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O pêndulo de Epicuro
SUMÁRIO
Apresentação...................................................................... 02
Introdução...........................................................................10
1. Kant, do progresso como plano da natureza ao entusiasmo pela
república..............................................................................29
2. Freud e o Princípio do prazer como regulador de uma civilização em
declínio................................................................................. 65
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Professor Titular do Curso de Filosofia e Programa de Mestrado e Doutorado em Filosofia da PUCPR
2
Professor Adjunto do Curso de Filosofia e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UNICAMP
2
Apresentação
Ainda na mesma obra Meyer diz que há filosofias da história que avaliam
o seu desfecho com idêntica estrutura finalista, mas segundo resultados
fatalistas, igualmente definidos por “linhas de força” que prevalecem.
Admiteque um filósofo ou historiador assim identificado comodeclinista pode
derivar, pelo menos no aspecto finalista, do mesmo caldeirão teórico que
preparou um progressista. Argumento que ilustrou com referência a
historiadores contemporâneos como Oswald Spengler (1880-1936)e Arnold
Toynbee (1889 - 1975). O primeiro, na obraO declínio do ocidente(1918),
apresentou uma análise da marcha da civilização em analogia com toda forma
de vida na natureza segundo um ritmo cíclico de nascimento, apogeu e
declínio. Escrito ao longo dos anos precedentes, seu livro só foi publicado e
devidamente reconhecido por ocasião da crise alemã causada pela derrota
de 1918.
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Em algum aspecto reconhecemos também esta perspectiva em Freud, lembrando, por exemplo, de sua
apresentação do caso Dora (1901) em que definiu a análise como uma técnica que resgata mutiladas
relíquias do passado e com isso ressalta seu papel de referencial na determinação da vida presente da
paciente, o que justifica todo o papel etiológico que atribuiu à reminiscência. Apoiado na famosa e
recorrente tese de que a histérica sofre de reminiscência, sustentou a categoria de tempo passado, de
início povoado de eventos, depois acrescido de fantasias, como aporte da constituição psíquica.
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Introdução
Por esta ilustração indico que tanto Kant como Freud postularam a
marcha da história segundofios condutores que conduzem a sentidos
contrários (performando um tipo de rebatimento, como mostra a figura). Do
lado esquerdo-kantiano,a história marcha comouma máquina(locomotiva)em
contínua aceleração, de modo que a civilização segue forçando
assintoticamente sua tendência ao progresso. Do lado direito-freudiano,
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4Contudo, antes mesmo destes, naobra Vénus physique (1745) P. L. M. de Maupertuis (1698 – 1759) já
se opunha à teoria da pré-formação do embrião então em voga, afirmando que o pai e a mãe tinham uma
influência semelhante na hereditariedade. Maupertuis tratou de explicar os fenômenos genéticos a partir
de uma teoria de atração físico-química.Para ele, a natureza era demasiada heterogênea para ter sido
criada como um desenho. Sua perspectiva materialista e mecanicista (devido a seu conhecimento
dasteorias newtoniana e seu conhecimentos acerca da hereditariedade) lhe permitiram desenvolver uma
teoria da vida muito próxima àquela bastante posterior do mutacionismo deHugo de Vries. Segundo ele,
as primeiras formas de vida apareceram por geração espontânea, a partir de combinações aleatórias de
matérias inertes, moléculas ou gérmens. A partir dessas primeiras formas de vida, uma série de mutações
fortuitas engendrou uma multiplicação sempre crescente de espécies. Ele chegou, inclusive, a postular a
eliminação dos mutantes deficientes, convertendo-se assim num precursor da teoria da seleção natural.
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grand nombre de phénomènes» (apud Hoquet, 2009, p. 39). Isto por meio de
uma renovada teoria, de uma hipótese explicativonão-finalistaem relação tanto
à origem comum das espécies, à sua descendência modificada,como às
variações que sofrem estabelecendo em definitivo a tese lentamente gestada
desde o século XVIII de que os seres vivos tem uma história 5. Seu sucesso
explicativo permite estabelecer um paralelo entre a lei gravitacional
newtoniana, do mundo físico e a-histórico, e a seleção natural que revela o
mecanismo de conformação dos seres vivos, sua história. De modo a
aproximar, como diz Morange (2011) «la Biologie au temps, de la vie à
l´histoire» (p. 12) ao termo de que a história constitua uma parte da própria
definição científica de vida, que a evolução defina, de maneira muito particular,
a noção de história da vida.
De fato oferece a possibilidade de pensarmos uma marcha da natureza
(adiante a aproximarei da história humana) segundo uma teoria explicativa que
agrega simultaneamente a contingência e determinismo,oferecendo
inteligibilidade ao processo evolutivo, às suas possibilidades de ocorrência.
Sobre sua pertinência, Jacob(1979) diz que «elle integre l´ensemble des
données que nous avons sur le monde vivant, et notamment l´exttraordinaire
diversité des formes que soustend une remarquable unité de structure et de
fonction, par une explication très simple fondée sur deux proprietés
fondamentales des êtres vivants: les échanges avec le monde extérieur et la
reproduction» (p.147).Trata-se de um construto teórico depurado de teses e
argumentos metafísicos, sejam teleológicos ou tendenciais.
A história do conceito de evolução,e por extensão do darwinismo,hoje
mais do que à época justificado empiricamente, fundamentou a hipótese de
que a organização da natureza e a emergência de novas formas de vida se
dásob orientação do acaso.Como disse Jacob,«en 1859, au moment où a paru
L´origine des espèces, on ne connaissait rien encore des mécanismes qui
soustendent l´hérédité puisque les premiers mémoires de Mendel datent de
5
Hoquet (2009) interrogando sobre a força das hipóteses de Darwin, recorre ao argumento do botanista
americano Asa Gray, para quem « la doctrine de l´Origine des espécestire sa force de ce que´elle «montre
la conformité générale de tout un corps de faits à une même hypothèse, et qu´elle rassemble des cas
explicables par cette hypothèse et inexplicables par la conception traditionnelle»» (p. 55).Segundo Gray,
ela tem a virtude de harmonizar os fatos ainda que as causas permaneçam misteriosas.
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Gregor Mendel (1822 - 1884) finalmente publicou em 1866 seu artigo Experiments in planthybridization
na revistaBrünn Natural HistorySociety.
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Diferentemente de todo propósito de conservação da vida, por admissão de um vitalismo, encontramos
em Nietzsche uma crítica ao evolucionismo de Spencer e Darwin, no sentido de que o que é característico
da via não é sua conservação, mas sim seu incessante expandir e dominar (vontade de potência), expresso,
por exemplo, em sua teoria das forças, num movimento de superação -e não de adaptação- das condições
de existência.
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de Darwin, recebendo deste adesão (A este respeito, Hoquet informa (p. 337)
que a seleção natural de Spencer foi concebida por Weismann não
verdadeiramente criativa, mas somente destrutiva.). A adaptação, que neste
sentido é crescente, foi por ele concebida como luta, em função de consistir na
produção funcional de órgãos como resposta a desafios do ambiente;
evidentemente que melhores respostas criam melhores condições (aptidões)
de sobrevivência, em princípio para o indivíduo e, após, para a espécie em
função da acumulação e transmissão hereditária. Spencer generalizou e
estendeu esta noção a diferentes domínios como a Psicologia e a Sociologia
(reconhecido como um de seus fundadores). Sua teoria recebeu ainda o nome
de «darwinismo social» ou «teoria organicista».
*************
Acrescentamos que o pensamento de Darwin expressa uma visão de
mundoque podetambém ser ilustrada por umfio, contanto que não seja nem
condutor do progresso e nem do declínio da vida. Um fio que apenas indica o
modo pelo qual a vida está sendo tecida. A partir de Darwin e de seus pósteros
passamos apensar que a natureza não é dotada e nem faz planos para as
formas de vida que engendra e nem delas aguarda resultados específicos. Isto
porquesua “intenção” e seu modo de operar variaçõesé desde sempre
oportunizar novas e variadas formas de vida queresultaram na
biodiversidadedo planeta. O darwinismo não constitui, portanto, um instrumento
teórico que explicita uma intencionalidade da natureza e menos aindaa atuação
de uma inteligência superior. Apenasindica um padrão de geração, evoluçãoe
sucessão entre organismos que interagem em um meio ambiente.De modo que
arrisco dizer que desta visão de mundo não se pode atribuir a uma condição
evolutiva qualquer signo de direção seja de progresso ou de declínio ou caos.
Em acréscimo às já mencionadas encontramos em Darwin, outras
duasnoções que merecem atenção, a demonogenia (ou epigenia8) e a de
parentesco entre espécies (especiação). Ambascontrariam de início a noção à
época corrente de poligenia e de criação especial, segundo as quais as
8
Sobre esta perspectiva, Darwin comenta que “muitos cientistas afirmaram é tão fácil acreditar na criação
de centenas de milhões de seres como na criação de um só; porém em razão do axioma filosófico de a
menor ação, formulado por Maupertuis, o espirito é levado mais voluntariamente a aceitar o menos
número, e não podemos (os cientistas) certamente crer que uma quantidade enorme de formas da mesma
classe tenha sido criada com os sinais evidentes, mas ilusórios, da sua descendência de um mesmo
antepassado” (1859, p. 432).
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Kant declarou a este respeito em 1798: “Tudo isso, porém, é uma simples ideia do modocomo a maior
multiplicidade na geração é unificada pela razão com a maiorunidade da origem em uma linhagem. Se
efetivamente há um tal parentescona espécie humana, as observações que dão a notar a unidade da
descendênciadevem decidir. Aqui se vê claramente que se deve ser guiado por um princípiodeterminado
para simplesmente observar, isto é, atentar para aquilo que indicaa linhagem original e não só os
caracteres semelhantes; porque temos a vercom uma tarefa da história da natureza e não com a descrição
da natureza euma nomenclação meramente metódica. Alguém que não tenha disposto suainvestigação de
acordo com aquele princípio, deve novamente investigar, pois,por si mesmo, não se lhe apresenta aquilo
que ele precisa para estipular se háum parentesco real ou apenas nominal entre as criaturas” (p. 221). A
propósito desta concepção, Darwin não deixa dúvida sobre seu caráter heurístico, inclusive reconhecendo
que “toda classificação real é genealógica; a congregação de descendência é o lugar secreto que os
naturalistas sempre procuram, sem disso ter consciência, com o pretexto de descobrir algum plano
desconhecido da criação, enunciar proposições gerais ou coligir coisas semelhantes e separar coisas
diferentes” (1859, p. 379). Adiante voltarei a esta questão discutindo o próprio estatuto do conceito de
espécie.
10
Também G. W. Leibniz (1646 - 1716),no prefácio de Novos ensaios sobre o entendimento humano, já
reconhecia que nada se faz de repente, reafirmando a máxima de que a natureza nunca faz saltos (natura
non facit saltum): denominou-a Lei da Continuidade.
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Em função das discussões futuras acerca desta noção, esclareço que inicialmente, August
Weismann(1834 - 1914) (biólogo alemão criador da noção de seleção germinal, que enfatiza a
continuidade ininterrupta do idioplasma em oposição à hipótese da transmissão hereditária de caracteres
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adquiridos) admitia, ao final do século XIX e início do XX, que um organismo só podia reproduzir (por
seu idioplasma germinativo) cópias iguais a ele próprio, embora essa cópia possaapresentar
irregularidades uma vez que o organismo também reage a influências externas e, desta forma, se desvia
de sua tendência hereditária. Em outras palavras, sustenta que a variabilidade necessária para a seleção
natural, aparentemente postulando um retorno a forças internas, deriva completamente de fatores e causas
internas responsáveis pelas alterações do idioplasma (pondo em questão a tese da variação e herança por
meio do uso e desuso). Assim, para harmonizar sua teoria à de Darwin, introduziu ainda (e além da
influência de fatores externos) a hipótese de que ocorreriam mudanças pequenas e graduais, sempre ao
acaso, nos “bióforos e nos determinantes” (elementos do plasma germinativo) que operam mudanças
contínuas de composição e seriam as causas principais de variações.
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radical, mas apenas de grau entre corpo e mente, entre natureza e cultura,
aplicandoaos pares o próprio princípio de continuidade. Inclusive, na Origem
das espécies, atribuiu a noção de faculdades mentais (p. 223) indistintamente a
todos os animais como resultado da pressão seletiva. Assim, deste ponto de
vista, a emergência da civilização (ou da cultura)foi por ele explicada sem
pressupordescontinuidade12 com a dimensão natural ou biológica, de modo que
o caráter moral e social do homem, e mesmo sua linguagem e estrutura de
pensamento, diferentemente do que postulou Kant, deriva tão somente de uma
sofisticação de seu instinto animal.
No entanto, por várias vezes, mas particularmente tratandodos instintos
na Origem das espécies, Darwin reconheceu (p. 220)que o exercício da
faculdade racional e especialmente do fator volitivoresulta em modificações dos
próprios instintos (adquiridos e transmitidos), o que autoriza a ação da cultura
sobre a natureza, do homem sobre sua natureza. Em outros termos,
reconheceu neste jogo a possibilidade, por exemplo, de uma ação deliberada
de acúmulo e sustentação de determinadas variações sofridas pelas espécies,
que chamou de seleção artificial. Reconheceu no homem uma possibilidade,
senão ainda de sua produção, já que não cabe ao homem produzir variações,
pelo menos de intervenção sob forma de uma aposta no direcionamento e na
potencializaçãodas próprias variações naturais que sofreu. Um tipo de ação
que fixa, potencializa e tira proveito de uma variação disponibilizada pela
natureza.Na verdade, reconheceu que o homem, se de fato não influencia
imediatamente a produção de variedades de espécies, pode “escolher as
variações que a natureza lhe fornece e acumulá-las como entender” (p. 419).
De modo que faça de uma variação um benefício, uma conveniência, um
recurso de superação de um estado desfavorável, criando um registro próprio
de determinação.
Esta questão surge com toda força quando consideramos que a própria
tese da seleção natural (expressão reconhecida por Darwin como
metafórica)foi inspirada justamente na seleção artificial praticada por criadores
12
Darwin, atribuindo a Lamarck sua posição teórica quanto à mudança gradual das espécies, postulou
cientificamente a unidade da natureza como um contínuo a partir do reino inorgânico através do
reinovegetal e animal até a forma orgânica mais sofisticada ou elevada. Sobre isto, consultar argumentos
de Monod (1970, p. 144) sobre a noção de linguagem humana em relação de continuidade evolutiva.
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de plantas e de animais domésticos e que foi tomada por ele como modelo
aplicado à natureza. Trata-se de uma prática motivada pelo interesse de
melhoramento de espécies animais e vegetais e justificadana reconhecida
tendência dos seres vivos à reprodução e à diversificação. A esta, os criadores
sobrepunham um tipo de colaboração ou intervenção apenas estimulando as
variações que mais lhes interessavam. Isto porque, reitera Jacob, «n´est
pasl´hommequiagitdirectementsurlaviariabilité» (1970, p. 187), posto que toda
sorte de variação decorre de maneira desconhecida, à despeito de qualquer
necessidade dos seres vivos. No entanto, como Darwin percebeu, os criadores
ampliam as ocorrências de variação e com isso as estimulam e criam a
possibilidade de ao menos escolhê-las.Sobre esta possibilidade, pergunta
François Euvé (2012), «dans quelle mesure une finalité de l´histoire, qu´elle lui
soit imposée de l´extérieur ou qu´elle lui soit immanente, est-elle compatible
avec l´exercice de choix libres?» (p. 91). Questão que não se pode furtar.
Antecipadamente, posso dizer que o resultado do exercício desta
vontade é a possibilidade de ajustar e adaptar as variações das espécies aos
interesses humanos. Variações que podem ser acumuladas justamente na
direção desejada pelos criadores. Evidentemente trata-se de uma operação
que incide sobre um mecanismo da natureza justificada no critério de utilidade
e conveniência e desta maneira o homem se coloca como coadjuvante da
natureza em relação aos fenômenos de variação e evolução. É nesta
circunstância que o homem vislumbra sua emancipação da dependência de
variações como forma de sobrevivência na medida em que pode alterar o meio
ambiente para ajustá-lo à sua condição atual. Sobre isto, Patrick Tort (1997)
reconhece que por ocasião da publicação em 1871 de a descendência do
homem, Darwin constata que a seleção natural não é mais a força principal que
governa o futuro dos grupos humanos, mas «qu`ellea laisséplacedanscerôle à
l`éducation» (1997, p. 53). Fator que agrega aos homens de princípios e
comportamentos que lhes permite evitar os efeitos eliminatórios da seleção
natural. Possibilita ainda aos homens desenvolver comportamentos
(considerando que a seleção natural selecionou instintos sociais) e disposições
éticas, produzir dispositivos legais, com diz, anti-seletivos e anti-eliminatórios.
Tudo de modo que a relação entre biologia e civilização, por trás de uma
aparente ruptura, apresenta um continuum que Tort ilustrou com recurso banda
24
No conjunto das obras em que Kant constrói seu ponto de vista sobre a
filosofia da história, apesar de sua forma fragmentária, identificamos o
equivalente de uma quarta crítica, à exemplo das outras três, dedicada à
investigação de um a priori histórico. Nossa suspeita tem ainda apoio na
indagação sobre sua possibilidade que o próprio Kant apresentou em 1798. Na
Dialética de sua Crítica da razão prática(1788), mais uma vez se ocupando da
possibilidade de primazia de uma razão pura prática, Kant considerou,
mediante a fé moral na liberdade do homem, na existência de um Deus criador
todo-poderoso e a imortalidade da alma como postulados da razão prática, sem
os quais a obrigação de aplicar o imperativo categórico que exige a
racionalidade das máximas das ações não pode ser avaliada como racional. A
fé na imortalidade recebeu a finalidade de admissão de uma vida
suprassensível como oportunidade de recompensa, enquanto a crença em
Deus pavimentaria qualquer possibilidade de abismo entre o homem e a
realidade.Por analogia, destacamos os postulados da liberdade da razão, da
existência de uma natureza intencionalmente boa e poderosa e da imortalidade
da espécie, como postulados da razão pura histórica. Igualmente sem os quais
a obrigação de seguirmos o imperativo que orienta as ações históricas não
pode ser avaliada como igualmente racional.
********
13
A natureza deste movimento foi exposta mais tarde porLucrécio no início do Livro II de Da natureza:
“Efetivamente, como erram através do vazio, é fatal que ou sejam os elementos das coisas levados pelo
seu próprio peso ou pelo casual choque dos outros: de fato, quando se encontrem, em direções opostas,
ressaltam de repente e cada um para seu lado; e não há nada que estranhar, porque são duríssimos, de
maciço peso, e nada por detrás lhes levanta obstáculo. E, para que imagines melhor as agitações de todos
os elementos da matéria, lembra-te de que não há no Universo qualquer fundo, e que não há lugar onde
assentem os elementos, porque o espaço é sem fim e sem limites: já mostrei e demonstrei com exato
raciocínio que o espaço imenso se estende de todos os lados e para todas as partes.” Sem dotá-lo de
centro e de bordas que lhe sirva de limites e de restrição na expansão, externou precocemente um tipo de
teoria inflacionária do universo.
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14
Sobre este ponto de vista, quase ao final do Livro II Lucrécio declarou que “não tomes, pois,como
podendo residir nos elementos primordiais e eternos o que vemos flutuar àsuperfície das coisas e nascer
por instantes e subitamente perecer”, como fossem realizações dos primeiros.
15
O reconhecimento da espontaneidade e iniciativa de movimento da matéria (seu impetus) está
associado ao da existência do vazio, que contraria a tese aristotélica do movimento comunicado entre
corpos num mundo sem vácuo, onde tudo esteja repleto de corpos. Lucrécio explicou que “Efetivamente,
são os próprios elementos os primeiros a se moverem por simesmos; vêm depois os corpos cuja
composição é reduzida e que estão, digamosassim, mais perto de forças elementares: movem-se impelidos
pelos choquesinvisíveis destas últimas, e, por seu turno, põem em movimento os que são umpouco
maiores” (Livro II). Tese que expõe sua recusa de qualquer possibilidade de uma causa finalnatural,
particularmente de tudo ter sido criado por um poder benevolente, para uso, gozo e conforto da
humanidade, pelo “favor dos deuses”.
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16
Ver nota 45.
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17
No Livro V de seu poema Lucrécio voltou a este tema argumentando que “os elementos dos corpos em
número e feitios inumeráveis e batidos peloschoques desde tempos infinitos foram sempre arrastados,
levados pelos seus pesos,a juntar-se de todas as maneiras e a tudo experimentar, tudo o que podia criar-se
pela sua junção; não é, pois, de admirar que tivessem chegado a tais disposições,que tivessem vindo a
movimentos como aqueles pelos quais o Universo,deslocando-se, eternamente se renova”. Para continuar
um pouco adiante: “De fato, não foi por um plano nem em virtude de uma inteligência sagaz queos
elementos das coisas se colocaram por sua ordem; não foram também eles quedispuseram os seus
movimentos: os elementos das coisas, em grande número,abalados por choques de muitas espécies, foram
sempre levados por seus própriospesos e juntaram-se de todas as maneiras e experimentaram todas as
coisas quepodiam criar-se pela sua reunião; é por isso que, tendo vagueado durante um tempoimenso,
experimentando todas as espécies de junção e movimento, finalmenteconstituem aquilo que, depois de
pronto, logo se torna muitas vezes o início dosgrandes objetos naturais, da terra, do mar, do céu e da raça
dos seres vivos”.
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Lucrécio detalhou-o, no Livro V, nos seguintes termos: “Ainda não se podia ver aqui a roda do Sol
voando pelo alto com sua luzampla, nem os grandes astros do mundo, nem o mar, nem o céu, nem
finalmente aterra e o ar, nem qualquer outra coisa semelhante às nossas. Só havia uma tormentarecente,
uma certa massa formada de elementos de toda espécie, a qual combatiadiscorde, misturando os
intervalos, os caminhos, as ligações, os pesos, os choques,as reuniões e os movimentos, por causa das
formas diferentes e das várias figuras:não podiam, nestas circunstâncias, permanecer juntos nem ter entre
si osconvenientes movimentos.Depois começaram a separar-se as partes deste amontoado, a juntar-se os
iguais aos iguais e a encerrar o mundo, a dividirem-se os membros, a disporem-seas grandes partes, isto é,
a distinguir-se da Terra o alto céu, a ir para um lado o mar,de maneira a ficar, com um líquido, à parte, a
ir para outro o fogo de um céu puro edistinto”.
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existirá e crescerá e será forte de sua própria força, segundo o que foi dado a
cada um pelas leis da natureza”.Consideração extensiva à vontade humana
cujo espírito dotou de uma “fatalidade interna”.
É importante lembrar que Lucrécio recusou a geraçãodesordenada de
formas até o limite da produção de monstros. Como reconheceu ainda no Livro
II, “Não se deve, porém, aceitar que os elementos se possam juntar de todas
as maneiras. De outro modo, ver-se-ia por toda parte nascerem monstros,
existirem espécies de homens semiferas, brotarem às vezes ramos de um
corpo vivo, unirem-se membros de animais terrestres e marinhos e até
apresentar a natureza, pelas terras de tudo produtoras, quimeras que
exalassem chamas das tétricas goelas”.De fato um tipo de especiação admitido
mais tarde.
Voltando a este tema ainda nos Livros IV e V, admitiu um tipo de
fixismo19 na natureza, considerando que após a emergência das formas, esta
sim aleatória, todos os corpos criados apartir de germes determinados e de
determinada matriz conservam ao crescer, seus caracteres específicos, o que
não pode acontecer sem uma lei específica que a tudo determine. Sua
ausência implicariana própria eliminação da vida, pois é preciso, com efeito,
admitido o fundamento eterno do universo, que permaneça algo de estável
para que não seja tudo reduzido inteiramente ao nada. Também, sendo os
átomos finitos em variedade, não pode deixar de ter limites adiversidade dos
seres que dão formam, o que elimina a possibilidade de que suas combinações
possam ser continuamente arbitrárias e em número infinito.
********
No artigo acima mencionadoKant admitiu20, preservando certo acordo
com o materialismo antigo, uma organização da naturezadada a partir de um
mecanicismo que pressupõe propriedades como matéria (ou força) em
19
Contudo, no Livro V volta a este tema apresentando um ponto de vista mais consistente. Na verdade,
reconheceu que “o tempo modifica a natureza de todo o mundo, um estádio se sucede aoutro, segundo
uma ordem determinada, e nada fica semelhante a si próprio: tudopassa, a tudo a natureza muda e obriga
a transformar-se. Apodrece um corpo e seenfraquece de velhice e logo outro cresce e sai daquilo que se
desprezava. Assim,pois, modifica o tempo a natureza de todo o mundo e passa a terra de um estádio a
outro: acaba por não poder o que já pôde e por ser capaz do que lhe era impossível”.
20
As condições definidas por Kant visaminstaurar as condições para que os fatos humanos possam ser
considerados do ponto de vista de uma história, sem as quais, como diz Thomas, ”a histórianão é
umprogresso, mas uma acumulação inútil” (1992, p. 273) de fatos desconectados, sem sentido e
finalidade, referindo-se à concepção de Marquês de Sade e ao materialismo francés do século XVIII, de
forteinspiraçãoepicurista.
35
21
Nas páginas seguintes mostrarei como ao longo de sua produção filosófica, tendo como ponto de
inflexão, a obra O conflito das faculdades(1798), Kant postulou a possibilidade de autoprodução humana,
deslocando em definitivo o foco da natureza para o homem como sujeito de sua história, o que redefiniu e
reforçou a noção de autonomia, de liberdade, além de flexibilizar a própria expectativa de realização dos
propósitos e finalidades atribuídos à natureza. O que, na verdade, muda as condições de possibilidade e de
alcance do progresso. Portanto, sua própria expectativa, de algum modo afastado do plano natural,
precisou ser reconsiderada e sua justificativa revisada, posto que dependente de uma ação (política)
humana, que pode também não ocorrer. Vale lembrar que esta mudança de foco foi insinuada em 1793 na
obra A religião nos limites da simples razão, onde declarou que não é permitido ao homem se manter
inativo na produção de uma sociedade (segundo valores éticos), ou ainda, que o homem deve proceder
como se tudo dele dependesse para sua consumação.
22
Isto porque, segundo Valério Rohden (1983) em comentário à sua tradução da Crítica da Razão Pura,
na Crítica da Razão Prática(1788) o método e a concepção de Kant foi invertido em relação à
Fundamentação da Metafísica dos Costumes(1785), uma vez que na última a vida moral foi concebida
como uma forma através da qual se toma contato com a liberdade, posto que emancipa o homem. Já na
primeira a ideia de liberdade foi concebida como a própria razão de ser da vida moral, seu fundamento, de
modo que tudo neste campo, como a lei moral, provém dela, é determinante da vida moral e da
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construção da civilização a seu encargo. Perdendo assim toda “exterioridade” de seu fundamento como a
doação da natureza.
38
Disse Kant, “por meio da própria razão” (1784, p. 12), ou seja, “tendo
dado ao homem a razão e a liberdade da vontade que nela se funda, a
natureza forneceu um claro indício de seu propósito quanto à maneira de dotá-
lo” (1784, p. 12). Isto para que, na falta de um instinto suficiente,o homem
possa de si mesmo tudo tirar, para que ultrapasse a ordenação mecânica de
sua existência animal. Para que da primitiva rudeza atinja a máxima destreza e
perfeição do modo de pensar e agir, que alcance um elevado grau de felicidade
e a si mesmo se sinta reconhecido pelo resultado. Tudo isto enquanto espécie
que, ao contrário do indivíduo, deve ser pensada como se fosse infinita e por
isso pode esperar pela realização plena de todas suas disposições naturais e
colher seus frutos no futuro.
23
Quanto à força deste argumento, que explicita uma expectativa de totalização do progresso, atribuo ao
fato dele estar vinculado a uma dotação da natureza, o que certamente foi relativizado por
reconsiderações que deslocaram da natureza para o próprio homem o compartilhamento da causa
propulsora do progresso.
40
astúcia que, como disse Kant, “sabe mais o que é melhor para a espécie”
(1784, p. 14).Agiu assim inclusive quando negou ao homem a tutela do instinto
para o alcance imediato de seu objetivo, o que pode ser entendido como
derivado da condição do homem como um ser especial na natureza, a obra
prima da criação, como definiu em 1755.
A esta alturapodemos questionar sedo antagonismo das disposições
pode-se seguramente esperar que além de conduzir a espécie humana a um
progressivo arranjo social, proporcione também a conservação e estabilidade
dos resultados alcançados (o que dependeria de um progresso na formação do
caráter -autonomia, para além do mero aprimoramento do convívio social-
heteronomia).Para responder, proponho avançar na consideração das
consequências que o antagonismo proporciona ao homem.Ele proporciona
uma elevação no grau da percepção da sua própria condição humana, o
reconhecimento do despertar e da efetivação das disposições naturais que só a
vida social possibilita. Proporciona o reconhecimento de que agindo de
maneiraegoísta todo homem permanece obstáculo ao outro, ou seja, que ele
próprio é obstáculo aos demais como estes o são para ele. O antagonismo
proporciona o reconhecimento deuma inconveniência mútua que deve ser
superada de maneira irreversível.
Por fim, as inconveniências da vida social seriamconsideradas como um
mal incontornável se ao mesmo tempo a vida social não fossepercebida como
a oportunidade dedesenvolvimento de todos os talentos e assimda elevação da
rude condição de cada homem isolado às comodidades e recompensas da vida
civilizada. Mas especialmente pelo reconhecimento de que sem a convivência,
disse Kant, os homens “não preencheriam o vazio da criação em vista de seu
fim como natureza racional” (1784, p. 14). Por tudo isto a vida comunitária e
civilizada proporciona a cada homem “uma posição entre companheiros que
ele não atura mas dos quais não pode prescindir” (1784, p.13). Curioso notar
que o antagonismo, á maneira hobbesiana, não produz uma alteração da
natureza humana, da sua própria constituição disposicional, mas sua
gestãodeliberada em vista de um fim a ser alcançado.
Fica assim compreendido que é justamente da oposição ou falta de
coincidência entre os interesses dos indivíduos que nasce a própria condição
civilizadaque experimentam em conjunto, de modo que os talentos e
43
Pode servir, não apenas para o esclarecimento do tão confuso jogo das
coisashumanas (...) mas que abre também uma perspectiva consoladora para o
futuro, na qual a espécie humana será representada num porvir distante em que
ela se elevará finalmente por seu trabalho a um estado no qual todos os germes
que a natureza nela colocou poderão desenvolver-se plenamente e sua
destinação aqui na Terra ser preenchida. (1784, p. 23)
*************
*************
*************
É difícil não reconhecermos o quanto seu debate com Herder foi longo e
profícuo. Seu eco pode ser percebido um ano mais tarde, quando Kant voltou à
tarefa de polemizar com ele na obra Começo conjectural da história
humana(1786). Exatamente por meio de uma obradeclarada já no título
comoficcional, realizou mais uma tentativa de dar conta de uma teoria da
história humana como obra da razão. Nela tomou como objeto de reflexão a
Bíblia, mais precisamente suas páginas iniciais dedicadas ao episódio
deexpulsãodo paraíso protagonizado por Adão e Eva. Nesta obra, mais uma
vez projetou luz sobre o futuro da humanidade conjecturando sobre as etapas
iniciais de sua marcha, considerando a própria vicissitude do casal como
condição de possibilidade do progresso,além de ser seu primeiro signo.De fato
uma alternativa à hipótese de Herder.
Por este meio postulou como teria ocorrido umatransição abrupta, posto
que decorrente de uma queda,uma passagem descontínua da condição de
natureza à de civilização, acompanhada da distinção radical entre instinto e
razão. Evento pelo qual a humanidade teria ultrapassado a rudeza natural em
direção à civilidade e sociabilidade. Deu continuidade, portanto, à construção
51
sido disponibilizados. Assim, sua razão conjectura que a própria natureza teria
disponibilizado tais recursos justamente para o sucesso das disposições
humanas e que este seria o propósito da natureza. Em acréscimo, esta
consideração trouxe consigo a indicação de que cada homem se dirija aos
outros homens como iguais e copartícipes nos dons da natureza. Distingua seu
próprio semelhante como fim, fato decisivo para a elaboração e cumprimento
da meta da sociabilidade humana.
*************
que justificam o progresso moral, não mais explicável por uma razão superior,
ou por leis newtonianas, mas especialmente pela interação humana, por seu
agir livre e racional. Desde então, pelo exercício da liberdade a história passa
a ser tudo aquilo que a humanidade faz de si(embora aqui a história ainda
não seja considerada mais do que regional, de grupos, sendo geral da
humanidade, apenas reforçado em 1798), uma progressiva racionalização das
suas ações, sempre na perspectiva de um incremento moral.Partindo do
princípio de que naturalmente o homem não é nem bom nem mal, manifesta ao
mesmo tempopropensão para o mal e disposição para o bem,de modo queo
progresso moral só pode ser alcançávela partir da tensão entre sua propensão
e sua disposição.
Lembro que a esta altura a lei moral já havia sido definida como de
conhecimento de cada ser racional, como já indicado na Crítica da razão
prática(1788).Trata-se da concepção de uma razão moralmente legisladora e
por isso criadora de “fatos” morais, aliado ao progressivo esclarecimento que
faz do homem submisso a ela, amplificandosua responsabilidade pela
condução de sua própria história. Tudo a partir de uma noção de razão que tem
objetividade em si mesma, à qual o homem ésuscetível de agir em sua
conformidade, como móbil de ação.
55
*************
Ela seria o telos de um pacto entre povos, uma federação da paz, pondo
termoa todas as guerras, sustentando a paz entre os Estados federados,
portanto distinta de um pacto de paz que teria vigência limitada em
determinada situação litigante.Resulta da própria tendência de todos os
Estados se reunirem numa federação que “englobaria por fim todos os povos
da Terra” (1795, p. 19).Merece destaque a importância que Kant atribuiu à
esfericidade da Terra, ao direito à propriedade comum de sua superfície, ao
livre comércio e à hospitalidade entre as gentes, como elementos
estimuladores da aproximação do gênero humano cada vez mais de uma
sociedade cosmopolita.
*************
25
Prever com absoluta certeza, dar como concluído um fato que irá realmente se concretizar.
61
*************
*************
O desamparo do homem, porém, permanece e, junto com ele, seu anseio pelo
pai e pelos deuses. Estes mantêm sua tríplice missão: exorcizar os terrores da
natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a
que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações
que uma vida civilizada em comum lhes impôs. (1927/1996, p. 26)
26
En bref, la mort est la cohérence philosophique du libertin.Sur ce point, dansDesejo e prazer na idade
moderna (1995), L. R. Monzani affirmequ’il y a, “em Sade, desde o início até o fim de sua obra, uma tese
reguladora: a de que o prazer não tem outra orientação teleológica que a consumação de si mesmo” (p.
81)26. Ainsi, pour Sade, commedit Thomas, “a história não é progresso mas uma acumulação inútil”
(1992, p. 273).
66
27
Segundo Ritvo, Freud “nunca foi suficientemente otimista para acreditar no progresso inevitável. O
melhor que ele podia esperar era a reafirmação de Eros na eterna luta com Tanatos” (1990, p. 251). Em
acréscimo, pensamos que, não fosse a influência de Haeckel sobre a formação científica de Freud, ele
poderia ter desenvolvido outra concepção sobre os destinos da pulsão considerando, a aleatoriedade
radical das variações ; o prestígio da noção de individuo em lugar de espécie; da diferença em lugar da
cópia; do salto na natureza em lugar de continuidade e, por fim, de que o semelhante produz semelhante
67
em lugar do diferente. Talvez Freud, sob influência de um evolucionismo mais afeito à letra de Darwin e
ao espírito de Darwin, fosse menos finalista (em seu caso fatalista).
68
28
Dada a falta de consenso quanto ao significado deste conceito, tomo a iniciativa de defini-la como um
“diálogo cooperativo” entre diversas áreas ou disciplinas na produção de conceitos e na resolução de
problemas.
29
Sobre as influências recebidas por Freud e suas consequências na formulação (metapsicológica) de sua
teoria, vale antecipar que sua passagem no período de sua formação acadêmica, pelos laboratórios de Carl
Claus, de Brücke e de Meynert resultaram, como destacou Anna Freud, que “o pensamento psicanalítico,
em termos clássicos, implica a exigência específica de que todo fato clínico fosse abordado a partir de
quatro aspectos: geneticamente, quanto a sua origem; dinamicamente, quanto à interatuação das forças de
que é o resultado; economicamente, no tocante a sua carga de energia; topograficamente (mais tarde,
estruturalmente), no que se refere a sua localização no aparelho mental” (apud Ritvo, 1990, p. 248). De
modo que podemos reconhecer como heurístico, seu ponto de vista genético pela origem e descendência
comum, além do dinâmico e econômico pela noção de força empregada.
69
fisicalista do psiquismo de Freud, sem que por isto tenha adotado, pelo menos
de maneira intocada e duradoura, a tese da conservação de energia, bem
como daauto-conservação da alma.
30
De fato uma adesão aos postulados monistas de Haeckel, quem, rejeitando a distinção (postulada por
Dilthey e Richert) entre corpo e alma, entre orgânico e inorgânico e entre natureza e espírito, sustentou
que a ciência do espírito é apenas uma parte da ciência da natureza, já que para ele o que é da ordem do
humano não constitui uma matéria específica ou distinta, ou ainda, corpo e alma constituem objetos de
apenas uma ciência e nunca de dois saberes heterogêneos.
72
uma obra em que ele não parece ser inteiramente justificável, trata-se de O
futuro de uma ilusão.
Por sua vez, o novo espírito científico confrontou o homem com temas
específicos do mundo e da vidaenfraquecendo a representação religiosa do
mundoe proporcionando o enfrentamento da realidade e de suas implicações.
Esta ocorrência foi pensada como uma possibilidade de reconciliação do
76
homem com o fardo da vida e, no limite, davida civilizada. Claro que este
prestígio da racionalidade foi visto como a oportunidade de reconhecimento do
ganho decorrente da vida em sociedade. Até aqui, parece explícita sua adesão
à perspectiva de uma civilização construída e sustentada com bases em uma
consciência esclarecida, à maneira kantiana.
Por conta disto, arrisco dizer que esta obra acaba por expressar a
grande expectativa que Freud manteve em relação à Psicanálise, oferecer
alívio ao sofrimento dos homens, na medida em que estes, uma vez
esclarecidos, em lugar de vivenciarem suas ilusões ou fantasias experienciem
a realidade na condição de sujeitos, até onde isso é possível, de sujeitos33 de
suas vidas.
33
Neste ponto cabe antecipar uma discussão que deverá ser retomada adiante, sobre os sinais da história e
a presença do homem como agente de sua história. Lembro que em Freud, se não há, a exemplo de Kant,
o “século de Frederico” e nem a “Revolução francesa” como sinais de progresso, tampouco há indicação
explícita de sinais de declínio ou de progresso. No entanto, identifico algo do gênero em seu argumento
acerca do silêncio (e invisibilidade) da pulsão, de seu aspecto subterrâneo. Na verdade Freud não aponta,
a não ser nas neuroses e na compulsão à repetição, um equivalente, se posso assim dizer, dos signos
históricos kantianos. De modo que corresponderiam sim a sinais de uma causa que age permanentemente
na história e produz efeitos visíveis, na forma de acontecimentos. De modo que também aqui um signo
mostra que a causa age na realidade. E nisto temos o segundo ponto de reflexão, pois em Freud o
movimento em direção ao inorgânico não pode ser definido como tendência, mas antescomo um
movimento natural inexorável. É necessário refletir aqui sobre sua noção de finalidade, de teleologia e de
determinação, principalmente quando vista pela ótica do esclarecimento anunciadaem O futuro de uma
ilusão, ou ainda, quando em O mal-estar na civilização, convoca cada um de nós (com auxílio da
psicanálise) a encontrar um modo particular de se salvar, de modo que é preciso investigar o alcance desta
possibilidade que, no limite, deve ou pode por ações humanas fazer resistência à tendência natural ao
decaimento e à infelicidade.
77
mais seria opressiva para ninguém” (1927, p. 64), disse Freud. Admitiu assim
uma curiosa conquista civilizatória, o que faz com que uma nova perspectiva
histórica se instale, já que, como diz, ”as transformações da opinião científica
são desenvolvimentos, progressos...” (1927, p. 70), isto é, um ganho de
consciência que se apresenta como viabilizador da civilização.
*************
(1913, p.83). Com isto reconheceu que nós, atualmente imersos no espírito
científico, portanto potencialmente esclarecidos e libertos de toda superstição e
ilusão religiosa, não estamos demasiadamente longe de aspectos do animismo
quando acreditamos que os seres humanos são dotados de espíritos ou almas.
34
Esta noção, sustentada no evolucionismo de Haeckel, foi utilizada por Freud até seu leito de morte e
inclusive retomada com todas as letras em publicação tardia como Moisés e o monoteísmo. Nela,
convidando o leitor a supor “que ocorreu na vida da espécie humana algo semelhante ao que ocorre na
vida dos indivíduos” (1938, p. 95), aplicou a noção emprestada da biologia de recapitulação. Reforçou a
tese da herança arcaica, que se faz inatamente presente no indivíduo e que tem origem filogenética,
80
justificada no fato de que “em todos os acontecimentos de seus primeiros dias (dos indivíduos), têm as
mesmas experiências, eles reagem a elas, também, de maneira semelhante” (1938, p. 112). Nisso
pressupôs uma herançaarcaica em lugar de uma transmissão pela comunicação e reconheceu que,
embora a biologiacontemporânea esteja propensa a recusar a noção de herança dos caracteres adquiridos
por gerações sucessivas, confessou que não podia prescindir deste “fator da evolução biológica” (1938, p.
114), justamente pelo fato de uma vez admitida permitir a construção de uma ponte entre a psicologia de
grupo e a do indivíduo, como foi seu objetivo. Também nesta mesma obra, quanto às referências a
Darwin, Atkinson e Robertson Smith, sobre a horda primitiva e seus desdobramentos, retrucou a violentas
censuras por sustentar pontos de vista àquela altura contestados até mesmo pela biologia contemporânea,
com o argumento de que eles fornecem “valiosos pontos de contato com o material psicológico da análise
e indicações de seu emprego” (1938, p. 145). Deste modo, pode justificar que “os homens sempre
souberam (dessa maneira especial) que um dia possuíram um pai primevo e o assassinaram” (1938, p.
115), uma experiência ancestral que foi herdada, transmitida e repetida por cada indivíduo e que
adicionalmente explica os primórdios da moralidade e da justiça, das instituições humanas na perspectiva
de progressos e avanços culturais, como disse, segundo “modificações na estrutura das comunidades
humanas” (1938, p. 97). Modificações que se deram, por exemplo, por conta da rejeição da magia e do
misticismo, tudo na forma de um “convite a avanços na intelectualidade (espiritualidade), e de seu
incentivo às sublimações” (1938, p. 100). Freud viu nesse movimento que culminou no monoteísmo um
avanço em intelectualidade, avanço que proporcionou resultados psíquicos duradouros. Isto porque ele
trouxe consigo uma concepção grandiosa de Deus. Grandiosa a ponto de deslocar para um segundo plano
sua percepção sensorial enquanto o apresentava como uma ideia abstrata. Como disse, um avanço em
intelectualidade correspondente a um retrocesso da sensualidade, “um triunfo da intelectualidade sobre a
sensualidade, ou, estritamente falando, uma renúncia instintual, com todas as suas consequências
psicológicas necessárias” (1938, p. 127), um extraordinário avanço das superiores atividades intelectuais.
Efetivamente, “um dos mais importantes estádios no caminho da hominização” (1938, p. 128), um passo
momentoso no controle pulsional e na valorização de sua renúncia e consequentemente, por tudo que
sabemos de sua teoria, do incremento da produção de mal-estar. Isto porque, a renúncia pulsional,
segundo sua própria teoria, conduziria a um aumento duradouro e contínuo de tensão, de produção de
desprazer, não fosse a possibilidade de “reduzir a intensidade do próprio instinto mediante deslocamentos
de energia” (1938, p. 131) contemporizou Freud. Este aumento de tensão, tão frequente e evidente quando
se trata de uma renúncia imposta do exterior, foi relativizado por Freud, quando considerado de sua
direção interna, proveniente do superego, cujo resultado é a oferta de um rendimento de prazer (uma
satisfação substitutiva), um tipo de enlevação moral experimentada pelo ego que, neste caso “orgulha-se
da renúncia instintual, como se ela constituísse uma realização de valor” (1938, p. 131-2), uma
experiência de libertação e satisfação derivada de uma progressiva e lenta renúncia instintual capitaneada
pelos avanços em intelectualidade que torna os homens orgulhosos de tê-lo percorrido. Avanço que teve
como consequência “o aumento da auto-estima do indivíduo, tornando-o orgulhoso, de maneira que se
sente superior a outras pessoas que permaneceram sob o encantamento da sensualidade” (1938, p. 129).
Orgulho que, como reconheceu, pode corresponder a simplesmente um “narcisismo aumentado pela
consciência de uma dificuldade vencida” (1938, p. 133). Avanço que carregouconsigo, pelo menos quanto
ao monoteismo, resultado de um elevado nível espiritual e intelectual promotor de uma abstração até
então inesperada, a crença em um Deus universal e único, que “afasta-se inteiramente da sexualidade e ao
mesmo tempo eleva-se para o ideal da perfeição ética” (1938, p. 133), sem se esquecer que a ética é uma
limitação do instinto. Ética, fundada na renúncia instintual, sempre como uma limitação do instinto que
traz consigo, a partir das noções de um povo eleito e de um Deus que escolhe, a inconveniência da
exclusão de outros povos e religiões. Argumento que Freud sustentou a partir da reconstituição histórica
do monoteísmo egípcio (de Amenófis IV) que operando a partir de considerações de exclusividade e
universalismo,constituiu um estágio de onde “nasceu inevitavelmente a intolerância, que anteriormente
fora alheia a o mundo antigo e que por tão longo tempo permaneceu depois dele” (1938, p. 33).
Intolerância que, quando levada ao limite comunga com a tese de que a própria razão é intolerante,
autoriza a expectativa de um “domínio mundial” (1938, p. 100). Certamente, este sim um resultado
psíquico duradouro que mantem, no caso analisado, reunido até hoje um povo disperso, mas em oposição
aos demais. Avanço que, inclusive dando ênfase ao que é moral, no controle da agressividade, consiste
num processo colocado em movimento por um crescente sentimento de culpa, que acompanhou todo
povo civilizado impulsionando o incremento do que Freud já havia chamado em 1908 de doença nervosa
moderna. De modo que mais uma vez aproximou os fenômenos culturais, como a religião monoteísta,
segundo estrutura e propósito, aos sintomas neuróticos.
81
concepções, de forma que cada uma das etapas constitutivas dos três
estadosestariam, por assim dizer, construídas uma sobre a outra.
*************
E isto, por conta de que nossa vida instintual passa a ter após a
introdução do princípio de realidade e do processo secundário que ele orienta,
uma existência subterrânea queincide e reincide na vida social sob a forma de
neurose, perversão etc., do que se pode concluir que a escalada da razão, em
certo sentido, só faz potencializar o conflito. A existência prudente e virtuosa
que ela recomenda, e até certo ponto proporciona, não restitui ou recompensa
a existência convulsivaque impôs renúncia, adiamento, substituição ou, na
melhor das hipóteses, sublimação. Tudo isto admitido, digo agora que
justamente a partir da situação conflitiva descrita que se abre ao aparelho
psíquico a possibilidade de retomada do modo operacional primário, pela
construção de sintomas neuróticos, pelos sonhos de cada noite e, mais uma
vez na melhor das hipóteses, pela criatividade expressa nas diferentes artes.
Estes aspectos do funcionamento do aparelho psíquico além do próprio
antagonismo entre civilização e vida instintual foram exemplarmente tratados
por Freud em duas outras obras, no artigo de 1908, intitulado Moral sexual
civilizada e doença nervosa moderna, além de O mal-estar na civilização,de
1929, o que justifica apresentá-las nesta ordem.
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35
No mesmo ano, em artigo intitulado Sobre a transitoriedade, Freud retomou a questão da recusa em
admitir a decadência e transitoriedade de todas as coisas pelo anseio de “escapar a todos os poderes de
destruição” (1915ª, p. 317). Expectativa, sem a qual a vida seria destituída de todo valor. Valor que
depende da eficácia do luto do fim, tão necessário para reunir forças para reconstruir tudo o que a guerra
destruiu.
94
Seu ponto de vista foi nesta obra mais uma vez sustentadono
pressuposto de indestrutibilidade dos traços primitivos da vida psíquica. Há
aqui um paralelo justificável entre as ações destrutivas da guerra e a doença
psíquica; ambas consistiriam a “um retorno a estados anteriores da vida afetiva
e de funcionamento (mental)” (1915, p.295). De onde a capacidade de
involução, particularmente no sentido moral, estaria inscrita na própria
constituição do aparelho psíquico bem como nos conflitos que dentro e fora
dele se desenrolam.
resistem, dada sua força, a qualquer razoabilidade, antes se servindo dela para
sua consecução. Isto possibilita inclusive justificar a guerra, apresentar razões
para satisfazer paixões que nada mais seriamdo que o cumprimento de
interesses primitivos de agressividade, destruição e escoamento de tensões.
Com isto ficou estabelecido o papel subsidiário da razão à função norteadora
do princípio do prazer.
*************
36
A concepção de natureza e de intencionalidade que subsidia e orienta o pensamento e Freud, segundo
entendo, é a da entropia e não a homeostase, que pode ser resumida na noção de que a vida está inscrita
na morte. O conceito de entropia, enunciado pela segunda lei da termodinâmica, foi cunhado em 1850 por
R. J. E. Clausius (1822 - 1888) e recebeu contribuições, entre outros, de Maxwell e Boltzmann. Data da
primeira metade do século XIX, como noção de que todo sistema físico evolui sempre e espontaneamente
para situações de máxima entropia ou desordem, segundo a tendência universal de todos os sistemas
físicos, o que remete à impossibilidade de conservação de alguma forma de energia ou de vida. Considera
que a energia total do universo está sujeita a uma degradação em função de um contínuo desgaste que, por
fim, se estabiliza em definitivo no equilíbrio ou repouso. Movimento responsável pela passagem do
tempo e pelo esgotamento da energia num sentido irreversível. Ao contrário da primeira lei da
termodinâmica, que admite uma homeostase, anuncia o universo como um sistema fechado e subsistente.
Não há dificuldade em postular que o aparelho psíquico e o conflito crescente que apresenta pode
igualmente ser pensado como um sistema de natureza entrópica. Metaforicamente, uma usina de
produção de desordem, cuja meta é a de exauri-la.
97
37
Na sexta edição da Origem das Espécies Darwin reconheceu que outros - notavelmente William Charles
Wells, em 1813, e Patrick Matthew, em 1831, haviam desenvolvido teorias similares, embora não as
haviam apresentado completamente em publicações científicas notáveis.
38
Para contextualização deste ponto de vista, lembremos que, como nos informa Butterfield (1992),
encontramos em Jean Baptiste Robinet (1735 - 1820) “a tese de que os átomos que compõem todas as
coisas não são mera matéria morta, mas são individualmente possuídos de vida e de alma. A matéria
inorgânica pode organizar-se ela própria em combinações, de modo a formar criaturas, não existindo
qualquer abismo entre o animado e o inanimado” (p. 201), contradição que tanto animou as discussões
científicas e filosóficas do evolucionismo. Tese vitalista que recebeu, posteriormente, contribuições de
autores como Herder e Goethe.
39
Tese necessária para sustentar seu ponto de vista evolucionista de que semelhantes geram semelhantes,
a princípio a serviço da recusa do criacionismo e da hipótese da geração espontânea, sustentando que uma
célula sempre se origina de outra célula preexistente. Argumentando ironicamente contra o criacionismo,
Darwin, na conclusão de A origem das espécies atribui aos criacionistas a crença de que em “inúmeras
épocas da história da Terra, alguns átomos elementares receberam ordem de se agruparem em tecidos
vivos” (1859, p. 431), em tudo ecoando os versos do atomismo antigo de Lucrécio, para quem “Não é por
certo em virtude de um plano determinado nem por um espíritosagaz que os átomos se juntaram por uma
certa ordem; também não combinaramentre si com exatidão os movimentos que teriam; mas, depois de
102
terem sidomudados de mil modos diferentes através de toda a imensidade, depois de teremsofrido pelos
tempos eternos toda espécie de choques, depois de teremexperimentado todos os movimentos e
combinações possíveis, chegaramfinalmente a disposições tais que foi possível o constituir-se tudo o que
existe. E épor assim se terem conservado durante muitos anos, uma vez chegados aos
devidosmovimentos, que os rios saciam o ávido mar com suas grandes águas, que a Terra,aquecida pelo
vapor do Sol, renova as suas produções, e florescem todas as raças deseres vivos, e se sustentam os fogos
errantes pelo céu. De nenhum modo o fariamse do infinito não chegasse sempre mais matéria para reparar
a tempo as perdas sofridas” (Livro I).
40
Para mostrar o caráter pendular da importância atribuída entre variação e seleção natural lembremos de
uma carta a Asa Gray datada de onze de maio de 1863, na qual Darwin declarou sua atual consideração
de irrelevância à seleção natural como carro chefe da evolução em relação à fatores adjacentes como a
variação (ao seu poder criativo e fator fundamental da modificação das espécies) e de outros fatores como
uso e desuso e condições exteriores. Reconheceu que “Pessoalmente, é claro, tenho muito interesse na
seleção natural, mas isso me parece totalmente irrelevante, quando comparado com a questão da Criação
ou da Modificação” (2009, p. 112). Em outras oportunidades, Hoquet (2009, p. 350) lembra que ele
reforçou esta revisão à maneira de um arrependimento, por exemplo, em A descendência do homem, de
1871, reconhecendo que atribuiu muita importância à ação da seleção natural e à sobrevivência do mais
apto, de modo que passa a ter um papel fundamental relativamente à adaptação do que à origem (ou
especiação) das espécies, tarefa atribuída progressivamente à variação individual. Sobre esta relação
pendular, Hoquet (2009) informa que, relativamente ao prestígio da seleção natural sobre as variações,
Darwin varia do otimismo da primeira edição («oùelleréussit à reduirelesparties» (p. 210)), como informa
o subtítulo da obra, para seu descrédito e redução de importância, na sexta edição («ellene fait plus que
tendre à réduire» (p. 211)). Hoquet (p. 353) atribui a Wallace, na obra Darwinismo, de 1889, a insistência
no selecionismo radical.
41
Produzidas pela via da reprodução sexual (como mamíferos em geral), da metamorfose (como o
Axolotl), ou ainda pela partenogênese (como oAcalèphe).
103
42
Na mesma carta a Asa Gray, Darwin fez referência ao filho caçula a quem chamou “o herói da seleção
natural”. Justificou a expressão descrevendo um diálogo que ilustra perfeitamente a atuação do principio
de seleção natural bem como da contingência de seus produtos: “Há uma quantidade enorme de serpente
104
*************
aqui; mas, se cada um matasse tantas quantas fosse possível, elas picariam menos”. Darwin responde ser
óbvio que isso ocorreria, ao que retrucou: “É obvio, mas eu não quis dizer isso; o que eu quis dizer foi
que as serpentes mais tímidas –as que fogem e não picam- estariam salvas e, depois de algum tempo,
nenhuma delas picaria”. Ao que Darwin retrucou: “Seleção natural!!!” (2009, p. 113). A timidez, de
nenhuma forma um sentimento nobre ou evoluído, como capacitação para a sobrevivência.
.43 A noção de escolha, no limite, de liberdade, indicada por Darwin, recebeu de Jacob a seguinte
reflexão. «On peut même favoriser ces sauts et accroitre la fréquence des mutation en exposant le
sperme des drosophiles à un rayonnement X, comme le fait Muller, ou en traitant les organismes par
certains composés chimiques. Mais qu´elles surviennent « spontanément » ou qu´elles soient « induites
artificiellement », les mutations apparaissent toujours au hasard. On ne trouve jamais aucune relation
entre leur production et les conditions externes, aucune direction imprimée par le milieu » (p. 243).
Evidentemente a consideração da variação por mutação, desconectada de qualquer causalidade ou
propósito reinscreve a discussão acerca da autonomia e da consideração por sujeitos-agentes. Não é por
outro motivo que Jacob declara adiante que o código genético
«...apparaitdonccommeuntextesansauteur...»(p. 307). E continua, «Le gène représente le terme ultime de
l´analyse génétique, mais il n´a aucune autonomie. Son expression dépend le plus souvent des autres
génes qui l´encadrent. C´est le matériel génétique tout entier. C´est la combinaison particulière de génes
réalisée dans un organisme, qui en détermine le développement, la forme et les propriétés » (p. 244).
105
44
De faro, Darwin não deixou de sustentar a tese de uma origem única para o homem a partir de uma
fonte comum (monogenia), inclusive com a publicação, em 1872, da obra A expressão das emoções no
homem e nos animais, apontando uma identidade notável em relação às principais expressões humanas de
emoções, cuja maioria seria hereditária e inata, recusando as teses criacionistas e finalistas do anatomista
Charles Bell.
45
Citação extensa de Kant a este respeito: “Mas, no que concerne à diferença posta em dúvida, pura e
simplesmenterejeitada, entre descrição da natureza e história da natureza, se sob a últimase quis entender
106
refutação pela experiência, mas de uma indicação, por meio de signos, de sua
eficiência organizacional da experiência. Nesta perspectiva, quando Jacob
apresenta o que seriam suas confirmações, o faz sob forma de novas
proposições indicadoras das verdades potencias das primeiras. Por exemplo, a
descoberta de que todos os seres vivos são constituídos de células, de que a
informação genética de todo organismo, sendo universal e imutável, está
um relato dos eventos naturais até onde nenhuma razãohumana alcança, por exemplo, a primeira origem
das plantas e animais, tal coisaevidentemente seria, como diz o Sr. F., uma ciência para deuses que
estivessempresentes à criação ou mesmo que fossem autores, e não para os homens. Todavia,apenas
perseguir regressivamente a conexão de certas qualidades atuais das coisasda natureza com suas causas
em época remota, que nós não inventamos, mas[162] deduzimos das forças da natureza tal como elas
agora se apresentam a nós,meramente recuar tão longe quanto no-lo permite a analogia, seria isso
umahistória da natureza e, na verdade, uma tal que não só é possível, mas também,por exemplo, nas
teorias da terra de naturalistas metódicos (entre as quais a dofamoso Lineu também encontra seu lugar)
foram frequente e suficientementetentadas, quer tenham elas alcançado muito ou pouco com isso.
Também aprópria conjectura do Sr. F. sobre a primeira origem dos negros não pertence àdescrição da
natureza, mas apenas à história da natureza. Essa diferença estáposta na natureza das coisas, e através
disso eu não reclamo nada de novo,mas simplesmente a cuidadosa separação de uma coisa da outra, pois
elas sãocompletamente heterogêneas e, se aquela (a descrição da natureza), em todasuntuosidade de um
grande sistema, aparece como ciência, a outra (a história danatureza) apenas pode indicar fragmentos ou
hipóteses vacilantes. Através dessaseparação e apresentação da segunda como uma ciência própria
realizável, aindaque até agora (talvez também para sempre) mais como esboço do que comoobra (ciência
na qual para a maioria das questões se poderia encontrar marcadoTrans/Form/Ação, Marília, v. 36, n. 1, p.
211-238, Jan./Abril, 2013. 219Traduçãoum Vacat11), eu espero conseguir que não se faça, com pretenso
conhecimento,em proveito de uma ciência algo que, na verdade, pertence tão somente à outra,e chegar a
conhecer mais seguramente a extensão dos conhecimentos reais nahistória da natureza (pois se possuem
alguns da mesma), ao mesmo tempo,também os limites da mesma que se encontram na própria razão
juntamente comos princípios, segundo os quais ela se ampliaria da melhor maneira possível. Háque se
considerar bem esse escrúpulo, já que anunciei ter experimentado noutroscasos tanta calamidade por
causa da negligência de soltar entre si os limites dasciências e não ter agradado precisamente a todos;
além do mais, com isso eufiquei inteiramente convencido de que, pela simples separação do
dissemelhanteque antes se havia tomado num agregado, abre-se frequentemente uma luzinteiramente
nova para as ciências, com a qual, na verdade, se descobre muitamesquinhez, que antes se pôde esconder
por detrás de conhecimentos estranhos,mas igualmente se abrem ao conhecimento muitas fontes
autênticas ondeabsolutamente não se poderia ter presumido. A maior dificuldade nessa pretensainovação
está apenas no nome. A palavra história, visto que exprime o mesmoque a grega Historia (relato,
descrição) já está muito usada e há muito tempo,para que se deva facilmente consentir [163] competir-lhe
uma outra significaçãoque possa designar a investigação natural da origem; uma vez que nesta
últimatambém não se está isento de dificuldade para descobrir uma outra expressãotécnica que lhe seja
ajustável12. Todavia, a dificuldade da língua em discernir nãopode suprimir a diferença das coisas.
Presumivelmente, precisamente a mesmadivergência por causa de um afastamento conquanto inevitável
das expressõesclássicas, também no caso do conceito de raça, tem sido a causa da desuniãosobre a
mesma coisa. Ocorreu-nos aqui o que Sternedisse por ocasião de umdebate sobre fisionomia que, segundo
suas ideias caprichosas, pôs em alvoroçotodas as faculdades da Universidade de Estrasburgo: os lógicos
teriam decidido oassunto, não tivessem eles apenas se deparado com uma definição. O que é uma raça?A
palavra absolutamente não figura em um sistema de descrição da natureza,presumivelmente, portanto,
também a própria coisa não está na natureza. O conceito que essa expressão designa é, porém, muito
bem fundado na razão de cada observador da natureza, o qual, para uma característica herdada de
animais diferentes que se procriam por cruzamento, a qual não está no conceito de sua espécie, faz a
ideia de uma comunidade da causa e, na verdade, de uma causa originalmente posta no tronco da
própria espécie. Que essa palavra não ocorra na descrição da natureza (mas que em seu lugar se
encontre a palavra variedade) não pode impedi-lo de julgá-la necessária em vista da história da
natureza. Ele, decerto, apenas deve defini-la claramente em função disso; e isso nós desejamos tentar
aqui”(1788, p. 220).
107
46
Curiosamente, Darwin não acolheu a teoria da hereditariedade materialista de Lucrécio apresentada no
Livro IV de seu poema, segundo a qual “quando, na mistura das sementes, a mulher por acaso e de súbito
ganhaenergia e vence pela força a força masculina, então, por causa da semente materna,nascem os filhos
semelhantes à mãe, como o seriam ao pai, da semente paterna.Mas aqueles que se vêem com um e outro
aspecto, pondo juntamente os rostos dospais, esses crescem a partir do sangue materno e paterno, quando
as sementes,excitadas através do corpo pelos estímulos de Vênus, vêm ao encontro uma daoutra e se
misturam com mútuo ardor, de tal modo que nenhuma delas vence ou évencida.Acontece também que
muitas vezes podem ser semelhantes aos avós efreqüentemente reproduzem as feições dos bisavós, visto
que os elementos, emgrande número e de muitas formas, muitas vezes, misturando-se, se ocultam
nocorpo dos pais e transmitem de pais a filhos o que partiu da estirpe primitiva”.Como se vê, a doutrina
da hereditariedade de Lucrécio era frequente entre os antigos e os pontos mais interessantes para
comparação com agenética moderna são o da existência de caracteres que se pode chama dominantes e
recessivos, o do duplogerme e o da transmissão pelos germes dos caracteres hereditários (de modo que o
gene não é mais, nas teorias modernas, do que um átomode hereditariedade).
112
47
Esta concepção já encontrava eco no materialismo epicurista e na definição no Livro IV do poema de
Lucrécio. Disse ele que “há nestas coisas um erro gravea que se tem de fugir e que se temde evitar, de
temer, acima de tudo: é preciso que não se julgue que a claraluminosidade dos olhos foi criada para que
possamos ver ao longe; e não é para quepossamos caminhar a passos largos que a extremidade das pernas
e coxas se apóia,articulando-se nos pés; também os braços que temos dotados de fortes músculos eas
mãos que nos servem a um lado e outro nos não foram dadas para quepudéssemos fazer aquilo que é de
utilidade para a vida. Pensar-se seja o que for, aeste respeito, desta maneira, é usar um raciocínio
pervertido, e ao revés: não hánada no nosso corpo que tenha aparecido para que possamos usá-lo, mas é o
ternascido que traz consigo a utilização”. E continuou adiante afirmando que “não existiu a visão antes de
ter aparecido a luz dos olhos, nem o exprimir-sepor palavras antes de ter sido criada a língua; a origem da
língua é, pelo contrário,muito anterior à do falar, e foram criados os ouvidos muito antes de se escutar
oprimeiro som e, segundo creio, existiram, numa palavra, todos os membros antesde terem sido
utilizados. Não puderam, portanto, crescer para serem usados”. Como se vê, Lucrécio negou a existência
de causas finais, muito de acordo com suas idéiassobre omundo, pois num sistema mecanicista como o
seu não pode haver senão causas eficientes. Neste ponto, o raciocínio de Epicuro como o de Lucrécio
estãode acordocom as diretrizes da ciência moderna que afirma que não se pode determinara existência de
causas finais.
114
48
Na tentativa de definir espécie, diz Hoquet (2009), «Darwin préfères´entenir à l´ignorance» (p. 71). Isto
porque, em função das divergências entre os naturalistas de sua época, e mesmo de Lineu e Cuvier,
Darwin considerou, no segundo capítulo, que o termo espécie é dotado de labilidade (de um caráter
indefinível -um termo evidente por si mesmo) e concebido de maneira arbitrária, por razões de
conveniência, agrupando indivíduos que de alguma forma guardam semelhanças entre si, portanto uma
categoria lógica, um conceito heurístico utilizado na organização dos indivíduos, um recurso prático e útil
que possibilita descrever fenômenos naturais. Arrisco estender esta mesma noção ao conceito de instinto,
como definido por Darwin. Hoquet, segue tirando conclusões sobre o fato de que se as espécies (segundo
uma interpretação nominalista de sua obra) têm uma origem, se segue que o próprio termo espécie perde
sua significação, uma vez perdido seu estatuto de essência, de uma criação (origem) independente. Para
ele, a consequência da obra de Darwin produziu «une dissolution de
l´espècedanslesindividusmultiplesquilacomposent» (p. 72), conferindo aos indivíduos a condição de
únicas entidades reais, substanciais. Esta labilidade, esta ausência de uma linha de demarcação, que
obscurece a própria distinção entre espécie e variação (mais tarde, cópia e erro) adiante será explorada e
de grande consequência por Canguilhem que conduz às últimas consequências (acentuando a
incompatibilidade entre a noção de espécie e de indivíduo) a desconstrução da concepção realista
(entidade fixa e definida) das espécies relativamente compartilhada por Darwin.
115
49
Sobre isto, divergindo de muitos intérpretes de Darwin, Hoquet reconhece que ele se interessa muito
mais, «à ladéviationqu´à la dérivation» (2009, p. 138). Este ponto de vista foi argumentado indicando que
a frequente metáfora da árvore genealógica que ilustra continuidade entre espécies atribuída a Darwin, na
verdade corresponde a um recurso dos linguistas (especialmente Schleicher; in: Die Deutsche Sprache,
1860; compartilhada com Haeckel) para mostraruma adesão ao evolucionismo que, no entanto, não faz
justiça a Darwin. Este, sem ter recorrido à noção de árvore, galhos ou troncos, apresentou de fato, no
capítulo quatro e dez da Origem, o que chamou de “diagrama” que explica a descendência com
modificação. Neste, não se dedicou a apresentar nem a origem comum, nem o tronco comum e nem
mesmo os galhos de descendência continuada entre espécies. Hoquet aponta que a metáfora da árvore,
«unUrsprungplutôt que d´une Entstehung» (p. 144), portanto sobrepõe uma genealogia (a busca do
primeiro de uma série continuada, tão cara aos linguistas) onde só há a busca de um mecanismo de
originação e especiação. Imprime a noção de continuidade (igualmente cara e demonstrável pelos
linguistas) onde Darwin indicava, ao contrário, irregularidade e aleatoriedade. Equívoco que, segundo
Hoquet, fez do esquema de Darwin uma árvore filogenética. De fato, como vimos acima, Darwin reiterou
que este ponto de vista que busca o primeiro termo (da língua) como a (sua) forma primitiva e sua
derivação, não seria mais do que um hipótese de orientação indemonstrável (apenas alcançável pelos
linguistas).
50
Este mesmo ponto de vista Darwin aplicou à noção de instinto ou comportamento dos seres vivos, cuja
variação e conformação não se produz subitamente, antes por uma modificação lenta e progressiva sob os
cuidados da seleção natural, inclusive submetidos à noção de hereditariedade e de regressão evolutiva.
116
51
Segundo a noção de tempo irreversível da termodinâmica.
52
Há dois parágrafos acima Darwin reconheceu que “a psicologia será solidamente estabelecida sobre a
base tão bem definida pelo senhor Herbert Spencer, isto é, sobre a aquisição necessariamente progressiva
de todas as faculdades e de todas as aptidões mentais” (1859, p. 436).
53
Segundo Ritvo (1990), o próprio Claus, enfatizou que “é claramente um mau uso da palavra lei
representar os numerosos fenômenos da hereditariedade parcialmente opostos e limitadores como leis da
hereditariedade, tal como Haeckel faz” (Claus apud Ritvo, p. 173).
117
54
Considerando que Darwin ignorava a genética de Mendel, a hereditariedade aparece em diversos
pontos de sua obra em que declara sua ignorância. Por exemplo, “As leis que regulam a hereditariedade
são geralmente desconhecidas” (1859, p. 28) ou consiste, continua em uma “simples teoria da
probabilidade” (1859, p. 28). A falta da teoria genética de Mendel ficou evidente ao formular, por
exemplo, este questionamento: “Qual a razão pela qual, por exemplo, uma mesma especialidade,
aparecendo em diversos indivíduos da mesma espécie ou espécies diferentes, transmite-se algumas vezes
e outras não se transmite por hereditariedade? Por que é que certos caracteres do avô ou da avó, ou de
antepassados mais remotos, reaparecem no indivíduo?” (1859, p. 29). A esta questão ensaia a formulação
de uma lei: “Uma regra muito mais importante e que apresenta, creio eu, raras exceções, é que, em
qualquer período da vida que uma particularidade apareça de início, tende a reaparecer nos descendentes
em uma idade correspondente; algumas vezes um pouco mais cedo” (1859, p. 29). Deste modo, a
hereditariedade (assim como a variação) deve-se a uma tendência, a uma força (uma relação e não uma
substância) cujo princípio é a consideração de que “o semelhante produz o semelhante” -mas com
descontinuidade. Inicialmente concebida como um ato, o próprio caráter transmitido (por razões ou
fundamentos desconhecidos, embora por leis conhecidas) não é mais do que um resultado, um efeito da
ação de forças, de tendências que após a genética mendeliana passou a ser entendida como transmissão de
um suporte material suscetível de mesclas. E mais recentemente de um código de informações, sofrendo
deslocamento da ação para o conteúdo.
55
De um modo geral, oconceito de princípio está associado às proposições ou verdades fundamentais por
onde se estudam as ciências ou artes, e às normas fundamentais que regem o pensamento e a conduta.
Neste sentido, podemos dizer que a lei da gravidade é um dos princípios da física. Regras fundamentais
admitidas como base de uma ciência, arte etc.. Foi neste sentido que a seleção natural recebeu de Darwin
o estatuto de princípio. Hoquet (2009) lembra (p. 52) que por três vezes Darwin a definiu como vera
causa dos fenômenos de variação e especiação. Sobre tais noções científicas, Hoquet (2009) declara que
«on sait que la variabilité a des causes (effet des conditions de vie, usage et non-usage); la variation a des
lois (corrélations) ; l´hérédité a des règles (apparition de tel caractère chez le descendant de même sexe,
au même âge, etc.); la génération a également des lois. La plupart de ces lois, causes ou régles sont
inconnues ou aperçues seulement confusément » (p. 117).
118
************
Sempre considerando a natureza na perspectiva de um conjunto
evolucionário, no capítulo três Darwin avançou na investigação da relação luta
pela sobrevivência com a seleção natural. É verdade que em muitas passagens
esta noção, como dissemos acima, teve seu caráter conflituoso atenuado ao
ser descrita como relações de existência, que não são necessariamente
conflituosas ou litigantes56. Esta articulação expõe o processo de capacitação
(que implicade certo modo um prestigio do ponto de vista progressista
propugnando perfeccionismo e aperfeiçoamento) que estimula e promove a
adaptação dos seres, neste caso regido por um princípio de utilidade. Ela foi
assim considerada causa de tudo o que é produzido em termos ou função da
adaptação.É por ela que as variações, como disse Darwin, “por mais fracas
que sejam e seja qual for a causa de onde provenham” (1859, p. 68),preservam
56
Hoquet (2009) informa (p. 87) que a expressão struggle for lifesempre foi apresentada entre aspas.
119
57
Esta regulação espontânea deixou, ao que parece, de exercer pressão em relação ao homem que, como
discutiremos adiante, parece ter se retraído do âmbito deste princípio. Malgrado os efeitos positivos da
autonomia que parece ter conquistado, como efeito colateral encontra-se diante do desafio de controlar ou
minimizar as consequências de sua reprodução desenfreadamente geométrica.
58
Ainda tratando das leis das variações, Darwin reconheceu que “há uma luta constante, de um lado entre
a tendência à regressão a um estado menos perfeito, assim como uma tendência inata a novas variações e,
de outro lado, com a influência de uma seleção contínua para que a raça se aprimore” (1859, p. 138). Esta
questão foi igualmente tratada por Karl Claus, informa Ritvo, em obra de 1884. Nela declarou que,
“enquanto como regra geral o desenvolvimento do indivíduo é um avanço de uma organização mais
simples e inferior para uma mais complexa, que se tornou mais perfeita por uma continuada divisão do
trabalho entre suas partes [...] no entanto o curso do desenvolvimento pode, em casos particulares, levar a
numerosas regressões, de modo que podemos encontrar um animal adulto com organização inferior á
120
larva. Este fenômeno [...] corresponde às exigências da teoria da seleção, já que sob condições de vida
mais simples, onde a nutrição é mais facilmente obtida (parasitismo), a degradação e mesmo a perda de
partes pode ser vantajosa para o organismo” (Claus apud Ritvo, p. 203). Creditamos esta concepção da
evolução sob a perspectiva antagônica do progresso adaptativo e da regressão a estados anteriores, que
contraria a noção de tempo evolucionário irreversível,à sua noção da hereditariedade pangênica, que
implica a noção de espermatozoides sob forma de homúnculos, como células pré-formadas (gêmulas) que
representam cada parte do corpo dirigidas aos órgãos de reprodução, que não leva em conta o fator
probabilístico da emergência nos descendentes de características complementares e compartilhadas pelos
genitores (esta sustentada pela teoria cromossômica). Esta teoria permite toda emergência ou
reemergência de características pretéritas explicada como regressão e não como possibilidade
combinatória. Até porque o que Darwin identificou como regressão nada mais é do que a surpreendente
reaparição de caracteres “que desapareceram durante um grande número de gerações, centenas talvez”
(1859, p. 143). Esta reemergência foi explicada, considerando “que o caráter em questão se encontra em
estado latente nos indivíduos de cada geração sucessiva e que, enfim, esta característica se tenha
desenvolvido sob a influência de condições favoráveis, cuja causa nós ignorávamos” (1859, p. 143).
59
Sobre a relação do tempo com a evolução Darwin esclareceu que “a duração do tempo é somente
importante –e nisso não exageraríamos esta importância- porque apresenta mais probabilidade para o
surgimento de variações vantajosas e lhes permite, após fazerem o objeto da seleção, acumular-se e fixar-
se. A duração do tempo contribui, igualmente, para aumentar a ação direta das condições físicas da vida
relativamente à constituição de cada organismo” (1859, p. 101).
121
torno do qual foi produzida uma nova lógica da origem e da evolução das
espécies e de seus modelos explicativos.
Este fenômeno que arriscamos identificar como um ponto de inflexão na
história da ciência moderna (marcado por uma reemergência do epicurismo,
como sugere Hoquet),apresenta sua própria história, uma história da ideia de
evolução por descendência com variação,sob a influência de inúmeras
contribuições internas e externas. Para ficarmos em poucos exemplos,
relembramosas pesquisas em botânica de Hugo de Vries publicadas em The
mutation theory (1900) e Speciesandvarieties: thereoriginby matation (1905), a
partir das quaistoda variação pode ser concebida como variação brusca, em
relação de descontinuidade com seu ascendente.
Outra contribuiçãopontualmente especial ocorreu entre os anos trinta e
quarenta do século XX por iniciativa do zoólogoJulian Huxley em Evolution: The
modernsynthesis (1942) e ErnstMayrque recebeu o nome de teoria sintéticaque
concerne ao modo unificado da Biologia dar conta da tese da seleção natural
articulada à genética de Mendel.Iniciativa que agregou ao debate termos (e
conceitos) como mecanismo, evolução cega, acaso, contingência,
aleatoriedade, probabilidade entre outros que enriqueceram ao mesmo tempo
em que deram outra configuração e rumo ao tratamento da questão. Assim, no
interior da chamada Biologia molecular que, a partir da teoria da dupla hélice
de James Watson e Francis Crick, de 1953, que recebeu posterior contribuição
de Jacob, Monod e Lwoff, a teoria de Darwin sofreu reformulações internas e
contribuições externas que conferiram contornos amplamente divergentes dos
concebidos inicialmente.
Certamente sua história encerraconsiderações filosóficas como, por
exemplo, a encruzilhada que dispõe a evolução,ora sob efeito de uma intenção
e finalidade, orasob efeito da contingência, da aceleração sem projeto e sem
projetista. De qualquer forma, com o compromisso de oferecer um modelo
explicativo da evolução, as diferentes teorias guardam em comum a recusa do
criacionismo, da origem ex nihilo das espécies eda imutabilidade formal de
cada ser vivo. Afinal, trata-se de mudança, de variação, mas sob que
mecanismo, sob que jogo de forças, sob que lógica? Justamente sobre estas
questões que o debate tem se dado e as correntes constituídas.
126
60
Em outra abordagem desta questão, Canguilhem afirma (1952) que a tese de uma escala contínua entre
os seres de descendência comum (epigenia e especiação) teve, no espírito da Renascença bem como do
século XVIII francês, nos seres monstruosos o exemplo que indica as formas de transição, de passagem
de uma espécie à outra, como os peixes-pássaros, os homens marinhos etc..
129
61
Sobre a natureza descontinuista da mutação, Jacob (1970) declara que«lesvariations de l´hérédité se
font par sautsquantiques» (p. 243). De modo que genes correspondam a átomos, inclusive em sua
condição primária de «être de raison» (p. 246). Igualmente, Monod (1970), justificando o sentido
temporal de irreversibilidade da evolução como idêntico ao que foi postulado pela termodinâmica, alega
que «ils´agit de bienplusqu´unesimplecomparaison» (p. 139), ambas fundadas no recurso estatístico-
probabilístico.
130
62
Sobre isto, diz Jacob (1981) que «il suffit de petits changements qui redistribuent les mêmes structures
dans le temps et l´espce pour modifier profondément la forme, le fonctionnement et le comportement du
produit final: l´animal adulte» (p. 84).
137
63
Darwin, recusando esta possibilidade, reconheceu-a, declarando que “há, contudo, quem acredite ainda
que as espécies produziram, por meio ainda inexplicáveis, formas novas totalmente diferentes” (1859, p.
432). Recusava, no final do século XIX, o que se chamava evolução saltacional, que considerava que as
espécies poderiam surgir de repente e nãoatravés do acúmulo lento gradual de pequenas modificações.
Era aceita, porexemplo, por Thomas Huxley, A. vonKölliker, Francis Galton, William Bateson e Duke de
Argyll. Igualmente, a partir de 1900, defendendo a descontinuidade das variações, surgiu outro núcleo de
pesquisa apoiado no estudo experimental de cruzamentos, de inspiração mendeliana.
64
La teleonomía esun término ideado por Jacques Monod que se refiere a la calidad de aparente
propósito y de orientación a objetivos de lasestructuras y funciones de los organismos vivos, la cual
deriva de su historia y de suadaptación evolutiva para eléxitoreproductivo.El término fueacuñado
porcontraposiciónal de teleología (aplicable a finalidades que son planeadas por un agente que pueda
internamente modelar o imaginar varios futuros alternativos, procesoenelcualtiene cabida la intención, el
propósito y la previsión) alrededor de 1970 y expuestoensu libro El azar y la necesidad.
Unprocesoteleonómico, sin embargo, como podríaentenderse por ejemplolapropia evolución, da lugar a
productoscomplejossin contar conesaguía o previsión. La evolucióncomprendeengran parte
laretrospección, pueslasvariaciones que la componenefectúan involuntariamente “predicciones” sobre
lasestructuras y funciones que mejorpuedenhacer frente a circunstancias futuras, participando en una
competición que elimine a los perdedores y seleccione a losganadores para la generaciónsiguiente.A
medida que se acumula información sobre las funciones y lasestructuras más beneficiosas, se produce la
regeneracióndel entorno mediante la selección de lascoaliciones más aptas de estructuras y funciones. La
138
teleonomía, enese sentido, estaría más relacionada conefectospasados que con propósitos inmediatos.
(Wikipedia)
139
65
Importante lembrar que a noção de que a consciência corresponde a um estágio evolutivo foi
fortemente sustentada por Spencer, particularmente como um estágio do processo de adaptação. Além
dele, entre tantos evolucionistas, Monod (1970) dedicou um capítulo (Les frontiers) a esclarecer a
emergência e o desenvolvimento do sistema nervoso central, de suas funções, além do pensamento
abstrato humano, que tem na linguagem um de seus elementos, processos eficazes de sobrevivência
resultados de uma pressão seletiva. Resultados que enriqueceram a capacidade de estabelecer relações
com o meio ambiente e com a própria pressão seletiva. De modo que a despeito de considerar a evolução
a partir de uma sucessão descontínua e não finalista, considera que a evolução continua a produzir
complexificações como forma de recursos adaptativos, uma forma de progresso ressignificado (pas
avant).
144
67
Darwin retomo este argumento no capítulo final reafirmando que as variações “em nossa ignorância,
parecem-nos surgir espontaneamente” (1859, p. 429).
146
68
A perspectiva de Darwin, anunciada na citação, de uma disposição determinista inscrita na natureza foi
igualmente compartilhada com Kant, para quem: “Daquilo que na espécie humana pode ser chamado
variedade, eu observoaqui que também relativamente a esta não se tem que considerar a naturezacomo
formadora em completa liberdade, mas, assim como no casodos caracteres das raças, apenas como
desenvolvendo predeterminadamentea mesma, através de disposições originais: porque, na variedade,
encontra-seigualmente uma conformidade a fins e uma medida conveniente à mesma, quenão pode ser
obra do acaso” (1788, p. 222).
69
Ao final deste capítulo, descrevendo a aparição de riscas em cavalos, reconheceu que estava
convencido de que “nenhuma destas riscas provinham do que se chama ordinariamente de acaso...”
(1859, p. 147). Seu determinismo incluiu até mesmo o que chamou adiante de variações espontâneas (p.
188), sobre as quais o meio ambiente teria apenas uma influência insignificante. Em outra parte da obra
Darwin refletiu sobre os meios de transporte, por exemplo, de sementes na superfície do planeta que é
feito por meio de pássaros migratórios e de correntes de ar e marítimas, recusando-lhe a concepção
frequente de que ocorrem de forma acidental. Confiante num movimento mecânico estável da natureza
declara que “as correntes marítimas, bem como a direção dos ventos dominantes, não são casuais” (1859,
p. 339). Sobre esta questão, Hoquet acrescenta uma distinção entre variatione variabilité. Reconhece que
« la vatiation est um fait qui se donne sans raison, phénoménologiquement ; alors que la variabilité est un
facteur, qu´on peut expliquer, mesurer, comparer, par exemple en faisant varier la quantité de nourriture »
(2009, p. 105). Trata-se de um esforço por conhecer as leis de um fenômeno (e exemplo da lei da
gravidade de Newton) apesar de ignorar seus fundamentos últimos, suas causas.
149
humans» (p. 238).De fato, esta expectativa pode ser facilmente reconhecível,
por exemplo, em suas considerações sobre a natureza espontânea das
variações. Longe de atribuir-lhes uma natureza aleatória, Darwin reconhece, já
no último capítulo da obra, que as variações observadas no âmbito doméstico
dos criadores demonstram “uma variabilidade notável, porém muitas vezes de
maneira tão obscura que nos dispomos a considerar as variações como
espontâneas” (1859, p. 419). De modo que atribui a consideração pela
espontaneidade muito mais como resultando de uma falta de compreensão de
seu processo de produção, do que como processo aleatório inscrito na
natureza.
Já se encaminhando para a finalização do seu último capítulo sintético,
Darwin, destacando o papel da seleção natural na “escolha” das numerosas
variações pequenas (destaca também os efeitos hereditários do uso e desuso
além da ação diretadas condições do meio ambiente) confere mais uma vez às
variações seu estatuto, reconhecendo que elas igualmente “em nossa
ignorância, parecem-nos surgir espontaneamente” (1959, p. 429).Em lugar de
variação ao acaso, reconheceu que elas “seguem leis complexas, tais como a
correlação, o uso e não-uso, e a ação definida das condições exteriores” (1859,
p. 419), numa evidente tentativa de transferir para o mundo biológico a
segurança do mundo físico. Identificando Darwin, pelo menos a partir da
citação destacada, como um determinista, Weber reconhece nele uma
concepção da realidade biológicaoposta à de muitos naturalistas que o
sucederam, especialmente dos biólogos moleculares. Estes, de outro lado,
segundo o ponto de vista indeterminista, reconhecem o limite do conhecimento
à própria natureza probabilística dos eventos. Portanto ambos operam uma
noção distinta de realidade e de seu estatuto.
Esta querelamerece destaque, pois se trata de uma discussão que tem
como pano de fundo a própria objetividade da natureza e de sua investigação,
a própria consideração sobre seu mecanismo que pode ser regular-
determinístico ou randômico-probabilístico das variações e, no limite, do próprio
processo de evolução. Distinção importante como fundamentação da
possibilidade de inserção ou recusa de intenção e finalidade na natureza.
A discussão acerca do estatuto epistemológico do evolucionismo carece
ainda da compreensão do estatuto do seu conceito fundamental, o princípio de
150
70
No terceiro capítulo de A origem das espécies, Darwin declara que a invocação de cataclismos para
explicar a extinção de seres organizados deriva de uma má compreensão de suas causas, efetivamente
atribuída a suas complexas relações na luta pela superação das barreiras à sua sobrevivência. Nesta
circunstância, disse, “sabemos apenas invocar cataclismos que vieram entristecer o mundo e inventar leis
referentes à duração das formas vivas” (1859, p. 74).
71
Sobre isto, Hoquet (2009), investigando a construção do pensamento de Darwin, destaca os que seriam
seus dois pontos centrais, a seleção natural e a variação aleatória. Reconhece que esta última consiste no
material sobre o qual a primeira atua (promovendo o processo de especiação). Neste sentido, a
investigação de Darwin consistiu em descobrir as leis da natureza, particularmente as condições que a
produzem e as leis das variações (às quais dedicou o capítulo cinco da Origem). Sua conclusão sobre esta
iniciativa, no entanto, foi, segundo Hoquet, «qu´il a pourtantlaisséesenfriche» (p. 25).
152
72
Trata-se de uma consideração já discutida acima e que caracteriza o ponto de vista evolucionista. Ela
foi também endossada por Lwoff (1969) em sua contribuição à definição de vida, na medida em que ela
caracteriza um estado de um organismoque se reproduz. Nesta condição, também para ele um organismo
jamais provém do nada, no sentido de algo novo, antes «d´unorganismeidentiquepréexistant» (p. 12).
Com este ponto de vista familiar ao evolucionismo, acaba por reafirmar a derivação de um ser por outro a
partir da noção de cópia, ainda que não considerada perfeita, no sentido de que uma transmissão de
informações é a primeira condição responsável pela viabilização do novo organismo, evidentemente
seguida do sucesso em relação à pressão seletiva. Tudo isto sem abdicar da noção de continuidade
genética que garante a sobrevivência da espécie e a marcha da evolução. Por consequência um processo
que comporta em sua concepção a noção de erro ou de falha. Sobre esta noção que será discutida adiante
em referência a Canguilhem, Hoquet declara que a própria noção de «variabilité designe um état de
l´organismeoùil est susceptible de dévier» (2009, p. 116), de modo que a hereditariedade seria um tipo de
equilíbrio de forças que opera a transmissão destes desvios. A partir do que se estabelece um jogo
permanente entre o que resta e o que varia na reprodução, que satisfaz plenamente a própria concepção de
evolução, como se ela mesma demandasse o procedimento de estabilidade e de variação. Assim, evolução
consiste em transmitir a variação ocorrida sobre uma base estável e acumulada de variações que se
tornam estáveis. Como se a estabilidade representasse a vida e a variação um acréscimo em favor dela
mesma. Um acerto da natureza ao dotar os seres vivos da capacidade de errar. Uma posição teórica de
custo inestimável tenazmente presente na história da Biologia que Canguilhem bem aponta.
155
73
É verdade que Darwin, de alguma forma, já havia reconhecido a possibilidade de que certos tipos de
variabilidade ocorressem, como disse, “independentemente das condições da vida” (1859, p. 54).
158
Foi ao final do século XIXa gênese dos seres vivos deixou de ser
pensada em termos de uma harmonia preestabelecida. A própria finalidade
passou a ser relacionada à contingência. De modo que a situação se inverteu a
ponto de que a evolução, decorrente do encadeamento interno das
transformações dos seres no tempo, passou a ser vista como determinante das
relações no espaço. Assim, de Darwin e Wallace, o que ocorreu de novo, cada
vez mais, foia noção de uma evolução de modo que os seres que vemos hoje
poderiam ser diferentes ou nem mesmo existirem. Resultam de um jogo de
forças opostas e numerosas, de um combate constanteentre organismos e
meio ambiente, que tem ocorrência no espaço e no tempo.Até porque, a
relação entre seres vivos e ambientese passa segundo influência mútua de
determinação.
A evolução ou a sucessão de formas vivas no tempo deixou de ser bem
representada por colunas ou linhas e ganhou a famosa ilustração por meio da
árvore genealógica, que ilustraa conservação de traços comuns bem como a
divergência de características, de modo a constituir famílias saídas de um
mesmo ancestral, mas continuamente fracionadas em grupos distintos.Esta
suposta origem da vida que, «se estompe au fond des temps» (p. 181), como
diz Jacob, evidencia o estatuto e o valor heurístico da teoria de Darwin.
Passou a ser admitida uma relação de reciprocidade de influência e
determinação a partir da qual tudo muda em conjunto num sentido imprevisto.
Daí em diante, a noção de tempo já se aplicava à Terra que, para Buffon, se
revolta produzindo efeitos sobre seres a princípio estáticos. Também aos seres
vivos, como para Lamarck que concebeu sua marcha própria à perfeição. A
partir do século XIX, com Darwin e Wallace, a marcha temporal se deu no
conjunto do universo, do planeta e dos seres vivos.
Tudo isto mais tarde se agravou em função da emergência de
conhecimentos nascidos da anatomia comparada, da embriologia e da
histologia. Rompendo ainda mais coma perspectiva de uma sequência linear e
única para a evolução. Inclusive ensejando uma nova concepção de cadeia de
ligação entre os seres vivos. Atualmente, o foco foi deslocado para a célula
como elemento universal de constituição, de reprodução, de transmissão de
características e de ligação entre os seres vivos. A evolução ou transformação
de qualquer ser vivo depende, antes de mais nada, de suas ocorrências como
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74
Morange (2011) comenta, se bem que considerando-as ilusórios, que em recentes pesquisas
denominadas epigenéticas, ocorre uma recusa do determinismo genético. Por exemplo, os estudos
epigenéticos ao nível do cérebro são hoje considerados como um meio de abolir a tradicional distinção
entre inato e adquirido. Isto porque, como diz, «elle laisse la porte ouverte à ce que des modifications
induits par l´environnement puissent être transmises à la descendance, et donc à un retour du lamarckisme
et du néolamarckisme» (p. 132).
162
Conclusões
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Com este estatuto, a vida, cujo impulso se dá imerso na ordem que cria,
produz arranjos possíveis, ordem criada e multiplicada a partir de um conjunto
de informações acumuladas que só fazem ampliar as possibilidades de fluxo,
de mais ordem e de produção de entropia negativa.A vida começa, e persiste,
assim a partir de um programa genético, a partir de um texto, como nos ensina
Jacob, sem autor, mas revisto infinitas vezes por um corretor, um programa
que se realiza enquanto se executa e executa na medida em que se realiza e
que tem no erro sua porta de abertura para novos agenciamentos com o meio.
Nestes termos, vidapode ser entendida como «un fait pur, sans cause,
niresponsabilité» (1971, p. 23), como lembra Canguilhem, e que por esta
circunstância não é vista como submetida à inércia e à exaustão como
finalidade, condição que lhe atinge a não ser do exterior e contra a qual resiste.
Contudo, se a ordem biológica foi considerada por Lwoff como desvio do
sentido universal à desordem, lembra que em direção contrária, Schrodinger
postula que todo fenômeno natural está submetido à produção de entropia
positiva e se aproxima do estado de entropia máxima que equivale ao repouso,
à morte, a não ser que mantenha com seu meio uma troca ininterrupta de
entropia negativa. Discordâncias à parte, Lwoff conclui o capitulo reconhecendo
que «l´entropie negative est undegré d´énergie.La miseenordre est une
probabilité» (1969, p. 176).
Assim, embora haja quem, como Schrodinger, inclua os seres vivos sob
a segunda lei da termodinâmica, Canguilhem os exclui dos efeitos de uma
entropia positiva, reservando-lhes o domínio de uma ordem vitalista.Esta noção
pode ser bem compreendida, como explica Pénisson, pois «si l´on définit d´une
part l´entropie que reencontre la vie au cours de son déroulement comme
l´accroissement d´un désordre et d´autre part la normativité du vivant comme
une faculté d´instaurer un ordre nouveau, ces deux concepts semblent alors
s´exclurent» (2008, p. 99). Quer dizer com isso que a própria relação que a
vida estabelece entre os seres vivos, pode ser entendida como uma forma de
resistência à criação de desordem e de exaustão de recursos energéticos que
acomete o mundo físico, ao qual ela responde criando normas. Neste sentido,
a patologia ou a anomalia podeser interpretada como signo de uma criação de
desordem no seio da vida, como uma criação de desordem crescente (que
174
sugerimos ser o caso de Freud). No entanto, ela pode também ser subsumida
à possibilidade de que corresponda à criação de novas formas de vida.
Para compreendermos esta questão é necessário recorrer, mais do que
à filosofia da história de Canguilhem, à sua filosofia da vida, entendida
«commeactivité d´oppositin à l´inertieet à l´indifférence» (1966, p. 224).
Condição pela qual os seres vivos resistem à morte se destacando de seu
princípio, sob condições favoráveis de sobrevivência. O próprio Canguilhem
completa em seguida que«la vie jouecontrel´entropiecroissante» (1966, p.224),
por conta do que Pénisson denuncia o que chamou de vitalismo que
Canguilhem sustenta, segundo ele, inspirado em Bichat. Atribui à vida um
caráter de luta e esforço cuja meta de satisfação é sua conservação por meio
da produção contínua e criativa de normas de vida, de sua regulação. Trata-se
de umprocesso pelo qual compreende e inclui toda patologia, monstruosidade,
erro etc., retirando-as da consideração de desordem. Vitalismo (associado à
noção de élan) associado a uma concepção de variação aleatória,
impulsionada por um ímpeto que permite pensar num processo evolutivo (livre)
que cria/inventa a cada momento a partir de si mesmo algo de novo, quevisa
manter a vidaa partir de um regime normativo próprio, deuma outra ordem
fisiológica (concepção que Pénisson atribui à influência de Henri Bergson
desenvolvida na obra L´évolutioncréatice).
Desta forma atribui à toda providência dos seres vivos um ato de
resistência à morte, à inércia. Entendida por Canguilhem, diz Pénisson, como
«activitéetdésir de devenir, de créer» (2008, p. 100). De modo a excluírem-se
de toda orientação entrópica. Não admitindo qualquer tipo de desordem no
interior da produção de seres vivos,Canguilhem apresenta a emergência de um
dispositivo de regulação como decorrendo das próprias necessidades de
alimento, de energia, de movimento e repouso que demandam a construção do
que chamou de «unétatoptimum de fonctionnement, déterminésous forme
d´une constante.Une régulationorganique ou une homéostasie» (1966, p. 243).
Contudo, seu vitalismo compartilha com a entropia a noção de
irreversibilidade do tempo que dá constituição à vida. Fator fundamental, um
verdadeiro devenirpara os seres vivos, bem definido como genesis.
Consideração que abdica de noções como identidade, estabilidade e
permanência, recursos com os quais a vida combate a entropia diferenciando-
175
75
Refletindo sobre a importância dada à variação, Hoquet lembra (2009, p. 331) que o botanista inglês
John Dalton Hooker, interlocutor crítico de Darwin (embora Hoquet atribua a ele o que chamou de
«unbondarwinisme», já discordava dele (por exemplo, em carta de 26 de novembro de 1862) por não
considerar radicalmente que a criação de seres vivos se dá por variação, a partir de variantes que
aparecem espontaneamente no processo de descendência, de modo a secundarizar a atuação da seleção
natural, para quem ela nem faz a diferença e nem cria os caracteres dos seres vivos. Enfatizando o foco da
criação na variação (que concebeu como inerente, autônoma e centrífuga), portanto num grau mais
fundamental que a seleção natural e a herança de caracteres. Vale recorrer á sua advertência, rompendo
com todo resquício de teleologia, de que “a lei que proclama “igual não produzirá igual” está na base de
tudo e é tão inescrutável como a própria vida” (Hooker, in: Cartas seletas, 2009, p. 89) Além disso,
divergiu quanto à possibilidade de reversão ou recapitulação, sobre a qual Darwin foi hesitante. Para além
da consideração de que uma característica persiste ou reaparece, considerou que as diferenças são sempre
infinitas e incessantes.
176
deriva de outra anterior à qual agrega algo novo podendo ser explicada uma
pela outra em seu conjunto. Canguilhem reconhece que este pondo de vista
tem suporte na própria mobilidade da concepção de ser vivo e de sua gênese,
retirando de toda reprodução o estatuto de derivação integral e especialmente
de cópia, tudo apoiado no prestígio e radicalização da variação como
fenômeno autônomo e aleatório, com o que conduz o epicurismo às últimas
consequências.
Reconhece que «ce que la durée ajoute n´est pas contenu dans le
concept et ne peut être saisi que par une intuition. Il n´y a pas fermeture sur
êlle-même de l´opértion d´organisation, la fin ne coincide pas avec le
commencement» (2008, p. 348).Trata-se portanto de, continua,
«l´aboutissement d´une tactique de la vie dans sa relation avec le milieu»
(2008, p. 348). Pode-se reconhecer que sua noção de emergência do
possível deriva da noção de especificação de Bergson, de cuja interpretação
conclui que «la vie est élan, c´est-à-dire dépassement de toute position,
transformation incessante» (1968, p. 353), cuja transmissão consiste em sua
particular noção de hereditariedade biológica, pois continua, «il est certain
entout cas que cet élan transporte, et transporte en quelque sorte à l´impératif,
un a priori morphogénétique» (1968, p.354). Contraria a noção de herança
dada, lembra Canguilhem, desde Claude Bernard (consigne) até às recentes
descobertas da biologia molecular (código genético) sob a noção de
transmissão de informação, de um código de instruções, resguardada sob a
hipótese de uma orientação, uma direção fixada por um programa, um conjunto
de informações que tendem a se perpetuar por transmissão.Isto considerando
que desde Claude Bernard o estudo da vida já se dava a partir da estrutura
celular de modo que a evolução já era considerada uma criação segundo um
imperativo estrutural-informacional. Sempre visando explicar em que sentido
uma forma viva encontra condições de persistir no interior do turbilhão
quecaracteriza a vida.
Desnecessário lembrar que esta abordagem, atribuída a Wattson e Crick
pela publicação da teoria da dupla hélice em 1954, repudiou toda terminologia
do passado adotando um vocabulário emprestado da teoria da comunicação,
como programa, código, mensagem e mensageiro, decodificação e instrução,
duplicação, transcrição e tradução, todos em analogia (abandonando a
177
metáfora) para compor seus conceitos relativos à vida. Foi assim que a
definição de doença pode ser formulada como dependente da transmissão
hereditária de perturbações de um metabolismo dado. Sobre isto, Canguilhem
reapresenta a informação que consta em sua obra de 1966, de que devemos a
Archibald Garrod, já no início do século XX a identificação do que chamou «des
erreursinnéesdumétabolisme» (1968, p. 361).
Isto foi possível na medida em que o que chama da ação biológica se dá
como produção, como transmissão e recepção, quer dizer, uma sequência que
implica em conservação e novidade, esta por ação do mecanismo de mutação.
Reconhece mais uma vez que sempre reprovou esta concepção em função das
mutações serem consideradas, muitas vezes e a maioria delas,
monstruosidades, alterações letais. A esta consideração, mais uma vez lembra
a tese de Louis Role, para quem o normal de hoje é o monstro normalizado de
ontem, argumento que fragiliza a distinção enquanto confere novo estatuto ao
que chamou de ação biológica de reprodução.
A partir dela, a vida mesma passou a ser definida como gramática, como
sintaxe e semântica, o conhecimento da vida se converteu em sua leitura, sua
decodificação, sua interpretação. Fato que define sua investigação como um
ato de descoberta, como o encontro de uma chave de leitura de um sentido
inscrito noser vivo. Um conhecimento, um sentido que é descoberto,
encontrado como existente e não construído, adverte Canguilhem.Desta forma
constituída, a história do conhecimento humano seria então a de identificações
dos acertos e dos erros da natureza.Ironicamente ele se pergunta se «la vie
auraitdoncabouti par erreur à ce vivant capable d´erreur» (1968, p. 364), já que
em tese poderia prescindir deste dispositivo para promover a evolução.Para
ele, a ação biológica não erra, opera. Sua crítica mostra que o desvio só pode
ser pensado em relação a um sentido dado da vida, seja como progresso, seja
como declínio. É justamente neste ponto que reforça sua crítica à noção de
erro e da promessa de eficácia terapêutica pela via de sua correção, pois
mesmo quando ainda não ocorre, como na trissomia 21, ao menos indica o
ponto a ser pesquisado.
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O primeiro sistema de classificação foi o de Aristóteles no século IV a.C., que ordenou os animais pelo
tipo de reprodução e por terem ou não sangue vermelho. O seu discípulo Teofrasto classificou as plantas
por seu uso e forma de cultivo. Nos séculos XVII e XVIII os botânicos e zoólogos começaram a delinear
o atual sistema de categorias, ainda baseados em características anatômicas superficiais. Para Buffon os
animais foram classificados por sua proximidade com o homem, como domésticos e selvagens. No
entanto, como a ancestralidade comum pode ser a causa de tais semelhanças, este sistema demonstrou
aproximar-se da natureza, e continua sendo a base da classificação atual. Lineu fez o primeiro trabalho
extenso de categorização, em 1758, criando a hierarquia atual. A partir de Darwin a evolução passou a ser
considerada como paradigma central da Biologia e com ela evidências da paleontologia sobre formas
ancestrais, e da embriologia sobre semelhanças nos primeiros estágios de vida. No século XX, a genética
e a fisiologia tornaram-se importantes na classificação, como o uso recente da genética molecular na
comparação de códigos genéticos.
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