que produzem
descendentes semelhantes aos pais. Colocou assim em evidência a oposição
que encontramos ao longo de toda história da evolução entre cópia e erro. De
fato, ainda é cedo para dirimir se Darwin compartilhou da perspectiva da
variação como erro ou equívoco da reprodução, mas certamente lhe atribui
outra causalidade.
Na perspectiva pendular entre variação e seleção natural, Darwin de
início, retirando o foco no sistema reprodutor, desloca-o para o exterior, para as
condições de sobrevida às quais cada espécie está submetida. Estas, atuando
principalmente sobre toda a organização dos seres vivos além do sistema
reprodutor. Em síntese, concebido como dotado de plasticidade de
constituição, organismo e condições ambientaiscompõem o cenário da
produção de variações, ao qual agrega ainda o uso e o não uso de órgãos que
os fortalece ou suprime. Isto reconhecendo o limite do argumento, pois lembra
que muitos naturalistas demonstraram que uma certa espécie pode manter-se
idêntica ainda que vivendo em clima muito diverso. No entanto, tal argumento,
queretira o acento da ação direta das condições ambientais sobre a produção
de variações foi justificada por Darwin como expressão de “uma tendência à
123

variabilidade, devido a causas que absolutamente ignoramos” (1859, p.


125).De modo que a produção da variação, segundo causas internas ou
externas, resta sempre numa zona de desconhecimento, mas sem deixar de
receber atenção às suas consequências, como viabilizadora de adaptação e
conservação.
*************

Já a noção de instinto recebeu no oitavo capítulo uma atenção especial


e foi relacionada à de comportamento e hábitos. Darwin procurou dar à ela um
estatuto semelhante ao de espécie e submetê-la à mesma noção de variação,
de fixação e de transmissão hereditária. Tudo sob os cuidados da seleção
natural. Argumentou que “se cada parte do corpo é suscetível de variações
individuais em qualquer idade, e essas variações tendem a tornar-se
hereditárias na idade correspondente, fatos que não aceitam contestação, os
instintos e a conformação podem modificar-se lentamente, tanto nos novos
como nos adultos. São estas duas proposições a base da teoria da seleção
natural e que devem subsistir ou cair com ela” (1859, p. 228).
Assim, operou em relação à noção de instinto, definido como
comportamento ou hábito adquirido e herdado o mesmo esquema que deu à
noção de ser vivo organizado e de espécie. Padronizou-o como unidade
(padrão) de atitudes, ainda que admitindo um sem número de variações.
Admitiu sua regularidade e sua variação. Admitiu queherdar um hábito constitui
um evento de aprendizagem singular que, no entanto, quando catalogado
(classificado) apresenta tantas variações e gradações quantos lugares e
ocasiões observadas. De modo que todo comportamento instintivo seria uma
ação exclusiva e sua padronização não passa de uma idealização do
observador. Sua padronização não encontra respaldo na natureza, pois como
demonstrou uma mesma espécie apresenta uma diversidade de
comportamentos compreendidos como instintos (1859, p. 221). De modo que a
noção de instinto resultou tão artificial como a de espécie e pode facilmente ser
reconduzida à de comportamento exclusivo, assim como a de espécie à de
indivíduo.
O instinto, equiparado com limitações ao hábito, a não ser pela origem
(considerando o primeiro herdado e o segundo adquirido), foi pensado também
124

como uma faculdade mental, ao lado de outras. No homem, reconheceu sua


presença, mas associada à reflexão. Isto porque se, de início, trata-se de
comportamento inconsciente, pode ao fim ser modificado pela razão ou pela
vontade.
Considerado como um hábito, pode tornar-se hereditário, ampliando a
analogia: o que foi um hábito preteritamente torna-se um instinto atualmente,
um comportamento que não resulta da experiência de aprendizado. Por
exemplo, instintos atuais como os das abelhas e das formigas não foram
adquiridos pelo hábito.De modo que, um ser vivo organizado herda a
competência, além da habilidade para desempenhar ou executar certos
hábitos.De toda forma, são como que o complemento parao bem estar e
adaptação dos seres vivos em acréscimo com suas características físicas
favoráveis e vantajosas, tudo sempre sujeito à variação para o mesmo fim.
Tudo em conjunto, variado e conservado (em outro sentido, eliminado) pela
seleção natural que, sem o poder fazer emergir abruptamente instintos
complexos, emerge pela acumulação lenta e progressiva de pequenas
variações físicas e instintivas vantajosas.

De Darwin ao darwinismo (Da evolução ao evolucionismo)

É verdade que todo o trabalho investigativo de Darwin ocorreu em um


momento em que a questão quanto à ocorrência de uma aceleração da
naturezapor variação dos seres vivosjá gozava de relativo prestígio. Fato que
de longa data fazia oposição à hipótese criacionista, ao modelo arquetípico de
cada ser vivo, à criação especial e à sua reprodução invariável(salvo em casos
de degeneração). No entanto, mesmo este consenso já não apresentava
coesão a partir das questões particulares relativas ao seu processo, à sua
origem e ao seu destino.
Com o enfraquecimento, tecido lentamente, do criacionismo, estas
questões fundamentais passaram a impulsionar o que passou a responder pela
rubrica de transformismo e depois evolucionismo. Termo,utilizado e introduzido
por Darwin apenas na sexta edição de A origem das espécies, justificado pelo
seu sentido de movimento planetário. O fato é que, marcado pelo debate
suscitado desde sua primeira publicação, foi cunhado o termo darwinismo, em
125

torno do qual foi produzida uma nova lógica da origem e da evolução das
espécies e de seus modelos explicativos.
Este fenômeno que arriscamos identificar como um ponto de inflexão na
história da ciência moderna (marcado por uma reemergência do epicurismo,
como sugere Hoquet),apresenta sua própria história, uma história da ideia de
evolução por descendência com variação,sob a influência de inúmeras
contribuições internas e externas. Para ficarmos em poucos exemplos,
relembramosas pesquisas em botânica de Hugo de Vries publicadas em The
mutation theory (1900) e Speciesandvarieties: thereoriginby matation (1905), a
partir das quaistoda variação pode ser concebida como variação brusca, em
relação de descontinuidade com seu ascendente.
Outra contribuiçãopontualmente especial ocorreu entre os anos trinta e
quarenta do século XX por iniciativa do zoólogoJulian Huxley em Evolution: The
modernsynthesis (1942) e ErnstMayrque recebeu o nome de teoria sintéticaque
concerne ao modo unificado da Biologia dar conta da tese da seleção natural
articulada à genética de Mendel.Iniciativa que agregou ao debate termos (e
conceitos) como mecanismo, evolução cega, acaso, contingência,
aleatoriedade, probabilidade entre outros que enriqueceram ao mesmo tempo
em que deram outra configuração e rumo ao tratamento da questão. Assim, no
interior da chamada Biologia molecular que, a partir da teoria da dupla hélice
de James Watson e Francis Crick, de 1953, que recebeu posterior contribuição
de Jacob, Monod e Lwoff, a teoria de Darwin sofreu reformulações internas e
contribuições externas que conferiram contornos amplamente divergentes dos
concebidos inicialmente.
Certamente sua história encerraconsiderações filosóficas como, por
exemplo, a encruzilhada que dispõe a evolução,ora sob efeito de uma intenção
e finalidade, orasob efeito da contingência, da aceleração sem projeto e sem
projetista. De qualquer forma, com o compromisso de oferecer um modelo
explicativo da evolução, as diferentes teorias guardam em comum a recusa do
criacionismo, da origem ex nihilo das espécies eda imutabilidade formal de
cada ser vivo. Afinal, trata-se de mudança, de variação, mas sob que
mecanismo, sob que jogo de forças, sob que lógica? Justamente sobre estas
questões que o debate tem se dado e as correntes constituídas.
126

O fato é que antes mesmo de Darwin, esta questão já havia recebido


especial impulso de diferentes autores, por exemplo, de Lamarck. Outro
importante agente foi Mendel, desconhecido de ambos, que tanto contribuiu
para a explicação do modus operandi da variação dos seres vivos.Sabemos
hoje que questões como incorporação de caracteres e transmissão aos
descendentestiveram que aguardar a “ressureição” de Mendel, no início do
século XX, para serem atendidas devidamente e o debate ganhar impulso.
Contribuição que, a partir de seu experimento com ervilhas, finalmente
solucionou o problema de Darwin acerca da transmissão (hereditária) das
características adquiridas, superando em definitivo suas hipóteses da herança
compartilhada pelos genitores e da pangênesis. Mendel postulou que a
hereditariedade era dada por meio de unidades discretas, mais tarde
nomeadas genes, que não são misturadas na fecundação, mas que
permanecem intactas por muitas gerações e podem eventualmente reaparecer
e integrar a fecundação. Esta descoberta introduziu consistentemente a noção
de aleatoriedade no processo de composição e transmissão genética.
Possibilidade que nunca ocorreu a Darwin.
Foi a partir de conjunções lentas, laboriosas e felizes que a noção de
variação por mutação finalmente pode emergir e ganhar consistência, a partir
da consideração de que os genes estão submetidos a variações probabilísticas
(ou aleatórias) e assim explicar as diferenças entre os indivíduos e seus
descendentes. Evidentemente, a partir deste fundamento o papel da seleção
natural foi revisado, poisreforçou consistentemente o ponto de vista de que a
variação precede a seleção natural que, nesta perspectiva, consiste numa boa
ou má acolhida de um individuo (que sofreu a variação) por parte do meio
ambiente. Desta forma, a variação probabilísticaensejou a contingência e a
circunstancialidade, secundarizando o foco da herança do adquirido, ocupando
o lugar de fator explicativo da evolução.
Na forma de um ganho teórico, a variação genética, agora definida como
mutação, passou a compreender e justificar tanto a sobrevivência como o
extermínio de um indivíduo, bem como as condições de transmissão de suas
características. Ao lado da transmissão, a variação por mutação passou a ser
considerada a chance de um individuo sobreviver em um ambiente adverso,
que de outro modo o selecionaria para a morte. Seu estatuto não ficou imune a
127

considerações e interpretações divergentes. Dotada de propósito ou finalidade?


Mera possibilidade?Passo a apresentar algumas diferentes interpretações
contemporâneas valiosas do evolucionismo para este debate.
*************
Segundo Jacques Roger (1979), devemos a Lamarck uma teoria
completa da evolução (p. 17), já no início do século XIX com a publicação da
obra Philosophie zoologique (1809). Inclusive dotada deum vigor que estimula
ainda nos dias de hoje o que Roger chama de neo-lamarckismo. É bom
lembrar que Lamarck foi iniciado na própria tese evolucionista (ou
transformista) já concebida por Comte de Buffon (1707 - 1788), de quem foi
discípulo. Concebeu a variabilidade regular e gradualdas formas originais das
espéciessob influência do meio ambiente, além da introdução da própria noção
de que a Terra e os seres vivos têm uma história, um tempo de transformação.
Partiu de uma concepção de que os seres vivos evoluem no interior de uma
escala que vai do simples ao complexo, uma crescente sofisticação decorrente
de uma tendênciaespontânea da natureza que impulsiona todo ser a alcançar
um grau mais alto na escalapor meio de relações com seu meio, segundo
circunstâncias que demandam a emergência de novas formas para executar
novas funções. Concepção que só faz sentido pelo pressuposto de uma escala,
diz Roger «oùlesêtresauraintvraimentétérangésenligne» (p. 20). Uma evidente
identificação kantiana entre natureza e progresso.
Tudo isto segundo o pressuposto de um processo de adaptação que
permite o desenrolar desta linha de complexificação e progresso, na medida
em que os seres são estimulados a criar, eliminar ou modificar seus órgãos,
segundo uma força ortogenética que os provê de dispositivos de interação e
resposta ao meio ambiente.Há assim uma articulação consequente entre
tendência e adaptação que dá conta de explicitar, como diz Roger,
«uneffortbiologique de l´organismepourrépondre à tel ou telbesoinimposé par
lemilieu» (p. 21).Trata-se de uma teoria de sucessão dos seres vivos que
pressupõe um dispositivo de conservação da variação adquirida (mais
propriamente alcançada) e de sua transmissão aos descendentes (mecanismo
não inteiramente explicado até os experimentos de Mendel).
Evidentemente Lamarck se valeu de uma concepção frequente à sua
época, a de progresso que mais e mais ganhou densidade no século XIX com
128

a revolução industrial, portanto pautado numa filosofia da história iluminista


que, já sustentada por Kant, como vimos acima, se fazia presente na Inglaterra
e na França igualmente. Com efeito, sua teoria outra coisa não foi do que uma
explicação da transformação e do progresso da vida na perspectiva de uma
finalidade recusando toda forma de criacionismo e de fixismo.
Roger lembra que até o destaque e apoio incondicional dado
porWeismann, a partir de 1883, ao mecanismo de seleção natural, ao mesmo
tempo em que se opunha a todo princípio de perfeccionismo das variações, o
próprio Darwin havia aceitado as teses de Lamarck relativas à herança dos
caracteres adquiridos além do desenvolvimento dos órgãos pelo seu uso e
desuso, de acento no fator externo, motivado pelos desafios impostos pelo
meio ambiente.Pois bem, se ambos compartilharam a noção de que as
espécies estão submetidas a um processo de transformação incessante, foi
justamente em relação à postulação de uma tendência da natureza por
Lamarck que Darwin divergiu (não sem fazer devidas concessões).
Recusouseu caráter metafísico, substituindo-a pela cooperação entre dois
fatores,seleção natural e variação.
Sem conhecer as leis da genética de Mendel, admitiu a evolução como
decorrente de pequenas variações decorrentes, em parte, do próprio
mecanismo de reprodução dos seres vivos. De modo que uma variação por
mais modesta que seja pode, eventualmente, se selecionada, conferir
vantagens aos seus portadores. Deste ponto de vista, uma variação
evidentemente brusca pode ser compreendida como aberração ou anomalia,
impossível de possibilitar continuidade entre indivíduos quando impossibilitados
de produzir descendentes60. De um modo geraluma variaçãopode ser favorável
ou desfavorável, ou ainda neutra.
Contudo, resta considerar que a natureza, por meio do segundo fator
seleciona, ou oferece a oportunidade, de continuidade ou mesmo de
conservação dos indivíduos que sofreram as variações mais favoráveis e por
isso se tornaram mais aptos para sobreviverem. Este ponto de vista, foi
interpretado por muitos como uma retomada do argumento metafísico de

60
Em outra abordagem desta questão, Canguilhem afirma (1952) que a tese de uma escala contínua entre
os seres de descendência comum (epigenia e especiação) teve, no espírito da Renascença bem como do
século XVIII francês, nos seres monstruosos o exemplo que indica as formas de transição, de passagem
de uma espécie à outra, como os peixes-pássaros, os homens marinhos etc..
129

Lamarck assegurando, senão um progresso, ao menos a conservação da vida


como intenção da natureza e providência da seleção (neste caso entendida
como escolha). Algo como se a própria natureza procedesse em seu modus
operandi a uma continua escolha, uma intencionalidade,pelos mais
capacitados, algo que remete à analogia inicial com a seleção artificial.Visando
restituir a verdade, Pierre Thuillier (1979) atribui a Darwin a noção distinta de
que a seleção natural não é outra coisa do que um mecanismo que opera às
cegas e que o emprego do termo seleção não remete a umaescolha
intencional.
De qualquer forma, Darwin substituiu a tendência para o progresso da
vida por um efeito de conservação da vida, dado em função de uma
coincidência entre a variação sofrida pelo indivíduo e o desafio seletivo imposto
pelo meio ambiente. Este,sob forma de mudança climática, geológica ou
mesmo de disputa entre espécies ou entreindivíduos de mesma espécie, por
alimentação e abrigo. O bom resultado permite a produção de descendentes
igualmente aptos para sobreviverem às novas circunstâncias, posto que
herdama característica vantajosa adquirida. Considerando ainda que as
variações vantajosas em tese se acumulam, preparam uma espécie mais
capacitada, mais complexa para lutar pela vida (e aqui Darwin parece em parte
reconciliado com Lamarck quanto à complexificação que pode favorecer a
adaptação e conservação da vida, embora possa decorrer de uma
simplificação também). Vemos mais uma vez a hipótese da transmissão por
herança ganhando importância, afinal a seleção só faz sentido e tem eficácia
quando a vantagem é transmitida.
Sobre esta questão, a Biologia teve que esperar para assumir de fato
todas as consequências da introdução da variação descontínua,num
movimento de tipo equivalente ao salto quântico da Física61, que ocorre no
interior dos cromossomos responsáveis pela reprodução celular e pela
transmissão de informações e características entre os indivíduos. Além disso,

61
Sobre a natureza descontinuista da mutação, Jacob (1970) declara que«lesvariations de l´hérédité se
font par sautsquantiques» (p. 243). De modo que genes correspondam a átomos, inclusive em sua
condição primária de «être de raison» (p. 246). Igualmente, Monod (1970), justificando o sentido
temporal de irreversibilidade da evolução como idêntico ao que foi postulado pela termodinâmica, alega
que «ils´agit de bienplusqu´unesimplecomparaison» (p. 139), ambas fundadas no recurso estatístico-
probabilístico.
130

uma variaçãoconcebida como uma característica adquirida pelo indivíduo não é


sempre ou necessariamente incorporada ao gene e, portanto não é neste caso
transmitida aos descendentes.
O fato é que em qualquer época, a noção de herança, sempre levada
em consideração, gozou de justificativas relacionadas à noção de que uma
vicissitude sofrida por um indivíduo seria incorporada constituindo o patrimônio
da espécie enriquecida por este meio. O fato é que, mal explicada até Mendel,
depois dele sofreu, pelas descobertas da Biologia molecular, considerável
desvio, na medida em que informa que toda linha germinal está, ela mesma, ao
abrigo da vicissitude sofrida por indivíduos em sua relação com o mundo. A
noção de incorporação e herança foi assim afastada da contingência biográfico
dos indivíduos e dirigida para o interior do mecanismo reprodutivo da célula. De
modo que o que é transmitido é o patrimônio contido no código genético e
conta suas vicissitudes próprias.
A partir desta noção de transmissão hereditária ficou enfraquecida ainda
mais qualquer perspectiva de tendência ou intenção na natureza. Mais ainda,
enfraquecida a consideração de que a evolução por complexificação e
conservação da vida seja algo inscrito no processo evolutivo.De modo que,
nestes termos, a vida na Terra estaria assegurada, de maneira antinômica,
tanto por um instante como pela eternidade, particularmente porque a variação
abruptadireciona a vida para lugares e formas não previstas, desarticuladas
das precedentes.Para além de umaevolução teleológica da natureza, mas
também sem cair no mero e absoluto acaso,resguardandosegmentos de
regularidade da natureza.
É importante lembrar que os avanços da genética permitiram
compreender a peculiaridade, antes em hipótese, do mecanismo de variação e
seus destinos. Sobre isto AlbertJacquard (1979), especialista em genética de
populações, lembra que hoje podemos considerar que a mutação é a própria
fonte de fornecimento de genes novos que uma espécie dispõe. Neste caso,
lembra também que toda variação por mutação ocorre de início em um
indivíduo, por princípio indiferente à espécie. Isto implica que ela pode tanto
desaparecer imediatamente como se fixar e se espalhar (desde que ofereça
uma vantagem seletiva) a ponto de alcançar uma frequência que ultrapasse
131

outras formas concorrentes. Seria a oportunidade de uma diferença se


tornaruma identidade.
Com este argumento Jacquard aponta o enfraquecimento da importância
da seleção naturalcomo provocadora das variações. Sob este ponto de vista,
ela opera sobre grupos ou sobre indivíduos completos e não sobre os genes.
Esta mudança de foco indica que tanto a produção de variações como a
transmissão de sua inscrição nos genes dos pais aos filhos ocorre indiferente
às influências exteriores. Como ele diz, «mais, si le milieu n´agit pas, il nous
faut admettre l´intervention d´un facteur essentiel: le hasard» (p. 121),
descoberta essencial (e inconsciente) que atribui a Mendel. Ocorreu um
divórcio da relação biunívoca entre indivíduo e meio ambiente, entre interior e
exterior. Portanto, a diversidade e, no limite, a conservação da vida deixou de
depender inteiramente da coincidência favorável das mudanças morfológicas e
fisiológicas de órgãos com o meio ambiente que a recebe.Ela foi, como
reconhece Jacob (1970), na passagem do século XIX ao XX, influenciada pela
redescoberta do que chamou a atitude de Mendel, a quem devemos uma
mecânica probabilística e (relativamente) descontinuista na composição e
transmissão de caracteres.
Pois bem, sem recusá-la, mas secundarizando o papel da seleção
natural e destacando o da mutação, Jacquard continua «il n´y a aucuneraison
de convergerversuncertaintype, versuncertainoptimum. Il n´y a plus de
optimum» (p.122). Desta vez apoiado no reconhecimento de indeterminação e
impossibilidade de elucidação completa dos mecanismos evolutivos, o que
repercutea abordagem probabilística de Mendel. Em lugar de leis
determinísticas de variação (como pretendeu Darwin),a estatística oferece uma
lista dos possíveis, efetivamente infinita. Acrescenta que «il n´est pas du tout
nécessaire que le possible le plus probable soit celui effectivement réalise» (p.
124). Nada além de uma probabilidade atribuída a uma possibilidade.
Este ponto de vista, longe de atribuir à evolução um movimento
totalmente caótico e sem alguma necessidade (que mantém seu papel na
evolução), está inserido numa perspectiva de unidade do mundo vivo. Esta
pode hoje ser explicitada, para além de Mendel, com maior precisão pela
pesquisa molecular em Biologia que estuda a composição química dos
organismos e das moléculas e particularmente suas formas e funções,
132

considerando que os primeiros são expressões da organização das últimas.


Donde se obtém maior precisão sobre o mecanismo da evolução a partir do
estudo da função e do modo de reprodução das moléculas, que é semelhante
em toda parte do mundo vivo. Ela reforça e explica, portanto como diz
François Chapeville (1979), «la grande unité du monde vivant» (p. 94). Mais
ainda, ela reconheceu que toda organismo vivo é resultado de uma
combinação dos quatro nucleotídeos que constituem os ácidos nucleicos (DNA
e RNA), além de um encadeamento rigoroso e determinado de vinte
aminoácidos que dão constituição às proteínas.
No entanto, durante a reprodução celular este encadeamento pode
sofrer modificações nas propriedades físico-químicas das moléculas e, por sua
vez, na morfologia e fisiologia dos organismos, observáveis cotidianamente.
Por conta disto, podemos reconhecer facilmente que a unidade do mundo vivo
depende estritamente, como diz Chapeville, da «identité des mécanismes de
synthèseet de reproductionfidèle de cesmacromolécules au cours des
générations» (p. 95). Assim, para ele toda diferençase dá sobre uma unidade
fundamental. De modo que toda diferenciação que produz complexificação
corresponde a algo da ordem de um incremento não somente quantitativo, mas
também qualitativo.
O surpreendente desta descoberta e deste ponto de vista foi o reforço
que proporcionou à hipótese de Darwin damonogenia ou epigeniaque
mencionamos acima.Isto porque, hoje um biólogo molecular pode admitir sem
embaraço o parentesco entre todas as espécies vivas, o reconhecimento
deumaorigem e descendência (com variação) comum entre espécies. De modo
que um ancestral comum que passou por um processo de especificação, o fez
segundo uma relação deparentesco (seja por continuidade, seja por ruptura)
entre seus descendentes. De modo que os seres vivos atuais
seriamdescendentes de galhos que são prolongamentos de um mesmo tronco.
Trata-se, lembro, do que Kant, na Crítica da razão pura, chamou decontinuum
specierum que pressupõe uma modus operandi, enquanto ideia regulativa,
continuísta na natureza, que chamou continui in natura.
Este ponto de vista, de certa maneira assumido pelos biólogos
moleculares, foi justificado porJacques Ninio (1979) nos seguintes termos: «on
essaye, encomparantlesséquences, de déduirel´ensemble des
133

filiationsévolutives.Si deux espèces possèdent des hémoglobines três


semblables, on en déduit qu´elles ont récemment divergé à partir d´un ancêtre
commun» (p. 97). Reconhece assim a hipótese de uma árvore (genealógica)
dotada de um tronco original, de onde são lançados galhos e ramos diversos.
O que mostra a força e eficácia de uma ideia regulativa na organização dos
fatos observáveis e exemplifica o poder crescente de uma ciência que avança
fazendo uso cada vez mais potente e seguro das inferências que constrói. Por
exemplo, o avanço que a Biologia molecular representou em relação à
anatomia comparada relativamente à hipótese epigênica.
Um argumento central desta teoria é o de que moléculas evoluem
sempre, ainda que nenhum fator externo observável pareça produzir ou
incentivá-la.A noção particular que Ninio apresenta de evolução, mais afeita à
ideia de um gradualismo, admite que toda mudança observável seria resultado
de um acúmulo de pequenas variações moleculares que, portanto, não se
manifestam de pronto. E nisto comunga com a genética clássica de Mendel
que indicava também esta latência de manifestação tanto de características
estáveis como de variações. Já que a composição da carga genética dos pais
não produz um terceiro produto sintético que corresponde a uma soma de
ambos transmitida integralmente.
Bem, ao contrário, Mendel havia demonstrado que uma vez que o
material genético de cada genitor conserva sua individualidade intacta, o
descendente imediato pode receber, por combinação randômica,
probabilisticamente descrita, certas características e não receber outras que
poderão reaparecer mais adiante em sua própria descendência. Redefinindo as
condições decomposição e transmissão de caracteres. Arranjo que foi de certa
forma preservado pela Biologia molecular concernente ao processo de
reproduçãono interior de uma molécula.
Ela oferece informações sobre mecanismos importantes para justificar e
compreender a evolução. Esclarece mecanismos de recombinação genética,
de duplicação de genes, como diz Chapeville,
«mécanismesquipeuventconduire à lashyntèse de protéines tout a fait
nouvelles»(p.102). Trata-se, portanto de um mecanismo que tem a função de
transmitir um tipo de patrimônio, a princípio invariável, que admite em seu
interior um tipo de falha que produz uma diferença cujo resultado é colocado à
134

prova, vale dizer,selecionado, no ambiente e na circunstância em que ocorre. O


resultado é que mesmo numa situação em que, por exemplo, uma bactéria
resulte de uma cópia “errada” (probabilidade escassa entre o número de
ocorrências), possa deste erro obter uma vantagem adaptativa.

O mecanismo de duplicação ou cópia celular remete a uma questão


fundamental que é a noção de erro nos procedimentos da natureza,
identificando a variação como falha. Em seu auxílio evocarei os argumentos de
Jacob apresentados justamente num capítulo intitulado La copie et l`erreur, de
1970. Jacob lembra que há um mecanismo cuja função é a de contribuir para o
que seria o projeto de todo organismo vivo, o de se duplicar, de modo que cada
ser reproduzido seria o resultado de um programa genético construído no longo
e pretérito processo de vida de sua espécie, sob este ponto de vista uma
acumulação de sucessos. Sucessão que ocorre desde a origem da vida e que
tudo teria a ganhar se nada sofresse alteração, nem no polo do organismo vivo
replicante, nem do ambiente que o acolhe. Neste sentido ideal, a evolução
consistiria basicamente no aperfeiçoamento, no refinamento do processo
reprodutivo e de seus resultados.

No entanto, neste percurso, todo ser vivo paga um preço, o de uma


pequena falha, de um erro que compromete seu processo de reprodução. Uma
falha que se revela uma astúcia. A Biologia molecular reconhece ainda nos
mecanismos celulares uma função de reparar ou corrigir más formações, da
qual depende a estabilidade e a constância de seu sistema, evitando sua
desagregação. Contudo, não se trata de afirmar um processo infalível.Antes,
reconhece inclusive que há erros que podem ser incorporados e transmitidos
às gerações futuras. Erros que alteram as instruções genéticas, que se
inscrevem no código genético e que desorganizam a execução de suas
instruções. Sem esquecer a possibilidade de erros que não são incorporados e
nada alteram no processo, identificados como variações neutras.

Acerca das variações que Jacob chamou de mutação, acabam por


alterar a própria mensagem genética da célula produzindo consequências
quando daí em diante recopiadas fielmente. Desta tensão entre cópia e erro
compreende o processo evolucionário, recolocado segundo um plano que a
135

bem da verdade corresponde à memória da espécie. No entanto este resultado


se mantém aberto a acréscimos em todos sentidos, de modo que a partir do
registro do passado, diz Jacob (1981) «il devintcapable d´inventerl´avenir» (p.
107). Os seres vivos são assim consequências de propriedades de estabilidade
e variabilidade, entre a identidade da reprodução e a diferença da variação,
apenas aparentemente contraditórias.

Explorando estas propriedades, Jacob considera que o estudo da célula,


no século XX revela a presença dos cromossomos (em número de quatro) e
«de leurmovimentsrégléscommeun ballet» (p. 228) cuja função é de realizar um
tipo de reprodução resguardada dos acometimentos exteriores que garante,
seja em relação aos seres unicelulares ou aos organismos complexos, a
continuidade de suas células, formadas à sua imagem. No entanto, «la nature
des mutation est imposée par l´organisation même du texte chimique» (p. 309).
Isto porque, seu texto permite alteração, modificação de sequências nucleicas,
trocas de um signo por outro, ou ainda, acréscimo, supressão, inversão,
omissão ou transposição de signos. Segue reconhecendo que «les mutations
résultent d´erreurs semblables à celles qu´introduit dans un texte un copiste ou
un imprimeur» (p. 309). Para finalizar que «bref par tout événement qui
dérange l´ordre préétabli» (p. 309).

Contudo, se uma direção precisa e pré-estabelecida pode ser


reconhecida no código genético, o mesmo não de passa em relação aos seus
erros. Estes, sem dispor de direção, seja interna ou externa, conduzem às
cegas, ao acaso, o processo evolutivo. Foi, portanto, a partir da consideração
da possibilidade de erro na duplicação da célula, que vislumbrou uma
consequência importante, de que as mutações paradoxalmente oferecem
inclusive a possibilidade de um refinamento de uma estrutura proteica e com
isso otimiza seu funcionamento bem como seu código genético e sua
execução.

Finalmente o papel da pressão seletiva, da influência do meio ambiente


na produção de alterações no código genético, foi definida como disparadora
136

da produção de reajustes moleculares62, emboranão os escolha senão


eliminando o resultado menos apto a sobreviver.Até porque,de certa forma nem
mesmo de seu interior uma célula dispõe do poder de alteração de seu código
genético, de sua sequência nucleica, posto ser ela mesma em si imperativa, o
que faz da mutação um fenômeno surpreendente. De modo que as variações
podem ser consideradas tão somente enquanto erros e às cegas, jamais
orientadas por qualquer “vontade” de modificação direta do código genético.A
implicação é que a despeito disto, toda variação pode tanto favorecer como
impedir (ledessein -contingent) a meta da reprodução (e conservação) do ser
vivo, na medida em que aporta uma vantagem ou desvantagem em relação ao
meio e aos seus semelhantes. Na verdade, a diversidade não é mais do que
um tipo de fiador da conservação, da sobrevivência e do futuro incerto de todo
ser vivo.

Neste ponto,a noção de seleção natural, já não comporta a distinção


entre cega ou vidente, antes opera apenas com a função de ceifar ou
possibilitar novas formas de vida, pressionandouma variação em alguma
direção que possibilite a continuidade de reprodução (celular). Desta forma, a
noção de vantagem adaptativa darwinista continua a decorrer de uma
coincidência de adequação entre variação e meio ambiente. Até porque, a
rigor e a priori, uma variação em si mesma, assim como o ambiente, não são
nem nocivos nem vantajosos entre si. Este reconhecimento também permitiu a
Jacob definir a mutação como mudança de qualidade e não de quantidade,
uma vez que constitui apenas reorganização ou recombinação do material
genético preexistente, nada lhe acrescentando, por isso chamou-a de trabalho
de bricolage. Isto, porque entende por complexificação não a somatória de
elementos geradora de seres mais sofisticados, mas a redisponibilização de
velhos recursos que proporcionarão novas funções e utilidades. Lembra Jacob
«mais ne se reproduit que ce qui existe» (p. 313).

De modo que, diferentemente de Lamarck e Spencer, a Biologia


molecular também oferece uma forma de conceber a evolução como um modo

62
Sobre isto, diz Jacob (1981) que «il suffit de petits changements qui redistribuent les mêmes structures
dans le temps et l´espce pour modifier profondément la forme, le fonctionnement et le comportement du
produit final: l´animal adulte» (p. 84).
137

particular, embora não finalista, de complexificação de organismos. Foi


justamente por este viés que a perspectiva finalista da evolução se
enfraqueceu. Pois a complexificação qualitativa da evolução concerne à
produção de novas espécies por meio de saltos, o que indica um tipo particular
de descontinuidade63(sem romper com o princípio de epigenia), na medida em
que interrompe a possibilidade de uma sequência segura e gradual de
sucessão segundo o plano estabelecido pelo código genético. Embora na
maior parte do tempo a sucessão de indivíduos se dê sem modificações, as
formas mutantes, que são assim raras, aparecem subitamente, sem
intermediários, sem a transição entre espécies que Darwin tanto perseguiu.

Jacob reconhece em acordo com Monod que a evolução se dá sempre


enquanto progressão no tempo, pois não há evolução em direção retroativa a
formas pretéritas.Também Monod definiu a evolução, que tem na replicação,
na mutação e na seleção natural seus três processos fundamentais, como
fenômeno histórico a partir do jogo opositivo entre cópia e erro. Declarando seu
ponto de vista, disse (1970) que «les événements élémentaires initiaux qui
ouvrent la voie de l´évolution às ces systèmes intensément conservateurs que
sont les êtres vivants sont microscopiques, fortuits et sans relation aucune avec
les effets qu´ils peuvent entrainer dans le fonctionnement téléonomique64» (p.
135).

63
Darwin, recusando esta possibilidade, reconheceu-a, declarando que “há, contudo, quem acredite ainda
que as espécies produziram, por meio ainda inexplicáveis, formas novas totalmente diferentes” (1859, p.
432). Recusava, no final do século XIX, o que se chamava evolução saltacional, que considerava que as
espécies poderiam surgir de repente e nãoatravés do acúmulo lento gradual de pequenas modificações.
Era aceita, porexemplo, por Thomas Huxley, A. vonKölliker, Francis Galton, William Bateson e Duke de
Argyll. Igualmente, a partir de 1900, defendendo a descontinuidade das variações, surgiu outro núcleo de
pesquisa apoiado no estudo experimental de cruzamentos, de inspiração mendeliana.
64
La teleonomía esun término ideado por Jacques Monod que se refiere a la calidad de aparente
propósito y de orientación a objetivos de lasestructuras y funciones de los organismos vivos, la cual
deriva de su historia y de suadaptación evolutiva para eléxitoreproductivo.El término fueacuñado
porcontraposiciónal de teleología (aplicable a finalidades que son planeadas por un agente que pueda
internamente modelar o imaginar varios futuros alternativos, procesoenelcualtiene cabida la intención, el
propósito y la previsión) alrededor de 1970 y expuestoensu libro El azar y la necesidad.
Unprocesoteleonómico, sin embargo, como podríaentenderse por ejemplolapropia evolución, da lugar a
productoscomplejossin contar conesaguía o previsión. La evolucióncomprendeengran parte
laretrospección, pueslasvariaciones que la componenefectúan involuntariamente “predicciones” sobre
lasestructuras y funciones que mejorpuedenhacer frente a circunstancias futuras, participando en una
competición que elimine a los perdedores y seleccione a losganadores para la generaciónsiguiente.A
medida que se acumula información sobre las funciones y lasestructuras más beneficiosas, se produce la
regeneracióndel entorno mediante la selección de lascoaliciones más aptas de estructuras y funciones. La
138

Adiante reconheceu que um evento fortuito é na verdade um acidente


singular que pode se inscrever na estrutura do DNA de modo que da condição
de acaso assume a de necessidade, de onde a evolução se apoia para se
constituir segundo uma orientação ascendente. De modo que é exatamente
sobre os produtos do acaso-acidente que a seleção natural se exercita,
reconduzindo-os para a complexificação e conservação da vida.Deixando claro
que um mecanismo determinista desta natureza não tem outro modo de
funcionamento que não seja a contingência e a imanência. Na verdade, o
código genético informa e impulsiona um destino que se define na medida em
que recebe constituição, pas avant.De modo que mesmo a descontinuidade
biológica não destitui a evolução e a conservação da vida comodessein, antes
ressignifica-a.

No conjunto, é inegável para Monod que a evolução indica uma


tendência geral ascendente, «leperfectionnement et enrichissement de
l´appareiltéléonomique»(p. 140), uma vez que em seu caminho histórico ela
produziu uma acumulação de informações dando constituição ao código
genético que proporciona a cada ser vivo sua própria eficácia de
performance.Trata-se de uma complexificação cuja finalidade é o bom
funcionalidade do ser vivo e sua reprodução. De qualquer forma, a riqueza de
estrutura do DNA não é a garantia, senão um fator, da conservação do ser
vivo.É deste modo que a seleção natural contribui para a realização do que
parece ser o projeto da evolução, «celui de prolongeret d´amplifierun«revê»
ancestral» (p. 136), de executar à perfeição sua função reprodutiva.

Deste modo, o aparente paradoxo foi também levado ás últimas


consequências, pois permite a interpretação de que a mutação não é de modo
algum um fenômeno de exceção, mas ao contrário, a regra. Pode assim ser
introduzida no seio mesmo da natureza e com função definida de impulsionar a
evolução.Este ponto de vista conjuga a conservação e a novidade na
evolução.Lançando um olhar alternativo sobre esta mesma questão,Ninio
propõe que não considerar a variação como rara, acidental ou ocasional.

teleonomía, enese sentido, estaría más relacionada conefectospasados que con propósitos inmediatos.
(Wikipedia)
139

Propõe um olhar atento e crítico, que enriquece nossa reflexão,dirigido


justamente à possibilidade de que uma célula possa recopiar seu DNA com
precisão, sem cometer erros. Com isso introduz a perspectiva de que a falha
na duplicação seria, ao contrário algo espontâneo na natureza, embora seguido
de uma providência para, se não reduzi-la, ao menos minimizá-la. Para isso
reintroduz um curioso tipo de intencionalidade na natureza que igualmente
secundariza o mecanismo da seleção natural. Declara que « la cellule emploie
toute une série de stratégies ingénieuses pour faire tomber son taux d´erreurs
très bas, bien en dessous de ce que l´on attend normalement de réactions
moléculaires. D´ailleurs, dans bien des cas, elle commence par faire des
erreurs puis elle les corrige, ce qui montre bien que la difficulté n´est pas
d´inventer les mutations, mais plutôt de les éviter» (p. 103).

Parece introduzir a possibilidade de que em decorrência do sucesso de


seu mecanismo, a natureza possa enfim produzir cópias perfeitas de si mesma
e, a partir daí, perpetuar um tipo de conformação alcançada. Alcançada graças,
conclui, «l´ensemble du dispositif de surveillance et d'autocorrection (qui) est
d´une grande complexité» (p. 103).Sua finalidade imanente fica evidente
quando recusa até mesmo o papel da adaptação colocando em seu lugar a de
uma constante releitura ou revisão de procedimentos por parte da natureza (o
que sugere uma analogia com a força ortogênica de Lamarck), tudo visando
atingir um mecanismo de replicação perfeito.
Nesta mesma linha de interpretação, Pierre-PaulGrassé (1979)
considera a natureza como dotada de providênciasautorregulativas e anti-
acaso. Diz ele que «la sélection intervient et conserve les mutants favorables,
qui, par chance, s´adaptent aux circonstances» (p. 133).Ela seria o fator de
reconhecimento de que uma variação ganhou função e utilidade, mesmo que
nãotivesse de início, e por isso merece ser conservada e integrada ao seu
sistema. Seu papel, portanto é o de estimular sempre a conservação da vida
pela oportunização do bom caminho encontrado, dando sentido e fixando a
variação.
Reconhece que todo indivíduo e toda espécie varia sem cessar e que a
variedade é sua regra. Assim a reintegra, como Ninio, no interior de um projeto
da natureza, retirando toda forma de contradição entre regularidade e variação,
140

entre código genético e mutação, de modo a considerar que a natureza se vale


da variação para atingir seu propósito, este sim invariável.Em suas palavras,
«mais le fond, le plan, la structure générale de l´être vivant demeure
inchangée» (p. 134). Neste sentido, as mutações seriam variações incessantes
sobre um fundo estável, a parte visível de uma intençãooculta. Grassé recorre
à paleontologia para obter sua prova empírica, uma vez que ela revela os
produtos da evolução, segundo sua filiação. Cita o animalEohippus como
ancestral do cavalo e prova de que a variação segue uma linha evolutiva em
direção a um progresso contínuo visando a adaptação crescente de todo ser
vivo.
Sua concepção retira de cena, por princípio, qualquer perspectiva
catastrofista das variações, finalmente sustentando que a vida é uma constante
conquista da ordem sobre a desordem, na perspectiva deque todo ser vivo é
em si mesmo um sistema dotado de um projeto de autorregulação.
Bem, a tese divergente de que a evolução segue seu caminho sem
projeto pode ser encontrada em FrançoisJacob.Na condição de biólogo
molecular, começa por chamar a atenção para o fato de que a própria condição
de reprodução dos seres sexuados é a de produzir descendentes semelhantes,
mas nunca idênticos. O que exclui toda consideração por tipos originários ou
protótipos da reprodução (assim como de metas), em comparação aos quais
toda variação pode ser considerada desvio, aberração ou degenerescência. De
um modo geral, é justamente esta diferenciação entre indivíduos de uma
mesma espécie que proporciona a emergência de novas espécies. Indivíduos
diferentes interagindo diferentemente com ambientes diferentes
frequentemente são substituídos por indivíduos diferentes.
Bem, partindo da consideração de quepara efeitos desta diversificação
há na natureza um sistema regulador, revelado pela embriologia, que opera um
número imenso de combinações a partir de um mesmo material de base, Jacob
o descreveu como bricolage.Com este recurso indica que a variação de fato
ocorre como redistribuição ou recombinação de uma base material bastante
reduzida, tendo como resultado novos produtos compostos a partir de partes
de outros bem diferentes em forma e função.Por exemplo, ele diz (1979) que
«on s´aperçoit que le poumon des mammifères, des vertébrés, a été fait à partir
d´un morceau d´oesophage. Eh bien, faire un poumon avec un oesophage, ça
141

ressemble vraiment beaucoup plus à du bricolage qu´au travail planifié de


l´ingénieur» (p. 159).
Nesta ilustração reside sua filiação darwinista de que a natureza não
pode criar a partir de nada e que a evolução se dá por modificações de
elementos preexistentes, por sua redistribuição diferenciada. Ilustra esta
operação a partir da improvisação do bricoleur em lugar do planejamento do
engenheiro. De modo que ele não nega a necessidade da evolução que
decorre da interação e da competição dos seres vivos entre si e entre eles e o
meio ambiente onde se reproduzem, de modo que o resultado, o mundo como
tal, é sempre um resultado necessário de um movimento que parte de uma
grande conjuntura física, ecológica, climática, numa palavra, histórica. Só que,
somada a esta há ainda a conjuntura genética dos organismos vivos.Juntas,
determinam os caminhos da variação. Sem planos ou projetos, não há
necessidades orientando «lesvoiesoùs´engagel´évolution» (p. 163). De modo
que o mundo dos vivos, como resultado da conjuntura histórica e genética, não
guarda nenhuma necessidade quanto à forma alcançada. Como concluiu
Jacob, «nous pourrions parfaitement ressembler à quelque chose d´autre que
défie totalement notre imagination» (p. 163).
Divergindo quanto a planos e intenções da natureza, Dieter
Wandschneider(2005) considera a evolução em todo caso movida por um
princípio de sobrevivência, uma vez que, por definição, ela descreve os
mecanismos de conservação do mais adaptado para sobreviver. Diz ele que
«The principle of darwinian evolution can thus be characterized as the survival
of the best adapted under the conditions of variation, selection, and
reproduction, or what I will call, in short, the (biological) “principle of survival”»
(p. 196). Como se vê,deixa claro que a evolução implica num conjunto de
fatores para além da própria variação, ainda que a considere randômica. Ele se
propõe investigar esta questão tomando como certa a tradicional consideração
do Homo sapienscomo o produto mais elevado da evolução animal.Interroga se
de fato um princípio biológico de sobrevivênciapode conter em si uma
tendência e, se sim, qual seria seu produto final mais elevado, mais complexo,
superior.
Avança questionando a relação direta que muitos estabelecem entre os
seres mais complexos e superiores como sendo os mais capazes e aptos para
142

a sobrevivência. Justificados na concepção de que a complexificação confere,


ou pode conferir,capacitação de condições favoráveis na relação com o
ambiente, aparelhamento para enfrentamento da luta pela sobrevivência.
Destaca que o que se pode extrair de fato do princípio de sobrevivência é que
ele remete à adaptação, a uma habilidade para sobreviver em situações
particulares, em interações contingentes com o ambiente. Deste modo, a
adaptação estaria disponível em todos os níveis de organização, em todas
variáveis de complexidade. Assim considerada, a tese de que a trilha
evolucionária que vai do mais simples ao mais complexo (e com isso ofereceria
mais condições de adaptação e sobrevivência aos últimos) permanece, mas
cúmplice da consideração de que o mais adaptado não é necessariamente o
mais complexo.
Ou seja, a adaptação não deriva exclusivamente da complexificação de
um ser vivo. Ela indica antes de tudo uma forma ajustada de relação com o
ambiente, como o herbívoro que se alimenta da planta e por isso é mais
complexo que ela, afim de poder tirar dela o que lhe falta, fato que o coloca em
uma posição mais elevada, mas não amplia suas chances de vida nem a torna
mais segura. Neste sentido, a complexificação deixa de ser sinônimo de
adaptação, como a evolução de progresso.
De fato, Wandschneider considera que por talprincípio a «nature is
perfectly satisfied with survival. Survival alone is required by the principle of
survival»(p. 200).Além disso, ela apenas se mostra, pode-se dizer, inclinada a
proporcionar sobrevivênciaproduzindo complexificações. Desta forma, a
complexificação permanece como tendência, como inclinação, mas totalmente
ressignificada, restandoa investigação sobre sua direção e meta. Ele
argumenta que«one can further ask whether the tendency toward higher forms
of organization is directed toward a goal in the sense of an end of biological
evolution» (p. 201).
Encaminha a resposta introduzindo uma distinção entre evolução em
sentido horizontal e outra vertical. Esta última, que nos interessa,
particularmente,descreve a criação de novas biosferas, por exemplo, a criação
de condições de possibilidades da emergência de herbívoros a partir da
existência de plantas e assim por diante até a emergência de carnívoros, um
provendo o outro de alimento. Apoiado nesta visão do meio ambiente considera
143

que cada nível constitui um ponto de partida para novos desenvolvimentos,


totalizando uma série de níveis e, neste caso de complexidade. Isto porque,
para que a sucessão ocorra, o nível seguinte deve dispor de acréscimos para
se servir do anterior. Por exemplo, um aparelho digestivo a partir dos
vertebrados e de um mecanismo cerebral de atenção e consciência nos
mamíferos. No extremo da cadeia, a emergência da abstração nos humanos.
Isto tudo sugere, como ele mesmo nomeia, um self-upgrading of nature.
Assim considerado, o resultado de um tal princípio que orienta a oferta
de condições de sobrevivência ao homem, éum cérebro equipado com um
sofisticado aparelho perceptivo (que permite receber dados tanto do interior
como do exterior de seu organismo e processá-los, visando seu deslocamento
e interação no meio ambiente), além de consciência65, linguagem e, por fim,
uma self-tematization,que resulta na self-awareness, que Wandschneider
define como «the root of the essentialconsciouness of freedom for
humanbeings» (p. 203). Foi justamente desta condição que o homem adquiriu
o potencial de questionamento de suas relações naturais, seguido de sua
desconexão e, por fim, de sua oposição à natureza, que teve como resultado o
estabelecimento de uma segunda e artificial natureza, a cultura. Esta não só
transcendeu a natureza, como se tornou uma supernature.
A esta altura já despontam as consequências da aventura humana na
terra;sua exclusão do jugo da pressão seletiva, do qual deixa de depender para
evoluir, tornada obsoleta após cumprir sua missão. Na verdade sua evolução
(inclusive a biológica) passa a ser cultural e seu motor a própria razão
(entendida como a forma mais complexão das escalas de interação) com
auxílio das inovações tecnológicas que dela derivam. Neste sentido, a evolução
natural teria cumprido seu papel, chegado a seu termo, sendo a humanidade
seu fim. Pensada como obra da natureza, a razão e a liberdade que trouxe

65
Importante lembrar que a noção de que a consciência corresponde a um estágio evolutivo foi
fortemente sustentada por Spencer, particularmente como um estágio do processo de adaptação. Além
dele, entre tantos evolucionistas, Monod (1970) dedicou um capítulo (Les frontiers) a esclarecer a
emergência e o desenvolvimento do sistema nervoso central, de suas funções, além do pensamento
abstrato humano, que tem na linguagem um de seus elementos, processos eficazes de sobrevivência
resultados de uma pressão seletiva. Resultados que enriqueceram a capacidade de estabelecer relações
com o meio ambiente e com a própria pressão seletiva. De modo que a despeito de considerar a evolução
a partir de uma sucessão descontínua e não finalista, considera que a evolução continua a produzir
complexificações como forma de recursos adaptativos, uma forma de progresso ressignificado (pas
avant).
144

consigo corresponderia à concretização de uma autonomia como plano da


evolução natural. Não é de se estranhar que Wandschneider faz referência a
Schelling e Scheler, mas depois de enfatizar sua inspiração em Herder (pelos
motivos expostos no primeiro capítulo).
Recuperemos um dos estágios deste progresso, o que se refere à
oposição que o homem atualmente mantém em relação à natureza com sua
própria forma de vida, vale dizer, o estágio do dano e destruição do meio
ambiente que conhecemos bem. Neste caso, é inevitável a pergunta, se o nível
de complexificação atingido pelo cérebro do homem e seu lugar na escala dos
seres vivos não teria sido um erro da natureza 66, um mau passo da natureza
que proporcionou a emancipação de um de seus seres que se volta contra ela
mesma.Reconhecendo a condiçãoparadoxal, em resposta, diz Wandschneider
que o«man is the crown and cross of the creation in one» (p. 206).
Levar em conta seu argumento, implica admitir que a naturezaétambém
autodestrutiva e que gerou em seu seio mesmo seu carrasco? Estaria o
homem cumprindo um desígnio, mesmo que inadvertidamente, da natureza
para ele e para ela própria?De fato, não é nesta direção que ele encaminha
seus argumentos. Segue alinhavando argumentos que conduzem à conclusão
de que a emergência do homem de sua condição racional constitui sim a
realização mais completa e elevada da natureza, de modo que a mente
humana constitui sua completude. Isto porque, por meio do homem a natureza
realiza e promove o que faltava àela própria, a faculdade de cognição, vale
dizer, de autoconhecimento. Neste sentido, completamente inspirado em
Herder, reconhece que a mente humana corresponderia à completude, à
66
Trata-se notadamente da questão acerca da passagem do estado de natureza para o de cultura, que Tort
(1997) nomeou efeito reversivo da evolução. Conceito central da antropologia darwinista indica a
diferenciação de leis que regem cada estado, lembrando que a emergência da sociedade e da moral
decorre de um paradoxo da aplicação da seleção natural. Paradoxo que Tort formulou nos seguintes
termos: « la sélection naturelle, príncipe directeur de l´évolution impliquant l´élimination des moins aptes
dans la lutte pour la vie, sélectionne dans l´humanité une forme de vie sociale dont la marche vers la
civilisation tend à exclure de plus en plus, à travers le jeu lié de l´éthique et des institutions, les
comportements éliminatoires. En termes simplifiés, la sélection naturelle sélectionne la civilisation, qui
s´oppose à la sélection naturelle» (1997, p. 68). Tudo em função da emergência e seleção dos instintos,
notadamente os sociais, que elimina os próprios efeitos seletivos em sua atuação eliminatória junto aos
menos aptos, substituídos pelo acréscimo de racionalidade e de sentimentos morais de simpatia e
altruísmo entre os homens, sob os quais passam a ser governados. Indissociável do processo evolutivo, a
civilização, seja sob o modo de ruptura ou transição lenta (continnum), decorreu da seleção natural
quando selecionou seu contrário, sua abolição por outros princípioanti-eliminatório, pode-se dizer, anti-
seletivo. Este paradoxo foi refletido por Tort atribuindo à seleção natural e a este efeito regressivo
(supressivo) um movimento nem contínuo nem ruptivo, mas evolutivo em sua própria regra. Não se trata,
portanto de um acidente de percurso que a fragiliza, mas de um estado superior alcançado por si mesmo.
145

perfeição da natureza, ao último estágio de seu desenvolvimento. Estágio final


que teria atingido movido pelo processo que produziuas etapas da negação, do
distanciamento e até mesmo da destruição da natureza. Tudo para que, por
fim, a humanidade alcancea capacidade de compreender a essência dela, seu
modo de funcionamento, suas leis.
Como o homem segue sendo um filho da natureza, sua obra é por seu
meio que ela se torna auto reflexiva. Deste modo, diz Wandschneider,
«evolution is a gigantic process of the self-clarification of nature that is
completed in man» (p. 208).O homem é assim a consciência da natureza e por
ele ela ganha o que lhe faltava, consciência de si mesma. Por meio da razão
humana e de seus produtos cognitivos a natureza revela sua essência, de
modo que o homem seria a auto revelação da natureza. Restituindo a
perspectiva teleológica, declara que com a emergência da mente humana a
evolução atinge seu fim, seu ideal e reafirma sua meta. Cabendo ao homem
reconhecê-la. Para isto ele existe, para reconhecer-se como ideal da natureza.
Como visto, as questões dos mecanismos de evolução, da sua
finalidade e das possibilidades e limites de ação do homem têm recebido
diferentes e conflitantes interpretações. Para além delas, discutiremos em
seguida outro aspecto não menos polêmico acerca da evolução e de seus
mecanismos de variação, seu estatuto epistemológico.
*************
Comecemos por uma declaração do próprio Darwin.

Até este momento, tenho falado de mudanças -tão comuns


e diversas nos seres organizados reduzidos ao estado
doméstico e, em menor escala, naquelas em estado
selvagem- como se elas fossem fortuitas.É, sem objeção,
uma expressão muito incorreta; talvez, contudo, seja
suficiente para demonstrar nossa ignorância total a
respeito das razões de cada variação particular.(1859, p.
123)

Esta afirmação67, que abre o capítulo cinco de A origem das espécies,


exatamente ondese propôs investigar e apresentar as leis da variação,
sugerede início manifestar uma concepção de mundo regido por um

67
Darwin retomo este argumento no capítulo final reafirmando que as variações “em nossa ignorância,
parecem-nos surgir espontaneamente” (1859, p. 429).
146

determinismo integral, de modo que nada se produza ao acaso, mas por


causas passíveis de reconhecimento e regidos por leis, um tipo de processo
semelhante operando na natureza orgânica como na inorgânica que permite,
quando reconhecido, superar expressões como fortuito, indefinido ou mesmo
aleatório.Como diz Tort (1997), «c´est une énigme réperée, circonscrite à la
manière d´une zone de non-savoir temporaire destinée à être occupée dans
l`avenir para la connaissance, jugée indispensable, de lois de l`hérédité» (p.
28).Uma vez obtida, as tais leis da variação e da hereditariedade explicariam a
evolução que dirigem, uma vez que as variações seguiriam linhas
determinadas queproduzem ofertas para atuação da seleção natural.
Ritvo (1990) lembra que este ponto de vista foi compartilhado por Darwin
com importantes naturalistas como Karl Claus, que também admitia que “as
variações sobre as quais a seleção natural atua são as consequências de
causas físicas desconhecidas no meio” (p. 175). Por outro lado, Hoquet
reconhece que este capítulo tem por objetivo afirmar que a variação não se
produz ao acaso, mas segundo leis desconhecidas que devem ser
investigadas. Contudo, para isto fez ressurgir temas de acento lamarckianos
(como sendo efeitos de condições exteriores que atuam sobre o sistema
reprodutordos organismos;como mudanças de condições e exposição
insistente a elas; mudanças de hábitos; de uso e desuso de órgãos e de
aclimatação como causas diversas das variações). Ponto de vista inicial
adotado por Darwin, diverso, segundo Hoquet, do modo darwinista de conceber
a transformação/evolução, pois sustenta uma variação não aleatória, dirigida
segundo certas tendências, até mesmo ortogênicas. Isto porque, desde sempre
a variação consistiu numa capacidade de variabilidade natural dos organismos.
Assim, sendo as variações domésticas uteis aos criadores, por analogia, em
estado natural elas seriam modificações uteis aos organismos eles mesmos,
selecionadas pela natureza e, portanto, orientadas para a conservação da vida.
Hoquet atribui a este ponto de vista algo de secundário. Ele esclarece
que Darwin foi, de início, solidário com a tese de que a direção da variação
estava ligada aos fatores (causas) que as disparam e imprimem suas leis.
Assim, atribuindo ao termo acaso algo de nossa ignorância se compromete na
investigação, diz, «des lois de lavariation et des causes de la variabilité» (2009,
p. 182).No entanto, sustenta que «l`évolution de la pensée de Darwin aurait
147

donc consisté à passer de l`idée d`une variation commandée par


l`environnement, donc dirigée et préadaptée, à une variation de caractère non
déterminé» (2009, p. 166). De modo que a ignorância alegada pode significar
ou suscitar duas vertentes, a da necessidade de investigar, por ignorá-las, suas
causas e leis (embora tenha admitido a possibilidade de variações
espontâneas -sem causas) enquanto recusa a pretensão (equivocada) de
predição das variações, por exemplo, no sentido de uma orientação ao
progresso (e mesmo ao declínio).
Em síntese, seacaso significa aleatório, sem direção privilegiada, em
nada exclui o fato de que cada variação possa ter sua causa desencadeadora
e que seja submetida a uma lei (como a da correlação necessária com a
variação de outros órgãos; correlação de crescimento; compensação ou
equilíbrio; tendência a variar como um fim em si mesmo em função do grau de
desenvolvimento; hereditariedade etc.), que produzem e regem a emergência
das variações com resultados indefinidos e julgados a posteriori por sua
utilidade. Resta definir a característica da aleatoriedade da variação. Ela
consiste em ser indeterminada, ilimitada e infinita, vale dizer, que uma variação
apresenta a mesma igualdade de chance entre todas as possibilidades.
Ela é assim indeterminada quanto ao sentido não apresentando direção
privilegiada, ou seja, nem as causas internas ou externas produzem influências
ou disparam variações em determinada direção ou resultado. Por exemplo,
folhagens altas estimulando o crescimento do pescoço de um herbívoro. De
fato, uma variação que tenha seguido em sentido, tem a mesma probabilidade
de variar em outro sentido, ilimitadamente. Isto, além de ocorrer em número
infinitamente grande para que dê oportunidade a todos resultados possíveis,
tornando plausível a ocorrência de uma variação favorável. Segundo Hoquet
(p. 172), retomando e reafirmando o ponto de vista clássico de Epicuro. Assim,
definiu a variação como não teleológica e imprevisível. Com a primeira definiu a
variação como descompromissada de uma resposta adaptativa ao meio
ambiente. Já a imprevisibilidade viria da extrema complexidade das relações
entre variação e meio ambiente.
No entanto, é importante lembrar que assim qualificada,Darwin não se
furtou ao apelo para a investigação de leis e causas da variação. Seu
sucessopermitiria prever e provocar sua ocorrência, ampliando o poder limitado
148

da variação natural como guia da evolução. A interpretação da iniciativa de


Darwin como legalista faz todo sentido inclusive lembrando que a publicação
de sua obra se deu em meados do século XIX, justamente no auge da
importância de determinações causais, visando justamente escapar da
acusação de epicurismo. No entanto, Hoquet declara que consiste em algo
contrário ao próprio darwinismo e por ele recusado.
Voltemos à citação de abertura do capítulo cinco da obra de Darwin. Ela
foi utilizada porMarcel Weber (2005) para também destacarem Darwin a
questão cara à história da filosofia68 e à filosofia da ciência, relativa ao estatuto
da noção de acaso presente nas teorias da evolução69. Weber esclarece que
ela recebeu acolhida de diferentes autores sob a perspectiva do determinismo,
assim como do indeterminismo, cuja distinção conceitual ele atribui a Pierre
Laplace (1749 - 1827). Na primeira, o acaso é pensadocomo«an appearance or
an illusion that arises because of the finite nature of human reason» (p. 275).
Seriade fato uma ignorância relativa às causas reais que determinam um
evento qualquer que pode ser superada com o avanço da investigação, da
produção de modelos mais precisos etc.. Trata-se, por exemplo, da mecânica
clássica, da qual Darwin compartilhou expectativas.
Também Vittorio Hosle (2005) apontou, divergindo de Hoquet, a
presença de um rigoroso determinismo na concepção e na obra de Darwin.
Para ele, sua expectativa era de que «given the law of nature and antecedent
conditions, all events occurred necessarily, including the evolution toward

68
A perspectiva de Darwin, anunciada na citação, de uma disposição determinista inscrita na natureza foi
igualmente compartilhada com Kant, para quem: “Daquilo que na espécie humana pode ser chamado
variedade, eu observoaqui que também relativamente a esta não se tem que considerar a naturezacomo
formadora em completa liberdade, mas, assim como no casodos caracteres das raças, apenas como
desenvolvendo predeterminadamentea mesma, através de disposições originais: porque, na variedade,
encontra-seigualmente uma conformidade a fins e uma medida conveniente à mesma, quenão pode ser
obra do acaso” (1788, p. 222).
69
Ao final deste capítulo, descrevendo a aparição de riscas em cavalos, reconheceu que estava
convencido de que “nenhuma destas riscas provinham do que se chama ordinariamente de acaso...”
(1859, p. 147). Seu determinismo incluiu até mesmo o que chamou adiante de variações espontâneas (p.
188), sobre as quais o meio ambiente teria apenas uma influência insignificante. Em outra parte da obra
Darwin refletiu sobre os meios de transporte, por exemplo, de sementes na superfície do planeta que é
feito por meio de pássaros migratórios e de correntes de ar e marítimas, recusando-lhe a concepção
frequente de que ocorrem de forma acidental. Confiante num movimento mecânico estável da natureza
declara que “as correntes marítimas, bem como a direção dos ventos dominantes, não são casuais” (1859,
p. 339). Sobre esta questão, Hoquet acrescenta uma distinção entre variatione variabilité. Reconhece que
« la vatiation est um fait qui se donne sans raison, phénoménologiquement ; alors que la variabilité est un
facteur, qu´on peut expliquer, mesurer, comparer, par exemple en faisant varier la quantité de nourriture »
(2009, p. 105). Trata-se de um esforço por conhecer as leis de um fenômeno (e exemplo da lei da
gravidade de Newton) apesar de ignorar seus fundamentos últimos, suas causas.
149

humans» (p. 238).De fato, esta expectativa pode ser facilmente reconhecível,
por exemplo, em suas considerações sobre a natureza espontânea das
variações. Longe de atribuir-lhes uma natureza aleatória, Darwin reconhece, já
no último capítulo da obra, que as variações observadas no âmbito doméstico
dos criadores demonstram “uma variabilidade notável, porém muitas vezes de
maneira tão obscura que nos dispomos a considerar as variações como
espontâneas” (1859, p. 419). De modo que atribui a consideração pela
espontaneidade muito mais como resultando de uma falta de compreensão de
seu processo de produção, do que como processo aleatório inscrito na
natureza.
Já se encaminhando para a finalização do seu último capítulo sintético,
Darwin, destacando o papel da seleção natural na “escolha” das numerosas
variações pequenas (destaca também os efeitos hereditários do uso e desuso
além da ação diretadas condições do meio ambiente) confere mais uma vez às
variações seu estatuto, reconhecendo que elas igualmente “em nossa
ignorância, parecem-nos surgir espontaneamente” (1959, p. 429).Em lugar de
variação ao acaso, reconheceu que elas “seguem leis complexas, tais como a
correlação, o uso e não-uso, e a ação definida das condições exteriores” (1859,
p. 419), numa evidente tentativa de transferir para o mundo biológico a
segurança do mundo físico. Identificando Darwin, pelo menos a partir da
citação destacada, como um determinista, Weber reconhece nele uma
concepção da realidade biológicaoposta à de muitos naturalistas que o
sucederam, especialmente dos biólogos moleculares. Estes, de outro lado,
segundo o ponto de vista indeterminista, reconhecem o limite do conhecimento
à própria natureza probabilística dos eventos. Portanto ambos operam uma
noção distinta de realidade e de seu estatuto.
Esta querelamerece destaque, pois se trata de uma discussão que tem
como pano de fundo a própria objetividade da natureza e de sua investigação,
a própria consideração sobre seu mecanismo que pode ser regular-
determinístico ou randômico-probabilístico das variações e, no limite, do próprio
processo de evolução. Distinção importante como fundamentação da
possibilidade de inserção ou recusa de intenção e finalidade na natureza.
A discussão acerca do estatuto epistemológico do evolucionismo carece
ainda da compreensão do estatuto do seu conceito fundamental, o princípio de
150

seleção natural que suportou toda perspectiva evolucionista da natureza. Para


compreendê-lo recorrerei a um capítulo intitulado Darwin´s a priori insight, de
Christian Illies (2005), no qual argumenta que a suposição de um processo
evolucionário por meio de uma seleção natural foi de fundamental importância
para oferecer explicações muito plausíveis para fatos antes obscuros e mal
compreendidos à luz do criacionismo.
Assumindo o ponto de vista divergente daqueles que concebem a teoria
de Darwin como abstrata e indutiva, indica que os argumentos que
compuseram sua crítica e recusa do criacionismo «werealsonurturedby the
application of some more fundamental andnonempiricalprinciples»(p. 60). A
começar pelo emprego do princípio derazão suficiente, ausente no argumento
criacionista, de que toda ocorrência na natureza, enquanto parte de eventos
ordenados por leis, decorre de uma causa que pode ser explicada. Em
acréscimo, que a natureza e sua investigação dispõem de ordem e
inteligibilidade, respectivamente. De fato, sua noção de seleção natural como
causa da evolução dos seres vivos, que parte de um princípio de razão
suficiente, opera a noção de causa, diz Illies, «in the sense of ateleological
eficiente causes» (p. 72). Isto porque, ainda que ela seja um fator de
estimulação da emergência de variações benéficas e por isso adaptativas, em
outras palavras, que não seja apenas um processo de rejeição (a partir da
sexta edição, destruição), mas também dotada de um poder criador, não
contém em si a indicação de um telos visado.
Longe de constituir uma causa sui generisela comporta um mecanismo
causal, um princípio de interação de fatores que operam conjuntamente e que
submete o resultado aos efeitos destes fatores. Desta forma deve-se
reconhecer que ela seria a causa eficiente da adaptação dos seres vivos que,
contudo, só opera no interior de uma natureza regrada por diversas leis que
produzem a variação e a adaptação que se segue à seleção. Neste sentido,
reforça Hosle (2005),«for of course natural selection as such does not have to
lead to higher organisms; given different natural laws, evolution could have
stopped at the level of bacteria» (p.237).
Ao fim, a articulação entre variação e seleção natural, que juntas
produzem a evolução, se ajusta ao fato de que tanto animais como plantas
variam em propriedades, quer dizer, são seres desiguaise mantém relações
151

particulares com o ambiente muitas vezes escasso de recursos, de modo que


uma diferença pode ser decisiva para sua adaptação e por isso visa favorecê-la
e ser transmitida.Foi estabelecida assim uma relação direta entre as
propriedades dos seres vivos e sua permanência, ou não, em certos
ambientes, acrescido do fato de que a evolução ocorre num processo gradual
(e lento), de modo que um descendente é, sem ser cópia, sempre uma
continuidade gradual de seu predecessor.Evidentemente Darwin recusou o
catastrofismo de Cuvier assim como a frequência de eventos catastróficos
como mecanismo propulsor da evolução70.Neste sentido, Illies segue dizendo
que «Darwin's explanation no longer employed directed powers (such as those
claimed by Lamarckian theories of an inner goal-directedness)» (p. 72).
Neste sentido,Darwin acrescentou a tese, indirimível pela experiência e
por isto igualmente apriorística, de que o processo de variação da natureza se
dá de forma gradual e por pequenos passos, sob leis de continuidade 71. Além
disso, esta hipótese foi sustentada a partir de uma noção de que os indivíduos
ou as espécies são dependentes e determinadas por interações com o
ambiente, o que só é possível se acompanhada da pressuposição de que os
indivíduos possuam capacidade de interação e dela seriam dependentes, além
de que esta capacidadeteria um papel principal ou mesmo decisivo na
evolução.Deste modo, Darwin confrontou o catastrofismo de Cuvier, que
pressupunha uma terceira causa agindo independente de quaisquer
capacidades dos indivíduos e de relações com o ambiente. No entanto, admitiu
que há toda sorte de fatos contingentes que explicariam tanto o fracasso como
o sucesso de qualquer interação e que independem das propriedades que cada
ser possui. Fator que reequilibra seu ponto de vista determinista.
Em verdade, a hipótese da seleção natural modela a pesquisa empírica
de modo a satisfazer suas próprias premissas. Algo suposto sobre a natureza

70
No terceiro capítulo de A origem das espécies, Darwin declara que a invocação de cataclismos para
explicar a extinção de seres organizados deriva de uma má compreensão de suas causas, efetivamente
atribuída a suas complexas relações na luta pela superação das barreiras à sua sobrevivência. Nesta
circunstância, disse, “sabemos apenas invocar cataclismos que vieram entristecer o mundo e inventar leis
referentes à duração das formas vivas” (1859, p. 74).
71
Sobre isto, Hoquet (2009), investigando a construção do pensamento de Darwin, destaca os que seriam
seus dois pontos centrais, a seleção natural e a variação aleatória. Reconhece que esta última consiste no
material sobre o qual a primeira atua (promovendo o processo de especiação). Neste sentido, a
investigação de Darwin consistiu em descobrir as leis da natureza, particularmente as condições que a
produzem e as leis das variações (às quais dedicou o capítulo cinco da Origem). Sua conclusão sobre esta
iniciativa, no entanto, foi, segundo Hoquet, «qu´il a pourtantlaisséesenfriche» (p. 25).
152

que antecede a pesquisa empírica, que está implicada no próprio princípioque,


contudo sempre aguarda confirmação no mundo empírico, sob condição de
que afete sua própria aplicação na pesquisa.Bem, resta dizer que se para
Darwin a hipótese de seleção naturalatua como princípio da evolução, ela é
sua primeira premissa, que explica toda persistência de forma de vida por meio
de seu corolário, a adaptação, considerada como interação entre ambiente e
propriedades do ser vivo sob certas condições.
Segundo Illies, este princípio«does not result from inductive reasoning
but is already presupposed by the exact account of the Darwiniansituation and
the type of causes that are relevant in it.That is way the explanation given by
natural selection can be discovered in an a priori way: it is given with the exact
account of a certain situation in which interactions with an environment (and
limited resources) are seen as decisive» (p. 74).Trata-se assim de um
argumento de princípio consistente e simples ao mesmo tempo, uma vez que
não foi, como diz Weber(2005), derivado «fromanypropositionwithin the theory»
(p. 67), ou seja, não faz parte da variação evolucionária que fundamenta.
Ainda sobre esta abordagem do princípio de seleção natural, retomando
o que disse na introdução,encontramos em Darwin, outros dois conceitos
apriorísticos que merecem atenção, o de monogenia (ou epigenia) e o de
parentesco entre espécies. Eles contrariam de início a noção à época corrente
de poligenia, segundo a qual as diferentes variedades de raças ou espécies
teriam sido criadas independentemente uma das outras. Em seu lugar sustenta
uma origem (e descendência) comum das espécies. Como dito acima, esta
hipótese corresponde, segundo Kant, a um princípio (racional) de
homogeneidade, acrescido do princípio de variedade ou especificação e
completado por um último princípio de afinidade ou continuidade entre as
diferentes espécies da natureza. De modo que um ancestral comum que
passou por um processo de especificação, o fez segundo uma relação de
continuidade e parentesco entre seus descendentes.
Desta forma, todos os seres vivos atuais descenderiamde galhos que
são prolongamentos de um mesmo tronco. Trata-se, lembremos, do que Kant,
na Crítica da razão pura, chamou de continuum specierumque pressupõe
umamodus operandi continuísta na natureza (continui in natura). Na aplicação
desta tese algo surpreendente foi, segundo Jacob, introduzido por Darwin, a
153

concepção de que um descendente pode não corresponder a uma cópia


absolutamente idêntica de seu genitor em conformidade com um protótipo da
espécie. Ao contrário, a evolução pressupõe sempre a emergência de
umcontinuumde seres apenas similares, dando sempre lugar, a despeito de
toda estabilidade e unidade do mundo dos seres vivos, a organismos diferentes
e únicos. Além disso, é verdade que a partir das pesquisas de Vries permitiram
que toda variação pudesse ser concebida como mutação, como variação
brusca e em ruptura com o ancestral. No entanto, após as descobertas da
Biologia molecular, considerando que o código genético (concebido como uma
língua imutável após sua emergência ao acaso) seja universal, considera
também que, com muita probabilidade, todo ser vivo sobrevivente até os dias
de hoje tenha sua origem num ancestral comum e único. Evidentemente sem
oferecer qualquer argumento que dirima esta questão do ponto de vista
científico, resta, como previu Kant, o recurso à metafísica (transcendental).

A evolução permite repensar a história

A história como passagem do tempo que oportuniza a elaboração


continuada da matéria e dos seres vivos ((história da natureza inorgânica e dos
seres organizados), bem como da humanidade (história dos fatos humanos),
tem seu grau de novidade tanto para a filosofia (que teve um Kant o criador de
suas condições de possibilidade) como para a ciência moderna. Recebeu
considerações sob perspectivas que vão da finalidade à contingência. Pretendo
abordar esta questão, pela força de sua produção intelectual e importância de
sua monumental obra intituladaLa logique du vivant (1970) dedicando a atual
seção a François Jacob e suas considerações sobre a relação entre evolução
e as possibilidades de repensar a históriaespecialmente a partir da articulação
entre a noção de ser vivo e de tempo, permeadas pelo mecanismo de
variação.Como linha auxiliar recorrei ainda a Michel Morange e sua obra La
vie, l´évolution et l´histoire (1911).
Jacob inicia sua obra lembrando que «peu de phénomènes se
manifestentavecautant d´évidencedansle monde vivant que la
formationsusemblable par lesemblable» (1970, p. 09), ou seja, pactuando com
um dosprincípios pilares de toda perspectiva transformista e evolucionista: nihil
154

ex nihilo e que marca seu distanciamento do criacionismo72. Portanto, de que


os seres vivos descendem de outros seres idênticos. A história esta ciência se
encarregou de oferecer diferentes explicações de como este processo ocorre, o
que põe em evidência diferentes modos de concepção do mecanismo
devariação, reprodução e transmissão. Hoje em dia, em função da Biologia
molecular, na perspectiva informacional, de códigos presentes no interior das
células e moléculas que constituem os seres vivos. Isto quer dizer que tudo o
que é transmitido de um ser ao outro são instruções, planos (ou receitas) de
composição do futuro organismo. De modo que este nada mais é do que a
realização de um programa prescrito por herança.
No entanto, se este fato sugere a presença de um propósito, exclui a
possibilidade de uma inteligência que o tenha concebido, portanto de uma
intenção. Mais ainda, se ela sugere uma finalidade, a da reprodução, não
autoriza mais do que simplesmente a preparação de gerações sucessivas. Um
programa de reprodução que constitui, diz Jacob, «à la fois l´origine et la fin, la
cause et le but» (p. 10). O que há de curioso nesta concepção é que ela
relativiza progressivamente certas oposições que foram caras à Biologia como
necessidade e contingência, como estabilidade e variação, intenção e
finalidade etc.. Trata-se apenas de transmitir à geração seguinte o que foi
constitutivo da anterior, segundo um programa genético composto pela
composição (combinação, segregação, recombinação) de informações sem
intervenção direta do exterior, do meio ambiente, e menos ainda de uma

72
Trata-se de uma consideração já discutida acima e que caracteriza o ponto de vista evolucionista. Ela
foi também endossada por Lwoff (1969) em sua contribuição à definição de vida, na medida em que ela
caracteriza um estado de um organismoque se reproduz. Nesta condição, também para ele um organismo
jamais provém do nada, no sentido de algo novo, antes «d´unorganismeidentiquepréexistant» (p. 12).
Com este ponto de vista familiar ao evolucionismo, acaba por reafirmar a derivação de um ser por outro a
partir da noção de cópia, ainda que não considerada perfeita, no sentido de que uma transmissão de
informações é a primeira condição responsável pela viabilização do novo organismo, evidentemente
seguida do sucesso em relação à pressão seletiva. Tudo isto sem abdicar da noção de continuidade
genética que garante a sobrevivência da espécie e a marcha da evolução. Por consequência um processo
que comporta em sua concepção a noção de erro ou de falha. Sobre esta noção que será discutida adiante
em referência a Canguilhem, Hoquet declara que a própria noção de «variabilité designe um état de
l´organismeoùil est susceptible de dévier» (2009, p. 116), de modo que a hereditariedade seria um tipo de
equilíbrio de forças que opera a transmissão destes desvios. A partir do que se estabelece um jogo
permanente entre o que resta e o que varia na reprodução, que satisfaz plenamente a própria concepção de
evolução, como se ela mesma demandasse o procedimento de estabilidade e de variação. Assim, evolução
consiste em transmitir a variação ocorrida sobre uma base estável e acumulada de variações que se
tornam estáveis. Como se a estabilidade representasse a vida e a variação um acréscimo em favor dela
mesma. Um acerto da natureza ao dotar os seres vivos da capacidade de errar. Uma posição teórica de
custo inestimável tenazmente presente na história da Biologia que Canguilhem bem aponta.
155

necessidade de adaptação. Deste ponto de vista a reprodução passou a ser


vista definitivamente como um palco de ocorrências contingentes.
Evidentemente, esta perspectiva recusa toda possibilidade de uma
regulação externa do sistema, uma vez que admite que cada oportunidade de
reprodução constitui um acontecimento exclusivo e de motivação interna.
Como diz Jacob, «chaque fois, c´est un recommencement» (p. 13).E é desta
forma que atransmissão do programa genético cria a possibilidade de que cada
um destes eventos seja uma oportunidade de adaptação. Isto porque sendo
cópia e a variação do código genético uma ocorrência às cegas, toda
participação do ambiente decorre a posteriori.Posto que, ao final de contas,
ainda que as instruções do programa sejam executadas ora com rigidez, ora
com flexibilidade, diz Jacob, «c´estleprogrammelui-mêmequi fixe sondegré de
souplesse et la gamme des variationspossibles» (p. 18).
Tudo isto faz de noções como uso-desuso, de luta pela
sobrevivência(conceito equivalente da seleção natural) uma modalidade de
vida e um tipo de competição igualmente de influênciaa posteriorirelativa à
adaptação,sobrevivência e descendência, cuja verdadeira ampliação de
chances se dá justamente pela variação cega. Um uso de recursos, uma
competição que recomeça a cada geração.
Trata-se de uma maneira inteiramente diferente de conceber a natureza
dos seres vivos, de conceber sua reprodução e conservação ao longo do
tempo. Uma mudança que conferiu nova historicidade aos seres vivos em que
a noção de evolução ganhou em definitivo o estrito sentido de variação ou
mudança sem finalidade.Perspectiva que em sentido geral, pode ser entendida
como um produto do ambiente próprio do século XIX. Ambiente que introduziu
as noções de vida aliada à de história na investigação dos seres vivos.
Ambiente que recebeu contribuições diversas, como a de Buffon e Cuvier, que
impulsionaram o transformismo de Lamarck.A noção de tempo foi implicada em
toda compreensão da gênese e da evolução dos seres vivos.Implica considerar
que todo ser vivo é resultado e traz consigo o legado de transformações que o
compuseram.
Jacob dá conteúdo à ideia de tempo que se serviu a Biologia a partir de
outras como origem, continuidade, estabilidade e contingência. Origem, pela
consideração de que a vida teve ocorrência a partir de um dado momento da
156

existência da Terra como seu ambiente. Acontecimento do qual derivou a


complexidade atual. Continuidade, porque depois desta aparição todos os
demais se seguiram dele sem a interveniência de criações independentes.
Instabilidade, por uma sucessão que não produz seres idênticos a cada
geração,assegurando a emergência da diferença como condição da própria
evolução, segundo uma história que associa os seres vivos em cadeia e
assegura um lugar diferente a cada um. Por fim, contingência, posto não
reconhecer qualquer tipo de intenção da natureza que conduza o processo de
reprodução de modo a orientar suas variações para uma meta prevista.
Isto equivale a reconhecer o mundo como ele é como resultado de modo
algum necessário. Tudo isso, de forma que, segundo Jacob (1970), «tout
organisme, quel qu´il soit, se trouve alors indissolublement lié, non seulement à
l´espace qui l´entoure, mais encore au temps qui l´a conduit là et lui donne
comme une quatrième dimension» (p. 147).Segundo Jacob foi ao longo do
século XVIII que a noção de tempo foi gradualmente inserida na compreensão
dos seres vivos, justamente por conferir à sua reprodução uma relação com o
passado. Depois de Buffon, embora a sucessão dos seres vivos idênticos ainda
seja pensada como monótona e contínua, a própria Terra, sujeitada a
cataclismos, foi dotada por Cuvier de idade, de períodos e intervalos que
separam grandes acidentes, grandes transformações como resfriamento de
crosta, emergência de oceanos e continentes e assim por diante. A esta época,
as transformações impostas aos seres vivos (mesmo que concebidos como
fixos) decorriam do exterior por perturbações ambientais cotidianas, que
produziam uma espécie de seleção dos que permaneceriam idênticos ou
pereciam. De modo que o século XVIII preparou a passagem do fixismo, de
Lineu (1707 - 1778), por exemplo, ao transformismo deCuvier, Buffon e
Lamarck.
Jacob indica a importância de diferenciarmos o sentido dos conceitos de
transformismo e evolução, uma vez que diz intimamente respeito à própria
noção de ser vivo. No primeiro caso a transformação foi pensada como
decorrente de influências exteriores sobre um organismo que, quando não
sucumbe, devém a cada desafio mais complexo, dotado de órgãos que o
capacitam para atender novas funções. De modo que a transformação resulta
de relações (sempre instáveis) entre os seres e entre eles e o meio ambiente.
157

Já no segundo caso os seres vivos são concebidos como imersos no interior de


uma cadeia de relações e não isolados em linhas paralelas. De forma que o
transformismo concebia a transformação de um ser vivo enquanto tal, ao passo
que o evolucionismo concebe a variação a partir de derivações de uma forma
viva em outra, numa perspectiva de especiação que a partir de Darwin concebe
uma unidade estrutural de transmutação de espécies.
Gradualmente, a própria reprodução passou a ser vista como um fator
interno de produção (criativa) de novas formas, de recomeço, de
descontinuidade, segundo uma multiplicação de causas intermediárias, que
não a inicial e a final. Não dizem respeito nem aos desafios do meio ambiente e
nem à necessidade de adaptação dos seres vivos. Gradualmente, a Biologia
molecular restituiu e prestigiou a noção de indivíduo ao ser vivo, mais do que a
de espécie, como pretendia Darwin (embora tenha reconhecido a deficiência e
artificialidade deste conceito). De causa interior do que de exterior ou
impessoal, como meio ambiente e Deus, respectivamente. As teorias
evolucionistas instituíram assim a noção tanto de tempo como de causa
intrínseca73.
Mas não podemos esquecer a contribuição das primeiras teorias
transformistas que pressupunham um sentido evolutivo de formas simples às
complexas, como primeiros passos para o reconhecimento da especiação,
como o próprio Lamarck admitia. A elas devemos ainda a noção de escala que
superou a de seres isolados em sua gênese, constituição e progresso.
Admitindo também um movimento de conversibilidade entre os seres vivos
recusou a noção de protótipo do qual todos derivariam. Acrescentemos ainda a
contribuição de teorias que conceberam a passagem da vida marítima à
terrestre e que para isso admitiram a conversão de órgãos para efeitos
adaptativos. Já nelas estava presente a noção de transformação profunda dos
seres vivo, inclusive de continuidade e conversão de uma espécie em outra.
Século que por conta de Buffon já antecipava um tipo de encadeamento, é
verdade que contínuo, de uma espécie à outra e entre todas no tempo e no
espaço em que viviam,tudo relativo à idade e vicissitudes do planeta, como
concebido mais tarde no século XX.

73
É verdade que Darwin, de alguma forma, já havia reconhecido a possibilidade de que certos tipos de
variabilidade ocorressem, como disse, “independentemente das condições da vida” (1859, p. 54).
158

Jacob lembra ainda de Charles Bonnet(1720-1792) que, ainda mantendo


a hipótese de um protótipo dos seres vivos, introduziram uma tendência de
complexidade por meio de suas variações e combinações, de modo que a
variação implicava em desenvolvimento e diversidade, culminando em
complexidade, de onde teria emergido o homem. Para estes, a evolução não
implicava na passagem de uma espécie em outra (como a do peixe em
pássaro que assim permanecem), mas de uma forma a outra totalmente
diferente e todas em conjunto, de modo que no futuro toda vida seria diferente
da que houve um dia segundo uma escala de perfeição que teve início logo
após o ato de criação divina.
Constituindo o eixo sob o qual se dá toda variação, o tempo ocupou
importância progressiva, justificando a inserção dos seres vivos numa relação
de tempo geológico da Terra e do ambiente que os cerca e que produz efeitos
sobre eles. Eventos como cataclismos decidem quais espécies sobrevivem e
quais não, sem os quais haveria estabilidade das formas de vida. A este
momento, diz Jacob, «c´est donc à um compromis entre la création et la
variation que l´on peut attribuer l´origine du monde vivant d´aujourd´hui» (p.
154).Lembra ainda que foiPierre-Louis de Maupertuis (1698 - 1759) quem, na
obra Sytème de la nature, se interessou pela mecânica da variação e introduziu
atese de que ela se dá por mudanças internas na composição parental do
embrião e pode ser transmitida hereditariamente. Ele já atribuía à natureza o
mesmo mecanismo dos criadores de novas e artificiais espécies de animais e
plantas que mais tarde inspiraram a analogia de Darwin.
Mas foi de fato na passagem do século XVIII ao XIX, com a Biologia
conferindo outro tipo de parentesco a todos seres vivos, que o tempo recebeu
finalmente a incumbência de produzi-los. Estes receberam o estatuto de
organização que sofre transformação conjunta, todos ligados por um mesmo
movimento interior através do tempo segundo uma mesma história de gênese e
evolução sucessiva. Deixando para trás a concepção fragmentada,
circunstancial e pontual que Buffon atribuiu às variações. Neste modelo,
Lamarck em sua Philosophie zoologique (1809) concebeu as variações como
ganhos adaptativos, de modo que, lembra Jacob,«letempsdevientl´un des
principauxopérateurs du monde vivant. C´est lui qui fait émerger peu à peu
toutes ler formes les unes des autres» (p. 160). De modo que sua diversidade
159

devém de uma unidade histórica sem rupturas ou meandros.O nascente papel


do tempo pode ser entendido a partir de três fatores: sucessão, duração e
aperfeiçoamento da organização que sustenta a vida.
Assim, os corpos organizados sendo produtos da natureza, variam em
sucessão numa linha contínua no tempo segundo uma série de sentido único e
linear, tudo variando em bloco na direção da complexidade, da emergência de
melhores condições de adaptação, do atendimento das exigências da vida,
numa palavra, da perfeição.Assim, não há perdas no interior do mundo vivo,
mas um processo que dá a cada ser seu momento de aparição, seus graus de
complexidade e seu estado de perfeição, segundo uma ordem de produção da
natureza. Ou seja, em lugar da criação simultânea de todos os seres vivos
como tais, assim permanecendo, a Biologia opôs uma emergência contínua
determinada historicamente (sucessivamente) para todos. O que antes foi
pensado como organizado no espaço, depois foi como criado no tempo, o
tempo todo, de modo que cada ser simples hoje corresponde a um de criação
mais recente, e mais longínqua para os mais complexos,numa marcha que
pode ser reconstituída. A consequência da unidade e da eliminação de noção
de arquétipo primordial foi também a superação da rígida noção antes
essencial de espécie, que conferiu destaque à de indivíduo, finalmente passível
de se transformar um no outro sem saltos, graças a uma causa que se
desenrola segundo um plano de perfectibilidade que decorre de uma origem e
seus intermediários.
François Jacob diz ainda que segundo Lamarck (na mesma obra) os
seres se transformamimpulsionados de duas direções, uma interior e outra
exterior. A interior, «c´est une force d´origine quelque peu mystérieuse, un
"pouvoir" qui, malgré les professions de foi matérialistes de Lamarck,
s´apparente quelque peu à la force vitale: c´est l´apanage des seul être
organisés, c´est la véritable source d´harmonie et de regularité dans la
progression des êtres» (p. 164).Ao que se soma as circunstânciasou interações
diretas sobre os seres exigindo deles hábitos novos e aquisição de novas
organizações em face do desafio e que dão ensejo e completam o plano da
natureza. Portanto uma filosofia da harmonia preestabelecida da natureza, da
qual os seres vivos participam como elos, que sofrem revisões, mas sem
qualquer contingência na configuração do mundo vivo.
160

Foi ao final do século XIXa gênese dos seres vivos deixou de ser
pensada em termos de uma harmonia preestabelecida. A própria finalidade
passou a ser relacionada à contingência. De modo que a situação se inverteu a
ponto de que a evolução, decorrente do encadeamento interno das
transformações dos seres no tempo, passou a ser vista como determinante das
relações no espaço. Assim, de Darwin e Wallace, o que ocorreu de novo, cada
vez mais, foia noção de uma evolução de modo que os seres que vemos hoje
poderiam ser diferentes ou nem mesmo existirem. Resultam de um jogo de
forças opostas e numerosas, de um combate constanteentre organismos e
meio ambiente, que tem ocorrência no espaço e no tempo.Até porque, a
relação entre seres vivos e ambientese passa segundo influência mútua de
determinação.
A evolução ou a sucessão de formas vivas no tempo deixou de ser bem
representada por colunas ou linhas e ganhou a famosa ilustração por meio da
árvore genealógica, que ilustraa conservação de traços comuns bem como a
divergência de características, de modo a constituir famílias saídas de um
mesmo ancestral, mas continuamente fracionadas em grupos distintos.Esta
suposta origem da vida que, «se estompe au fond des temps» (p. 181), como
diz Jacob, evidencia o estatuto e o valor heurístico da teoria de Darwin.
Passou a ser admitida uma relação de reciprocidade de influência e
determinação a partir da qual tudo muda em conjunto num sentido imprevisto.
Daí em diante, a noção de tempo já se aplicava à Terra que, para Buffon, se
revolta produzindo efeitos sobre seres a princípio estáticos. Também aos seres
vivos, como para Lamarck que concebeu sua marcha própria à perfeição. A
partir do século XIX, com Darwin e Wallace, a marcha temporal se deu no
conjunto do universo, do planeta e dos seres vivos.
Tudo isto mais tarde se agravou em função da emergência de
conhecimentos nascidos da anatomia comparada, da embriologia e da
histologia. Rompendo ainda mais coma perspectiva de uma sequência linear e
única para a evolução. Inclusive ensejando uma nova concepção de cadeia de
ligação entre os seres vivos. Atualmente, o foco foi deslocado para a célula
como elemento universal de constituição, de reprodução, de transmissão de
características e de ligação entre os seres vivos. A evolução ou transformação
de qualquer ser vivo depende, antes de mais nada, de suas ocorrências como
161

organização, multiplicação e diferenciação, secundarizando a noção de espécie


e de população ao mesmo tempo em que destaca a de indivíduo.
Trata-se, antes de tudo, da consideração de uma regulação interna e de
uma descontinuidade entre os seres vivos que retira toda realidade do tipo ou
modelo permanente e a recoloca no indivíduo com suas variações,
particularidades, diferenças74. Em lugar de um plano ou intenção da natureza,
advém o desafio da emergência e da adaptação après coup. O que equivale a
retirar todo ser vivo de uma cadeia, seja ascendente ou descendente de seres,
e no limite de melhoramento ou de degenerescência.Sobre isto finaliza Jacob,
«la variation des êtres n´est pas nécessairement liée à l´idée d´utilité, de
besoin, de progression. Elle peut être gratuite» (p. 171). A partir de Darwin,
continua, «Il n´y a aucun manichéisme dans la manière utilisée par la nature
pour inventer des nouveautés, aucune idée de progrès ou de régression, de
bien ou de mal, de mieux ou de pire. La variation se fait au hasard, c´est-`a-dire
en l´absence de toute relation entre la cause et le résultat» (p. 192).
De modo que em definitivo a variação é concebida como precedendoà
adaptação. A pressão seletiva do ambientetem sua eficácia relativizada. No
entanto, a seleção natural ainda impõe escolhas, é verdade, masem definitivo
não produz as variações.Sendo o meio apenas avalista do que permanece e do
sucumbe, do que é determinado e do que é contingente, segundo uma noção
de tempo enquanto irreversível sempre em direção ao futuro, onde nada está
reservado, nem mesmo a conservação ou extinção dos seres vivos.
Finalmente devemos hoje a Morange o destaque da dimensão histórica
da vida, que recusa em definitivo toda tentativa de encontrar leis e princípios
físicos (generalizações atemporais) aplicáveis ao conjunto dos seres vivos e
por eles explicar suas características, posto que não são restritos à uma ordem
física. Ele reconhece que privilegiar uma explicação ao modelo molecular (que
insere dentro de um quadro que chama funcional e que produzem explicações
físico-químicas e, portanto, não históricas) equivale a recusar o
reconhecimento de que a vida é histórica. Ele associe a contingência (a titre de

74
Morange (2011) comenta, se bem que considerando-as ilusórios, que em recentes pesquisas
denominadas epigenéticas, ocorre uma recusa do determinismo genético. Por exemplo, os estudos
epigenéticos ao nível do cérebro são hoje considerados como um meio de abolir a tradicional distinção
entre inato e adquirido. Isto porque, como diz, «elle laisse la porte ouverte à ce que des modifications
induits par l´environnement puissent être transmises à la descendance, et donc à un retour du lamarckisme
et du néolamarckisme» (p. 132).
162

causes) dos fenômenos vivos como consequência de sua historicidade, ou


seja, no interior de uma relação entre regularidade e contingência, esta se
transforma na causa determinante de outros eventos, igualmente sujeitos a
regularidade e contingência. É da seriedade desta consideração e de suas
consequências que ele se ocupa nesta obra. Sugere o abandono do termo
evolução para designar a história da vida em função da própria história
problemática e difusa, ambígua e muitas vezes equivoca, que a expressão
sustentou. O próprio Darwin preferia o termo transformismo e parece não ter
utilizado a expressão evolução em sua obra principal, senão por influência de
Spencer.
Paraavançar nesta proposta Morange recorre à definição de vida. Uma
apoiada na bioquímica que define um organismo vivo como
«unsystèmeautopoiétique» (p. 159) que se mantém trocando matéria e energia
com o ambiente. Uma segunda que é proposta por geneticistas, biólogos
moleculares e evolucionistas, a saber, que «unsystème vivant est
unsystèmecapable de se reproduireavecvariation» (p. 159), condições
necessárias para manutenção e adaptação de um ser vivo. De modo que para
ele, reunindo a duas, compreende que a vida é resultado da capacidade de um
organismo de se conservar e de se reproduzir.
Após seu estabelecimento, uma explicação da vida consiste em
descrever as fases que permitiram aformação de um sistema único com tais
faculdades, segundo suas contingências e determinismos. O segredo da vida
reside, portanto na pré-história e na história desta montagem. História que, a
despeito de sua natureza experimental e demonstrativa, é também uma
narração (na perspectiva da École des Annales de Marc Bloch e LucienFebvre)
e propõe a substituição do termo evolução por história, bem entendido.
163

Conclusões

Para efeito das considerações finais, retomaremos os temas visitados


sob acontribuição de algumas obras e teses de Georges Canguilhem. Apesar
de ser historiador e epistemólogo especialmente das ciências biológicas e,
portanto, dos fatos naturais, destacaremos a extrapolação (que muitas vezes
ele mesmo fez) de suas teses relativamente aos fatos humanos e às
sociedades e suas perspectivas históricas.
Para isto, comecemos por considerações que servirão de balizas
futuras, como a noção de progresso de Kant,apoiada na tese da infinitude da
espécie; a de declínio de Freud, apoiada na exaustão dos recursos que torna
tudo finito. Prescindindo de finalidade, visitamos a tesa da conservação da vida
de Darwin,pela variação aleatória como propósito da natureza. Levando-a às
últimas consequência,Canguilhem sustenta uma concepção radical de variação
que enfraquece noções caras a Darwin como a de espécie, reforçando a de
indivíduo, a de descendência como cópia substituída pela de diferença. Com
isso completa um círculo de restauração do epicurismo tão diligentemente
sepultado por Kant e reanimado por Darwin.
Pois bem, Canguilhem apresenta (1966), em capítulo intitulado Du social
ao vital, a noção de que a sociedade humana é ao mesmo tempo uma máquina
e um organismo. Leva-a adiante considerando que a sociedade humana, em
sua evolução histórica se dá igualmente como construção de seus órgãos e de
suas normas de existência. No entanto, não de uma maneira deliberada,
segundo plano a priorida natureza ou a posterioridos homens, de conceber e
fixar os fins desejados e construir os meios para alcançá-los. Por algo desta
natureza criticou as experiências socialistas, por seu planejamento, mas
particularmente pelas formas de sua execução.
Deste modo, na consideração da ausência total de um plano da natureza
para o homem, dele mesmo para si, assim como de uma Providência divina,
definiu que «lesphénomènes d´organisationsocialesontcomme une mimique de
l´organisationvitale, au sensoùAristotedit de l´artqu´il imite la nature. Imiter ici
164

n´est pas copier mais tendre à retrouver le sens d´une production.


L´organisation sociale est, avant tout, invention d´organes de recherche et de
réceptation d´informations, organes de calcul et même de décision. Sous la
forme encore assez sommairement rationelle qu´elle a prise dans les sociétés
industrielles contemporaines, la normalisation appelle la planification, qui
requiert à son tour la constitution statisques de tous ordres-et leur utilisation par
le moyen de calculateurs életroniques» (1966, p. 243).
Pois bem, nada disto ficará claro se não retomarmos a construção de
seu pensamento. Para isso recorreremos, nem sempre respeitando a
cronologia de publicação, a obras como Le normal etle pathologique (1943 -
1966), La connaissance de la vie (1952 – 1965), Études d´histoire et de
philosophie des sciencesconcernantlesvivants et la vie (1968) e Logique du
vivant et histoire de la biologie (1971), nas quais apresentou a concepção de
seu próprio modelo de compreensão do ser vivo, refletindo especialmente
sobre a polaridade que persiste nas contemporâneas ciências dos seres
vivos. Trata-se da polaridade do normal e do patológico, por exemplo, que
subsiste igualmente na oposição entre acópia e o erro etc..Nestas obras
redefiniu, segundo Frédéric Worms (2012),a noção de erro (assim como de
patológico) como possibilidade intrínseca da natureza e do processo evolutivo,
retirando de toda variação ou mutaçãoa consideração de falha na reprodução.
Como diz Worms, «il montre que les erreurs inévitables du viviant dans la
reproduction des estrutures, les failles dans le code ou le message, ne sont pas
seulement des conditions négatives ou des obstacles à cette reproduction
sémantique ou linguistique du message. Ce sont les conditions positives et
normatives d´une evolution...» (2012, p. 73).

*************

Na segunda obra mencionada acima, La connaissance de la vie(1952 -


1965), em capítulo intitulado Le normal et le pathologique, Canguilhem lembra
que Bichat, de um ponto de vista vitalista, sustentou que toda organização viva
apresenta como característica a irregularidade e a instabilidade e, por
consequência as infinitas intercorrências entre uma monstruosidade e um tipo
ideal de ser vivo. Uma oposição irredutível entre normalidade e patologia que
seria específica de todo ser vivo. Oposição dada no interior de uma natureza
165

segundo leis, consideradas como essências genérica eternas, responsáveis


pela produção de invariáveis (normalidades), de modo que todo fenômeno
singular, toda variação aparece como irregularidade (em relação à mesma lei),
como fracasso, impureza, infidelidade e erro. Essências que operam também a
distinção entreindivíduo e espécie.

Canguilhem comenta que também Claude Bernard, apesar de recusaro


vitalismo de Bichat, operou a oposição do indivíduo (que de fato é dado na
realidade) ao seu tipo, um ente de razão no qual reside sua verdade, distinção
pela qual fundamentou a patologia. Sobre esta perspectiva declara que «ce qui
empêche cet hommage d´être entier c´est la croyance à une légalité
fondamentale de la vie, analogue à celle de la matiére...» (1965, p. 158). Em
lugar desta perspectiva legalista da natureza e da vida e de sua tipificação,
Canguilhem sugere sua consideração como uma ordem de propriedades
designando duas coisas; umaorganization de puissances(tentativa) e
umahiérarchie de fonctions(aventura). Com isto reconhece de início uma
estabilidade precária que não autoriza que toda “irregularidade” ou “anomalia”
seja reconhecida como acidente sofrido ou ruptura de uma ordem pelo
indivíduo, antes, «commesonexistencemême» (1965, p. 159). Isto para
ponderar ao final que, de fato, a partir destas duas perspectivas, pode-se ainda
interpretar a singularidade como fracasso, mas também como tentativa, como
falta, mas também como uma aventura. Deste modo, evita qualquer julgamento
taxativo de valor, particularmente porque nenhuma tentativa ou aventura da
vida é referida a um tipo ideal, mas ao seu próprio sucesso eventual, o que
aporta, como diz, o sentido profundo de identidade de todo ser vivo.

Trata-se, ao fim, de uma perspectiva que restitui o direito à existência do


individual, antecipando uma concepção de natureza como produtora de formas
possíveis hierarquizadas de algum modo. Posto que até mesmo um resultado
consideradoaberração(qualificação jamais atribuída a uma forma física, mas
recorrente aos organismos vivos) só é lamentado em função da possibilidade
de sua sobrevivência.Na mesma obra, em capítulo intitulado La monstruosité et
le monstrueux, Canguilhem declara que «l´existence des monstres met en
question la vie quant au pouvoir qu´elle a de nous enseigner l´ordre» (1965,
p.171).
166

Evidentemente, esta concepção dispensa um a priori que permita por


antecipação o reconhecimento de uma forma fracassada antes que lhe tenha
faltado condições de sobrevivência e reprodução. «C´est l´avenir de formes qui
décide de leur valeur»(1965, p. 160). Em apoio de seu ponto de vista, recorre a
certos biólogos que pela genética estabelecem a relação entre a ocorrência de
mutações e a mecânica de gênese das espécies. Menciona Georges Teissier,
que já em obra de 1945, concebeu a portabilidade de genes mutantes em
todos os indivíduos de qualquer espécie em qualquer condição ambiental, de
modo que seu sucesso depende da plasticidade de sua adaptação, indicando
como efeito do mecanismo de seleção natural a possibilidade de viabilização
de novidades como de restrição ao padrão. Mais uma vez, a oposição entre
normal e patológico se resume a uma questão estatística relativa aos seres que
sobreviveram e se reproduziram, estes passam a ser alçados à condição de
modelo, de ideal. Um passo na relativização em definitivo da oposição entre
cópia e erro.

*************

Apesar disso, particularmente na segunda parte deLe normal etle


pathologique(1966)intitulada Nouvellesréflexionsconcernantle normal et le
pathologique,Canguilhem indica o quanto a noção de erro se mantém presente
na Biologia molecular que, mais do que sustentá-lo, se fundanele, relacionando
o sentido informacional do gene a um passo falso do copista. E esta fundação
se mantem justamente a partir da consideração de que a vida se põe em
movimento a partir de um processo de crescimento e replicação (duplicação;
transcrição e tradução como etapas da síntese proteica)da célula; um processo
de reprodução por cópia a partir de seu conteúdo informacional. Deste ponto
de vista toda variação pode ser considerada erro de cópiasegundo uma má
interpretação.

O fato, como mostra Lwoff (1969), é que a mutação é rara. A ocorrência


de uma degeneração do código informacional, de uma falha de interpretação
das informações contidas no código genético, apresenta uma taxa
relativamente baixa (de 10-5 a 10-8). Em complemento, admite que a
reproduçãocom fidelidade também tem apoio estatístico (1969, p. 70). De
167

qualquer forma, a presença de um processo regulador na reprodução celular


que garante sua fidelidade, nada mais é do que, como diz Lwoff,
«pourl´espèceunimpératifcatégorique» (1969, p. 99), pois trata-se de um
processo que não remete a cada ser particularmente gerado, até porque o
resultado da reprodução fiel parece interessar muito mais à espécie do que ao
indivíduo. De qualquer forma, devemos admitir que a oposição entre cópia
eficiente e erro se mostra no limite arbitrária ou mesmo metodológica.

Apoiado nisto, Canguilhem lembra que mesmo uma anomalia humana,


que define como uma variação individual sobre um tema específico, não pode
ser tomada como deformidade a não ser depois de estabelecida suas
condições de relação com o ambiente social em que vive, portanto não se
define por uma condição exclusivamente biológica. O quedestaca a condição
humana a partir de suapossibilidade de autonomia frente ao mecanismo da
seleção natural, uma vez que, como havia dito um ano antes, «l´homme peut
créer de nouveaux milieux au lieu de supporter passivement les changements
de l´ancien, et, en un autre sens, la selection chez l´homme a atteint a
perfection limite, dans la mesure où l´homme est ce vivant capable d´existence,
de résistance, d´activité technique et culturelle dans tous les milieux» (1965, p.
163). Nestes termos,admite umadeformidadede início como diferença, como
oposição, mas nunca como contraditória ao normal. Encontramos aqui a
afirmação positiva do exercício da vontade humana preconizada por Darwin em
1856. De forma que superando as demandas da seleção natural o homem
supera a barreira restritiva que ela impõe em favor da espécie, dando a cada
forma condições especiais de sobrevivência.Superando em definitivo o erro
referenciado ao indivíduo, que passa a ter história.

*******************

Na obra de 1966,apresentou um capítulo intitulado Um nouveau


conceptenpathologie: l´erreur. Nele retomou para pôr em discussão a
concepção positivista que distingue a saúde da doença a partir de uma falta
(default) ou de um excesso (excédent) que demanda da terapia um tipo de
compensação. Para além dela, lembrou que a partir do início do século XX
algumas doenças passaram a ser consideradas como erros inatos do
168

metabolismo ou anomalias bioquímicas de natureza genética que podem se


manifestar em diversos momentos e condições da vida do paciente, portanto
sem decorrer de uma carência ou de um excesso. A comparação se deve ao
fato de que o diagnóstico deste tipo de doença ultrapassa a casa da centena e
que o conceito de erro inato de metabolismo tornou-se de uso corrente,
impondo revisões inclusive em relações a tantos outros diagnósticos. O que fez
do conceito de erro inato do metabolismo algo usual, banal mesmo.
A explicação que oferece quanto ao estatuto desta concepção é que ela
se funda na seguinte concepção: «Dans la mesure où les concepts
fondamentaux de la biochimie des acides aminés et des macromolécules sont
des concptes empruntés à la théorie de l´information, tels que code ou
message, dans la mesure où les structures de la matière de la vie sont des
structures d´ordre linéaire, le négatif de l´ordre c´est l´interversion, le negatif de
la suite c´est la confusion, et la substitution d´un arrangement à un outre c´est
l´erreur» (1966, p. 268). De modo que a saúde corresponde à transmissão fiel e
a doença ao passo em falso na reprodução da informação genética.
Esta noção de síntese proteica por cópia de informação (duplicação,
transcrição e tradução), sem ser totalmente recusada, foi entretanto refletida
por Canguilhem a partir da consideração de que afinal «il n´existe pas
d´interpretationqui n´implique une méprisepossible» (1966, p. 269). A partir
desta noção de mal-entendido em todo processo de comunicação desarma a
oposição entre erro e acerto e restitui a diferença no interior de todo processo
informacional. Desta forma, sua contribuição ao esclarecimento do estatuto
desta oposição é que ela manifesta uma confusão entre o que é da ordem do
pensamento e o que é da ordem da natureza, o que resultou em atribuirà última
o que é do primeiro. Permitiu reconhecer que o erro é uma categoria do
julgamento, da ordemdo que o pensamento espera que a natureza cumpra.
A noção de erro, então completamente considerada de um ponto de
vista antropomórfico, deriva do fato de que o geneticista espera que a natureza
dos seres vivos corresponda ao padrão de comportamento que ele próprio
julga ter reconhecido nela.De modo que não é a reprodução ela mesma, mas o
geneticista que informa as condições em que um resultado é reconhecido como
erro. Desta forma, toda consideração de que algo possa ser considerado como
um erro metabólico, como um erro inscrito na raiz da natureza, será também
169

considerado como uma interrupção ou uma suspensão de uma sucessão de


reações corretas e, portanto, um desvio da finalidade de produzir cópias
idênticas.
Semser considerada uma estrutura linear, mas uma ordredu vivant, a
replicação deixa de ser compreendida como um erro de copista, uma vez que a
interpretação se aproxima de “autoria”. Canguilhem avança declarando que
«les vivants que nous sommes sont l´effet des lois mêmes de la multiplication
de la vie, les malades que nous sommes sont l´effet de la panmixie, de l´amour
et du hasard. Tout cela nous fait uniques, comme on l´a souvent écrit pour nous
consoler d´être fait de boules tirées au sort dans l´urne de l´hérédité
mendélienn» (1966, p. 271).
De seu ponto de vista, a trinca francesa considera que a saúde
corresponde à cópia perfeita, mas por outro lado que o erro, ainda que uma má
transcrição/tradução do código genético,seria a própria condição da evolução,
desde que corrigida ou orientada pela seleção natural que a torna apta para a
sobrevivência e a produção de descendentes. Esta consideração, em primeiro
lugar,permite a recuperação da noção de “progresso” com várias derivas ou
implicações,pois indica como pano de fundo um contraste entre sabedoria e
ignorância da natureza, sustentando a ilusão da possibilidade de erradicação
definitiva do erro considerado como proveniente da vida ela mesma, como
expressão de sua especificidade. Em segundo lugar, diz Canguilhem,
comentando uma obra (1910) do geneticista H. J. Muller, a oposição se
sustenta em igual pano de fundo de que esta norma da vida é dada pelos
organismos mesmo, que assim informa sua possibilidade de restauraçãoe, no
limite, a de eugenia.Ou seja, um tipo de possibilidade e mesmo de obrigação
moral «d´intervenir sur lui-même pour se promouvoir généralement au niveau
intellectuel le plus éléve, c´est-à-dire en somme de vulgariser le génie par le
moyen de l´eugénique» (1966, p. 248).Até porque, como diz Pénisson, «le
connaitre peut donc être entendu comme une modalité particulière de la vie où
priorité est faite à la réflexion sur l´action pour mieux agir sur elle» (2008, p.
97).Além de estender igualmente toda possibilidade de correção e progresso
ao seio da sociedade e à própria ciência.Perspectiva queobstaculizaa
consideração positiva da variação, da diversidade e da diferença.
170

Talvez até por isso, Canguilhem lhe confere um estatuto psicológico


(êtrerassurante) (1966, p. 272) na medida em que remete à possibilidade de
correção em lugar de reconhecimento de uma ordem incontrolável. Serve a um
homem que sente a necessidade de conduzir algo que não tem condutor.
Razão pela qual ele identifica a hereditariedade como a noção moderna de
substância. Admitir a variação como erro equivale a sustentar a possibilidade
de uma seleção genética que restitua o controle da reprodução e previna seus
erros futuros, conferindo aos geneticistas uma função de polícia dos genes,
cujo resultado seria «de remede pires que le mal» (1966, p. 273).
Naquarta obra mencionada acimaCanguilhem retoma a relação que
Jacob (além de Lwoff e Monod) estabeleceu entre seleção natural e variação,
considerando que esta atua sobre as mutações, sobre fenômenos
considerados desvios individuais originários que podem ser de ordem
morfológica e ou funcional, mas sempre«interprétéscomme des erreurs de
copie» (1971, p. 23). Sobre suas consequências reconhece que a Biologia
emergente renuncia à noção de progresso substituindo-a por uma integração
crescente, renuncia igualmente à noção de finalidade substituindo-a por uma
teleonomia (téléonomie, conceito forjado por Monod); um modo interno de
operação (escolha) do organismo que permite autorregulação, autoconstrução,
uma morphogenèseautonome. Trata-se da concepção de uma atividade
orientada, relativamente coerente e construtiva, da instauração de uma noção
de sentido que o próprio organismo dá (pela articulação entre cópia e erro) às
suas estruturas e às suas funções.
Bem entendido, a possibilidade de uma direção postulada por Jacob é
na verdade a de uma abertura, de uma capacidade que possibilita, mas não
oferece garantia ao organismo, estabelecer relações crescentes com seu meio
ambiente possibilitando sua conservação e reprodução, seu aumento de
ordem, portanto a construção de uma história sustentada inclusive por
acidentes ou erros, todos acontecimentos raros e involuntários. Sempre a partir
da sustentação de um jogo entre acerto e erro, apesar dos esforços dos
geneticistas em considerar que o erro testemunha a capacidade de inovação e
criatividade da vida. O erro também como marca da irreversibilidade da vida,
uma ocorrênciacuja finalidade é de ampliação de sua capacidade de abertura e
integração. De ampliação das possibilidades de resposta para a natureza e de
171

escolha para o homem, de devir como mestre da evolução decorrente do


conhecimento acumulado. Mas foi justamente sobre esta atribuição de sentido
à evolução dos seres vivos que Canguilhem questionou. Declarou que Jacob,
«il se doute bien qu´on lui demandera si, dans le langage de la probabilité
mathématique appliqué à l´explication du vivant, on peut discourir du sens de
son existence» (1971, p. 23).
Sobre isto, desde 1966, Canguilhem já admitia que a oposição da noção
de erro e acerto, assim como a de rivalidade entre espécies, é frequentemente
utilizada para recusar o ponto de vistafinalidade, por exemplo, de Lamarck e
Spencer. No entanto,desautoriza um outro tipo de finalidade que chamou
possível, operatória. Elasubstancializa o jogo entre conservação e variação que
desempenha um papel de autorregulação dos organismos, substancializando
também pela cópia a noção de programa e de projeto e pelo erro sua variação,
abertura e evolução. Já indicava também o quanto à sobrevivência das
perspectivas opositivas entre cópia e erro, estabilidade e variabilidade, simples
e complexo, continuidade e descontinuidade impedem a derradeira destituição
da noção de finalidade na natureza, que abriria em definitivo as portas para a
emergência do possível, onde ser vivoe ambiente (não considerados como
duas séries causais independentes) são partes de um meio biológico sempre a
se constituir.
Nesta perspectiva, declara que cada organismo «n´est pas jeté dans un
milieu auquel il lui faut se plier, mais il structure son milieu en même temps qu´il
développe ses capacités d´organisme» (1966, p. 277).Compreende a evolução
não como um mecanismo que opera o encontro de duas séries distintas, mas
uma unidade, um processo de construção por reciprocidade, de modo que o
gene produz o ambiente e vice versa. Ressignifica a noção de seleção natural
e de evolução quedecorre de parcerias contingentes. De modo que todo
resultado não se dá por um ajuste de partes exteriores.
*************
Investigaremos agora sua posição filosófica em relação à temas
comoentropia do mundo físico, sua pertinência ou não em relação ao mundo
vivo e a noção de irreversibilidade da evolução, cuja debate foi e tem sido
sempre relevante entre biólogos. Como introdução, para em seguida retornar a
Canguilhem, recorreremos às considerações que Lwoff (1969) dedicou a estes
172

temas em capítulo intitulado Ordrebiologiqueetentropie. Parte do princípio de


que todo organismo pode ser assimilado à noção de máquina (animada) e
como tal precisa de energia para funcionar, obtida pela queima de substâncias
desde que funcione como um sistema equilibrado de fluxo de matéria e energia
que toma emprestado do meio ambiente, mas que também troca com ele.
Animada, porque, diferentemente das máquinas inanimadas, não pode ser
desligada, mesmo em repouso, ocasião em que, sem receber alimento do
exterior, queima suas próprias reservas, produzindo calor e movimento interno,
no limite até à morte.
Por conta deste fato Lwoffconsidera a ordem biológica e sua
sustentação dependente de uma exigência de degradação de energia.
Contudo, o que distingue o organismo vivo e o afasta da entropia do mundo
físico é, para ele, seu caráter essencial, o da reprodução que, como a
conservação, implica igualmente numa degradação de energia. No entanto, a
reproduçãooportuniza num crescimento de ordem, já que de um organismo
originário resultam dois. De modo que, como diz, «un accroissement d´ordre
(correspond) à une baisse d´entropie» (1969, p. 162). Evita o crescimento de
desordem eda degradação. Evita o isolamento enquanto amplia o fluxo de
substâncias entre sistemas, com os quais troca desordem e se restabelece.
Considerou, por fim, que um sistema vivo e reprodutivo não se apresenta nem
fechado e nem isolado, é como resultado de seu metabolismo e reprodução
que sua entropia diminui.
Explicou esta ordenação crescente e seu resultado recorrendo ao
princípio de informação, uma vez que esta corresponde ou possibilitaao
organismo vivo a produção de uma entropia negativa. Diz ele que
«l´organisation de toutes les macromolécules d´un organisme a son origine
dans l´organisation du matériel héréditaire qui est l´acide nucléique» (1969, p.
167). De modo que um organismo pode ser considerado a partir do cálculo de
sua quantidade de informação,que compreende sua organização hereditária.
Considerando que a vida tem estimados quatro milhões de anos em processo
de evolução, não pode escapar ou contradizer a segunda lei da termodinâmica,
a não ser que, continua, «bienqu´ilcontienneetreproduise une entropie negative
de structure et de ordrefonctionnelextraordinaire» (1969, p. 173).
173

Com este estatuto, a vida, cujo impulso se dá imerso na ordem que cria,
produz arranjos possíveis, ordem criada e multiplicada a partir de um conjunto
de informações acumuladas que só fazem ampliar as possibilidades de fluxo,
de mais ordem e de produção de entropia negativa.A vida começa, e persiste,
assim a partir de um programa genético, a partir de um texto, como nos ensina
Jacob, sem autor, mas revisto infinitas vezes por um corretor, um programa
que se realiza enquanto se executa e executa na medida em que se realiza e
que tem no erro sua porta de abertura para novos agenciamentos com o meio.
Nestes termos, vidapode ser entendida como «un fait pur, sans cause,
niresponsabilité» (1971, p. 23), como lembra Canguilhem, e que por esta
circunstância não é vista como submetida à inércia e à exaustão como
finalidade, condição que lhe atinge a não ser do exterior e contra a qual resiste.
Contudo, se a ordem biológica foi considerada por Lwoff como desvio do
sentido universal à desordem, lembra que em direção contrária, Schrodinger
postula que todo fenômeno natural está submetido à produção de entropia
positiva e se aproxima do estado de entropia máxima que equivale ao repouso,
à morte, a não ser que mantenha com seu meio uma troca ininterrupta de
entropia negativa. Discordâncias à parte, Lwoff conclui o capitulo reconhecendo
que «l´entropie negative est undegré d´énergie.La miseenordre est une
probabilité» (1969, p. 176).
Assim, embora haja quem, como Schrodinger, inclua os seres vivos sob
a segunda lei da termodinâmica, Canguilhem os exclui dos efeitos de uma
entropia positiva, reservando-lhes o domínio de uma ordem vitalista.Esta noção
pode ser bem compreendida, como explica Pénisson, pois «si l´on définit d´une
part l´entropie que reencontre la vie au cours de son déroulement comme
l´accroissement d´un désordre et d´autre part la normativité du vivant comme
une faculté d´instaurer un ordre nouveau, ces deux concepts semblent alors
s´exclurent» (2008, p. 99). Quer dizer com isso que a própria relação que a
vida estabelece entre os seres vivos, pode ser entendida como uma forma de
resistência à criação de desordem e de exaustão de recursos energéticos que
acomete o mundo físico, ao qual ela responde criando normas. Neste sentido,
a patologia ou a anomalia podeser interpretada como signo de uma criação de
desordem no seio da vida, como uma criação de desordem crescente (que
174

sugerimos ser o caso de Freud). No entanto, ela pode também ser subsumida
à possibilidade de que corresponda à criação de novas formas de vida.
Para compreendermos esta questão é necessário recorrer, mais do que
à filosofia da história de Canguilhem, à sua filosofia da vida, entendida
«commeactivité d´oppositin à l´inertieet à l´indifférence» (1966, p. 224).
Condição pela qual os seres vivos resistem à morte se destacando de seu
princípio, sob condições favoráveis de sobrevivência. O próprio Canguilhem
completa em seguida que«la vie jouecontrel´entropiecroissante» (1966, p.224),
por conta do que Pénisson denuncia o que chamou de vitalismo que
Canguilhem sustenta, segundo ele, inspirado em Bichat. Atribui à vida um
caráter de luta e esforço cuja meta de satisfação é sua conservação por meio
da produção contínua e criativa de normas de vida, de sua regulação. Trata-se
de umprocesso pelo qual compreende e inclui toda patologia, monstruosidade,
erro etc., retirando-as da consideração de desordem. Vitalismo (associado à
noção de élan) associado a uma concepção de variação aleatória,
impulsionada por um ímpeto que permite pensar num processo evolutivo (livre)
que cria/inventa a cada momento a partir de si mesmo algo de novo, quevisa
manter a vidaa partir de um regime normativo próprio, deuma outra ordem
fisiológica (concepção que Pénisson atribui à influência de Henri Bergson
desenvolvida na obra L´évolutioncréatice).
Desta forma atribui à toda providência dos seres vivos um ato de
resistência à morte, à inércia. Entendida por Canguilhem, diz Pénisson, como
«activitéetdésir de devenir, de créer» (2008, p. 100). De modo a excluírem-se
de toda orientação entrópica. Não admitindo qualquer tipo de desordem no
interior da produção de seres vivos,Canguilhem apresenta a emergência de um
dispositivo de regulação como decorrendo das próprias necessidades de
alimento, de energia, de movimento e repouso que demandam a construção do
que chamou de «unétatoptimum de fonctionnement, déterminésous forme
d´une constante.Une régulationorganique ou une homéostasie» (1966, p. 243).
Contudo, seu vitalismo compartilha com a entropia a noção de
irreversibilidade do tempo que dá constituição à vida. Fator fundamental, um
verdadeiro devenirpara os seres vivos, bem definido como genesis.
Consideração que abdica de noções como identidade, estabilidade e
permanência, recursos com os quais a vida combate a entropia diferenciando-
175

se constantemente. O resultado desta démarche é a produção de normas


enquanto expressão e condição de possibilidade da invenção contínua de
formas de vida. Compartilhando com Darwin da postulação de um princípio
interno de variação, se esquiva da consideração de que a natureza se equilibra
entre princípios contraditórios e complementares de diferença e de identidade.
de invenção e de imitação, reduzindo herança a criação, de modo que o
mesmo não deve produzir o mesmo. Nem mesmo que diferenças sejam
herdadas, antes que cada descendente difere de maneira necessária de seu
progenitor75.
A este propósito Canguilhem declara que «En tout cas, aucune guérrison
n´est retour à l´innocence biologique. Guérir c´est se donner de nouvelles
normes de vie, parfois supérieures aux anciennes. Il y a une irréversibilité de la
normativité biologique» (1966, p. 204).Deste ponto de vista não se pode mais
conceber qualquer tipo de complexificação da vida, mas um processo de
normatização aberta que a possibilita. Assim, à entropia positiva Canguilhem
opõe a normatividade biológica. Assim, menos do que erros, a constante
criação de ordens possibilita e amplia a possibilidade de acertos, de vida. Por
fim, não se trata de postular um indeterminismo ontológico no modo de
operação dos seres vivos, mas uma determinação aberta e contingente que
tem no vitalismo sua pedra de toque.
*************
Sua última crítica sistemática à noção de erro foi publicada em 1968 em
Études d´histoire et de philosophie des sciencesconcernantlesvivants et
la vie. Desta obra nos interessa particularmente as considerações sobre a
noção de duração criativa da vida, forjada a partir da influência da obra
Evolutioncréatrice, de Bergson. Explicita a tese de que toda forma de vida

75
Refletindo sobre a importância dada à variação, Hoquet lembra (2009, p. 331) que o botanista inglês
John Dalton Hooker, interlocutor crítico de Darwin (embora Hoquet atribua a ele o que chamou de
«unbondarwinisme», já discordava dele (por exemplo, em carta de 26 de novembro de 1862) por não
considerar radicalmente que a criação de seres vivos se dá por variação, a partir de variantes que
aparecem espontaneamente no processo de descendência, de modo a secundarizar a atuação da seleção
natural, para quem ela nem faz a diferença e nem cria os caracteres dos seres vivos. Enfatizando o foco da
criação na variação (que concebeu como inerente, autônoma e centrífuga), portanto num grau mais
fundamental que a seleção natural e a herança de caracteres. Vale recorrer á sua advertência, rompendo
com todo resquício de teleologia, de que “a lei que proclama “igual não produzirá igual” está na base de
tudo e é tão inescrutável como a própria vida” (Hooker, in: Cartas seletas, 2009, p. 89) Além disso,
divergiu quanto à possibilidade de reversão ou recapitulação, sobre a qual Darwin foi hesitante. Para além
da consideração de que uma característica persiste ou reaparece, considerou que as diferenças são sempre
infinitas e incessantes.
176

deriva de outra anterior à qual agrega algo novo podendo ser explicada uma
pela outra em seu conjunto. Canguilhem reconhece que este pondo de vista
tem suporte na própria mobilidade da concepção de ser vivo e de sua gênese,
retirando de toda reprodução o estatuto de derivação integral e especialmente
de cópia, tudo apoiado no prestígio e radicalização da variação como
fenômeno autônomo e aleatório, com o que conduz o epicurismo às últimas
consequências.
Reconhece que «ce que la durée ajoute n´est pas contenu dans le
concept et ne peut être saisi que par une intuition. Il n´y a pas fermeture sur
êlle-même de l´opértion d´organisation, la fin ne coincide pas avec le
commencement» (2008, p. 348).Trata-se portanto de, continua,
«l´aboutissement d´une tactique de la vie dans sa relation avec le milieu»
(2008, p. 348). Pode-se reconhecer que sua noção de emergência do
possível deriva da noção de especificação de Bergson, de cuja interpretação
conclui que «la vie est élan, c´est-à-dire dépassement de toute position,
transformation incessante» (1968, p. 353), cuja transmissão consiste em sua
particular noção de hereditariedade biológica, pois continua, «il est certain
entout cas que cet élan transporte, et transporte en quelque sorte à l´impératif,
un a priori morphogénétique» (1968, p.354). Contraria a noção de herança
dada, lembra Canguilhem, desde Claude Bernard (consigne) até às recentes
descobertas da biologia molecular (código genético) sob a noção de
transmissão de informação, de um código de instruções, resguardada sob a
hipótese de uma orientação, uma direção fixada por um programa, um conjunto
de informações que tendem a se perpetuar por transmissão.Isto considerando
que desde Claude Bernard o estudo da vida já se dava a partir da estrutura
celular de modo que a evolução já era considerada uma criação segundo um
imperativo estrutural-informacional. Sempre visando explicar em que sentido
uma forma viva encontra condições de persistir no interior do turbilhão
quecaracteriza a vida.
Desnecessário lembrar que esta abordagem, atribuída a Wattson e Crick
pela publicação da teoria da dupla hélice em 1954, repudiou toda terminologia
do passado adotando um vocabulário emprestado da teoria da comunicação,
como programa, código, mensagem e mensageiro, decodificação e instrução,
duplicação, transcrição e tradução, todos em analogia (abandonando a
177

metáfora) para compor seus conceitos relativos à vida. Foi assim que a
definição de doença pode ser formulada como dependente da transmissão
hereditária de perturbações de um metabolismo dado. Sobre isto, Canguilhem
reapresenta a informação que consta em sua obra de 1966, de que devemos a
Archibald Garrod, já no início do século XX a identificação do que chamou «des
erreursinnéesdumétabolisme» (1968, p. 361).
Isto foi possível na medida em que o que chama da ação biológica se dá
como produção, como transmissão e recepção, quer dizer, uma sequência que
implica em conservação e novidade, esta por ação do mecanismo de mutação.
Reconhece mais uma vez que sempre reprovou esta concepção em função das
mutações serem consideradas, muitas vezes e a maioria delas,
monstruosidades, alterações letais. A esta consideração, mais uma vez lembra
a tese de Louis Role, para quem o normal de hoje é o monstro normalizado de
ontem, argumento que fragiliza a distinção enquanto confere novo estatuto ao
que chamou de ação biológica de reprodução.
A partir dela, a vida mesma passou a ser definida como gramática, como
sintaxe e semântica, o conhecimento da vida se converteu em sua leitura, sua
decodificação, sua interpretação. Fato que define sua investigação como um
ato de descoberta, como o encontro de uma chave de leitura de um sentido
inscrito noser vivo. Um conhecimento, um sentido que é descoberto,
encontrado como existente e não construído, adverte Canguilhem.Desta forma
constituída, a história do conhecimento humano seria então a de identificações
dos acertos e dos erros da natureza.Ironicamente ele se pergunta se «la vie
auraitdoncabouti par erreur à ce vivant capable d´erreur» (1968, p. 364), já que
em tese poderia prescindir deste dispositivo para promover a evolução.Para
ele, a ação biológica não erra, opera. Sua crítica mostra que o desvio só pode
ser pensado em relação a um sentido dado da vida, seja como progresso, seja
como declínio. É justamente neste ponto que reforça sua crítica à noção de
erro e da promessa de eficácia terapêutica pela via de sua correção, pois
mesmo quando ainda não ocorre, como na trissomia 21, ao menos indica o
ponto a ser pesquisado.

*************
178

Tudo isto considerado faz de A origem das espécies, um contrassenso.


Incita à desconstrução da noção de espécie(ver Hoquet, p. 68-75)(apoiada na
semelhança) e de especiação,além da de classificação.Isto porque a noção de
espécie subordina a de indivíduo, absorve-o em nome do que considera erro
ou monstruoso. Já quando Canguilhem define cada ser como único, como
efeito de uma diferença, a referência à espécie perde consistência. Recusa
assim a tese darwinista das espécies constituídas de variedades bem
pronunciadas, de caráter e grau elevado, emergindo uma do interior da outra,
se destacando de uma origem comum até constituir novas identidades, novos
conjuntos homogêneosenquanto aguardam novos desvios e assim por diante.
Até porque, a descendênciacom modificação (lenta e gradual) de um
ancestral comum assegura o acúmulo de caracteres comuns, o que assegura a
identidade de formas e de hábitos. Nestas condições, ao indicar ruptura e
descontinuidade entre os seres reproduzidos, e com isso o prestígio do
indivíduo em detrimento da espécie,Canguilhem leva às últimas consequências
as teses da biologia molecular que, em última instância,prescinde da própria
iniciativa de agrupamento e classificação de seres vivos segundo semelhanças
e diferençasmorfológicas, fisiológicas e funcionais, de relações evolutivas,
recuperando a noção de indivíduo como base de consideração dos seres vivos.
Por fim, sua crítica acentua a fragilidade da iniciativa histórica de
classificação76dos seres vivos, especialmente em sua forma sinuosa como
atualmente organizada endossa a própria noção de um fio condutor, de
continuidade evolutiva (dada a partir de formas intermediárias que relacionam
seres como se fossem formas novas) que tem aporte fundamental em Darwin
segundo tradição inaugurada pelo taxonomista Lineu. Poderoso instrumento de
apoio para teses eugênicas que merecem combate desde o interior da Biologia

76
O primeiro sistema de classificação foi o de Aristóteles no século IV a.C., que ordenou os animais pelo
tipo de reprodução e por terem ou não sangue vermelho. O seu discípulo Teofrasto classificou as plantas
por seu uso e forma de cultivo. Nos séculos XVII e XVIII os botânicos e zoólogos começaram a delinear
o atual sistema de categorias, ainda baseados em características anatômicas superficiais. Para Buffon os
animais foram classificados por sua proximidade com o homem, como domésticos e selvagens. No
entanto, como a ancestralidade comum pode ser a causa de tais semelhanças, este sistema demonstrou
aproximar-se da natureza, e continua sendo a base da classificação atual. Lineu fez o primeiro trabalho
extenso de categorização, em 1758, criando a hierarquia atual. A partir de Darwin a evolução passou a ser
considerada como paradigma central da Biologia e com ela evidências da paleontologia sobre formas
ancestrais, e da embriologia sobre semelhanças nos primeiros estágios de vida. No século XX, a genética
e a fisiologia tornaram-se importantes na classificação, como o uso recente da genética molecular na
comparação de códigos genéticos.
179

às reflexões sobre história, progresso, plano, finalidade. Que não se perca


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